faculdade de sÃo bento curso de...
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FACULDADE DE SÃO BENTO
CURSO DE FILOSOFIA
RONIVALDER BIANCÃO
A EDUCAÇÃO DO INDIVÍDUO E SEUS EFEITOS NA VIDA SOCIAL SEGUNDO
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
SÃO PAULO - SP
2015
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RONIVALDER BIANCÃO
A EDUCAÇÃO DO INDIVÍDUO E SEUS EFEITOS NA VIDA SOCIAL SEGUNDO
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Faculdade de São Bento como requisito parcial
para obtenção do título de Licenciatura em
Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Joel Gracioso
SÃO PAULO – SP
2015
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RONIVALDER BIANCÃO
A EDUCAÇÃO DO INDIVÍDUO E SEUS EFEITOS NA VIDA SOCIAL SEGUNDO
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Faculdade de São Bento como requisito parcial
para obtenção do título de Licenciatura em
Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Joel Gracioso
___________________________________________________
Professor Orientador: Joel Gracioso
Faculdade de São Bento
___________________________________________________
Professor Examinador: Franklin Leopoldo e Silva
Faculdade de São Bento
___________________________________________________
Professor Examinador: José Carlos Bruni
Faculdade de São Bento
SÃO PAULO – SP
2015
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AGRADECIMENTOS
À Deus, que me concedeu a inteligência, a força de vontade e todos os outros meios
necessários para o desenvolvimento deste trabalho.
À minha família, em especial meus pais, por todo o apoio afetivo e material para o
êxito desta pesquisa, sem os quais seria impossível sua execução.
Ao professor Edson Dognaldo Gil, por aceitar o encargo da minha orientação, e ao
professor Joel Gracioso que, posteriormente deu continuidade à minha orientação, sem os
quais também seria impossível a concretização e apresentação desta pesquisa.
À Ordem dos Pregadores presente no Brasil, minha família religiosa, à qual devo a
honra de pertencer e de receber o apoio formativo com vistas o exercício digno e eficaz da
Santa Pregação em nome Jesus Cristo.
E a todas as pessoas não mencionadas, que de alguma forma ou de outra,
contribuíram para a elaboração desta monografia.
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Tudo o que os homens fizeram os homens
podem destruir: indeléveis são somente os
caracteres que a natureza imprime e a
natureza não faz nem príncipes, nem ricos,
nem grandes senhores.
J.J. Rousseau
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RESUMO
O presente trabalho busca ser uma exposição clara e concisa sobre a formação do
homem a partir dos conceitos e pressupostos filosóficos e antropológicos encontrados na obra
prima do pensador iluminista Jean-Jacques Rousseau, intitulada Emílio ou Da Educação. O
objetivo principal do trabalho é apresentar aos leitores, com base no itinerário lógico de
Rousseau, o caminho pedagógico e metodológico adequado à formação do homem, em todos
os aspectos de sua vida, que respeita não só as condições naturais do ser humano, como
também suas diferentes fases de desenvolvimento físico, emocional e psicológico, desde o seu
nascimento, até a entrada na fase adulta. Para efetivação da pesquisa, o trabalho contou com
uma rica e apurada fundamentação bibliográfica, cujas obras, citadas ou somente consultadas,
na sua maioria, podem ser acessadas via internet, garantindo, assim, fácil acesso àqueles que
queiram não somente confirmar os aportes aqui feitos, como também aprofundar o tema da
educação em Rousseau de forma satisfatória e em respeito ao método crítico e analítico
próprios de uma pesquisa na área de Filosofia.
Palavras-chave: Rousseau. Emílio. Educação negativa. Bondade natural. Paixões naturais.
Faculdades inatas. Lei natural. Homem em estado de natureza. Mestres da educação. Virtudes
sociais. Família.
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ABSTRACT
This work is a clear and concise exposition about the man‟s formation based on the
concepts and the philosophical and anthropological assumptions found in the masterpiece of
the enlightenment thinker Jean-Jacques Rousseau titled Emile or On Education. The main
objective of this work based on the logical scheme of Rousseau is to present to its readers the
most appropriate path to the man‟s formation in terms of educational and methodological
planning, considered all the aspects of his life, and respecting the natural conditions of human
being as well as his different stages of physical, emotional and psychological development,
from his birth to his entry into adulthood. For realization of this search, this work made use of
a rich and accurate bibliographic foundation, whose works cited or only consulted, for the
most part, can be found on the internet, thus ensuring easy access for those people who want
to check the contributions made here, as well as to study more deeply and satisfactorily the
theme of education in Rousseau following the critical and analytical methods of a proper
research in Philosophy area.
Key words: Rousseau. Emile. Negative education. Natural goodness. Natural passions. Innate
faculties. Natural law. Man in state of nature. Masters of education. Social virtues. Family.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10
2 A NOÇÃO ROUSSEAUNIANA DE HOMEM A PARTIR DO BOM SELVAGEM ... 12
2.1 IMPLICAÇÕES DE ORDEM FÍSICA .............................................................................. 13
2.2 IMPLICAÇÕES DE ORDEM METAFÍSICA ................................................................... 14
2.2.1 Da liberdade e seus diferentes aspectos ....................................................................... 14
2.2.2 Da perfectibilidade ou aperfeiçoamento pessoal ........................................................ 15
2.3 IMPLICAÇÕES DE ORDEM MORAL ............................................................................ 17
2.3.1 O amor de si (amour de soi) .......................................................................................... 18
2.3.2 A compaixão ou piedade natural (pitié) ....................................................................... 19
2.3.3 O amor-próprio (amour-propre) ................................................................................... 20
3 A EDUCAÇÃO DA NATUREZA: BASE DO VERDADEIRO PROCESSO
EDUCACIONAL .................................................................................................................... 23
3.1 A EDUCAÇÃO NO PERÍODO DE ZERO A DOIS ANOS DE IDADE (LIVRO I) ....... 24
3.1.1 A educação a título de “homem” e os três mestres do processo educacional ........... 25
3.1.2 Do homem enquanto ser naturalmente agente ........................................................... 26
3.1.3 A educação negativa ...................................................................................................... 28
3.1.4 Precauções na educação negativa ................................................................................. 29
3.2 A EDUCAÇÃO NO PERÍODO DE DOIS A DOZE ANOS DE IDADE (LIVRO II)...... 29
3.2.1 A fase da infância e seu desenvolvimento .................................................................... 30
3.2.2 O amor de si como dínamis ........................................................................................... 32
3.2.3 Imposição de autoridade e birra .................................................................................. 33
3.3 A EDUCAÇÃO NO PERÍODO DE DOZE A QUINZE ANOS DE IDADE(LIVRO III) 34
3.3.1 A relação entre desejo e força na aprendizagem das coisas úteis ............................. 35
3.3.2 A ação pedagógica e o desenvolvimento do intelecto.................................................. 36
3.3.3 O aprendizado de um ofício como reflexo da perfectibilidade .................................. 37
4 O CONHECIMENTO DE SI E A VIDA DO INDIVÍDUO EM SOCIEDADE ............ 39
4.1 A EDUCAÇÃO NO PERÍODO DE QUINZE A VINTE ANOS IDADE (LIVRO IV) ... 40
4.1.1 O despertar da moralidade ........................................................................................... 41
4.1.2 Educação religiosa e moralidade .................................................................................. 43
4.1.3 Inserção no corpo social ................................................................................................ 46
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4.2 A EDUCAÇÃO NO PERÍODO DE VINTE A VINTE E CINCO ANOS DE IDADE
(LIVRO V) ............................................................................................................................... 47
4.2.1 Educação feminina e constituição familiar ................................................................. 48
4.2.2 Despertar da paixão e propensão á virtude ................................................................ 50
4.2.3 Conhecimento político e relações sociais ..................................................................... 52
5 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 55
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 57
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1 INTRODUÇÃO
Escrito paralelamente ao Contrato Social, a obra Emílio ou Da Educação, apresenta-
se como uma extensa exposição sobre a educação do homem, considerando sua natureza boa,
o qual é constituído de paixões e faculdades inatas capazes de dar-lhe moções necessárias
para viver, segundo as prescrições do Autor de todas as coisas, tanto em meio às adversidades
do meio em que esse indivíduo se encontra, como na sua relação com seus semelhantes.
Cumpre dizer que, para se chegar a essa afirmação, bastante sintética, há de se percorrer um
longo caminho lógico e muito bem fundamentado, no qual Rousseau trabalha de forma
satisfatória em seus escritos, mesmo sem adotar um método rígido e concatenado para expor
seu pensamento sobre a vida humana e seu desenvolvimento em relação à sociedade.
Levando-se em conta que o estudo em questão trata de uma grande síntese do Emílio,
julgou-se por bem que houvesse para os leitores que se detivessem às páginas desse trabalho,
uma exposição desse grande tratado de Rousseau sobre a educação que fosse precedida de um
panorama geral sobre sua noção de homem fundamentado no seu Discurso sobre a Origem e
os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, a fim de que possam adentrar o texto de
uma forma didática e bem esclarecedora, dado que, muitas vezes, devido a seus
posicionamentos contundentes (até mesmo em relação ao extremismo no Iluminismo),
Rousseau foi bastante incompreendido já em seu tempo, o que deixa à mostra que, não muito
diferente de qualquer pensador, o preconceito ou o desconhecimento relativo a detalhes de seu
pensamento filosófico comprometem em muito o entendimento de seus escritos. Para isso, a
exposição que se segue foi elaborada em três capítulos, cujas questões de fundo a serem
respondidas são: “o que é o homem?”; “como prover-lhe um desenvolvimento condigno com
a sua natureza?”; e “como viver em meio à alienação da sociedade ilegítima sem abdicar-se da
própria identidade de homem?”.
No primeiro capítulo deste trabalho encontra-se uma espécie de preâmbulo que ajuda
na leitura e compreensão dos pressupostos relativos ao ser humano, bem como os conceitos e
vocabulário próprios adotados por Rousseau a esse respeito. O leitor encontrará aqui
descrições breves, mas precisas, a respeito das implicações de ordem física, metafísica e
moral sobre o homem em estado de natureza, que o autor chama de “bom selvagem”. Esse
ser, que não se caracteriza por um ser irracional, encontra-se fora de qualquer relação de
superioridade e inferioridade com outro indivíduo, e é o mais notável entre os seres que
habitam a terra, pois, sua superioridade em relação aos animais está, justamente, na suas
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faculdades inatas. Além disso, será mostrado que as paixões naturais que lhe instigam a viver
não trazem consigo mácula alguma, pois são reflexo de uma dinamis da sua própria essência,
uma espécie de motor que lhe instiga a viver, a manter a sua vida e, consequentemente, a de
seu grupo, pois é capaz de reconhecer no outro o mesmo valor que lhe é próprio.
No segundo capítulo, que é o centro desse trabalho, inicia-se a exposição dos cinco
livros que compõem a obra escolhida para o desenvolvimento do tema em questão. Partindo
de considerações e cuidados importantíssimos para a vida e o futuro de um “aprendiz de
homem”, serão apontadas do livro I ao livro III (do nascimento ao início da adolescência), as
medidas pedagógicas específicas para cada fase de desenvolvimento da criança. Para tanto,
Rousseau mostra que é necessário que os pais e o preceptor trabalhem a educação da criança
resguardando suas necessidades básicas, suas características naturais de indivíduo, e sua
inocência, adotando, paulatinamente, o princípio da educação negativa, a qual deverá ser
devidamente equilibrada pela harmonia entre os três mestres da educação. Medidas para se
controlar a força dos desejos e das inclinações, o desenvolvimento do intelecto e o
conhecimento das coisas por meio da experiência (modo pelo qual faz da criança ser sujeito
de sua educação), a relação entre sensibilidade e a razão para que o conhecimento seja algo
útil (no sentido de palpável e aplicável dentro das capacidades psicológicas e cognitivas da
criança) serão assuntos que estarão se relacionando frequentemente dentro desse capítulo.
No terceiro e último capítulo deste trabalho, continua-se a exposição do Emílio,
abordando agora os livros IV e V (da fase da adolescência à fase adulta), os quais trabalham
momentos mais delicados dentro da fase de amadurecimento de um jovem rapaz, como, por
exemplo, a força e o equilíbrio das pulsões (principalmente a sexual), a paixão e os
sentimentos amorosos e a transição da ação boa para a ação virtuosa. A essa altura da
formação do jovem Emílio, Rousseau ratifica ainda mais sua apologia à bondade natural do
homem, defendida no Segundo Discurso, partindo do pressuposto de que se o amor de si é
orientado de acordo com o fim estabelecido por Deus, as pulsões sexuais (que no fundo, são
moções para a sobrevivência) podem e devem ser trabalhadas a partir da amizade, para que
haja a concórdia entre os homens. Desse modo, a noção de religião defendida por Rousseau e
que será apresentada aqui, está profundamente ligada à própria etimologia da palavra (religio,
que significa “religar”). Associada à amizade, concorre para uma forma de relação que não é
interesseira, mas para uma colegialidade assentida e consciente, constituindo assim, o
primeiro passo para que as relações entre os homens (não só entre indivíduos, mas também,
entre os cônjuges) e/com o Ser Supremo, sejam mais que frutuosas: que elas se encaminhem
para a co-responsabilidade humana pelo bem comum e para o nascimento de cidadãos.
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2 A NOÇÃO ROUSSEAUNIANA DE HOMEM A PARTIR DO BOM SELVAGEM
Provocado internamente pelo tema proposto pela Academia de Dijon no seu
concurso de dissertações morais, ocorrido no ano de 17531, Rousseau escreve o seu Segundo
Discurso, intitulado Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens que, mesmo não lhe rendendo o mérito da vitória, como o fez seu Primeiro
Discurso2, trouxe reflexões de magna importância no tocante à corrupção humana e à Lei
Natural, que ele já havia esboçado, ainda que muito vagamente, no Primeiro Discurso.
Defendendo que o homem é um ser naturalmente bom, e que o que o corrompe são as
estruturas artificiais nas quais ele está imerso, todas oriundas do seu afastamento gradual do
chamado “estado de natureza”3, Rousseau traça o itinerário dessa corrupção, fazendo
considerações sobre esse homem em condição pré-social4 que os estudiosos de seu
pensamento chamam de “o bom selvagem”.
Não querendo fazê-lo, como ele mesmo diz, a partir da origem e desenvolvimento de
caráter biológico e evolutivo da espécie humana, mas, sim, considerando-o do ponto em que a
razão, já desenvolvida, rege a sua vida e seu comportamento (ROUSSEAU, 1999, p. 57), o
pensador genebrino leva em conta os seus aspectos físico, metafísico e moral. Se se tem em
vista educar homens, há de se ter uma concepção do que seja o homem, para, então, bem
prover uma educação que lhe seja íntegra e correspondente ao seu ser. Para tanto, nesse
capítulo, cumpre entender, primeiramente, a noção rousseauniana de homem, de acordo com
os mencionados aspectos, para depois serem pontuadas as decorrências de sua perspectiva de
educação encontradas na obra Emílio ou Da Educação.
1 O tema proposto se baseava no seguinte questionamento: “Qual é a origem da desigualdade entre os homens, e
é ela autorizada pela Lei Natural?” 2 Discurso Sobre as Ciências e as Artes. A questão do tema proposto pela mesma academia em 1749 e que fez
nascer esse discurso foi o seguinte: “O restabelecimento das Ciências e das Artes terá contribuído para aprimorar
os bons costumes?”. 3 No prefácio do Segundo Discurso, o pensador genebrino retoma a metáfora da estátua do deus Glauco,
desfigurada pelas intempéries e a insere, analogicamente, à sua proposta de abordagem da condição humana.
(ROUSSEAU, 1999, v. 2, p.43). 4 Segundo observações de Luiz Salinas Fortes “em ambos os textos [os dois discursos], conhecer o homem em
sua natureza essencial é ir além do existente daquilo que está historicamente dado, e ir em busca de um estado
inexistente. Seguindo os jurisconsultos da Escola do direito natural e de Hobbes, o filósofo fala em estado de
natureza, concebido como uma condição pré-social, primitiva e originária”. (1989, p. 44).
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2.1 IMPLICAÇÕES DE ORDEM FÍSICA
Começando pelo aspecto físico, Rousseau afirma que o homem é um ser que, apesar
de mais fraco diante de alguns animais e mais forte diante de outros, é organizado de modo
mais vantajoso do que todos os demais. Mesmo não tendo um instinto próprio é capaz de se
apropriar de todos, o que lhe confere melhor aquisição das provisões da natureza. Além do
mais, torna-se robusto e forte por ter que adaptar-se às intempéries e aos desafios da vida
natural, desenvolvimento esse que será conferido também à sua posteridade. Por ser seu corpo
o único instrumento de sobrevivência, é forte, e capaz de se afugentar, caso seja conveniente à
conservação da sua vida. (ROUSSEAU, 1999, v. 2, p. 56-59).
Mais temível que os perigos de ordem externa são as enfermidades naturais, a
velhice e as doenças de qualquer espécie, haja vista serem essas, com exceção das doenças,
condições inevitáveis da espécie às quais não se dispõe naturalmente de meios para evitá-las.
Olhando para a conjuntura de sua época, o autor do Segundo Discurso pontua que as doenças,
bem como grande parte dos males que afligem os homens, poderiam ser evitadas com uma
vida solitária, simples e uniforme, prescrita pela natureza. (ROUSSEAU, 1999, v.2, p. 61).
Isso porque as exigências para manutenção das estruturas sociais tende a consumir-lhes
demasiadamente, o que vai contra a natureza5 que, por sua vez, essencialmente, não quer
destruir, mas sim, prover a todos prodigamente.
Para o autor, a vida natural jamais produziria doenças. No máximo, poderia
ocasionar, esporadicamente, certos ferimentos que cicatrizariam com o passar do tempo.
Rousseau, insistindo para que seus leitores deixem de olhar o “bom selvagem” com o mesmo
olhar que têm sobre os homens do estado civil, mostra, claramente, que a vida social, além de
trazer doenças, passa a exigir meios artificiais e cansativos para a recuperação do indivíduo,
bem como para a manutenção de sua vida:
[...] perguntarei se há uma observação sólida da qual se possa concluir que, no país
em que essa arte [a medicina] é mais descuidada, a vida do homem seja mais breve
do que naqueles em que cultivam com o maior dos cuidados. E como poderia
acontecer, se nós nos causamos males mais numerosos do que os remédios que a
medicina pode oferecer? A extrema desigualdade na maneira de viver; o excesso de
ociosidade de uns; o excesso de trabalho de outros; a facilidade de irritar e de
satisfazer nossos apetites e sensualidade; os alimentos muito rebuscados dos ricos,
que os nutrem com sucos abrasadores e que determinam tantas indigestões; a má
5 Rousseau (1999, v.2, p. 62) compara os animais domésticos com os homens sociais dizendo que ambos são
degenerados e enfraquecidos pela comodidade que os tornam subservientes. Ainda pior no caso do homem, pois
ele oferece a si mesmo essa condição, o contrário dos animais domésticos, que apenas a recebem de seus donos.
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alimentação dos pobres que frequentemente lhes falta e cuja carência faz
sobrecarregarem, quando possível, avidamente seu estômago; as vigílias, os
excessos de toda sorte; os transportes imoderados de todas as paixões; as fadigas e o
esgotamento do espírito, as tristezas e os trabalhos sem-número pelos quais se passa
em todos os estados e pelos quais as almas são perpetuamente corroídas – são, todos,
indícios funestos de que a maioria de nossos males é obra nossa e que teríamos
evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples, uniforme e
solitária de viver prescrita pela natureza. (1999, v. 2, p. 61).
2.2 IMPLICAÇÕES DE ORDEM METAFÍSICA
Ainda que o autor não faça uso da tradicional nomenclatura aristotélica de “animal
racional” para designar a base diferenciadora entre o homem e os demais animais, com base
nos seus apontamentos acerca do “bom selvagem”, nota-se que na desenvoltura desse homem
pré-social em meio a situações postas diante do seu instinto, há características de nível
metafísico, como que faculdades inatas, intimamente implicadas uma na outra, que lhe
conferem a possibilidade de ultrapassar os limites do instinto postos pela Lei Natural. São
duas essas características distintas do gênero humano: a liberdade e a perfectibilidade
(ROUSSEAU, 1999, v. 2, p. 64-65), que, diga-se de passagem, são pontos nevrálgicos para
compreensão dos revolucionários pensamentos social, político e pedagógico de Rousseau.
2.2.1 Da liberdade e seus diferentes aspectos
O conceito de liberdade apresentado por Rousseau nas suas obras pode ser
encontrado sob três diferentes aspectos. Com respeito ao primeiro, o pensador iluminista
recorrendo, ao mecanismo cartesiano do espírito (o entendimento mais a vontade), mostra que
o homem, apesar de estar submetido à regra natural da auto conservação, possui o status de
agente livre, capaz de ultrapassar a regularidade de seu lado animal, ainda que o possa fazer
em prejuízo próprio. Diz ele no Segundo Discurso que:
A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma
influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é, sobretudo na
consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois a física
de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e a formação das ideias, mas no
poder de querer, ou antes, de escolher e no sentimento desse poder só se encontram
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atos puramente espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis da
mecânica. (ROUSSEAU, 1999, v. 2, p.64).
Como consequência desse primeiro aspecto, o segundo, que está associado a
circunstâncias de ordem natural e a implicações de ordem moral, se apresenta na medida em
que o autor se mostra ciente de que o mal moral se modula como fonte autodeterminante de
suas próprias ações. A esse respeito, Dent afirma que “todo mal praticado pelos homens é da
exclusiva responsabilidade deles e não pode ser atribuído a Deus ou a Ele imputado à guisa de
queixa, pois ao dar aos homens a liberdade dessa espécie, Deus inseriu nas ações do homem a
moralidade que o enobrece”. (1996, p. 156).
O terceiro aspecto da liberdade procura reafirmar a intrínseca ligação entre liberdade
e gênero humano, mas, agora, num nível mais abrangente. Sem perder esse resguardo
intrínseco, o indivíduo vive frente ao meio (intempéries, carestia, etc.) e às exigências da vida
social (com suas normas, relações entre os seus componentes, etc.) numa espécie de
“liberdade negativa”. Viver livre, nesse sentido, consistiria numa série de ações constantes
com vistas à redução ou eliminação dos obstáculos que impedem o sujeito de fazer o que ele
quer, o que lhe agrada. No tocante a essa máxima da liberdade, Nicholas Dent aponta que:
Rousseau dramatiza essa concepção de liberdade original ou “natural” com a sua
imagem de que as pessoas estão inicialmente isoladas, independentes, não
associadas com outras. Mas esse quadro de isolamento primitivo não precisa ser
interpretado literalmente: ele pretende apenas deixar claro que hierarquia e
subordinação, autoridade e controle são profundamente estranhos aos poderes e
direitos originais dos seres humanos. [...] É a absoluta soberania da própria pessoa
na condução de suas ações, sem ter que dar contas delas a quem quer que seja, que é
central na afirmação de Rousseau da liberdade natural que caracteriza todos os
homens indistintamente. (1996, p. 157).
2.2.2 Da perfectibilidade ou aperfeiçoamento pessoal
Obviamente, esse uso pleno da liberdade, sem causar restrições a outrem, é quase
impossível de se efetivar no estado civil, dado que se torna necessário um balizamento das
diversas vontades individuais com vistas à vontade geral, segundo as teorias sociais de
Rousseau contidas na sua obra da maturidade O Contrato Social. Não sendo esse o foco do
trabalho em questão, caberia, agora, uma atenção especial às disposições individuais que
movem o homem em meio a essa complexidade.
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Comparando a simplicidade do estado de natureza à complexidade do estado civil,
nascem as seguintes questões: como o homem foi capaz de dar esse “salto progressivo”?
Como foi capaz de se articular a outros indivíduos e com eles criar uma nova forma de viver?
Diante do teor dessas perguntas, faz-se necessário a explanação de Rousseau sobre a
perfectibilidade (considerada pelo pensador genebrino como a faculdade de aperfeiçoar-se), a
fim de prover os devidos esclarecimentos, visto que ela se apresenta, à semelhança da
liberdade, um tanto paradoxal nos seus desdobramentos, como “uma faca de dois gumes”.
(FORTES, 1989, p. 55).
Logo após apresentar a faculdade da liberdade (ou livre-arbítrio) no Segundo
Discurso, Rousseau apresenta a segunda faculdade, eminentemente humana, chamada
perfectibilidade. Ela confere ao homem plasticidade frente às exigências do meio e dos
instintos. Ainda que o animal “ao fim de alguns meses, é o que será por toda vida, e sua
espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares”
(ROUSSEAU, 1999, v. 2, p. 65), o homem é capaz de desenvolver-se frente às circunstâncias
postas pelo meio, de modo que, passando a conhecer seu mecanismo de funcionamento, pode
torná-lo mais vantajoso para si, seja adaptando o seu próprio comportamento, seja
modificando esse ambiente. Segundo Nicholas Dent:
Virtualmente todos os comportamentos humanos são aprendidos ou adquiridos, e
poucos se tornam tão consolidados que não permitam sua modificação se a
necessidade (ou o gosto) o exigir. A nossa capacidade para toda essa flexibilidade e
adaptabilidade, a nossa aptidão para aumentar o nosso estoque de conhecimentos e
aplicá-los de modos infinitamente variados, Rousseau os atribui à perfectibilidade.
(1996, p. 181).
Com o surgimento da perfectibilidade no Segundo Discurso, nota-se, de imediato,
consequências paradoxais quando o autor questiona: “porque só o homem é suscetível de
tornar-se imbecil?” (ROUSSEAU, 1999, v. 2, p. 65). Aludindo ao que foi mencionado
anteriormente sobre o uso da liberdade, ainda que a decisão individual acarrete o próprio
prejuízo de um indivíduo, é notável nessa indagação como a perfectibilidade é questionável
quando se pensa num “progresso” contínuo da humanidade, desde seu estado natural até o seu
estado civil, tendo em vista que o vínculo social trouxe consigo, de igual modo, desigualdades
e hostilidade mútua. O que se mostra, por um lado, progressivo no tocante às habilidades
humanas, por outro, é o primeiro indício do gradual afastamento do homem natural.
Nem por isso, Rousseau assume a postura de um pessimista em relação ao indivíduo.
O autor tem consciência de que sem esse desvio, a humanidade jamais conheceria os
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progressos mais variados realizados pelas suas mãos, e que não haveria diferenciação
substancial alguma entre o homem e a besta. Por isso, sua reflexão ao longo do Segundo
Discurso se encaminha pelo viés do itinerário da vida humana que, num dado momento e
motivado por uma série de eventualidades, muda totalmente de direção (DENT, 1996, p. 181).
Virtude e vício, sabedoria e erro são os paradoxos da vida humana cuja força negativa na
sociedade pode ser minimizada, se trabalhada numa educação adequada das faculdades
humanas e das paixões inatas. Na opinião de Fortes, o pessimismo histórico não sobrepõe o
otimismo antropológico na análise feita por Rousseau:
Não há dúvida de que uma visão como a de Rousseau sobre a história humana é
profundamente negativa. Pois o que é, afinal, esse processo de evolução senão a
gênese de nossos vícios e dos nossos males e a nossa história, senão um movimento
de queda, tal como no relato bíblico? Expulso do Paraíso, o homem está condenado
a ser o lobo do homem. Todo esse pessimismo histórico, pelo menos, salva o
homem e sua natureza essencial. O próprio homem, enquanto homem, é absolvido
ao término de todo esse laborioso exame crítico. Ao pessimismo histórico
contrapõe-se um otimismo antropológico (FORTES, 1989, p. 78).
2.3 IMPLICAÇÕES DE ORDEM MORAL
Diante desse “quadro humano degenerado”, descrito acima, como olhar para o
homem como um ser bem mais hábil em comparação aos demais animais (ROUSSEAU,
1999, v. 2, p. 60) sendo que, em decorrência do estado civil, ele parece descaracterizar-se
completamente daquilo que lhe foi prescrito pela natureza? Não seria esse, então, o sintoma
de uma natural inclinação para o mal, tendo por resguardo a própria Lei Natural? Em
contraposição à postura de Thomas Hobbes6, Rousseau (1999, v. 2 p. 65-66) é partidário de
uma bondade natural, intrínseca ao homem, mostrando que a energia propulsora das ações
6 Para Hobbes (1974, p. 79-81), na natureza humana há três principais causas de discórdia: a competição, a
desconfiança e a glória, que, respectivamente, impulsionam o homem a buscar, o lucro, a segurança e a
reputação. Esses anseios egoístas são todos efetivados pelo uso da violência, que tende a tomar do outro o que
ele tem, defender o que tomou deste e ser respeitado e temido por todos devido a sua “grandeza”. Nesse sentido,
o pensamento de Hobbes, no tocante ao Estado de Natureza, é que os indivíduos vivem isolados e em luta
permanente, vigorando a guerra de todos contra todos, ou seja, se dois indivíduos desejam gozar de uma mesma
coisa, eles se tornam inimigos um do outro para consegui-la para si. Sem um poder comum capaz de controlar
esses conflitos, os homens ficariam numa constante situação de guerra, ou seja, num constante travamento de
forças. Discordando totalmente de Thomas Hobbes, Rousseau (1999, v. 2, p. 76) diz que ele foi infeliz na sua
tese por atribuir ao desejo humano de conservação uma série de paixões que são todas oriundas da vida social e
que, por isso, elas acabaram ganhando status de lei necessária da sobrevivência em meio aos conflitos. Nesse
sentido, a ignorância dos vícios impediria os homens de procederem mal.
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humanas assenta suas bases nas paixões primitivas que ele chama de “amor de si” e
“compaixão”; e que o “amor próprio”, um sentimento ausente no coração do homem
primitivo, é a perversão do “amor de si” 7. No entendimento de Luiz Salinas Fortes:
Ao lado de uma inteligência potencial e da sua vontade livre, os homens são ainda
dotados de disposições que os impulsionam em determinadas direções. É para
atender às determinações de suas paixões que o homem age. Rousseau analisa a
alma humana seguindo a mesma analogia que vemos sintetizada de maneira tão
precisa que vemos num verso do poeta inglês Alexander Pope (1688-1744): “Se a
razão é uma bússola, as paixões são os ventos”. (1989, p. 56).
2.3.1 O amor de si (amour de soi)
Quando se pensa no homem em estado natural, há de se considerá-lo fora do âmbito
das convenções sociais8, pois a moral, nada mais é que um elemento que nasce da relação
consciente entre os indivíduos9. Por isso, no tocante as paixões inatas, esse homem deve ser
visto amoralmente, segundo José Benedito de Almeida (2013, p. 76), de modo que quando
Rousseau defende uma bondade intrínseca da espécie humana, ele não relaciona esse adjetivo
“bom” às virtudes sociais encontradas no homem civil do cotidiano (pois a sociedade também
é capaz de prover vícios dos mais variados possíveis, por influência das paixões exóticas),
mas, à força do sentimento de sobrevivência, que é o “amor de si”. Nessa ótica, considerando
que a crueldade, o rancor e a cobiça contrariariam e conflitariam com a busca e a realização
do bem estar individual, mover-se pelo impulso do “amor de si” é agir com vistas à sua
7 No tocante ao amor, enquanto sentimento entre indivíduos, Rousseau (1999, v. 2, p. 80-82), no Segundo
Discurso, faz uma distinção entre dimensão física e dimensão moral. A primeira diz respeito ao fim reprodutivo
e à satisfação imediata do prazer sexual, e a segunda, à contenção do desejo sexual em respeito ao costume da
sociedade, que por sua vez, ele considera alienante e antinatural. Segundo análise de Nicholas Dent (1996, p.
34), no livro V do Emílio, Rousseau não apresenta o mesmo grau depreciativo na relação humana do homem
enquanto ser civil, mas mostra um vínculo mais verdadeiro, que realiza o sujeito internamente e que é, ao mesmo
tempo, altruísta. A explanação que se segue corresponde a essa segunda visão, mais madura, de Rousseau. 8 “Parece, a princípio, que os homens nesse estado de natureza, não havendo entre eles espécie alguma de relação
moral ou de deveres comuns, não poderiam ser nem bons nem maus, ou possuir vícios e virtudes, a menos que,
tomando essas palavras num sentido físico, se considerem vícios do indivíduo as qualidades capazes de
prejudicar sua própria conservação, e virtudes aquelas capazes de em seu favor contribuir, caso em que se
poderiam chamar mais virtuosos àqueles que menos resistissem aos impulsos simples da natureza”.
(ROUSSEAU, 1999, v. 2, p. 75). 9 “Antes da idade da razão, fazemos o bem e o mal sem saber; e não há moralidade em nossas ações embora haja
por vezes no sentimento das ações de outrem em relação a nós”. (ROUSSEAU, 1995, p. 48)
19
própria conservação10
e, por isso, não é motivo de perversidade, mas condição para existência
da própria espécie. (DENT, 1996, p. 37. 50).
Mesmo que pareça não haver diferenciação entre as paixões dos seres inferiores e as
dos homens nessa dimensão “manutensiva”, Dent (1996, p. 37-38) aponta que o autor do
Segundo Discurso é consciente de que não é cabível atribuir, de igual modo, seus mesmos
padrões instintivos de comportamento ao homem, pois o livre-arbítrio deste, aliado à sua
faculdade de aperfeiçoar-se, lhe confere a possibilidade de prover a si próprio e à sua espécie,
e de abster-se de algum bem ou dano, sem ter que submeter-se à imbecilidade das bestas11
.
Somente partindo do pressuposto dessa paixão inata do “amor de si”, considerada como a
força mais fundamental do agir humano, é que são compreendidas as consequências exteriores
da sua ação livre, que podem ora voltarem-se para um sentimento de comiseração e
reconhecimento do outro, como sendo seu semelhante (“compaixão”), ora voltarem-se para
um sentimento de indiferença e dominação de outrem (“amor-próprio”).
2.3.2 A compaixão ou piedade natural (pitié)
A “compaixão”, considerada como um sentimento pré-racional presente no indivíduo
(ROUSSEAU, 1999, v. 2, p. 47.77), é como que uma derivação do “amor de si”, constituída
de dois princípios: o de comiseração e o de autoconservação da espécie. No tocante ao
primeiro princípio, no qual Rousseau mostra a natural repugnância que existe no gênero
humano em assistir impassivelmente o sofrimento alheio do seu semelhante, ele toma um
exemplo deveras elucidativo e contundente para melhor enfatizar sua apologia à bondade
natural quando diz:
Não creio ter a temer nenhuma contradição, se conferir ao homem a única virtude
natural que o detrator mais acirrado das virtudes humanas teria de reconhecer. Falo
da piedade, disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como
o somos; virtude tanto mais universal e tanto mais útil ao homem quando nele
precede o uso de qualquer reflexão, e tão natural que as próprias bestas às vezes são
dela alguns sinais perceptíveis. [...] Vê-se, com prazer, o autor da Fábula das
Abelhas [Mandeville] forçado a reconhecer o homem como um ser compassível e
10
Á luz da exposição tomasiana sobre as paixões (ST, Iª, IIae
, q. 23, a. 2, respondeo)., Rousseau estaria baseando
sua noção de amor de si a partir dos apetites da alma humana, mais especificamente, os concupiscíveis. 11
“[...] é preciso começar por excluir todas as espécies [de induções] nas quais a natureza estabeleceu, no poder
realtivo dos sexos, relações diferentes das nossas: assim, a briga dos galos não serve como indução para a
espécie humana”. (ROUSSEAU, 1999, v. 2, p. 81).
20
sensível, sair, no exemplo que nos dá, de seu estilo frio e sutil para oferecer-nos a
imagem patética de um homem aprisionado que descobre que lá fora uma besta
feroz arrancando um filho do seio de sua mãe, estraçalhando com os dentes
assassinos seus fracos membros e rasgando com as unhas as entranhas palpitantes
dessa criança. Que agitação tremenda não experimenta essa testemunha de um
acontecimento pelo qual não tem nenhum interesse pessoal! Que angústias não sofre
com esse espetáculo, sem poder levar socorro algum à mãe desfalecida ou à criança
moribunda! (1999, v. 2, p. 76-77).
Com base nessa passagem de Rousseau, embora muito apelativa, a visão de Fortes,
no tocante a saída de si e identificação do outro como sendo a gênese do instinto moral (ou o
que se chama mais comumente de “consciência”), traz considerações dignas de serem
mencionadas. Segundo o especialista, na “compaixão” há um instinto de conservação mútua
da espécie por detrás desse compartilhamento do sofrimento alheio, onde reside a fonte de
todas as virtudes sociais, pois, “a compaixão que vemos até mesmo nos animais, e que não se
confunde com o instinto de sociabilidade, leva cada indivíduo não a uma associação ativa com
o outro, mas a evitar causar-lhe um sofrimento que repercutiria sobre si mesmo”. (1989, p.
57). Quanto a esse segundo princípio, o de autoconservação, Rousseau afirma que:
Ela [a piedade] nos faz, sem reflexão, socorrer aqueles que vemos sofrer; ela, no
estado de natureza, ocupa o lugar das leis, dos costumes e da virtude, com a
vantagem de ninguém sentir-se tentado a desobedecer à sua doce voz; ela impedirá
qualquer selvagem robusto de tirar a uma criança fraca ou a um velho enfermo a
subsistência adquirida com dificuldade, desde que ele mesmo possa encontrar a sua
em outra parte; ela, em lugar dessa máxima sublime da justiça raciocinada – Faze o
bem a outrem o que desejas que façam a ti -, inspira a todos os homens esta outra
máxima de bondade natural, bem menos perfeita, mas talvez mais útil que a
precedente – Alcança teu bem com o menor mal possível para outrem. (1996, v. 2, p.
79).
2.3.3 O amor próprio (amour propre)
Para exposição da noção rousseauniana de “amor-próprio”, também é conveniente
fazê-lo à luz do Segundo Discurso. Após Rousseau esboçar toda a sua tese antropológica na
sua primeira parte, o passo lógico interno subsequente desse seu texto é caracterizado por uma
exposição do itinerário da corrupção humana, tendo como marco a instituição da sociedade
civil no momento em que “o primeiro que, tendo um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e
encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo” (ROUSEAU, v. 2, 1999, p. 87),
ou, em outras palavras, no momento em que foi instituída a propriedade privada. A explicação
para isso se deve somente ao “amor próprio”, que é uma desconfiguração do “amor de si”
21
(paixão, esta, despretensiosa, cuja intenção é somente manter o próprio bem-estar sem ferir ou
prejudicar, intencionalmente, o outro).
Na segunda parte do Segundo Discurso, retomando de maneira breve e sintética o
itinerário do desenvolvimento das potencialidades do homem primitivo, Jean-Jacques
Rousseau começa sua explanação a respeito da gênese do estado civil de uma maneira linear,
pontuando o surgimento de uma espécie de associação livre, descompromissada entre os
homens. Por ela, o indivíduo começa a distanciar-se da dependência que tinha da natureza e
começa a depender do outro, devido às intempéries do meio em que vivia que o forçou a
buscar outros meios de sobrevivência. A vida, então, começa a ter certas comodidades
oriundas do desenvolvimento de suas faculdades: surgem cabanas, instrumentos para cultivar
a terra e para caçar e também uma maior interação com aqueles que lhe são mais próximos,
como a fêmea e os filhos, por exemplo. (ROUSSEAU, 1999, v. 2, p. 87-91).
Rousseau, no fundo, quer salientar como esses acontecimentos, puramente
acidentais, concorreram para o nascimento de certas necessidades e sentimentos no coração
humano, com vistas à satisfação de uma multidão de paixões exóticas, todas alheias ao seu ser
e oriundas da vida em sociedade, que, infelizmente acabaram se tornando cada vez mais
latentes à medida que a humanidade avançou nesse “progresso contínuo”. A esse respeito,
Dent firma que:
Rousseau expõe aí um quadro estruturado de ideias que remontam, pelo menos, a
Aristóteles. Na opinião de Aristóteles, é adequado entender teologicamente a
constituição das coisas, em particular, das coisas animadas – isto é, em função de
elas terem componentes e uma organização que tendem para a preservação e a
manutenção, para a meta que é a promoção do bem das coisas, sua vida e bem-estar
inatos. Esse é o modo como a constituição natural de uma coisa é identificada; tudo
o que nela bloqueie tais tendências, ou se incline para danificar ou destruir essa
coisa, é contrária, é estranha, á sua natureza. Ou também poderia haver disposições
que são inatas e naturais nesse sentido, mas foram desviadas de sua tendência
propriamente natural (por acaso ou deliberação) e acabaram sendo prejudiciais ou
nocivas para o ser em questão. (1996, p. 49).
No entendimento de Luiz Salinas Fortes (1989, p. 59-64), a transição entre o estado
de natureza, já marcado pela noção de propriedade privada e o estado de civilização, são
intermediados pelo chamado estado de guerra e pelos pactos de ordem social. O primeiro
estágio intermediário ocorre quando a desigualdade natural (características físicas, habilidades
pessoais, etc.) começa a provocar sentimentos negativos, como a inveja e o desprezo,
assumindo o caráter de desigualdade social (que é ocasionada pela articulação humana). Já o
segundo estado intermediário tem como intuito, resolver as querelas ocasionadas pelos
interesses particulares de cada indivíduo através da instituição de uma ordem legal que tente
22
promover a paz. No entanto, o especialista salienta, ainda, que tal tentativa de instituição legal
acaba legitimando a noção de propriedade absoluta dos bens materiais que,
consequentemente, dá respaldo às desigualdades já existentes.
A partir dessa explanação, é notável que toda crítica que Rousseau faz ao estado civil
consiste na consciência de que o gradual afastamento do homem de seu estado de natureza
acabou sendo prejudicial, ainda que as faculdades inatas tenham se desenvolvido
primorosamente. Ao lançar-se às paixões artificiais, consequentemente, uma série de valores e
gostos surge e é por ele adotado; disso decorre a perda de sua identidade, enquanto homem,
acarretando uma grande alienação, como assinala Fortes:
Agora podemos apreciar melhor o sentido das críticas de Rousseau à civilização: o
progresso das “luzes”, o aumento das desigualdades e a corrupção das paixões
primitivas são partes de um só processo. O “amor-próprio”, paixão que acaba por
predominar no homem civilizado, é a grande criação, considerando-se o ponto de
vista moral. É essa paixão destruidora que responde, em última instância, pelo
estado de verdadeira alienação, de saída de si e da própria órbita que caracterizará a
vida na sociedade “civilizada”. Transformando-se em verdadeiro “furor de se
distinguir”, essa paixão leva o civilizado a prezar acima de tudo as honrarias, a
reputação e a opinião alheia. Retomando uma fórmula expressiva do filósofo:
enquanto o selvagem “vive em si mesmo”, o “homem sociável”, sempre fora de si,
só sabe viver baseando-se na opinião dos demais. (1989, p. 65).
23
3 A EDUCAÇÃO DA NATUREZA: BASE DO VERDADEIRO PROCESSO
EDUCACIONAL
Grande foi o número de páginas que Rousseau dedicou ao tema da educação. Estima-
se que o “Cidadão de Genebra12
” tenha começado seus primeiros esboços em 1759 após ter
exercido, por um ano, a função de preceptor13
dos filhos do senhor Jean Bonnet de Mably, até
que em maio de 1762 publica sua obra mais substancial intitulada Emílio ou Da Educação.
Ainda que a obra apresente claramente o tema da educação, sua estrutura e seu estilo literário
não são próprios de um manual convencional de educação. Emílio é uma espécie de mescla de
tratado de educação e romance no qual o autor, assumindo o papel do preceptor do aluno
Emílio, expõe uma série de reflexões e observações concernentes ao desenvolvimento integral
do homem, desde os primeiros anos de vida até sua fase adulta:
Tomei, portanto o partido de me dar um aluno imaginário, de supor a idade, a saúde,
os conhecimentos e todos os talentos convenientes para trabalhar na sua educação,
conduzi-lo desde o momento de seu nascimento até aquele em que, homem feito,
não terá mais necessidade de outro guia senão ele próprio. Esse método parece-me
útil para impedir um autor que desconfia de si de se perder em visões. Sim, porque a
partir do momento em que se afasta da prática ordinária, não lhe cabe senão,
experimentar a sua no seu aluno. Sentirá desde logo, ou o leitor o sentirá por ele, se
acompanha o progresso da infância e a marcha natural do coração humano.
(ROUSSEAU, 1995, p. 27).
O estilo de educação apresentado nessa obra foi um forte impulso aos seus leitores
para uma mudança de paradigmas ligados aos métodos pedagógicos adotados até então no
século XVIII. O próprio Rousseau faz questão, de, logo no prefácio, dar a entender que o
caráter de educação mais apropriado ao homem é aquele que está em conformidade com a
natureza e de modo que respeite suas determinações e fases:
Falarei pouco da importância de uma boa educação; nem me deterei tampouco em
provar que a que se pratica é má; mil outros o fizeram por mim, e não me agrada
encher um livro com coisas que todo mundo sabe. [...] Apesar de tantas obras que só
têm como objetivo, dizem, ser úteis ao público, a primeira de todas essas utilidades,
que é a arte de formar os homens, permanece esquecida. [...] Não se conhece a
infância: com as falsas ideias que dela temos, quanto mais longe vamos, mais nos
12
Pseudônimo com o qual Rousseau costumava assinar suas cartas. Razão disso era a grande afeição que tinha
por Genebra, sua cidade natal, considerada por ele como a mais perfeita cidade. Chegou, inclusive, a fazer uma
longa dedicatória à república de Genebra no seu Segundo Discurso (ROUSSEAU, 1999, v. 2, p. 33-42). 13
Na época de Rousseau a educação das crianças era feita ou nos colégios católicos e protestante que haviam ou
dentro das casas das próprias famílias. Nessa segunda opção de educação o responsável era chamado
“preceptor”. (ALMEIDA JUNIOR, 2013, p.111-112).
24
extraviamos. Os mais sábios apegam-se ao que importa que saibam os homens, sem
considerar que as crianças se acham em estado de aprender. Eles procuram sempre o
homem na criança, sem pensar no que esta é, antes de ser homem. [...] Em relação
ao que chamarão de parte sistemática, que não é outra coisa aqui senão a marcha da
natureza, será o que mais desnorteará o leitor. [...]. (ROUSSEAU, 1995, p. 5.6).
A fim de responder, portanto, a uma educação na “qualidade de homem”, esse “ser
capaz de conhecer e que tem consciência” (NODARI, 2010, p. 5), serão trabalhadas as
implicações do capítulo anterior (sobre os pressupostos antropológicos do homem em
Rousseau) com base em cada um dos cinco livros que compõem a obra Emílio, de maneira
que seja posto em evidência como as faculdades inatas (liberdade e perfectibilidade) e as
paixões primitivas (“amor de si” e “compaixão”) podem ser trabalhadas, efetivamente, se bem
observadas as fases de desenvolvimento físico, emocional e intelectual da criança14
, bem
como as medidas cabíveis a se adotar em cada uma delas.
3.1 A EDUCAÇÃO NO PERÍODO DE ZERO A DOIS ANOS DE IDADE (LIVRO I)
“Total vulnerabilidade”: eis o termo que define a situação do homem no primeiro
estágio de sua vida. É sob essa situação de um ser frágil e totalmente dependente que
Rousseau discorre no seu texto sobre uma série de medidas e cuidados específicos dessa etapa
da vida humana, mostrando o quanto a observação da tenra idade a partir de certas máximas
da educação15
são de extrema necessidade dentro do processo que o autor chama de “fazer o
homem” (ROUSSEAU, 1995, p. 12). Além disso, deve se levar em conta o papel importante
que o autor dá aos três mestres do processo educativo, a saber, a natureza, as coisas e os
homens, tese esta que estará implicada ao longo de toda sua obra.
14
José Benedito de Almeida Júnior (2013, p. 112-113) aponta que nos primeiros originais do Emílio, mais
especificamente no Manuscrito Fevre, o pensador iluminista já havia feito uma “divisão” de idades para fins
metodológicos como orientação dos períodos de transformações. São eles: idade da natureza (de 0 a 12 anos),
idade da razão (de 12 a 15 anos), idade da força vital (de 15 a 20 anos) e idade da sabedoria (de 20 a 25 anos).
No entanto, Rousseau rearranja essas etapas dentro de sua explanação; por isso, a explanação que se seguirá,
estará em consonância com a exposição do autor feita no Emílio. 15
Rousseau (1995, p. 49-50) apresenta quatro máximas relacionadas à educação das crianças que, em linhas
gerais, consistem em: não privá-las daquilo que suas forças podem alcançar (primeira), supri-las em suas
necessidades físicas (segunda), mas com vistas ao útil e real, e não às fantasias, que se opõem à razão (terceira) e
estudar com cuidado sua linguagem, afim de que o adulto distinga o desejo que vem da natureza dos que vêm da
opinião (quarta).
25
3.1.1 A educação a título de “homem” e os três mestres do processo educacional
Segundo o autor do Emílio, “nascemos fracos, precisamos de força; nascemos
desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de
juízo”; e ainda, “tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos adultos, é-nos dado
pela educação”. (ROUSSEAU, 1995, p. 10). Para Rousseau, a educação não se presta,
unicamente, ao dado formal, institucional, mas é um processo vivencial, no qual o sujeito,
além de regido pela sua natureza no decorrer da vida, sofre as influências “exteriores” do
meio. Nesse sentido onde “a experiência adianta-se às lições” (ROUSSEAU, 1995, p. 42) é
que o autor apresenta os três mestres do processo educacional vivencial:
Essa educação nos vem da natureza, ou dos homens ou das coisas. O
desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação da
natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos
homens; e o ganho de nossa própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a
educação das coisas. Cada um de nós é, portanto, formado por três espécies de
mestres. O aluno em quem as diversas lições desses mestres se contrariam é mal
educado e nunca estará de acordo consigo mesmo; aquele em quem todas visam os
mesmos pontos e tendem para os mesmos fins, vai sozinho a seu objetivo e vive em
consequência. Somente esse é bem educado. (ROUSSEAU, 1995, p. 11).
Ora, Rousseau não quer dizer com isso que toda educação alcança êxito total dentro
de sua empreitada, simplesmente se respeitados esses três âmbitos influentes na vida humana!
Ele próprio deixa claro que se a educação é considerada como uma arte e que se já é fato que
se escapa das mãos do homem o controle total sobre a natureza e sobre as coisas, há de se
considerar que a educação perfeita é uma meta, e que, portanto, os cuidados constantes são
condição para que se aproxime o mais possivelmente da mesma. (ROUSSEAU, 1995, p. 11).
Nessa ótica é que o autor procura remeter os seus leitores à sua afirmação de abertura
da obra: “tudo é certo em saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do
homem (ROUSSEAU, 1995, p. 9). Isso quer dizer que a natureza, de acordo com a sabedoria
do seu Criador, carrega em si, a perfeita disposição para o homem se desenvolver como ser
livre e perfectível, e, por isso, tanto as coisas quanto as ações humanas devem servir como
mediadores do processo, não sendo lícito sobrepô-la ou dela abster-se totalmente.
Reflexo desses tipos de negligência é encontrado ao desconsiderar que o homem
começa sendo uma criança, que não é uma espécie de “mini adulto”. Na visão de Alessandro
César Bigheto (2013, p. 64), Rousseau foi quem descobriu a infância como uma categoria
existencial, não bastando mais, dentro da noção de educação, considerá-la um mero conceito
26
construído historicamente. Rousseau quer com isso trazer à tona a psicologia própria dos
primeiros anos de vida da criança (com os seus modos de pensar, ver e sentir o mundo, etc.),
dado esse que é extremamente novo no modo de se abordar a temática da educação para sua
época. O autor faz uma analogia disso com o cuidado que se deve ter no cultivo das plantas:
Amanham-se as plantas pela cultura e os homens pela educação. Se o homem
nascesse grande e forte, seu porte e sua força seriam inúteis até que ele tivesse
aprendido a deles servir-se. Ser-lhe-iam prejudiciais, impedindo os outros de pensar
em assisti-lo e, abandonado a si mesmo, ele morreria de miséria antes de ter
conhecido suas necessidades. Deplora-se o estado da infância; não se vê que a raça
humana teria perecido se o homem não começasse como sendo criança.
(ROUSSEAU, 1995, p. 10).
Não se importando, por hora, da educação pública, mas da doméstica, o autor quer
deixar claro que independentemente de qual “função social” esse indivíduo possa exercer no
futuro, sua vocação primeira é ser homem, é viver humanamente, e para tanto, há de se
resguardar o que ele tem de fundamental, que é o seu “ser homem”:
Na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação comum é o estado de
homem; e quem quer seja bem educado para esse, não pode desempenhar-se mal dos
que com esse se relacionam. Que se destine meu aluno à carreira militar, à
eclesiástica ou à advocacia pouco me importa. Antes da vocação dos pais, a natureza
chama-o para a vida humana. Viver é o ofício que lhe quero ensinar. Saindo de
minhas mãos, ele não será, concordo, nem magistrado, nem soldado, nem padre;
será primeiramente um homem. Tudo o que um homem deve ser, ele o saberá, se
necessário, tão bem quanto quem quer que seja; e por mais que o destino o faça
mudar de situação, ele estará sempre em seu lugar. (ROUSSEAU, 1995, p 15).
3.1.2 Do homem enquanto ser naturalmente agente
Após apresentar esses pressupostos com vistas à compreensão do que ele propõe
como via do processo educacional, Rousseau faz ponderações de como o homem é regido
naturalmente pela liberdade e pelo amor de si. Basicamente, o homem é um ente que sofre
afecções. No caso da criança, quando determinados objetos a afetam, ela, sem o uso da razão,
procura aproximar-se ou afastar-se à medida que o mesmo lhe confere prazer ou desprazer
(ROUSSEAU, 1995, p. 12). Rousseau quer deixar claro que esta ação do sujeito em direção
ao objeto é que caracteriza o viver humano, visto que “viver não é respirar, é agir; é fazer uso
de nossos sentidos, de nossas faculdades, de todas as partes de nós mesmos que nos dão o
27
sentimento de nossa existência”. (ROUSSEAU, 1995, p. 16). Por esse motivo, é que o autor
dá certas “instruções” sobre como proceder no cuidado dos recém-nascidos.
Ainda que algumas teorias possam ser consideradas ultrapassadas, ou mesmo
carentes de uma experiência mais rigorosa que as comprove, há por detrás delas, uma
preocupação do autor no que diz respeito à conservação desse ente “naturalmente agente”, ou,
em outras palavras, livre. Dirigindo-se, às mães, o Cidadão de Genebra pontua que certos
cuidados exacerbados, no fundo, concorrem para privar a liberdade da criança, no que diz
respeito ao próprio movimento dos membros. (ROUSSEAU. 1995, p. 17).
Ao submeter o recém-nascido à inação, por conta de faixas que lhe atam os
membros, por exemplo, ele não é capaz de alongar-se e exercitar suas pernas e braços que
ficaram, por meses, encolhidos na barriga da mãe. Esse tipo de conduta que prejudica o
desenvolvimento físico da criança é sinal claro da intervenção desnecessária e prejudicial que
o homem insiste em fazer sobre a sabedoria da natureza, que no seu curso normal, proveria o
desenvolvimento da criança sem qualquer dificuldade. Irritações, choros e dores seriam
evitados se abandonassem tal conduta, de acordo com Rousseau (1995, p. 17-18).
Outra conduta de seu tempo criticada pelo autor diz respeito à amamentação. Certas
mães procuram abster-se da responsabilidade de amamentar seus filhos, como uma espécie de
desencargo, confiando essa tarefa às amas. Simulando passarem mal ao amamentar e
alegando que lhes compromete a saúde, procuram meios de burlar a solicitude materna que
devem aos seus filhos, até mesmo, por aval de receitas médicas. Rousseau (1995 p. 20-21.24-
26) é, portanto, partidário de que o direito e responsabilidade de mãe é um dado inalienável,
como também o é por parte do pai, no que tange ao apoio familiar. Na visão de Wilson Alves
de Paiva, atentar-se desde a fase inicial com os atributos da natureza é garantir o equilíbrio
dos três mestres na vida da criança e atentar-se ao sentimento (afecção), único meio, ainda,
pelo qual a criança se comunica com o mundo:
Se nascemos sensíveis e somos logo molestados (affectés) por tudo que nos cerca, a
tarefa de cultivar a ordem natural e formar o homem conforme os atributos da
natureza começa com o nascimento e se prolonga por toda vida. A família,
principalmente os pais, tem a responsabilidade de bem conduzir esse relacionamento
inicial com o meio. Para tanto, basta observar a regra da natureza e o caminho que
ela indica. Afinal, a dor, a dentição, o enrijecimento dos músculos, as necessidades
vitais, as intempéries climáticas e os diversos outros recursos naturais proporcionam
o desenvolvimento da sensação como o primeiro material do conhecimento.
(PAIVA, 2007, p. 329).
28
3.1.3 A educação negativa
Ainda que o autor esteja atento a esses dados da natureza da criança, certas medidas
oriundas da ação humana também precisam ser postas em ação, pois como já foi
anteriormente apresentado, à natureza cabe o desenvolvimento interno dos órgãos e das
faculdades inatas, não podendo ela própria, portanto, amparar um ser tão vulnerável como
uma criança. Entretanto, essas ações humanas não devem ser entendidas como ações diretas e
influentes sobre a conduta da criança, e sim, como medidas que a encaminhem indiretamente
para realização de suas necessidades reais. Esse modo de encarar a educação é, em geral, o
que os comentadores de Rousseau chamam de “educação negativa”. (PAIVA, 2007, p. 330-
331). Fortes salienta que essa “educação negativa” é bem sucedida se “se conseguir fazer o
indivíduo em formação acompanhar a „marcha da natureza‟, reprimida pela marcha
enlouquecida das educações vigentes”. (1989, p. 94).
Considerando que a natureza é o influente primeiro na vida do homem, a adoção do
método negativo deve ser encarada como a maneira mais eficaz de deixar a criança conhecer
o mundo pelas afecções, mas, claro, sem que estas concorram para seu prejuízo e perecimento
(ROUSSEAU, 1995, p. 50), nem as insiram nos malogros presentes na vida social (BARROS,
1963, p. 69-70). Rousseau, portanto, levando em conta as necessidades reais do homem
procura com esse tipo de “ação pedagógica” evitar tanto negligências das mais absurdas
contra o transcurso natural do desenvolvimento da criança (como foi mostrado anteriormente
nos exemplos das faixas e da amamentação), quanto exageros ligados à superproteção dos
pais16
, que, segundo ele, é, basicamente, “prolongar a fraqueza da infância sob a fadiga dos
homens”. (ROUSSEAU, 1995, p. 22).
É então que se dissipam obscuridades na afirmação de Rousseau na qual ele diz que
“o único hábito que se deve deixar a criança adquirir é o de não contrair nenhum”
(ROUSSEAU, 1995, p. 43). Nota-se que nessa perspectiva a liberdade da criança deve ser
resguardada, a fim de que quanto mais experiências do cotidiano da natureza ela tiver, mais e
16
Rousseau questiona as ações e omissões daqueles que no processo educacional das crianças não procuram um
meio termo com vistas a se evitar paixões e vícios, que adquiridos nessa fase, prolongam-se por toda a vida da
pessoa: “ao nascer uma criança grita; sua primeira infância passa a chorar. Sacodem-na também e batem-na para
que se cale. Ou fazemos o que lhe agrada, ou dela exigimos o que nos agrada. Ou nos submetemos a suas
fantasias ou a submetemos às nossas: não há meio termo, é preciso que nos dê ordens ou que as recebe. Assim,
suas primeiras ideias são de império ou de servidão. Antes de saber falar ele manda, antes de poder agir ela
obedece; e não raro castigam-nas antes que possam conhecer seus erros. Ou os cometer. E assim, é que se
inculcam em seu jovem coração as paixões imputadas a seguir à natureza e que, depois de ter se esforçado por
torná-la má, a gente se queixa de descobri-la má”. (ROUSSEAU, 1995, p. 24).
29
mais ela se acomoda ao natural vínculo que há entre homem e natureza. Assim, medos e mal-
estar relacionados a tudo que afetam os seus sentidos serão evitados. (ROUSSEAU, 1995, p.
43-45). É o que Luiz Felipe Sahd chama de uma educação que é, ao mesmo tempo, pela e
para a liberdade, na qual “para conduzir uma vida de homem livre é preciso superar as formas
de dependência estabelecidas com os outros homens” (2005, p. 113).
3.1.4 Precauções na educação negativa
Passando muito brevemente pelo tema de uma linguagem natural e comum a todos o
homens, Rousseau expõe aos seus leitores que a queixa e o choro mostram-se como primeira
linguagem capaz de exprimir, nessa condição de miséria e fraqueza, o desejo de satisfação das
necessidades vitais, ou numa linguagem mais rousseauniana, a paixão inata do amor de si com
vistas à conservação (ROUSSEAU, 1995, p. 45-47). Todavia, se não forem dadas as devidas
atenções a esse grito de necessidade, o mesmo pode tornar-se um mecanismo de controle da
criança sobre o adulto, dando brechas para que o amor próprio venha à tona, e assim,
fortalecê-lo pelo hábito (ROUSSEAU, 1995, p. 49). Segundo observações de Nicholas Dent,
que muito bem sintetizam os cuidados essenciais da educação negativa nesse período inicial
da criança,
Duas coisas são essenciais à boa educação nesse período, na opinião de Rousseau.
Primeiro o tratamento apropriado da zanga de uma criança e de suas tentativas de
controle imperioso, que são o avesso de sua impotência e medo. Ela deve ser
preservada da crença de que ordem e obediência, dominação e subserviência são os
termos em que os seres humanos se relacionam mutuamente e de que o mundo é
submetido a controle. Segundo, não deve ser fisicamente constrangida (desde que
sua segurança esteja assegurada) por ameaças ou exigências. Pois ela verá nisso
apenas tentativas para contrariá-la que provocarão ressentimento e a induzirão à
combatividade, à evasão e ao fingimento. (1996, p. 117).
3.2 A EDUCAÇÃO NO PERÍODO DE DOIS A DOZE ANOS DE IDADE (LIVRO II)
Esse período da vida da criança, no qual o choro já não se presta como linguagem
(pelo menos majoritariamente) e as primeiras palavras já começam a articular sua vontade
(ROUSSEAU, 1995, p. 58), também é trabalhado pelo preceptor do Emílio em consonância
30
com a “marcha da natureza” e na ótica de uma “educação negativa”17
, mas, leva-se em
consideração, agora, um dado novo: que, de certo modo, a criança dessa fase, potencialmente,
“carrega em si a aprendizagem”, ou seja, que os resultados de suas ações em direção às coisas
serão as “lições” por ela aprendidas. É o que caracteriza a fala do autor ao dizer que “nossa
mania pedante de educar é sempre a de ensinar às crianças o que aprenderiam muito melhor
sozinhas e esquecer o que somente nós lhes poderíamos ensinar”. (ROUSSEAU, 1995, p. 59).
O contato direto com a natureza, com vistas ao descobrimento das coisas que lhe
despertam interesse, é o ponto central para que a criança desenvolva suas capacidades físico-
motoras, fortaleça seu corpo sadiamente e prepare sua mente. Mantém-se aqui a mesma
perspectiva do livro anterior de estimular os sentidos tão somente, e não, por hora, a razão,
por meio de lições formais e conteúdos abstratos18
(ROUSSEAU, 1995, p.
74.80.109.120.130). Segundo Almeida, “a máxima que orienta essa ideia é a de que um corpo
sadio é escravo da alma, ao passo que, quando é doentio, torna-se seu senhor”. (2013, p. 116).
Seguindo o mesmo critério do livro anterior, Rousseau critica quaisquer tipos de interferência
externa no curso da natureza, mais especificamente, que negligenciem a liberdade, faculdade
inata do homem, pois o autor acredita ser essa “a forma adequada, a única mesmo, de preparar
o advento do homem livre e moralizado”. (BARROS, 1963, p. 70).
3.2.1 A fase da infância e seu desenvolvimento
É característico do preceptor do Emílio não aplicar qualquer tipo de aparelho que
auxilie os seus primeiros passos, nem colocar limites às suas corridas com o receio de que seu
aluno se machuque, pois, considerando que “o bem-estar da liberdade compensa muitas
machucaduras” (ROUSSEAU, 1995, p. 60), a experiência da dor faz parte do transcurso
normal da condição humana (SAHD, 2005, p. 114). Além do mais, o contínuo progresso do
17
Os dados a seguir expostos por Rousseau ajudam a clarear melhor como é o papel do preceptor na perspectiva
dessa “educação negativa”: “segui um caminho diferente com vosso aluno; que ele imagine sempre ser o mestre
e que vós o sejais sempre. Não há sujeição mais perfeita do que aquela que conserva a aparência da liberdade:
cativa-se assim a própria vontade. [...] deixando-o assim senhor de suas vontades, não fomenteis seus caprichos.
Não fazendo jamais senão o que lhe convém, dentro em breve ele não fará senão o que deve fazer; [...] Assim,
não vos vendo atento em contrariá-lo, não desconfiando de vós, nada tendo a vos esconder, ele não vos enganará,
não vos mentirá; poderei estudá-lo a vontade e dispor ao redor dele todas as lições que lhe quiserdes dar, sem
que ele pense nunca receber alguma”. (1995, p. 114.115). 18
Essa sua tese ganha maior peso de argumentação quando Rousseau (1995, p. 164) faz uma distinção entre
“razão sensitiva” e “razão intelectual”.
31
uso de suas próprias forças, concorre para que o aluno adquira autonomia e maturidade e
comece a fazer das queixas um recurso cada vez menos frequente:
Outro progresso torna as queixas da criança menos necessárias: o de suas forças.
Podendo mais por si mesmas sentem a necessidade menor de recorrer a outrem.
Com sua força desenvolve-se o conhecimento que as põe em estado de dirigi-la. É
nesse segundo período que começa propriamente a vida do indivíduo; é então que a
criança toma consciência de si mesma. A memória projeta o sentimento de sua
identidade em todos os momentos de sua existência; ela torna-se verdadeiramente
uma, e mesma, e, por conseguinte, já capaz de felicidade ou de miséria. [...] Como
está sempre em movimento, é forçado a observar muitas coisas e a conhecer muitos
efeitos; adquire rapidamente uma grande experiência; toma lições da natureza, e não
dos homens; e tanto mais bem se instrui, quanto não vê nenhuma intenção de instruí-
lo. (ROUSSEAU, 1995, p. 60.113).
É por esse motivo que o preceptor precisa estimular o interesse imediato da criança
através de jogos e passatempos para que ela brinque, corra, caia e se levante, fazendo uso de
todas as suas capacidades, claro, de acordo com as forças e limitações físicas e psíquicas
próprias da infância (ROUSSEAU, 1995, p. 111.130). Nesse sentido, evitando-se divagações
como meio instrutivo, deve-se aproveitar a jovialidade da criança (que a incita a exercitar o
corpo e a curiosidade), de modo tal que ela aprenda, por si mesma, em meio a situações-
problema, postas pelo preceptor, seja por descobertas, seja por associações a partir daquilo
que ela já sabe; todavia, atentando-se para que a solução lhe esteja sempre à mão (ALMEIDA,
2013, p. 117). Nessa ótica, prepara-se melhor o espírito para que com o simples contato com
as coisas do cotidiano ela entenda, mais tarde, a ciência que há por detrás delas (ROUSSEAU,
1995, p. 144-151), em outras palavras, aprender os conteúdos formais e abstratos ligados à
educação intelectual.
Rousseau ainda insiste com seus leitores o quanto essa idade do descobrimento de si
e do mundo, que ele chama de “idade da alegria” (ROUSSEAU, 1995, p. 60), é um período
que não pode jamais ser negligenciado por conta das extravagâncias de um pai ou de um
mestre, que fazem dessa idade um período de duras tarefas e trabalhos a se cumprir. Apelando
para que considerem a criança como criança19
ele diz:
Homens, sejais humanos, é vosso primeiro dever; e o sejais em relação a todas as
situações sociais, a todas as idades, a tudo o que não seja estranho ao homem. Que
sabedoria haverá para vós fora da humanidade? Amai a infância; favorecei seus
jogos, seus prazeres, seu amável instinto. Quem de vós não se sentiu saudoso, às
19
“Seus defeitos do corpo e do espírito vêm quase todos da mesma causa: querem fazê-la adulta antes do tempo.
[...] A humanidade tem seu lugar na ordem das coisas; a infância tem o seu na ordem da vida humana; é preciso
considerar o homem no homem e a criança na criança. Assinar a cada um seu lugar e nele fixá-lo, ordenar o que
podemos fazer para seu bem-estar. O resto depende de causas estranhas a nós e que não estão em nosso poder”.
(ROUSSEAU, 1995, p. 122-123.62).
32
vezes, dessa idade em que o riso está sempre nos lábios e a alma sempre em paz?
Por que arrancar desses pequenos inocentes o gozo de um tempo tão curto que lhes
escapa, de um bem tão precioso de que não podem abusar? Por que encher de
amarguras e de dores esses primeiros anos tão rápidos, que não voltarão nem para
vós, nem para eles? (ROUSSEAU, 1995, p. 61).
3.2.2 O amor de si como dínamis
Para o autor de Emílio (1995, p. 189), se a intenção de todo ser humano é a busca da
felicidade verdadeira, a educação precisa encaminhar a vida do indivíduo de um modo
“balanceado”. Nesse sentido, nem os desejos podem elevar-se demasiado sobre as faculdades,
nem vice-versa, visto que, na visão de Rousseau (1995, p. 62.71), a própria natureza
prescreveu o homem, em estado primitivo, numa perfeita igualdade entre poder e vontade.
Dent assinala que:
O objetivo de uma boa educação, de um projeto de vida que habilitará uma pessoa a
manter-se na posse de seus poderes e expressá-los plenamente em todos os aspectos
de sua vida, é conservar a fé na integridade da natureza. A disposição adequada à
natureza individual é o amor de si mesmo, uma preocupação inata em preservar a
própria existência e em ter uma vida fecunda. Mas, para começar, o amor de si
mesmo não é uma preocupação consciente, não é orientado por um conhecimento do
que é benéfico ou pernicioso; e pode ser desviado do seu objetivo apropriado por
acontecimentos que poderão ocorrer à criança fraca e vulnerável. (1996, p. 122).
Mesmo que esse “livre viver” deva ser respeitado na criança, devido à dínamis vital
oriunda do amor de si, Rousseau chama a atenção para que o preceptor não se descuide de
certos “problemas pedagógicos”, bem como de possíveis vícios e formas de controle
imperioso, típicos de serem adquiridos nessa fase, por conta de más influências que incidem
sobre essa força motora (ROUSSEAU, 1995, p. 81-85). Dois deles é que interessam para o
presente estudo: o primeiro diz respeito à noção de autoridade, e o segundo ao tratamento da
birra.
33
3.2.3 Imposição de autoridade e birra
O autor aponta como a pretensa persuasão através de forças e ameaças é um método
falho para se conseguir a obediência do aluno. Visto que sua razão ainda não está apta para
entender as consequências das ações e suas qualidades (boas ou más), e que a tendência da
criança é ver que a obediência lhe é vantajosa e a rebeldia, nociva, ela simplesmente procura
obedecer por conta da recompensa ou do receio do castigo, e não pela consciência e pela
reflexão. Por isso, Rousseau orienta que, para se evitar que ela cresça envolta na mentira e na
dissimulação, não se fomente a ideia de que existe uma autoridade imposta do adulto sobre
ela, mas, que por condição natural, ele é forte e ela é fraca. Somente a necessidade real
somada ao bom exemplo do mestre (1995, p. 93), e não as divagações racionais (1995, p. 80),
fará com que ela aprenda que a obediência não se baseia na imposição de forças, mas nos
limites de sua condição que a impedem de ter ou fazer o que quer20
, ou então, de não ter
medidas para o amor de si mesma. (1995, p. 76-78).
No tocante à birra, ela é caracterizada como uma forma de capricho21
, que segundo
Rousseau, não provém da natureza, mas é motivada pela concessão dos adultos à mínima falta
de disciplina da criança (ROUSSEAU, 1995, p. 115). Trazendo, então, á tona um caso
particular que lhe foi confiado resolver, o autor conta como fez para remediar os caprichos de
um menino de família rica, muito mimado pela mãe. Ele não se opunha às exigências do
menino mimado, e não dizia nenhuma palavra, poupando sermões desnecessários. No entanto,
no momento oportuno, planejou uma situação com mais pessoas que fez com que o pequeno
rebelde sentisse o peso de seu imperativismo e revisse sua “onipotência de vontades”.
(ROUSSEAU, 1995, p. 116-120). Sobre o que Rousseau considera ser a birra, na opinião de
Nicholas Dent,
A ira de uma criança diante de uma frustração, sua birra por não conseguir fazer o
que quer podem levá-la a ver as outras pessoas não como sustentáculos, mas como
perseguidores malignos que odiosamente a contrariam. Isso lança-a em competição
pelo controle sobre elas e em luta perpétua por dominação num contexto
impregnado de ameaças e medo. Se esse padrão de expectativa e resposta se
consolida, como pode acontecer através do tratamento errôneo das necessidades e
20
Michel Soëtard (2010, p. 17) aponta que para que o eu sensível ascenda à condição de consciência autônoma é
equivocado se criar uma estrutura artificial de paraíso no entorno da vida da criança, pois este a impede de se
deparar com o embate conflituoso existente entre realidade e desejo, tão necessário para o amadurecimento
pessoal. 21
Ou, como aponta Sahd (2005, p. 115-116), necessidades de “fantasia”, que contrapõem as necessidades
naturais.
34
reações da criança, então longe de ser instigada por paixões que a preservem e
favoreçam sua liberdade, ela será impelida pela agressão, medo e cólera, que não só
são intrinsecamente perniciosos, mas também, criam uma situação que bloqueia
qualquer desenvolvimento no sentido da ampliação da capacidade pessoal ou
criativa. A tendência original da criança para a birra não é, em si mesma, exótica. É
um elemento em sua autoafirmação, em seu direito à vida. Mas, através de
equívocos ou infortúnios ao lidar com essa reação, desenvolveu-se na criança uma
atitude perante a vida, ela própria e os outros, que a colocou em conflito com o seu
propósito pessoal de ter uma vida fecunda em convívio com os outros, pelo que
acaba encontrando-se “em contradição com ela própria”. (1996, p. 50).
3.3 A EDUCAÇÃO NO PERÍODO DE DOZE A QUINZE ANOS DE IDADE (LIVRO III)
A explanação que se segue considera esse período como a fase da maturidade da
infância, ou, num termo mais em voga, a fase da adolescência22
. Partindo ainda da opinião de
que os livros “só ensinam a falar do que não se sabe23
” (ROUSSEAU, 1995, p. 199), e de que
são nas coisas e na práxis diária que se encontram a verdadeira aprendizagem (compreendida
como assimilação de conteúdos ligados à vida cotidiana), recorre-se agora ao princípio da
utilidade, como sendo o guia norteador para o desenvolvimento das faculdades intelectuais do
adolescente (BARROS, 1963, p. 71). Segundo Almeida Júnior (2013, p. 118), ainda que esse
método não permita tantos avanços no que tange à quantidade de conhecimentos, no tocante à
qualidade do aprendizado, porém, permite grandes conquistas, visto que, por ele, Emílio foi
forçado a aprender a partir das coisas, pela própria razão, e não pela razão de outros.
A partir dessa ótica, essa nova etapa do processo pedagógico que Rousseau tem
esboçado, começará a dar mais credibilidade ao intelecto, e não tão somente aos sentidos,
como estava fazendo até então. Tal aprendizagem se concretizará na medida em que a
curiosidade e o interesse natural do jovem, impulsionados pela dínamis vital do amor de si
(esse vetor do homem no contínuo viver) o farão, não apenas desejar fazer uso das coisas do
mundo que está à sua volta, mas, num determinado momento, o motivarão, também, a querer
apreendê-lo. Portanto, às indagações “por quê?” e “para que?” do aluno não devem faltar o
apoio e a capacidade do preceptor para estimulá-lo/provocá-lo, a fim de que encontre suas
respostas (ROUSSEAU, 1995, p. 192). Na leitura de Almeida Júnior, quanto à crítica
22
Em consonância à nomenclatura usada por Rousseau nesse período, que segundo ele, é próximo da
adolescência, mas ainda não se enquadra na puberdade (1995, p. 172), será aplicado simplesmente o termo
“criança” para o aluno em questão. 23
Com exceção do livro Robson Crusoé, de Daniel Defoe, o qual, na visão de Rousseau (1995, p. 200), se
apresenta muito útil no que concerne à temática do desenvolvimento das habilidades, pois a razão e as forças
desenvolvidas como que “se casam” perfeitamente na pessoa do protagonista, à semelhança daquilo que autor do
Emílio vê como ideal de aprendizagem, e que também ocorre no homem em estado natural.
35
rousseauniana à educação tradicional, “o aprendizado pelas coisas atende ao princípio
pedagógico de que não se aprende – pelo menos de forma consistente – por palavras, pelos
livros que são apenas representação das coisas e não elas mesmas”. (2013, p. 124).
3.3.1 A relação entre desejo e força na aprendizagem das coisas úteis
Com vistas ao desenvolvimento da opinião de Rousseau, o qual afirma terem os
sentidos a precedência em relação à razão, no que diz respeito aos conteúdos das ideias
(ROUSSEAU, 1995, p. 176), o autor retoma a tese que brevemente expôs no livro anterior a
respeito do balanceamento que deve haver entre vontade e poder, mas, que agora, será tratado
na relação entre desejo e força. Afirmando que “são nossas paixões que nos tornam fracos,
pois fora preciso, para contentá-los, mais forças do que nos dá a natureza” (ROUSSEAU,
1995, p. 172), o escritor do Emílio não medirá esforços para mostrar que nessa idade, onde as
forças começam a ultrapassar as necessidades que a criança tem para sua idade, é preciso um
redobrado cuidado para não se alimentar nela as paixões exóticas.
A melhor forma de se evitar isso, portanto, seria aplicando a essa fase atividades que
bem empreguem esse tempo único da vida da criança, de modo que, somente agora, é que os
trabalhos e as instruções serão introduzidos na vida do aluno (ROUSSEAU, 1995, p.
173.181). Contudo, há de se atentar para que sejam efetuados numa concatenação objetiva, de
modo que ela seja capaz de interligar suas experiências, dedutivamente, pelo estímulo à
memória24
(ROUSSEAU, 1995, p. 189).
Como, porém, aplicar esse tipo de instrução à criança de modo que respeite a sua
condição natural de um ser livre que busca seu bem-estar? Não seria isso uma influência
externa que age em prejuízo do homem natural? Rousseau (1995, p. 191), de modo algum
seria favorável a essa tese, visto que a sua preocupação é a de educar respeitando sempre a
“marcha da natureza”, mais especificamente, suas necessidades reais, não deixando que a
influência das opiniões e dos juízos alheios molde a curiosidade natural dessa criança25
(ROUSSEAU, 1995, p. 175.176.181.203). Isso fica mais evidente quando o autor adverte:
24
O autor demonstra como uma desorientação proposital em meio à floresta foi efetiva para que o pequeno
Emílio recorresse ao que já havia aprendido sobre orientação geográfica a fim de que encontrasse o caminho de
volta para casa. (ROUSSEAU, 1995, p. 194-196). 25
Rousseau (1995, p. 182-186) apresenta um caso deveras ilustrativo para demonstrar como a influência das
habilidades de um prestidigitador de feira de rua, de um modo ou outro, despertou em Emílio um primeiro
36
Como a contraditória de cada posição falsa é uma verdade, o número de verdades é
tão inesgotável quanto o de erros. Há, portanto uma escolha nas coisas que devemos
ensinar, bem como no momento em que devem ser aprendidas. Dos conhecimentos
ao nosso alcance, uns são falsos, outros são inúteis, outros, ainda, servem para
alimentar o orgulho de quem os tem. O pequeno número dos que contribuem
realmente para nosso bem-estar é o único digno das pesquisas de um homem sábio
e, por conseguinte, de uma criança que desejamos tornar tal. Não se trata de saber o
que é, e sim, somente o que é útil. [...] Distingamos sempre as inclinações que vêm
da natureza das que vêm da opinião. Há um ardor de saber que assenta unicamente
no desejo de ser considerado sábio; há outro que nasce da curiosidade natural ao
homem por tudo o que pode interessar de perto ou de longe. O desejo inato do bem-
estar e a impossibilidade de contentá-lo plenamente fazem com que procure sem
cessar novos meios de alcançá-lo. Tal é o primeiro princípio da curiosidade,
princípio natural ao coração humano e cujo desenvolvimento só ocorre em
proporção de nossas paixões e de nossas luzes. [...] Até aqui não conhecemos outra
lei que não a da necessidade: agora atentamos para que o que é útil; chegaremos em
breve ao que é conveniente e bom. (1995, p. 174.175).
3.3.2 A ação pedagógica e o desenvolvimento do intelecto
Quanto ao caráter do conteúdo e ao modo como deve ser transmitido (em respeito à
marcha da natureza), o autor toma como máxima, fazer o aluno atento aos fenômenos da
natureza. Para Rousseau (1995, p. 205. 228), a ação pedagógica apropriada ao
desenvolvimento do intelecto não consiste em satisfazer, imediatamente, a curiosidade da
criança, mas, tendo sido postos problemas ao seu alcance, deve-se deixar que ela os resolva,
por si mesma, buscando, criando e fazendo associações até que realize suas descobertas.
Evita-se, assim, que o seu espírito fique entregue à preguiça e à inação, garantindo lhe a
fixação do conteúdo, sem que recorra à mera aceitação passiva diante da “autoridade”
racional de quem a instrui (ROUSSEAU, 1995, p. 176.177-178.188.189.230).
O autor pontua, inclusive, que usar de retórica e poesia, por exemplo, quanto ao
frescor de uma manhã ou ao canto dos pássaros para uma criança que vislumbra a natureza, na
intenção de que ela se comova, não seria um caminho viável à sua compreensão e instrução26
,
dado que seus sentidos necessitam não só sentir tais prazeres para compreender isso, como,
também, ter contato com os dissabores da vida natural, opostos a essa beleza que se lhe
movimento da vaidade. O autor chama a atenção, também, para a cuidadosa atenção da parte do preceptor sobre
esse movimento no processo de aprendizagem da criança. 26
Em relação à insuficiente compreensão do adulto sobre o estado de criança, Rousseau afirma que “nunca
sabemos colocar-nos no lugar das crianças; não penetramos suas ideias, emprestamos-lhes as nossas; e seguindo
sempre nossos próprios raciocínios, com cadeias de verdade só enchemos suas cabeças de extravagâncias e
erros”. (1995, p. 179-180).
37
apresenta aos sentidos27
. (ROUSSEAU, 1995, p. 177.198). Seguindo essa lógica da prática
que leva à teorética e que exclui por completo o uso de discursos abstratos (1995, p. 192-193),
Rousseau apresenta a efetividade disso dentro do ensino de geografia:
Eu gostaria, por exemplo, de pegar a geografia por esses dois termos [análise e
síntese] e juntar ao estudo das revoluções do globo a medida de suas partes,
começando do lugar em que se habita. Enquanto a criança estuda a esfera e se
transporta assim para o céu, trazei-a de volta à divisão da terra e mostrai-lhe
primeiramente sua própria localização. Seus dois primeiros pontos de geografia
serão a cidade onde mora e a casa de campo de seu pai, depois os lugares
intermediários, em seguida os rios da vizinhança, finalmente o aspecto do sol e o
modo de se orientar. Eis o ponto de reunião. Que desenhe ela mesma a carta disso
tudo, carta muito simples e de início construída de dois únicos objetos aos quais
acrescentará pouco a pouco os outros, na medida em que sabe ou avalia a distância e
sua posição. Já podeis ver que vantagem lhe outorgamos, pondo-lhe um compasso
aos olhos. Apesar disso, será preciso, sem dúvida, guiá-la um pouco, mas muito
pouco e sem que o pareça. Se se enganar, deixai-a fazer, não corrijas seus erros,
esperai em silêncio que ela esteja em condição de vê-los e de corrigi-los ela própria.
Quando muito, numa ocasião favorável, imaginai alguma operação que a faça senti-
los. Se ela não se enganasse nunca, não aprenderia tão bem. Não se trata, afinal, de
levá-la a conhecer exatamente a topografia de sua carta e sim do meio de apreendê-
la; pouco importa que tenha cartas na cabeça, desde que conceba bem o que
representam e tenha uma ideia nítida da arte de realizá-las. Vede, desde já, a
diferença que existe entre o saber de vossos alunos e a ignorância do meu! Eles
sabem as cartas, o meu as faz. (1995, p. 180).
3.3.3 O aprendizado de um ofício como reflexo da perfectibilidade
Há de se considerar que essa via pedagógica que visa à autonomia dentro do
desenvolvimento intelectual de Emílio, tem como principal objetivo ensinar-lhe a,
futuramente, bem julgar através do bom “uso” dos sentidos (ROUSSEAU, 1995, p. 227), e
não despertá-lo para a vaidade28
. A razão intelectual, na perspectiva da educação negativa,
como bem salienta Roque Spencer M. de Barros (1963, p. 67), é o termo de um processo no
qual Emilio adquire maturidade a respeito da relação que existe não só de si com as coisas à
sua volta, mas também, dos outros consigo mesmo. Nota-se no interior da obra que o
ambiente um tanto isolado, que o preceptor do Emilio vinha mantendo até então, rendeu-lhe
27
Essa sua conclusão baseia-se no fato, por ele observado, de que a tendência das crianças esquecerem alguma
coisa é fato quando, ao invés do preceptor mostrar-lhes as coisas mesmas, estas são substituídas por sinais, os
quais absorvem quase toda sua atenção. Esta atitude faz com que elas venham a se esquecer das coisas
reapresentadas. (ROUSSEAU, 1995, p. 179). 28
Rousseau é (1995, p. 199. 223) da opinião de que qualquer tipo de comparação feita do aluno com outras
crianças não é favorável para o desenvolvimento de suas habilidades, dado que tal conduta tende a criar o
espírito de rivalidade, e não o estímulo para progredir a partir do nível que ele já alcançou até o momento.
38
independência necessária para contar com a sua própria razão (BARROS, 1963, p. 72). É
agora o momento favorável para Emílio desenvolver suas habilidades pessoais aprendendo
um ofício29
.
A partir daqui, o preceptor passa a valorizar mais os dons pessoais de seu aluno, cujo
desenvolvimento remonta à faculdade inata da perfectibilidade. Rousseau é ciente de que a
criança não é uma espécie de “ser em geral”, mas, um sujeito, um indivíduo que nessa fase da
vida já começa a dar sinais de suas faculdades e talentos. Emílio, já conhecendo trabalhos
ligados à agricultura, devido o contato desde pequeno com o campo, aprenderá o ofício de
marceneiro que, além de ir ao encontro de seu desejo pessoal e habilidades (ROUSSEAU,
1995, p. 214-215.222), é um modo eficaz de exercer as suas forças físicas, mais bem
desenvolvidas que na infância, mantendo tanto a mente quanto o corpo ocupados no trabalho,
para que, no momento oportuno, sejam trabalhados no jovem Emílio os sentimentos em
relação à razão, e não mais tão somente às sensações. (ROUSSEAU, 1995, p. 224-225).
Outro dado importante de Rousseau na sua explanação e que implica diretamente na
noção de perfectibilidade é a sua concepção epistemológica na formação das ideias. O
filósofo da educação discorre melhor sobre o conceito apresentado no Livro II a respeito das
ideias simples e das ideias complexas (ROUSSEAU, 1995, p. 164), a fim de pontuar o
objetivo pedagógico da educação negativa nessa fase ao dizer que
Nosso aluno não tinha, no início, senão sensações; tem ideias agora: Não fazia senão
sentir; julga agora. Porque da comparação de várias sensações sucessivas ou
simultâneas, e do julgamento que delas se faz, nasce uma espécie de sensação mista
ou complexa a que chamo ideia. [...] As ideias simples não passam de sensações
comparadas. Há julgamentos nas sensações simples, tanto quanto nas complexas, a
que chamo ideias simples. Na sensação o julgamento é puramente passivo, afirma
que se sente o que se sente. Na percepção ou ideia, o julgamento é ativo; aproxima,
compara, determina relações que o sentido não determina. Eis toda a diferença, mas
ela é grande. Nunca a natureza nos engana; sempre somos nós que nos enganamos.
[...] A melhor maneira de ensinar a bem julgar, é a que tende mais a simplificar
nossas experiências e a poder mesmo fazer com que as dispensemos sem cairmos no
erro. Do que decorre que, depois de ter durante muito tempo verificado as relações
dos sentidos um pelo outro, é preciso ainda verificar as relações de cada sentido por
si mesmo, sem, precisar recorrer a outro sentido; então cada sensação se tornará para
nós uma ideia e esta sempre conforme à realidade. Tal é a espécie de aquisição que
tentei preencher nessa terceira idade da vida humana. (1995, p.225.227).
29
Rousseau (1995, p. 202-203.204-205), ainda que de modo incoativo, mostra que o conceito de “útil” para a
aprendizagem não se assemelha de modo algum ao utilitarismo da sociedade. Este provém de uma série de
preconceitos relativos ao trabalho e seu fim. Cabe, pois ao preceptor, segundo o autor, evitar que o aluno caia nas
relações de trabalho e custo que a sociedade prega como ideal. Quanto mais rústico e simples o trabalho, mais
importância e utilidade ele possui.
39
4 O CONHECIMENTO DE SI E A VIDA DO INDIVÍDUO EM SOCIEDADE
A essa altura do “programa educacional” do preceptor Jean-Jacques, seu aluno foi
privado do relacionamento com os outros, considerando que ainda não era o momento
favorável do jovem Emílio lidar com as opiniões e as vontades alheias, ou, de modo mais
técnico, com a alteridade (ROUSSEAU, 1995, p.190.203-204.207.237.277), pois, como bem
sinaliza Dent, ele devia “concentrar todas as suas energias para aprender a avaliar os reais
limites de seus poderes e capacidades interagindo com o que o rodeia, aprendendo
gradualmente competências práticas que o habilitem a cuidar de si mesmo como criatura viva
situada no mundo”. (1996, p. 122). Além do mais, segundo Almeida Júnior (2013, p.119-
120), o desenvolvimento físico de Emílio adentra uma fase de paixões nascentes, tais como as
pulsões sexuais e os sentimentos de afeição mais acentuados (ROUSSEAU, 1995, p. 262-
263), cujas agitações no espírito, se não trabalhadas adequadamente dirigindo sua estima e
afeição para objetos que suscitem a sociabilidade, podem pôr em risco todo o cuidado que se
havia tido até então. (ROUSSEAU, 1995, p. 234.237.261).
A partir desse “segundo nascimento” apontado pelo autor no início do Livro IV
(ROUSSEAU, 1995, p. 233.234), seu aluno será encaminhado para uma nova matéria de
conhecimento: o coração humano (ROUSSEAU, 1995, p. 266). Inevitavelmente, o contato
com os demais, fará com que Emílio se compare a eles (ROUSSEAU, 1995, p. 265), mas,
sendo ele alguém autônomo, que cresceu alheio às dissimulações, aos vícios e às paixões
exóticas, ele discernirá a diferença entre o “ser” e o “parecer”, ou seja, o homem e as
máscaras que usa (ROUSSEAU, 1995, p. 267.286) à medida que vai estudando os homens,
seja através da história humana e seus feitos30
, seja pelo contato direto no dia-a-dia com
outras pessoas. (ALMEIDA JÚNIOR, 2013, p. 120; ROUSSEAU, 1995, p. 272).
À luz do que Rousseau já havia assinalado anteriormente no Livro III, depois de
seguir as leis da necessidade e da utilidade, passa-se agora ao que é conveniente e bom
(ROUSSEAU, 1995, p. 175), visto que, “a busca da perfectibilidade vista na ótica da busca da
realização de cada ser humano no respeito a todos os outros que também buscam sua
realização pessoal, aos poucos, Emílio vai sendo educado a perceber sua relação com os
30
Rousseau (1995, p. 269-270) critica a posição de historiadores que, em seus trabalhos historiográficos, fazem
exposições embebidas de interpretações e opiniões particulares acerca dos fatos. Por isso, julgando ser Plutarco o
autor mais adequado para o conhecimento do coração humano, o cidadão genebrino não só o recomenda aos seus
leitores, como também fará de seus escritos a base formal segura para o jovem Emílio nessa nova empreitada.
(1995, p. 270-274). Salinas Fortes (1976, p. 49-50) analisa esse cuidado de Rousseau como uma espécie de
pedagogia do desmascaramento contra toda polidez e dissimulação dos costumes.
40
outros, desenvolvendo o seu ser moral”. (NODARI, 2010, p. 13). Os livros IV e V terão,
portanto, como viés principal o desdobramento do amor de si para o nível da alteridade
(entendido como a compaixão ou piedade natural), ou, no entendimento de Roque Spencer M.
de Barros, “à espontaneidade da bondade natural suceder-se-á a virtude plenamente
consciente”. (1963, p. 72).
4.1 A EDUCAÇÃO NO PERÍODO DE QUINZE A VINTE ANOS DE IDADE (LIVRO IV)
Nesse período alto da puberdade, caracterizado por uma fase de “turbilhões de
sentimentos”, não serão aplicados exercícios de privação ou censura das paixões nascentes do
jovem Emílio, pois tal atitude não seria apenas contraditória à perspectiva antropológica
rousseauniana, mas, como o próprio autor do Emílio afirma, seria uma empresa vã,
contraditória à ordem natural querida por Deus (ROUSSEAU, 1995, p. 234-235). A
metodologia adequada ao jovem Emílio, então, é fomentar nele o companheirismo, a amizade,
e atividades relacionadas à uma profissão como sendo vias de sublimação das suas pulsões
sexuais31
, a fim de “habilitá-lo a encontrar uma sólida base em que se sinta confiante, seguro,
respeitado e capaz de sentir-se senhor de si sem ter que recorrer à agressividade ou ao
servilismo excessivo” (DENT, 1996, p. 118).
Nesse livro, Rousseau (1995, p. 235-238), retoma de modo mais detalhado sua
exposição sobre as paixões naturais, como sendo expressão de vida e conservação,
ratificando, assim, sua apologia à bondade natural, já feita no seu Segundo Discurso, à luz de
três máximas32
que, se forem consideradas no quadro da educação moral do jovem, alcança-se
mais perfeitamente o nível propriamente humano da virtude, cujas bases estão na compaixão.
31
De modo análogo aos conteúdos intelectuais, os de ordem moral contarão com o auxílio do terceiro mestre
(homem), constituindo assim uma educação de caráter positivo. Se as noções de sociabilidade, bem como os
vícios, não estão no coração do homem desde seu nascimento (ROUSSEAU, 1999, v. 2, p. 75), cabe ao
preceptor, respeitando a liberdade de seu aluno, bem orientá-lo nessa dimensão da alteridade. 32
1ª: "não é do coração humano pôr-se no lugar das pessoas que são mais felizes do que nós, mas tão somente
das que são mais dignas de pena"; 2ª: "só temos piedade nos outros dos males de que não nos cremos isentos nós
mesmos"; 3ª: "a piedade que se tem do mal de outrem não se mede pela quantidade desse mal e sim pelo
sentimento que se empresta a quem o sofre". (ROUSSEAU, 1995, p.249.250.251).
41
4.1.1 O despertar da moralidade
Ainda que o autor discorra somente agora sobre as conseqüências da força do amor
de si mesmo nessa etapa da vida, que por um dado acidental pode transformar-se em amor
próprio (ROUSSEAU, 1995, p. 237), isso não quer dizer que a preocupação moral também só
surja neste momento. No entendimento de Almeida Júnior (2013, p. 125), desde os primeiros
choros, os procedimentos empregados pelo preceptor estavam impregnados de cuidados
morais, dado que, convencido de que lições morais meramente discursivas não teriam o
alcance efetivo na instrução da criança, como bem relembra Geraint Parry (2001, p. 253), o
preceptor fomentou o aprendizado de Emílio pelas coisas e pelas lições tiradas de sua
experiência pessoal (ROUSSEAU, 1995, p. 268), como no caso dos feijões plantados em
terras arrendadas, onde o pequeno Emílio conheceu os limites de sua vontade e de seus
desejos de satisfação e posse. (1995, p. 86). Como bem explica Bigheto, “uma educação
moral correta não significava impor regras para serem respeitadas racionalmente, mas para
despertar sensações morais positivas que levassem à formação de uma consciência moral
autônoma”. (2013, p. 65).
Sabendo Rousseau que “Emílio não é uma espécie de selvagem a ser largado no
deserto, [mas] é um selvagem feito para viver na cidade” (1995, p. 227), o plano de educação
moral apresentado no livro IV é, basicamente, pautado, na lógica de que a natureza, enquanto
primeiro mestre do processo educativo, fala sempre mais alto mesmo no descobrimento da
sexualidade e da moralidade (ROUSSEAU, 1995, p. 244), devendo ela nunca ser
desconsiderada ou sobreposta pela instrução dos homens. O próprio Rousseau (1995, p. 238-
244.261) argumenta que, diferentemente dos ignorantes, os povos mais instruídos tendem a
“atropelar” a marcha da natureza, com instruções que influem negativamente no
comportamento dos jovens, visto que determinadas ações maliciosas e dissimuladas
introduzem neles uma curiosidade excessiva diante de sentimentos e assuntos ligados à
sexualidade, dos quais não têm ainda domínio e consciência suficientes para compreender.
(ROUSSEAU, 1995, p. 256-257.259.378). Sobre a inocência da criança e do jovem que
merece ser resguardada de uma maneira particular, o autor afirma que
As crianças não têm os mesmos desejos que os homens; mas, sujeitas como eles à
sujidade que fere os sentidos, podem, unicamente em virtude dessa sujeição, receber
as mesmas lições de decoro. Segui o espírito da natureza que, colocando nos
mesmos lugares os órgãos dos prazeres secretos e os das necessidades repugnantes,
inspira-nos os mesmos cuidados em idades diferentes, ora por uma idéia, ora por
42
outra: ao homem pela modéstia, à criança pela limpeza. Só vejo um bom meio de
conservar a inocência das crianças; é respeitarem-na todos os que as cercam, e amá-
la. Sem isso, toda a discrição que lhes mostrarem será desmentida mais dia menos
dia. Um sorriso, uma piscadela, um gesto involuntário, dizem-lhes tudo o que lhes
procuram não lhes dizer; basta-lhes para aprendê-lo, verem que lhes quiseram
esconder. (1995, p. 241-242).
Rousseau é enfático na sua crítica à intervenção arbitrária e equivocada do homem na
marcha da natureza quando afirma que “a fonte de todas as paixões é a sensibilidade, a
imaginação determina seu declive” (1995, p. 244). Por isso, ao postular dois princípios para o
bom emprego das paixões nascentes33
, o autor aponta que as paixões adquirem uma nova fase:
a sensibilidade já não se limita ao âmbito individual, mas, pelos sentimentos, o jovem começa
a adquirir afeições pelo seu semelhante. A esse respeito, Barros comenta que, para Rousseau,
“o amor é o guia que, aos poucos, nos erguerá à ideia mesma de humanidade”. (1963, p. 74).
Portanto, ainda que na educação moral apareça certo grau de positividade, dadas as
orientações que o preceptor terá de fazer ao seu aluno alertando-o das artimanhas da vida
social (PARRY, 2001, p. 258), elas serão necessárias como guia de reflexão do jovem Emílio.
O primeiro sentimento que surge nessa nova fase da vida é a amizade, que, se bem
cultivada (longe das pompas das cortes e da sedução dos espetáculos, suscetíveis ao
surgimento da inveja e da vaidade) tornar-se-á condição para o desenvolvimento da
compaixão, cujo termo se encontra no alter. Essa relação entre compaixão e amizade, já
esboçada tempos atrás por Agostinho (2004, p. 85-87), no livro III das suas Confissões, deixa
claro que a piedade natural defendida por Rousseau não se resume a um sentimento de pena
do outro, como se quem presenciasse o sofrimento fosse superior ao que sofre, mas, sim, um
“sofrer-com-o-outro”, num mesmo nível de dignidade, capaz de lançá-lo ao encontro com as
situações de flagelo e dor que o seu semelhante sofre. No fundo, o defensor da bondade
natural quer dizer que sentimentos como a comiseração, a clemência e a generosidade34
são os
frutos de uma educação que resguarda a bondade natural deste ser perfectível e movido pelo
amor de si que é o homem (ROUSSEAU, 1995, p. 245-247). Este, num dado momento da sua
existência, pelo amor de si que o move para a vida (dinamis), será desperto para a ideia
mesma de humanidade, conforme observação de Barros citada anteriormente. (1963, p. 74).
A partir desse raciocínio, por que o autor apresenta os vislumbres da vida social
como opostos ao desenvolvimento do jovem na sua relação com as pessoas? Ainda que
33
“1º sentir as verdadeiras relações do homem, tanto na espécie como no indivíduo; 2º ordenar todas as afeições
da alma segundo essas relações”. (1995, p.244). 34
Rousseau (1995, p. 265) não está de acordo que os preceitos da lei natural se baseiam somente na razão, mas,
que esta tem uma base anterior que é o amor dos homens, princípio de toda justiça humana.
43
Rousseau pareça um mero depreciador da sociedade, ele, pelo contrário, é muito realista na
sua abordagem, pois, consciente de que muitas relações do âmbito social são artificiais,
ilusórias e dissimuladas, e que em muitos casos elas tentam esconder a realidade de que todos,
sem exceção, estão sujeitos aos malogros da vida (ROUSSEAU, 1995, p. 247-248.255),
privar uma criança ou um jovem desse fato ou então, sem critério pedagógico algum,
acostumá-los a ver isso a todo instante, é tendê-los a uma anulação do sentimento de
comiseração (ROUSSEAU, 1995, p. 260). Em síntese, o autor quer dizer que só se é capaz de
compadecer-se de alguém aquele que já experimentou o sofrimento e/ou dele foi testemunha,
pois “ninguém se torna sensível senão quando sua imaginação se anima e começa a
transportá-lo para fora de si”. (ROUSSEAU, 1995, p. 249).
Nessa perspectiva, onde Emílio tira vantagens formativas das relações sociais sem
ter, necessariamente, que agir como os homens degenerados pelo amor próprio (ROUSSEAU,
1995, p. 227.251.283-284), o autor recomenda que, para desenvolver no aluno o senso de
compaixão, o mesmo deve ser educado, acima de tudo, para amar o gênero humano,
independentemente se o sujeito lhe corresponde ou não, com atitudes de amor, (ROUSSEAU,
1995, p. 252.253.257), pois, no fundo, sentir-se com os outros é ir além dos instintos, da
animalidade: é despertar para a moralidade de suas ações e escolhas, é encaminhar-se para a
justiça. (ROUSSEAU, 1995, p. 288-289).
4.1.2 Educação religiosa e moralidade
Atingindo o senso de humanidade, Emilio será introduzido pelo seu preceptor a uma
nova dimensão de conhecimento cujas implicações estão relacionadas diretamente à sua vida:
Deus, supremo poder e inteligência, capaz de dar ordem a tudo que se move no universo
(SIMPSON, 2009, p. 171, ROUSSEAU, 1995, p. 319.326-327.330.340). Tal apresentação
acerca de Deus só é esboçada a essa altura do programa pedagógico, pois todo o vocabulário
relacionado ao “Ser incompreensível, que tudo abarca, que dá movimento ao mundo e forma
todo o sistema dos seres” (ROUSSEAU, 1995, p. 292), bem como as noções de “alma” e
“espírito”, segundo o próprio autor, são demasiado abstratas e de nenhuma compreensão às
crianças, cuja capacidade cognitiva ainda era tão somente ligada à relação do eu (ego) com as
coisas. (ROUSSEAU, 1995, p. 292-295.455). No fundo, ao voltar as atenções do jovem para
Deus (com o cuidado de ter começado com a instrução pelas coisas) o preceptor evita
44
introduzi-lo à crença em superstições ou à pretensa tentativa de explicar a Verdade absoluta
pela filosofia (ALMEIDA JUNIOR, 2013, p. 131; ROUSSEAU, 1995, p. 307-
309.312.331.336-337), a fim de mostrar-lhe que a bondade ontológica do gênero humano não
provém dele mesmo, mas, do Autor da natureza, de cujas mãos nada foi constituído mal ou
corrupto (ROUSSEAU, 1995, p. 9.319-320.321.325.342).
É numa radical apresentação sobre a chamada religião natural que Rousseau (1995,
p. 344) vai confrontar diretamente a concepção tradicional sobre Deus e sobre a Revelação,
mais particularmente, aquela adotada pela vertente judaico-cristã. Essa explanação está num
intertexto, relativamente extenso, intitulado Profissão de Fé do Vigário Saboiano, um pouco
difícil na sua compreensão, mas primoroso na sua composição literária. Nele, o autor
radicaliza a bondade natural, fazendo um embate com a noção de pecado original, presente na
teologia cristã (ROUSSEAU, 1995, p. 333). Diferentemente de Agostinho (2004, p. 19-21),
que via já nos primeiros dias de vida da criança a mancha da corrupção da carne, Rousseau,
totalmente em oposição à noção de falibilidade humana, apresentará sua opinião, já esboçada
no Segundo Discurso, de que o homem não possui quaisquer elementos de corrupção pré-
existenciais, mas, que ele é perfectível, ou seja, que ao longo de seu desenvolvimento físico e
psíquico atinge a perfeição de seu ser, a menos que seja desviado da Lei Natural estabelecida
pelo Criador por conta da intervenção humana, capaz de perverter o livre arbítrio, como cada
um dos livros do seu tratado de educação vêm apresentando. (ROUSSEAU, 1995, p. 325-
326.384-385).
Partindo do princípio de que a adoção de fé para uma criança não passaria de uma
reprodução impensada daquilo que, de modo contingente e dependente da localidade, os
adultos incutem na sua cabeça (ROUSSEAU, 1995, p. 295), Rousseau sugerirá que a
verdadeira religião é aquela que leva o indivíduo a reconhecer a doce voz do Autor das coisas
que lhe fala no íntimo de seu coração, sem mediações, ou seja, sem dogmas, ministros ou
revelações misteriosas e a agir em conformidade com a virtude, como assinala Wilson Paiva
(2007, p. 331), e que, será pelo emprego da razão que o aluno mesmo escolherá a vertente
religiosa que melhor o leve a seguir essa voz. (ROUSSEAU, 1995, p. 298.320.345-
347.351.371.446). As implicações de ordem moral por detrás disso consistem em restabelecer
o homem natural, por meio do reencontro de si com a sua natureza original (amor de si e
piedade, unidade esta que fora perdida e deteriorada). Acrescido a isso, Wilson Paiva afirma
que
45
[...] pelas idéias contidas no discurso do vigário saboiano, podemos inferir que a
virtude resulta do exercício da razão, guiada pela consciência moral e substanciada
na sensibilidade, cuja base não é outra senão a bondade natural. Encadeamento que
combina a ação da natureza e a ação do homem, iniciando pela contemplação de um
ser supremo. [...] Tanto que seus preceitos podem ser entendidos como o credo de
uma religião natural, quase animista, cuja essência reside numa harmonia universal
dos homens consigo mesmos e com a ordem imaterial que move o universo,
independente se é um ser pessoal ou uma força cósmica criadora. [...] A metafísica
de Rousseau é, ao mesmo tempo, uma recusa do materialismo ateu bem como do
fanatismo religioso. Sua posição mediana procura evitar o extremismo de ambos os
lados e busca a verdade nas relações sensuais do mundo empírico e no compromisso
moral de uns para com os outros. É a tentativa de guiar o aperfeiçoamento humano
reconciliando a natureza e a cultura numa espécie de retorno ao paraíso perdido sem
se despojar dos atributos da ciência e da reflexão. (2007, p. 331).
É claro, portanto, que a proposta de religião que Rousseau quer defender é aquela
que se pauta no bom uso da consciência35
, para equilibrar a razão e as paixões, no que tange à
atividade do conhecimento, como bem aponta Luiz Salinas Fortes (1989, p. 34), e também a
própria fé vivenciada no culto público, o qual é escolhido, de bom grado, pelo sujeito36
. Isso
implica que o culto da religião natural está em ler e apreender as máximas da bondade e do
amor que o Criador inscreveu no coração humano (ROUSSEAU, 1995, p. 332.345-346) como
sendo a verdadeira liturgia capaz de realizar o ser humano em sua plenitude, em sua
totalidade, em outras palavras, naquilo que o torna humano e “rei da terra em que habita”
(ROUSSEAU, 1995, p. 320) que são, justamente, sua liberdade e perfectibilidade. (2007, p.
332; ROUSSEAU, 1995, p. 325). É interessante que, ainda que muito remotamente, Rousseau
acaba retomando nessa sua exposição sobre a moralidade consciente na religião, a explanação
de Tomás de Aquino acerca da virtude da synesis, virtude esta responsável pela bondade do
juízo37
, e a virtude de religião a qual é trabalhada pelo pensador medieval em relação com a
justiça38
.
35
Para Rousseau (1995, p. 333.335.337-338), a bondade natural, a qual encontra sua expressividade no amor de
si e na piedade natural, é fruto de um princípio inato de justiça e de virtude, capaz de efetivar o juízo sobre as
ações morais, que ele chama de consciência. 36
No entendimento de Almeida Júnior (2013, p. 131, 132), ainda que a religião natural idealizada por Rousseau
não traga os elementos cúlticos das religiões positivas, nem por isso o cidadão de Genebra condena o culto
público. Segundo o especialista, Rousseau reconhecia, do ponto de vista da razão, uma função fundamental dos
ritos na perspectiva da sociabilidade, já que, no caso do cristianismo, por exemplo, pelas palavras do vigário de
Sabóia, ele afirma que a vivência e a reverência aos valores morais contidos nos Evangelhos fomentam a busca
do amor universal. (ROUSSEAU, 1995, p. 361-365.367.369.456). 37
Considerando que a reta moralidade no juízo provém, radicalmente, da natureza na própria disposição da
potência cognoscitiva do sujeito para receber as coisas como são em si mesmas, o Aquinate afirma que isso se
dá, “diretamente, por parte da própria potência cognoscitiva, que não está imbuída de concepções depravadas,
mas verdadeiras e retas; [e] indiretamente, pela boa disposição da potência apetitiva, em virtude da qual o
homem emite um juízo reto sobre o que é desejável”. (ST, IIª, IIae
, q. 51, a. 3, respondeo 1). 38
Segundo explicação de Carlos Arthur Nascimento (2008, p. 88.86), "A virtude torna bom o agente e sua ação.
Assim, todo ato bom é pertinente a uma virtude. Ora, cabe à religião dar honra a Deus, o que é um ato bom.
Portanto, a religião é uma virtude. Que dar honra a Deus seja um ato bom, mostra-se pelo fato de que se trata de
dar a alguém o que lhe é devido, sendo que, dar a alguém o que lhe é devido é bom, pois coloca o agente no
46
4.1.3 Inserção no corpo social
Após a profissão do vigário, Rousseau faz pequenos apontamentos que já indiciam a
dinâmica do próximo passo pedagógico do jovem Emílio. Com o conhecimento do Autor das
coisas e convencido das implicações morais profundas na sua relação com Ele, bem como
com os demais homens, Emílio está prestes a atingir a maturidade da razão, com a qual será
capaz de orientar-se retamente, sem desdenhar o gênero humano, em meio às adversidades da
sociedade na qual ele nasceu (ROUSSEAU, 1995, p. 398-403), como também na busca de um
amor verdadeiro, de uma mulher que lhe seja companheira39
. Cabe ao preceptor, a partir de
agora, considerá-lo homem, um amigo, e não mais um adolescente (ROUSSEAU, 1995, p.
376-377.395), com o dever de instruí-lo não mais pela ignorância, mas pelo esclarecimento
(mais especificamente, no que toca à dinâmica da vida sexual), tanto das medidas pedagógicas
presentes, como também das do passado (desde o início de sua educação) com todo o cuidado
de fazê-lo sob a autoridade da caridade e da afeição (ROUSSEAU, 1995, p. 396-397.532-
540). Em outras palavras, o preceptor deve colocar-se na posição de quem quer promover
naquele jovem o crescimento, o equilíbrio afetivo, com vistas à sua felicidade em meio aos
demais, e junto a uma companheira digna de sua afeição. (ROUSSEAU, 1995, p. 382-
384.385-387.392-393.410).
Emílio terá que reconhecer-se como um indivíduo em meio a outros, levando em
conta que, sendo membro da sociedade e educado para o bem, deverá cumprir seus deveres de
indivíduo em relação a eles. (ROUSSEAU, 1995, p. 389). Por isso, movido pelo desejo de
viver, de explorar o mundo, sendo livre e com a idade adequada para equilibrar e discernir
mais retamente as paixões, o jovem aluno deverá adentrar-se na vida social, a fim de que
conheça os indivíduos, dado que o homem em geral, já lhe foi objeto de investigação durante
toda a sua mocidade. (ROUSSEAU, 1995, p. 388). Por se tratar, portanto, de um contato mais
direto, Emílio é enviado pelo preceptor à Paris e lá é iniciado no estudo das línguas, da
relacionamento adequado, visto que estabelece o ordenamento adequado. [...] O primeiro grupo de virtudes
coloca o agente face a seus superiores: Deus, pais e autoridades. O segundo grupo constitui uma espécie de
refinamento do comportamento moral, seja para sua perfeita integridade, seja para sua maximização. São, como
dissemos, as chamadas virtudes sociais, tais como a gratidão, a reivindicação, a veracidade, a cordialidade, a
liberalidade e a equidade, forma eminente da justiça”. 39
Matthew Simpson (2009, p. 174) salienta que as descrições do preceptor a respeito de um “modelo perfeito de
esposa” para o jovem amante do gênero humano (ROUSSEAU, 1995, p. 390-396.422) é um empreendimento do
autor para apresentar uma imagem de virtude e de amor relacionada à união dos sexos como um modo de poupá-
lo do deboche público e dos perigos da cidade que lhe atentem ao pudor. Desse modo, ao afeiçoar-se por essa
futura mulher ideal (Sofia), Emílio se afastaria de libertinagens e se prestaria a entregar-se tão somente a ela.
47
gramática e da literatura mais antiga. (ROUSSEAU, 1995, p. 403.407-409). Além do mais,
ele tem contato com os espetáculos, os costumes e os hábitos locais no intuito de se estudar o
gosto e daí apreender o que de belo existe em todos os gêneros de beleza, sofisticando seu
gosto simples pelas artes e pelo conhecimento, sem recair na devassidão presente na vida dos
mais abastados. (SIMPSON, 2009, p. 173-174).
4.2 A EDUCAÇÃO NO PERÍODO DE VINTE A VINTE E CINCO ANOS DE IDADE
(LIVRO V)
A explanação que se segue abordará a fase adulta de Emílio, e é nesse quinto e
último livro que a obra de Rousseau dá uma guinada bastante incomum, devido à transição do
estilo literário no seu interior: de um tratado sobre a formação do homem à luz da Lei Natural
com vistas á uma apologia da bondade natural, intercalada por comentários e observações de
cunho pessoal, a exposição se mescla agora a uma narrativa sobre o encontro e o despertar do
amor entre Emílio e Sofia, com clímax e desfecho próprios de um romance. Mesmo assim, o
autor dá continuidade aos aportes feitos no final do livro IV os quais incidem diretamente na
relação entre indivíduo e sociedade, a qual não é, para o autor, naturalmente revestida de
dissimulação ou receio, mas, como afirma Nicholas Dent (1996, p. 123), é campo para uma
relação de respeito, confiança e cooperação mútuas, pois, no fundo, cada indivíduo anseia
alcançar a plenitude de sua humanidade. Em continuação à sua análise, Dent ratifica a
posição de Rousseau que acredita que “o exercício das virtudes sociais leva ao fundo dos
corações o amor à humanidade” (1995, p. 284) ao dizer que
Não há nisso deserção ou distorção da natureza. É próprio da natureza viver,
trabalhar e participar com os outros de muitas maneiras e em muitas bases. O ponto
essencial é que tais relações devem continuar beneficiando cada indivíduo, na
medida em que o habilitam a agir construtiva e criativamente com e a favor de
outras pessoas. Conflito e competição podem ser características comuns do
intercurso humano, mas não são inevitáveis nem próprios da natureza. A “ordem
moral”, em razão da qual as pessoas estão mutuamente vinculadas por
responsabilidades e direitos, não é, inevitavelmente uma deserção ou distorção da
natureza. Isso desmente aqueles que afirmam que, para Rousseau, toda a conexão
social envolve os seres humanos numa perda de integridade pessoal e os mergulha
numa cisão da personalidade e em conflito agressivo uns com os outros. (1997, p.
123-124).
48
4.2.1 Educação feminina e constituição familiar
Em suma, a educação de Sofia, a mulher ideal ao jovem Emílio e “exemplo” de boa
esposa (que agrada a todos, principalmente seu marido, com sua beleza e docilidade sem
deixar de ser íntegra em sua conduta) é apresentada por Rousseau (1995, p.
429.431.433.443.458) sob a ótica da complementaridade relativa aos sexos e suas funções nos
níveis natural e social. Para o autor "em tudo que não se prende ao sexo, a mulher é homem:
tem os mesmos órgãos, as mesmas necessidades, as mesmas faculdades; a máquina é
construída da mesma maneira, as peças são as mesmas, o jogo de ambos é igual, o aspecto
semelhante”. (ROUSSEAU, 1995, p. 423). De fato, tal afirmação de Rousseau não agradaria
nem um pouco as mulheres da geração atual, contudo, há de se considerar seus limites
históricos, ainda muito arraigados à ideia de uma inferioridade da natureza feminina em
relação à masculina.
Apesar desse dado constante na explanação daquilo que o autor entende por
educação própria às mulheres, vale assinalar, como já foi dito, o dado da complementaridade,
como também o da especificidade e da beleza de cada um dos sexos (ROUSSEAU, 1995, p.
424). Sobre isso Rousseau afirma que
A razão das mulheres é uma razão prática que faz com que encontrem habilmente os
meios de chegarem a um fim conhecido, mas que não faz com que encontrem esse
fim. A relação social dos sexos é admirável. Dessa sociedade resulta uma pessoa
moral de que a mulher é o olho e o homem o braço, mas com tal dependência um do
outro, que é com o homem que a mulher aprende o que é preciso ver, e com a
mulher que o homem aprende o que é preciso fazer. Se a mulher pudesse remontar
tanto quanto o homem aos princípios, e se o homem tivesse tanto quanto ela o
espírito dos pormenores, sempre independentes um do outro, viveriam numa eterna
discórdia e sua associação não poderia subsistir. Mas na harmonia que reina entre
ambos tudo tende a um fim comum; não se sabe quem mais se dedica; cada qual
segue o impulso do outro; cada qual obedece e ambos são senhores. (1995, p. 448).
É interessante que no decorrer do livro V, Rousseau (1995, p. 433.437-441.460-467)
apresenta dados relativos á psicologia das meninas sobre os quais pautará sua exposição
acerca das atividades próprias a serem trabalhadas dentro da educação feminina. Ele mostra
ainda que as disposições físico-biológicas, próprias de cada um dos sexos, de certa forma,
estão implicadas diretamente na moral das ações, mais especificamente, na relação e no
comportamento entre homem e mulher. (ROUSSEAU, 1995, p. 427.440.446-448). Por isso,
mesmo que as espécies desses trabalhos sejam diferentes dentro do processo de aprendizagem
das meninas, bem como quem estará mais envolvido nele pela educação negativa observando
49
suas atividades (a mãe), o fim dos trabalhos será o mesmo para ambos os sexos: será
“homem40
”, sendo mulher41
, sob a regra do sentimento interior. (ROUSSEAU, 1995, p.
430.432.434.438.447.457.465).
No entendimento de Maciel de Barros (1963, p. 76), Rousseau estabelece as
diferenças em relação aos sexos tendo em vista a função específica de cada um na obra da
humanidade. Nessa perspectiva, embora baseie seu discurso em diferenças substanciais no
tocante à dependência da mulher para com o homem (e vice-versa) sob a ótica de uma
supremacia masculina, o autor do Emílio faz uma crítica, digna de atenção, à proposta
platônica de uma educação indistinta para ambos os sexos, por esta se tratar de uma espécie
de supressão do ser feminino. O motivo disso, para Rousseau (1995, p. 428.430.433.465)
reside no equívoco de Platão em deixar de lado a constituição familiar, vista pelo iluminista
como uma instituição humana essencial.
Além disso, ele se apresenta como defensor da liberdade de escolha no tocante à
união matrimonial, considerando ilícitas quaisquer convenções socioeconômicas que
sobreponham o amor entre os cônjuges, opinião bastante polêmica mesmo para a Europa do
seu tempo (ROUSSEAU, 1995, p. 480-482.487-488). Nicholas Dent aborda essas duas
preocupações de Rousseau ao mostrar que o elemento de “associação”, oriundo do seio
familiar, não incorre numa associação de nível parcial, a qual o autor do Contrato Social
afirma pôr em risco o bem comum. Segundo o especialista:
A família, por outro lado, é uma “associação” a partir da qual pode crescer a
lealdade e o compromisso com a “grande associação”; a família não precisa existir
em oposição à maior associação, ou à custa desta. Os sentimentos que são
aprendidos na família – os de participar, quinhoar e sentir afeição por outros – não
motivam as pessoas a procurar o lucro à custa dos outros, como fazem aquelas
pessoas que formam as sociedades parciais que subvertem a vontade geral. Antes,
tais “sentimentos de família” são, naturalmente, bastante extensivos para incluir a
preocupação com os outros que não estão aparentados por algum laço de sangue
imediato, mas têm alguma “unidade de origem”. Na realidade, porém, é tão comum
para o amor-próprio trabalhar vangloriando-se da precedência de famílias, quanto da
precedência de indivíduos. (1996, p. 204-205).
40
Entendido quanto ao gênero. Portanto, humana, sem qualquer diminuição das peculiaridades física e
psicológica, próprias de uma mulher. 41
Rousseau (1995, p. 432.441.444.457) não defende que a mulher deva ser mantida na ignorância, presa aos
conhecimentos que dizem respeito tão unicamente aos trabalhos domésticos! O próprio autor condena tal
perspectiva que no fundo faria da mulher uma criada, não uma companheira.
50
4.2.2 Despertar da paixão e propensão á virtude
Após apresentar o perfil de Sofia, de acordo com o que é reto e belo no sexo
feminino (ROUSSEAU, 1995, p. 471-48), Rousseau dá início agora a uma narrativa
romanesca que começará com o desejo de amor de Sofia (1995, p. 483-487), seguido do
encontro e convívio dos dois jovens namorados (1995, p. 495-542) e das viagens de Emílio
para conhecer outras sociedades e suas organizações (1995, p. 543-574) e, por fim, sua
decisão final do local que ele julgou mais adequado para viver, segundo a educação que
recebeu e segundo seu projeto de vida de se unir a Sofia (1995, p. 574). Num primeiro
momento os leitores questionariam o autor por tal estilo literário a essa altura da sua
exposição, contudo, considerando que em muitos casos o acompanhamento afetivo dos jovens
é negligenciado, Rousseau mesmo responde que
Dão-nos, nos tratados de educação, grandes digressões inúteis e pedantes sobre os
químéricos deveres das crianças; e não nos dizem nada da parte mais importante e
mais difícil de toda a educação, a saber, a crise de passagem da infância à condição
de homem. [...] Uma outra consideração, que reforça a primeira, é que não se trata
aqui de um jovem entregue desde a infância ao medo, à ambição, à inveja, ao
orgulho e a todas as paixões que servem de instrumentos às educações comuns;
trata-se de um jovem de quem se tem aqui, não somente o primeiro amor, mas
também a primeira paixão; e desta paixão, a única talvez que sentirá vivamente em
toda a sua vida, depende a última forma que deverá adquirir seu caráter. Suas
maneiras de pensar, seus sentimentos, seus gostos, fixados por uma paixão durável,
vão adquirir uma consistência que não lhes permitirá mais alterações. (1995, p. 499-
500).
A narrativa da paixão entre Emílio e Sofia, abordada por Rousseau, no fundo, trata-
se de uma exposição que leva em consideração as condições apropriadas do equilíbrio
passional, antes de se entregarem aos impulsos do amor natural (o amor de si), próprio do ser
humano constituído pelo Autor das coisas e orientado pela Natureza. Nicholas Dent (1996, p.
124) aponta, inclusive, que as orientações do preceptor de Emílio para que ele retenha sua
integridade moral e pessoal, demonstra como tal esforço é condição racional e sensata, para
que ele mereça e conserve o amor de Sofia.
A partir desse detalhe, fica mais evidente o papel importante do preceptor
(ROUSSEAU, 1995, p. 520), mais como amigo do que instrutor, que ouve, orienta e chama a
atenção para determinadas ações que, por força do arrebatamento da paixão, não conviriam na
relação entre pessoas de sexos diferentes dentro do corpo social, como, por exemplo, a
petulância, o prazer orgulhoso da posse obtido a partir do rendimento do outro, o
51
temperamento imperioso que necessita de refreios, o ciúme, etc. (ROUSSEAU, 1995, p. 508-
510.513.514-515.517-518). Contudo, essa orientação pedagógica não implica em fazer
represálias constantes ou censuras, pois ele sabe que determinados prazeres, sendo puros
(quando não movidos pelo amor próprio) e próprios da idade, não devem ser oprimidos, mas
devidamente equilibrados42
, de um modo que a paixão não seja um entorpecimento capaz de
tirar Emílio de seus afazeres e da solicitude que gratuitamente tem para com os mais
necessitados. (ROUSSEAU, 1995, p. 502-504.511-512.522.534-535).
Aos poucos, nota-se que no interior da estória de amor entre Emílio e Sofia as
virtudes sociais e os valores relativos ao compromisso estabelecido vão se mostrando como
uma ponte para a exposição de Rousseau mais diretamente relacionada à vida social.
(ROUSSEAU, 1995, p. 524-528.531-532). A própria fala de Emílio, após contar o episódio
do socorro prestado a um casal de camponeses que lhe desviara do caminho o qual lhe levaria
a se encontrar com sua amada, demonstra bem isso: “Sofia, sois o árbitro de minha sorte, bem
o sabeis. Podeis fazer-me morrer de dor; mas não espereis fazer-me esquecer os direitos da
humanidade: eles me são mais sagrados do que os vossos, nunca renunciaria a eles por vós”.
(ROUSSEAU, 1995, p. 531).
Com efeito, o amor compaixão (piedade) começa a se tornar mais latente na vida
desse jovem casal, ambos educados para amar o gênero humano (ROUSSEAU, 1995, p. 532).
Rousseau mostra a partir daqui que o exercício da virtude provém de uma dose de esforço e
de vontade para agir bem, dado que, pelo fato do homem ser, naturalmente, um ser propenso
ao amor, e movido por ele, cabe à razão irromper a embriaguez dos desejos que não se
coadunam com os deveres de homem, efetivando assim, uma ação livre por excelência. Por
esse motivo, o preceptor de Emílio lhe faz um longo e apurado sermão, a fim de que o jovem
não tire conclusões precipitadas na vida, por mais deleitoso que seja seu namoro com Sofia e
a vida tranquila e simples que tem vivido há tempos (ROUSSEAU, 1995, p. 535-543).
42
Esta orientação do preceptor de Emílio é a sua mais significativa orientação no campo das paixões: "Assim,
sujeito a tuas paixões desregradas, como vais sofrer! Sempre privações, sempre perdas, sempre alarmas; não
gozarás sequer do que te será deixado. O temor de tudo perder, impedir-te-á de possuir o que quer que seja. Por
teres querido seguir somente tuas paixões, nunca as poderás satisfazer. Buscarás sempre o repouso, ele fugirá
sempre de ti, tu serás miserável, e te tornarás mau. E como poderás não o ser, não tendo outra lei senão a de teus
desejos? Se não podes suportar privações involuntárias, como poderás impor a ti mesmo outras voluntariamente?
Como saberás sacrificar a inclinação ao dever e resistir a teu coração para ouvires a razão?” (ROUSSEAU, 1995,
p. 535).
52
4.2.3 Conhecimento político e relações sociais
O encerramento do processo formativo de Emílio consistirá em conhecer como
funcionam os mecanismos de uma organização social. A princípio, parece contraditório que o
defensor da bondade natural e crítico da sociedade, cujas formas de associação, muitas vezes,
são iníquas e alienantes, queira que seu aluno aprenda sobre as organizações humanas.
Entretanto, há de se recordar, que, segundo o próprio autor, “Emílio não é uma espécie de
selvagem a ser largado no deserto, [mas] é um selvagem feito para viver na cidade [de modo
que], é preciso que aí saiba encontrar o de que necessita, tirar proveito de seus habitantes e
viver, senão como eles, com eles pelo menos (ROUSSEAU, 1995, p. 227). Em outras
palavras, sendo homem, nascido numa determinada sociedade seja ela qual for (justa ou
injusta), e educado de maneira que sua vontade seja submetida à lei natural da razão, onde
quer que ele vá, sua vontade haverá de ser reta (ROUSSEAU, 1995, p. 572), como ocorre com
a vontade geral43
nas sociedade legítimas. Roque Spencer M. de Barros trabalha esse dado
mostrando o paralelo entre os esquemas rousseauniano e platônico da ética, entendida como
suporte da pedagogia e da política:
Dessa maneira, mesmo que não exista sociedade justa, em parte alguma, seus
princípios poderão existir sempre no coração do homem justo, imagem em miniatura
da coletividade moral. Salta aos olhos a semelhança entre o esquema rousseauniano
e o platônico. Em ambos, a ética é o suporte da pedagogia e da política – e estas não
são pensadas senão como instrumentos da realização daquela. Mas não é só: em
Platão, como em Rousseau, a república perfeita pode realizar-se no coração do
homem justo, independentemente de sua “existência política”. No final do Livro IX
da República, Platão escreve: “talvez haja um modelo no céu para aquele que quiser
contemplá-lo e regular de acordo com ele o governo de sua alma. De resto, pouco
importa que esta cidade exista ou deva existir um dia: é apenas às suas leis, e às de
nenhuma outra, que o sábio subordinará sua conduta” (592b). E Rousseau por sua
vez, numa passagem que já citamos, afirma que “a liberdade não está em nenhuma
forma livre de governo, mas no coração do homem livre” [1995, p. 571]. Por mais
que, em Rousseau e em Platão, a compreensão do problema ético esteja vinculada à
compreensão do problema político, em ambos a moralidade afirma sua autonomia
em face do vício e da ilegitimidade instalados nos governos reais das sociedades
humanas. Mas, em ambos também, o desejo de encontrar a organização política
43
A noção de vontade geral no pensamento de Rousseau é o centro de toda a sua filosofia política. Como bem
apresenta a especialista Elaine Camunha, o autor do Contrato Social defende que a vontade geral é o único meio
capaz de se desempenhar com justiça o resguardo do bem comum de todos os membros de uma nação. O
soberano, que na linguagem de Rousseau é o corpo constituído de membros adultos do Estado, legisla à luz de
um consenso verdadeiramente estabelecido entre todos os membros constituintes da nação. A vontade particular,
que é limitada, em se tratando da existência de outras pessoas (que por sua vez também possuem vontades
particulares) se abre à vontade geral, cuja abrangência está para o bem comum. A promulgação de uma lei
reguladora é, pois, o resultado da união (pacto) dos participantes da autoridade soberana (os cidadãos) ao
declararem uma vontade geral. (2013, p.52-58).
53
justa não é nunca abandonado ou relegado a segundo plano: do mesmo modo que
exige uma pedagogia, o ideal moral exige também uma política. (1989, p. 78-79).
Com base nos dados acima, somados ao da complementaridade dos sexos,
apresentado no início desse capítulo, e ao final do sermão do preceptor o qual precede a
narrativa sobre as viagens de Emílio, há de se considerar que a união com Sofia, muito
desejada pelo jovem rapaz, trará consigo implicações mais amplas que as responsabilidades
comuns de um pai de família, pois tornar-se chefe de família é tornar-se, automaticamente,
membro do Estado, um co-responsável na ordem civil. (ROUSSEAU, 1995, p. 540.573-574).
Por isso, as viagens de Emílio são necessárias para que ele, tomando contato com as
responsabilidades civis, apreenda as noções de pátria e de cidadania, de lealdade e
honestidade na aquisição e administração dos bens, assuntos sem os quais lhe seria
desconhecido o lugar que ocupa na ordem civil. Eis, pois, que Emílio e seu preceptor partem
em viagem a fim de retornar dentro de dois anos, dando início ao seu estudo sobre as relações
civis (ROUSSEAU, 1995, p. 549-574).
Em meio a essa breve narrativa, Rousseau (1995, p. 543.548) faz uma série de
críticas. A primeira delas visa à escolha de livros como instrumento desse tipo de
conhecimento, cujas informações podem muitas vezes gerar preconceitos e, pior, difundir
informações sem o menor critério crítico-analítico, pois muitas vezes, o indivíduo nem
mesmo se digna sair de onde está, e contenta-se com a opinião alheia. Além disso, o autor
insiste que o que vale não é conhecer centenas de lugares e falar com todos os seus cidadãos,
mas, que é preciso saber viajar, o que implica ter olhos que se voltem para o objeto da
empreitada, com interesse ao que é útil, não às frivolidades, de modo que o peregrino tire
lições úteis, e, ao regressar, tanto contribua com o seu próprio país, como também ajude a si
mesmo na escolha de um lugar para viver melhor e mais comodamente. (ROUSSEAU, 1995,
p. 545.547). Emílio deseja uma vida simples, num pequeno campo onde possa viver de seu
ofício. Seu preceptor, então, recomenda que ele, se estabeleça num lugar apropriado na
Europa com sua família, longe dos males que um grande centro urbano possa oferecer a um
jovem que está construindo a vida, ainda que muitas instruções do preceptor dar-se-ão na
observação em estados maiores, mais desenvolvidos. (ROUSSEAU, 1995, p. 553).
Mas em que consistiria o estudo de Emílio nesse campo? É interessante que o autor
apresenta de modo conciso, todo o conteúdo de sua filosofia política numa espécie de
planejamento pedagógico para Emílio, o qual abordará questões claras, todas tiradas da
natureza das coisas, como: as associações e uso da autoridade, a liberdade civil, a liberdade
natural e a escravidão, o contrato social e suas implicações (direitos e deveres), as formas de
54
governo, etc. (ROUSSEAU, 1995, p. 553-567). Por fim, as últimas instruções do mestre são
feitas na presença de Emílio e Sofia, recém casados, assumindo a forma de um alerta quanto
ao casamento, que na prática, é apresentado sob a forma de um pacto entre os dois sexos. O
preceptor insiste para que a volúpia seja vivida com comedimento para não se criar uma ideia
de posse entre os cônjuges, nem motivo para que sejam infiéis ao compromisso de amor
assumido com o coração. (ROUSSEAU, 1995, p. 576-581). No desfecho da obra, o preceptor
reconhece que a educação de Emílio teve êxito: ele é homem, capaz de viver seu
compromisso matrimonial, e é também cidadão, capaz de desempenhar seus deveres de
cidadania, caso lhe sejam solicitados (SIMPSON, 2007, p. 180).
55
5 CONCLUSÃO
No fim das contas, o que se pode colher desse grande tratado sobre a formação do
homem idealizada por Rousseau? A explanação de Rousseau no Livro I, no fundo, já se
apresenta como uma analogia da vida social: a sociedade, fruto da construção humana, gera
uma espécie de atadura que impede o “desenrolar” da vida humana e do uso de sua liberdade
natural. A partir da noção de perfectibilidade introduzida por Rousseau, a qual se defronta
com a ideia de pecado original, o homem, é considerado, naturalmente, bom, de modo que
todo tipo de pacto ou convenção ilegítima (aquela que fomenta a submissão diante de outro
homem) não passam de estruturas corruptíveis e alienantes, as quais impedem o indivíduo de
aperfeiçoar-se, dentro do curso que a própria natureza lhe prescreveu. Ademais, o caminho
ascensional percorrido por Rousseau na educação de Emílio visou, acima de tudo, torná-lo
capaz de viver na ordem civil, resguardando sua individualidade e sua inocência.
Como bem apresenta Rousseau, o homem não é perfeito (só o Criador o é), mas
perfectível, ou seja, capaz de aperfeiçoar-se. Essa potencialidade à “perfeição” pode ser
entendida numa espécie de configuração ontológica constitutiva da espécie humana, a qual foi
estabelecida por Deus e ratificada por Ele na Natureza. A origem do mal moral para
Rousseau, então, seria fruto da infeliz junção da fragilidade humana (considerando que o
homem é um ser que possui paixões e certos limites físicos) e da liberdade (suscetível de
equívocos no momento da escolha). Uma sociedade individualista, inflada de imoderações
não se apresentaria como ambiente propício a uma criança que precisa ouvir a voz do Criador
de todas as coisas que a chama, por meio da Natureza, ao amor de si e à compaixão pelo seu
semelhante. Por esse motivo é que Rousseau, nas vezes do preceptor Jean-Jacques, propicia
um ambiente e quadro pedagógicos ao seu aluno que procuram zelar para resguardar sua
bondade natural dos maus exemplos e equilibrar suas paixões nascentes.
Esse itinerário apresentado pelo autor mostra como o processo pedagógico elaborado
pelo preceptor de Emílio foi-lhe útil para garantir uma autonomia tal capaz de fazê-lo olhar a
realidade a sua volta com o olhar de quem estima a vida, de quem vê nela, apesar dos erros
humanos causados pelo amor próprio, uma razão de viver, em conformidade com seu ser
homem. Consequentemente, a felicidade se apresenta aqui não como realização de desejos,
mas como cumprimento de um dever inato no homem de fazer o bem e torná-lo presente em
todos os âmbitos de sua vida, conscientemente (DENT, 1996, p. 133-134). Belas palavras de
Emílio, já adulto, denotam isso: “que me importa minha condição na terra? Que me importa
56
onde esteja? Onde quer que haja homens estou com meus irmãos; onde quer que não os haja,
estou em minha casa. (ROUSSEAU, 1995, p. 571)
Como foi possível notar, a noção rousseauniana de homem em muito aparece na sua
obra prima Emílio, dado esse que orienta o leitor para que identifique de modo mais preciso,
como e porquê o autor defende a bondade natural. Enquanto o Segundo Discurso apresenta o
grande pano de fundo da gênese da corrupção humana e, ao mesmo tempo traça o perfil
antropológico do homem em geral, no Emílio o pensador genebrino mostra os detalhes
relativos às paixões naturais e às faculdades inatas do ser humano à luz da história de vida de
um indivíduo em especial: Emílio, o “modelo” de alguém educado à luz da Lei da Natureza.
Como consequência de tudo isso, Rousseau acabou legando à posteridade não apenas
teorias sobre o ser humano, mas amparado pela sua invejável erudição e apurada observação
dos fatos da vida prática, ele foi o grande descobridor da infância e da psicologia infanto-
juvenil. Como bem lembra Bigheto (2013, p. 4), Rousseau procurou mostrar no seu grande
tratado que a infância não é mero conceito construído historicamente, mas uma categoria
existencial digna de ser respeitada e considerada dentro do processo educacional.
57
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