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FACULDADE DE SÃO BENTO BACHARELADO EM TEOLOGIA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO APARECIDA: UM SINAL DE MARIA NA PERSPECTIVA DO MISTÉRIO DA IGREJA Anderson Adevaldo dos Santos São Paulo 2017

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FACULDADE DE SÃO BENTO

BACHARELADO EM TEOLOGIA

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO APARECIDA: UM SINAL

DE MARIA NA PERSPECTIVA DO MISTÉRIO DA IGREJA

Anderson Adevaldo dos Santos

São Paulo

2017

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FACULDADE DE SÃO BENTO

BACHARELADO EM TEOLOGIA

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO APARECIDA: UM SINAL

DE MARIA NA PERSPECTIVA DO MISTÉRIO DA IGREJA

Monografia apresentada como exigência para

obtenção do título de Bacharel em Teologia.

Orientador: Prof. Dr. Pe. José Eduardo de

Oliveira e Silva.

São Paulo

2017

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Anderson Adevaldo dos Santos

Nossa Senhora da Conceição Aparecida:

um sinal de Maria na perspectiva do mistério da Igreja

Monografia apresentada ao Curso de Bacharelado em Teologia da

Faculdade de São Bento do Mosteiro de São Bento de São Paulo,

como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em

Teologia.

Orientador: Prof. Dr. Pe. José Eduardo de Oliveira e Silva.

Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em 23/11/2017, pela banca

examinadora:

_________________________________________________________________________

Prof. Dr. Pe. José Eduardo de Oliveira e Silva

_________________________________________________________________________

Prof. Dr. Magno José Vilela

_________________________________________________________________________

Prof. João Luiz Palata Viola

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Dedico este trabalho a todos os devotos de

Nossa Senhora da Conceição Aparecida, que

nos ensinam a amar a Bem-Aventurada

Virgem Maria, e a todos os que se dedicam a

refletir e ensinar o significado da sua imagem

trigueira.

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Minha singela homenagem à Virgem Maria,

Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Mãe,

Rainha e Padroeira do Brasil, pelo transcurso

do Ano Jubilar comemorativo aos 300 anos do

encontro da sua imagem nas águas do Rio

Paraíba.

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AGRADECIMENTOS

A Deus que, “em Aparecida, ofereceu ao povo brasileiro a sua própria Mãe” (Papa Francisco).

A Nossa Senhora que na sua querida imagem de Aparecida inspirou e conduziu esta reflexão.

A Ordem dos Servos de Maria que, com o olhar fixo Nela, me ensina seguir a Cristo.

Aos professores da Faculdade de São Bento que, com disposição mariana, me acompanharam

neste trabalho.

À minha família de pescadores que forjou a minha devoção mariana.

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Há algo de perene para aprender sobre Deus e sobre a Igreja, em Aparecida; um

ensinamento, que nem a Igreja no Brasil nem o próprio Brasil devem esquecer.

Papa Francisco

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RESUMO

Por ocasião Ano Mariano que a Igreja do Brasil proclamou, para celebrar o Jubileu dos 300

anos do encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, o presente trabalho

se propõe a apresentar uma mensagem eclesiológica a partir do seu contexto histórico de

origem e de sua imagem que é um sinal de Maria na perspectiva do mistério da Igreja. Tal

reflexão leva em conta o contexto do Brasil colonial do século XVIII, a devoção mariana no

país, a hermenêutica bíblica de Apocalipse 12,1 e o capítulo VIII da Constituição Dogmática

Lumen gentium sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, no mistério de Cristo e

da Igreja. O principal objetivo é oferecer um sentido teológico à imagem de Nossa Senhora da

Conceição Aparecida, a fim de não restringi-la apenas a um evento histórico ou a um fator

devocional, mas compreendê-la na dimensão mariana da Igreja, para a qual a Virgem Maria é

membro, mãe e modelo. No encontro com o episcopado brasileiro, durante a Jornada Mundial

da Juventude de 2013, o Papa Francisco apresentou no seu discurso aos bispos, a imagem de

“Aparecida” e a “pesca milagrosa” como chave de leitura para a missão da Igreja segundo a

linguagem do Mistério. A partir deste texto, desenvolveu-se esta pesquisa que, empregando o

método de análise histórica, a hermenêutica exegética e patrística e alguns pronunciamentos

do magistério pontifício, pretende “restaurar” a imagem de Nossa Senhora da Conceição

Aparecida na perspectiva do mistério, da vida e da missão da Igreja.

Palavras chaves: Aparecida. Maria. Igreja. Sinal. Mistério.

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ABSTRACT

On the occasion of the Marian Year, the Church of Brazil proclaimed in order to celebrate the

300th anniversary of the image of Our Lady of Immaculate Conception Aparecida, the present

work proposes to present an ecclesiological message based on its historical context of origin

and of her image which is a sign of Mary in the perspective of the Church‟s mystery. This

refletion considers the context of colonial Brazil in the eighteeth century, Marian devotion in

the country, the biblical hermeneutics of the Dogmatic Constitution Lumen gentium about the

Blessed Virgin Mary, Mother of God, in the Christ and Church mystery. The main objective

is to offer a theological sense to the image of Our Lady of the Conception Aparecida, in order

not to restrict it only to a historical event or a devotional factor, but to understand it in the

Marian dimension of the Church, to which the Virgin Mary is a member, mother and model.

In his address to the bishops, during the World Youth Day of 2013, Pope Francis presented

the image “Aparecida” and “miracolous fishing” as a key to the Church‟s mission in the

language of the Mystery. From this text, this research was developed using the method of

historical analysis, the exegetical and patristic hermeneutics and some pronouncements of the

pontifical magisterium, intends to “restore” the imagem of Our Lady of the Conception

Aparecida in the perspective of the mystery, life and Church‟s mission.

Key words: Aparecida. Maria. Sign. Mystery.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 15

1. ASPECTOS HISTÓRICOS DO ENCONTRO DA IMAGEM DE APARECIDA ........ 19

1.1. O encontro histórico da imagem de Aparecida ................................................................. 19

1.1.1. A origem da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida ................................ 19

1.1.1.1. Contexto histórico: o ouro, a vila e o conde ................................................................ 19

1.1.1.1.1. Descoberta, corrida e disputa do ouro ..................................................................... 19

1.1.1.1.2. A Vila de Guaratinguetá: caminho de passagem ..................................................... 21

1.1.1.1.3. O “Conde” de Assumar ............................................................................................ 22

1.1.1.2. O evento “Aparecida”: o rio, os pescadores e a imagem ............................................ 24

1.1.1.2.1. Data e situação histórica .......................................................................................... 24

1.1.1.2.2. Os protagonistas do fato .......................................................................................... 27

1.1.1.2.3. O “fato em si” ......................................................................................................... 28

1.1.1.3. Hipóteses sobre a origem da imagem de Aparecida .................................................... 29

1.1.2. A devoção, a imagem e o título de Nossa Senhora da Conceição Aparecida ................ 30

1.1.2.1. A devoção e a iconografia de Nossa Senhora no Brasil .............................................. 31

1.1.2.2. Da Imaculada “portuguesa” à Aparecida “brasileira” ................................................ 32

1.1.2.2.1. Características da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida ................ 33

1.1.2.3. “Aparecida”: um título de origem popular, devocional e bíblico ................................ 37

1.1.2.3.1. “Aparecida” é um título popular, “dado por todos” .............................................. 38

1.1.2.3.2. “Aparecida” é um título novo que propagou ainda mais a devoção mariana ........... 39

1.1.2.3.3. “Aparecida” é um título que possui conotação bíblica ........................................... 40

2. O SINAL DA MULHER "APARECIDA" ........................................................................ 41

2.1. A imagem de Aparecida a partir de Ap 12 ........................................................................ 41

2.1.1. O “sinal da mulher” ....................................................................................................... 41

2.1.1.1. Quem é esta mulher? ................................................................................................... 43

2.1.1.1.1. Apocalipse 12 e a Igreja ........................................................................................... 43

2.1.1.1.2. Apocalipse 12 e Maria .............................................................................................. 46

2.1.2. O “sinal de Maria” ........................................................................................................ 48

2.1.2.1. Mulher-ícone da Igreja Virgem da fé e Servidora da Palavra ..................................... 50

2.1.2.1.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal de fé na fragilidade .............................................. 52

2.1.2.2. Mulher-ícone da Igreja Mãe na fonte batismal............................................................ 53

2.1.2.2.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal do compromisso batismal .................................... 56

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2.1.2.3. Mulher-ícone da Igreja Esposa da esperança .............................................................. 58

2.1.2.3.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal de esperança em meio ao fracasso ...................... 60

3. A IMAGEM DE APARECIDA NO MISTÉRIO DA IGREJA...................................... 63

3.1. A mensagem de Aparecida sobre o mistério, a vida e missão da Igreja ........................... 63

3.1.1. “Corpo” e “Cabeça”: o mistério da Igreja e o primado petrino .................................. 63

3.1.1.1. “Corpo”: o mistério da unidade da Igreja .................................................................... 63

3.1.1.2. “Cabeça”: a natureza do primado petrino .................................................................... 66

3.1.1.3. “Primeiro o corpo, e depois a cabeça”: “Maria” e “Pedro” no barco da Igreja ........... 68

3.1.1.3.1. A pesca de “Tiberíades” e do “Paraíba” ................................................................ 70

3.1.1.3.2. “Pedro deve olhar para Maria” .............................................................................. 73

3.1.2. O “rosto”, as “mãos”, os “lábios” e a “lua”: a vida e a missão da Igreja ....................... 75

3.1.2.1. O diadema na testa: a comunhão trinitária .................................................................. 75

3.1.2.1.1. A Igreja como “ícone da Trindade” ........................................................................ 76

3.1.2.2. Olhos fechados e mãos postas: a oração...................................................................... 78

3.1.2.2.1. Os olhos .................................................................................................................... 81

3.1.2.2.2. As mãos ..................................................................................................................... 82

3.1.2.3. Os lábios sorridentes: o anúncio alegre do Evangelho ................................................ 85

3.1.2.3.1. A presença evangelizadora de Maria na América Latina ........................................ 87

3.1.2.3.2. “Mãe dos cristãos” e “Estrela da Evangelização”: causa de nossa alegria .......... 90

3.1.2.4. A lua debaixo dos pés: a Igreja como sinal de Cristo.................................................. 93

CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 96

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 101

ANEXOS ................................................................................................................................ 110

APÊNDICES .......................................................................................................................... 145

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Inmaculada Concepcíon de los Venerables, de Murillo (1678) ........................... p. 31

Figura 2: Nossa Conceição da Conceição de Vila Viçosa, Padroeira de Portugal ............... p. 31

Figura 3: Nossa Senhora da Conceição Aparecida antes do atentado de 1978 .................... p. 32

Figura 4: Protótipo da imagem de NSCA antes de ser “lançada” no rio .............................. p. 34

Figura 5: Entrada da Capela Batismal do Santuário Nacional de Aparecida ....................... p. 55

Figura 6: Ícone do encontro da imagem e da pesca milagrosa ............................................. p. 60

Figura 7: Papa Francisco diante do nicho de NSCA no Santuário Nacional ....................... p. 72

Figura 8: O Cardeal Damasceno oferece ao Santo Padre uma réplica de NSCA ................. p. 72

Figura 9: Portal da Virgem ou trono de NSCA na nave sul do Santuário Nacional ............ p. 92

Figura 10: Detalhe do trono de Nossa Senhora da Conceição Aparecida ............................ p. 93

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LISTA DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS

CDF – Congregação para a Doutrina da Fé

CELAM – Conselho Episcopal Latino-Americano

CIC – Catecismo da Igreja Católica

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

DAp – Documento de Aparecida

DCE – Deus caritas est

DP – Documento de Puebla

DS – Denzinger

EG – Evangelii Gaudium

GD – Gaudete in Domino

LF – Lumen Fidei

LG – Lumen gentium

MC – Marialis Cultus

NSCA – Nossa Senhora da Conceição Aparecida

RM – Redemptoris Mater

RVM – Rosarium Virginis Mariae

SC – Sacrosanctum Concilium

SM – Signum Magnum

SS – Spe Salvi

UR – Unitatis Redintegratio

UUS – Ut unum sint

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LISTA DE ANEXOS

Anexo 1: A devoção mariana no Brasil antes de “Aparecida” ........................................... p. 106

Anexo 2: Apocalipse 12 e a iconografia da Imaculada Conceição .................................... p. 116

Anexo 3: Breve Cronologia dos 300 anos de “Aparecida” ................................................ p. 123

Anexo 4: “Aparecida”: uma mariofania “fora dos padrões” .............................................. p. 129

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INTRODUÇÃO

O presente Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado Nossa Senhora da Conceição

Aparecida: um sinal de Maria na perspectiva do mistério da Igreja, inspirou-se,

primeiramente, no discurso do Santo Padre, o Papa Francisco, para o episcopado brasileiro, a

27 de julho de 2013, por ocasião da 28ª Jornada Mundial da Juventude. No discurso aos

bispos do Brasil, o Papa apresentou o contexto histórico do encontro, a “pesca milagrosa”, e a

própria imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida como “chave de leitura para a

missão da Igreja” segundo a linguagem do “mistério”. Disse o Papa que em Aparecida, “Há

algo de perene para aprender sobre Deus e sobre a Igreja”.

Esta reflexão teológica acerca da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida,

desenvolvida em chave de leitura histórica, bíblica e eclesial, reconhece seus limites diante da

complexidade do tema, a começar pela própria semântica do termo “imagem” (do latim

imago; do grego eidôlon) cuja riqueza e amplitude produziram equivocidades no decorrer dos

séculos. O próprio cristianismo é herdeiro da tradição judaica acerca da proibição da

confecção e culto de qualquer representação plástica (cf. Ex 20,3), especialmente justificável

dentro de um ambiente predominantemente pagão e idólatra, ainda que elas existam desde a

primitiva aliança de Deus com o povo de Israel (cf. Ex 25,18-22; Nm 21,9; etc.). Nos

ensinamentos de Jesus e na pregação apostólica até os três primeiros séculos, também não há

qualquer referência explícita ao uso de imagens, ainda que existissem algumas inscritas nas

catacumbas ou em objetos litúrgicos.

A hesitação acerca da imagem foi superada definitivamente e justificada

teologicamente apenas no II Concílio de Nicéia (787) que recomendou a fabricação e

exposição de ícones de Cristo, da Virgem Maria, dos anjos e dos santos, salientando que a

imagem é apenas objeto de veneração, sendo que “a honra que lhe é atribuída não pára na

matéria mas „remonta ao protótipo‟” (BOESPFLUG, 2004, p. 871). Segundo Boespflug,

a imagem tem sua justificação na medida em que confirma à sua maneira o que o

querigma anuncia, a saber a “encarnação real e não ilusória do Verbo de Deus”;

assim, o ícone (e no seu rasto, sob benefício de inventário, a imagem religiosa) pode

ser compreendido como uma segunda voz, apoiando sem suplantar a primeira voz

do querigma, a do testemunho em corpo próprio disposto a ir até ao martírio (2004,

p. 871).

Segundo os pressupostos básicos e fundamentais da teologia da imagem, é que

ousamos apresentar a imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, sobretudo, a

relação entre “matéria” e “protótipo”, “forma” e “conteúdo”, donde da “imagem” extrai-se

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uma “mensagem”, algo que pode parecer, à primeira vista, muito desconcertante, mas a

própria etimologia do termo faz eco a este sentido original e genuíno, revelando a sua

finalidade.

IMAGO = IMAGEM: palavra latina que significa “sombra, espectro, fantasma,

visão, retrato, cópia, imitação, parábola, lembrança, sinal. IN + AGER = no campo.

AGGER, ERIS = terra, campo de terra. AGGERARE = amontoar terra. IMAGEM =

monte de terra ou terra arada, marcada. Na sua origem etimológica, imagem dá idéia

de terra que traz algum conteúdo [grifo meu] (PASTRO, 2016, p. 45).

No mundo atual, “onde a imagem abunda, onde sua referência ao real se desfaz”, a

imagem sacra “corre o risco de se ver amputada da função que lhe atribuíam os Padres de

Nicéia II: testemunhar a realidade histórica e „não ilusória‟ da encarnação” (BOESPFLUG,

2004, p. 874). Por isso, quando compreendida a sua verdadeira finalidade, além de servir ao

culto dos fiéis ou à devoção privada, a imagem sacra torna-se um instrumento pedagógico

eficaz para a comunicação do Mistério, nem sempre compreensível aos sentidos. Contudo, o

Ocidente cristão carece de “uma formação cristã para o uso da imagem religiosa” e “a

teologia cristã ainda pouco se preocupou com o que, da imagem, é propriamente imagem”

(Ibid., 2004, p. 874).

Deste modo, o ensejo da celebração do encontro da imagem tricentenária de Aparecida

é uma oportunidade significativa para a reflexão sob uma nova miragem hermenêutica acerca

da natureza, da vida e da missão da Igreja, unindo como quem tece uma rede, diversos

elementos teológicos, ainda que, sem desmerecer, fique a dever uma palavra acerca do

diálogo ecumênico, muito embora não deixe de buscar uma fundamentação teológica comum

a toda tradição cristã anterior às históricas cisões e divergências, de modo que não vem a ser

um obstáculo, mas pode ocasionar uma eventual abertura para um ulterior aprofundamento a

respeito de questões tão problemáticas neste campo, tais como o uso de imagens, a devoção

mariana, os dogmas marianos, as aparições de Nossa Senhora, entre outros.

Na mensagem para o Ano Mariano, a Conferência Nacional dos Bispos (CNBB)

indicou três objetivos para este Ano Santo: celebrar, fazer memória e agradecer. E na

cerimônia de lançamento do ano mariano, a 21 de setembro de 2016 em Brasília, o presidente

da CNBB, Dom Sérgio da Rocha, acrescentou que este ano também serve para “reaprender

com Nossa Senhora a como seguir Jesus Cristo, como ser cristão hoje”.

Como complemento a estes objetivos, na Carta Encíclica Redemptoris Mater, o Papa

João Paulo II apresentou o duplo sentido do Ano Mariano de 1984, celebrado em toda a

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Igreja, que consistia em “rememorar” e “perspectivar” a pessoa e missão de Maria no mistério

de Cristo e da Igreja (cf. RM, n. 48).

Contudo, para viver plenamente estes trezentos anos, julgo necessário perscrutar o

sentido teológico do evento e da imagem de Aparecida, a fim de não restringi-lo apenas a uma

recordação histórica ou a uma devoção sentimental, mas a partir de uma nova miragem

contemplá-lo, compreendê-lo e assumi-lo segundo a dimensão mariana da Igreja, para a qual a

Virgem Maria é membro, mãe e modelo (cf. LG, n. 65).

O encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida é uma “história

sagrada” surgida em meio a uma “história profana” que aconteceu no conturbado século

XVIII, durante um período histórico conflituoso e tenso em termos antropológico e étnico,

social, eclesial, político e econômico em nosso país, na época, colônia de Portugal. Segundo o

cantor e compositor Antônio Cardoso, na “imagem da santa achada no rio” está a “a

lembrança daquele Brasil de pobres e negros, de um branco estrangeiro de um povo servil”.

Encontrada na curva de um rio brasileiro, a imagem de Nossa Senhora da Conceição, uma

devoção já bastante difundida, mas com um novo significado em Aparecida, “apareceu” de

modo misterioso na encruzilhada do Brasil colonial. “Deus aparece nos cruzamentos”

(FRANCISCO, S.S., Discurso (27.07.2013)), nos sinais simples das vicissitudes humanas e

históricas.

Nossa Senhora Aparecida, “uma imagem quebrada, uma Santa de barro, pequena e

frágil, sem nada de luxo” 1, é uma imagem de Nossa Senhora da Conceição com o acréscimo

da invocação e/ou título “Aparecida”, que está relacionada à circunstância histórica de como a

imagem foi encontrada pelos pescadores. Interessante é o modo como estes homens simples

interpretaram o fato, pois não disseram “pescamos (ou achamos/encontramos) uma imagem

de Nossa Senhora da Conceição”, mas repetiam: “Nossa Senhora da Conceição Aparecida”,

como se a própria Senhora tivesse tomado a iniciativa de “aparecer”, pois “Não foram os

pescadores que foram ao encontro da imagem da Virgem, mas foi ela que surgiu/apareceu ou

ainda se deixou encontrar nas águas e nas redes deles em dois momentos significativos [corpo

e cabeça].” (DA SILVA, 2014, p. 41), tornando-se para eles e para todos quantos veneram a

sua imagem tricentenária, um sinal do mistério de Deus que se revela na humildade e um

ícone da Igreja que, em Aparecida, deseja ser Servidora, Mãe e Esposa (cf. FRANCISCO,

S.S., Discurso (27.07.2013)).

1 Excerto da canção “A imagem da santa”, do canto e compositor Antônio Cardoso.

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O “sinal de Aparecida” contém uma mensagem evangélica, profética e eclesial

importantes para a nossa realidade, embora seja tão misteriosa e silenciosa. Ainda que

nenhuma novidade venha acrescentar ao que já fora revelado pela Escritura e pela Tradição e

ensinado pelo Magistério da Igreja, ele vem “rememorar” e “perspectivar” alguns elementos

fundamentais da nossa fé e vida cristã que, ao longo do tempo, correm o risco de ser

esquecidos e que precisam ser resgatados para o autêntico seguimento de Jesus Cristo e para o

discipulado e missão da Igreja. Noutras palavras, “Aparecida” é um apelo à conversão e uma

proposta para tempos de crise, assim como afirmou o Papa João Paulo II no Centenário de

Coroação de nossa Mãe, Rainha e Padroeira (1904-2004): “A história ensina que Maria é a

verdadeira salvaguarda da fé; em cada crise, a Igreja reúne-se à volta d'Ela”.

Considerada a abordagem histórica e devocional do evento “Aparecida”, vamos

contemplar a sua imagem e mensagem, conforme a eclesiologia “mariana” do Concílio

Vaticano II, numa dimensão que busca compreender algumas perspectivas do mistério, da

vida e da missão da Igreja, pois aquela imagem pequena e morena, quebrada e restaurada,

contém uma chave de leitura teológica para a Igreja e para cada fiel que, pela força do

Batismo, é chamado a ser sinal de Cristo no mundo.

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1. ASPECTOS HISTÓRICOS DO ENCONTRO DA IMAGEM DE APARECIDA

1.1. O encontro histórico da imagem de Aparecida

Na visita que fez ao Santuário Nacional de Aparecida, quando esteve no Brasil no ano

de 1980, o Papa João Paulo II apresentou as suas impressões acerca do encontro da imagem

de Nossa Senhora da Conceição, “carinhosamente chamada a „Aparecida‟” (1980, p. 148),

como uma narrativa simples e encantadora. E na simplicidade da sua história, quando a lemos

com “religiosa atenção”, percebemos que ali há um sinal do mistério de Deus a ser revelado...

1.1.1. A origem da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida

O encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida localiza-se no

ambiente histórico da colonização portuguesa, que esteve fortemente ligado a dois ciclos

econômicos importantes para o povoamento do imenso e ameaçado território brasileiro, entre

os séculos XVI e XVIII: a cana-de-açúcar e o ouro. No âmbito nacional aconteceu uma

verdadeira “corrida” do Nordeste para o Sudeste brasileiro, especialmente para a Capitania de

São Vicente, durada de 1534 a 1709, palco de violentos conflitos entre mestiços e emboabas.

No contexto de uma vila até então de pouca importância, mas que se tornaria rota

obrigatória para a passagem de um “conde”, surgiu algo muito antigo e ao mesmo tempo tão

novo, apesar de, no início ser um “fenômeno” discreto, principalmente no cenário nacional e

devocional. Assim como o ouro das jazidas mineiras, o maior tesouro da cultura e da devoção

nacional também foi descoberto na remota Capitania de São Paulo e das Minas de Ouro, ainda

que não fosse na peneira dos garimpeiros, mas na rede de três pobres pescadores: a imagem

de Nossa Senhora da Conceição, chamada pelo povo pelo nome de “Aparecida”.

1.1.1.1. Contexto histórico: o ouro, a vila e o conde

1.1.1.1.1. Descoberta, corrida e disputa do ouro

Com o declínio da produção açucareira na segunda metade do século XVII, o destino

econômico da Metrópole e, consequentemente da colônia, dependia dos metais preciosos,

principalmente o ouro, descobertos inicialmente na região de Minas Gerais pelos

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bandeirantes. A nova atividade econômica na colônia durante os séculos XVII e XVIII foi a

mineração (VICENTINO; DORIGO; 1997, p. 128).

A descoberta do ouro não atraiu apenas os bandeirantes, mas a todo o tipo de pessoas,

principalmente a população do planalto de Piratininga (os paulistas), a mão-de-obra escrava

do Nordeste, antes concentrada na produção do açúcar (ainda que não houvesse

desaparecido), os estrangeiros, principalmente portugueses. Esta variedade de pessoas com

um interesse comum gerou todo tipo de animosidade e conflitos, principalmente entre os

“descobridores do tesouro”, isto é, o povo nativo da região, e os forasteiros chamados

pejorativamente pelos nativos de emboabas. Estes personagens da nossa história

protagonizaram o que ficou conhecido como a “Guerra dos Emboabas” (1708-1709), um

momento marcado por ódio, rivalidades e disputas cuja principal tragédia foi um massacre de

aproximadamente trezentos paulistas. Mas com a criação da Capitania de São Paulo e Minas

de Ouro2, desmembrada da capitania do Rio de Janeiro, a disputa foi minimizada e o conflito

administrado com mais disciplina (VICENTINO; DORIGO, 1997, p. 146).

Apesar das discórdias provocadas pela “corrida do ouro”, a economia mineira

“constituiu, no século XVIII, um mercado de proporções superiores ao que havia

proporcionado a economia açucareira em sua etapa máxima de prosperidade.” (FURTADO,

1975, p. 77). Todavia, tanta prosperidade exigiu dos exploradores muita penúria,

especialmente por conta das dificuldades de abastecimento e de transporte em uma região

montanhosa e distante do litoral. O abastecimento local era praticamente inexistente,

dependendo do que era comercializado nas regiões vizinhas, que aproveitava para elevar o

preço dos alimentos e do serviço dos animais de carga. Segundo Celso Furtado, “a fome

sempre acompanhava a riqueza nas regiões do ouro.” (Ibid., 1975, p. 76), ainda mais porque

toda esta riqueza era na sua maior parte produto de exportação para a Europa. O pouco que

ficou no Brasil foi investido na produção cultural e artística, principalmente na arquitetura e

arte sacra barroca que revestiu de alto a baixo as paredes, tetos, colunas e altares de muitas

igrejas por todo o Brasil, especialmente na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo e, de

forma espetacular as igrejas mineiras.

2 Com a provisão régia de D. João V, datada de 23 de novembro de 1709, a Capitania de São Vicente fora

desmembrada da Capitania do Rio de Janeiro, tornando-se a Capitania de São Paulo e das Minas de Ouro. Com

uma área de aproximadamente 3.265.562 k², seu território abrangia o que hoje corresponde aos estados de São

Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Santa Catarina, Rio Grande do Sul até a Colônia do Sacramento (atual

território do Uruguai) (BARRETO DO AMARAL, 1980, p. 113). A principal razão desta separação foi para

melhorar a administração das Minas de Ouro tanto que, apesar da sede oficial da nova capitania estar em São

Paulo, por motivos fiscais e disciplinares, a sede administrativa foi instalada na localidade de Nossa Senhora do

Pilar de Vila Rica de Ouro Preto ou simplesmente “Vila Rica”, atual Ouro Preto – MG.

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1.1.1.1.2. A Vila de Guaratinguetá: caminho de passagem

No caminho entre a sede oficial (São Paulo) e a sede administrativa (Vila Rica) da

Capitania de São Vicente, estava o Vale do Paraíba3, trajeto por onde passava o ouro extraído

do subsolo brasileiro em sua rotineira viagem do interior para ser transportado, na quase

totalidade, até Portugal. À beira da estrada se encontrava a Vila de Guaratinguetá, cujo

apelativo, de origem tupi, significa “guará-branco” ou “garças brancas”, e estava localizada

numa privilegiada posição geográfica e economicamente estratégica entre São Paulo e as

Minas de Ouro, além de ser ponto de partida para o porto de Parati, no Rio de Janeiro, o que a

tornou um centro de convergência para os viajantes em busca de ouro e pedras preciosas.

Segundo Alvarez,

Qualquer tropa – assim se chamavam as caravanas que iam em cima de jumentos,

levando carroças – que levasse alguma carga valiosa, ou qualquer viajante que

tivesse algo importante a fazer no Brasil do século XVIII, acabava passando por

Guaratinguetá (2014, p. 10).

Como a maioria das vilas e póvoas da época colonial, o pequeno povoado nasceu

aproximadamente no ano de 1630 ao redor da rústica capela de palha dedicada a Santo

Antônio, com o nome de “Povoação Nova do Paraíba”. A partir do ano de 1636, “o povoado

de Guaratinguetá cresce com o desenvolvimento do trabalho de penetração e conquista do

solo” (AZEVEDO, 2000, p. 54), especialmente com a concessão das sesmarias, o que

possibilitou a ocupação e o cultivo da terra. Mas segundo alguns historiadores, sua efetiva

ocupação iniciou a partir de 1640 (BRUSTOLONI, 1998, p. 27). A 13 de junho de 1651, o

povoado é elevado à condição de vila com os requisitos para o funcionamento da vida civil e

religiosa, sendo dirigido por um capitão-mor, constituído de um pequeno Senado e Câmara e

com a presença de um pároco e de duas irmandades.

Mas a partir de 1685, a Vila começou a sofrer as transformações advindas da

descoberta de metais preciosos, pois

era a passagem obrigatória das caravanas de migrantes e das tropas que

transportavam ouro e mercadorias da região de Ouro Preto, em Minas Gerais, para o

porto de Parati, RJ [...] Nas últimas décadas do século dezessete, a Vila de

Guaratinguetá obteve o maior desenvolvimento e riqueza graças à corrida do ouro,

que fez dela um entreposto de mercadorias e escravos (BRUSTOLONI, 1998, p. 27-

28).

3 “As terras do Vale do Paraíba estão localizadas no eixo Rio de Janeiro – São Paulo, compreendidas entre os

primeiros trechos do Rio Paraíba do Sul e as encostas das Serras do Mar e da Mantiqueira” (FERNANDES;

COELHO, 2013, p. 11) e acompanha paralelamente o litoral norte do Estado de São Paulo. Na época da

mineração, foi um caminho natural entre as Minas e o mar e teve um importante papel no desenvolvimento

econômico de São Paulo.

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Apesar do próspero desenvolvimento, “a população que habita às margens do Rio

Paraíba encontra muitas dificuldades” (AZEVEDO, 2000, p. 55), entre as principais estava o

problema da alimentação. Assim como sofreu com a “corrida do ouro”, a população local não

demorou a sentir os efeitos da Guerra dos Emboabas (1708-1709). A economia ali praticada

era de subsistência, que consistia no sustento pessoal das famílias, sendo o excedente

destinado ao comércio à beira da estrada. Contudo, já não tinham mais para quem vender o

que plantavam, pois os tropeiros deixaram de fazer o trajeto por aquela rota, o que gerou um

lastro de miséria na região.

A alimentação do povo era restrita ao que comiam das suas plantações. O que também

agravou a situação foi o desaparecimento dos peixes do rio, provavelmente por causa do

impacto do garimpo de metais preciosos. A população que vivia às margens do Rio Paraíba4

sempre foi de pessoas pobres, de posição social pouco definida, seguramente mestiça de

origem portuguesa e indígena.

Enquanto que a situação política de São Paulo mantinha-se calma, na região das Minas

continuava tensa, pois o ciclo do ouro ainda não havia atingido o seu apogeu. Mas para aquela

população, era o fim do “sonho de ouro” e o começo de um longo período de recessão até

meados do século XVIII, a partir do qual teriam que se acostumar com a implantação da cana-

de-açúcar, dos engenhos e dos escravos na região do Vale. Pouco a pouco a policultura

familiar que consistia principalmente nas roças de milho, mandioca, arroz e feijão e na criação

de animais domésticos, transformou as sesmarias em pequenas e médias propriedades5, o que

ocasionou o aumento das populações ribeirinhas que viviam basicamente da pesca.

1.1.1.1.3. O “Conde” de Assumar

Por causas das tensões advindas da exploração do ouro, o governador da Capitania, D.

Braz Baltazar da Silveira, comandava São Paulo e as Minas da sede administrativa em Vila

Rica, a principal zona de conflitos, e residia em Ribeirão do Carmo (atual Mariana – MG).

Mas como estava prestes a concluir o seu quadriênio, D. João V nomeou a 22 de dezembro de

4 Palavra de origem indígena, “Para’iwa”, segundo os Tamoios que habitavam primitivamente a região, significa

“rio ruim/imprestável”, provavelmente porque não era um bom facilitador de peixes. Segundo o Dicionário

Aurélio da Língua Portuguesa, “paraíba” significa “trecho de rio que não pode ser navegado.” (1986, p. 1266). O

Rio Paraíba é formado pelo rio Paraitinga e pelo rio Paraibuna. Originando-se da Serra da Bocaina e da Serra do

Mar, respectivamente, os dois rios se encaminham para São Paulo com o nome de “Paraíba”. 5 “Desde 1710, segundo é mencionado em documentos, médias e pequenas propriedades começam a se irradiar

no Itaguaçu, Ponte Alta, Ribeirão do Sá, Pitas e Aroreira. Tudo isto se deve ao desenvolvimento da policultura

de natureza familiar.” (AZEVEDO, 2000, p. 56).

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1716 o novo governador e capitão geral, D. Pedro Miguel de Almeida e Portugal, “um moço

com menos de trinta anos de idade, muito religioso, muito disciplinado, de vez que era militar

de carreira” (MACHADO, 1976, p. 140), posteriormente conhecido como o Conde de

Assumar (1718), o terceiro que administrou a região até 4 de setembro de 1721.

O cronista do “Diário da Jornada”, um companheiro anônimo do governador, relatou

pormenorizadamente a trajetória de D. Pedro de Almeida na sua viagem histórica do Rio de

Janeiro a Minas Gerais, tendo obrigatoriamente no seu itinerário, a sede da Capitania, o Vale

do Paraíba e a Vila de Santo Antônio de Guaratinguetá.

No dia 17 de outubro de 1717, o Governador chegou a Guaratinguetá ao meio dia e foi

recepcionado festivamente com todas as honras. Durante o tempo que permaneceu na Vila, de

dezessete a trinta de outubro, D. Pedro Miguel aproveitou para organizar e pôr em ordem o

quadro da vida administrativa do lugar. Por isso proveu ofícios, confirmou patentes e outros

postos de governança. Mas sua principal atividade foi ordenar a prisão e castigar os

criminosos e rebeldes, o que lhe deu a fama de ser um homem cruel e sanguinário, por causa

de suas atitudes enérgicas para punir os subversivos e combater o banditismo dos aventureiros

nas Minas a fim de manter equilibrada e salvaguardada a ordem pública e os interesses

econômicos da Coroa Portuguesa.

O cronista do “Diário da Jornada” registrou que o povo da Vila era violento e

assassino, tendo contabilizado dezessete mortes no ano anterior à visita do Conde. Na opinião

de Luciano Ramos, “Para uma Vila com média de três mil habitantes, esse número era de fato

assustador.” (1992, p. 170). “O ambiente de instabilidade social refletia as lutas e rivalidades

da região mineradora, tornara-se reduto de criminosos e marginais” (BRUSTOLONI, 1998, p.

30) e, como a Vila de Guaratinguetá era “ponto do comércio de subsistência e da jornada de

pessoas que vinham do litoral e do Vale do Paraíba tentar a riqueza para além da Serra da

Mantiqueira, a insegurança e a violência trazidas pelos aventureiros estavam próximas da vida

local.” (CORDEIRO; RANGEL; LUÍS, 2008, p. 12). Consta ainda nas Ânuas dos Padres

Jesuítas de 1748 e 1749, que lá pregaram as Santas Missões: “Esse povoado se consumia em

acirradas inimizades...”.

Estamos diante da gênese do encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição:

o contexto econômico da “corrida do ouro” que, apesar de toda riqueza e

prosperidade que proporcionou a alguns poucos, provocou disputas violentas e

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sangrentas entre nativos e estrangeiros e também, paradoxalmente, fome e misérias

nas regiões auríferas das Minas e nas localidades próximas da “rota do ouro”;

o contexto social da formação do povo brasileiro, desde o princípio aberto à

pluralidade e à mestiçagem, ainda que não tenham faltado disputas entre os povos aqui

nascidos e chegados, principalmente indígenas, colonizadores portugueses e seus

descendentes e negros traficados da costa africana;

o contexto antropológico e social da escravidão negra, que deflagrava uma situação

desumana e tragicamente social desde os meados do século XVI até praticamente o

final do século XVIII, sendo o Brasil um dos últimos países a abolir a escravatura,

somente no século seguinte;

o contexto religioso de um catolicismo popular e devocional do propagado culto

mariano no Brasil, desde a chegada dos colonizadores, sob os mais variados títulos e

invocações, entre os quais se destacava a Padroeira do Império português e de suas

possessões, Nossa Senhora da Conceição;

o contexto local da passagem de um Conde truculento na Vila de Guaratinguetá que,

por meio da repressão, veio a pacificar os conflitos e a reestabelecer a ordem nas

zonas mineradoras para garantir os interesses econômicos da Coroa;

É neste contexto do Brasil Colônia do início do século XVIII que surge, então, das

águas de um rio, na rede de três pescadores, uma imagem...

1.1.1.2. O evento “Aparecida”: o rio, os pescadores e a imagem

O principal documento que narra o encontro da imagem de Nossa Senhora da

Conceição, que está registrado no I Livro Tombo da Paróquia de Santo Antônio de

Guaratinguetá, 1757-18736, folhas 98v e 99, diz o seguinte:

6 O Pe. João de Morais e Aguiar, pároco da Vila, redigiu o I Livro Tombo da Paróquia de Santo Antônio de

Guaratinguetá. O termo de abertura do livro dizia que o primeiro conteúdo a ser redigido deveria ser um

histórico da Igreja Matriz e das capelas adjacentes. Como desde 1743 já havia sido aprovado o culto e a

construção de uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, é na seção que conta o histórico

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Notícia da Aparição da Imagem da Senhora

No ano de 1719, pouco mais ou menos, passando por esta Vila para as Minas,

o Governador delas e de São Paulo, o Conde de Assumar, Dom Pedro de Almeida e

Portugal, foram notificados pela Câmara os pescadores para apresentarem todo o

peixe que pudessem haver para o dito Governador.

Entre muitos foram a pescar Domingos Martins Garcia, João Alves e Filipe

Pedroso com suas canoas. E principiando a lançar suas redes no Porto de José

Corrêa Leite, continuaram até o Porto de Itaguassu, distância bastante, sem tirar

peixe algum. E lançando neste porto, João Alves a sua rede de rasto, tirou o corpo da

Senhora, sem cabeça; lançando mais abaixo outra vez a rede tirou a cabeça da

mesma Senhora, não se sabendo nunca quem ali a lançasse. Guardou o inventor esta

imagem em um tal ou qual pano, e continuando a pescaria, não tendo até então

tomado peixe algum, dali por diante foi tão copiosa a pescaria em poucos lanços,

que receoso, e os companheiros de naufragarem pelo muito peixe que tinham nas

canoas, se retiraram a suas vivendas, admirados deste sucesso.

Filipe Pedroso conservou esta Imagem seis anos pouco mais ou menos em

sua casa junto a Lourenço de Sá; e passando para a Ponte Alta, ali a conservou em

sua casa nove anos pouco mais ou menos. Daqui se passou a morar em Itaguassu,

onde deu a imagem a seu filho Atanásio Pedroso, o qual lhe fez um oratório tal e

qual, e, em um altar de paus, colocou a Senhora, onde todos os sábados se ajuntava a

vizinhança a cantar o terço e mais devoções. Em uma dessas ocasiões se apagaram

duas luzes de cera da terra repentinamente, que alumiavam a Senhora, estando a

noite serena, e querendo logo Silvana da Rocha acender as luzes apagadas também

se viram logo de repente acesas sem intervir diligência alguma: foi este o primeiro

prodígio, e depois, em outra semelhante ocasião, viram muitos tremores no nicho e

no altar da Senhora, que parecia cair a Senhora, e as luzes tremulas, estando a noite

serena.

Em outra semelhante ocasião, em uma sexta-feira para o sábado (o que

sucedeu várias vezes), juntando-se algumas pessoas para cantarem o terço, estando a

Senhora em poder da Mãe Silvana da Rocha, guardada em uma caixa ou baú velho,

ouviram dentro da caixa muito estrondo, muitas pessoas das quais se foi dilatando a

fama até que, patenteando-se muitos prodígios que a Senhora fazia, foi crescendo a

fé e dilatando-se a notícia, e, chegando ao R. Vigário José Alves Vilella, este e

outros devotos lhe edificaram uma capelinha e depois, demolida esta, edificaram no

lugar em que hoje está com grandeza e fervor dos devotos, com cujas esmolas tem

chegado ao estado em que de presente está. Os prodígios desta Imagem foram

autenticados por testemunhas que se acham no Sumário sem Sentença, e ainda

continua a Senhora com seus prodígios, acudindo à sua Santa Casa romeiros de

partes muitos distantes a gratificar os benefícios recebidos desta Senhora (apud

BRUSTOLONI, 1998, p. 44-45).

O primeiro relato escrito sobre este acontecimento é um texto de autoria do pároco

anterior, o Pe. José Alves Villela, o qual foi transcrito pelo Pe. João de Morais Aguiar no

mencionado Livro Tombo. No singelo relato, mas muito bem construído e articulado, é

ressaltado o ano do encontro da imagem, a presença do Governador na Vila de Guaratinguetá,

o edital da Câmara para os pescadores, entre os quais se destacam o nome de três. Em

seguida, narra-se o fato miraculoso da pesca, primeiro a imagem dividida em corpo e cabeça e

depois a abundância de peixes; o início do culto na casa de um dos pescadores; a construção

das capelas que consta a origem e o início do culto mariano naquela localidade a partir do encontro de uma

imagem nas águas do Paraíba.

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da primeira capela/oratório, do culto e dos milagres que ali se sucederam; o movimento de

peregrinos e a igreja que fora construída com a aprovação diocesana do culto.

1.1.1.2.1. Data e situação histórica

Quanto à data do encontro da imagem, não há nada nem algum documento que diga

com exatidão o dia e o mês que este fato aconteceu e, até o ano mencionado no Livro Tombo

da Paróquia está errado. O texto escrito pelo Pe. Vilella diz: “No ano de 1719, pouco mais ou

menos, passando por esta Vila para as Minas, o Governador delas e de São Paulo, o Conde

de Assumar, Dom Pedro de Almeida e Portugal...”. Como o encontro da imagem está

associado diretamente à pesca e esta, consequentemente, ao banquete que a Câmara gostaria

de oferecer ao Governador que estava de passagem pela Vila, conclui-se que o ano “1719” foi

escrito equivocadamente, pois o documento oficial de D. Pedro de Almeida Portugal como

governador da Capitania, assim como o seu “Diário da Jornada”, certifica que o ano em que

tomou posse e passou por Guaratinguetá durante sua histórica viagem de São Paulo para as

Minas é, de fato, o ano de 1717.

A partir do “Diário da Jornada” é possível delimitar o período em que aconteceu a

pesca que deu origem ao culto de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Tendo presente

que o governador chegou à Vila no dia 17 e ali permaneceu até 30 de outubro, enquanto

aguardava a chegada de sua bagagem que vinha do Porto de Parati – RJ, a primeira hipótese é

que a imagem foi encontrada neste período. Entretanto, se eram destinados a um banquete de

recepção para D. Pedro de Almeida e sua comitiva, tal como diz o Livro Tombo – “foram

notificados pela Câmara os pescadores para apresentarem todo o peixe que pudessem haver

para o dito Governador” – provavelmente a pescaria ocorreu antes desta data, talvez de sexta

para sábado, de 15 para 16 de outubro, sendo esta a hipótese mais razoável.

Mas por que peixes para o governador e não outra coisa? A chegada do Governador

estava prevista para a sexta-feira, dia de abstinência de carne. Mas segundo o diário da

viagem, por conta de uma indisposição de saúde e também por causa das chuvas, a jornada foi

adiada para o dia seguinte, o que obrigou o Governador a se hospedar num sítio distante 13

km de Guaratinguetá. Por isso, D. Pedro prosseguiu viagem apenas no domingo (17),

chegando ao meio-dia e sendo recepcionado provavelmente com o banquete de peixes que

estava programado para alguns dias antes. Além disso, os peixes não poderiam ser pescados

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com muita antecedência, mas próximo do evento porque não havia condições de conservação

por muitos dias. Logo que pescado tinha de ser consumido em pouco tempo7.

1.1.1.2.2. Os protagonistas do fato

No desejo de oferecer ao Governador e à sua comitiva um banquete de recepção, a

Câmara da Vila de Guaratinguetá convocou todos os pescadores da região a apresentarem

todo o peixe que conseguissem e, “Entre muitos foram a pescar Domingos Martins Garcia,

João Alves e Filipe Pedroso com suas canoas”. Os três pescadores, entre muitos que

poderiam ter encontrado ao invés de peixes uma imagem de Nossa Senhora da Conceição nas

malhas de suas redes, são personagens reais8.

Quanto à situação social e econômica dos três pescadores, ainda que não haja qualquer

documento escrito a respeito, é possível imaginar que o contexto daqueles pescadores não seja

muito diferente da maioria dos outros que com suas famílias viviam às margens e nas

proximidades do Rio Paraíba. Como vimos, a situação de fome advinda dos conflitos em

torno da exploração do ouro e a provável contaminação das águas que possivelmente teriam

tornado aquele rio imprestável (= paraíba) graças ao garimpo, certamente dificultava a

situação daquelas famílias sustentadas a partir do pescado e do comércio com as tropas que

cruzavam aquela região entre São Paulo e as Minas de Ouro, coisa que não acontecia mais.

Por isso, aquela gente mantinha-se como podia, com as suas roças de milho e mandioca. A

população do lugar também descendia de paulistas mestiços, ou seja, não eram portugueses,

negros ou índios, coisa que os colocava numa posição social indefinida segundo os padrões da

época. Como diz um cronista daquele tempo, o que eles herdaram dos seus descendentes foi a

pobreza (RAMOS, 1992, p. 55).

7 “Conforme o costume e condições da época, as grandes e solenes refeições (em dias de festa como em dias de

jejum e de abstinência) realizavam-se pelo meio dia e não à noite. Portanto, mesmo que o Governador chegasse

ao cair da tarde anterior, previa-se o almoço festivo para o sábado. Também, naquele tempo toda a pesca se fazia

para o mesmo dia do consumo ou para o dia imediato, pois não havia ainda os recursos de prolongada

conservação; necessariamente fora ordenada de sexta para sábado.” (BRUSTOLONI, 1998, p. 162). 8 O nome dos três pescadores – Domingos Martins Garcia, João Alves e Filipe Pedroso – se encontram

registrados nos livros de batismo, casamento e óbito da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá, a partir dos

quais é possível identificar certo grau de parentesco entre eles. Na Paróquia foram batizados os filhos de

Atanásio Pedroso, que são João (1720) e José (1745), netos de Filipe Pedroso. João Alves é uma das testemunhas

do casamento de Filipe Pedroso com Verônica da Silva. Domingos Garcia Alves e João Alves são da mesma

família, provavelmente pai e filho respectivamente, pois, Silvana da Rocha, nome que também aparece no relato

do encontro, é considerada mãe de um dos pescadores e casada com Domingos Garcia, logo deve ser a mãe de

João Alves por possuir o mesmo sobrenome de Domingos Garcia Alves. Além disso, Silvana da Rocha era irmã

de Filipe Pedroso, o terceiro pescador, que consequentemente era cunhado de Domingos e tio de João Alves.

Além disso, Filipe Pedroso era da família de Maria Leite Pedroso, esposa de Gaspar, o irmão de José Côrrea

Leite, proprietário do porto em que os três deram início à pesca.

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1.1.1.2.3. O “fato em si”

O centro da narrativa do encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição nas

águas do Rio Paraíba do Sul, que constitui o “fato em si”, divide-se em três partes:

1ª) O itinerário da pescaria: “E principiando a lançar suas redes no Porto de José Corrêa

Leite, continuaram até o Porto de Itaguassu, distância bastante, sem tirar peixe algum”. Os

três pescadores partindo do porto fluvial de José Corrêa Leite9, que ficava à margem esquerda

do rio, na paragem denominada Tetequera (MACHADO, 1976, p. 150), a três léguas do

município de Pindamonhangaba, iniciaram a pescaria, como já se discutiu, provavelmente na

noite do dia 15 (sexta) para o dia 16 (sábado) de outubro. Apesar de não haver qualquer coisa

que o diga, provavelmente lançaram as redes a noite inteira sem sucesso, por conta da

distância que percorreram até o Porto de Itaguaçu (que significa “Pedra Grande”), na margem

direita do rio, distante a 6 ou 8 km de Guaratinguetá, no local a ser futuramente denominado

de “Aparecida”. Certamente foram muitas tentativas, muitos lanços de rede, sem conseguir até

aquele momento qualquer peixe no rio que, apesar das suas curvas sinuosas, margens cobertas

de vegetação e fundo lodoso, condições apropriadas para a proliferação de peixes, era

imprestável, tal como o seu próprio nome indica.

2ª) O encontro do corpo e da cabeça da imagem: “E lançando neste porto, João Alves a sua

rede de rasto, tirou o corpo da Senhora, sem cabeça; lançando mais abaixo outra vez a rede

tirou a cabeça da mesma Senhora...”. Mas no porto de Itaguaçu, sem saber qual a hora, a rede

de João Alves ficou pesada, o que certamente despertou a esperança por peixes, após tantas

tentativas frustradas. Mas nas malhas da tarrafa do pescador, o que “apareceu” foi o corpo de

uma imagem quebrada e, um pouco mais abaixo da onde tinha lançado outrora a rede, a pouca

distância, pescou também a cabeça que encaixava no corpo da imagem que acabara de

resgatar do rio.

3ª) A pesca milagrosa: “Guardou o inventor esta imagem em um tal ou qual pano, e

continuando a pescaria, não tendo até então tomado peixe algum, dali por diante foi tão

9 “Aos 21 de junho de 1712 essas terras foram adquiridas pelo Capitão JOSE CORREIA LEITE [...] sendo

morador em sua fazenda do rio Paraíba abaixo, em Pindamonhangaba, obteve outras terras e fez edificar em seu

sítio uma capela sob a invocação de N. Sra. do Rosário, a qual tornou-se conhecida pela denominação „Capela

dos Correias‟. Nessa capela entre Guaratinguetá e Pindamonhangaba foram realizados muitos batizados,

matrimônios e sepultamentos... Julgam ter sido aí batizado Frei Galvão, o descendente sobrinho-neto do

fundador.” (MACHADO, 1976, p. 150).

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copiosa a pescaria em poucos lanços, que receoso, e os companheiros de naufragarem pelo

muito peixe que tinham nas canoas, se retiraram a suas vivendas, admirados deste

sucesso...”. Nos lanços de rede seguintes ao encontro da imagem, a pesca foi tão copiosa que

os pescadores temiam naufragar. Deste modo, é que os três pescadores conseguiram cumprir

com aquele mandato da Câmara Municipal e abastecer a mesa do Governador e de sua

comitiva que, mui provavelmente nem sequer ficou sabendo da procedência milagrosa

daqueles peixes tão abundantes que eram para ser comidos em um dia de abstinência, mas

chegaram às redes dos pobres pescadores e à mesa do ilustre visitante em um domingo.

1.1.1.3. Hipóteses sobre a origem da imagem de Aparecida

Mas como uma imagem de aproximadamente 39 cm, feita de terracota, veio

“aparecer” no rio, apesar do próprio autor da legenda de origem da imagem informar: “não se

sabendo nunca quem ali a lançasse”? Como faltam documentos históricos a este respeito,

temos de nos mover no campo das hipóteses. Na obra “Aparecida: uma novela sobre a história

da imagem antes de ter sido encontrada no Rio Paraíba em 1717”, o seu autor, o Cônego

Francisco Maria Bueno de Sequeira, dá uma explicação prévia quanto à origem remota da

imagem a partir de três hipóteses:

1. A imagem foi lançada ao rio por seus próprios possuidores, depois de se ter

quebrado acidentalmente. Não podendo ou não sabendo restaurá-la, podiam tê-la

enterrado, como geralmente se usa. Preferiram lançá-la ao rio.

2. Uma enchente invadiu a casa dos donos da imagem, e esta foi arrastada ao rio

durante o refluxo das águas.

3. A imagem foi atirada ao rio por mãos sacrílegas (2016, p. 17-18).

Como naquela época do Brasil colonial, havia uma grande fabricação de imagens com

a efígie de Nossa Senhora da Conceição, também para os oratórios familiares e capelas

particulares, como é o caso das capelas de fazendas e sítios, é provável que a imagem

encontrada no rio pertencesse a algum destes lugares familiares, especialmente por conta do

tamanho, sendo muito pequena para uma igreja paroquial ou capela pública, e também pela

forma rústica dos seus traços. Apesar de se tratar de uma imagem de estilo barroco, não se

compara à exuberância de outras imagens barrocas esplêndidas na forma, nos detalhes e no

tamanho. Como também era costume, caso alguma imagem sacra fosse extraviada ou

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quebrada, a piedade dos fiéis não se desfazia abruptamente, mas respeitosamente a enterrava

ou colocava em água corrente.

Mas entre tantas hipóteses prováveis e legitimas, João Machado na sua vasta obra

sobre Aparecida na história e na literatura, destaca uma tradição oral recolhida pelo Pe.

Valentim Mooser que pretende explicar a origem da imagem de nossa Padroeira:

Segundo os antigos moradores de Aparecida, em Roseira Velha, antes do encontro

da imagem, numa das fazendas à margem do rio Paraíba, havia uma capela com uma

imagem de Nossa Senhora para veneração e para devoções dos escravos do lugar. A

pequena capela ficava bem na ribanceira do rio. As águas tranquilas do Paraíba, por

ocasião das chuvas avolumam-se, transformando em caudal agitado o leito do rio. A

correnteza forte vai aluindo as margens e barrancos e leva de arrasto tudo o que

encontra no caminho. A pequenina capela dedicada a N. Senhora e na qual os

escravos a invocavam piedosamente nunca mais foi vista após uma estação de

chuvas torrenciais. E nunca mais se soube da imagem de Nossa Senhora. Há,

portanto, a possibilidade de ter sido esta pequenina imagem levada pela correnteza

do rio, e achada depois na prodigiosa pesca de 1717, na predestinada curva do

Paraíba onde ela se teria abrigado até o dia providencial de seu aparecimento (apud

MACHADO, 1976, p. 153-154).

Interessante perceber que este relato parece descrever, ainda que não demonstre

explicitamente, a “Capela dos Correias”, uma capela de fazenda no porto de José Corrêa Leite

que era dedicada a Nossa Senhora do Rosário, devoção especial dos escravos, e de onde

partiram os três pescadores. Talvez a força da correnteza tenha levado a imagem até a altura

do Porto de Itaguaçu e, tenha lá se quebrado em “corpo” e “cabeça”, quando estacionou no

fundo do rio. Apesar das semelhanças e probabilidades, estas ainda permanecem hipóteses

difíceis de comprovar. Também na imaginação popular surgiram mitos e lendas para explicar

como a imagem foi parar no interior do rio como, por exemplo, a da mulher que jogou a

imagem de Nossa Senhora da Conceição durante uma enchente do rio a fim de afugentar uma

serpente que atemorizava a população local ou a lenda que conta que a imagem fora esculpida

toscamente por um escravo que, ao ser descoberto de sua criação, fora castigado e obrigado a

se desfazer da imagem, lançando-a no rio com suas próprias mãos (BRUSTOLONI, 1998, p.

104). Mas estas também são histórias que o povo conta, bem menos credíveis que as hipóteses

a respeito do misterioso fenômeno.

1.1.2. A devoção, a imagem e o título de Nossa Senhora da Conceição Aparecida

A imagem de Aparecida nasceu no contexto devocional, artístico e mariano do século

XVIII que girava em torno da Imaculada Conceição da Virgem Maria, uma tradição cristã

muito antiga que caminhava para a sua proclamação definitiva no século seguinte. O século

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XVIII marcou dois importantes momentos anteriores à definição dogmática: o protótipo

definitivo de sua iconografia imaculista e a oficialização do culto à Imaculada Conceição com

a Bula Commissi Nobis (8 de dezembro de 1708) do Papa Clemente XI que determinava a

celebração da festa da Imaculada Conceição da Virgem Maria como preceito para toda a

Igreja. Além disso, foi grande o incentivo dos pontífices para a oração do rosário, bem como

outras iniciativas que surgiram entre os populares como a criação de confrarias e associações

marianas (DA SILVA, 2014, p 47).

Neste contexto do século XVIII, onde estava muito propagada a devoção à Concepção

Imaculada de Maria, especialmente pela Península Ibérica, cuja influência ultrapassou mares

nunca antes navegados, pouco mais de cem anos antes da definição dogmática da Imaculada,

é que nas águas do Rio Paraíba do Sul surgiu uma tosca e pequena imagem quebrada de

Nossa Senhora da Conceição, cuja devoção já era muito intensa em todo território da colônia

brasileira pertencente a Portugal, que já a tinha proclamado como sua Padroeira e de seus

domínios (1640), mas que ganhara contornos tipicamente brasileiros, sendo acrescentado

àquela imagem o título de “Aparecida”.

1.1.2.1. A devoção e a iconografia de Nossa Senhora no Brasil

As primeiras imagens de Nossa Senhora produzidas no Brasil, que datam do final do

século XVI, foram obras de artistas e artesãos europeus e de imigrantes anônimos que,

embora seguindo o modelo clássico da estatuária, adaptavam-se às parcas condições, ao feitio

e aos gostos locais. Por isso as imagens mais requintadas que habitavam os nichos das igrejas

geralmente eram importadas da Europa ou vinham nas embarcações dos navegadores,

enquanto as imagens de culto doméstico eram muito mais simples e modestas, produzidas

aqui mesmo em madeira ou barro cozido, embora mantivessem traços requintados, próprios

do Barroco que em terras brasileiras ganhou um estilo próprio, mais simples que o clássico

europeu.

As principais representações de Maria até o século XIX, especialmente na pintura de

igrejas (teto, paredes e painéis), a apresentam rodeada de anjos, sozinha ou com o Menino,

bem como o episódio da Anunciação, a Imaculada Conceição, a Assunção aos céus ou sob os

títulos e invocações de Auxiliadora, de Nazaré, do Perpétuo Socorro, de Montserrat, do

Rosário, do Desterro, entre outros. As primeiras imagens com autoria e data conhecidas das

quais se têm notícia são atribuídas ao monge beneditino Frei Agostinho da Piedade (+1661)

que dentre as mais famosas esculpiu a imagem de Nossa Senhora de Montserrat (1636) e de

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Sant’Ana ensinando a Virgem (1646). Por conta da proclamação régia de 1646,

provavelmente a devoção e o culto a Nossa Senhora da Conceição está entre uma das mais

conhecidas e propagadas no Brasil, principalmente pelos artistas que cunhavam imagens para

os oratórios domésticos.

Os países da Península Ibérica – Portugal e Espanha – foram os principais defensores e

propagadores da devoção à Imaculada Conceição de Maria. Alguns exemplos disso são a

contribuição de dois artistas sevilhanos – Francisco Pacheco (1564-1644) e Bartolomé

Esteban Murillo (1617-1682) – para o protótipo definitivo da iconografia da Imaculada que

procede do Barroco hispânico, e a proclamação régia de D. João IV que declarava Nossa

Senhora da Conceição como padroeira do Império Português. Numa das iniciativas para

comemorar o ato, o imperador mandou cunhar moedas (1650) com a imagem de Nossa

Senhora da Conceição cercada com alguns símbolos da litania lauretana e definiu que as cores

da túnica e do manto seriam as mesmas da bandeira da Coroa Portuguesa, isto é, vermelha e

azul. A influência artística espanhola e a devoção portuguesa chegaram até o Brasil que, até

então, era colônia de Portugal. Durante os três primeiros séculos de colonização (XVI-XVIII)

foram confeccionadas inúmeras efígies da Imaculada Conceição que se espalharam por todo o

território brasileiro, inspiradas na forma murilesca e com a policromia definida pelo Império.

1.1.2.2. Da Imaculada “portuguesa” à Aparecida “brasileira”

Logo que foi encontrada na rede e acolhida no barco dos três pescadores, primeiro o

corpo e depois a cabeça, aquela pequenina imagem retirada do fundo do rio na altura do Porto

de Itaguaçu, foi imediatamente reconhecida como a Senhora da Conceição e, à medida que

começou a se propagar o seu culto, recebeu o título de “Aparecida”.

Desde o final do século XVI já eram confeccionadas na Colônia imagens de Nossa

Senhora da Conceição. E pelas características, a imagem encontrada pelos pescadores

provavelmente era de culto doméstico. Nosso objetivo agora é estudar os detalhes da imagem,

especialmente a partir da pesquisa realizada pelo Dr. Pedro de Oliveira Ribeiro Neto e que

fora apresentada pelo mesmo na ocasião do Jubileu de Ouro de Aparecida, os duzentos e

cinquenta anos do encontro da imagem (1967), sendo que esta foi uma análise anterior ao

atentado e ao restauro de 1978.

Na sua reflexão, o Dr. Pedro descreve a imagem como tradicionalmente é apresentada,

isto é, na sua forma triangular, revestida de um manto azul anil, que deixa entrever do seu

corpo enegrecido praticamente apenas o rosto e as mãos, e encimada por uma coroa cravejada

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de diamantes e rubi. Apesar do manto e da coroa serem características da imagem de

Aparecida, não foi assim que ela foi encontrada, mas “despida” das vestes de Rainha. Por

isso, para compreender o seu significado convém estudá-la sem o tradicional manto e coroa

que serão, posteriormente, expressões de louvor e honra do nosso povo para com a sua

Padroeira.

1.1.2.2.1. Características da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida

A “imagem de Nossa Senhora Aparecida, encontrada prodigiosamente no rio Paraíba

em fins de outubro de 1717, é paulista, de arte erudita, feita provavelmente na primeira

metade do 1600, por discípulo [...] do beneditino Frei Agostinho da Piedade” (RIBEIRO

NETO, 1970, p. 174). Esta conclusão acerca da época, do estilo, do material e da autoria da

imagem se deve, sobretudo, a partir da comparação de algumas imagens marianas da época

seiscentista encontradas em território paulista, sendo que entre as mais comuns estão as

imagens de Nossa Senhora da Conceição, do Rosário e do Desterro (1970, p. 175-177).

Segue abaixo algumas informações sobre a autoria, o material, a cor, entre outros

detalhes da imagem aparecidense.

Figura 1 – Inmaculada Concepcíon de

los Venerables, de Murillo (1678).

Figura 2 – Nossa Senhora da Conceição

de Vila Viçosa, Padroeira de Portugal.

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Figura 3 – Nossa Senhora da Conceição Aparecida antes do atentado de 1978.

Detalhe: cabelos curtos e colar para esconder a fratura do pescoço.

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Autoria: existem registros de “várias imagens seiscentistas de barro, feitas em São

Paulo, de autores anônimos e sem filiação de escola” (RIBEIRO NETO, 1970, p.

179). No caso da imagem de Aparecida, as caraterísticas e traços de sua imagem

coincidem com algumas obras do beneditino Fr. Agostinho de Jesus, discípulo do

maior escultor brasileiro do século XVII, o Fr. Agostinho da Piedade (+1661) que

desenvolveu seu trabalho na Bahia entre 1630 e 1642, sem nunca de lá ter saído. O

seu discípulo, porém, apesar de desenvolver o seu trabalho nos mosteiros da Bahia e

do Rio de Janeiro, teve maior notoriedade em São Paulo, na região do Parnaíba onde

se encontra a maior parte da sua obra que geralmente se assemelha nos traços das

mãos e do rosto, nas roupas e nos mantos. Além disso, Fr. Agostinho da Piedade

aperfeiçoou, possivelmente, sua arte na Europa, especialmente nas escolas barrocas

espanholas donde provém o protótipo clássico das imagens da Imaculada.

Material: a confecção da imagem que originaria, tantos anos após o seu encontro no

rio, o culto a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, provavelmente é de alguma

escola barrista da segunda metade do século XVII (RIBEIRO NETO, 1970, p. 181),

especialmente por conta da qualidade do material da imagem, isto é, um barro

paulista que depois de cozido, se torna cinza claro, às vezes rosado (Ibid., 1970, p.

181). Portanto, “sob a pátina morena da imagem, como um verniz criado pelo uso e

pelo tempo, lá está escondido o barro paulista em que ela foi esculpida na primeira

metade do 1600” (Ibid., 1970, p. 182).

Cor: a imagem seiscentista10

de estilo barroco e de forma murilesca11

, tal como foi

encontrada no fundo do rio, perdera sua policromia original, ou seja, o corpo de

tonalidade branca, a túnica vermelha e o manto azul12

, assumindo a cor impregnada

pelo lodo do rio e depois pelo fumo dos círios que foram acesos ao seu redor pelos

10

Data dos anos 1600 do século XVII. 11

Forma atribuída ao artista sevilhano, “pintor das Imaculadas”, Bartolomé Estebán Murillo (1617-1682).

“Sabe-se que a devoção da Virgem da Conceição, na imaginária brasileira, feita sempre na forma murilesca, de

mãos postas, com as pontas dos dedos unidas, e corpo erecto [...], sempre foi muito espalhada no Brasil,

principalmente depois da oficialização do seu culto pelos reis de Portugal, e que assim, desde o século XVII

possuímos imagens sem conta dessa forma e devoção. A encontrada no Porto de Itagaussú [Nossa Senhora da

Conceição] é uma dessas representações” (RIBEIRO NETO, 1970, p. 185). 12

Há uma “presunção de que a Virgem Conceição Aparecida teve outrora, pintado no seu barro claro um manto

azul escuro forrado de vermelho granada, côres oficiais de Nossa Senhora da Conceição no Reino Português, de

acôrdo com as ordens de Dom João IV que a proclamou, em 1646, padroeira da raça e do país [...] Da época do

1600, a imagem da Padroeira do Brasil apresenta ainda o detalhe da fraqueza da policromia, que se perdeu com

os anos, restando apenas sôbre o barro a pátina envernizada e parda” (RIBEIRO NETO, 1970, p. 183-185).

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devotos. Além disso, contribuiu para o enegrecimento de sua cor as condições

modestas da casa de um dos pescadores que serviu como primeiro oratório e depois

da capelinha de pau-a-pique onde ficou até a construção da primeira capela erigida

canonicamente em 1745. Por isso, “em vinte e oito anos [1717-1745], portanto, de

peregrinação e estada por êsses lugares, não admira que a imagem de Nossa Senhora

Aparecida tenha adquirido a côr que hoje conserva, castanho brilhante” (RIBEIRO

NETO, 1970, p. 182) ou cor de canela, não tão negra como se costuma pensar ou

desejar.

Detalhes da imagem: segundo a minuciosa pesquisa do Dr. Pedro de Oliveira, a

imagem autêntica de Nossa Senhora da Conceição Aparecida possui 39 centímetros

de altura com a base de prata lavrada sob a qual foi fixada e a cabeça que, desde o

encontro, entre outras ocasiões, sempre se separava do corpo e que foi cimentada com

um pino metálico de ouro. Os cabelos curtos cortados na parte superior da cabeça e a

gravação feita com estilete na parte inferior às costas do corpo dão a entender que a

imagem tinha cabelos compridos, uma característica peculiar de uma imagem

imaculista, mas que as intempéries do rio prejudicaram, coisa que foi posteriormente

Figura 4 – Protótipo da imagem de NSCA

antes de ser “lançada” no Rio Paraíba.

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corrigida pela restauração a fim de aumentar a fixação do corpo à cabeça, mas que

não corresponde totalmente à forma que foi encontrada, isto é, de cabelos curtos.

Sobre os outros detalhes da escultura descreve o próprio pesquisador:

1 – Forma sorridente dos lábios, descobrindo os dentes da frente.

2 – Forma do rosto, com o queixo encastoado, no meio do qual há uma covinha.

3 – O penteado laborioso [...] aparecendo em duas pequenas tranças sôbre as frontes,

que se perdem na massa posterior do cabelo...

4 – As flôres em relevo nos cabelos de Nossa Senhora Aparecida [...] bem como o

relevo da gola caseada.

5 – O diadema na testa, na linha média, como um broche com três pérolas

pendentes...

6 – O porte empinado da imagem, que vista de perfil tem tendência a inclinar-se

para trás [...], além do seu volume amplo, de saias pregueadas embabadando-se no

chão.

Notamos entretanto na imagem da Senhora Aparecida a perfeição das mãos postas,

pequeninas e afiladas como as de uma menina, e as mangas simples e justas, de

muito requinte, terminando no punho esquerdo dobrado à maneira dos mestres

seiscentistas do barro paulista (RIBEIRO NETO, 1970, p. 184).

1.1.2.3. “Aparecida”: um título de origem popular, devocional e bíblico

“Chegaram finalmente à Capela da Virgem da Conceição Aparecida, situada na Vila

de Guaratinguetá, que os moradores chamam „Aparecida‟”. Foi o que constataram dois

missionários jesuítas na época das missões populares realizadas no povoado de Aparecida

entre os anos de 1748 e 1749 (BRUSTOLONI, 1998, p. 41), data não muito distante do

histórico ano do encontro da imagem nas águas do Rio Paraíba do Sul (1717)13

. A

denominação “Aparecida” atribuída àquela pequenina imagem de barro de Nossa Senhora da

Conceição, resgatada das águas, já era comum desde o seu encontro. Mas por que

“Aparecida”? A resposta é muito simples: porque apareceu! Aliás, o título acrescido à já

conhecida e propagada Nossa Senhora da Conceição, surgiu entre a gente simples que, sem

pretender, comparou aquele achado a uma verdadeira “aparição”. Todavia, o encontro de

13

Trecho extraído das Ânuas da Província Brasileira dos Padres Jesuítas, de 1748 e 1749 (apud

BRUSTOLONI, 1998, p. 47). O Pe. Francisco da Silveira, do Colégio dos Padres Jesuítas de São Salvador da

Bahia, enviou para o Arquivo Romano da Casa Geral da Companhia de Jesus, na data de 15 de janeiro de 1750,

as ânuas nas quais constavam, entre outras coisas, as atividades apostólicas do missionário jesuíta, Pe. Paulo

Teixeira com mais um companheiro, entre os anos de 1748 e 1749, em doze localidades da então Diocese de São

Paulo, entre as quais foi contemplado o recém-fundado povoado de Aparecida (1745). O autor descreveu em

poucas linhas e com escassas informações a origem da capela da Virgem da Conceição e a razão pela qual os

moradores denominaram Nossa Senhora com a invocação Aparecida a partir do encontro da imagem pelos

pescadores que, lançado suas redes no rio, recolheram, primeiro, o corpo, depois, em lugar distante, a cabeça.

O restante da narração comenta a movimentação de peregrinos, os frutos da missão, a graça especial do

Santuário e a intercessão de Nossa Senhora (Ibid., 1998, p. 41,46-47). Apesar de estar datado em 1750, esse

documento foi encontrado pelo historiador jesuíta Pe. Serafim Leite, entre os vários papéis do Arquivo Geral da

Companhia de Jesus em Roma, apenas em 1945.

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Nossa Senhora da Conceição Aparecida não pode ser considerado a rigor uma aparição, ainda

que o seu nome sugira o contrário, mas em sentido amplo pode ser qualificada como uma

“mariofania”, ou seja, uma manifestação de Maria.

Apesar da simplicidade da resposta popular, o nome “Aparecida” é especial por três

razões que extraímos da mensagem do Santo Padre Paulo VI ao Arcebispo de Aparecida,

Dom Carlos Carmelo de Vasconcellos, o Cardeal Motta, por ocasião da oferta pontifícia da

Rosa de Ouro no decurso do Jubileu de Ouro de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, os

250 anos do encontro da imagem.

1.1.2.3.1. “Aparecida” é um título popular, “dado por todos”

Com efeito, no ano de 1717 das águas do rio Paraíba, como consta, foi tirada uma

pequena estátua de barro da Imaculada Mãe de Deus, à qual, por ter assim aparecido

de certa maneira admirável, foi dado por todos o nome de “Aparecida” (PAULO VI,

S.S., Mensagem ao Cardeal Motta (5.3.1967)).

O pontífice salienta que o nome “Aparecida” foi dado por todos, mas quem são estes

“todos”? Desde os humildes pescadores, os vizinhos e os peregrinos que a devoção a Nossa

Senhora da Conceição sob este novo título começou a atrair, até o seu culto alcançar o

reconhecimento eclesial, o que aconteceu ao passo que “Aparecida” alcançava o coração do

povo brasileiro.

Quando os humildes pescadores tiveram a felicidade de colher em suas redes a

imagem que logo a seguir lhes concedeu pesca abundantíssima, chegados à sua

choupana limparam a imagem e se puzeram a contemplá-la, eles disseram devotos e

comovidos: – é Nossa Senhora da Conceição que apareceu nas águas do Paraíba! Os

vizinhos que visitavam a imagem, os forasteiros que vinham chegando à medida que

se espalhava a notícia de graças prodigalizadas pela imagem milagrosa, repetiam

unanimes a invocação: “Nossa Senhora da Conceição Aparecida” (MACHADO,

1976, p. 179).

Deste modo é que a invocação “Aparecida” surgiu do sensus fidelium, da sensibilidade

religiosa do povo de Deus que é “perito” quando se trata de reconhecer e enaltecer as virtudes

da Mãe de Deus, de reconhecer os sinais de Deus nas vicissitudes da história, embora nem

sempre consiga compreender bem o conteúdo da Revelação. Foi o que aconteceu ao longo do

culto mariano na Igreja desde os primeiros séculos, o que possibilitou, por exemplo: a origem

e definição dos quatro dogmas marianos; o “assentimento da fé humana”, ainda que não dê

garantia da verdade do fato (cf. Pio X, Encíclica Pascendi (8.9.1907)), a algumas entre

milhares de aparições marianas de que temos notícia; a permissão para o culto de imagens

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“encontradas” que deram origem, inicialmente, a devoções locais; a aprovação do Magistério

no decorrer dos séculos, dentro dos limites de sã e reta doutrina, às várias formas de piedade

para a com a Mãe de Deus (cf. LG, nn. 66-67); o nome dos padroeiros das paróquias, bem

como de confrarias e irmandades leigas, que surgiram a partir da adesão popular a

determinada invocação de Nossa Senhora, até chegar aos muitos santuários espalhados no

Brasil e no mundo com um título ou invocação entre tantas com as quais se designa a mesma

Virgem Maria, etc. A devoção a Nossa Senhora da Conceição Aparecida é um exemplo disso,

dessa capacidade que os pobres e humildes têm de captar os mistérios do Reino de Deus, até

mais que os sábios e entendidos deste mundo (cf. Mt 11,25).

1.1.2.3.2. “Aparecida” é um título novo que propagou ainda mais a devoção mariana

Como um rio que transborda, a devoção à Bem-aventurada Virgem Maria,

assinalada com o nome de “Aparecida”, tanto e tanto se foi ampliando e

propagando, a tal ponto que Pio XI [...] anuindo às súplicas de todos os Arcebispos e

Bispos do Brasil, proclamou-a celestial Padroeira dessa mesma Nação (PAULO VI,

S.S., Mensagem ao Cardeal Motta (5.3.1967)).

Além das circunstâncias geográficas14

e históricas que permitiram a expansão da

devoção à Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Paulo VI enfatizou que o nome

“Aparecida” espalhou esta nova devoção com a qual o povo se identificou, bem carregada de

elementos brasileiros, e que chegou a todos os recantos do país como um rio de cuja nascente

nascem vários afluentes ou como o rio que transborda e espalha água por todos os lados.

Assim como a água que nascia do lado direito do Templo na visão do profeta Ezequiel (cf. Ez

47,1-2.8-9.12) e, por onde passava levava vida e saúde, analogamente a devoção a Nossa

Senhora da Conceição Aparecida trouxe vitalidade à fé e à identidade religiosa e nacional do

povo brasileiro. O auge desta propagação, de impacto religioso e secular, foi a proclamação

de Nossa Senhora da Conceição Aparecida como Rainha e Padroeira do Brasil, no ano de

1930. Desta forma, o nome que está intimamente ligado ao fato que deu origem à devoção

caiu nas graças do povo e foi se propagando com a melhor divulgação da época, de boca em

boca, até estar presente nos lábios dos brasileiros. “Com êste título, sem dúvida inspirado por

Nossa Senhora mesma, propagou-se a sua devoção por todo o Brasil.” (MACHADO, 1976, p.

179).

14

Como, por exemplo, o fato da capela e futura igreja e basílica estar localizada à beira da estrada que fica entre

as principais cidades do Brasil desde o tempo colonial (São Paulo e Rio de Janeiro).

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1.1.2.3.3. “Aparecida” é um título que possui conotação bíblica

O presente ano, que é o 250º do encontro daquela pequena estátua – à qual, todavia,

de um ponto de vista mais alto, se podem acomodar estas palavras: “um grande sinal

apareceu” (Apoc 12,1) (PAULO VI, S.S., Mensagem ao Cardeal Motta (5.3.1967)).

Provavelmente aqueles pescadores e seus vizinhos, bem como os inúmeros peregrinos

que os seguiram e sucederam, nem conhecessem a história relatada no capítulo 12 do livro do

Apocalipse, que trata da perseguição do Dragão à mulher grávida em dores de parto, que no

primeiro versículo diz: “Um sinal grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida com o sol,

tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas”. A exegese bíblica

interpreta neste texto a situação da Igreja durante as perseguições romanas e atribui de modo

secundário, esta passagem a uma representação da Virgem Maria, muito embora os Padres da

Igreja já reconhecessem em Maria uma figura exemplar da Igreja, o que foi ratificado na

Constituição sobre a Igreja (Lumen gentium), do Concílio Vaticano II. Mas novamente o

povo, inspirado pela ação do Espírito Santo, talvez desconhecendo a tradição bíblica, soube

interpretar o fato do encontro da imagem como “um sinal que apareceu”, embora não fosse no

céu, como nas aparições marianas de Guadalupe (1531), de Lourdes (1858) ou de Fátima

(1917) por exemplo, mas de modo singular na malha das redes de três pescadores que a

recolheram de um rio.

Estas são algumas razões pelas quais a invocação “Aparecida”, acrescentada ao título

de Nossa Senhora da Conceição, se tornou tão conhecida e amada entre os brasileiros e

constituiu uma nova devoção mariana que, embora tenha suas raízes portuguesas, possui

traços e características genuinamente brasileiras, e que, ao longo dos séculos, torna o culto

mariano na Igreja algo tão vivo e dinâmico e, por conseguinte, uma resposta para cada época

do nosso tempo e de nossa história. Deste modo é que ela, então, se chamou “Aparecida”.

Nossa Senhora da Conceição Aparecida é uma “aparecida” que não apareceu e, por ter

assim aparecido de maneira admirável “é a filial invocação do povo brasileiro à Mãe de Deus

em qualquer eventualidade particular ou pública, tantos em momentos de agradável surpresa

como em horas de perigo. É uma interjeição espontânea, característica do Brasil”

(MACHADO, 1976, p. 45), que brotou espontaneamente da boca dos pescadores, dos seus

vizinhos, dos forasteiros, dos peregrinos e dos milhares de brasileiros que ao longo de três

séculos se colocaram em romaria para visitar a sua imagem. Esta é uma expressão de fé,

devoção e, sobretudo, de confiança que o povo costuma dizer em quaisquer circunstâncias da

vida, seja de dor ou de alegria.

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2. O SINAL DA MULHER “APARECIDA”

2.1. A imagem de Aparecida a partir de Ap 12

Nossa Senhora Aparecida é uma imagem da Imaculada Conceição de Maria que,

iconograficamente, é inspirada no livro do Apocalipse, capítulo 12, versículo 1: “Um sinal

grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida com o sol, tendo a lua sob os pés e sobre a

cabeça uma coroa de doze estrelas”. Além disso, a liturgia da Palavra na Solenidade de Nossa

Senhora da Conceição Aparecida proclama na segunda leitura da celebração o texto de Ap

12,1.5.13a.15-16a. Esta passagem bíblica serve de referência para compreender os elementos

cósmicos (sol, lua e estrelas) que circundam e envolvem a “mulher apocalítica” (cf. Ap 12,1)

e revelam a sua identidade como “virgem”, “mãe” e “esposa”, um sinal de Maria que é ícone

do mistério da Igreja.

2.1.1. O “sinal da mulher”

Na literatura joanina, especialmente no evangelho de João e no livro do Apocalipse, as

expressões “sinal” e “mulher” aparecem em textos-chaves: bodas de Caná (cf. Jo 2,1-11), aos

pés da cruz (cf. Jo 19,25-27); a “mulher apocalíptica” (cf. Ap 12,1-17); a “Esposa do

Cordeiro” (cf. Ap 21,2.9-14; 22, 17).

O termo joanino “sinal”, do grego semeion, como é usado no Novo Testamento, não

designa obrigatoriamente um milagre tal como o entendemos, mas como aquilo que serve

para confirmar, aprovar, assegurar e dar legitimidade à verdade do que foi anunciado. O sinal

confirma ou assegura a verdade e validade de uma mensagem. Na linguagem joanina, o sinal

é a manifestação visível de uma realidade invisível à percepção humana, que serve para

alcançar o invisível e, desta forma, para nos colocar em contato com o divino. “Em Jo, „sinal‟

é ação realizada por Jesus que, sendo visível, leva por si ao conhecimento de realidade

superior” (MATEUS; BARRETO, 1989, p. 258). Além da autenticidade de uma mensagem,

do conhecimento e visibilidade de uma realidade, o sinal é uma chave de interpretação para

descobrir o significado de uma manifestação (Ibid., 1989, p. 259). Exemplo clássico disso

encontra-se no episódio das Bodas de Caná (cf. Jo 2,1-12) que termina com a célebre frase:

“Esse é o princípio dos sinais, Jesus o fez em Caná da Galileia e manifestou a sua glória e os

seus discípulos creram nele” (v. 11). O Apocalipse, que possui um caráter de revelação,

conforme indica o significado do seu próprio nome, é um “livro de sinais” que atestam “como

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sendo a Palavra de Deus e o Testemunho de Jesus Cristo” tudo o quanto viu, ouviu e redigiu o

seu autor (cf. Ap 1,1-2).

A expressão “mulher”, do grego gynê, no evangelho aparece como um apelativo dado

por Jesus à sua mãe (cf. Jo 2,4; 19,26) e também a outras duas personagens (à samaritana

(4,7.9.11.21) e a Maria Madalena (20,13.15)). „Mulher‟ não era apelativo que os filhos

usassem ao se dirigirem à sua mãe. Pelo contrário, tem a conotação de „esposa‟, „mulher

casada‟” (MATEUS; BARRETO, 1989, p. 199). Estas três mulheres aparecem como

“esposas”, não no sentido institucional e jurídico do termo, mas simbólico e coletivo. Por

exemplo, “A mãe de Jesus representa o Israel fiel às promessas (o resto de Israel), enquanto é

origem de Jesus. É, portanto, figura do povo da antiga aliança e, neste sentido, é chamada de

Esposa de Deus (2,4;19,26: mulher), segundo a concepção da aliança como núpcias entre

Deus e o povo” (Ibid., 1989, p. 199). Na literatura joanina, “mulher” não quer designar uma

pessoa física, apesar desta expressão estar diretamente atribuída a pessoas reais, mas

representa simbolicamente a identidade de uma coletividade. Isso fica ainda mais claro no

livro do Apocalipse, onde aparece o sinal de duas mulheres, uma “grávida” e a outra uma

“prostituta” (cf. Ap 12, 1-17; 17,1-18), que representam respectivamente o novo povo de

Deus fundado sobre a antiga herança de Israel e o Império Romano.

No evangelho de João o apelativo “mulher” é pronunciado duas vezes por Jesus ao se

referir à sua própria mãe nas Bodas de Caná e aos pés da Cruz (cf. Jo 2,4; 19, 26), enquanto

que no Apocalipse os textos mais singulares acerca da “mulher” são o capítulo 12 e 21 em que

ela é apresentada perseguida e triunfante. Segundo a exegese bíblica e a tradição patrística,

esta “mulher” é, preferencialmente, figura da Igreja, esposa de Cristo, mas também, e não de

modo secundário, faz referência à pessoa da Virgem Maria que, especialmente pelos Padres

da Igreja e posteriormente no Concílio Vaticano II, foi considerada desde sempre não apenas

a Mãe de Cristo (perspectiva cristotípica) e um membro eminente da Igreja (perspectiva

eclesiotípica), mas tipo e modelo da Igreja, sendo proclamada por Paulo VI como Mãe da

Igreja.

Por isso, além de participar do mistério de Cristo como mãe, discípula e colaboradora

na obra da salvação, a Virgem Maria está presente no mistério da Igreja e se constitui num

princípio para a própria Igreja. E, deste modo podemos compreender a natureza, identidade e

missão da Igreja a partir de uma abordagem mariológica, de tal modo que também o texto de

Ap 12 pode ser interpretado numa perspectiva que une aspectos eclesiológicos e mariológicos.

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2.1.1.1. Quem é esta mulher?15

Entre os exegetas não há um consenso sobre de quem se trata a misteriosa “mulher

apocalíptica”. Todavia, a interpretação de Ap 12, especialmente na época patrística, deixa

entrever nesta “mulher” duas realidades que não são dicotômicas, mas complementares entre

si: a Igreja e Maria. Segundo Pedro Iwashita,

o Apocalipse de São João não fala explicitamente da mãe de Jesus, mas as grandes

imagens do cap. 12 soam incompreensíveis sem referência ao papel histórico dela.

Se admitirmos que a “Mulher vestida com o sol” se refere ao povo de Deus, Israel e

a Igreja, a referência a Maria não é descartada, pois as múltiplas facetas dos

símbolos apocalípticos não excluem que um símbolo possa significar duas

realidades (1991, p. 141).

Para ele, a “mulher” de Ap 12 é uma espécie de “personalidade corporativa” através da

qual “um único indivíduo represente a coletividade”. O texto não fala explicitamente da Mãe

de Jesus, mas sem uma referência mariana, especialmente do papel histórico de Maria, na

opinião de Iwashita (1991, p. 141), as imagens do capítulo 12 soariam incompreensíveis.

Como veremos adiante, Aristides Serra apresenta um paralelo entre as imagens de Ap 12 e de

alguns episódios evangélicos em que se encontra a presença de Maria. Mas para os fins deste

estudo, vamos considerar primeiro a interpretação eclesiológica.

2.1.1.1.1. Apocalipse 12 e a Igreja

Na opinião de alguns exegetas, antes do capítulo 12 do Apocalipse ter alguma

extensão mariológica, o autor-vidente que, segundo a Tradição é o Apóstolo João, quando

exilado na Ilha de Patmos, faz uma profecia das perseguições que aguardavam a Igreja e da

vitória definitiva de Cristo sobre o poder do Maligno. De modo geral, todo o Apocalipse

“Trata-se de um livro escrito (por volta do ano 95 d.C. na Ásia Menor) [...] quando a Igreja

primitiva enfrenta uma dura perseguição. A sangrenta perseguição romana põe à prova a sua

fé e sua dedicação. O autor do livro dirige-se à comunidade cristã para esclarecer o sentido

dos fatos e animá-la na tribulação”. (STRADA, 1998, p. 68). Contudo, segundo as suas

origens, além da influência helênica que sofreu, o texto contém algumas referências do Antigo

Testamento, dando a entender que as promessas do passado estavam para se cumprir. “Este

texto contém uma referência incontornável à representação bíblica do início da história, a esse

15

Cf. Ct 6,12.

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texto misterioso que a Tradição designa como proto-evangelho” (RATZINGER;

BALTHASAR, 2004, p. 48), que está em Gn 3,15, como também ao texto profético de Is 7,14

e apresenta alguns paralelismos com o livro do Êxodo.

Tanto no livro do Gênesis (3,15) como no livro do profeta Isaías (66,7), aparece a

figura de uma “mulher”. O texto do Proto-Evangelho de Gn 3,15, após o episódio do pecado

dos nossos primeiros pais diz: “Porei uma hostilidade entre ti [serpente] e a mulher, entre tua

linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar”.

Evidentemente a mulher aqui referida não é Eva, visto que neste contexto ela fora vencida

pela sedução da serpente e castigada com a expulsão do jardim por causa de sua

desobediência. Esta mulher perseguida pela hostilidade da serpente, mas vitoriosa por lhe

esmagar a cabeça (cf. Gn 3,15) reaparece no texto apocalíptico que menciona a “antiga

serpente” (v. 9) que se transformara num “dragão” (v. 3) que desde as origens continua a

perseguir e a atacar a descendência da mulher a fim de desviá-la16

do desígnio de Deus e de

seu projeto salvífico e restaurador.

A profecia de Isaías apresenta a promessa de uma mulher virgem que conceberá e dará

à luz um menino (cf. Is 7,14). O texto de Is 7,14 é a profecia do nascimento de um povo novo

gerado por Sião, outro nome para Jerusalém que é simbolizada por uma mulher virgem e mãe

(cf. Mt 1,23). Mas enquanto na linguagem profética a “mulher” é símbolo materno de Sião

que gera o povo, o livro do Êxodo recorda a perseguição que o próprio povo sofreu no

deserto, de modo muito semelhante ao da mulher do Apocalipse, sendo que o modo em que

foram salvos – “mulher” e “povo” – é o mesmo: conduzidos com “asas de águia” para o

deserto.

Após a libertação do Egito, entre a terra da escravidão e a terra da promessa, o povo

atravessou o deserto, tendo o Faraó no seu encalço, mas sendo protegido por Iahweh que o

conduziu com “asas de águia” (cf. Ex 19,4; Dt 32,11), abriu-lhes o Mar Vermelho e saciou-os

e alimentou-os. A mulher do Apocalipse, após o parto, perseguida pelo dragão, voa sob asas

de águia (v. 14) para o deserto onde é alimentada (v. 6). Mas enquanto foge, o dragão tenta

submergi-la vomitando um rio de água (v. 15), porém, a terra vem em socorro da mulher,

engolindo o rio. Comparada as semelhanças temos entre Apocalipse e Êxodo formamos os

paralelos: “mulher” e “povo”; “dragão” e “Faraó” ou “Egito” (cf. Is 51,9; Ez 29,3. 32,2); “rio

de água” e “perseguição dos exércitos egípcios” (cf. Ex 14,5ss) e, em ambos os textos, há os

sinais da salvação: “deserto”, “asas de águia” e “alimento” (cf. Ex 15,12 – Ap 12,16) que são

16

A etimologia da palavra grega para designar “pecado” (hamartía), significa justamente isso: “errar o alvo”,

“distanciar-se da meta”, “desviar-se do caminho”.

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“o anúncio profético de uma ação escatológica na qual Deus realiza e recapitula o seu plano

de salvação” (PRIGENT, 1993, p. 214). Além disso, há outro sinal que indica a

personificação do povo de Deus na mulher do Apocalipse: a coroa de doze estrelas (v. 1), uma

referência às doze tribos de Israel (cf. Gn 37,9-11).

As fontes do texto, além de conter alguns vestígios da cultura greco-romana, faz

referência ao Proto-Evangelho (Gn 3,15), com o Êxodo de Israel do Egito e com as profecias

de Isaías, como fora analisado anteriormente. Contudo, a intenção do autor não é resgatar a

história do Povo de Israel, mas dizer que aquele evento histórico do passado foi, na verdade,

uma prefiguração do novo povo de Deus, continuado e realizado na Igreja que não

sucumbiria, embora naquele momento fosse perseguida sob o regime do Imperador

Domiciano (81-96 d.C.).

O texto apocalíptico apresenta sinais evidentes que o antigo Povo de Deus continua na

Igreja de Cristo que sofre no deserto da história sem desesperar e anda sem desanimar,

enquanto peregrina caminha para o enlace definitivo com o seu Esposo (cf. Ap 21). Por sua

vez, a “mulher” não é identificada como uma pessoa em sentido estrito, mas como

personalidade corporativa representante do Povo de Deus que é a Igreja. O próprio Concílio

Vaticano II, na Constituição sobre a Igreja – Lumen gentium –, apresentou a Igreja como

“Povo de Deus”, numa inspiração veterotestamentária, mas sob a novidade cristã da

universalidade da salvação (cf. LG, n. 13).

Contudo, aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente,

excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse

na verdade e O servisse santamente. Escolheu, por isso, a nação israelita para Seu

povo. Com ele estabeleceu uma aliança; a ele instruiu gradualmente, manifestando-

Se a Si mesmo e ao desígnio da própria vontade na sua história, e santificando-o

para Si. Mas todas estas coisas aconteceram como preparação e figura da nova e

perfeita Aliança que em Cristo havia de ser estabelecida e da revelação mais

completa que seria transmitida pelo próprio Verbo de Deus feito carne [...] Esta nova

aliança instituiu-a Cristo, o novo testamento no Seu sangue (cfr. 1 Cor. 11,25),

chamando o Seu povo de entre os judeus e os gentios, para formar um todo, não

segundo a carne mas no Espírito e tornar-se o Povo de Deus [...] este povo

messiânico, ainda que não abranja de fato todos os homens, e não poucas vezes

apareça como um pequeno rebanho, é, contudo, para todo o gênero humano o mais

firme germe de unidade, de esperança e de salvação (LG, n. 9).

Para o Concílio, “assim como Israel segundo a carne, que peregrinava no deserto, é já

chamado Igreja de Deus (cfr. 2 Esdr. 13,1; Num. 20,4; Deut. 23,1 ss.), assim o novo Israel,

que ainda caminha no tempo presente e se dirige para a futura e perene cidade (cfr. Hebr. 13-

14), se chama também Igreja de Cristo (cfr. Mt. 16,18)” (LG, n. 9). E embora não faça uma

referência explícita ao texto apocalíptico, esta expressão conciliar permite visualizar a

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“mulher” perseguida pelo Dragão e refugiada no deserto (vv. 13-14): “Caminhando por meio

de tentações e tribulações, a Igreja é confortada pela força da graça de Deus que lhe foi

prometida pelo Senhor” (LG, n. 8).

Alguns Padres da Igreja como Hipólito (+235) e Metódio (+312) entre outros,

interpretaram a mulher apocalítica como uma figura da Igreja. Segundo Hipólito de Roma, a

“mulher-Igreja” está revestida com a Palavra de Deus, cujo brilho supera a luz do sol; a lua

significa a glória do céu com a qual a Igreja está adornada e a coroa de doze estrelas

simboliza os doze Apóstolos. As dores do parto são os sofrimentos da Igreja por ser

perseguida ao anunciar o Evangelho. Numa perspectiva espiritual, o filho da mulher é Jesus

Cristo gerado no ventre da Igreja. As asas de águia que conduzem a “mulher ao deserto” são a

fé em Cristo. Para Metódio, o filho recém-nascido é o cristão batizado e a lua é um símbolo

batismal (GARCÍA PAREDES, 1995, p. 167)17

.

2.1.1.1.2. Apocalipse 12 e Maria

O texto de Ap 12, a nível mariológico, é um dos mais discutidos do Novo Testamento

entre aqueles que fazem uma referência direta ou indireta, histórica ou simbólica da figura de

Maria (AZEVEDO, 2001, p. 178).

O Povo de Deus representado na narração, tanto “Israel” quanto a “Igreja”, encontra

na pessoa de Maria uma personalidade capaz de representar uma coletividade porque, afinal,

como pessoa ela pertence ao povo de Deus da antiga e da nova Aliança e, por desígnio da

graça divina, é participante do mistério de Cristo e da Igreja, cooperadora na obra da

redenção. Por isso pode ela ser chamada de Nova Eva, Filha de Sião e Mãe de Cristo e da

Igreja.

Segundo a simbologia própria do Apocalipse e a correlação com alguns textos

evangélicos, é possível vislumbrar em Ap 12 a presença da Mãe do Messias inserida na

História da Salvação. Mas seria legítimo ver Maria na “mulher vestida com o sol”? Para

17

Também há um texto muito sugestivo de São Ruperto (+718) no seu Comentário ao Apocalipse que compara a

mulher de Ap 12 com a Igreja: “Essa mulher representa a Santa Igreja, que em muitos lugares da Escritura

vemos profeticamente chamada de mulher ao lado de seu marido, isto é, a Deus unida e por Ele amada... Diz-se

que esta Mulher está vestida de Sol, isto é, de Cristo, verdadeiro Sol da Justiça, recebido como promessa; e que

tem “a lua debaixo de seus pés”, isto é, tem sob o seu controle a administração dos bens temporais, chamados de

“lua” por causa da sua mutabilidade..., a quem os loucos servem, mas sobre os quais o sábio impera... Dar à luz

significa em sofrer antes do parto: de modo que o processo do parto é como a medição, em que se dá a luz ao

Verbo perfeito.” (apud SILVA, 2017, p. 84-85).

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García Paredes há um paralelo entre este texto apocalíptico com alguns episódios evangélicos,

tais como: anunciação, nascimento, paixão, morte e ressurreição, ascensão.

Enquanto que a “mulher” com dores de parto (v. 2) é uma versão simbólica do

Mistério Pascal de Cristo, o evangelho de Jo 19,25-27 apresenta o que poderia corresponder a

uma versão histórica do fato e destaca a presença de Maria na hora da paixão junto à Cruz do

seu Filho, quando ele disse: “Mulher, eis aí o teu filho” (v. 26). Toda a comunidade dos

discípulos dispersa estava ali representada por Maria, João e as outras mulheres. Aos pés da

cruz, a função materna de Maria é ampliada. São João Paulo II na carta para o Ano Mariano

de 1984 – Redemptoris Mater – revela que desde as Bodas de Caná (cf. Jo 2,1-12) “se delineia

bastante claramente a nova dimensão, o sentido novo da maternidade de Maria” (RM, n. 21)

que “amadureceu definitivamente aos pés da cruz, mediante a sua participação no amor

redentor do Filho” (RM, n. 23). No Ap 12 a “mulher” gera o filho e seus descendentes, todos

marcados pela perseguição do Dragão (v. 17) e aos pés da Cruz, como símbolo de Eva que foi

concebida do lado de Adão, Maria torna-se Mãe da Igreja renascida do lado aberto de Cristo.

Para García Paredes, guardadas as devidas diferenças, o texto apocalíptico confirma a

dimensão eclesiológica de Maria aos pés da Cruz.

Na anunciação (cf. Lc 1,26ss) o anjo diz que o Espírito Santo descerá sobre Maria

envolvendo-a como numa nuvem. No Apocalipse, a mulher está vestida de sol (v. 1). Tanto a

“nuvem” quanto o “sol” são símbolos cósmicos que indicam a manifestação divina. A

“nuvem” do Espírito fecunda a Virgem e o “sol de justiça” a reveste de salvação (cf. Lc 1,78-

79) mantendo-a íntegra e pura, porque nela não há sombra alguma de pecado. Portanto, ela a

“mulher vestida com o sol” está cheia da graça divina (cf. Lc 1,28).

Apesar da intenção do autor do Apocalipse ao se referir à mulher em dores de parto (v.

2) para sinalizar o Mistério Pascal, de modo secundário é possível recordar o evento da

encarnação e do nascimento de Cristo, pois pela maternidade física de Maria foi gerado o

Messias. O mistério da Encarnação e da Paixão une-se pelas imagens do “parto de Belém” e

do “parto da cruz”, o nascimento para a vida eterna, a ressurreição. Em sentido figurativo, o

“trabalho de parto” pode representar o itinerário da fé percorrido por Maria (cf. LG, n.58)

desde a anunciação até o Calvário e pela comunidade da qual ela é imagem e modelo. No

texto de Ap 12 a “mulher” é mãe do Messias e símbolo da Igreja perseguida. Também o livro

dos Atos dos Apóstolos acentua a presença de Maria no seio da comunidade cristã que era

objeto da perseguição judaica, apresentando-a não pelo nome, mas pela função materna que

desempenhava na Igreja desde a cruz: “e estava com eles a Mãe de Jesus” (cf. At 1,14). O

capítulo VIII da Lumen gentium, incluindo o tratado mariológico do Concílio dentro da

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Constituição sobre a natureza e a missão da Igreja, quer indicar a co-participação de Maria no

mistério de Cristo e da Igreja. E a própria Constituição conclui apresentando-a como “sinal de

segura esperança e de consolação para o Povo de Deus peregrinante” (LG, n. 68) assim como

o Apocalipse apresenta o fim escatológico da Mulher-Igreja no capítulo 21, a Jerusalém

Celeste descida do alto, a mulher-esposa do Cordeiro que com o Espírito suspira pela chegada

do Esposo (cf. Ap 22,17). Também no “grande sinal da mulher” a Igreja viu uma imagem da

assunção de Maria junto ao seu Filho na glória.

De certo modo, o texto apocalíptico (Ap 12) conta a História da Salvação

simbolicamente desde a criação até a plenitude, fim e consumação dos tempos, tendo como

eixo fundamental o Mistério Pascal simbolizado nas dores de parto da mulher e na exaltação

do filho junto a Deus (vv. 2.5). “O autor do Apocalipse, apresentando a „Mulher vestida com

o sol‟, pensa assim certamente em Maria, a mãe do Messias, mas vendo-a como membro no

todo da história da salvação” (IWASHITA, 1991, p. 141).

Se numa perspectiva cristológica é impossível não imaginar que o filho da mulher que

é levado junto a Deus (v. 5) seja o Cristo no mistério da sua paixão, morte, ressurreição e

ascensão, de igual modo é impensável que a Mãe do Messias a que se refere o texto não seja

Maria, conforme deixa muito claro outros textos joaninos e os evangelhos sinóticos. Também

há um paralelo entre a “mulher” de Ap 12 e os dois textos de João em que a mesma expressão

aparece relacionada à Mãe de Jesus (cf. Jo 2,1-12; 19,25-26).

Como Maria faz parte do povo de Deus do qual nasceu o Messias que ela mesma

gerou, logo também a “mulher” apocalíptica pode ter um extensão mariológica complementar,

pois “talvez João pensasse também em Maria, nova Eva, a Filha de Sião, que deu à luz o

Messias (Jo 19,25)” (AZEVEDO, 2001, p. 180). Mas convém afirmar mais uma vez que a

índole eclesial de Ap 12 para o contexto dos cristãos perseguidos naquela época impede-nos

de dizer com toda a propriedade que a “mulher” do Apocalipse é Maria, embora ela seja do

ponto de vista hermenêutico imagem-guia para a Igreja. A unidade entre o mistério de Maria e

da Igreja é expresso pelo teólogo Bruno Forte a partir da sua análise de Ap 12 do seguinte

modo: “Na mulher Maria a Igreja dos mártires e dos peregrinos podia reconhecer a sua

vocação e o seu destino” (2001, p. 97).

Além da perspectiva cristológica e eclesiológica, Ap 12 também é um texto de valor

escatológico, pois o “sinal da Mulher” é um símbolo da esperança de Israel e do novo Israel

de Deus, do povo da antiga e da nova e definitiva Aliança.

2.1.2. O “sinal de Maria”

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Mas afinal, quem é esta mulher “que desponta como a aurora, bela como a lua,

fulgurante como o sol?” (Ct 6,10). A “mulher” apocalíptica associa em si três aspectos

femininos: virgem, mãe e esposa. Tais características podem ser encontradas na pessoa de

Maria e associadas à Igreja. Deste modo, numa perspectiva narrativo-simbólica, Ap 12 pode

nos oferecer uma visão acerca da identidade da Igreja inspirada em Maria.

“A ligação de Maria com a Igreja é expressa por três palavras-chave: Membro, Tipo

(ou modelo) e Mãe” (SESBOÜÉ (dir.), 2005, p. 511) segundo a Constituição Dogmática

Lumen gentium, no capítulo VIII que trata sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria no

mistério de Cristo e da Igreja. Os números 64 a 65 dedicam-se especialmente a Maria Virgem

e Mãe como modelo que a Igreja Virgem e Mãe deve imitar, o que, segundo Balthasar,

significa o mesmo que estabelecer as relações entre a Mãe do Senhor e a Esposa de Cristo (cf.

Ef 5, 25-27) (BALTHASAR, 2004, p. 139). E quando se refere à Maria como tipo da Igreja,

não a pensa como mera prefiguração, “mas sim enquanto arquétipo, isto é, enquanto „Ideia‟

realizada de forma perfeita e inigualável” (Ibid., 2004, p. 143), pois “o mistério de Maria e o

da Igreja se compenetram e iluminam reciprocamente”, não como duas realidades justapostas,

mas intrinsicamente unidas, desde que Maria seja compreendida no interior da Igreja como

membro, embora seja um membro eminente e singular, e mãe que gerou a Cabeça da Igreja.

Por isso, a figura de Maria desde os primeiros tempos sempre foi contemplada, de modo

especial pelos Padres, “com os olhos postos em Cristo e na Igreja” (Ibid., 2004, p. 142). A

partir da Sagrada Escritura é que os Padres pensaram na figura de Maria Virgem, Mãe e

Esposa como modelo e compêndio da Igreja Virgem, Mãe e Esposa, pois

Tudo o que é dito na Bíblia da ecclesia vale para Maria, e vice-versa: o que a Igreja

é e deve ser, é por ela aprendido na contemplação de Maria. Esta é o seu espelho, a

verdadeira medida da sua natureza, porque existe à medida de Cristo e de Deus,

“habitada” por ele. E para que existiria a Igreja senão para ser habitação de Deus no

mundo? Deus não age com coisas abstractas. Ele é Pessoa, e a Igreja é pessoa.

Quando mais nós e cada um de nós nos tornamos pessoa, pessoa no sentido da

inabitação de Deus em nós, filha de Sião, tanto mais seremos um e tanto mais

seremos Igreja, e tanto mais a Igreja será ela própria (RATZINGER, 2004, p. 64).

Assim como a conferência de Puebla afirma que sem Maria o Evangelho não se

encarna (cf. DP, n. 303), da mesma forma podemos também dizer que sem Maria não é

possível imaginar e, principalmente, concretizar a realidade virginal, maternal e esponsal da

Igreja.

Para tal, Ap 12 nos oferece uma chave de leitura a partir do “sinal da mulher”

revestida de sol, com a lua debaixo dos pés e coroada de doze estrelas (v. 1), a partir da qual

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vamos contemplar na imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida uma Igreja

Servidora, Mãe e Esposa (FRANCISCO, S.S., Discurso (28.07.2013)) que acolhe a Palavra,

conserva e transmite a fé, gera os filhos de Deus na fonte batismal e alimenta-os pelo

banquete da Aliança, sinal de comunhão e esperança.

2.1.2.1. Mulher-ícone da Igreja Virgem da fé e Servidora da Palavra

O “sinal da mulher” em Ap 12,1 não identifica quem é a mulher, mas a exegese do

texto e a interpretação dos Padres indicam que se trata da Igreja que, como Maria, é Virgem e

Mãe. Mas segundo a interpretação de um discípulo de Santo Agostinho, São Quodvultdeus

(século V), “essa mulher é a Virgem Maria, que, virgem, deu à luz a nossa Cabeça. Era

virgem e, além do mais, a figura da santa Igreja. Pois assim como, gerando seu Filho, ela

continuou virgem, assim a Igreja gera, todo o tempo os membros de Cristo, sem perder a

virgindade” (São Quodvultdeus, De Symbolo 3, PL 40, 661). De qualquer modo, a “mulher

apocalíptica” é um símbolo da Igreja e, de modo secundário, um sinal da Virgem Maria que,

segundo o Concílio Vaticano II, é membro, imagem e modelo da Igreja Virgem que guarda

pura a fé pelo acolhimento e a escuta obediente da Palavra de Deus. Contudo, a fé de Maria

não foi apenas uma declaração ou um “ato” na Anunciação, mas uma atitude que a Virgem

conservou até o Calvário como peregrina que “avançou no caminho da fé, e conservou

fielmente a união com seu Filho até a cruz” (LG, n. 58).

Mas de que modo a exemplaridade da fé da Virgem Maria serve como virtude a ser

imitada pela Igreja? Como membro e tipo (ícone e arquétipo) da Ecclesia Immaculata, Maria

é figura da discípula perfeita, pois é paradigma da escuta da Palavra. E não apenas da escuta,

mas, sobretudo, do cumprimento que, não consiste apenas na concepção do Verbo, mas na

prática da Palavra: “para além do nascimento físico de Cristo, que aconteceu uma vez, há uma

outra dimensão da maternidade que pode e deve continuar a existir [...] esta maternidade que

continuamente faz nascer Cristo, repousa na escuta, na conservação e na prática da palavra de

Jesus” (RATZINGER, 2004, p. 54). Segundo Santo Agostinho, a bem-aventurança de Maria

consiste em ser, primeiro, discípula de Cristo do que Mãe de Cristo e, que antes de tê-lo

gerado no seu ventre, o trazia na sua mente:

Prestai atenção, rogo-vos, naquilo que Cristo Senhor diz, estendendo a mão para

seus discípulos: Eis minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de meu Pai que

me enviou, este é meu irmão, irmã e mãe (Mt 12,49-50). Acaso não fez a vontade do

Pai a Virgem Maria, que creu pela fé, pela fé concebeu, foi escolhida dentre os

homens para que dela nos nascesse a salvação e que foi criada por Cristo antes que

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Cristo nela fosse criado? Sim! Ela o fez! Santa Maria fez totalmente a vontade do

Pai e por isto mais valeu para ela ser discípula de Cristo do que mãe de Cristo; maior

felicidade gozou em ser discípula do que mãe de Cristo. Assim Maria era feliz

porque, já antes de dar à luz o Mestre, trazia-o na mente (Sermo 25,7-8: PL 46,937-

938).

Como a Virgem Maria, a Igreja acolhe (escuta), medita (silencia), coloca em prática e

proclama a Palavra do Senhor que suscita nos seus ouvintes a fé, como afirma o apóstolo

Paulo: “a fé vem pela pregação e a pregação é pela palavra de Cristo” (Rom 10,17). Mas antes

de ser nossa mãe na fé (cf. LF, n. 51), gerando seus filhos pela Palavra e pelo Batismo, a

Igreja conservou a unidade e a integridade do depósito da fé (cf. 1Tm 6,20) ao longo dos

séculos tal como Maria que preservou o seu “sim” da anunciação até a crucificação. Assim

como a fé manteve a Virgem unida a Jesus até a cruz, também a Igreja conserva a fé como

herança recebida dos apóstolos e a confessa e transmite em toda a sua pureza e integridade,

pois da unidade da fé depende a unidade e a comunhão da Igreja com o Senhor e dos

membros de Cristo. “A integridade da fé foi associada também com a imagem da Igreja

virgem, com o seu amor esponsal fiel a Cristo: danificar a fé significa danificar a comunhão

com o Senhor” (LF, n. 48).

Inserida no corpo eclesial como membro, Maria é discípula e servidora da Palavra

como qualquer outro, mas enquanto membro singular e eminente, ela é para todos protótipo

do discípulo por excelência, porque “Ninguém como ela „escutou a palavra de Deus‟ e a „pôs

em prática‟” (BALTHASAR, 2004, p. 140). A Conferência de Aparecida a este respeito

afirmou que a Virgem Maria

através de sua fé (cf. Lc 1,45) e obediência à vontade de Deus (cf. Lc 1,38), assim

como por sua constante meditação da Palavra e das ações de Jesus (cf. Lc 2,19.51), é

a discípula mais perfeita do Senhor (cf. LG 53) [...] com sua fé Maria chega a ser o

primeiro membro da comunidade dos crentes em Cristo, e também se faz

colaboradora no renascimento espiritual dos discípulos. Sua figura de mulher livre e

forte, emerge do Evangelho conscientemente orientada para o verdadeiro

seguimento de Cristo. Ela viveu completamente toda a peregrinação da fé como mãe

de Cristo e depois dos discípulos, sem estar livre da incompreensão e da busca

constante do projeto do Pai. Alcançou, dessa forma, o fato de estar ao pé da cruz em

comunhão profunda, para entrar plenamente no mistério da Aliança (DAp, n. 266).

Portanto, a Virgem Maria torna-se para toda a Igreja um paradigma da Igreja que pela

escuta e anúncio da Palavra do Senhor conserva e transmite a fé. “Ela, que „conservava todas

estas recordações e as meditava no coração‟ (Lc 2,19; cf. 2,51), ensina-nos o primado da

escuta da Palavra na vida do discípulo missionário” (DAp, n. 271) e delineia o perfil de uma

Igreja Servidora e não controladora da fé.

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2.1.2.1.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal de fé na fragilidade

A pequenina imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida é um sinal da fé

íntegra e intacta. Como explicar o fato de uma imagem de barro permanecer, sem se saber por

quanto tempo, no fundo do rio sem desintegrar-se, embora estivesse quebrada, coisa que

muito provavelmente aconteceu antes e foi a causa para ser lançada nas águas caudalosas do

Paraíba?!

“Aparecida” é uma imagem da Imaculada Conceição de Maria, encontrada no fluxo do

rio não como uma semideusa, nem numa visão angélica ou sobrenatural, mas como “criatura

humana, trazendo no corpo a espessura e a cor da argila de que foi plasmada” (AZEVEDO,

1995, p. 84). “As condições físicas da imagem merecem um comentário simbólico. Em suma,

fornecem argumentos acerca da sua fragilidade” (CALIMAN (org.), 1989, p. 14). Por isso,

aquela imagem de barro também recorda a nossa humanidade, frágil como o pó da terra (cf.

Gn 2,7).

Como era próprio da época em que foi esculpida, era comum que as imagens fossem

ocas. E a imagem de Aparecida era, de fato, oca, o que aumentava ainda mais sua fragilidade,

coisa que ficou bem evidenciada no atentado que a retalhou em mais de duzentos fragmentos.

O apóstolo Paulo fala que carregamos um tesouro em vasos de barro (cf. 2Cor 4,7). E não

poderia ser este o tesouro da fé, dom de Deus que nos foi transmitido pelo anúncio do

Evangelho e infundido pelo sacramento do Batismo?! A imagem de Nossa Senhora Aparecida

carrega a fé de milhares de brasileiros. Por muito tempo e, como não dizer até hoje, para

muitos cristãos, especialmente para os simples e humildes, sua fé no Senhor sempre foi

sustentada pela confiança em Nossa Senhora.

A história da Igreja no Brasil é um exemplo de que a devoção mariana, não apenas

aparecidense, ao longo deste imenso país manteve, apesar de frágil, a fé católica e a pertença à

Igreja, principalmente nos rincões onde não havia igrejas ou em comunidades que estavam

distantes das sedes paroquiais, sobretudo na zona rural onde as famílias costumavam se reunir

aos sábados para a reza do terço e outras devoções nas suas próprias casas, com os vizinhos,

mantendo, assim, o germe da Igreja que deste modo se congregava desde as suas origens,

“com Maria, a mãe de Jesus” (cf. At 1,14).

“Aparecida” é exemplo da fé que resiste às fragilidades do tempo e das circunstâncias,

da fé escondida “como tesouro em vasos de barro”, da fé que une na comunhão os filhos de

Deus, da Mãe que reúne os filhos junto de si e transmite o seu exemplo de servidora da

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Palavra, como quando disse ao anjo: “Faça-se em mim conforme a vossa palavra” (cf. Lc

1,38) e nas bodas aos servos: “Façam tudo o que Ele vos disser” (cf. Jo 2,5).

2.1.2.2. Mulher-ícone da Igreja Mãe na fonte batismal

A mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés, coroada de estrelas (cf. Ap 12,1)

estava grávida, com dores de parto, prestes a dar à luz (v. 2), sendo atormentada e perseguida

pelo Dragão que queria devorar o filho de suas entranhas (v. 3-5.13). Como se trata de um

texto simbólico, as dores de parto não possuem aqui um caráter biológico, mas querem

recordar a Paixão do Senhor que anuncia um “novo nascimento”, a ressurreição. O versículo

cinco manifesta simbolicamente o Mistério Pascal de Cristo e profetiza que todos os que são

perseguidos, personificados na figura da mulher parturiente e dos seus descendentes (v. 17),

fazem parte do povo de Deus, da Igreja que na cruz dá à luz ao homem novo, aquele que

morreu e ressuscitou com Cristo, e por isso reina com Ele (cf. Rom 6,8; 2Tm 2,11-12).

A mulher parturiente, atormentada para dar a luz, segundo Aristides Serra, além de

designar o Mistério Pascal, é um indicador da angústia da comunidade dos discípulos (cf.

FIORES; MEO (Orgs.), 1995, p. 252), principalmente no momento em que o Mestre foi

tirado do meio deles (cf. Jo 16,21-22), e revela a dificuldade de “gerar” Cristo no mundo,

assim como a Virgem-Mãe que apesar de conceber no seu ventre o Filho de Deus, não foi

poupada da espada da dor (cf. Lc 2,35). Ela representa a “comunidade da qual nasce o

Messias, e cujos outros filhos são os cristãos” (PRIGENT, 1993, p. 218), os descendentes da

mulher que “mantêm o Testemunho de Jesus” (v. 17). Contudo, o “parto” da mulher não

termina com o nascimento e exaltação do Filho, mas continua com todos os tipos de ataque

que o Dragão faz à mulher e à sua descendência (v. 13).

A maternidade da Virgem Maria é a imagem da maternidade da Igreja (LUBAC apud

FORTE, 1991, p. 198), sendo que “uma e outra estão unidas pela mesma vocação

fundamental: a maternidade” (THURIAN apud FORTE, 1991, p. 198). O fato de ser “mãe” é,

sem dúvida, o aspecto mais expressivo da relação entre Maria e a Igreja. Entre diversos textos

patrísticos, a Lumen gentium (cf. n. 53) quando apresenta Maria no mistério da Igreja repete

uma expressão de Santo Agostinho a este respeito que, se encontra no Tratado De Sancta

Virginitate e, complementa o mistério da fecundidade da Igreja Virgem: “a Igreja, também

ela, é mãe e virgem [...] Maria deu à luz corporalmente a Cabeça deste corpo. A Igreja dá à

luz espiritualmente os membros dessa Cabeça” (A virgindade consagrada II, 2). E num

sermão natalino, o bispo de Hipona também afirmou de maneira semelhante: “Aquilo que

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Maria mereceu manter na carne, a Igreja o conserva no espírito. Todavia, com esta diferença:

Maria deu à luz um só filho. A Igreja gera a muitos que hão de ser consagrados na unidade,

pelo Filho único da Virgem” (Sermão 195,1-3 – 12º do Natal).

Portanto, a maternidade comum entre Maria e a Igreja, cuja única diferença é que uma

gerou na carne e outra gera no espírito, pela ação do Espírito Santo consiste em conceber e

fazer nascer a Cristo. Como aconteceu no ventre de Maria, assim também faz espiritualmente

a Igreja no coração dos fiéis, isto é, gerar a vida divina através da pregação da Palavra de

Deus, da celebração dos Sacramentos e do testemunho da caridade. Como Maria, a Igreja

gera, nutre, cuida, educa, consola e conduz os filhos do Pai e os irmãos de Jesus, filhos no

Filho, pelo poder do Espírito Santo para viver segundo a fé, a esperança e a caridade.

Contudo,

o equilíbrio na relação entre a maternidade da Igreja e a de Maria desapareceu todas

as vezes que, obscurecido o sentido da natureza materna da Igreja, foram enfatizados

seus aspectos visíveis e jurídicos, acabando-se por substituir a Igreja por Maria e a

caridade irradiante do corpo eclesial do Senhor pela de sua Mãe (FORTE, 1991, p.

200).

Há tantos devotos que amam Maria, visitam seus santuários, cultivam um amor todo

especial para com a Mãe do Senhor, mas estão afastados da comunhão visível da Igreja,

porque talvez ainda carregam na mente a imagem de uma Igreja pouco maternal e muito mais

“obra”, “ONG”, instituição formada exclusivamente pela hierarquia e pelos religiosos e

conjugada apenas no “masculino”. Conforme o Cardeal Ratzinger, é fundamental

compreender a natureza da Igreja também no “feminino” como “mulher” e “mãe”, pois

A Igreja não é um aparato, não é simplesmente uma instituição. Ela é Mulher. É

mãe. É viva. A compreensão mariana da Igreja é o contraste mais forte e decisivo a

um conceito de Igreja meramente organizacional ou burocrático. Nós não podemos

fazer a Igreja, nós devemos ser Igreja [...] É somente sendo marianos que nos

tornamos Igreja. Nas origens, a Igreja [...] nasceu quando o fiat brotou na alma de

Maria. Esse é o desejo mais profundo do Concílio: que a Igreja desperte em nossas

almas. Maria nos indica o caminho (apud LEAHY, 2005, p. 231).

A Conferência de Aparecida acredita que a “visão mariana da Igreja é o melhor

remédio para uma Igreja meramente funcional ou burocrática”, ou seja, uma Igreja-Mãe,

familiar, terna e próxima do povo, que vai ao seu encontro:

Como na família humana, a Igreja-família é gerada ao redor de uma mãe, que

confere “alma” e ternura à convivência familiar. Maria, Mãe da Igreja, além de

modelo e paradigma da humanidade, é artífice de comunhão. Um dos eventos

fundamentais da Igreja é quando o “sim” brotou de Maria. Ela atrai multidões à

comunhão com Jesus e sua Igreja, como experimentamos muitas vezes nos

santuários marianos. Por isso, como a Virgem Maria, a Igreja é mãe” (DAp, n. 268).

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Segundo Hugo Rahner, temos grande dificuldade de contemplar na estrutura terrestre

da Igreja o seu mistério. Por isso, convém aprender de novo a ver a Igreja em Maria e Maria

na Igreja (1958, p. 6). Partindo do grande amor que o nosso povo tem por Nossa Senhora, a

ação evangelizadora precisa aproveitar o grande potencial da devoção mariana para

reaproximar os batizados que estão afastados da comunhão eclesial, da profissão da fé em

comunidade, da celebração dominical da Eucaristia, da frequência nos sacramentos,

ensinando-os, assim, a exercer o sacerdócio comum dos fiéis (cf. LG, n. 10-11) que tem sua

origem no sacramento do Batismo, pelo qual nos tornamos participantes da natureza divina

(cf. 2Pd 1,4) e membros da comunidade da Igreja.

A Mãe Igreja, pelo banho da regeneração e da renovação no Espírito Santo (cf. Tit

3,5), faz com que renasçamos para uma vida nova em Cristo transformando-nos em “homens

novos” (cf. Ef 4,24; Col 3,10) para formar um só corpo (cf. 1Cor 12,13). O nosso

renascimento espiritual pela graça batismal no seio da Igreja está intimamente relacionado

com o mistério do nascimento corporal do Filho de Deus no seio da Virgem Maria. O que

aconteceu em Maria, se completa no sacramento do Batismo, que edifica o Corpo de Cristo

partindo do seio da Igreja Virgem-Mãe de tal modo que o seio de Maria é o seio da Igreja

(RAHNER; 1958, p. 73-74). Pela ação do mesmo Espírito, o seio de Maria gerou

corporalmente o Cristo Cabeça e o seio da Igreja concebe espiritualmente os membros do

Corpo de Cristo que, pela encarnação do Verbo tornaram-se filhos de Deus (cf. Jo 1,12-14).

Nesta aproximação entre o “carnal” e o “espiritual” contemplamos o mistério mariano do seio

batismal da Genetrix Ecclesia.

No portal do batistério da Basílica de São João do Latrão, em Roma, lê-se uma

inscrição poética do século V redigida por São Leão Magno, quando ainda era diácono do

Papa Sisto III, na qual apresenta a fonte batismal como o seio virginal da Mãe Igreja que gera

os seus filhos pelo Batismo:

Aqui nasce para o céu um povo de nobre estirpe. O Espírito é quem dá a vida nessas

águas fecundas. Aqui, a Mãe Igreja gera, com fértil virgindade, aqueles que coloca

no mundo pela ação do Espírito. Esta é a fonte da vida que banha todo o universo:

brota da ferida aberta do coração do Cristo e faz o cristão. Esperai no Reino vós que

nascestes nesta fonte (do Batistério Lateranense)18

.

No edifício sagrado a fonte batismal é o símbolo do seio materno da Igreja. Este

simbolismo na Igreja antiga era muito evidente, tanto nas construções quanto no rito da

iniciação cristã dos catecúmenos. Os batistérios eram como que como “piscinas” de formato

18

O pórtico de entrada do batistério de Aparecida também reproduz esta mesma inscrição.

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octogonal com água corrente na qual os catecúmenos desciam de um lado e subiam pelo outro

por três degraus. O duplo movimento de imersão (descida) e emersão (subida) carregava todo

o significado ritual do Mistério Pascal segundo a catequese batismal de Paulo que ensinava:

“pelo batismo nós fomos sepultados com ele na morte para que, como Cristo foi ressuscitado

dentre os mortos pela glória do Pai, assim também nós vivamos vida nova” (Rom 6,4). “A pia

batismal passa a ser figura da sepultura de Cristo, no ato de descer à pia batismal imita-se a

morte e o sepultamento de Cristo: o batizado morreu e ressuscitou com Cristo. „Aquela água

salvífica se tornou para vós ao mesmo tempo sepultura e mãe‟ (CIRILO DE JERUSALÉM,

Myst. Cat. II, 4)” (SCHNEIDER (org.), 2012, p. 219).

A descrição do antigo rito do Batismo dos catecúmenos na Noite Santa da Páscoa

revela esse caráter maternal da Igreja que gera pelo Batismo. Após a prece de consagração da

água, que corresponde atualmente à bênção da água batismal,

Os catecúmenos se despem [...] Todos entram completamente nus no seio maternal

da Igreja [o batistério], tal como haviam saído do seio de suas mães [...] descendo

um a um [...] até a piscina, onde chegavam comumente descendo três degraus, para

entrar na água corrente até a metade do corpo. A piscina era construída de modo a

obrigar o catecúmeno a descer pelo lado oeste e sair pelo leste. O Bispo fazia a cada

um as três perguntas rituais: “Crês no Pai? Crês no Filho? Crês no Espírito Santo?”

A resposta vem clara e decidida: “Sim, creio!” A cada resposta, o batizado recebe

um jato d‟água ou o próprio batizador derrama água sobre ele, dizendo: “Eu te

batizo.” [...] O batizado então atravessa a piscina, para simbolizar que ele também

faz a travessia milagrosa [cf. a Travessia do Mar Vermelho] Talvez em uma sala

contígua encontrada nas escavações, os neobatizados apresentam-se ao Bispo, que

lhes faz unção sobre a cabeça com o óleo perfumado “da alegria”, o santo crisma,

que os torna membros do povo real e sacerdotal. Os renascidos do batismo recebem

uma veste branca, tecida com uma matéria vegetal, estão “vestidos de linho e

pureza”. Essas vestes simbolizam a transparência da alma e a incorruptibilidade do

corpo, em uma integridade paradisíaca [...] A imposição da mão e o sinal da cruz

sobre a fronte do batizado, de origem apostólica, passam a marca-lo, então, com o

nome de seu novo mestre, seu Imperador Jesus Cristo: “Ele impõe-lhe as mãos,

chamando sobre ele o Espírito.” Essa confirmação sela e conclui a iniciação

batismal. A partir daí, os batizados passam a chamar-se “neófitos”, os recém-

nascidos da mãe Igreja (HAMMAN, 1989, p. 202-203).

Esta longa e detalhada descrição do rito batismal corresponde ao que São Leão Magno

ensinava aos fiéis nos seus sermões: “para todo homem que nasce de novo, a água do batismo

é como o seio virginal: o mesmo Espírito que veio sobre a Virgem vem agora à fonte

batismal” (Sermo 24 in Nativitate Domini, 3; PL 54, 206A). O que aconteceu conosco no

Batismo tem o seu modelo original no seio de Maria. Junto a todas as fontes batismais da Mãe

Igreja está a Mãe de Jesus (RAHNER, H., 1958, p. 74-75).

2.1.2.2.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal do compromisso batismal

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O encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida é um sinal deste

mistério mariano do Batismo, isto é, deste modelo e presença de Maria na geração dos filhos

de Deus no seio da Igreja pela água e pelo Espírito (cf. Jo 3,5). O contexto do encontro da

imagem de Aparecida surgida nas águas do Rio Paraíba apresenta a matéria do Batismo que é

a água e lembra o duplo movimento de entrada e saída da água semelhante ao dos

catecúmenos. Além disso, a imagem quebrada de barro, que resistiu às intempéries do fundo

do rio, está despida de suas cores originais, tanto que um dos pescadores, imediatamente após

resgatá-la das águas, envolveu-a com um manto, como que a “aquecê-la”, e guardou-a no

interior do seu barco. Não está aqui um sinal misterioso do ritual do batismo, quando o

catecúmeno despido ao entrar e sair da água, recebia uma veste branca e estava, portanto,

sacramentalmente incorporado à Igreja “na qual os homens entram pela porta do batismo”

(LG, n. 14), representada em “Aparecida” pelo barco?! Por isso, podemos dizer que

“Aparecida carrega consigo uma mensagem batismal” (SILVA, 2017, p. 25), uma exortação

para redescobrir a partir da fonte batismal a dignidade do ser cristão, assim como São Leão

Magno (século V) admoestava os fiéis na noite do nascimento do Senhor:

Figura 5 – Pórtico de entrada da Capela Batismal do Santuário Nacional de Aparecida.

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Toma consciência, ó cristão, da tua dignidade. E já que participas da natureza divina,

não voltes aos erros de antes por um comportamento indigno de tua condição.

Lembra-te de que cabeça e de corpo és membro. Recorda-te que foste arrancado do

poder das trevas e levado para a luz e o reino de Deus. Pelo sacramento do batismo

te tornaste templo do Espírito Santo. Não expulses com más ações tão grande

hóspede, não recaias sob o jugo do demônio, porque o preço de tua salvação é o

sangue de Cristo (Sermo 1 in Nativitate Domini, 1-3; PL 54,190-193).

O encontro da imagem de Aparecida nas águas é um convite a reanimar na nossa vida

espiritual o compromisso profético, sacerdotal e régio do Batismo, especialmente nas coisas

do cotidiano, assim como aqueles pescadores desanimados pela fadiga estéril de seu trabalho,

mas que encontraram naquela imagem de Nossa Senhora da Conceição a esperança para

seguir lançando as redes. É, enfim, um pedido para viver como filhos do Pai, tendo a Igreja

por Mãe19

.

2.1.2.3. Mulher-ícone da Igreja Esposa da esperança

A mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés, coroada de estrelas (cf. Ap 12,1)

no capítulo 12 do Apocalipse é uma mulher perseguida, símbolo da Igreja peregrina no

deserto entre as tribulações do mundo e as consolações de Deus (cf. LG, n.8). Os elementos

cósmicos concentrados na mulher (sol, lua e estrelas) e relidos segundo a interpretação bíblica

nos indica o perfil da esposa que possui ares de “rainha”. O próprio Livro Cântico dos

Cânticos, cuja estrutura literária é um diálogo entre o “Esposo” e a “Esposa”, uma analogia

comum entre os profetas para exemplificar a relação entre Deus e o povo de Israel, fala da

mulher esplendorosa vestida de sol (cf. Ct 6,10), que nos recorda de imediato a mulher do

Apocalipse (cf. Ap 12,1), cujo destino será glorioso, pois além de “virgem” e “mãe”, ela é

“esposa”: “Vem! Vou mostrar-te a Esposa, a mulher do Cordeiro!” (Ap 21,9). E o “vidente”

de Patmos então faz uma descrição da Cidade Santa de Jerusalém como uma esposa enfeitada

para o seu marido (cf. Ap 21,2).

Maria “é a Virgem Mãe, a criatura na qual o Eterno desposou a história na aliança que

une o humano e o divino, a terra e o céu” (FORTE, 1991, p. 215); é a filha de Sião que

personifica a relação esponsal entre Deus e o seu povo. Na concepção mariológica de Santo

Agostinho, a Virgem Maria é o tálamo da união da divindade com a humanidade (cf.

Comentário do Sl 90,II,5). Apresentada deste modo, tão pouco frequente, isto é, como

“esposa”, Maria é situada no mistério da Aliança como “Sponsa Patris”, “Sponsa Christi” e

19

“Ninguém pode ter a Deus por Pai, se não tiver a Igreja por Mãe” (CIPRIANO DE CARTAGO, Ecclesiae

catholicae unitate, 6: CCL 3. 253 (PL 4. 519)).

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“Sponsa Spiritus Sancti”, de modo especial na sua relação com o Espírito Santo que na

anunciação a envolveu como uma sombra (cf. Lc 1,35), como a nuvem que pairava sobre a

tenda da reunião que abrigava a Arca da Aliança (cf. Ex 40,2-3) que, por sua vez, continha as

Tábuas da Lei (cf. Ex 25,16), o “contrato matrimonial” que estabelecia a relação de fidelidade

entre Deus e o povo que fora escolhido dentre todas as nações da terra para ser sua

propriedade particular, um reino de sacerdotes e uma nação santa (cf. Ex 19,5-6).

Na peregrinação do povo de Israel pelo deserto, a arca tornou-se um sinal da presença

de Deus. Na anunciação, Maria é a nova “arca da aliança” que transporta a presença do Deus

vivo. No Apocalipse, o sinal grandioso da “Mulher” (12,1) é precedido pela visão da arca da

aliança que surge do santuário de Deus (cf. Ap 11,19). “Trata-se a um só tempo do mistério

da Igreja e do mistério de Maria, que como arca contém a presença viva de Deus”

(BASADONNA; SANTARELLI, 2000, p. 153).

“A Igreja dá a Maria o título de „arca da aliança‟ para mostrar o posto que na vida ela

ocupa porque se tornou o lugar da presença viva do Deus que nela se fez homem”

(BASADONNA; SANTARELLI, 2000, p. 153), do Deus que na Antiga Aliança manifestava

a sua glória na nuvem (cf. Ex 40,34-35), e que no seio da Virgem, Mãe e Esposa desceu e se

fez carne para selar a nova e eterna aliança na Cruz, onde Maria aparece ao seu lado sendo

chamada de “mulher” (cf. Jo 19,26), como a “Esposa” ao lado do seu marido (cf. Ef 5,24).

A figura da esposa associa o dom recebido pela virgem e realizado pela mãe. Este

mistério acontece de modo admirável na pessoa de Maria pela ação do Espírito Santo que é a

nupcialidade eterna entre o Pai e o Filho e, por isso, o artífice da aliança entre Deus e o povo.

“A esponsalidade de Maria se oferece como tal no Espírito Santo: nele ela se une ao Pai e ao

Filho, nele ela participa da fecundidade de um e da acolhida do outro, nele ela se torna a arca

da aliança, que une o céu e a terra, guardando Deus em carne humana” (FORTE, 1991, p.

224). Como Esposa no Espírito, Maria “é a porta de Deus para o mundo e a porta do mundo

para Deus [...] O Espírito é aquele que faz de Maria a Esposa, tornando-a Virgem Mãe do

Filho e dos filhos” e “lugar de encontro entre Deus e os homens e de aliança entre os homens

em Deus e com ele” (Ibid., 1991, p. 224-225).

No ícone de Maria Esposa, a Igreja contempla a imagem pura do que deseja e espera

ser (cf. SC 103; MC 22), pois assim como Maria, a Igreja é esposa. “A Igreja sabe que,

acolhendo o Espírito, que lhe é dado em abundância por Cristo ressuscitado, levará a

cumprimento aquilo que nela está apenas iniciado e que contempla realizado justamente na

Esposa das núpcias eternas, Maria” (FORTE, 1991, p. 230). Por isso, no nível escatológico,

mas “também já agora na terra, enquanto não chega o dia do Senhor (cf. 2Pd 3,10), ela brilha,

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como sinal de esperança segura e de consolação, aos olhos do povo de Deus peregrinante”

(LG, n. 68). Maria é o “sinal” da esperança realizada da Igreja, o ícone escatológico da Igreja

glorificada no Espírito. No seu “primeiro membro” tão eminente e singular, a Igreja atinge o

seu termo, repouso e plenitude. Por isso no caminho da Igreja peregrina sobre a terra, Maria é

uma “estrela da noite”.

Mas para atingir este destino glorioso, a Igreja aprende na escola de Maria, os modelos

de virtude para prosseguir no seu itinerário de fé, a fim de progredir na santidade (cf. LG, n.

65) que consiste na conformação ao Esposo, ou seja, na configuração a Cristo, e de ser

testemunha profética da esperança. Este povo da Aliança é também povo da esperança que faz

a sua caminhada para o futuro sem descuidar do tempo presente e da história. Com toda razão,

como Maria no Magnificat cantou a esperança do seu povo, a Igreja proclama o advento do

Reino de Deus e denuncia o que impede a sua instauração. Assim, desta forma, a esperança de

Maria, tal como a da Igreja, não consiste numa amenização ou alienação da realidade social e

dos dramas humanos, mas uma “antecipação do futuro” “que atrai para o presente dos homens

o amanhã da aliança com Deus” (FORTE, 1991, p. 233).

2.1.2.3.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal de esperança em meio ao fracasso

Para aqueles pescadores desanimados por causa do insucesso da pesca, a imagem de

Nossa Senhora da Conceição encontrada nas suas redes tornou-se um ícone de esperança,

pois logo após o seu achado, já depois de tantas tentativas fracassadas, eles lançaram

novamente as redes e o inesperado aconteceu: peixes em abundância. Mas antes dos peixes,

aquelas redes que representam a sua própria vida, trabalho e sustento “estão cheias de uma

presença que os encoraja a não perder a esperança” (FRANCISCO, S.S., Mensagem ao

CELAM (10.05.2017)). E “Quem poderia imaginar que o lugar de uma pesca infrutífera,

tornar-se-ia o lugar onde todos os brasileiros podem se sentir filhos de uma mesma Mãe?”

(FRANCISCO, S.S., Homilia (24.07.2013)). O signo da esperança nos acompanhou desde

que o primeiro sinal de Maria chegou ao Brasil, uma imagem portuguesa de Nossa Senhora da

Esperança que veio a bordo da nau de Cabral. O Brasil foi “descoberto” sob o olhar terno e

protetor da Mãe da Boa Esperança (MEGALE, 1997, p. 203).

Por isso, desde aqueles humildes pescadores, são muitos os brasileiros que depositam

a sua confiança na Mãe de Deus, pois a esperança que não decepciona (cf. Rom 5,5) “é para

nós qual âncora da alma, segura e firme (Hb 6,19). Diante de tantas desigualdades, injustiças,

corrupções, entre tantos outros problemas sociais, políticos e econômicos, além dos dramas

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humanos, o nosso povo segue o seu caminho olhando para Nossa Senhora Aparecida como

“estrela de esperança”. Na encíclica sobre a esperança cristã (Spe Salvi), o Papa Bento XVI

dizia que

A vida humana é um caminho. Rumo a qual meta? Como achamos o itinerário a

seguir? A vida é como uma viagem no mar da história, com frequência enevoada e

tempestuosa, uma viagem na qual perscrutamos os astros que nos indicam a rota. As

verdadeiras estrelas da nossa vida são as pessoas que souberam viver com retidão.

Elas são luzes de esperança. Certamente, Jesus Cristo é a luz por antonomásia, o sol

erguido sobre todas as trevas da história. Mas, para chegar até ele precisamos

também de luzes vizinhas, de pessoas que dão luz recebida da luz dele e oferecem,

assim, orientação para a nossa travessia. E quem mais do que Maria poderia ser para

nós estrela de esperança? Ela que, pelo seu “sim”, abriu ao próprio Deus a porta do

nosso mundo; ela que se tornou a Arca da Aliança viva, onde Deus se fez carne,

tornou-se um de nós e estabeleceu a sua tenda no meio de nós (cf. Jo 1,14) (SS., n.

49).

Na Basílica Nacional, quando da sua viagem apostólica ao Brasil, o Papa Francisco

frisou na homilia três atitudes extraídas das leituras da Solenidade de Nossa Senhora

Aparecida que devem animar o nosso itinerário cristão: conservar a esperança, deixar-se

surpreender por Deus e viver na alegria. E, mais recentemente aos bispos do CELAM,

reunidos em El Salvador de 9 a 12 de maio, expressou que “gostaria de poder visitar o

Santuário de Aparecida” pela celebração dos 300 anos, o que infelizmente não poderá

realizar, mas deixou para os pastores uma mensagem de esperança inspirada em nossa

Padroeira:

Aparecida não traz receitas mas chaves, critérios, pequenas grandes certezas para

iluminar e sobretudo, acender o desejo de nos despojar de todo o desnecessário e

voltar às raízes, ao essencial, à atitude que fez de nosso continente a terra da

esperança. Aparecida renova a esperança em meio a tantas inclemências (Mensagem

(10.05.2017)).

Mas o que esperavam aqueles pescadores senão os peixes para o banquete de recepção

do governador? Assim, o primeiro milagre atribuído a Nossa Senhora Aparecida, os peixes

em abundância, que quase fez afundar o barco, após o encontro da imagem, renovou a

esperança dos pobres e humildes que esperam em Deus. Enquanto que nas Bodas de Caná (cf.

Jo 2,1-11), graças à intervenção de Maria, houve abundância de vinho, o primeiro “milagre de

Aparecida” foi uma pesca abundante. Nestes dois episódios Maria foi um “sinal” para a

abundância de vinho em Caná e de peixes no “imprestável” Rio Paraíba, símbolos do

banquete. E foi justamente para um banquete que aqueles pescadores puseram-se a pescar, do

qual muito provavelmente não puderam participar. Mas o Evangelho também fala de um

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banquete preparado para os pobres, simples e humildes (cf. Lc 14,21). Pela celebração da

Eucaristia, a Igreja antecipa a esperança no banquete definitivo no Reino dos céus.

Todos estes símbolos, repletos de significado, que encontramos misteriosamente

manifestados no “sinal de Aparecida” – o rio, a imagem de barro, as redes, o barco, os

pescadores, o pano que envolveu o corpo da imagem e os peixes abundantes – querem

recordar algo fundamental que precisa ser constantemente resgatado na nossa vida espiritual,

que às vezes é tão indolente e superficial, carente dos sinais do mistério: a fé e os

sacramentos, especialmente o Batismo e a Eucaristia, professados, celebrados e vividos na

comunhão da Igreja Virgem, Mãe e Esposa que encontra na figura, na pessoa e na missão de

Maria as suas primícias (dimensão protológica), modelo (dimensão histórica) e sinal de

esperança realizada (dimensão escatológica).

O “sinal de Aparecida”, embora silencioso e sutil, através da pequenina imagem que

“apareceu” no drama da vida e na trama das redes daqueles três pescadores, é uma forte

mensagem evangélica e profética para a Igreja e para a sociedade de ontem e de hoje. Ao

longo de três séculos, “Aparecida” tem sido para todos uma bênção: “peixes em abundância,

famílias recuperadas, saúde alcançada, corações reconciliados, vida cristã reassumida”

(Excertos da Oração do Ano Jubilar).

Figura 6 – Ícone do encontro da imagem e da pesca milagrosa no Santuário Nacional.

Composição: Claudio Pastro.

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3. A IMAGEM DE APARECIDA NO MISTÉRIO DA IGREJA

3.1. A mensagem de Aparecida sobre o mistério, a vida e a missão da Igreja

A imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida “carrega uma profunda

mensagem de unidade e comunhão” (SILVA, 2017, p. 58) sobre a natureza, a vida e a missão

da Igreja que “é em Cristo como que sacramento isto é, sinal e instrumento, da união íntima

com Deus e da unidade de todo gênero humano” (LG, n. 1). A partir das palavras do Papa

Francisco no encontro com o episcopado brasileiro (2013), onde apresentou Aparecida como

chave de leitura para a missão da Igreja, podemos chamar a sua imagem de ícone da

unidade: “Veem então [os pescadores] a imagem da Imaculada Conceição. Primeiro o corpo,

depois a cabeça, em seguida a unificação de corpo e cabeça: a unidade. Aquilo que estava

quebrado, retoma a unidade” (FRANCISO, S.S., Discurso (27.07.2013)).

3.1.1. “Corpo” e “Cabeça”: o mistério da Igreja e o primado petrino

O “corpo” e a “cabeça” da imagem de Nossa Senhora Aparecida carregam o sentido

profundo de uma unidade restaurada. Quando o pescador João Alves encontrou na sua rede

primeiro o corpo e depois a cabeça da imagem, embora na narrativa do encontro, registrada no

I Livro Tombo da Paróquia de Guaratinguetá, não mencione este detalhe, muito

provavelmente, quem sabe movido pela curiosidade, ele tenha unido as duas partes que

tomaram a forma de uma “coisa” só e, a partir desta união, os três pescadores teriam

reconhecido admirados: “É a Virgem da Conceição”.

Eles bem que poderiam ter lançado a imagem novamente na água, o que não

significaria nenhum desrespeito pelo fato de estar quebrada. Mas por que não o fizeram?

(BRUSTOLONI, 1998, p. 50). Quando chegou à sua casa, Felipe Pedroso tratou logo de

limpar o lodo e consertou a imagem, “Juntando com suas rudes mãos a cabeça ao tronco,

firmou-a com „cera da terra‟” (Ibid., 1998, p. 50).

No mistério que envolve a “cabeça” e o “corpo” de Nossa Senhora Aparecida,

perscrutamos o mistério da unidade do Corpo de Cristo e como o primado petrino na Igreja

pode exercer um carisma de unidade inspirado na Mãe do Senhor.

3.1.1.1. “Corpo”: o mistério da unidade da Igreja

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Para sinalizar o mistério da Igreja, os Padres Conciliares recordaram, entre outras

apresentadas na Constituição Dogmática Lumen Gentium, a imagem da Igreja Corpo de Cristo

(cf. LG, n. 7) segundo a eclesiologia paulina, pois até então predominava uma concepção

unilateral da Igreja como sociedade perfeita e visível, uma instituição de caráter jurídico e

hierárquico, de modo que, sem negar esta dimensão histórico-social, o Concílio buscou

resgatar seus elementos espirituais, conjugando a realidade visível e invisível da Igreja (cf.

LG, n. 8).

A expressão Igreja Corpo de Cristo, tipicamente paulina, indica uma realidade

profunda do mistério da Igreja, embora não seja a única. Inicialmente, na Primeira Carta aos

Coríntios e aos Romanos, Paulo usa a metáfora do corpo (cf. 1Cor 12,12-27; Rom 12,4-5)

para pôr fim às desordens, confusões, rivalidades e disputas por conta da variedade de dons,

carismas e ministérios presentes nestas comunidades, com a finalidade de esclarecer que,

embora haja muitos membros, todos formam um único corpo. A imagem do corpo é usada

para indicar o princípio de unidade “que mantém harmoniosamente juntos entre si os vários

membros, e ao mesmo tempo funda a sua diversidade” (ROSSÉ, 1984, p. 89). O apóstolo não

condena a diversidade e a pluralidade que é justamente obra do Espírito Santo, mas indica que

dentro do Corpo que é a Igreja, a variedade de dons deve manifestar a unidade da comunidade

cujo princípio unificante é Cristo. E o mesmo Espírito, responsável pela manifestação dos

dons, é que conduzirá à unidade o Corpo de Cristo pelo vínculo da caridade e da paz (cf. Ef

2,14-18). Por essa razão, a unidade é a realidade primeira, anterior à diversidade para a qual

deve tender, pois a Igreja é una desde a sua origem, uma vez que se origina na unidade da

Trindade, ou melhor, participa desta unidade indivisa, de tal forma que não é o esforço dos

membros que promove a unidade, mas a ação de Cristo que congrega os membros a Si e entre

si. Por isso que a Igreja não é simplesmente uma comunidade de pessoas associadas para um

mesmo fim, como uma ONG, associação ou clube, mas um corpo vivo que encontra a sua

profunda identidade e unidade em Cristo.

Quando se diz que a Igreja é um corpo, ou seja, um organismo vivo qualquer, isto não

passa de uma metáfora ou comparação. Mas quando este corpo tem uma identidade, trata-se

de uma pessoa específica. Neste caso, a Igreja é o Corpo de Cristo, expressão esta que tem sua

origem anterior a Paulo, pois já era aplicada ao pão do banquete eucarístico. “Paulo considera

a comunidade como corpo de Cristo com o realismo com o qual o pão eucarístico é o corpo de

Cristo” (ROSSÉ, 1984, p. 93). Existe uma profunda identificação e assimilação entre Cristo e

a comunidade de tal forma que a Igreja é a presença viva de Cristo na história. Por isso é

necessária a unidade dos membros num só corpo, porque Cristo não está dividido (cf. 1Cor

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1,13). “A unidade manifesta a comunidade na sua realidade íntima que se trata de não alterar:

Cristo” (Ibid., 1984, p. 95).

Na Carta aos Colossenses e aos Efésios a expressão Igreja Corpo de Cristo ganha uma

dimensão universal e apresenta a distinção “corpo” e “cabeça”. Cristo é a Cabeça do seu

Corpo que é a Igreja (cf. Col 1,18; Ef 1,22-23). Cristo é a “cabeça” (caput) porque ocupa uma

posição proeminente, pois é superior à Igreja e o princípio vital para o crescimento do seu

“corpo”. Deste modo se preserva a distinção que há entre Cristo e a Igreja, do mesmo modo

como entre a cabeça e o corpo, embora ambos estejam unidos. Cristo é o Senhor da Igreja que

não é apenas o seu prolongamento sobre a terra.

Mas a própria Igreja é um “tu” diante de Cristo. Assim como a esposa que com o

marido formam uma só carne (cf. Ef 5,23), esta também é distinta dele. Por essa razão, a

expressão “Igreja Esposa de Cristo” completa os limites da expressão “Igreja Corpo de

Cristo”. Em Ef 5,22-32, Paulo compara a relação entre Cristo e a Igreja como uma relação de

amor recíproco entre marido e esposa, na qual o marido é a “cabeça” da mulher (cf. Ef 5,23).

A principal justificativa para o uso da metáfora “corpo” era para superar as discórdias

e divisões entre os membros da comunidade, no nível interno da vida eclesial. Na evolução

deste pensamento, Cristo é identificado como a Cabeça do Corpo que é a Igreja, pois ele é o

único capaz de reestabelecer a unidade e derrubar o muro da inimizade (cf. Ef 2,14). Como

lugar da presença de Cristo que congrega os homens, consciente de sua missão, a Igreja é

sacramento de Cristo, sinal de unidade para todo gênero humano e instrumento para a

salvação do mundo (cf. LG, nn. 1,48).

Não sem razão é que toda “divisão [...] é contrária ao evangelho” (QUINN, 2002, p.

12), o mesmo que equivale a dizer: toda a divisão se opõe à vontade de Cristo. O Decreto

sobre o Ecumenismo – Unitatis Redintegratio – do Concílio Vaticano II confessa que “Esta

divisão, porém, contradiz abertamente a vontade de Cristo, e é escândalo para o mundo, como

também, prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho a toda a criatura” (UR, n. 1).

Por isso, o interesse pela unidade não significa apenas um apaziguamento nas relações entre

Igrejas cristãs ou boas relações diplomáticas entre cristãos separados, nem serve como que

para “camuflar” o controle da Cúria Romana sob o governo pastoral das dioceses ou ainda a

uniformidade da liturgia, entre outros equívocos, mas a unidade é uma necessidade para a

Igreja cumprir a sua missão no mundo. E mais, a unidade pertence à essência mesma da

Igreja, segundo o que professamos no Credo Niceno-Constantinopolitano: “Creio a Igreja

una...”. Contudo, a unidade que está na essência da Igreja e é um artigo de fé e o cerne da sua

missão, não significa o fim da diversidade (Ibid., 2002, p. 22). Toda uniformidade e

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centralismo são contrários à identidade católica e apostólica da Igreja (Ibid., 2002, p. 24),

sendo que a diversidade é necessária para a unidade, como na analogia paulina entre o corpo e

os seus membros que, “embora sejam muitos, formam um só corpo” (cf. 1Cor 12,12).

Extinguir a diversidade coloca em risco a própria unidade.

3.1.1.2. “Cabeça”: a natureza do primado petrino

A “cabeça” também tem um papel de autoridade e animação cuja missão é manter

unido e coeso o corpo de modo que este cresça e os membros mantenham-se como se fossem

“um” só. O Cristo-Cabeça é representado de modo particular diante do seu Corpo que é a

Igreja por meio do Colégio episcopal em união com o Sumo Pontífice, sucessor de Pedro e

Bispo de Roma que foi constituído como “o princípio e o fundamento perpétuo e visível da

unidade, quer dos bispos, quer da multidão dos fieis” (LG, n. 23).

No Novo Testamento, Pedro é primus inter pares (o primeiro entre iguais), o primeiro

entre os apóstolos (cf. Mc 1,16; Mt 16,18; Lc 22,31; Jo 21,15) e ocupa um lugar proeminente

de chefe e porta-voz do Colégio Apostólico (cf. At 2,14.37; 5,29). Este lugar foi atribuído por

Cristo que o constituiu como “rocha” e entregou-lhe as chaves do Reino dos céus (cf. Mt

16,17-19), confiando-lhe o encargo de apascentar o seu rebanho (cf. Jo 21,15-17) e de

confirmar os irmãos na fé (cf. Lc 22,31). Foi Pedro o primeiro a proclamar a fé em Cristo (Mc

8, 29) e a testemunhar a sua ressurreição (cf. Lc 24, 34; 1Cor 15, 5). Há muitos outros fatos

nos Evangelhos e no livro dos Atos que revelam este lugar proeminente de Pedro que entre os

demais apóstolos de Cristo, exerce uma missão especial.

O primado petrino exerce na Igreja o ministério da unidade e a finalidade do seu

carisma é a unidade da fé e da comunhão de todos os fiéis. E, como todo carisma é dom de

Deus para a utilidade do seu povo, o Sucessor de Pedro e Bispo de Roma tem uma graça

ministerial específica para servir aquela unidade de fé e comunhão (CDF, n. 3-4).

A autoridade do sucessor de Pedro não pode ser compreendida como a de um monarca

ou como qualquer outro cargo de coordenação e presidência, mas, por conta de sua essência

“comporta a faculdade de servir efetivamente à unidade de todos os Bispos e de todos os fiéis,

e „é exercido a vários níveis, que concernem à vigilância sobre a transmissão da Palavra, à

celebração sacramental e litúrgica, à missão, à disciplina, e à vida cristã‟” (CDF, n. 8).

A Constituição Dogmática Pastor Aeternus (18.07.1870) do Concílio Vaticano I,

definiu a natureza e o caráter do primado do Romano Pontífice, onde se destaca o seu papel

enquanto “cabeça de toda a Igreja”, o que não significa uma contradição com a afirmação

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paulina de que Cristo é a Cabeça do seu corpo que é a Igreja (cf. Col 1,18; Ef 1,22-23). O

Sucessor de Pedro e Bispo de Roma é a “cabeça da Igreja” enquanto representante visível da

autoridade de Cristo, Bom Pastor entre os bispos e os fiéis a ele unidos (cf. DS 3059-3060).

Também os bispos como membros do Colégio Apostólico e unidos à sua Cabeça, exercem

este ministério de unidade nas Igrejas locais:

Por sua vez, cada bispo é o princípio e o fundamento visível da unidade na sua

Igreja particular, formada à imagem da Igreja universal: nas quais e a partir das

quais resulta a Igreja católica una e única. Por isso, cada bispo representa a sua

Igreja; e todos, juntamente com o Papa, representam toda a Igreja no vínculo da paz,

do amor e da unidade (LG, n. 23).

O sentido do dogma do primado de jurisdição do Papa, conforme o Concílio Vaticano

I, é que “o bispo de Roma sinaliza de maneira pessoalmente concreta e ao mesmo tempo

sacramentalmente eficaz a unidade da Igreja universal” (KEHL, 1997, p. 321) que procede de

Cristo e não de sua vontade pessoal. Desta forma, ele representa a vontade de Cristo para toda

a Igreja: a unidade (cf. Jo 17,21). Na Encíclica Ut unum sint, sem negar a necessidade de

reforma do papado na perspectiva do diálogo ecumênico como empenho para a unidade cristã,

o Papa João Paulo II salientou uma convicção genuinamente católica acerca da missão

essencial do Bispo de Roma que consiste em ser “o sinal visível e o garante da unidade”

(UUS, n. 88).

Embora nosso objetivo seja compreender o papel do Sucessor de Pedro como “garante

da unidade” para a Igreja universal a partir da analogia paulina entre “corpo” e “cabeça”,

sabemos historicamente que toda divisão externa que hoje existe entre as diversas comunhões

cristãs são frutos de divisões internas no Corpo de Cristo. E, paradoxalmente, sem negar o

essencial e o acidental no primado petrino ao longo dos séculos, especialmente todo

maximalismo que exaltava a figura do Papa a fim de sustentar a sua autoridade frente ao

poder civil e secular e, todo minimalismo que procurava restringir o seu ministério sobre toda

a Igreja, historicamente o primado tornou-se uma das causas de divisão da Igreja. Por isso

urge reintegrar a unidade, mas sem negar o essencial do ministério de Pedro na Igreja, ou seja,

que ele é sinal e garantia da unidade do Corpo de Cristo e a representação visível, juntamente

com os bispos, de Cristo Cabeça e Esposo da Igreja.

O essencial no primado, sem negar a sua autêntica e legítima autoridade enquanto

primado de jurisdição, consiste na comunhão com os bispos, manter a “vigilância”20

sobre

toda a Igreja e assegurar a comunhão entre todas as Igrejas (cf. UUS, n. 94-95). Como Bispo

20

A palavra episkopoi exprime a natureza da atividade pastoral que consiste em vigiar (= velar) o rebanho.

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de Roma, o Papa se apresenta como o bispo de uma Igreja local que preside a todas as outras

na caridade. Isto significa que ele não é o bispo de toda a Igreja ou o bispo dos bispos (DA

SILVA, 2015, p. 708). Mas isto nem sempre foi tão claro na práxis eclesial, quanto parece a

nível conceitual. O Concílio Vaticano II, porém, declara que “a função mais importante do

primado é defender e promover a função dos bispos” (LG, n. 27b). Todavia sempre houve o

risco de uma interpretação maximalista e minimalista do papado, o que corresponde

respectivamente a colocar o Papa acima ou fora da Igreja como um monarca absoluto ou

torná-lo um mero executor da vontade dos bispos. Nem uma nem outra hermenêutica ou

prática assumiu o Vaticano II que, sem suprimir nem corrigir o Vaticano I, procurou abordar o

primado petrino dentro do corpo eclesial e, a partir disto, deixar claro qual a sua natureza e

seu exercício na Igreja e qual sua relação com o episcopado numa perspectiva colegial e

sinodal.

Interessante como os Padres Conciliares articularam dentro do capítulo II da Lumen

Gentium – “Povo de Deus” – a presença do Papa e dos Bispos no conjunto de todos os

batizados e como conjugaram no capítulo seguinte – Constituição Hierárquica da Igreja – a

partir desta visão ampla da Igreja Povo de Deus, a relação entre primado e episcopado (nn.

18-22). Isto quer dizer que a dignidade comum do povo cristão é o sacramento do Batismo e

que, entre o povo de Deus, o Senhor suscita servidores e não “administradores” nem

“príncipes”. Mas para se alcançar esta compreensão foi necessário redescobrir o significado

do ministério episcopal na Igreja a partir de três critérios: 1º. Sacramentalidade; 2º.

Colegialidade; 3º. Responsabilidade. Através do sacramento da Ordem é que os bispos são

inseridos no Colégio e cum Petrus (membro) e sub Petrus (cabeça) são responsáveis por toda

a Igreja (local e universal), sendo-lhes conferido o múnus de ensinar, santificar e reger (LG,

nn. 24-27) em unidade com a cabeça do Colégio, que é o Bispo de Roma, pois de outro modo

não poderia exercer o seu poder, não porque devam estar submetidos a uma obsequiosa

obediência, mas porque no corpo que é a Igreja o primado e o episcopado, como

representantes e agentes da autoridade pastoral de Cristo, deve demonstrar a comunhão da

Igreja (LG, n. 18).

3.1.1.3. “Primeiro o corpo, e depois a cabeça”: “Maria” e “Pedro” no barco da Igreja

Na imagem de Nossa Senhora Aparecida contemplamos o “corpo” da Igreja que na

Virgem Maria já está plenamente realizada. Pela ação do Espírito Santo, Maria tornou-se Mãe

de Cristo e, pela Palavra do seu Filho, ela foi incorporada ao Corpo de Cristo que é a Igreja,

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quando aos pés da cruz, por vontade do seu Filho, o discípulo João a acolheu em sua casa (cf.

Jo 19,25-26). Este gesto de acolhida a Maria foi “repetido” pelos pescadores que agasalharam

a imagem de Nossa Senhora da Conceição no seu barco, nas suas casas e a acolheram dentro

do coração.

Mas além da realidade plenamente divina que transmite, a imagem de Aparecida

carrega as marcas da realidade histórica em que foi encontrada, o corpo separado da cabeça:

um contexto de divisões, disputas e intrigas econômicas, políticas, sociais, étnico-raciais e

eclesiais em que vivia imerso o nosso país. Nosso povo, ainda em plena formação da sua

identidade, já estava dividido pela disputa do ouro que causava muitas desordens sociais e

conflitos violentos nas regiões das minas de ouro; os colonizadores e colonizados também

estavam divididos por causa de conflitos políticos e sociais que começavam a estourar em

alguns lugares do imenso território brasileiro; brancos e negros estavam divididos pela chaga

da escravidão africana, coisa que desafiava a postura da Igreja, e a população nativa

desenraizada de sua cultura, cada vez mais acantonada nos interiores. A Igreja no Brasil

estava praticamente separada da Sé Apostólica por causa das ingerências do Padroado, que se

radicalizaram posteriormente numa hostilidade do Império contra a Igreja sob o regime do

pombalismo. A Igreja universal também vivia no seu interior, disputas teológicas e pastorais

que estremeciam a relação entre primado e episcopado, além das complexas relações do papa

com os monarcas dos Estados católicos. “Aparecida” surge num contexto de disputas,

conflitos e rupturas no conturbado e tempestuoso século XVIII para a “nau de Pedro”.

Contudo, mesmo depois das primeiras restaurações, desde aquela primeira feita na

casa de um dos pescadores, a cabeça da imagem algumas vezes ainda se desprendia do corpo,

como que a chamar a atenção para o problema da divisão entre os povos, na sociedade e na

Igreja em todos os tempos, mas sem nunca deixar de anunciar, quando simbolicamente eram

novamente unidas as duas partes, a esperança da restauração.

Em Aparecida, logo desde o início, Deus dá uma mensagem de recomposição do

que está fraturado, de compactação do que está dividido. Muros, abismos, distâncias

ainda hoje existentes estão destinados a desaparecer. A Igreja não pode descurar esta

lição: ser instrumento de reconciliação (FRANCISO, S.S., Discurso (27.07.2013)).

Mas não apenas a cabeça unida ao corpo na imagem de Aparecida é um símbolo de

restauração da unidade, mas o próprio contexto da pesca, quando foi encontrada, revela um

nexo entre a imagem e os pescadores, o barco e o rio, a rede e os peixes, de modo que numa

única “cena” podemos contemplar “Pedro” e “Maria” no “barco” da Igreja.

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3.1.1.3.1. A pesca de “Tiberíades” e do “Paraíba”

A pesca no Rio Paraíba apresenta elementos muito semelhantes àquela pesca

milagrosa do Evangelho (cf. Lc 5 e Jo 21): o barco, as redes que não se romperam, os

pescadores, o êxito da pesca milagrosa após o fracasso de uma noite inteira de tentativas

frustrantes, sem nada pescar.

O que há entre os pescadores do lago de Tiberíades e do Rio Paraíba, antes e depois da

pesca milagrosa, é a presença de Jesus no primeiro e, a imagem de Maria no segundo relato.

Nas duas versões evangélicas da pesca (cf. Lc 5,1-11 e Jo 21,1-17) há uma ordem de Jesus

para lançar novamente a rede (cf. Lc 5,4; Jo 21,6). No Rio Paraíba, após diversas tentativas,

não há qualquer ordem, mas um último golpe de esperança que resultou, primeiro, no

encontro da imagem em duas partes e, finalmente, numa pesca frutífera e abundante.

A imagem da Virgem Maria que foi retirada prodigiosamente do fundo do rio é como

se repetisse silenciosamente àqueles pescadores o que disse em Caná aos servos: “Fazei tudo

o que ele vos disser” (Jo 2,5). Era um convite à obediência da fé que através da imagem de

Nossa Senhora da Conceição os animava a lançar mais uma vez as redes, tal como fez Pedro

em obediência à Palavra do Mestre: “Mestre, trabalhamos a noite inteira sem nada apanhar;

mas, porque mandas, lançarei as redes” (Lc 5,5). E o resultado da obediência à voz do Mestre

no lago de Tiberíades e da obediência à voz interior da fé no rio Paraíba foi o mesmo:

“apanharam tamanha quantidade de peixes que suas redes se rompiam” (cf. Lc 5,6) e

continuando a pescaria, não tendo até então tomado peixe algum, dali por diante foi

tão copiosa a pescaria em poucos lanços, que receoso [João Alves], e os

companheiros [Domingos Martins Garcia e Felipe Pedroso] de naufragarem pelo

muito peixe que tinham nas canoas, se retiraram a suas vivendas, admirados deste

sucesso (Excerto do I Livro Tombo da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá,

1757-1873).

O barco, as redes e os peixes são símbolos eclesiológicos que aparecem tanto no texto

evangélico da “pesca milagrosa” quanto no encontro da imagem de Nossa Senhora da

Conceição Aparecida. E todos estes são elementos que representam entre si um vínculo de

unidade: o rio e o barco; a rede e os peixes. O “rio” e o “barco” simbolizam respectivamente o

mundo e a Igreja. A Igreja-barco é uma imagem que se fundamenta na Sagrada Escritura (a

arca de Noé e a barca de Pedro) e foi muito explorada pela Patrística. “O mar tempestuoso é o

mundo [...] A nave é a Igreja, que atravessa o mar do mundo” (CODINA, 1993, p. 67). Como

um barco não tem serventia quando estacionado na praia, também a Igreja corre o risco de não

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corresponder à sua missão quando isolada da realidade do mundo. O barco quanto toca a água

do rio representaria esse vínculo entre o mundo e a Igreja, servidora da humanidade. Também

as redes e os peixes apresentam semelhante vinculação. As redes servem para pescar os peixes

para dentro do barco. Após a pesca, Jesus disse a Pedro: “Farei de vós pescador de homens”

(Lc 5,10). Esta expressão no grego significa “„pegar vivos ou para a vida‟, quer dar a entender

que Pedro terá a tarefa de „capturar‟ os homens para a vida” (FABRIS, 2006, p. 63). Há outro

detalhe importante que assinala a missão de Pedro que “pesca” para Jesus: “Simão Pedro

subiu então ao barco e arrastou para a terra a rede, cheia de cinquenta e três grandes peixes; e

apesar de serem tantos, a rede não se rompeu” (Jo 21,11).

A associação do “mar”, do “barco” e da “rede” são imagens para identificar a tarefa

missionária da comunidade que é a mesma de Cristo: “congregar na unidade todos os filhos

de Deus dispersos” (cf. Jo 11,52; 17,20). As redes são arrastadas para a margem pelos

discípulos (v. 8) que iniciam a tarefa completada por Pedro que a puxa até a terra (v. 11), ou

seja, são levadas até perto de Cristo que pede alguns dos peixes que foram apanhados (v. 10).

O verbo grego hélkein para a expressão “arrastar” é o mesmo usado em Jo 12,32 para “atrair”,

e se refere a algo que Jesus disse noutra ocasião: “Quando eu for levantado da terra atrairei

todos a mim”. A “atração operada por Jesus na cruz se realiza por mediação da Igreja,

representada por Pedro, que „arrasta‟ a rede cheia de peixes para onde se encontra Jesus”

(CASALEGNO, 2013, p. 124). E “a rede [que] não se rompeu” (v. 11) assinala a unidade da

Igreja, pela qual Jesus rezou antes da Paixão (cf. Jo 17,21), não obstante a fragilidade humana

dos membros do Corpo de Cristo. As redes repletas de peixes diante do Ressuscitado são um

sinal de que “a unidade é uma meta para o presente e um dom para a o futuro” (Ibid., 2013, p.

124).

O relato evangélico da pesca milagrosa segundo João 21, segue com outra imagem de

unidade e comunhão: é a refeição preparada por Jesus somente com um peixe e um pão (v. 9).

A menção ao peixe e ao pão recorda o milagre da multiplicação (cf. Jo 6), que alguns exegetas

consideram como o texto da instituição da Eucaristia no evangelho de João, o qual no

contexto da ceia omite esta narrativa que aparece em todos os sinópticos, conferindo especial

destaque aos lava-pés (cf. Jo 13). Logo, este texto joanino também tem um sentido

eucarístico. Também os gestos de Jesus (v. 13) são um indício eucarístico do texto. Desde as

origens do Cristianismo, pão e peixe são símbolos eucarísticos e, quando colocados sobre as

brasas acesas, recordam que a presença eucarística de Cristo na comunidade acontece pela

ação do Espírito Santo que congrega a todos num só corpo e num só espírito. A Eucaristia é o

sacramento da unidade, a fonte e o ápice, para a qual tende toda a ação da Igreja (cf. LG,

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n.11). E toda ação da Igreja deve conduzir à comunhão de todos no Corpo de Cristo. Mas,

para que a missão tenha êxito é preciso estar em comunhão com Jesus.

O texto termina, finalmente, com um diálogo entre Jesus e Pedro (vv. 15-17), onde o

Senhor verifica a autenticidade do amor do discípulo a quem pretende entregar e confiar o

cuidado dos seus cordeiros (v. 15) e ovelhas (v. 16-17). Na língua grega “cordeiros” e

“ovelhas” correspondem respectivamente a arnía e prôbata. No Antigo Testamento não há

diferença entre os dois termos, indicando assim a totalidade do povo de Israel e, no Evangelho

a totalidade dos discípulos de Jesus já está prefigurada nos 153 peixes que estão na rede. Mas

para os Padres como, por exemplo, Ambrósio de Milão, “cordeiros” se referiria aos

responsáveis pela Igreja e “ovelhas” corresponderiam ao povo de Deus em geral. O que o

evangelho de João pretende indicar é que toda a Igreja (pastores e rebanho) é confiada a

Pedro. Deste modo, a missão pastoral de Pedro tem um alcance universal e uma

especificidade em relação aos outros apóstolos, pois ele foi constituído como “Cabeça” do

Colégio Apostólico e Pastor da Igreja universal. Por isso, Pedro é pastor entre os pastores

(cordeiros) e vela sob todo rebanho de Cristo (ovelhas).

Também a tarefa de Pedro vem assinalada por dois verbos que correspondem à palavra

“apascentar”: bóskein significa providenciar o alimento para os animais e poimaínein é o

cuidado, responsabilidade e autoridade (condução, defesa e governo) que lhe foi delegada,

pois no diálogo, Pedro não é chamado de “pastor”, mas recebe o ofício de apascentar as

ovelhas de Jesus. O rebanho não é seu, mas de Cristo, o único Pastor (cf. Jo 10). Pedro e os

apóstolos participam da autoridade de Cristo, Bom Pastor.

O mais importante, porém, é a característica fundamental exigida por Cristo a Pedro

para apascentar o rebanho, que é, em primeiro lugar, o seu amor pessoal a Jesus. Para a

pergunta de Jesus – “Tu me amas?” –, Pedro responde com total sinceridade, consciente de

sua fraqueza: “Tu sabes [tudo] que eu te amo!”. “Para indicar o amor de Pedro também

ocorrem dois verbos. Jesus utiliza agapáo (vv. 15.16) e depois filéo (v. 17), enquanto Pedro

só usa o segundo (vv. 15.16.17)” (LÉON-DUFOUR, 1998, p. 206). O amor agapáo é o amor

oblativo que exige doação e entrega, enquanto que filéo é o amor próprio das relações

humanas. Ainda que o amor de Pedro não estivesse preparado para a doação que seu chamado

e missão lhe exigia, Jesus na última vez que lhe pergunta – “Tu me amas?” – usa o verbo

filéo, que designaria um “amor de amizade”, pois é o modo como que o Apóstolo pode lhe

corresponder naquele momento, ou seja, a fraqueza do seu amor não impede o “pescador” de

se tornar “pastor”.

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Portanto, a principal característica do pastor segundo o coração de Deus (cf. Jr 3,15) é

o amor doação, o amor capaz de entrega, algo semelhante ao amor materno. Deste modo, todo

serviço pastoral deve ser caracterizado pelo amor. Tal como diz o Papa Francisco sobre os

“pastores com cheiro de ovelha”, podemos dizer que Jesus deseja “pastores com amor de

mãe”, o amor com que Ele nos amou e foi capaz de transformar o rude pescador da Galileia

em um pastor com amor de mãe para com toda a Igreja.

Por isso é que nos voltamos para o símbolo materno de Maria que encontra lugar de

acolhida no barco daqueles pobres pescadores com redes decadentes e um barco frágil e

inadequado (cf. FRANCISCO, S.S., Discurso (27.07.2007)). Assim também no barco da

Igreja há espaço para dois “símbolos reais” de unidade: Pedro e Maria.

3.1.1.3.2. “Pedro deve olhar para Maria”

Segundo a eclesiologia de Hans Urs von Balthasar, há uma dupla unidade da Igreja

fundada na missão da Virgem Maria e do apóstolo Pedro, que os faz dois “símbolos reais”

polivalentes da Igreja una (LEAHY, 2005, p. 140). Para ele, “Maria” representa a inspiração

carismática e profética (dimensão subjetiva) e “Pedro” a forma e estrutura ministerial,

hierárquica e institucional (dimensão objetiva) da Igreja, sendo ambos os princípios oriundos

da ação do Espírito Santo na Igreja. “Instituição” e “carisma” sempre foram na realidade

histórica da Igreja, realidades difíceis de unir, existindo entre elas uma “tensão” permanente.

Mas para Balthasar, o carisma e a instituição formam um único corpo vivo, que é a Igreja,

iluminado pelo Espírito. E que para que isto aconteça na realidade, é preciso que toda a Igreja

seja “mariana” e “petrina”, de tal modo que, metaforicamente, “Pedro está em Maria” e

“Maria está em Pedro” (Ibid., 2005, p. 147). Contudo, o princípio mariano é mais importante

porque nele “o papado encontra sua „morada‟” (Ibid., 2005, p. 154) e, quando influenciado

pelo princípio mariano, o papado que exerce na Igreja um carisma de unidade, torna-se

“maternalmente auxiliador” (Ibid., 2005, p. 218) de todas as realidades humanas. Em outras

palavras, quando o papado assume um perfil mariano, a autoridade que exerce transparece a

maternidade da Igreja que como mãe gera, acolhe, alimenta, educa, corrige e faz crescer na fé.

É notável como nos últimos pontificados, especialmente desde o Concílio Vaticano II, os

papas demonstraram uma devoção especial à Mãe de Jesus e, como isso influenciou

fortemente no modo como conduziram a Igreja, principalmente no diálogo com o mundo

contemporâneo e com todas as forças “divergentes” na complexa tessitura eclesial.

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O Papa Francisco reforça continuamente essa dimensão maternal da Igreja e, quando

esteve em Aparecida, revelou que quis incluir uma visita ao Santuário Nacional para suplicar

a Nossa Senhora, “o bom êxito da Jornada Mundial da Juventude e colocar aos seus pés a vida

do povo latino-americano” (FRANCISCO, S.S., Homilia (24.07.2013)). O mesmo gesto fez

no dia seguinte à sua eleição (14.03.2013) quando foi visitar a Basílica de Santa Maria Maior,

para confiar a Nossa Senhora o seu ministério. Na Basílica de Aparecida, o Papa Francisco

emocionou a todos quando na procissão de saída, em lugar de portar o báculo pastoral,

estreitava tão ternamente nos seus braços a imagem de Nossa Senhora Aparecida que lhe

tinha sido oferecida de presente. E também, pouco antes do início da celebração eucarística,

teve um encontro “pessoal” com a imagem tricentenária de Aparecida na Capela dos

Apóstolos, que fica imediatamente atrás do “Portal da Virgem”. E quão frutuoso tem sido o

seu ministério como Sucessor de Pedro e Bispo de Roma, assim como foi de outros

pontífices, como do inesquecível Papa do Totus Tuus, João Paulo II, que dedicou o atual

edifício do Santuário Nacional e conferiu-lhe o título de Basílica Menor (BRUSTOLONI,

1998, p. 353) “porque manifesta um „particular vínculo de comunhão que une a Basílica

menor à Cátedra romana de Pedro‟” (SILVA, 2017, p. 119). Também o Papa Bento XVI

visitou Aparecida, ofereceu uma Rosa de Ouro à Nossa Senhora, rezou o terço na basílica e

escolheu-a como sede da V Conferência do Episcopado Latino Americano e Caribenho

(CELAM) no ano de 2007.

Figura 7 – Papa Francisco diante do

nicho de NSCA no Santuário Nacional.

Figura 8 – O Cardeal Damasceno oferece

ao Santo Padre uma réplica de NSCA.

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Naquela imagem quebrada, ícone da unidade restaurada, encontrada nas malhas das

redes de um pescador, acolhida no seu barco e levada para o interior da sua casa há uma

mensagem especial para o Santo Padre e todos os pastores: “Pedro deve olhar para Maria”

(LEAHY, 2005, p. 218) a fim de exercer na Igreja, como “cabeça”, o seu carisma de unidade,

sendo um pastor com amor de mãe.

3.1.2. O “rosto”, as “mãos”, os “lábios” e a “lua”: a vida e a missão da Igreja

A imagem de Nossa Senhora Aparecida, contemplada a certa altura no seu nicho, que

obriga a todos a voltar seu olhar para o alto, por causa dos seus 38 centímetros, é quase

“invisível”. Além do tamanho tão reduzido para as dimensões da gigantesca basílica, o manto

e a coroa praticamente a escondem, como um véu a velar e desvelar o mistério, permitindo

entrever da imagem principalmente o rosto e as mãos que, segundo a nossa reflexão

eclesiológica, representam iconograficamente a vida cotidiana da Igreja que nasce da

comunhão trinitária, se alimenta da oração e cresce com o anúncio do Evangelho da alegria.

3.1.2.1. O diadema na testa: a comunhão trinitária

Sob a fronte de Nossa Senhora Aparecida há “um broche com três pérolas pendentes”

(RIBEIRO NETO, 1970, p. 184) e acima do broche e sobre as orelhas há uma rosa,

totalizando três, que ornamentam a cabeça da Virgem. Com que intenção o autor da imagem

esculpiu seu rosto desta maneira? Talvez quisesse retratar Maria como uma esposa que se

enfeitou para o seu marido (cf. Ap 21,2) ou como uma rainha pronta para se colocar no

vestíbulo do rei (cf. Est 5,1b)? Não sabemos exatamente, mas podemos dizer que segundo o

significado bíblico do número “três”, os três pendentes representam a Santíssima Trindade

(SILVA, 2017, p. 75) como três raios a iluminar o rosto de Maria, como os raios do sol a

envolver todo o seu corpo, como se lhe conferisse uma cor morena como da jovem do Cântico

dos Cânticos: “Sou morena, mas formosa [...] Não olheis eu ser morena: foi o sol que me

queimou” (Ct 1,5-6).

Na iconografia mariana do Oriente é comum sinalizar a presença da Santíssima

Trindade na Virgem com três estrelas que, traçando uma linha imaginária entre elas, formam

o triângulo, um símbolo trinitário que representa a unidade do Pai e do Filho e do Espírito

Santo, de tal forma que o rosto de Maria fica no interior deste “triângulo imaginário”. Quando

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representada com o Menino no colo, ele está posto sobre uma das estrelas que ornamentam o

seu manto.

Como Maria é símbolo da Igreja e os três pendentes são uma representação da

Trindade, vamos empreender uma reflexão acerca da Igreja como ícone da Trindade.

3.1.2.1.1. A Igreja como “ícone da Trindade”

Na Constituição Dogmática Lumen gentium, o capítulo I sobre o mistério da Igreja,

recordando as palavras de São Cipriano, define-a como “o povo congregado na unidade do

Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG, n. 4), inserindo a Igreja no desígnio salvífico

universal do Pai, na missão e obra do Filho e na ação santificadora do Espírito (cf. LG, n. 2-

4). Com essa afirmação acerca da origem trinitária da Igreja, o Concílio deseja rejeitar “toda

redução da comunidade eclesial a mera realidade espiritual ou mera realidade visível,

propondo o mistério da comunhão que brota da Trindade e a ela se volta” (FORTE, 1987, p.

15), pois

todo reducionismo eclesiológico: tanto o secular, que faz da Igreja uma presença

entre as presenças da história – limitando-se à consideração de sua incidência

histórica visível –, como a espiritualista, que exalta a dimensão invisível da

realidade eclesial a ponto de sacrificar a sua concretude humana (FORTE, 1987, p.

17).

Desde o início da Constituição, os Padres desejam evitar este dúplice reducionismo

apresentando a Igreja como mistério (FORTE, 1987, p. 17), pois, até então se enfatizava

demasiadamente a compreensão do que é a Igreja, principalmente, como uma sociedade

perfeita e hierarquicamente constituída. A Lumen gentium dá um passo a mais neste sentido e

apresenta uma visão da Igreja que está para além de um mero sociologismo e espiritualismo, e

faz-nos ver a totalidade da sua complexa realidade.

Bebendo na fonte da eclesiologia dos Santos Padres, o Concílio insere a Igreja no

mistério da Trindade, fazendo dela um ícone da comunhão trinitária que manifesta a vontade

do Pai pela salvação de todo o gênero humano por obra de Cristo, que funda a Igreja para dar

continuidade à sua obra e missão, e a ação vivificadora e santificadora do Espírito Santo.

Logo, a origem da Igreja é divina, não procede da vontade da carne nem do sangue (cf. Jo

1,13). “A Igreja não nasce de baixo [...] mas é posta no tempo pela admirável iniciativa do

amor trinitário” (FORTE, 1987, p. 188-189).

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Segundo o teólogo Bruno Forte, pela ação da vontade de Deus, a Igreja tem uma

origem, forma e destinação trinitária, o que significa dizer que ela veio da Trindade, é ícone

da Trindade na sua estrutura e forma de comunhão e, orienta o seu fim escatológico para a

unidade plena no seio da Trindade (1987, p. 19), pois Deus quis “elevar os homens à

participação da sua vida divina” (LG, n. 2). Como “mistério”, a Igreja participa do plano de

Deus revelado em Cristo através da História da Salvação, de tal modo que não é apenas uma

realidade humana inserida em um contexto social, político, etc., pois ela se origina do

desígnio, missão, obra e ação do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

Assim, a Igreja por meio de Cristo foi instituída como sacramento da união entre Deus

e o homem e da unidade de todo gênero humano (cf. LG, n. 1), instrumento universal de

salvação e meio para participar da vida gloriosa (cf. LG, n. 48). A Igreja “em sua forma

visível e histórica, é o sacramento – isto é, o sinal e o instrumento escolhido – do desígnio

salvífico de unidade, que vai da criação à parusia” sendo, então, “a participação histórica na

unidade trinitária” (FORTE, 1987, p. 20). Na história da Igreja, a Trindade é seu passado,

presente e futuro. Segundo Forte,

no intervalo entre a primeira vinda de Cristo e o seu retorno glorioso, a Igreja busca

ser fiel ao mundo presente e fiel ao mundo por vir, abrigada à sombra do Espírito, tal

como a Virgem acolhedora, Maria, membro por excelência e ícone da Igreja,

alimentada por quanto já lhe fora dado para crescer no longo advento da história,

rumo àquilo que nela ainda não se realizara (1987, p. 24).

Dizer que a Igreja tem uma natureza trinitária significa que ela age em nome da

Trindade por “participação” e “imitação”. Por participação entende-se a sua origem e meta

enquanto que imitação quer dizer que no mundo a Igreja é imagem da Trindade, muito

embora a experiência prática e vivencial do mistério trinitário se oculte no seu paradoxal

fenômeno histórico e na sua fragilidade humana e institucional.

Mas, mesmo condicionada à fraqueza dos seus membros e, apesar disso, a Igreja não

pode ser entendida apenas como uma construção humana ou simplesmente como produto de

uma evolução histórica, nem mesmo a nível institucional. Sem menosprezar estas condições –

humana, histórica e institucional – é preciso ter em conta a vontade de Deus para com a Igreja

dentro da perspectiva do mistério da Trindade e da economia da salvação. Por sua natureza, a

Igreja transcende o tempo e o espaço, ainda que condicionada aos limites humanos e aos

pecados e erros dos seus membros. Sem essa dimensão divina e sobrenatural da Igreja,

seremos constantemente inclinados a fazer apenas um péssimo juízo do seu percurso histórico

e, a rotulá-la como retrógrada, autoritária, opressora, etc.

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Quem passa diante da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida sem reparar

no diadema que embeleza a sua fronte, ainda que se persigne com o sinal da cruz, pode não

ter a consciência suficiente do quanto aquela representação de Maria – símbolo para a própria

Igreja e ícone do mistério da Trindade – está repleta de significado trinitário, cristológico e

pneumático. E mais do que isso, quantos cristãos batizados na Igreja precisam redescobrir o

significado e retomar com renovado ardor o compromisso do seu Batismo.

A Virgem Maria viveu na sua existência o mistério trinitário, vivendo nele

mergulhada, tal como a imagem de Aparecida que por anos permaneceu imersa no fundo do

rio Paraíba, um símbolo batismal por excelência, pois representa que todo batizado em nome

do Pai e do Filho e do Espírito Santo ao tornar-se filho de Deus e membro do Corpo de Cristo

sob a ação do Espírito, foi convidado a mergulhar na vida divina (cf. 2Pd 1,4).

3.1.2.2. Olhos fechados e mãos postas: a oração

Aparecida não é uma imagem comum de Nossa Senhora da Conceição. Além de

faltarem alguns detalhes próprios da iconografia imaculista, chama a atenção o quão diferente,

embora muito expressivo, é o seu rosto, suas mãos, seus lábios e seu porte inclinado para o

alto. Segundo José Eduardo, “as expressões faciais da imagem revelam o rosto de alguém que

está completamente abismada em estupor diante de Deus” (2017, p. 71) porque no seu rosto

brilha o esplendor da Trindade. Seus olhos estão fechados, pois contempla no seu interior o

mistério do Verbo encarnado. E todos quantos passam diante da sua imagem Aparecida,

“encontram a ternura e o amor de Deus no rosto de Maria” (DAp, n. 265)

O olhar do peregrino se deposita sobre uma imagem que simboliza a ternura e a

proximidade de Deus. O amor se detém, contempla o mistério, desfruta dele em

silêncio. Também se comove, derramando todo o peso de sua dor e de seus sonhos.

A súplica sincera, que flui confiante, é a melhor expressão de um coração que

renunciou à autossuficiência, reconhecendo que sozinho nada pode. Um breve

instante condensa uma viva experiência espiritual (DAp., n. 259).

De fato, esta não é uma imagem “com as quais estamos acostumados, [pois] não está

desenhada como a figura de alguém que olha os homens, mas de alguém que está

completamente embevecida do amor divino, absolutamente fora de si e derramada em Deus”

(SILVA, 2017, p. 71) tal como se estivesse no arrebatamento de um êxtase espiritual, coisa

semelhante ao que poderíamos imaginar na hora da Anunciação (cf. Lc 1, 26-38), durante

aquele diálogo aberto entre o céu e a terra que inaugurava um novo modo de se relacionar

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com Deus através da oração em Cristo e com Cristo. Desde aquele momento, aprendeu-se um

novo modo de orar que consiste em participar da oração de Cristo ao Pai sob a unção do

Espírito Santo. E “as mãos de Nossa Senhora, e sua própria atitude recolhida, são um convite

para a oração e nos chama à oração” (2017, p. 72). João Paulo II exprimiu-se deste modo

sobre as mãos de Nossa Senhora Aparecida quando esteve no Brasil em 1980:

Sei que, há pouco tempo, em lamentável incidente, despedaçou-se a pequenina

imagem de Nossa Senhora Aparecida. Contaram-me que entre os mil fragmentos

foram encontradas intatas [intactas] as duas mãos da Virgem unidas em oração. O

fato vale como um símbolo: as mãos postas de Maria no meio das ruínas são um

convite a seus filhos a darem espaço em suas vidas à oração, ao absoluto de Deus,

sem o qual tudo o mais perde sentido, valor e eficácia. O verdadeiro filho de Maria é

um cristão que reza (JOÃO PAULO II, S. S., Discurso (04.07.1980)).

Na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte, o mesmo Papa exortou à “necessidade21

de um Cristianismo que se destaque principalmente pela arte da oração (NMI, nn. 32) e que

através de uma educação para a oração se aprenda esta arte dos lábios do Mestre (cf. NMI,

nn. 33-34). Para tanto, é preciso cultivar uma verdadeira relação de amizade com Jesus (cf.

DAp, n. 255) a fim de superar toda a superficialidade. Santa Teresa de Ávila tem uma

definição fantástica e muito simples acerca do que é oração: “Oração é tratar de amizade,

estando muitas vezes a sós com quem sabemos que nos ama” (TERESA DE JESUS. Livro da

Vida, VIII, n. 5), isto significa estabelecer um diálogo de interioridade e de intimidade.

A relação de amizade com Jesus, semelhantemente às relações humanas, começa a

partir de um encontro. “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande

ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo

horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE, n. 1). O Documento de Aparecida chega até

a indicar os lugares de encontro com Jesus Cristo que são: na Igreja-Comunidade reunida; na

Sagrada Escritura (Lectio divina); na Sagrada Liturgia, especialmente celebrada aos

domingos; nos Sacramentos da fé, sobretudo a Eucaristia e a Reconciliação; na oração pessoal

e comunitária; na piedade popular que constituiu uma genuína espiritualidade; nas pessoas, de

modo especial os pobres, os aflitos, os enfermos, as crianças, os jovens e os idosos (cf. DAp.,

nn. 246-264).

A oração na vida da Igreja e de cada cristão assume duas dimensões fundamentais e

complementares para a vida espiritual: a dimensão pessoal e comunitária. Da experiência com

Jesus Cristo a partir do “encontro” que transforma e orienta a existência (cf. DCE, n. 1),

21

Segundo o Catecismo da Igreja Católica, a oração é uma necessidade vital (cf. CIC, n. 2744).

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somos chamados a assumir esta relação de amizade a nível pessoal e comunitário,

alimentando-a com um ritmo diário e semanal de oração.

Podemos chamar a oração pessoal de “oração do quarto” (cf. Mt 6,6). Ela consiste

basicamente da oração mental, da oração vocal, da leitura e meditação da Palavra de Deus, da

contemplação, das devoções, entre outros aspectos e métodos que reforçam nossa relação

íntima como o Senhor, aquele diálogo a sós com Ele. Contudo, todo encontro com Senhor,

por mais pessoal que seja não nos fecha no isolamento do próprio “eu”, mas nos conduz ao

encontro do próximo, de modo especial aos irmãos da comunidade.

Quando oramos ao Pai, reconhecemos que somos filhos que pertencem a uma só e

mesma família, que é a Igreja. Por isso, a oração comunitária é a “oração da sala de cima” (cf.

At 1,13) que remonta ao Cenáculo onde a comunidade primitiva se reuniu com Maria para a

prece comum. A oração comunitária consiste em orar com a Igreja, especialmente através da

liturgia, da participação na celebração eucarística no Dia do Senhor, da frequência aos

Sacramentos, no Ofício Divino, entre outros atos celebrativos.

Naquele Cenáculo, onde estavam reunidos e unânimes em oração os apóstolos, os

irmãos do Senhor e algumas mulheres, destaca-se a presença de Maria, a mãe de Jesus (cf. At

1,13-14). O Papa Bento XVI quando esteve em Aparecida para a abertura da V Conferência

do Episcopado Latino-Americano e Caribenho (2007), após a oração do Rosário na Basílica

Nacional de Aparecida, recordava que aquele momento era um prolongamento da oração do

Cenáculo que a Igreja em todos os tempos faz quando se reúne com Maria:

Como os Apóstolos, juntamente com Maria, “subiram para a sala de cima” e ali

“unidos pelo mesmo sentimento, entregavam-se assiduamente à oração” (At 1,13-

14), assim também hoje nos reunimos aqui no Santuário de Nossa Senhora da

Conceição Aparecida, que é para nós nesta hora “a sala de cima”, onde Maria, Mãe

do Senhor, se encontra no meio de nós. Hoje é ela que orienta a nossa meditação; ela

nos ensina a rezar. É ela que nos mostra o modo como abrir nossas mentes e os

nossos corações ao poder do Espírito Santo, que vem para ser transmitido ao mundo

inteiro (BENTO XVI, S.S., Discurso (13.05.2007)).

Aos bispos e a todo o povo latino-americano reunido em Aparecida, o Papa fez um

insistente convite: “Permanecei na escola de Maria”. E um dos seus ensinamentos mais

importantes é a arte de orar. Toda a atividade missionária da Igreja depende desta

“graduação” básica e fundamental da “escola de oração” que tem como mestra Maria

Santíssima, que no Santuário de Aparecida “nos acolhe [...] e, como Mãe e Mestra, nos ajuda

[e ensina] a elevar a Deus uma prece unânime e confiante” (BENTO XVI, S. S., Discurso

(13.05.2007)).

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Foi na “escola de Maria” que aqueles pescadores, seus familiares, amigos e vizinhos

começaram a se reunir todos os sábados para a reza do terço no oratório de paus construído

por Atanásio Pedroso na sua própria casa, segundo consta no relato histórico da “aparição” da

imagem de Nossa Senhora da Conceição, longe da sede paroquial e sem a presença de

clérigos ou religiosos, como recordação das primeiras comunidades cristãs que se reuniam nas

casas para orar, cantar os louvores e repartir o pão com alegria e singeleza (cf. At 2,42-47). O

protótipo da comunidade primitiva serve de modelo e inspiração para a renovação da Igreja

em todos os tempos. Assim, no Brasil, aquele culto familiar e popular, que cresceu

exponencialmente até se transformar numa devoção nacional, foi um germe da expansão da

Igreja no Brasil e recorda algumas características que a Igreja não deve descuidar na sua

missão: atenção às periferias sociais e existenciais, opção preferencial pelos pobres, presença

nas famílias e nos meios populares, simplicidade, proximidade e encontro. Essas

características são tão fortes em Aparecida que apesar da enormidade da Basílica, ela não

perdeu a sua característica de casa familiar, onde Maria é invocada como Mãe que conduz

para o seu Filho que nos revela o Pai. Por isso, o Papa Bento XVI recordou quando lá esteve:

“o Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida [...] é Morada de Deus,

Casa de Maria e Casa de Irmãos” (Discurso (12.05.2007)). E, é a partir de casa que a mãe

ensina os filhos a orar!

3.1.2.2.1. Os olhos

Na escola de Maria aprendemos a orar com o “olhar”! Para entrar no interior de nós

mesmos para o encontro com o Senhor, na intimidade, é preciso ter os olhos fixos em Jesus

(cf. Hb 12,2), pois com Ele aprendemos a falar com o Pai (cf. Lc 11,1-4) participando da sua

oração, orando com ele e nele sob a ação do Espírito que habita em nós (cf. 1Cor 3,16) e nos

ajuda a orar como convém (cf. Rom 8,26) a fim de entoar “aquele hino que é cantado por todo

o sempre nas habitações celestes” (SC, n. 83).

O cantor e compositor Renato Teixeira traduziu na canção “Romaria” como o “olhar”

é a primeira oração de quem não sabe rezar: “Como eu não sei rezar, só queria mostrar meu

olhar, meu olhar, meu olhar!”. O início de qualquer relação começa pelo olhar, que é sempre

anterior à palavra. E apenas uma relação de intimidade profunda é capaz de dispensar as

palavras e permanecer no olhar.

Maria, nosso modelo de oração, nos ensinar a orar com o olhar. No Santuário Nacional

a sua pequena imagem não ocupa o centro do olhar, mas está aos fundos, numa das quatro

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naves laterais. O centro do olhar é o altar e o Cristo crucificado, assim como toda a

assembleia, que “ela” contempla de onde está. “A contemplação de Cristo tem em Maria o

modelo insuperável” porque “à contemplação do rosto de Cristo, ninguém se dedicou com a

mesma assiduidade de Maria”, pois ela “vive com os olhos fixos em Jesus” (RVM, nn. 10-

11).

O olhar da Bem-Aventurada Virgem Maria, segundo o Papa João Paulo II no seu

comentário à oração do Rosário, que é uma oração marcadamente contemplativa, é um olhar

com múltiplas facetas: interrogativo, penetrante, doloroso, radioso e ardoroso.

Desde então o seu olhar, cheio sempre de reverente estupor, não se separará mais

dele. Algumas vezes será um olhar interrogativo, como no episódio da perda no

templo: “Filho, porque nos fizestes isto?” (Lc 2,48); em todo caso será um olhar

penetrante, capaz de ler no íntimo de Jesus a ponto de perceber os seus sentimentos

escondidos e adivinhar suas decisões, como em Caná (cf. Jo 2,5); outras vezes, será

um olhar doloroso, sobretudo aos pés da cruz, onde haverá ainda, de certa forma, o

olhar da parturiente, pois Maria não se limitará a compartilhar a paixão e a morte do

Unigênito, mas acolherá o novo filho a ela entregue na pessoa do discípulo predileto

(cf. Jo 19,26-27); na manhã da Páscoa, será um olhar radioso pela alegria da

ressurreição e, enfim, um olhar ardoroso pela efusão do Espírito no dia de

Pentecostes (cf. At 1,14) (RVM, n. 12).

Maria contempla (olha) e medita (guarda no coração) e, assim, recolhe a realidade

exterior com o seu olhar e a carrega com as suas mãos para dentro do coração (cf. Lc

2,19.51). É como se ela mesma estivesse a “recitar” o rosário à medida que contemplava os

vários momentos (mistérios) da vida de seu Filho. Seus olhos fechados na imagem de

Aparecida não são sinal de indiferença para quem a olha, mas pelo contrário, na intimidade de

Deus ela contempla a cada um que passa diante da sua imagem e a olha com fé, como se

contemplasse em cada pessoa a face do seu próprio Filho e como se cada situação ou

problema que os fiéis lhe apresentam fosse um mistério da vida de Jesus que ela acompanhou

de Belém até a Cruz. Também “quando recita o rosário, a comunidade cristã sintoniza-se com

a lembrança e com o olhar de Maria” (RVM, n. 11). Esta oração contemplativa é de poucas

palavras (cf. Mt 6,7), pois consiste mais em muito amar do que tanto pensar ou falar (cf.

TERESA DE JESUS. Moradas IV, I, n. 7).

3.1.2.2.2. As mãos

As mãos postas, como na imagem de Aparecida, são um gesto simbólico que indica a

oração. As mãos são muito importantes para a realização de diversas atividades. Ao longo do

dia elas estão sempre “desencontradas” para desempenhar numerosos trabalhos. Mas quando

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unidas, representam a harmonia de todo ser que, antes, durante ou após a jornada do dia se

une para concentrarem corpo, alma e espírito para o encontro com Senhor. É como fechar as

portas e as janelas dos sentidos, sempre tão distraídos, para estar todo na presença de Deus.

As mãos de Nossa Senhora Aparecida nos indicam que além da necessidade de orar sem

cessar (cf. 1Ts 5,17), é preciso orar bem e de modo digno, atento e devoto e unir dois aspectos

necessários para o equilíbrio da nossa vida diária: contemplação e ação.

Entretanto, a contemplação de Maria não significa inércia ou passividade, mas “êxtase

em relação a Deus e em relação ao homem” (KAUFMANN, 1988, p. 315). O seu olhar à

medida que se volta para Cristo contempla o seu interior, colocando-se diante do seu próprio

mistério na presença Daquele por quem ela se sente olhada e amada. O fruto da sua

contemplação não é estéril, mas a impele para frente, para o serviço. Na visita à Isabel (cf. Lc

1,39-56), a partir da sua experiência pessoal com Deus (cf. Lc 1,26-38), ela se coloca à

disposição de sua prima. No dizer de Hans Urs von Balthasar sobre o papel de Maria hoje,

“cada vez mais em sua vida sua experiência pessoal contemplativa é uma experiência para os

outros” (apud KAUFMANN, 1988, p. 320), sua contemplação se transforma em serviço para

a Igreja e para o mundo. É algo que precisamos assumir continuamente para o êxito de toda

pastoral na Igreja: a oração e a contemplação precedem o serviço. Para falar de Deus e

realizar as obras de Deus é preciso falar com Deus!

A alma de todo apostolado, célebre obra do Padre Chautard, mostra que a união da

vida ativa e contemplativa, é condição para a fecundidade das obras. O cardeal vietnamita

Van Thuan, nos treze anos de prisão durante o regime comunista que imperava no seu país,

longe da sua sede episcopal, aprendeu a discernir e a escolher entre Deus e as obras de Deus

(2000, p. 26), o que segundo o evangelho significa escolher a melhor parte (cf. Lc 10,42). O

próprio Jesus é o melhor exemplo disso, já que não realizava nenhuma obra sem antes entrar

na intimidade com o Pai (cf. Lc 5,16). Toda experiência de Deus que fazemos é, realmente,

intransferível, porém jamais está alienada da entrega e do serviço generoso que somos

chamados a fazer. A oração, justamente, nos faz sensível aos necessitados e nos torna

solidários com os seus destinos, assim como Maria que se compadeceu dos noivos daquela

festa de casamento ao dizer para Jesus: “Eles não têm mais vinho” (Jo 2,3). Segundo o Papa

Francisco, Maria...

É contemplativa do mistério de Deus no mundo, na história e na vida diária de cada

um e de todos. É a mulher orante e trabalhadora em Nazaré, mas é também a

Senhora da prontidão, a que sai “às pressas” (Lc 1,39) da sua povoação para ir

ajudar os outros (EG, n. 288).

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A dupla vertente da contemplação são os olhos e as mãos (KAUFMANN, 1988, p.

326). Maria conjuga contemplação e ação “sendo toda de Deus e toda servidora da

humanidade” (CAPRANI, 2016, p. 75). Na imagem de Aparecida, apesar do silêncio dos

lábios, percebemos a linguagem do seu olhar. Apesar de suas mãos imóveis, vemo-las unidas

e disponíveis para o maior serviço, a oração. Que a oração da Igreja seja sustentada pela

oração de Maria (cf. CIC, n. 2679) e que ela nos ensine a unir nossas mãos para a oração e nos

dê olhos para “ver as necessidades e os sofrimentos dos nossos irmãos e irmãs” (Excerto da

Oração Eucarística VI – D).

As mãos postas e os olhos fechados de Maria são um convite à oração, a dar espaço

para Deus habitar, animar e operar em nós. Como diz a oração do Ano Jubilar: “Recordai-nos

o poder, a força das mãos em prece!”. Sua oração contemplativa é um mergulho no mistério

da Santíssima Trindade (SILVA, 2017, p. 74). E suas mãos estão postas sobre o coração, pois

ela reza tudo o que coração medita e o que os olhos enxergam acerca da realidade de si e do

mundo, de Cristo e da Igreja e de todos quantos se colocam sob o seu olhar. E quantos são

transformados por esse olhar tão discreto, voltado para dentro, mas nunca alheio a quem

busca só um olhar.

“O olhar dos peregrinos sobre a imagem de Nossa Senhora e de Maria sobre eles

sempre impactou o atual Bispo de Roma”, disse o Pe. Alexandre Awi no seu livro-entrevista

com o Papa Francisco – “Ela é minha mãe!” (2015). Vale apena transcrever aquilo que o

Papa disse enquanto ainda era cardeal-arcebispo de Buenos Aires a respeito da “necessidade

que todo peregrino tem do terno olhar de Nossa Senhora” que nos impele a não desviar os

olhos dos demais, sobretudo os mais necessitados.

Hoje nós, depois de um longo caminho, vimos a este lugar de descanso, porque o

olhar de Nossa Senhora é um lugar de descanso, para contar-lhe nossas coisas. Nós

necessitamos de seu olhar terno, seu olhar de Mãe, essa que destapa a nossa alma.

Seu olhar que está cheio de compaixão e de cuidado. E por isso hoje lhe dizemos:

“Mãe, presenteia-nos o teu olhar”. Porque o olhar da Virgem é um presente, não se

compra. É um presente dela. É um presente do Pai e um presente de Jesus na cruz

[...] O olhar de Maria nos ensina a olhar os que naturalmente olhamos menos, e que

mais necessitam: os mais desamparados, os que estão sozinhos, os doentes, os que

não têm com que viver, os meninos de rua, os que não conhecem Jesus, os que não

conhecem a ternura de Nossa Senhora, os que estão mal [...] Que não nos roubem o

olhar de Nossa Senhora, que é olhar que nos fortalece a partir de dentro. Olhar que

nos faz fortes, de fibra, que nos faz irmãos, que nos faz solidários. Mãe (...) que este

olhar me ajude a olhar dos demais, a me encontrar com Jesus Cristo, a trabalhar para

ser mais irmão, mais solidário, mais “encontrado” com os demais. E assim, juntos,

possamos vir a esta casa de descanso sob a ternura do teu olhar. Mãe, presenteia-nos

o teu olhar! (apud AWI MELLO, 2015, p. 54-55).

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Aquela imagem tão “olhada”, contemplada, venerada e amada “carrega uma profunda

mensagem de oração” (SILVA, 2017, p. 73) desde “a densidade das orações de um monge

beneditino que a esculpiu e a densidade exponencialmente multiplicada pelos cânticos e

orações que nos últimos três séculos, devotos de todas as partes do Brasil elevaram a Deus,

como uma mesma prece ininterruptamente prolongada” (Ibid., 2017, p. 72). Nossa Senhora

Aparecida é um ícone da união íntima com Deus através da oração!

3.1.2.3. Os lábios sorridentes: o anúncio alegre do Evangelho

O rosto resplandecente de Nossa Senhora Aparecida, além do estupor do olhar, irradia

alegria através dos seus lábios que esboçam um discreto sorriso. Os seus lábios estão

sorridentes pela alegria de gerar Cristo sob a ação do Espírito Santo, ela que foi escolhida pelo

Pai. Além da ternura, os devotos que contemplam a sua imagem são presenteados com a

alegria de uma Mãe que sorri...

Mas no que consiste a alegria cristã? O Papa Paulo VI no Ano Santo de 1975 escreveu

uma exortação apostólica sobre a alegria cristã (Gaudete in Domino), um tema surpreendente

para um homem tão discreto como foi ele. Nesta exortação, ele recorda que a alegria cristã é o

regozijo e o gozo no Espírito Santo, é o “alegrar-se no Senhor” como recomenda o apóstolo

Paulo (cf. Fil 4,4), é uma participação espiritual na insondável alegria de Cristo (GD, n. 16).

Esta alegria sem fim, o que também podemos chamar de “felicidade”, o homem encontra

apenas na comunhão com Deus e com os demais (GD, n. 15).

Esta não é uma alegria fugaz e passageira ocasionada por momentos efusivos ou

multiplicada por ocasiões de prazer, pois a alegria humana, sempre imperfeita, frágil e

quebradiça, tenta satisfazer-se no dinheiro, no conforto e em toda espécie de segurança

material, coisas que nunca lhe serão suficientes, pois não eliminam o sofrimento, mas

aumentam o tédio, agravam a tristeza, a aflição e a angústia do homem contemporâneo

entregue ao desespero e conduzido pelo frenesi de um cotidiano no qual já não encontra o

sentido de sua existência, além das misérias do nosso tempo (cf. GD, n. 7-8). Há uma tristeza

individualista que brota do coração comodista e mesquinho, uma busca desordenada de

prazeres superficiais repleta de outros interesses, um isolamento e fechamento que não deixa

espaço aberto para o outro e nem para Deus, há ressentimentos, murmurações e reclamações

de todo tipo que deixam o espírito conspurcado e conturbado (cf. EG, n. 2).

Mas é precisamente em meio a essas dificuldades que os nossos contemporâneos tem a

necessidade de conhecer a alegria (cf. GD, n. 9). E como conhecerão a alegria verdadeira se

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não há quem a testemunhe e anuncie? Este é o mesmo drama do etíope que lendo uma

passagem da Escritura não a compreendia. Por isso, o diácono Filipe o interrogou – “Entendes

o que lês?” – ao que ele respondeu: “Como o poderia se ninguém me explicar?” (At 8,30-31).

A partir daquele momento Filipe evangelizou e batizou o eunuco que “prosseguiu na sua

jornada com alegria” (v. 39), enquanto o diácono “anunciava a Boa Nova em todas as cidades

que atravessava” (v. 40) provocando grande alegria (cf. At 8,8). Assim como aquele eunuco

etíope, encontra-se o homem de hoje diante do conceito de “felicidade”, porém sem

compreendê-lo e perdido sem saber onde encontrar a verdadeira alegria. É preciso ter o ardor

de Filipe e de tantos quantos nos precederam para anunciar com renovado ardor e entusiasmo

que a alegria do Senhor é a nossa força (cf. Nm 8,10) e que Ele é a esperança que não

decepciona (cf. Rom 5,5). É preciso que o homem de hoje encontre no ser cristão um

testemunho de alegria e esperança.

Esta alegria que brota discreta dos lábios da Virgem é a alegria do Evangelho que

nasce do encontro com Jesus, como afirma o Papa Francisco: “A alegria do evangelho enche

o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por

Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo,

renasce sem cessar a alegria” (EG, n. 1). O Sínodo sobre a Nova Evangelização (2012) e a

Exortação Apostólica Evangelii Gaudium são um convite a uma nova etapa evangelizadora na

vida da Igreja marcada por algo que está logo no início do anúncio do Evangelho, no

momento da Anunciação (cf. Lc 1,26-38): a alegria. Para tanto, os evangelizadores precisam

ser evangelizados e evangelizantes, precisam ter “espírito”, isto é, “uma moção interior que

impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária” (EG, n. 261). E para

recobrar o espírito é necessário tomar a decisão de renovar o encontro com Jesus, procurá-Lo,

voltar para Ele de todo coração e com todo o ser. No encontro com ele, Jesus nos perdoa e

restitui a alegria roubada pelo pecado (cf. EG, n. 3).

A Sagrada Escritura está repleta de testemunhos de alegria de evangelizadores que não

foram indiferentes ou alheios às tristezas do seu tempo, mas com voz profética anunciaram a

esperança no porvir. O Antigo Testamento é um prenúncio da alegria da salvação dos tempos

messiânicos. O anúncio dos profetas era um convite à alegria exultante pela expectativa da

chegada do Senhor (cf. Is 9,2; 12,6; 40,9 / Zc 9,9). É também um testemunho da alegria do

nosso Deus que é fonte e centro de irradiação da alegria. Um Deus que dança e grita de

alegria por nós. E onde Ele está não há tristeza, mas festa (cf. Sf 3,17).

No Novo Testamento a alegria é transbordante. Os primeiros capítulos do evangelho

de Lucas, especialmente, são um testemunho da alegria no Espírito Santo que enche o coração

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e a alma da Virgem Maria, de Isabel e de João (cf. Lc 1,41.47 / Jo 3,29), dos pastores do

campo de Belém, alegria que se originou de um anúncio que veio do céu pela boca dos anjos:

o Senhor está no meio de ti! (cf. Lc 2,10; Sf 3,15). Quanta alegria Jesus expressa no

evangelho pela acolhida da Palavra entre os pobres e humildes, pelo pecador que se converte

e faz este júbilo atingir as alturas (cf. Lc 15,7). A alegria no Evangelho é a alegria do Reino

de Deus, que é uma alegria exigente, pascal, que sobrevive em meio às perseguições e

tribulações da vida apostólica (cf. At 13,52). A mensagem do Evangelho é uma fonte e uma

promessa de alegria que consiste em ver o Senhor (cf. Jo 16,20-22) e repartir o pão (cf. At

2,46), ou seja, é comunhão com Deus e com os irmãos. Ninguém é feliz sozinho. Por isso

onde passavam os discípulos causavam e transmitiam alegria (At 8,8.39; 16,34). Esse é o

perfil dos evangelizadores para uma nova evangelização, embora ainda haja alguns cristãos

que vivam uma “quaresma sem páscoa” (cf. EG, n. 6) ou como costuma dizer o Papa

Francisco: cristãos com “cara de cemitério”.

É preciso recuperar a alegria de evangelizar (EN, n. 80). A evangelização não é apenas

mais uma atividade da Igreja, mas o fundamento da missão da Igreja. A causa missionária é a

primeira de todas, “é o paradigma de toda a obra da Igreja” (EG, n. 15). O Apóstolo dos

povos dizia convictamente: “Anunciar o Evangelho não é título de glória para mim; é, antes,

necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho” (1Cor 9,16).

Evangelizar também não é uma atividade que nasce da iniciativa pessoal, mas é, em primeiro

lugar, obra de Deus que nos quis chamar para cooperar com Ele. A iniciativa é sempre de

Deus (cf. 1Jo 4,19), Aquele que dá crescimento a todas as coisas (cf. 1Cor 3,17). Evangelizar

é uma missão da Igreja! Essa convicção é necessária para manter a alegria e evitar a

frustração como se tudo dependesse da nossa capacidade e performance pessoal.

Outra coisa importante é o testemunho. Uma “Igreja em saída” que evangeliza é uma

comunidade que vive a fé com alegria e que por onde passa não faz proselitismo, mas partilha

uma alegria que é capaz de causar admiração e estupor. Dizia o Papa Bento XVI aos bispos

latino-americanos e caribenhos: “A Igreja não cresce por proselitismo, mas por „atração‟”

(Discurso (13.05.2007)).

3.1.2.3.1. A presença evangelizadora de Maria na América Latina

A Virgem Maria ao longo dos séculos de evangelização exerceu uma irresistível

“atração” e se tornou porta-voz da alegria do Evangelho, especialmente no continente latino-

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americano, como artífice de comunhão, imagem da Igreja-Mãe, capaz de atrair para a

comunhão com Jesus, pois seus olhos estão sempre fixos nele (cf. DAp, nn. 268. 557).

Além de estar presente no evangelho, Maria tem um papel pessoal de anunciadora e

exerce pessoalmente a evangelização na Igreja e no mundo (OSSANNA apud FIORES; MEO

(Orgs.), 1995, p. 500). “Essa mulher, cheia do Espírito Santo, na sua relação materna se torna

ao mesmo tempo evangelizada e evangelizadora, colaboradora com o anúncio do Evangelho”

(p. 501). Foi ela quem primeiro recebeu o anúncio do Evangelho da alegria: “Alegra-te, cheia

de graça, o Senhor é contigo” (Lc 1,28) e, transbordante de alegria, foi ao encontro de Isabel e

exultou num cântico de júbilo e ação de graças (cf. Lc 1,46-55) que a Igreja entoa diariamente

na oração das Vésperas, o Magnificat.

Maria foi a primeira colaboradora na proclamação do Evangelho, vivendo-o primeiro

no seu coração e encarnando-o na sua vida (cf. LG, n. 56; DP, n. 303) e “acompanha com sua

presença materna o magistério que anima e guia, os apóstolos que falam ou escrevem, os

missionários que percorrem todos os caminhos” (OSSANNA apud FIORES; MEO (Orgs.),

1995, p. 502), sempre se fazendo presente e atuante na história da Igreja. “A falar a verdade,

todos os períodos da história da Igreja beneficiaram-se e hão de se beneficiar da presença

maternal da mãe de Deus, pois ela permanecerá sempre indissoluvelmente unida ao mistério

do corpo místico” (SM, n. 13).

As terras de missão fora da Europa (América, África e Ásia) beneficiaram-se da

presença de Maria no início da sua evangelização com o fervor missionário, algumas vezes

aliado a uma vontade de conquista, dominação e exploração por parte dos colonizadores. A

devoção mariana sempre acompanhou a ação missionária e evangelizadora, como força e guia

dos evangelizadores (cf. LG, n. 50-52), principalmente as congregações religiosas, nas novas

terras de missão sob o impulso da renovação eclesial implementada pelo Concílio de Trento.

“O semblante de Maria, como no passado constantemente presente na vida da Igreja,

nesse período também sentiu a influência do ambiente cultural” (OSSANNA apud FIORES;

MEO (Orgs.), 1995, p. 504) como é o caso do evento guadalupense (1531), uma das primeiras

expressões de uma devoção mariana ambientada e aclimatada ao nosso continente. O rosto, a

fisionomia e a identidade mariana própria da América Latina, embora sempre integrada na

longa tradição eclesial, não é uma repetição europeia, mas conservando o que é essencial da

doutrina acerca da Virgem Maria, manifesta-se de modo criativo, muito próprio e original,

não apenas em Guadalupe, no México, mas em todos os países do continente há uma forte

ligação e identificação com algum título mariano de origem local, para citar alguns: Nossa

Senhora de Luján, na Argentina; Nossa Senhora de Copacabana, no Perú e na Bolívia; Nossa

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Senhora de Chiquinquira, na Colômbia; Nossa Senhora de Cacupé, no Paraguai; Nossa

Senhora dos Trinta e Três, no Uruguai; Nossa Senhora Aparecida, no Brasil; entre outros (cf.

CAPRANI, 2014, p. 47).

A devoção mariana é, portanto, “um elemento qualificador do cristianismo latino-

americano, uma expressão vital e histórica que pertence à sua própria identidade” e “uma

figura constante desde a aurora da evangelização do nosso continente até os dias de hoje”

(CAPRANI, 2014, p. 17), o que significa dizer que o começo da evangelização acompanhou o

início da devoção e do culto a Maria na América Latina e vice-versa, como que elementos

inseparáveis e complementares. “A presença de Maria, ontem e hoje é um traço distintivo do

catolicismo e da religiosidade latino-americana”, não apenas uma característica entre outras,

mas um elemento fundante e fundamental. “O Evangelho, ao encarnar-se em nossa cultura, o

fez com uma forte modalidade mariana” (Ibid., 2014, p. 45).

Apesar das vicissitudes históricas e dos apreços e críticas à evangelização no

continente latino-americano e mesmo a visão acerca de Maria na ótica dos colonizadores e

dos colonizados, não podemos deixar de reconhecer que esse foi um caminho escolhido por

Deus para a penetração do Evangelho na nossa sociedade e cultura como um todo, tornando-

se um dos pilares do catolicismo aqui, e que graças ao fato de que Maria é mãe, “vive sua

unidade espiritual e eclesial” (CAPRANI, 2014, p. 47). Se não houvesse uma religiosidade

popular com um centro mariano, a fé católica não teria impregnado o nosso continente. Por

isso caberia bem aqui aquele antigo adágio latino: Per Mariam ad Jesus. Segundo Kearns,

numa aproximação histórica com a realidade do Brasil, a devoção mariana

foi um elemento essencial para manter a fé, especialmente entre o povo simples de

Deus, em circunstancias difíceis da história religiosa do Brasil. Não havia tanta

organização da Igreja no tempo do império ou da república como hoje, com dioceses

e paróquias bem organizadas para o atendimento espiritual do povo. Fora dos

grandes centros, e especialmente na área rural, os cristãos não tinham muito contato

com uma liturgia frequente, com a catequese ou com a pregação dominical. Faltava

um clero, religioso e diocesano, suficiente para cuidar da maioria do povo cristão.

Às vezes, um padre aparecia uma ou duas vezes por ano, para atender confissões,

celebrar missa, casamentos e batismos. Diante de uma evangelização deficiente, foi

por meio de Maria que o povo se abriu à mensagem evangélica. Em Maria o povo, a

partir de suas raízes culturais, descobriu a porta de entrada para assimilar o

Evangelho e a fé do povo do interior foi mantida graças às devoções marianas.

Muitas vezes, o que ajudou as pessoas a rezarem a terem uma experiência de Deus,

sem a presença dos padres, foi a reza do terço em família e/ou na comunidade.

Vimos esse fato claramente na devoção a Nossa Senhora de Aparecida (2017, p. 9).

Sobre o processo de evangelização no Brasil, o Documento de Aparecida constata

logo nos seus primeiros parágrafos:

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A devoção a Maria, a mãe de Jesus, é uma constante na história do povo brasileiro.

Ao longo do processo evangelizador em terras brasileiras, o evangelho foi

anunciado, apresentando a Virgem Maria como a expressão mais sublime de

fidelidade. A devoção mariana é um elemento qualificador da genuína piedade da

Igreja no Brasil, e podemos afirmar que a experiência mariana pertence à identidade

popular (DAp, n. 2).

3.1.2.3.2. “Mãe dos cristãos” e “Estrela da Evangelização”: causa de nossa alegria

A Virgem Maria na América Latina é uma presença fecunda de mãe tanto que,

segundo Caprani, os nossos povos desde as manifestações de Guadalupe, de Aparecida, entre

outras, acolheu sua presença não como uma “estrangeira” ou “deportada” da Europa, mas

inserida na cultura do povo, vestindo as suas vestes, assumindo a sua cor morena, falando o

seu próprio idioma e apresentando-se como Mãe nossa, a tal ponto que até as devoções

marianas de além-mar sofreram aqui inculturações para a realidade latino-americana.

“Aparecida” é um exemplo claro de uma devoção portuguesa a Nossa Senhora da Conceição

adaptada ao contexto brasileiro. Mas sem negar a matriz mariológica europeia-medieval que

apresenta a Virgem Maria como “Senhora”, “Rainha”, “Vencedora”, a ternura da maternidade

de Maria, que disse ao índio Juan Diego, “Por acaso não estou eu aqui, que sou tua Mãe?” foi

que contagiou e predominou. Mesmo com a Bula papal que declarava Nossa Senhora

Aparecida como Rainha e Padroeira do Brasil (1930), no alvorecer da República, predominou

o carinhoso apelativo “Mãe Aparecida”.

Apesar de não carregar o Menino Jesus no colo, a pintura misteriosa de Guadalupe na

tilma do índio e a imagem singular de Aparecida na rede dos pescadores apresentam Maria

grávida, “como todas as imagens de Nossa Senhora da Conceição” (SILVA, 2017, p. 81)

segundo a iconografia imaculista inspirada em Ap 12. Este não é um dado irrelevante, mas

fundamental, pois são expressão da missão de Maria que consiste em gerar Cristo nos cristãos

assim também como Paulo que gerou filhos pela pregação da Palavra, tal como afirmou o

abade São Guerrico (século XII) num de seus sermões:

Maria deu à luz um Filho único. Assim como ele é Filho único de seu Pai nos céus, é

também Filho único de sua mãe na terra. Ora, essa única Virgem Mãe, que possui a

glória de ter dado à luz o Filho único de Deus Pai, abraça este mesmo Filho em

todos os seus membros. Não se envergonha de ser chamada mãe de todos aqueles

nos quais vê a Cristo já formado ou em formação [...] A santa mãe de Cristo, que se

reconhece mãe dos cristãos em virtude desse mistério, mostra-se também sua mãe

pelo cuidado e amor que tem por eles. Não é insensível para com os filhos, como se

não fossem seus; suas entranhas, fecundadas uma só vez mas nunca estéreis, jamais

se cansa de dar à luz frutos de piedade.

Se o Apóstolo, servo de Cristo, uma e outra vez dá à luz filhos pelos seus cuidados e

ardente piedade, até Cristo ser formado neles (cf. Gl 4,19), quanto mais a própria

mãe de Cristo! E Paulo, de fato, os gerou, pregando-lhes a palavra da verdade pela

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qual foram regenerados; Maria, porém, gerou-os de modo muito mais divino e santo,

ao dar à luz a própria Palavra. Louvo realmente em São Paulo o ministério da

pregação; porém admiro e venero muito mais em Maria o mistério da geração

(LITURGIA DAS HORAS IV, p. 1546-1547).

Se a missão de Maria, que consiste em gerar Cristo nos cristãos, não é semelhante à

missão da Igreja que gera os filhos de Deus pela evangelização, se não poderia ser comparada

analogamente a um “parto” pelas dificuldades e exigências que este apresenta, mas que ao

final das contas gera muita alegria, pois quando a mãe toma seu filho nos braços, nem se

recorda mais das dores e do sofrimento que teve, mas alegra-se com o fruto das suas

entranhas?! Da mesma forma não acontece com a Igreja, quando após anunciar o Evangelho

suscita no coração dos homens uma adesão a Cristo confirmada pelo Batismo?! Sem dúvida

umas das maiores dificuldades da Igreja hoje, ad intra ad extra, é fazer com que o Evangelho

se faça “carne” na realidade, assim como a mulher grávida de Ap 12 prestes a dar à luz, teve

de enfrentar a fúria do Dragão que a perseguia.

Este abade do século XII também afirmou a relação filial dos cristãos para com a Mãe

de Jesus:

Observa, agora, se os filhos também não parecem reconhecer a sua mãe. Impelidos

como que por um certo natural afeto de piedade, recorrem imediatamente à

invocação do seu nome em todas as necessidades e perigos, como crianças no colo

da mãe (LITURGIA DAS HORAS IV, p. 1547).

E como a evangelização sempre foi uma necessidade vital da Igreja, os

evangelizadores recorrem a Maria como “Estrela da Evangelização”, sem dúvida um título

muito atual e apropriado sugerido por Paulo VI nos últimos parágrafos (n. 82) da Exortação

Apostólica Evangelii Nuntiandi sobre a evangelização no mundo contemporâneo, que foi

promulgada no dia 8 de dezembro de 1975, Solenidade da Imaculada Conceição, sendo que

ele foi o mesmo que proclamou “Maria, mãe da Igreja” na celebração de encerramento do

Concílio Vaticano II (08.12.1965).

Um detalhe que não poderia passar despercebido: tanto as exortações sobre a “alegria

cristã” (09.05) e sobre a “evangelização” (08.12) foram promulgadas no mesmo ano (1975)

em que a Igreja celebrava o Ano Santo, como que a dizer que “alegria” e “Evangelho”

caminham juntos, numa simbiose realizada recentemente pelo Papa Francisco na Exortação

Apostólica Evangelii Gaudium (2014), em que evoca, ao final do documento, Maria como a

“Mãe da Evangelização” (nn. 284-286) e “Estrela da nova evangelização” (nn. 287-288).

Também o Papa João Paulo II a apresentou deste modo no início do novo milênio: “Ao longo

destes anos, muitas vezes a apresentei e invoquei como „estrela da evangelização‟. E aponto-a

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uma vez mais, como aurora luminosa e guia seguro do nosso caminho” (NMI, n. 68). Mas a

designação de Maria como “estrela” é bem antiga, remontando a São Bernardo de Claraval

(+1153), o “cancioneiro da Virgem”, que exortava aos fiéis em todas as circunstâncias a

“olhar a estrela” e “invocar a Maria”. Por isso, o Papa Francisco termina sua exortação sobre

a nova evangelização invocando Maria como Estrela da nova evangelização com as seguintes

palavras:

Estrela da nova evangelização, ajudai-nos a refulgir com o testemunho da

comunhão, do serviço, da fé ardente e generosa, da justiça e do amor aos pobres,

para que a alegria do Evangelho chegue até aos confins da terra e nenhuma periferia

fique privada da sua luz (EG, n. 288).

Maria é “estrela da evangelização” para a missão da Igreja, pois comunica o brilho da

luz de Cristo, aponta o caminho da peregrinação na fé, brilha e reflete a luz da verdade e dos

valores do Evangelho e atrai e impele a seguir seu exemplo de discípula e missionária de

Jesus Cristo (cf. CAPRANI, 2014, p. 118).

Ao longo de tantos séculos, a Igreja assumiu um estilo mariano na sua missão

evangelizadora a partir do modelo proposto segundo a “Maria” dos evangelhos: oração e

serviço. Por isso, para quem evangeliza, Maria é sinal do Evangelho pregado com a vida e da

encarnação do Evangelho.

Esta Igreja que com nova lucidez e nova decisão quer evangelizar no fundo, na raiz,

na cultura do povo, volta-se para Maria para que o Evangelho se torne mais carne,

mais coração na América Latina. Esta é a hora de Maria, isto é, o tempo do Novo

Pentecostes a que ela preside com sua oração, quando sob o influxo do Espírito

Santo, a Igreja inicia um novo caminho em seu peregrinar. Que Maria seja nesse

caminho “estrela de evangelização sempre renovada” (EN 81) (DP, n. 303).

Quando os peregrinos dos quatro cantos do país, e até de outros lugares, adentram a

Basílica de Nossa Senhora Aparecida, o maior santuário mariano do mundo para abrigar uma

imagem tão pequena, vão imediatamente vê-la! E são muitos que chegam chorando ou que se

colocam aos prantos diante da sua imagem e, quem não se emociona quando passa na sua

frente, às vezes numa troca de olhares tão rápida que só dá tempo para dizer um “Ave!”, por

causa da multidão que se espreita para vê-la! Quando sobem de um lado da rampa e descem

pelo outro saem “transfigurados” porque a viram e se contagiaram da alegria serena dos seus

lábios discretos semiabertos a esboçar mimoso sorriso. E a partir daquele “encontro” vão à

Missa, buscam o Sacramento da Reconciliação, rezam o Rosário, sobem a colina da Via-

Sacra, se confraternizam com os familiares e amigos. Assim, a alegria volta e novos olhares e

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novos sorrisos se abrem para a esperança de um mundo novo, pois ao longo destes três

séculos ela tem sido uma bênção para todos. Por isso lhe “agradecemos tanto carinho, tanto

cuidado” (Excertos da Oração do Ano Jubilar), tantos “olhares” e tantos “sorrisos” que

sempre foram “fonte e causa de nossa alegria” (cf. Ladainha Lauretana).

3.1.2.4. A lua debaixo dos pés: a Igreja como sinal de Cristo

A imagem de Aparecida não possui todos os elementos da iconografia da Imaculada

Conceição, faltando-lhe alguns, como o sol e as estrelas, que foram recentemente

acrescentados no seu “trono” pelo artista sacro Claudio Pastro que se inspirou justamente em

Ap 12 para compor o “Portal da Virgem”22

.

Mas, dos três símbolos cósmicos da “mulher” (cf. Ap 12,1), o único que está na

imagem de Nossa Senhora Aparecida é a lua que, no mundo helênico e em muitas culturas,

possui três características que se aplicam à Igreja. Segundo Codina, são elas:

- Brilha por luz alheia, do sol; também a Igreja é comunidade relativa a Cristo, que

brilha com a luz de Cristo, verdadeiro sol, luz de todas as nações (Lumen Gentium).

- Morre ante o sol, oculta-se para que o sol brilhe: dimensão transitória e provisória

da Igreja, que cessará quando o reino de Deus chegar à plenitude definitiva e Deus

for tudo em todos.

- Gera e dá força (por exemplo as marcas, a fertilidade na geração...): dimensão

dinâmica e criadora da Igreja (1993, p. 66-67).

A Igreja como mysterium lunae é um símbolo eclesiológico antigo muito querido aos

Santos Padres, especialmente a Ambrósio e Agostinho, pois reflete o itinerário da Igreja

enquanto peregrina que caminha neste mundo: ela cai, se levanta, mas nunca desaparece, pois

ela é como a “mulher apocalíptica” com a lua debaixo dos pés, isto é, existe para além das

vicissitudes históricas, indicando a sua eternidade no tempo e a sua presença entre o céu e a

terra.

22

“Localizada na nave sul o portal da Virgem ou trono de Nossa Senhora, é o local onde a imagem de Nossa

Senhora da Conceição Aparecida está, imagem pescada nas águas do rio Paraíba do Sul em 1717. Uma grande

faixa em ouro, um totem, tem-se a presença do Invisível, como um sopro com anjos, indicando ser um lugar

teofânico, Deus se revela. Os arcanjos Gabriel, Miguel e Rafael indicam-nos a presença do Divino neste espaço

que com o seu sopro, vem representando a vida no local pelas faixas brancas em movimento. Na base está o

trono da mãe de Deus, Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Rainha e Padroeira do Brasil. A Mulher

revestida de Sol como descrita na citação do Apocalipse e que nos traz o grande Sol que é Cristo [grifo meu].

Ladeando a Imagem, encontram-se, portanto, as doze mulheres do Antigo Testamento que prefiguraram Maria e

com a representação de suas virtudes, indicando aquela que Deus escolheu por completo: Maria de Nazaré. A

Imagem está entronizada em um nicho envolvido por uma placa em ouro com o sol, a lua e doze estrelas [grifo

meu]. Que além de mostrar a cena da pesca milagrosa, após o seu encontro no rio Paraíba do Sul, pelos

pescadores João Alves, Felipe Pedroso e Domingos Garcia, tem-se a frase que diz: „O Espírito e a Esposa dizem

vem, Senhor Jesus. Amém‟ (Ap. 22,17)” (DA CUNHA. In: ACADEMIA MARIAL DE APARECIDA, 2017,

pp. 154-156).

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Figura 9 – “Portal da Virgem” ou trono de NSCA na nave sul do Santuário Nacional.

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“A Igreja é comparada à lua, porque não resplandece por luz própria, mas graças à luz

de Cristo. Fulget Ecclesia non suo sed Christi lumine, escreve Santo Ambrósio”

(CAPPELLETTI, 2009) Como não é uma fonte de iluminação própria, a lua reflete a luz do

sol. Nesta interação “lua” e “sol” há como que um “matrimônio cósmico” que revela o

mistério de amor esponsal entre Cristo e a sua Igreja, conforme Ef 5, 25-27: “como Cristo

amou a Igreja e se entregou por ela, a fim de purificá-la com o banho da água e santificá-la

pela Palavra, para apresentar a si mesmo a Igreja, gloriosa, sem mancha nem ruga, ou coisa

semelhante, mas santa e irrepreensível”.

A imagem de Nossa Senhora Aparecida, tão simples e discreta no seu tamanho, nas

suas formas até um pouco rudes e toscas, na sua cor de barro como se fosse queimada pelo sol

(cf. Ct 1,6), com a lua sob os seus pés (cf. Ap 12,1), representa iconograficamente o mistério

da Igreja-lua que “cai”, “levanta”, mas nunca “desaparece”, como a própria imagem coberta

de lodo, que foi retirada já quebrada, do fundo do rio e que muitos anos depois foi

despedaçada em dezenas de fragmentos, sendo novamente restaurada. Assim também deve ser

a Igreja que, obstante suas quedas e fraquezas, não deixa de irradiar a luz de Cristo sobre o

mundo, preferindo, assim, arriscar-se a acidentar-se, ferir-se e enlamear-se do que a fechar-se

em si mesma (cf. EG, n. 49).

Como a lua que não possui luz própria, mas é reflexo da luz solar, a presença

misteriosa da Igreja no mundo comunica aos homens a luz de Cristo que salva, conduz e

orienta. Neste mistério, a Igreja não se apresenta como centro ou como fim, mas sempre como

instrumento, pois, ao contrário, se “deixa de ser aquele „mysterium lunae‟ de que nos falavam

os Santos Padres” (FRANCISCO, S.S., Discurso (28.07.2013)).

Figura 10 – Detalhe do trono de NSCA.

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CONCLUSÃO

A imagem tricentenária de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, encontrada por

três pescadores na altura do Porto Itaguaçu, no Rio Paraíba do Sul em 1717, oferece uma

chave de leitura [teológica] para a missão da Igreja de ontem e de hoje, pois nela “Há algo de

perene para aprender sobre Deus e sobre a Igreja [...] um ensinamento, que nem a Igreja no

Brasil nem o próprio Brasil devem esquecer” (FRANCISCO, S.S., Discurso (27.07.2013)).

Procurar e encontrar o Mistério

O homem que procura o mistério de Deus poderá encontrá-Lo nas vicissitudes, nos

ritmos e nos tempos da história humana, em meio às coisas do cotidiano e, especialmente,

entre os simples, os pobres e os humildes. O contexto do encontro da imagem aparecidense é

um exemplo dessa manifestação divina escondida sob os véus da pobreza e da humildade.

Numa zona de cruzamento entre São Paulo e Minas Gerais, durante o período da extração do

ouro no Brasil, enquanto o governador da Capitania de São Vicente, o “Conde” de Assumar

visitava as regiões mineradoras e suas adjacências, a Virgem Maria se dignou a “aparecer” a

três pobres pescadores que, com um barco frágil e redes decadentes enfrentavam, a labuta, o

cansaço e o desânimo pelo insucesso da pesca num rio “imprestável”, numa circunstância de

carências, de falta de recursos, de fracasso e falimento, em que buscavam peixes, por ordem

das autoridades da Vila de Guaratinguetá, para saciar o apetite de tão ilustre visita. Mas, pela

imagem de Nossa Senhora “salva” das águas, “Deus chegou de uma maneira nova, porque

Deus é surpresa: uma imagem de barro frágil, escurecida pelas águas do rio, envelhecida

também pelo tempo. Deus entra sempre pelas vestes da pequenez”. O mistério torna-se,

portanto, um sinal divino revelado na realidade humana. E, para manifestar a sua ternura e

compaixão para com o nosso povo, “Em Aparecida, Deus ofereceu ao Brasil a sua própria

Mãe” (FRANCISCO, S.S., Discurso (27.07.2013)) e, no “sinal da mulher”, ícone da Igreja

Servidora, Mãe e Esposa, a Igreja como que assume o papel de Maria na história.

Contemplar e acolher o Mistério

Pelas circunstâncias do encontro prodigioso da imagem, irrompeu no Brasil uma

hierofania sem visões nem palavras que, apesar da simplicidade, carrega a densidade do

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Mistério que exige duas posturas próprias dos pescadores que a encontraram: contemplação e

acolhida.

Os pescadores, após o primeiro e o segundo lanço de rede, assim que encontraram a

imagem de Nossa Senhora da Conceição, após tantas tentativas frustradas para conseguir

algum peixe, ao contemplar aquela imagem maltratada e quebrada, não obstante a sua

simplicidade, rudeza, pequenez e morenice, reconheceram imediatamente: “É a Virgem da

Conceição!”. E desde aquele dia, há trezentos anos, são milhares de pessoas que da casa dos

humildes pescadores até a monumental Basílica, vão à Aparecida para contemplar a sua

imagem e se deixar “ver” pela Senhora.

Quando a recolheram das suas redes, primeiro o corpo e depois a cabeça, viram a

imagem da Imaculada Conceição, uma devoção já muito antiga, mas logo perceberam a

novidade: uma imagem pequenina, machucada, enegrecida, de traços simples, tosca e frágil.

Mas apesar de sua pequenez, “os pescadores não desprezam o mistério encontrado no rio,

embora seja um mistério que aparece incompleto. Não jogam fora os pedaços do mistério” e,

assim, eles a “agasalham: revestem o mistério da Virgem pescada”, “trazem para casa o

mistério” (FRANCISCO, S.S., Discurso (27.07.2013)), porque tocaram com suas mãos o

“sagrado”. A artista plástica Maria Helena Chartuni, após restaurar a imagem de Nossa

Senhora Aparecida, depois do atentado de 1978, relatou que, quando viu aquela multidão no

vão do MASP (Museu de Arte de São Paulo) aguardando ansiosa para rever a imagem

restaurada, confessou que, “Pela primeira vez a comoção me invadiu e percebi que havia

tocado em algo Sagrado” (CHARTUNI, 2016, p. 6).

A linguagem do Mistério

Quando contempla e venera uma imagem sacra, o homem está diante de três

realidades:

1ª) A presença do Invisível: o homem se coloca na presença misteriosa de Deus através

daquela imagem que a representa, ou seja, contempla Deus na sua beleza, grandeza e

humildade. Desta forma, ele pode se sentir mais próximo do sagrado através de uma imagem

que vê do que apenas da palavra que escuta. “Numa obra de arte (imagem) posso abraçar a

amplidão de uma realidade que só muito mais tarde será conquistada” (PASTRO. In:

GUIMARÃES (org.), 2016, p. 38), ou seja, enquanto na terra o homem contempla os sinais

de Deus, os vestígios do divino na existência humana, abraça simbolicamente a realidade

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divina que almeja contemplar sem véus, mas face a face, não mais diante do ícone ou da

imagem que venera, mas do próprio Deus que deseja adorar em espírito e em verdade. Por

isso, enquanto comunicadora do Invisível, a imagem é um indicativo de uma realidade

sobrenatural que está para além do que se vê, ouve e sente de imediato.

2ª) O significado da existência: esta imagem causa uma impressão dentro do seu interior a

respeito de quem é Deus e de quem é aquele que O contempla, o homem. Por isso, a imagem

desafia para um diálogo com Aquele (a) que ela representa e com o homem mesmo que a

contempla. É o encontro entre duas interioridades que, sem a necessidade de trocar palavras,

se comunicam pelo olhar. Esta é, portanto, uma leitura do mistério de Deus e do homem, pois

não apenas pelo anúncio dos profetas, mas pela encarnação do seu Filho, o Pai deu-se a

conhecer a nós. Segundo Claudio Pastro, a imagem é o “mapa da vida”.

3ª) A memória de um povo: a fé não é apenas uma experiência pessoal, mas comunitária,

eclesial. Também a imagem sacra e religiosa pertence à experiência da comunidade de fé e de

culto. A imagem não é apenas memória do protótipo que ela representa e não está ligada

somente ao subjetivo do fiel, mas comunica a realidade de determinada comunidade, povo,

cultura ou nação, bem como da sua própria história, sendo capaz de formar a sua identidade

comum e de unificar as diferenças. Através da arte o homem faz memória e afugenta o

esquecimento.

Da perspectiva iconográfica ao significado eclesiológico, da imagem à mensagem,

Nossa Senhora Aparecida, além de possuir as características de uma imagem sacra e religiosa,

de culto e devoção, que carrega a memória de um povo e o significado da existência humana,

comunica através da sua simplicidade, na sua relação entre forma e conteúdo, a linguagem do

Mistério, integrando o modelo e a figura da Igreja (cf. LG, n. 63) que encontram na Virgem

Maria a sua melhor expressão, pois “Nela, a Igreja entende sua vocação, seu próprio mistério,

e nela encontra seu arquétipo, a imagem ideal daquilo que é chamada a ser” (CAVACA. In:

GUIMARÃES (org.), 2016, p. 18): Servidora, Mãe e Esposa. “Quem venera filialmente

Maria, abre para si mesmo novos caminhos para o mistério da Igreja” (FORTE, 1991, p. 199).

A vivência do Mistério

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A imagem de Aparecida quer nos comunicar uma mensagem de unidade e comunhão.

Como não há uma mensagem explícita, assim como numa aparição, a partir do contexto

eclesial, da hermenêutica bíblica do “sinal da mulher” de Ap 12 e dos aspectos simbólicos da

própria imagem, podemos perceber como cada detalhe da imagem aparecidense, bem como o

contexto de seu encontro, está carregado de uma mensagem de unidade e comunhão que a

Virgem Maria, mulher-ícone do mistério da Igreja, quer nos recordar na sua imagem

“Aparecida”:

O “corpo” e a “cabeça” separados e unidos estão a nos indicar que a Igreja Corpo de

Cristo, que tem Cristo como sua cabeça, é um mistério de unidade na diversidade que tem

no primado petrino um sinal visível de comunhão.

O diadema do rosto com três broches lembra-nos imediatamente da Trindade, onde a

Igreja se origina, se estrutura e para a qual orienta o seu caminho.

O rosto contemplativo de Maria, os olhos fechados e as mãos postas em atitude de oração,

estão a nos indicar a necessidade da oração como meio para estar em comunhão com

Deus, com a Igreja e com os irmãos.

Os lábios sorridentes da Virgem parecem querer dizer algo a cada um de nós. Eles podem

representar a alegria do anúncio do Evangelho.

E a lua crescente que está sob os seus pés é um sinal do mysterium lunae da Igreja que

tendo a luz de Cristo refletida na sua face, deseja ardentemente iluminar a todos os

homens com a proclamação da Boa Nova (cf. LG, n. 1) na noite escura que atravessa a

história humana.

Deste modo, o mistério de unidade da Igreja (corpo e cabeça) nasce da comunhão

trinitária (diadema na fronte); nutre-se através da oração pessoal-contemplativa (olhos

fechados) e da oração comunitário-litúrgica (mãos postas); cresce com o anúncio alegre do

Evangelho (lábios sorridentes) e resplandece para todos os povos a luz de Cristo (lua sob os

pés).

“É grande este mistério: refiro-me à relação entre Cristo e sua Igreja” (Ef 5,32).

“Aparecida” ainda é um mistério “incompleto”, porém pleno a ser descoberto, contemplado e

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acolhido, compreendido, vivido e celebrado na mente, no coração e na vida de cada brasileiro

que, através da devoção mariana do nosso povo, pode redescobrir sua pertença e seu lugar no

“Corpo de Cristo” e na “barca de Pedro”. Aqui foram apresentadas apenas algumas facetas

deste grande mistério que podemos admirar, assim como fizeram os três pescadores ao

divisar o olhar com a imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, esta “mulher” que

se tornou um sinal para os tempos e para a história, um guia no itinerário da fé, uma bênção

para o nosso povo, um ícone de esperança que nos aproxima do mistério esponsal de Cristo e

da Igreja.

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ANEXO 1 –

A DEVOÇÃO MARIANA NO BRASIL ANTES DE “APARECIDA”

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1. A DEVOÇÃO MARIANA NO BRASIL ANTES DE “APARECIDA”

A presença da Virgem Maria é notável no Brasil desde a chegada dos primeiros

colonizadores e desde o primeiro momento da evangelização do continente latino-americano

(CAMPANHA, 2000, p. 15), sendo a devoção mariana um elemento constante na

religiosidade e na história do nosso povo (CIPOLINI, 2010, p. 36). O catolicismo brasileiro

do período colonial até os nossos dias é predominantemente popular, devocional e,

principalmente, mariano. Esta é uma das primeiras características do cristianismo em nosso

continente (HAUCK apud CALIMAN, 1989, p. 68) que foi inicialmente caracterizado pelos

cultos e devoções portuguesas e, posteriormente, adquiriu novos traços, agregando outros

valores e tradições próprios e originais, dando à Igreja um novo e singular capítulo na longa

história do culto mariano (DE AZEVEDO, 2000, p. 79) que desde todas as gerações

proclamam a Bem-Aventurada (cf. Lc 1,48) do Altíssimo como a “bendita entre todas as

mulheres” (cf. Lc 1,42) da terra.

O capítulo original, inaugurado por “Aparecida”, no culto mariano do Brasil é

antecedido por uma longa história e tradição portuguesas que, cruzou o Atlântico a pouco

mais de cinco séculos, aportaram em nossas terras. Por isso, convém conhecer, ainda que

sucintamente, os principais elementos que compõem a devoção a Nossa Senhora nas terras

lusitanas, pois, como veremos, eles influenciaram decisivamente nosso culto e serviram como

preparação a mais genuína e propagada devoção mariana brasileira. Como afirmou Vilhena de

Moraes (apud MACHADO, 1976, p. 79): “Por intermédio de Portugal, receberia o Brasil a

suave influência da fé mariana, que sempre foi o fundamento das virtudes do povo lusitano”.

Também “A História Nacional entrelaça-se de modo sublime, nesta abençoada terra,

com a história do culto mariano.” (MACHADO, 1976, p. 82). Por isso, para chegar à

“Aparecida”, é necessário adentrar nos principais capítulos da História do Brasil, entre os

meados do século XVI até as primeiras décadas do século XVIII, para analisar o “fato em si”

do encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, no intuito de perceber

como o seu achamento, que não é uma aparição propriamente dita, tornou-se uma mariofania

singular e originalmente brasileira, sem, contudo, romper com a longa tradição devocional

que nos foi transmitida por Portugal, mas dando-lhe um novo significado que conquistou o

coração do povo brasileiro.

1.1. Um novo capítulo na história da devoção a Maria no Brasil.

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O que mais nos interessa na história da devoção mariana portuguesa são dois eventos

fundamentais que fazem parte da própria história política e social de Portugal. O primeiro está

ligado à fundação do reino e o outro diz respeito à reconquista da soberania do país, que fora

tomada pelos espanhóis. O que há em comum entre ambos é que para os reis envolvidos nesta

trama, a intervenção de Maria foi providencial. Por isso, foi devidamente honrada e celebrada

pelos séculos afora como perpétua memória de sua maternal proteção.

Aproximadamente dois anos após a fundação do Reino de Portugal, o seu primeiro

monarca, D. Afonso Henriques, no ano de 1142, colocou desde o início o novo reino sob a

proteção de Santa Maria (DOS SANTOS, 1996, p. 21). No ano de 1147, após cinco meses

sitiada, a cidade de Lisboa foi tomada das mãos dos mouros e a catedral da cidade, que fora

tornada um templo mulçumano, foi solenemente dedicada à Santa Maria. Outras construções

posteriores entre mosteiros e igrejas também foram dedicados à Virgem Santa Maria (Ibid.,

1996, p. 22-23). Outro fato histórico ligado à devoção mariana portuguesa consta do ano de

1385 quando, diante de uma ameaça espanhola, os lusos saíram vitoriosos no confronto

militar de Aljubarrota. A vitória foi atribuída à intervenção de Nossa Senhora e, para honrá-la,

foi construída a igreja e o mosteiro de Nossa Senhora da Batalha. O próprio Rei D. João I, tal

como um devoto peregrino, foi a pé agradecer a Santa Maria (Ibid., 1996, p. 38). Esta não foi

a primeira nem a única vitória militar atribuída como graça alcançada por Maria. Para além

das conquistas bélicas, também o êxito durante o ciclo das navegações e das conquistas de

além-mar foi confiado à Mãe de Deus.

Estes dois exemplos, entre tantos outros, servem para ilustrar e demonstrar a intensa

piedade marial dos portugueses, a qual contagiava desde os reis, que contavam com o auxílio

da Virgem nos seus variados títulos ou invocações, já existentes ou criados a partir de

determinadas situações, para seus empreendimentos políticos (principalmente a defesa do

território contra os inimigos e as conquistas de outras terras), até a população que buscava na

“Senhora” o alívio das suas dores, a satisfação das suas necessidades, o consolo para suas

angústias, dentre outras razões particulares que sempre movem os fiéis. Mas a devoção que

mais cativou o coração dos lusitanos e cujo legado chegou até ao Brasil, foi à Nossa Senhora

da (Imaculada) Conceição.

Quanto à origem e ao início da devoção e do culto à Imaculada Conceição de Maria

em Portugal não há uma data exata, mas, conforme a tradição, desde 1147 a sua festividade é

celebrada em todo dia 8 de dezembro, logo após a retomada da cidade de Lisboa das mãos dos

mouros (DOS SANTOS, 1996, p. 25). Aliás, muito antes da proclamação dogmática da

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Imaculada Conceição, sua memória litúrgica já era celebrada em vários lugares do mundo.

Segundo a pesquisa histórica de Armando Alexandre dos Santos,

[...] em fins do século XVI e princípios do século XVII o culto à Maria Imaculada

[já] tomara conta de Portugal; desde os reis até o povinho miúdo, passando pela

Nobreza, pelo Episcopado, pelo Clero, pelas Ordens religiosas, pelos teólogos, em

todos os níveis da sociedade se presenciava um acentuado fervor marial e

imaculista. (1996, p. 83-84).

O ponto alto desta devoção foi em 25 de março de 1646, ano que coincidiu com a

Festa da Anunciação do Senhor com o Domingo de Ramos, na Capela Real do Terreiro do

Paço Imperial em Lisboa, D. João IV proclamou solenemente Nossa Senhora da Conceição de

Vila Viçosa, “Senhora Padroeira e Protetora de nossos Reinos e Senhorios”. Além disso, o

soberano prometeu defender o insigne privilégio da Mãe de Deus, que fora concebida sem a

mácula do pecado original, inclusive requisitando à Universidade de Coimbra que se

comprometesse com o mesmo23

. Note-se que, apesar do conteúdo religioso, esta não é uma

bula papal ou um decreto pontifício, mas uma provisão régia24

.

Para além do aspecto religioso, a consagração do Reino e de suas extensões além-mar

também possuía um caráter político. Com a restauração da monarquia em Portugal a 1º de

dezembro de 1640, justamente no primeiro dia da oitava preparatória à Solenidade da

Imaculada Conceição, após sessenta anos de domínio espanhol (1580-1640), a Padroeira

escolhida era uma devoção comum também à nação vizinha, de tal forma que esta

proclamação, de algum modo, uniu estas duas potências navegadoras que espalharam pelas

terras conquistadas do Novo Mundo, além do seu domínio e cultura, também a sua

religiosidade. O papel político e o fervor devocional de D. João IV permitiu a restauração da

monarquia portuguesa e as duas potências dividiram entre si os frutos de suas conquistas, do

qual o Brasil é exemplo evidente como no caso do Tratado de Tordesilhas.

23

No ano mesmo da consagração, alguns meses antes, em 17 de janeiro de 1646, o Rei determinou que todos os

estudantes da Universidade de Coimbra prestassem juramento em defesa da Imaculada Conceição de Maria.

Ainda que não pudesse obrigar, mesmo assim o rei impôs tal juramento como condição para a obtenção de graus

acadêmicos na mencionada instituição. “Quando visitou a Universidade Coimbra, 15-5-1982, S.S. João Paulo II

teve ocasião de aludir a esse juramento: „É para mim um momento de grande alegria encontrar-me nesta

Universidade, uma das mais antigas da Europa e intimamente ligada à ação da Igreja. desde os seus primórdios

[...] assumiu, no decorrer da sua história, também um compromisso formal de defender a doutrina da Imaculada

Conceição de Maria Santíssima.” (JOÃO PAULO II apud DOS SANTOS, 1996, p. 105). 24

O teor da provisão régia demonstra que aquele não era um ato isolado ou um simples capricho devocional do

Rei, mas que estava em plena continuidade com a tradição recebida dos seus predecessores, a começar por D.

Afonso Henriques, o primeiro rei português que havia cumulado o reino com esta herança de devoção mariana.

Como afirmava o próprio decreto, D. João desejava “imitar [...] a singular piedade dos senhores Reis, meus

predecessores.” (DOS SANTOS, 1996, p. 94).

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Consagrar o Reino e suas possessões a Nossa Senhora da Conceição, na mentalidade

da época, era uma forma de assegurar a proteção constante da Mãe de Deus sobre estes

domínios, era uma espécie de “medida de segurança” ou numa linguagem religiosa, de

proteção, como afirmara o próprio Rei em uma carta à Universidade de Coimbra (6/12/1644):

“com que ele [o Reino] ficará mais seguro com a proteção da Senhora e a mesma Senhora

mais obrigada a tomá-lo particularmente debaixo de seu amparo.” (DOS SANTOS, 1996, p.

99). Era como que um “acordo” no qual, os reis e o povo se propunham a defender a

Imaculada e ela, por sua vez, a proteger e a defender o Reino. Esta mentalidade estava

presente também nos desbravadores, conquistadores e colonizadores de novas terras e

também na compreensão do povo em geral, o que se manifestava habitualmente no juramento

de “promessas” e de seu “pagamento” se obtida a graça desejada, prática frequente até hoje na

religiosidade popular.

Não apenas o Rei, mas desde o seu sucessor até todos os representantes da nação,

prestaram juramento para uma decisão que se revestia de um caráter oficial e perpétuo. Por

isso, entre as atribuições dos reis e seus sucessores estava a propagação da devoção à

Imaculada e sua defesa, inclusive para fora das fronteiras à medida que o reino expandia o seu

território de conquista e dominação.

Outro fato notório é que

desde a consagração de 1646, nunca mais os reis de Portugal puseram a coroa sobre

a cabeça, nem sequer no dia de sua ascensão ao trono ou de sua aclamação; e sempre

se fizeram retratar tendo ao lado direito uma almofada, sobre a qual repousava a

coroa real. (DOS SANTOS, 1996).

Ainda que na provisão régia da proclamação não houvesse explicitamente o termo

“Rainha” para a Senhora e Protetora do Reino, era consenso que não havia outra com igual

dignidade entre os portugueses, porque “se entendia que a Rainha de Portugal era sua celeste

Padroeira, Nossa Senhora da Conceição, sendo os monarcas terrenos meros lugar-tenentes da

verdadeira Rainha.” (DOS SANTOS, 1996, p. 103).

“O Brasil fazia então parte de Portugal, como o membro faz parte do corpo. [Mas] A

alma era a mesma: e portanto a Fé e a devoção mariana.” (MACHADO, 1976, p. 110). A

devoção de Portugal se propagou pelo Brasil desde a chegada dos primeiros descobridores /

conquistadores como algo endêmico, pois se alastrou no ritmo com a qual o nosso país era

ocupado. O culto mariano tal como foi recebido pelos nativos indígenas e, posteriormente,

pelos negros africanos mereceria um capítulo a parte, o que estenderia demasiadamente esta

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breve introdução. Por isso, vamos ressaltar apenas três aspectos gerais do culto mariano no

período colonial:

1.1.1. A chegada do culto a Maria no Brasil e suas primeiras manifestações.

O primeiro “sinal” de Maria no Brasil veio a bordo da nau de Pedro Álvares Cabral em

abril de 1500, que partiu com sua expedição da Ermida de Santa Maria de Belém no Restelo,

em Lisboa, onde ouviu a missa presidida por D. Diogo Oritiz, e do bispo recebeu a bênção

para zarpar (DOS SANTOS, 1996, p.65-66). Quando a expedição chegou ao “Novo Mundo”,

o primeiro ato foi a celebração de uma missa, a Primeira do Brasil, imortalizada na tela a óleo

de Victor Meireles. Pedro Álvares trazia a bordo de sua nau a imagem portuguesa de Nossa

Senhora da Esperança25

, que pertencia à sua família. A imagem que veio a bordo da nau

Cabral era uma autêntica senhora portuguesa vestida com manto verde e, invés de um véu

longo, usava sobre a cabeça um lenço. Ao que tudo indica também havia uma imagem de

Nossa Senhora da Conceição e também um quadro de Nossa Senhora da Piedade, visto que

estas ou outras invocações marianas poderiam estar presentes entre as treze embarcações da

sua comitiva que contava com cerca de 1.500 homens (VIEIRA, 2016, p. 11). O Brasil foi

descoberto sob o olhar terno e protetor da Mãe da Boa Esperança (MEGALE, 1997, p. 203),

sendo esta justamente uma das primeiras iconografias marianas presentes no momento da

“descoberta” portuguesa do Brasil. Sem dúvida, também havia nas caravelas outras imagens

com algum título mariano, segundo a piedade e devoção dos navegadores e tripulantes a

bordo.

Desde os primeiros anos da chegada dos portugueses, foram construídas capelas,

ermidas e oratórios dedicados aos mais variados títulos da Virgem Maria. A primeira capela

do Brasil foi dedicada a Nossa Senhora da Glória, também venerada como Nossa Senhora da

Assunção, em Porto Seguro (1503). Tomé de Souza, primeiro governador geral, ergueu uma

capela por causa da sua devoção particular a Nossa Senhora da Ajuda (entre 1550 e 1553). Os

bandeirantes em suas expedições [...] levaram consigo as imagens ligadas às devoções

portuguesas, especialmente Nossa Senhora da Conceição e da Glória (DE AZEVEDO, 2000,

p. 71).

25

“A imagem clássica portuguesa da Senhora da Esperança representa a Virgem Maria de pé com o menino

Jesus sentado em seu braço esquerdo, segurando com a mão direita o pezinho dele. O Divino Infante aponta com

a mãozinha direita para uma pomba (símbolo do Espírito Santo), que repousa sobre o braço direito de sua Mãe.”

(MEGALE, 1997, p. 206).

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Entre as populações indígenas, o primeiro contato com Maria foi através das missões

jesuítas, cujo grande expoente é o “Apóstolo das Glórias de Maria”, São José de Anchieta,

que compôs uma das primeiras obras literárias de nosso país no gênero poesia: “Os poemas da

Virgem”. Entre os negros oriundos da costa africana propagou-se a devoção a Nossa Senhora

do Rosário, especialmente através da criação de associações leigas chamadas de

“irmandades”, além do sincretismo entre elementos das religiões afro e do catolicismo que

adaptou a figura da Virgem aos orixás. Um exemplo clássico é Iemanjá, orixá das águas do

mar que, no catolicismo, corresponderia a Nossa Senhora da Conceição.

O século XVI, especialmente entre 1500 e 1581, é marcado pela expansão geográfica e

sociológica que se deve, sobretudo, à ocupação do território e a formação da população a

partir da simbiose entre a cultura indígena, europeia e africana.

Foi seguindo este processo histórico que o culto e a devoção a Maria foi se espalhando

pelo Brasil e ganhando forma e características próprias à medida que também se formava o

rosto do povo brasileiro, ainda que com origem portuguesa, pois “o Brasil recebeu [...] a

devoção Mariana por uma espécie de atavismo racial; [pois] a mãe-pátria transmitiu aos filhos

a fé de seus avós.” (MACHADO, 1976, p. 79).

1.1.2. As principais invocações marianas desde o século XVI até o início do século

XVIII.

À construção de oratórios e capelas sucedeu-se a ereção de paróquias com títulos

marianos, a partir das quais, desde a diversidade até a frequência e repetição de oragos, é

possível identificar quais as principais invocações marianas no Brasil de então. Segundo a

pesquisa de Manoel Quitério de Azevedo, entre os anos 1503 e 1822 foram criadas em todas

as regiões do Brasil colonial, em aproximadamente vinte estados, mais de 300 paróquias com

orago de Maria, das quais 70 diziam respeito a denominações específicas de Nossa Senhora.

Quando estudada a estrutura das vilas, povoados e cidades, percebemos que na sua origem

estava uma capela ou oratório que ocupava o lugar central a partir do qual esses lugarejos se

desenvolviam. Logo, as capelas e paróquias se transformaram em centros catalisadores do

culto a Maria (DE AZEVEDO, 2000, p. 20). No decorrer dos três primeiros séculos (XVI-

XVIII), o número de paróquias dedicadas a Nossa Senhora cresceu progressivamente e

exponencialmente, a ponto de no século XVIII totalizarem vinte e nove novos tipos de

invocações marianas subdivididas basicamente em três grupos: 1º. A vida de Maria de

Nazaré; 2º. As virtudes da Virgem Maria; 3º. O poder e a proteção de Nossa Senhora. Entre as

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principais invocações destaca-se em primeiro lugar, a Imaculada Conceição de Maria,

também denominada com o acréscimo de outros adjetivos, especialmente locais. Nenhum

outro título mariano atingiu tanta popularidade quanto o de Nossa Senhora da Conceição, da

qual foram espalhadas pelo território nacional mais de 500 imagens (MACHADO, 1976, p.

79). Soma-se às invocações marianas que dão nome às capelas e paróquias, mais quarenta e

cinco tipos empregados em irmandades, monumentos, oratórios e etc., totalizando noventa e

quatro tipos de invocações marianas no Brasil colonial (DE AZEVEDO, 2000, p. 27).

1.1.3. O papel das Ordens Religiosas na propagação da devoção à Maria.

A atuação dos religiosos no período do Brasil colonial deve ser compreendida

inicialmente dentro do contexto da política colonizadora de Portugal, pois estes não vinham

de “carona” nas caravelas portuguesas, mas estavam entre os agentes do projeto colonizador.

É preciso levar em consideração que por conta da estreita relação entre Estado e Igreja, tal

como veremos oportunamente, “colonizar” e “evangelizar” eram faces da mesma moeda, o

que no fundo significava, de alguma forma, “aportuguesar”, ou seja, ensinar e acomodar aos

moldes europeus os nativos que já habitavam o território e os que se originaram pela fusão

das três culturas que formaram a sociedade brasileira. Entre os principais costumes estava o

“dever de religião”.

Todavia, não nos cabe julgar os religiosos simplesmente como subordinados ao poder

político vigente, visto que algumas congregações entraram em choque com a mentalidade e

prática colonial, como é o caso dos jesuítas que chegaram a ser expulsos do Brasil (1759).

Também não é possível dizer que não houve qualquer sensibilidade à cultura pré-existente,

especificamente a indígena, como é o caso, novamente, dos jesuítas que até criaram um

catecismo em língua local. Ainda que hajam interesses políticos atrelados à prática

evangelizadora, há no coração dos missionários o desejo de “salvar os infiéis”, especialmente

por causa da influência do Concílio de Trento (1545-1563), ainda que não tenha se

manifestado oficialmente a respeito da expansão marítima que oportunizou a descoberta do

Novo Mundo.

As principais Ordens Religiosas que aportaram em solo brasileiro foram:

Franciscanos: presentes desde a chegada dos portugueses eram oito frades

franciscanos que estavam a bordo da nau de Cabral, entre eles o Fr. Henrique de

Coimbra (VIEIRA, 2016, p. 11). Os franciscanos, contudo, iniciaram a fundação de

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seus conventos a partir de 1585, desde Olinda até chegar a São Paulo e ao Sul do país.

Foram os responsáveis pela evangelização inicial dos índios e, como “defensores da

Imaculada” desde a Idade Média, foram os principais agentes na expansão do culto

popular a Nossa Senhora da Conceição, um dos motivos pelos quais eles estavam tão

atrelados à Coroa Portuguesa.

Jesuítas: chegaram ao Brasil na comitiva de Tomé de Souza em 1549. “Batizado por

um Franciscano, foi o Brasil confirmado na Fé pelo Jesuíta.” (MACHADO, 1976, p.

83). Neste sentido é que se pode atribuir aos jesuítas a catequese indígena no século

XVI, cujo empreendimento levou em consideração os elementos culturais como meio

de transmissão da fé e da doutrina católica. Também foram propagadores da devoção à

Imaculada Conceição, tendo como destaque o Pe. José de Anchieta, o grande arauto e

poeta da Virgem, e o Pe. Antônio Vieira, propagador da oração do Rosário em seus

sermões. Apesar do êxito no ensino da catequese e do culto a Maria, os jesuítas não

agradaram aos portugueses a partir do instante em que se opuseram à forma de

escravidão indígena que os colonizadores haviam adotado. O conflito chegou ao auge

quando em 1759 os jesuítas foram expulsos de Portugal e de suas colônias pelo

Marquês de Pombal.

Carmelitas: os carmelitas chegaram junto com os jesuítas no Brasil (1549) e se

instalaram desde a povoação da Paraíba, fundando conventos a partir de Olinda

(1583), Santos (1586) e Rio de Janeiro (1590). Até o ano de 1685, o Brasil já contava

com 246 carmelitas. Sua principal contribuição para a devoção mariana foi a do seu

próprio carisma e devoção a Nossa Senhora do Carmo e ao uso piedoso do

escapulário.

Beneditinos: logo que chegaram a Salvador no ano de 1581, os monges da Ordem de

São Bento abriram mosteiros na então capital da Colônia (1584), no Rio de Janeiro

(1586), em Olinda, Paraíba e São Paulo (1590-1598). No final do século XVI tinham

mosteiros espalhados por diversas regiões, especialmente no interior de São Paulo. A

fundação paulista privilegiou o título de Nossa Senhora da Assunção, enquanto no Rio

de Janeiro, a igreja que construíram foi dedicada a Nossa Senhora do Monte Serrat,

invocação de origem espanhola. Mas a principal contribuição dos beneditinos foi no

campo da arte, especialmente a escultura. Com a propagação do culto à Imaculada

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Conceição, foram muitos os pedidos de imagens para igrejas, capelas e oratórios

domésticos. É a um beneditino que se atribui a origem da imagem de Nossa Senhora

da Conceição que, em meados do século XVIII, ganhou o sobrenome “Aparecida”.

A presença de Maria no Brasil, desde o descobrimento sob a invocação de “Nossa

Senhora da Esperança”, pouco a pouco foi tomando conta de todos os rincões desta terra à

medida da construção da nossa história, em meio a conflitos, fracassos, sucessos... Pelas

razões aqui apresentadas brevemente, entre outras, é possível afirmar que a devoção à Virgem

Maria não é nova em nosso país, mas se fez presente desde os primeiros conquistadores,

colonizadores, desbravadores e evangelizadores, chegando aqui justamente por meio deles. A

história, tradição e devoção popular portuguesa, assumida e reorientada pelos reis de Portugal,

espalhada pelos colonizadores e evangelizadores em todas as extensões e possessões do Reino

juntamente com o trabalho das diversas ordens religiosas que aqui chegaram durante os

primeiros séculos de colonização, empenhados na propagação do culto à Imaculada e cada

qual com seu carisma mariano, são os principais fatores que fizeram o Brasil crescer e

frutificar, principalmente nos três primeiros séculos, tornando-o um imenso e singular

pedestal para a Virgem Maria, a ponto de ser considerado atualmente “o país mais católico do

mundo”, porque justamente, é um dos mais marianos.

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ANEXO 2 –

APOCALIPSE 12,1 E A ICONOGRAFIA DA IMACULADA CONCEIÇÃO

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2. APOCALIPSE 12,1 E A ICONOGRAFIA DA IMACULADA CONCEIÇÃO

Desde a antiguidade cristã até os nossos dias, muitos são os ícones, pinturas, imagens

e esculturas dos mais diversos estilos artísticos que retratam a Virgem Maria. Tal diversidade

iconográfica e imagética acompanhou a evolução do culto a Nossa Senhora ao longo dos

séculos. A iconografia mariana, portanto, acompanhou o culto mariano, sendo anterior,

inclusive a definições e proclamações dogmáticas, como é o caso do culto litúrgico e popular

e da iconografia da Imaculada Conceição, além de acompanhar também concepções e

abordagens teológicas e a instituição de festas litúrgicas e proclamações dogmáticas (cf. DA

SILVA RAMOS, 2016, p. 50).

Segundo Louis Réau, na sua volumosa obra sobre a arte cristã, a iconografia mariana

conheceu três momentos: 1º. A arte paleocristã das catacumbas; 2º. A arte bizantina do

Oriente; 3º. A arte ocidental. Este último momento foi o que apresentou a maior variedade de

representações de Maria, provavelmente por conta da liberdade encontrada nas mais diversas

expressões artísticas do Ocidente, especialmente a partir do Renascimento, mas já um pouco

antes também, diferenciando-se do milenar modelo iconográfico bizantino. A iconografia

oriental sempre apresentou a Virgem Mariaem referência explícita a Jesus, evidenciando

assim os dogmas da Maternidade Divina e da Virgindade Perpétua, enquanto que no

Ocidente, Maria já era apresentada com frequência sem o Menino ao colo e glorificada

segundo os dois últimos dogmas da modernidade, o dogma da Imaculada Conceição e da

Assunção.

Conforme Réau, a iconografia mariana ocidental pode ser dividida em quatro grupos:

1º. Antes do nascimento de Jesus (Imaculada Conceição e Maternidade Divina); 2º. A Virgem

com o Menino (a iconografia da Virgem da Majestade que representa Maria sentada sobre um

trono com Jesus no colo, e da Virgem da Ternura em que o rosto da Virgem e do Filho estão

encostados um ao outro); 3º. A Virgem Dolorosa (Nossa Senhora das Dores, da Piedade, as

Sete Dores de Maria); 4º. A Virgem “tutelar” (os vários títulos, invocações e tipologias

marianas). A Padroeira do Brasil se enquadraria no primeiro e no quarto grupo por ser uma

imagem da Imaculada Conceição que recebeu um novo título segundo as circunstâncias em

que foi encontrada e que, ao invés de receber o nome da localidade em que apareceu ou

surgiu, o seu novo título é que deu origem ao lugar. Neste caso a cidade de “Aparecida”,

assim chamada, por causa de Nossa Senhora.

Para a composição da iconografia mariana as fontes que serviram de conteúdo

fundamental foram a Sagrada Escritura, especialmente os símbolos e atributos marianos do

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Antigo Testamento, os evangelhos canônicos e o livro do Apocalipse; os evangelhos

apócrifos de São Tiago e São Mateus e o Livro da Natividade da Virgem Maria; os escritos,

sermões e homilias dos Padres da Igreja e de outros teólogos e escritores eclesiásticos; as

visões e escritos dos místicos; as invocações e os títulos; as festas e celebrações litúrgicas; os

dogmas marianos e as aparições de Nossa Senhora. No nicho de Nossa Senhora da Conceição

Aparecida que fica no Santuário Nacional, a imagem está ladeada por 12 figuras femininas do

Antigo Testamento.

Na Sagrada Escritura, segundo os evangelhos, temos um retrato conciso da pessoa,

vida e missão da Virgem de Nazaré. São os aspectos da vida de Maria, na Palestina, em sua

correlação com Jesus (PORTELLA, 2016, p. 14). Também o Antigo Testamento serviu de

inspiração, especialmente as figuras prefigurativas de Maria, tais como Eva, Sara, Rebeca,

Débora, Ester, Judite, entre outras, bem como alguns símbolos que, inclusive, foram

acrescentados à prece litânica como, por exemplo, arca da aliança, torre de Davi, casa de

ouro, porta do céu.

Já na Idade Média, a iconografia mariana se afastava um pouco do horizonte bíblico e

se “adaptava” aos aspectos da vida cotidiana das pessoas e das sociedades, donde surgem

títulos como Nossa Senhora do Parto, da Boa Morte, dos Navegantes, da Boa Viagem, entre

outros (PORTELLA, 2016, p. 14).

A partir dos primeiros séculos até a Modernidade, o desenvolvimento da iconografia,

também relacionada do Cristo, acompanhou o desenvolvimento teológico e dogmático desde

os primeiros séculos, pois a arte sacra procura exprimir aquilo que a fé busca transmitir, o que

consiste numa unidade entre mensagem e imagem. Na Antiguidade surgiram inúmeros ícones

para retratar a Maternidade Divina e a Virgindade Perpétua de Maria, especialmente no

Oriente e, na era moderna, com a proclamação do Dogma da Imaculada Conceição (século

XIX) e da Assunção (século XX), principalmente no Ocidente, embora a existência de ícones

a respeito destes dogmas marianos seja anterior e posterior à sua definição, pois também a

iconografia era uma expressão do sensus fidelium e do consensus fidelium.

As aparições marianas, ainda que existam desde sempre na história da Igreja,

influenciaram de maneira mais decisiva a iconografia do Ocidente que, embora seja difícil

precisar o momento histórico, provavelmente, a influência do Barroco optou por imagens que

retratassem mais a realidade humana de Maria, principalmente a partir do segundo milênio da

era cristã, enquanto que o Oriente prosseguiu com a sua rígida e estática iconografia

bizantina. Também as visões e percepções dos videntes e a mensagem das aparições

influenciaram fortemente a iconografia moderna e contemporânea.

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A partir da variedade de fontes iconográficas e consequentemente de obras atribuídas à

Virgem Maria ao longo da história, é perceptível o lugar de destaque que ela ocupa na arte, na

teologia, no culto e na devoção popular, comparável somente ao de Jesus Cristo.

Provavelmente a realidade mais difícil de retratar do mistério da Virgem Maria é a

respeito da sua concepção imaculada. Para o franciscano Róger Brunorio, a dificuldade de

transcrever numa linguagem figurativa um conceito tão abstrato quanto a Imaculada

Conceição de Maria, consiste na complexidade do dogma e do sublime mistério que ele revela

acerca da beleza de Deus, da plenitude da criação e da vocação e destino do homem (2004, p.

206).

A necessidade de compor uma imagem para visualizar tão complexo e sublime

mistério se deve à função que a arte sacra exerce na catequese e na liturgia (BRUNORIO,

2004, p. 210), não sendo apenas uma peça de decoração, mas carregada de denso significado

teológico que serve de auxílio à palavra e é útil e proveitosa quando se relaciona com a

palavra (cf. DS n. 600-603). Segundo Emília Nadal, as imagens sacras são indispensáveis à

liturgia, pois nos permitem a visualização da Palavra proclamada e do Mistério celebrado

(NADAL, 1991, p. 119). Por isso as imagens são objetos de culto e veneração dos fiéis, pois

graças ao evento da encarnação de Cristo, que é a imagem do Deus invisível (cf. Col 1,15), é

possível contemplar a beleza de Deus revelada em Cristo e cuja luz se manifesta na Virgem

Maria e nos santos que honramos. A encarnação de Cristo é a fonte e origem de toda a arte

sacra que procura revelar a beleza de Deus e dar visibilidade à nossa fé. Nesta perspectiva, os

concílios de Nicéia II, Trento e Vaticano II salientaram o aspecto representativo das imagens,

a fim de evitar toda e qualquer idolatria ou devoção equivocada, pois “quem venera uma

imagem, venera a pessoa que nela está representada”.

Também deste modo foi necessário representar iconograficamente a Imaculada

Conceição de Maria, cujo dogma conheceu um amplo e largo desenvolvimento histórico,

teológico e dogmático que foi definido somente no século XIX, muito embora tal mistério já

fosse acreditado pelo povo e celebrado pela liturgia desde muito tempo antes da sua

proclamação oficial. O progressivo desenvolvimento iconográfico imaculista acompanhou a

progressiva afirmação do culto à Imaculada. “Esta iconografia constitui, portanto, um

importante documento histórico-doutrinal fundamental para o estudo e a compreensão do

longo processo da afirmação do culto da Imaculada Conceição até chegar ao seu último

estatuto de dogma de fé em pleno século XIX” (OSSWALD, 2016, p. 406).

Para Cristina Osswald, “o protótipo iconográfico da Imaculada Conceição que

subsistiu até a atualidade é uma criação barroca pós-tridentina” (2016, p. 401), isto é, a

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representação atual da Imaculada é um modelo de inspiração medieval, onde se concentraram

as disputas teológicas mais acirradas a respeito do tema, segundo as orientações do Concílio

de Trento que rebatia as oposições dos protestantes acerca do culto às imagens e conforme o

Barroco, movimento artístico da época que servia principalmente à arte sacra graças à sua

exuberância e que predominou especialmente na Península Ibérica, onde surgiram as

principais obras acerca da Imaculada Conceição de Maria.

Segundo as pesquisas de Réau, a iconografia da Imaculada Conceição sofreu

modificações entre os séculos XVI e XIX e a versão mais atual é característica do Barroco

espanhol do século XVII que criou o seu tipo definitivo (1996, p.88), sendo que esta é a figura

de Maria mais representada iconograficamente e deu origem a muitas outras imagens e títulos

marianos, entre eles o da Padroeira do Brasil, Nossa Senhora da Conceição Aparecida (cf.

DAS NEVES, 2009, p. 97). O barroco hispânico dedicou muita atenção às representações da

Virgem Imaculada tanto na pintura quanto na escultura. A maioria dos artistas barrocos foi

influenciada pelo modo como o artista sevilhano Francisco Pacheco (1564-1644) definiu o

modelo iconográfico da imagem da Imaculada Conceição da Virgem Maria. Segundo o que

consta no seu tratado Arte de la Pintura (1649), considerado um dos melhores acerca da

pintura do barroco espanhol (cf. DAS NEVES, 2009, p. 39), a Virgem deveria ser retratada

como uma jovem na flor da idade, entre seus doze e treze anos de idade, com olhos sérios, de

nariz e boca perfeitos e bochechas rosadas, com cabelos da cor do ouro. Enfim, retratá-la com

toda a beleza humana que fosse possível, pois a Imaculada é também a Tota pulchra (cf. Ct

4,7), aquela que depois de Cristo, é a criatura mais bela que fora criada por Deus (cf.

PACHECO, 1990, p.576).

A escolha [dos artistas] foi enfatizar a representação da concepção imaculada através

da beleza corporal da virgem. Assim, a tendência foi representar Maria como uma

mulher de aspecto jovial e semblante sereno, como a predestinada por Deus, aquela

que tem em sua alma a pureza, a beleza divina (Tota pulchra). Nela se realiza a

plenitude da criação. Ela é bendita, cheia de graça e bem-aventurada (BRUNORIO,

2004, p. 214).

Outro artista importante para consolidar o protótipo definitivo da iconografia

imaculista é o sevilhano Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682), que ficou conhecido como

o “pintor da Imaculada”, pois compôs vinte e cinco telas sobre o tema, sendo a primeira

datada de 1652. Para compor a “sua” Imaculada, Murillo usou alguns dos atributos da

“mulher vestida de sol e com a lua debaixo dos pés” segundo Ap 12,1, colocando-a sobre as

nuvens e revestida de túnica branca e manto azul que são respectivamente cores-símbolo da

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pureza e da transcendência, tal como está representada na sua obra mais famosa, a

Inmaculada Concepcíon de los Venerables (1678). Entre as diversas iconografias que

compôs, a cor da túnica da Virgem também pode ser da cor vermelha.

Mas como representar a concepção imaculada de Maria? Segundo Maria Marcellina

Pedico, a temática da Imaculada Conceição, entre outras singulares imagens de Maria, foi

muito mais difícil e tardia de definir pela dificuldade de transcrever em uma linguagem

figurativa um conceito tão abstrato (1993, p. 168). “Este fato da „ausência do pecado original‟

em Maria [...] não pode ser representado a não ser através de símbolos, devido à grande

complexidade envolvendo o mistério” (BRUNORIO, 2004, p. 214). Por isso é que a

iconografia imaculista reúne tantos e variados elementos artísticos, simbólicos e teológicos.

De modo geral, a imagem da Imaculada foi inspirada nas figuras bíblicas da “mulher”

de Gn 3,15 e de Ap 12,1 e da Sulamita do livro do Cântico dos Cânticos (7,1) e nos atributos

ou metáforas do Antigo Testamento presentes na Litania de Loreto, a ladainha lauretana

(1576), tais como: Arca da Aliança (Ex 25,10); Torre de Davi (Ct 4,4); Árvore de Jessé (Is

11,1); Sarça Ardente (Ex 3,2); Porta do Céu (Gn 28,17); fonte selada ou poço do jardim (Ct

4,15); jardim fechado ou hortus conclusus (Ct 4,12) com árvores que conservam por muito

tempo a sua cor (cipreste, oliveira, cedro, palmeira – cf. Ecl 24,17-18; Eclo 24,13-14), rosas e

lírios (Ct 2,1-2); espelho (Ez 7,10; Sb 7,26); Cidade (Sl 86,2) e Templo de Deus (Ecl 24,10-

11; Sl 87,3). A iconografia pré-barroca da Imaculada Conceição também foi inspirada no

Proto-Evangelho de São Tiago (capítulos IV e V) que narra o beijo casto entre Joaquim e Ana

junto à Porta Dourada do Templo de Jerusalém, o momento da concepção imaculada de

Maria. Também o Pseudo-evangelho de São Mateus (III, 1-5) e o Liber de Nativitatis Mariae

(III, 3-4 – V) narram de maneira semelhante este episódio.

Entretanto, o protótipo da Imaculada Conceição, definido no período Barroco (século

XVII), sob a influência da Escola de Sevilha, não fez qualquer menção aos textos apócrifos e

pouco se referiu aos símbolos da ladainha lauretana, preferindo inspirar-se fundamentalmente

na simbologia da Virgem do Apocalipse – a passagem bíblica de Ap 12 – que serviu de

inspiração para muitas representações mariais, especialmente para a representação da

glorificação de Nossa Senhora aos céus26

.

“Na sua iconografia mais comum [do período barroco], a Imaculada tem túnica e

manto, panejamentos esvoaçantes, calça sandálias ou encontra-se descalça (os pés são tapados

26

A iconografia da Imaculada Conceição pode ser confundida com a da Assunção de Maria, pois os atributos

apocalípticos são os mesmos, com exceção da posição das mãos e dos olhos. Enquanto na Imaculada os olhos

estão voltados para baixo e as mãos estão em forma orante ou sobre o peito, na Assunta ao céu os olhos e as

mãos se dirigem para o alto.

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pelas túnicas em muitas imagens). O manto pode cobrir apenas o corpo ou a cabeça e o

corpo” (OSSWALD, 2016, p. 402-403). Os pés podem pisar a lua crescente ou uma serpente e

as mãos delicadamente sobrepostas sobre o peito ou em posição orante.

O franciscano Róger Brunório coligiu no seu texto Representação iconográfica da

Imaculada Conceição de Nossa Senhora cerca de catorze atributos simbólicos que estão

presentes na maioria das iconografias, com alguma ou outra variação. São eles: o manto, a lua

crescente, o véu, os cabelos, a túnica, o globo, a coroa, a maçã, a rosa ou peônia, as mãos, a

nuvem, o querubim ou anjo, a serpente ou dragão, as estrelas (2004, p. 215-226).

Na iconografia imaculista de Bartolomé Estebán Murillo os símbolos cósmicos da

mulher apocalíptica – sol, lua e estrelas – são bastante evidenciados. Mas há outros símbolos

que extrapolam a revelação bíblica. São eles: o manto de cor azul ou vermelho, símbolo da

proteção divina e da dignidade; a túnica branca, sinal de pureza; os cabelos longos e soltos

que também podem representar um véu, sinal de liberdade; as mãos postas sobre o peito como

gesto de oração; as nuvens que simbolizam a manifestação divina; os querubins de cabeça

alada com duas ou quatro asas com aspecto de criança que recordam os anjos que foram

postos sob a Arca da Aliança a indicar o propiciatório que sinaliza a presença do Altíssimo

(cf. Ex 25,18-21; 1Rs 6,23-28).

A arte espanhola seiscentista influenciou o vizinho país luso para a confecção das

imagens imaculistas, principalmente a partir do momento que Portugal se colocou sob a

proteção de Nossa Senhora da Conceição, assumindo-a por sua padroeira e propagando a sua

devoção que aportou em terras brasileiras. O “pintor das Imaculadas” deixou uma herança

para a posteridade, pois, nascendo cem anos (1617) antes do encontro da imagem nas águas

do Rio Paraíba, não imaginava que contribuíra para a inspiração daquele que esculpira uma

imagem simples de barro cozido que reproduzia a efigie de Nossa Senhora da Conceição, que

no Brasil passaria a ser invocada como “Nossa Senhora da Conceição Aparecida”.

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ANEXO 3 –

BREVE CRONOLOGIA DOS 300 ANOS DE “APARECIDA”

(1717-2017)

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3. BREVE CRONOLOGIA DOS 300 ANOS DE APARECIDA (1717-2017)

Apresentamos abaixo a cronologia das principais datas históricas que envolvem a

imagem, a devoção e o santuário de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, a fim de ter uma

visão panorâmica sobre toda a sua história até o presente ano do Tricentenário (2017), mas

sem estabelecer uma relação direta com a história do Brasil, o que seria fundamental para um

aprofundamento futuro, tal como foi feito quando apresentamos o contexto político, social e

econômico do encontro da imagem.

Destacamos, sobretudo, os “sete altares” que foram erguidos para a Virgem como uma

descrição objetiva do itinerário da imagem desde o fundo do rio até o nicho em que se

encontra atualmente no Santuário Nacional, através de uma analogia com os “sete altares”,

denominação com a qual os antigos romanos se referiam à freguesia de Assumar (Montforte),

uma povoação portuguesa muito antiga, com cujo nome foi condecorado Dom Pedro de

Almeida Portugal, o terceiro governador da Capitania de São Paulo e das Minas de Ouro

(1717-1721), ou como foi conhecido, o Conde de Assumar, a quem “Aparecida” deve a sua

origem histórica, pois foi justamente a sua passagem pela Vila de Guaratinguetá que provocou

a intervenção de Nossa Senhora em favor dos pescadores, naquela pesca milagrosa pelos idos

de outubro de 1717 (MACHADO, 1976, p. 163).

DATA ACONTECIMENTO / EVENTO27

1717 Encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição no Rio Paraíba pelos

pescadores João Alves, Domingos Garcia e Filipe Pedroso.

1717-1726

“1º altar” – primeiro oratório na casa de João Alves, filho de Domingos

Garcia, casado com Silvana da Rocha.

1726-1731 “2º altar” – após a morte de Silvana da Rocha (precedida da morte do

marido e do filho), Filipe Pedroso, seu irmão, tornou-se o herdeiro da

imagem que permaneceu no seu oratório particular durante o tempo que

residiu nas terras de Lourenço de Sá, por aproximadamente seis anos.

1731-1739 “3º altar” – Filipe Pedroso mudou-se para a Ponte Alta, que fica entre a

Ponte de Sá e o Alto da Boa Vista, onde permaneceu por aproximadamente

nove anos.

1739 “4º e 5º altar” – a imagem voltou para o seu lugar de origem. Atanásio

27

As principais datas da história de Nossa Senhora da Conceição Aparecida foram extraídas da obra:

BRUSTOLONI, Júlio J. História de Nossa Senhora da Conceição Aparecida – a Imagem, o Santuário e as

Romarias – 10ª ed. rev. e ampl. – Aparecida, SP: Editora Santuário, 1998.

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Pedroso, filho de Filipe Pedroso, foi quem herdou a imagem que até então,

ainda era conservada dentro de um baú e retirada somente para a hora da

reza. Atanásio edificou um oratório de madeira em sua casa (4º altar) e

reuniu a vizinhança para a oração do rosário aos sábados, onde começaram

a acontecer alguns milagres atribuídos a Nossa Senhora da Conceição

Aparecida. Quando a notícia dos milagres chegou aos ouvidos do pároco de

Guaratinguetá, foi construída ao lado da casa de Atanásio, uma capelinha

semi-pública feita de pau a pique (5º altar) no Porto de Itaguaçu, que aos

poucos se tornou pequena para tanta gente atraída pela notícia dos milagres.

1743

No dia 5 de maio, o Pe. José Alves Vilella obteve do bispo diocesano do

Rio de Janeiro, D. Frei João da Cruz, a autorização para a promoção do

culto e a ereção de uma capela pública. Deu-se início à construção de uma

capela mais ampla feita de taipa de pilão no Morro dos Coqueiros, um local

de acesso mais favorável.

1745

“6º altar” – a 26 de julho, memória litúrgica de Santa Ana, mãe da Virgem

Maria, foi inaugurada a primeira Capela sob a invocação de Nossa Senhora

da Conceição Aparecida (local onde hoje está a atual Basílica Velha)

juntamente com a instalação do povoado de Aparecida. Neste mesmo ano

foi criado o bispado de São Paulo e Mariana.

1761 Primeira visita pastoral realizada pelo segundo bispo de São Paulo, D. Frei

Antônio da Madre de Deus, à Capela de Nossa Senhora da Conceição

Aparecida.

1780 É nomeado o primeiro capelão de Aparecida: o Pe. Francisco das Chagas

Lima.

1822

Aos vinte dias de agosto, o primeiro Imperador do Brasil, D. Pedro I,

visitou a imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida durante a sua

histórica viagem para São Paulo. No mês seguinte, D. Pedro I proclamou a

independência do Brasil (7/9/1822).

1845 / 1865 Visita do Imperador D. Pedro II acompanhado da Imperatriz.

1868

A 8 de dezembro, durante a Solenidade da Imaculada Conceição, a Igreja

de Aparecida recebeu a ilustre visita da Princesa Isabel e do seu marido, o

Conde d‟Eu. Na ocasião, a Princesa do Brasil fez a doação de uma coroa de

ouro e diamantes para a imagem de Nossa Senhora, que aguardou o

momento ideal de ser coroada.

1873 É organizada a primeira romaria a pé que visitou a igreja de Aparecida,

proveniente da cidade vizinha de Guaratinguetá: “entre 1745 e 1890, a

Imagem era levada todos os anos para a matriz de Guaratinguetá, onde

permanecia por alguns dias, e, a partir de 1872, durante o mês de maio, para

as devoções marianas da paróquia.” (BRUSTOLONI, 1998, p. 355).

1893 A festa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida passou a ser celebrada

no 5º domingo da Páscoa, pois até então era realizada todo dia 8 de

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dezembro, na Solenidade da Imaculada Conceição. No dia 28 de novembro,

a igreja de Aparecida, desmembrada do território da Paróquia de Santo

Antônio de Guaratinguetá, foi elevada à condição de paróquia e recebeu o

título de Santuário Episcopal por decreto de D. Lino D. Rodrigues de

Carvalho, bispo de São Paulo.

1894 Dom Joaquim Arcoverde, bispo de São Paulo, confiou a pastoral do

Santuário aos cuidados dos missionários redentoristas, que chegaram a

Aparecida no dia 28 de outubro e assumiram de modo definitivo os

trabalhos no ano seguinte, a 23 de janeiro.

1900 É realizada uma romaria de trem vinda das cidades de São Paulo com

aproximadamente 1200 peregrinos.

1904 A festa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida passa a ser celebrada no

primeiro domingo de maio. No dia 8 de dezembro, a Imagem foi

solenemente coroada por D. José de Camargo Barros, bispo de São Paulo,

com a “joia” ofertada pela Princesa Isabel em 1868.

1908 No dia 28 de abril, o Santuário de Aparecida (atual “Basílica Velha”) é

elevado a dignidade de Basílica Menor.

1917 Mais uma vez a data da festa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida é

modificada. Desta vez para 11 de maio e, posteriormente para o dia 7 de

setembro. Neste mesmo ano comemorou-se o Jubileu dos 200 anos do

encontro da imagem.

1929 O Congresso Mariano em Aparecida (5-7 de setembro) comemorou o

Jubileu de Prata da Coroação da Imagem (1904-1929).

1930 A 16 de julho, o Papa Pio XI declarou Nossa Senhora da Conceição

Aparecida como Padroeira Principal do Brasil.

1931 O cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme, no dia 31 de

maio, na presença do Presidente da República, o Sr. Getúlio Vargas, de

demais autoridades públicas e religiosas, e de grande multidão, oficializou a

consagração solene do Brasil a sua Padroeira, na Esplanada do Castelo, da

então capital federal do país, o Rio de Janeiro.

1932 A imagem “foi levada ocultamente para São Paulo, durante a Revolução

Constitucionalista, onde permaneceu no Palácio de São Luiz, residência do

Sr. Arcebispo de São Paulo, de 25 de setembro até o dia 6 de outubro”, por

medo “de um bombardeio na cidade de Aparecida, pois no Vale do Paraíba

se desenvolveram diversas lutas e confrontos entre constitucionalistas e

getulistas.” (BRUSTOLONI, 1998, p. 356).

1945 Foi organizada pelo Cardeal Motta, na Catedral e na Praça da Sé, centro da

cidade de São Paulo, uma vigília noturna que contou com a presença da

Imagem original de Nossa Senhora da Conceição Aparecida e do

operariado contra o movimento comunista.

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1946 Primeira restauração da Imagem feita pelo Pe. Antônio Pinto de Andrade

(29/5). No dia 10 de setembro aconteceu o lançamento e bênção da pedra

fundamental da Basílica nova, que se encontra no Alto da Boa Vista, entre

o Morro dos Coqueiros e o Porto de Itaguaçu. A celebração foi presidida

pelo Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira.

1950 Segunda restauração da Imagem feita pelo Pe. Humberto Pieroni (28/11 –

4/12) que instalou um pino de alumínio para manter a cabeça que,

frequentemente soltava, firme ao corpo.

1954 A cidade de São Paulo foi agraciada com mais uma visita da imagem de

Nossa Senhora da Conceição Aparecida, que permaneceu na Catedral da Sé

por ocasião do Congresso Mariano, realizado de 5 a 7 de setembro de 1954,

desta vez num clima mais ameno do que aquele de dez anos atrás.

1955 De 17 a 25 de julho de 1955 a Imagem de Nossa Senhora da Conceição

Aparecida foi conduzida para o Rio de Janeiro por ocasião do Congresso

Eucarístico Internacional. Neste mesmo ano a festa da Padroeira foi

celebrada a partir de uma data que seria definitiva até os nossos dias: 12 de

outubro.

1958 O Papa Pio XII eleva a Paróquia de Aparecida à dignidade de Arquidiocese

(19 de abril). E no mesmo ano, o Sr. Núncio Apostólico, D. Armando

Lombardi, instala solenemente a Arquidiocese de Aparecida (8 de

dezembro).

1962 A imagem da Padroeira do Brasil esteve presente na inauguração da cidade

de Brasília, a nova capital federal, agora localizada no Estado de Goiás.

1965-1968 Peregrinação Nacional da Imagem Nossa Senhora da Conceição Aparecida,

realizada pelo transcurso dos 250 anos do encontro da Imagem, durante

dois períodos: 1º - 3 de maio de 1965 a 24 de dezembro de 1966; 2º - 29 de

fevereiro a 30 de outubro de 1968. No dizer de Dom Macedo: “Nossa

Senhora vai retribuir a visita que seus filhos lhe fazem de todo o Brasil.”

(apud BRUSTOLONI, 1998, p. 357). Foram visitadas 1300 localidades: 23

arquidioceses, 174 dioceses e 8 prelazias. A imagem percorreu uma média

de 45.000 km durante 508 dias (Ibid., 1998, p. 358-359). Esta foi a última

vez que a imagem original saiu do seu Santuário.

1966 O Cardeal Motta, primeiro Arcebispo de Aparecida, promulgou um Ano

Mariano para celebrar os 250 anos do encontro da Imagem.

1967 Jubileu de Ouro do encontro da Imagem (250 anos). Entre muitas

solenidades e eventos, foi realizada uma procissão fluvial do Porto de

Itaguaçu até o Santuário Nacional para recordar o evento miraculoso ali

realizado há 250 anos. Outro momento marcante foi a inauguração do

Santuário Nacional de Aparecida, embora inacabado, a 15 de agosto. No

mesmo dia, o Santuário Nacional foi presenteado com uma “Rosa de Ouro”

enviada pelo Papa Paulo VI, a primeira de sua história.

1978 Houve uma tentativa de furto da imagem no dia 16 de maio às 20h10min

por um jovem desequilibrado de nome Rogério Marcos de Oliveira. O

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violento atentado resultou na quebra da imagem que se espatifou em 165

fragmentos. No mesmo ano, a Imagem foi restaurada por Maria Helena

Chartuni, restauradora do MASP (Museu de Arte de São Paulo), de 29 a 31

de junho. No dia 19 de agosto, numa peregrinação de carro do MASP até a

cidade de Aparecida, foi reintroduzida a imagem original restaurada num

nicho da Basílica, agora à prova de bala para evitar outros atentados.

1980 Ainda inacabado, o novo Santuário de Nossa Senhora da Conceição

Aparecida é consagrado pelo Papa João Paulo II, o primeiro pontífice a

visitar Aparecida, por ocasião de sua viagem apostólica ao Brasil. Na

ocasião o Santuário recebeu o título de Basílica Menor (4 de julho de

1980).

1982 “7º altar”: após dois anos da consagração da Basílica nova, é que a imagem

original deixa definitivamente a “Basílica Velha” e passa a ser venerada

definitivamente no nicho do novo santuário, ainda inacabado.

1984 A 12 de outubro de 1984, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

(CNBB) decretou oficialmente a igreja de Aparecida como Santuário

Nacional.

2007 O Papa Bento XVI presidiu a abertura da V Conferência do Episcopado

Latino-Americano e Caribenho, que aconteceu de 13 a 31 de maio nas

dependências do Santuário Nacional. Na ocasião, o Papa presidiu a oração

do terço, celebrou uma Missa campal na praça da Basílica e presenteou a

Padroeira com uma “Rosa de Ouro”, a segunda oferecida por um Pontífice

à Nossa Senhora da Conceição Aparecida.

2011 Desde 2011, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

escolheu o Santuário de Aparecida como sede para as suas Assembleias

Gerais, realizadas uma vez por ano.

2013 Com a disposição de visitar Aparecida como um peregrino, o Papa

Francisco incluiu no roteiro de sua viagem ao Brasil, por ocasião da

Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, uma visita à Mãe dos

brasileiros. O Papa presidiu a Missa no dia 24 de julho, com a liturgia do

dia da Padroeira (12/10) e prometeu retornar para a celebração dos 300

anos. Além disso, o pontífice teve um encontro particular com o episcopado

brasileiro a 27 de julho, no Rio de Janeiro, onde usou o encontro da

Imagem e a pesca milagrosa como chaves de leitura e reflexão sobre a

missão da Igreja.

2016 O Santuário de Aparecida é constituído como Catedral da Arquidiocese de

Aparecida (22/10), cujo título pertencia, até então, a Igreja de Santo

Antônio, de Guaratinguetá – SP.

2016-2017 12 de outubro de 2016 – 12 de outubro de 2017 – Ano Nacional Mariano

proclamado pela CNBB para toda a Igreja do Brasil. Umas das principais

iniciativas para a preparação do Jubileu dos 300 anos é a peregrinação de

diversas fac-símiles da imagem original por todas as Arquidioceses e

Dioceses brasileiras, além das diversas romarias programadas a nível

nacional e regional, bem como outras programações e atividades de cunho

religioso e social.

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ANEXO 4 –

“APARECIDA”: UMA MARIOFANIA “FORA DOS PADRÕES”

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4. “APARECIDA”: UMA MARIOFANIA “FORA DOS PADRÕES”

Não há notícias de que o Brasil tenha tido alguma aparição de Nossa Senhora nos três

primeiros séculos que o nosso estudo abrange, sendo este um fenômeno ainda recente que

merece ser estudado e aprofundado à medida da sua ocorrência, com a seriedade e a prudência

com que a Igreja sempre tratou estas manifestações. Além disso, o período mais frequente de

manifestações desta natureza, presente já na experiência do povo de Israel e ao longo de toda

a história da Igreja, foi no século XIX e XX, como é o caso, por exemplo, das aparições em

Lourdes (1858) e Fátima (1917), posterior ao período histórico até então contemplado.

Alguns teólogos costumam comparar a devoção a Nossa Senhora Aparecida com a

aparição de Nossa Senhora de Guadalupe, no México. Apesar das semelhanças, há muitas

diferenças do ponto de vista histórico. Contudo, “Aparecida”, embora não seja rigorosamente

uma aparição, possui algumas características que a aproxima de uma. O que podemos

constatar é que por causa da sua imagem, “Aparecida” é um sinal divino, portador de uma

mensagem profundamente eclesial, além de social.

4.1. “Guadalupe” e “Aparecida”

A aparição mariana mais impressionante no continente latino-americano, para não

dizer do mundo, é a de Nossa Senhora de Guadalupe28

, no México, ano de 1531 (século XVI),

e foi a primeira a ser reconhecida pela Igreja (BOFF, 2006, p. 235-236). A Virgem que

apareceu a Juan Diego foi chamada popularmente de “Guadalupe”29

, cujo nome significa a

“Vencedora da Serpente”, uma designação própria da Imaculada Conceição. De imediato é

perceptível alguma semelhança e traços de união entre a Virgem de Guadalupe e a Senhora de

Aparecida, ainda que haja uma diferença de aproximadamente 200 anos entre a “aparição” e o

28

A Virgem Maria apareceu na hermosa montaña de Tepeyac a um índio chamado Juan Diego, enquanto este se

dirigia pela manhã para assistir a Missa, num contexto social de difíceis conflitos entre a população local e os

espanhóis que ali espalhavam seus domínios. Nossa Senhora apresentou-se ao índio com uma face indígena e

morena, falando-lhe na sua própria língua, o Nican Mopohua, num diálogo muito afetuoso e carinhoso em que se

revelava como uma boa mãe: “Por acaso não estou eu aqui, que sou tua Mãe?”. O restante da história já nos é

conhecida, e esta seguiu um ritmo comum às aparições, guardadas as suas particularidades. A Virgem pediu ao

vidente a construção de uma igreja naquele local, o qual foi pedir a autorização do bispo local, Dom Frei Juan

Zumárraga, que, não anuindo de imediato, convenceu-se do fato apenas quando o índio colocou na sua tilma

rosas colhidas em pleno inverno, a mando da Virgem, e ao abri-la diante do purparado, apareceu inscrita no pano

a imagem daquela que o índio viu com os próprios olhos. Na retina dos olhos da Virgem de Tepeyac ficou

gravada esta cena na qual o bispo caiu de joelhos diante do índio portador do retrato aquiropito da Virgem. 29

“Existe a hipótese de que o primitivo nome da Virgem aparecida em Tepeyac fosse indígena e, em poucos

anos, tenha sido deturpado pelos espanhóis para „Guadalupe‟ por questões de assonância. É possível, mas não é

seguro.” (BOFF, 2006, p. 246).

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“encontro”, entre a imagem impressa nas fibras da tilma de um índio e a imagem modelada no

barro e colhida por pescadores. Embora, por honestidade histórica, não seja possível dizer que

o evento “Aparecida” seja uma reprodução brasileira da aparição mexicana, ainda que

Portugal e, consequentemente, o Brasil, tivessem permanecido sob o domínio espanhol por

sessenta anos (1580-1640), o que não significa, obrigatoriamente, que a devoção a Nossa

Senhora de Guadalupe, tanto a “mexicana” quanto a “espanhola”, tenham sido largamente

abraçadas pelo povo luso e brasileiro. Além do que, a “aparição de Guadalupe” e o “encontro

de Aparecida” estão inseridos em contextos históricos bem diferentes, ainda que em termos

iconográfico e sociológico tenham as suas semelhanças.

Dom Rafael Maria faz uma comparação paralela, a partir da análise de quinze

elementos entre “Guadalupe”, “Aparecida” e “Lourdes” e sustenta a tese que as três

mariofanias, entre as suas semelhanças e diferenças, possuem uma mesma mensagem para a

Igreja. Segundo ele: “é possível constatar que Guadalupe, Aparecida e Lourdes se inserem na

vida social e eclesial do contexto em que se manifestam”, mas “deve ser estudados em um

contexto mais amplo para favorecer um conhecimento seguro do significado destas

manifestações divinas para o México, para o Brasil e para o mundo”, ou seja, ainda que

“nenhuma aparição mariana esteja fora de um contexto histórico e eclesiológico [...] elas se

inserem e fazem parte da história universal e local” (DA SILVA, 2014, p. 38-45) e possuem

uma imagem que interessa tanto ao passado quanto ao presente.

4.2. Uma “Aparecida” que não apareceu

Antes de prosseguir, convém assinalar a definição de “aparição” segundo o

Documento da Comissão Episcopal de Doutrina (CED-CNBB) sobre “Aparições e

Revelações Particulares” (2009), o Dicionário de Mariologia e a contribuição de alguns

especialistas no assunto que, em nosso Brasil, possui pouquíssima literatura, consequente de

uma falta de interesse, provavelmente justificada pelo pouco impacto que as aparições tiveram

na formação e desenvolvimento do culto e da devoção mariana em nosso país e, por se tratar

de um fenômeno recente e isolado para a nossa tradição religiosa local. Todavia, por hora não

nos interessa discutir o assunto, pois, como veremos, a partir da definição deste fenômeno, a

rigor, “Aparecida” não é uma aparição, mas uma devoção que possui, todavia, elementos

comuns a uma mariofania, especialmente os efeitos causados após o encontro da sua imagem

nas águas do Paraíba, embora seja uma mariofania muito singular e “fora dos padrões”, o que

lhe dá uma originalidade ímpar.

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Segundo o subsídio doutrinal da Comissão Episcopal de Doutrina, “aparições” e

“revelações” são:

experiências de ordem psíquica. Por elas se diz reconhecer objetos, seres e situações

normalmente “invisíveis”, como Deus, Anjos, e pessoas em situação escatológica

como, os santos, a Virgem Maria, as almas. São fenômenos extraordinários que não

se podem pressupor, mas dos quais temos inúmeros relatos de experiências (CED-

CNBB, 2005, p. 16).

O mariólogo René Laurentin afirma: “Chama-se de aparição a manifestação visível de

um ser cuja visão naquele lugar ou naquele momento é inusitada e inexplicável segundo o

curso natural das coisas.” (apud FIORES; MEO, 1995, p. 116). Salvatore Perrellla, da

Pontifícia Faculdade Marianum de Roma define “aparição” na perspectiva da história, da

Revelação e da Igreja: “um evento histórico comprovado pela Igreja depois de escrupulosa e

severa investigação, cuja vocação e finalidade é aquela de „serviço‟ à Revelação divina

definitivamente concluída em Jesus Cristo”. O pensamento do teólogo brasileiro Afonso

Murad concorda com Laurentin e completa: “O termo „aparição‟ já transparece algo objetivo,

fora do sujeito, exteriorizável, como expressão visível de Deus” e, exemplifica essa noção a

partir das aparições marianas: “Uma aparição de Nossa Senhora, por exemplo, é uma

manifestação sensível na qual Maria se mostra visivelmente e comunica-lhes algum desejo da

parte de Deus em vista do bem espiritual das pessoas”. E define precisamente que: “Aparições

de Maria são manifestações de sua pessoa viva, não de estátuas ou imagens.” (MURAD,

1997, p. 19-20).

No caso das aparições de Cristo e de Maria, o que os videntes visualizam são seus

corpos percebidos em sua própria forma, ou seja, os corpos glorificados, segundo a teologia

paulina, que apesar de pertencer a uma ordem espaço-eternidade, podem ter alguma relação

com o espaço-tempo, ainda que de modo misterioso e extraordinário, graças também à

comunhão dos santos. Um exemplo disso são as aparições do Cristo ressuscitado, como

narram os evangelhos, após o episódio da paixão e morte, em que os discípulos tiveram

dificuldade de reconhecer o Senhor.

No caso da Virgem, falando a partir daquelas aparições já reconhecidas pela Igreja,

constata-se uma diversidade quanto a sua fisionomia, estatura, cor de pele, vestes, língua, etc.

Ao se manifestar, não teria que se apresentar igual em todos os lugares e tempos por se tratar

da mesma pessoa? Essa diversidade nas manifestações marianas que, mesmo sendo a mesma

pessoa se apresente de forma tão variada, e difere tanto da Maria de Nazaré apresentada no

Evangelho, é explicada como uma adaptação pedagógica ao vidente e ao seu ambiente e

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cultura. Desta forma, Nossa Senhora se manifesta de forma adequada aos seus interlocutores,

segundo as circunstâncias de tempo, lugar e cultura local, para que a sua mensagem seja

compreendida. Isto é o que podemos chamar de um elemento de inculturação30

. Caso

evidente disso são as aparições em Guadalupe, no México, em que a Virgem Morena falava

na língua do índio Juan Diego.

Portanto, de modo geral, as aparições são manifestações visíveis do sobrenatural que

podem comportar no seu interior uma visão, uma revelação ou um sinal, ainda que cada um

destes termos tenha suas próprias acepções. Neste caso, “Aparecida” é uma exceção e nem

pode ser classificada como uma aparição no sentido estrito do termo, embora o seu título

sugira o contrário.

4.2.1. “Aparecida” e os elementos comuns que costumam suceder às aparições

Contudo, há alguns elementos que podem ser classificados como efeitos e

consequências de uma aparição, e que também caracterizam a devoção a Nossa Senhora da

Conceição Aparecida. Aparições marianas importantes como Guadalupe, Lourdes e Fátima

possuem todos estes elementos, claro que com seus matizes próprios. É por isso que

“Aparecida”, embora não seja propriamente uma aparição, possui algumas características

comuns às principais manifestações de Maria da época moderna e contemporânea,

especialmente pelo fenômeno dos milagres, das multidões, do surgimento de povoados,

cidades e santuários de repercussão nacional e internacional.

4.2.1.1. Os milagres

“Ela apareceu milagrosamente e é com milagres que se conta sua história; por isso foi

se tornando sempre mais querida...” (MACHADO, 1976, p. 146). O encontro da imagem é,

em si mesmo, um evento miraculoso. “São muitas as circunstâncias miraculosas do encontro

da Imagem de Nossa Senhora nas águas do Rio Paraíba” (Ibid., 1976, p. 146) que, inclusive,

desafiam as leis naturais. O Pe. Machado em sua coletânea de textos coligidos na obra

Aparecida na História e na Literatura, enumera algumas destas circunstâncias miraculosas:

1) a surpresa do achado; 2) o horário desfavorável da pesca; 3) o local inapropriado; 4) o

corpo separado da cabeça e a ordem no encontro: primeiro o corpo, e a alguns metros, a

30

Quanto às aparições, estas “são sempre inculturadas, isto é, apresentam características que dão valor a uma

cultura local ou se adequam à pessoa do vidente e do ambiente em que vivem” (DA SILVA, 2014, p. 52).

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cabeça; 5) as peças flutuantes, o que seria impossível com aquela imagem cuja tendência

natural seria afundar, permanecer no fundo do rio e dissolver-se; 6) a indissolubilidade de

uma imagem feita de barro poroso; 7) a imagem pesava apenas 4.350 gramas, mas quando foi

retirada se fizera tão pesada quanto uma rede cheia de peixes, tanto o corpo quanto a cabeça;

8) como a imagem chegou às malhas da rede, visto que as redes não alcançariam o fundo

onde ela estava provavelmente coberta de lodo e, como a cabeça tão pequena não escapou das

malhas da rede?

Além desses eventos miraculosos do encontro da imagem, para os quais não é possível

obter uma explicação racional, logo após ser “pescada” e guardada no interior do barco, o

terceiro lance de rede apanhou tantos peixes que os pescadores tinham medo de que a barca

viesse a afundar. Sem dúvida, é um milagre, pois eles haviam pescado a noite inteira, o

horário ideal para apanhar uma grande quantidade de peixes, coisa que conseguiram apenas

depois que encontraram a imagem de Nossa Senhora da Conceição. O registro do Livro

Tombo da Paróquia de Guaratinguetá afirma que os pescadores ficaram admirados deste

sucesso, uma reação que não seria de se esperar de pescadores experientes, que já deviam ter

testemunhado alguma grande pesca. Todavia, o sucesso da pescaria, tendo como pano de

fundo a obrigação de encher de peixes a mesa do governador, o que certamente lhes causara

temor, se deu após muitas tentativas fracassadas. Por isso, não era de se esperar outra reação

que não fosse a de admiração, própria de quem testemunha um milagre31

.

O Pe. Júlio Brustoloni dedica o capítulo 7 do seu livro sobre a História de Nossa

Senhora da Conceição Aparecida: a imagem, o santuário e as romarias, aos primeiros

milagres atribuídos à intercessão de nossa Padroeira, alguns dos quais estão descritos no

registro histórico transcrito no mencionado Livro Tombo, o principal documento a respeito do

encontro da imagem. Os três primeiros e mais famosos milagres são: o milagre dos peixes

(como já comentamos), o milagre das velas que se apagavam e acendiam sem intervenção

natural e humana (como está registrado no Livro Tombo da Paróquia de Guaratinguetá) e o

milagre da libertação das correntes do escravo Zacarias (BRUSTOLONI, 1998, p. 57-61).

“A crônica da missão de Aparecida, pregada em 1748, qualificou a Imagem como

„famosa pelos muitos milagres realizados‟.” (BRUSTOLONI, 1998, p. 58). Seria impossível

relatar todos os milagres operados graças à intercessão de Nossa Senhora da Conceição

31

A palavra “milagre”, do latim miraculu, tem a mesma raiz de “admirar” (admirare) e de “maravilha”

(mirabilia). Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, “milagre” é “o feito ou ocorrência

extraordinária, que não se explica pelas leis da natureza; acontecimento admirável, espantoso; portento, prodígio,

maravilha; qualquer manifestação da presença ativa de Deus na história; sinal dessa presença se caracteriza,

sobretudo, por uma alteração repentina e insólita dos determinismos naturais” (1986, p. 1133).

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Aparecida, mas basta testemunhar com os próprios olhos os inúmeros peregrinos que acorrem

ao Santuário Nacional diariamente para agradecer e “pagar” as promessas por conta de algum

milagre recebido, além de visitar a Sala dos Milagres com milhares de ex-votos que recordam

graças alcançadas, principalmente peças de ceras de várias partes do corpo, muletas, cadeiras

de rodas, etc.

Infelizmente o Frei Agostinho de Santa Maria não viveu a tempo de conhecer os

milagres de Nossa Senhora da Conceição Aparecida para, então, catalogá-la na sua obra

Santuário Mariano e história das imagens milagrosas de Nossa Senhora. Todavia,

“Aparecida” não é a única “imagem” no Brasil com fama de “milagreira”, mas é sem dúvida,

uma das mais veneradas, seja no Santuário Nacional, nas inúmeras paróquias e milhares de

capelas e oratórios com seu título ou nas casas de família que possuem sua imagem ou

estampa. É praticamente impossível uma família católica no Brasil não possuir uma imagem

da nossa Padroeira.

4.2.1.2. As multidões

Associado à ocorrência de milagres está o fenômeno das multidões que, por

curiosidade ou por crença, acorrem aos santuários marianos. No caso de “Aparecida”, os

milagres atraíram desde os vizinhos até os tropeiros que passavam pela região, bem como

peregrinos de outros lugares que ficavam sabendo dos fenômenos operados pela intercessão

de Nossa Senhora da Conceição encontrada no rio. Embora saiba que o poder de intercessão

da Virgem Maria possa vir ao seu socorro em qualquer circunstância e lugar que se encontre,

o fiel sente a necessidade de ver, tocar e beijar a imagem com fama de milagrosa. Por mais

que tenha uma reprodução na sua própria casa, se emociona quando uma imagem fac-símile

de Aparecida, por exemplo, visita a sua comunidade e, principalmente, quando tem a

oportunidade de ver no Santuário Nacional a imagem que foi encontrada no rio Paraíba.

“Anualmente [e atualmente], mais de 11 milhões visitam o Santuário Nacional...”

(CORDEIRO; RANGEL; LUÍS, 2008, p. 9). O aumento do número de peregrinos durante

estes três séculos de história e devoção é progressivo, crescente e constante e não fica atrás de

santuários marianos internacionalmente conhecidos como Lourdes e Fátima, por exemplo.

O fenômeno das multidões que acorrem dos quatro cantos do país revela outra

característica importante: a unidade do país. “Aparecida” reúne brasileiros de todas as

procedências, atrai gente de todo o tipo. O Pe. João Maria Cesar de Rezende no seu discurso

de inauguração do Seminário de Aparecida (1957) afirmou a este respeito de forma poética,

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mas bem realista, como se desse o testemunho de um padre que acompanhava de perto o vai e

vem diário de peregrinos na “Casa da Mãe Aparecida”32

:

Eu vi passar o peregrino de olhos alevantados e mãos unidas...

Vi o pobre maltrapilho soletrar o Pai Nosso e Ave Maria...

Vi a mãe de família com a criança no colo, estendendo a mãosinha...

Vi o jovem de olhar desconfiado... o filho do povo...

o douto Professor de anel no dedo...

O rico vestido à moda... e o simples operário...

O general com seus galões e o soldado fardado...

Os magnatas da Nação e os de pés descalços...

O carregador com suas mãos calosas que mal traçam o sinal da cruz...

O paciente aleijado arrastando-se nas suas muletas...

Os aflitos e lacrimantes de almas espicadas na dôr...

O branco... o mulato... o prêto piedoso...

Vi...

E todos caminhavam numa impressionante e interminável fileira [...]

Vi o Brasil passar aos pés da Padroeira...

(REZENDE apud MACHADO, 1976, p. 30).

Esse fluxo tão diversificado de pessoas indica que “a fraternidade da fé revigora os

vínculos da unidade política da nacionalidade.” (MACHADO, 1976, p. 8). Desde os visitantes

mais simples até os mais ilustres como nobres, imperadores, generais, presidentes e papas,

entre os quais se destacam: D. Pedro I (20 de agosto de 1822) que pouco depois proclamou a

independência do Brasil; D. Pedro II e a Imperatriz (1845 e 1865); a Princesa Isabel e o

Conde d‟Eu (8 de dezembro de 1868); o Presidente Getúlio Vargas que esteve presente na

cerimônia de coroação e proclamação de Nossa Senhora da Conceição Aparecida como

Padroeira do Brasil (1931); os três últimos pontífices da Igreja Católica que fizeram, cada

qual, a sua visita à “Mãe dos brasileiros”: João Paulo II (1980), Bento XVI (2007) e Francisco

(2013). Os papas que visitaram Aparecida sempre demonstraram vir ao Santuário como

peregrinos mais do que como chefes da Igreja que reconhecera o principal culto e devoção

mariana do Brasil e a construção do maior Santuário mariano do mundo.

Desta forma, seja pelas circunstâncias geográficas de acesso da população e das

regiões vizinhas, o que foi sendo cada vez mais aperfeiçoado a medida que as romarias se

intensificaram, seja pelas circunstâncias históricas do sofrimento do povo em geral e, claro, a

história de vida pessoal que cada um tem de enfrentar, que a localidade de Aparecida e o

Santuário ganharam projeção nacional.

4.2.1.3. A cidade e o santuário

32

Slogan recorrente nos meios de comunicação social do Santuário Nacional.

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A cidade de Aparecida surgiu de um povoado que, por sua vez, originou-se à sombra

da Capela de Aparecida (BRUSTOLONI, 1998, p. 163). O povoado de Aparecida do Norte,

como ficou conhecido, foi inaugurado a 25 de julho de 1745, data que coincide com a

inauguração da primeira Capela sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição Aparecida33

.

A partir deste dado já se percebe a vocação religiosa daquela que viria a se tornar a cidade de

Aparecida, para onde convergiriam milhares de pessoas. No ano de 1827 o povoado foi

elevado à categoria de distrito ou freguesia. No ano de 1928, Aparecida emancipou-se de

Guaratinguetá e foi instalada a 30 de março de 1929.

A cidade de Aparecida se tornou o que é hoje, graças ao Santuário e à devoção a

Nossa Senhora. O atual Santuário Nacional que abriga o trono da Padroeira do Brasil, foi

precedido por outras construções mais modestas, desde o oratório de Atanásio Pedroso

(aproximadamente 1739), a capela de taipa de pilão do Pe. Vilella (1745) que sofrera

posteriormente algumas adaptações, ampliações e reformas (1824-1833), sendo substituída

por alvenaria e que corresponde atualmente a “Basílica Velha” que levou 43 anos de

construção (1845-1888), localizada no Morro dos Coqueiros, até o majestoso Santuário

Nacional. Com o progressivo aumento de peregrinos, que sempre fora crescente desde as

primeiras e simples edificações, surgiu a necessidade de construir uma igreja ainda mais

ampla. A nova construção localizada na região chamada de Morro das Pitas, teve a pedra

fundamental lançada a 10 de setembro de 1946, foi inaugurada, ainda incompleta, no dia 15

de agosto de 1967 e consagrada pelo Papa João Paulo II no dia 4 de julho de 1980, sendo que

as suas obras continuam até os nossos dias. A nova basílica ficou sob o encargo do arquiteto

Benedito Calixto de Jesus Neto que a projetou no formato de uma cruz grega com uma cúpula

central e quatro naves. O edifício possui dimensões gigantescas, capaz de abrigar no seu

interior cerca de 70 mil pessoas (BRUSTOLONI, 1998, p. 220). Além disso, o Santuário

dispõe de espaços para todo o tipo de serviço de apoio aos romeiros, como também diversas

obras sociais.

O Santuário Nacional de Aparecida é considerado o maior santuário mariano do

mundo. Seu tamanho parece contemplar as dimensões do nosso imenso Brasil e a magnitude

do seu povo. Apesar de tão grande, foi construído para abrigar a pequena e humilde imagem

33

“Conforme costume da época e por exigências das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707,

para se fundar um novo povoado era necessário a doação de certa porção de terras para a construção de uma

igreja e do próprio povoado [...] Assim nasceram todas as cidades brasileiras no século dezesseis, dezessete,

dezoito e grande parte do século dezenove. Aparecida nasceu desta maneira...” (BRUSTOLONI, 1998, p. 164).

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de Nossa Senhora. Para uma imagem pequena e uma cidade pequena, um santuário que

representa o tamanho da fé e da devoção do povo brasileiro à Mãe de Deus34

.

Pelo tamanho, a cidade de Aparecida poderia ser comparada à pequenina Belém de

Éfrata onde nasceu o Rei dos Judeus (cf. Mt 2,6), tal como fez o Cardeal Motta em um

discurso inflamado no dia 18 de agosto de 1967: “Tu, Aparecida, cidade de Nossa Senhora, de

nenhum modo és a mais pequenina das cidades brasileiras.” (apud MACHADO, 1976, p. 6).

O tamanho a que se refere o prelado não é geográfico, mas a grandeza com que o Santuário

elevou a pequena cidade. Pelo significado espiritual e social, Aparecida pode ser comparada a

uma “Jerusalém Nacional”, a capital espiritual do Brasil, assim como disse o Cardeal Agnelo

Rossi: “Se Brasília é a capital política do país, podemos dizer que Aparecida é a Capital

espiritual do Brasil.” (Ibid., p. 15,29,32).

4.3. “Aparecida” é um sinal!

A partir da análise do fato em si, do contexto histórico em que surgiu, da mensagem

sem palavras transmitida e, da função crítico profética que representa para a Igreja (CED-

CNBB, 2005, p. 39-47) e para a sociedade da época e de hoje, “Aparecida” poderia ser

classificada como um “sinal” divino, que em determinada circunstância histórica de tempo,

lugar e cultura transmitiu uma realidade sobrenatural, ainda que a rigor não seja um evento

desta ordem, mas é algo que diz respeito também a nós que comemoramos o seu tricentenário.

Mas o que é um “sinal”?35

O sinal é a manifestação visível de uma realidade invisível

à percepção humana, que serve para alcançar o invisível e, desta forma, para nos colocar em

contato com o divino. Na sua relação com Deus, o homem não pode viver sem a mediação de

sinais36

, pois se comunica com Deus dentro dos limites e implicações da forma humana. Por

isso, o sinal revela a presença e a vontade de Deus. Exemplo clássico disso encontramos no

episódio das Bodas de Caná (cf. Jo 2,1-12) que termina com a célebre frase: “Esse é o

princípio dos sinais, Jesus o fez em Caná da Galileia e manifestou a sua glória e os seus

discípulos creram nele” (v. 11). Há nesta sentença o elemento histórico-local (“Caná da

34

Sobre o Santuário Nacional falaremos mais adiante e, de modo especial, no capítulo 3 desta obra. 35

A palavra “sinal”, do grego semeion, como é usada no Novo Testamento, não designa obrigatoriamente um

milagre tal como o entendemos, mas como aquilo que serve para confirmar, aprovar, assegurar e dar

legitimidade atestando a verdade do que foi anunciado. O sinal é, portanto, o que confirma ou assegura a verdade

e validade de uma mensagem. 36

Uma comunicação “direta” ou “pura” com Deus, que significaria a dispensação dos sinais não é algo que diz

respeito à teologia católica, além de contradiz o princípio fundamental da encarnação do Verbo, que é o

Mediador por entre nós e o Pai (cf. 1Tm 2,5) e, deste modo admirável, tornou o homem capax Dei. Desta

mediação de Cristo participam a Virgem Maria, os santos, toda a Igreja em comunhão entre o céu e a terra.

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Galileia”). Os primeiros versículos descrevem um evento realizado no tempo (“No terceiro

dia, houve um casamento em Caná da Galileia...” (v. 1) e apresentam uma situação-limite

(“Ora, não havia mais vinho....” (v. 3)) que, graças a ação taumaturga de Jesus, é resolvida por

meio de um milagre que, neste caso, é interpretado pelo evangelista como um “sinal”, e

conclui com o reconhecimento de uma manifestação sobrenatural (“manifestou a sua glória”)

e com o alcance do objetivo realizado por meio deste mesmo sinal (“os discípulos creram

nele”). O objetivo do sinal é vivificar a fé, edificar a Igreja, alimentar a comunidade dos

crentes. Providencialmente este texto bíblico é proclamado na liturgia da Solenidade de Nossa

Senhora da Conceição Aparecida, celebrada a 12 de outubro. O próprio contexto do encontro

da imagem, seguida da pesca milagrosa, pode ser lida e interpretada com o sabor de uma

página do Evangelho.

Quadro comparativo entre os elementos presentes nas “bodas de Caná” e na “pesca de Aparecida”.

Elemento

“CANÁ”

“APARECIDA”

histórico-local

e evento temporal

Caná da Galileia

terceiro dia

festa de casamento

Vila de Guaratinguetá / Rio Paraíba

17 – 30/10/1717

visita do Conde de Assumar

situação-limite

faltou vinho

não há peixes no rio

SINAL

encher as talhas de

pedra com água

uma imagem quebrada de Nossa

Senhora da Conceição (corpo e cabeça)

manifestação sobrenatural

água transformada em vinho

pesca milagrosa

objetivo realizado

“os discípulos creram nele”

“eles ficaram admirados deste sucesso”

Portanto, o que queremos indicar aqui é que o encontro da imagem de Nossa Senhora

da Conceição Aparecida é um sinal! Dentro de uma situação humana limitada (a pesca

fracassada), manifestou-se um sinal (duas partes de uma imagem de Nossa Senhora da

Conceição) seguido de um fato sobrenatural (a pesca milagrosa). Para compreender o evento

“Aparecida” como um “sinal” levou-se em conta o contexto histórico do Brasil colonial, o

fato em si que gerou a pesca e oportunizou o encontro da imagem de modo imprevisto, e o

milagre dos peixes, como foi analisado até o presente momento. Cabe a nós interpretar a

mensagem silenciosa, porém profética, escondida nos traços daquela imagem pequenina e

quebrada.

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Comparativamente, “Aparecida” não é uma aparição “convencional”37

, mas é “sinal”,

o que a constitui numa mariofania singular, conforme se pode comparar no seguinte quadro:

“APARIÇÃO CONVENCIONAL”

“SINAL DE APARECIDA”

corpo humano glorificado

estátua de barro

videntes que visualizam a pessoa da Virgem

no alto (céu, gruta, montanha...)

pescadores que encontram uma imagem quebrada, que

estava no fundo de um rio, nas malhas de suas redes

mensagem oral clara e explícita a

ser transmitida tal e qual foi ouvida

mensagem silenciosa que necessita

de uma interpretação posterior

transmissão da mensagem

inicialmente um culto doméstico

37

Entenda-se “convencional” aqui como aqueles elementos comuns às aparições reconhecidas pela Igreja

(MURAD, 1997, p. 20) e que servem para a análise do fenômeno (CED-CNBB, 2005, p. 39-47), respeitadas as

devidas diferenças de contexto, pessoas envolvidas e mensagem transmitida.

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APÊNDICE 1 –

“APARECIDA: CHAVE DE LEITURA PARA A MISSÃO DA IGREJA”

(PAPA FRANCISCO)

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VISITA APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO AO BRASIL

POR OCASIÃO DA XXVIII JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE

ENCONTRO COM O EPISCOPADO BRASILEIRO

DISCURSO DO SANTO PADRE

Arcebispado do Rio de Janeiro

Sábado, 27 de Julho de 2013

Queridos Irmãos!

Como é bom e agradável encontrar-me aqui com vocês, Bispos do Brasil!

Obrigado por terem vindo, e permitam que lhes fale como amigos, pelo que prefiro

usar o castelhano, para poder expressar melhor aquilo que levo no coração. Peço-lhes que me

perdoem!

Retiramo-nos um pouco, neste lugar preparado por nosso irmão Dom Orani, para estar

sozinhos e poder falar de coração a coração como Pastores a quem Deus confiou o seu

Rebanho. Nas ruas do Rio, jovens de todo o mundo e muitas outras multidões estão esperando

por nós, necessitados de serem envolvidos pelo olhar misericordioso de Cristo Bom Pastor,

que nós somos chamados a tornar presente. Por isso, gozemos deste momento de descanso, de

partilha, de verdadeira fraternidade.

Começando pela Presidência da Conferência Episcopal e do Arcebispo do Rio de

Janeiro, quero abraçar a todos e cada um, especialmente aos Bispos eméritos.

Mais do que um discurso formal, quero compartilhar algumas reflexões com vocês.

A primeira veio à minha mente, quando da outra vez visitei o Santuário de Aparecida.

Lá, ao pé da imagem da Imaculada Conceição, eu rezei por vocês, por suas Igrejas, por seus

presbíteros, religiosos e religiosas, por seus seminaristas, pelos leigos e as suas famílias, em

particular pelos jovens e os idosos, já que ambos constituem a esperança de um povo: os

jovens, porque eles carregam a força, o sonho, a esperança do futuro, e os idosos, porque eles

são a memória, a sabedoria de um povo.

1. Aparecida: chave de leitura para a missão da Igreja

Em Aparecida, Deus ofereceu ao Brasil a sua própria Mãe. Mas, em Aparecida, Deus

deu também uma lição sobre Si mesmo, sobre o seu modo de ser e agir. Uma lição sobre a

humildade que pertence a Deus como traço essencial e que está no DNA de Deus. Há algo de

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perene para aprender sobre Deus e sobre a Igreja, em Aparecida; um ensinamento, que nem a

Igreja no Brasil nem o próprio Brasil devem esquecer.

No início do evento que é Aparecida, está a busca dos pescadores pobres. Tanta fome

e poucos recursos. As pessoas sempre precisam de pão. Os homens partem sempre das suas

carências, mesmo hoje.

Possuem um barco frágil, inadequado; têm redes decadentes, talvez mesmo

danificadas, insuficientes.

Primeiro, há a labuta, talvez o cansaço, pela pesca, mas o resultado é escasso: um

falimento, um insucesso. Apesar dos esforços, as redes estão vazias.

Depois, quando foi da vontade de Deus, comparece Ele mesmo no seu Mistério. As

águas são profundas e, todavia, encerram sempre a possibilidade de Deus; e Ele chegou de

surpresa, quem sabe quando já não o esperávamos. A paciência dos que esperam por Ele é

sempre posta à prova. E Deus chegou de uma maneira nova, porque Deus é surpresa: uma

imagem de barro frágil, escurecida pelas águas do rio, envelhecida também pelo tempo. Deus

entra sempre nas vestes da pequenez.

Veem então a imagem da Imaculada Conceição. Primeiro o corpo, depois a cabeça, em

seguida a unificação de corpo e cabeça: a unidade. Aquilo que estava quebrado retoma a

unidade. O Brasil colonial estava dividido pelo muro vergonhoso da escravatura. Nossa

Senhora Aparecida se apresenta com a face negra, primeiro dividida mas depois unida, nas

mãos dos pescadores.

Há aqui um ensinamento que Deus quer nos oferecer. Sua beleza refletida na Mãe,

concebida sem pecado original, emerge da obscuridade do rio. Em Aparecida, logo desde o

início, Deus dá uma mensagem de recomposição do que está fraturado, de compactação do

que está dividido. Muros, abismos, distâncias ainda hoje existentes estão destinados a

desaparecer. A Igreja não pode descurar esta lição: ser instrumento de reconciliação.

Os pescadores não desprezam o mistério encontrado no rio, embora seja um mistério

que aparece incompleto. Não jogam fora os pedaços do mistério. Esperam a plenitude. E esta

não demora a chegar. Há aqui algo de sabedoria que devemos aprender. Há pedaços de um

mistério, como partes de um mosaico, que vamos encontrando. Nós queremos ver muito

rápido a totalidade; e Deus, pelo contrário, Se faz ver pouco a pouco. Também a Igreja deve

aprender esta expectativa.

Depois, os pescadores trazem para casa o mistério. O povo simples tem sempre espaço

para albergar o mistério. Talvez nós tenhamos reduzido a nossa exposição do mistério a uma

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explicação racional; no povo, pelo contrário, o mistério entra pelo coração. Na casa dos

pobres, Deus encontra sempre lugar.

Os pescadores agasalham: revestem o mistério da Virgem pescada, como se Ela

tivesse frio e precisasse ser aquecida. Deus pede para ficar abrigado na parte mais quente de

nós mesmos: o coração. Depois é Deus que irradia o calor de que precisamos, mas primeiro

entra com o subterfúgio de quem mendiga. Os pescadores cobrem o mistério da Virgem com

o manto pobre da sua fé. Chamam os vizinhos para verem a beleza encontrada; eles se reúnem

à volta dela; contam as suas penas em sua presença e lhe confiam as suas causas. Permitem

assim que possam implementar-se as intenções de Deus: uma graça, depois a outra; uma graça

que abre para outra; uma graça que prepara outra. Gradualmente Deus vai desdobrando a

humildade misteriosa de sua força.

Há muito para aprender nessa atitude dos pescadores. Uma Igreja que dá espaço ao

mistério de Deus; uma Igreja que alberga de tal modo em si mesma esse mistério, que ele

possa encantar as pessoas, atraí-las. Somente a beleza de Deus pode atrair. O caminho de

Deus é o encanto que atrai. Deus faz-se levar para casa. Ele desperta no homem o desejo de

guardá-lo em sua própria vida, na própria casa, em seu coração. Ele desperta em nós o desejo

de chamar os vizinhos, para dar-lhes a conhecer a sua beleza. A missão nasce precisamente

dessa fascinação divina, dessa maravilha do encontro. Falamos de missão, de Igreja

missionária. Penso nos pescadores que chamam seus vizinhos para verem o mistério da

Virgem. Sem a simplicidade do seu comportamento, a nossa missão está fadada ao fracasso.

A Igreja tem sempre a necessidade urgente de não desaprender a lição de Aparecida;

não a pode esquecer. As redes da Igreja são frágeis, talvez remendadas; a barca da Igreja não

tem a força dos grandes transatlânticos que cruzam os oceanos. E, contudo, Deus quer se

manifestar justamente através dos nossos meios, meios pobres, porque é sempre Ele que está

agindo.

Queridos irmãos, o resultado do trabalho pastoral não assenta na riqueza dos recursos,

mas na criatividade do amor. Fazem falta certamente a tenacidade, a fadiga, o trabalho, o

planejamento, a organização, mas, antes de tudo, você deve saber que a força da Igreja não

reside nela própria, mas se esconde nas águas profundas de Deus, nas quais ela é chamada a

lançar as redes.

Outra lição que a Igreja deve sempre lembrar é que não pode afastar-se da

simplicidade; caso contrário, desaprende a linguagem do Mistério. E não só ela fica fora da

porta do Mistério, mas, obviamente, não consegue entrar naqueles que pretendem da Igreja

aquilo que não podem dar-se por si mesmos: Deus. Às vezes, perdemos aqueles que não nos

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entendem, porque desaprendemos a simplicidade, inclusive importando de fora uma

racionalidade alheia ao nosso povo. Sem a gramática da simplicidade, a Igreja se priva das

condições que tornam possível «pescar» Deus nas águas profundas do seu Mistério.

Uma última lembrança: Aparecida surgiu em um lugar de cruzamento. A estrada que

ligava Rio, a capital, com São Paulo, a província empreendedora que estava nascendo, e

Minas Gerais, as minas muito cobiçadas pelas cortes europeias: uma encruzilhada do Brasil

colonial. Deus aparece nos cruzamentos. A Igreja no Brasil não pode esquecer esta vocação

inscrita em si mesma desde a sua primeira respiração: ser capaz de sístole e diástole, de

recolher e divulgar.

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APÊNDICE 2 –

CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II POR OCASIÃO DO CENTENÁRIO

DA COROAÇÃO DE NOSSA SENHORA APARECIDA

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CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II

POR OCASIÃO DO CENTENÁRIO DA COROAÇÃO

DE NOSSA SENHORA APARECIDA

Ao Venerável Irmão

RAYMUNDO DAMASCENO ASSIS

Arcebispo de Aparecida,

aos demais Irmãos no Episcopado

aos sacerdotes, religiosos, religiosas e fiéis

do Brasil:

1. Por ocasião do Centenário da Coroação de Nossa Senhora Aparecida, desejo unir-me

espiritualmente ao querido povo brasileiro para prestar minha homenagem à sua Rainha e

Padroeira, tendo decidido designar como meu Enviado Especial o Cardeal Eugênio de Araújo

Sales, a fim de presidir em meu nome aos ritos e celebrações desta significativa ocorrência no

Seu Santuário nacional, insigne testemunho da fé e devoção mariana nessa bendita Terra.

2. Há quase três séculos que a Virgem marcou um encontro singular com a gente brasileira

nesse lugar. As origens do Santuário estão ligadas à descoberta, por parte de três pescadores,

de uma pequenina imagem de Nossa Senhora, de cor escura e de rosto sorridente, que eles

viram emergir das águas, pescada na rede, com a qual puderam depois recolher uma pesca

muito abundante. Os três reconheceram no acontecimento um sinal da proteção especial da

Virgem. A partir daquele remoto setembro de 1717, cresce no povo um culto por Aquela que

começam a chamar simplesmente a «Aparecida».

Bem antes de 1717 e do extraordinário aparecimento, porém, já existia uma profunda devoção

pela Mãe de Jesus no coração dos cristãos do Brasil, que a herdaram dos portugueses mas lhe

dando, no correr dos anos, uma coloração, motivações e orientações próprias. O amor e a

devoção a Maria são um dos traços característicos da religiosidade do povo brasileiro.

3. A multidão imensa de pessoas, que acorre ao Santuário de sua Rainha e Padroeira, obedece

a um genuíno movimento da alma desse amado povo, cumpre um gesto profundamente

brasileiro, enchendo essa cidade do vale do Paraíba sobretudo de oração e de fé; de uma fé

simples mas que é, sem dúvida, o que deve ser a fé: uma busca de Deus, talvez desajeitada e

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imperfeita, mas comovedoramente sincera, arraigada, capaz de sacrifícios, uma busca de Deus

através de Nossa Senhora. «Apareceu no céu um grande sinal; uma mulher vestida de sol,

com a lua debaixo dos pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. Estava grávida e

clamava com dores de parto» (Ap 12,1-2). A visão de S. João mostra-nos que Maria,

glorificada no Céu - Rainha coroada de estrelas -,continua a ser Mãe de todos os homens, dos

filhos e filhas de Deus e irmãos de Jesus Cristo, até o fim dos séculos. Na luz da glória divina,

Ela contempla todos e cada um de Seus filhos, em todos e cada um dos momentos da sua

existência.

4. No transcurso da história comovedora da imagem morena de sua Rainha e Mãe tão amada,

homens e mulheres de todas as condições e cultura a proclamaram «Soberana». Por isso, meu

venerável predecessor Pio X, sensibilizado com a solicitação dos filhos devotos da Virgem

Aparecida, coroou Nossa Senhora como Rainha do Brasil no ano de 1904. Este patrocínio de

Maria sobre uma Nação não é algo que acontece sem o concurso de Seus protegidos, mas

supõe seu livre consentimento, cada dia renovado; supõe que o peçam e se façam dignos dele,

o encarnando num compromisso de vida inspirado pelas certezas profundas e sólidas da fé.

A certeza de que Nossa Senhora, por um lado, Se encontra para sempre junto de Deus onde

advoga a nossa causa com tamanho poder, que foi denominada «onipotência suplicante»; mas,

por outro, «é da nossa estirpe, verdadeira filha de Eva (...) e nossa verdadeira irmã, que

compartilhou plenamente, mulher humilde e pobre como foi, a nossa condição» (Paulo VI,

Marialis cultus, 56). Teve uma pátria, pertenceu a um povo, aos quais amou e pelos quais

sofreu; podemos pensar que Ela experimentou essa realidade humana que é o patriotismo,

conhece seu sentido mais profundo. Tendo levado consigo estes valores para o Céu, Ela sabe

o que pedir junto de Deus melhor do que o fizera Ester ao rei Assuero: «Só te peço, ó rei, que

salves o meu povo» (cf. Est 7, 3).

A certeza de que o patrocínio de Maria, sob o seu título de Aparecida, inclui da parte de Seus

súbditos um compromisso de se darem as mãos uns aos outros, no esforço para que o País se

converta naquilo mesmo que Maria quer que seja, uma vez que Ela o adoptou como Seu: uma

terra onde impere a hospitalidade, a cordialidade, a capacidade de dialogar, de «compor»,

mais do que «opor».

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5. No plano religioso que toca de mais perto a vós, venerados Bispos, é importante o

compromisso de assumir com verdadeiro espírito pastoral a imemorial devoção mariana de

vosso povo: procurar compreendê-la em seu enraizamento mais profundo, desvendar seus

valores, captar seu significado, acolhê-la, purificando-a e orientando-a. Muito depende da

atitude dos Pastores e agentes de pastoral que essa devoção seja para o povo um caminho para

o encontro, na fé, com Deus em Jesus Cristo.

Ajudem, pois, os fiéis a viverem sua devoção mariana como um claro e corajoso testemunho

de amor a Cristo, que manifeste a identidade pessoal e comunitária dos católicos, contra o

perigo do secularismo e do consumismo, e ao mesmo tempo favoreça nas famílias a prática

das virtudes cristãs. De igual modo, esta devoção ajudará a consolidar os vínculos de

comunhão com os Pastores da Igreja de Cristo, enfrentando a desagregação da fé, fomentada

tantas vezes pelo proselitismo das seitas. A história ensina que Maria é a verdadeira

salvaguarda da fé; em cada crise, a Igreja reúne-se à volta d'Ela. Só assim os discípulos do

Senhor poderão ser para os outros sal da terra a luz do mundo (cf. Mt5, 13.14).

6. «Feliz do povo, cujo Senhor é Deus, cuja Rainha é a Mãe de Deus!» Assim proclamava o

Papa Pio XII e assim poderá exclamar essa dileta arquidiocese de Aparecida, se devidamente

souber voltar os olhos para Aquela que gerou, por obra do Espírito Santo, o Verbo feito carne.

É que a missão essencial da Igreja consiste precisamente em fazer nascer Cristo no coração

dos fiéis (cf. Lumen gentium, 65) pela ação do mesmo Espírito Santo, através da

evangelização.

Queridos Irmãos e Irmãs, confio todas e cada uma das Comunidades eclesiais brasileiras à

proteção de Nossa Senhora Aparecida, para que permaneçam fiéis na pureza da fé,

corroboradas na esperança, generosas na caridade. A Ela suplico que lhes infunda um maior

dinamismo, fazendo de cada cristão um verdadeiro apóstolo. Como demonstração do meu

grande afeto, concedo-vos a implorada Bênção Apostólica.

Castelgandolfo, 17 de julho - memória do Bv. Inácio de Azevedo e Companheiros Mártires do

Brasil - de 2004.

PAPA JOÃO PAULO II