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1 FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO Lucia Ferraz Nogueira de Souza Dantas Reflexões sobre a arte contemporânea à luz da Teoria da Formatividade de Luigi Pareyson São Paulo 2013

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  • 1

    FACULDADE DE SO BENTO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

    MESTRADO ACADMICO

    Lucia Ferraz Nogueira de Souza Dantas

    Reflexes sobre a arte contempornea luz da

    Teoria da Formatividade de Luigi Pareyson

    So Paulo

    2013

  • 2

    FACULDADE DE SO BENTO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

    MESTRADO ACADMICO

    Reflexes sobre a arte contempornea luz da

    Teoria da Formatividade de Luigi Pareyson

    Lucia Ferraz Nogueira de Souza Dantas

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao Stricto Sensu em Filosofia da Faculdade

    de So Bento do Mosteiro de So Bento de So

    Paulo, como requisito parcial para a obteno do

    ttulo de Mestre em Filosofia.

    Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Ucha

    Fagundes Junior, OSB.

    rea de Concentrao: Filosofia da Arte

    So Paulo

    2013

  • 3

    Dedicatrias

    Ao meu marido Lus Rodolfo, meu amor, companheiro de todas as horas e

    meu maior interlocutor, por tudo.

    minha me, Joanna Helena, por todo apoio e incentivo e pela incansvel dedicao.

    A meu pai, Luiz Carlos (in memorian), que incetivou com entusiasmo os

    meus estudos de arte e filosofia.

    Aos meus sogros, Regina e Roberto, pelo carinho e apoio.

    Dedico tambm aos meus queridos irmos Paulo, Silvia e Marcia, aos meus cunhados

    Silvana, Mrio, Andr, Flvia e Heloisa, e aos meus adorados sobrinhos

    Guilherme, Gabriela, Lucas, Bruna e Maria.

  • 4

    Agradecimentos

    Ao concluir esta dissertao sou imensamente grata ao meu orientador Prof. Dr.

    Carlos Eduardo Ucha Fagundes Junior, OSB, pela confiana, pacincia e zelo,

    sensibilidade e inteligncia, sabedoria e generosidade que possibilitaram que este estudo

    pudesse ser concludo.

    Devo tambm um agradecimento especial ao Prof. Dr. Leon Kossovitch, de quem

    obtive lies fundamentais para o desenvolvimento desta dissertao, tanto nas aulas como

    na qualificao.

    Agradeo ainda o Prof. Dr. Ricardo Fabbrini, de quem colhi, no exame de

    qualificao, observaes preciosas de meu trabalho.

    No decorrer do processo de pesquisa dessa dissertao, ainda tive a sorte de contar

    com a generosidade de diversos professores da Faculdade de So Bento: Prof. Dr. Djalma

    Medeiros, Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva, Prof. Dr. Ivo Assad Ibri, Prof. Dr. Joel

    Gracioso, Prof. Dr. Jos Carlos Bruni, Profa. Dra. Maria Carolina Alves dos Santos e Profa.

    Dra. Rachel Gazolla de Andrade, que sempre atentos e presentes contriburam para o

    amadurecimento deste estudo, a eles devo meus sinceros agradecimentos.

  • 5

    RESUMO

    O presente estudo pretende analisar a relao que o artista estabelece com a realidade

    durante a produo da obra de arte, sobretudo da pintura, levando em conta que a obra de arte,

    antes de ser representao, apresentao em si mesma, isto , depois de acabada, tem

    autonomia e estatuto ontolgico, coisa entre coisas. Ou seja, pretende-se investigar como

    nos tempos atuais se v e se lida com o pressuposto de que a produo da arte imitao e ao

    mesmo tempo inveno que funda uma nova realidade. Para tanto, acreditamos que a Teoria

    da Formatividade de Luigi Pareyson fornece algumas chaves fundamentais para se pensar

    estas problemticas que se destacam na arte contempornea, em especial, na pintura, com o

    foco na produo pictrica de Gerhard Richter. E, partindo da premissa de que a implicao

    da arte como imitao, e, consequentemente sua pertinncia, inicia-se nos primrdios do

    pensamento sobre arte na Grcia Antiga (em especial as contribuies de Plato e de

    Aristteles), e considerando que o prprio Pareyson mostra como ambos, sobretudo

    Aristteles, ainda so fundamentais, mesmo quando se trata de focar o olhar para uma teoria

    da arte atual, bem como para a produo artstica contempornea, a presente pesquisa estuda a

    interseco de pontos centrais advindos dos filsofos gregos citados com os pontos centrais

    do pensamento pareysoniano sobre Arte. A proposta construir uma ponte de interseco

    entre os pensamentos de Pareyson, Aristteles e Plato, e, ancorando-a nos conceitos

    cunhados na Teoria da Formatividade, expor como o filsofo italiano rel as problemticas

    colocadas pelos filsofos gregos antigos e de que maneira esta interseo de pensamentos e

    conceitos contribuem para a reflexo sobre Arte na atualidade e em particular para a anlise

    da produo pictrica de Gerhard Richter.

    Palavras Chave:

    Teoria da Formatividade, Gerhard Richter, mmesis, representao, pintura.

  • 6

    ABSTRACT

    The present study intends to analyze the relationship the artist establishes with (the)

    reality during the production of the work of art, especially in painting, considering that the

    work or art prior to its representation is a presentation of itself. That is, after completed it has

    autonomy and ontological status, it is a thing among things. Thus, how at present the pre-

    supposition that, the production of art is an imitation and, at the same time, an invention

    which uncovers a new reality, is seen and dealt with is the subject of the investigation.

    Therefore, we believe that Luigi Pareysons Theory of Formativity provides some

    fundamental keys to consider these issues, which stand out in contemporary art, especially in

    painting, and will thus also focus on Gerhard Richters pictorial production. Beginning with

    the premise of the concept that art is imitation - and therefore that its consequent pertinence

    starts with ancient Greek thought (especially Platos and Aristotles contributions), and

    considering that Pareyson shows that both, but especially Aristotle, are still fundamental even

    when the outlook is directed towards a current art theory and a contemporary artistic

    production, this research studies the intersection of the central points of the above Greek

    philosophers with those of Pareysonian thinking on Art. The proposal is to build an

    intersectional bridge of Pareysons, Aristotles and Platos thinking, grounding them in the

    concepts of the Theory of Formativity, and to discuss how the Italian philosopher re-reads the

    problems raised by the ancient Greek philosophers and this intersection of thoughts and

    concepts contributes to todays art reflections and, in particular, for the analysis of Gerhard

    Richters pictorial production.

    Key - Words:

    Theory of Formativity, Gerhard Richter, mmesis, representation, painting.

  • 7

    SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................................ 9

    CAPTULO I: Tkhne e Poesis nos pensamentos de Plato, Aristteles e Pareyson ...... 13

    1.1. Conceitos filosficos platnicos e aristotlicos como recursos para a fundamentao da

    Teoria da Formatividade ...................................................................................................... 13

    1.2 Tkhne como saber-fazer ................................................................................................ 19

    1.3. Tkhne como fruto da experincia ................................................................................. 21

    1.4. Tkhne e inspirao .................................................................................................... 23

    1.5. Tkhne como operosidade humana e arte como parte das tkhnai ................................ 27

    1.6. Tkhne e phsis [natureza- entes naturais] ..................................................................... 31

    1.7. Poesis como produo .................................................................................................. 33

    1.8. Tkhne poietiks............................................................................................................. 35

    1.9. Poesis versus prxis ...................................................................................................... 36

    1.10. Apontamentos sobre definies de ars ........................................................................ 38

    1.11. Arte como xito............................................................................................................ 39

    1.12. Interseces entre tkhne, poesis e ars na Teoria da Formatividade ......................... 42

    CAPTULO II: Forma e Formatividade no pensamento de Pareyson................................. 43

    2.1. Definies de forma na Teoria da Formatividade ..................................................... 43

    2.1.1. Polissemias da expresso forma ............................. ............................................ 44

    2.1.2. Forma como organismo apartir de Aristteles.............................. ................. 46

    2.1.3. Forma como xito na Teoria da Formatividade............................... .................. 55

    2.1.4. Autonomia da forma: o estatuto ontolgico da obra de arte ............................... 58

    2.1.5. Obra de arte como forma e mundo........................................................... ........ 61

    2.1.6. Relao entre os conceitos de forma e pessoa em Pareyson................... ......... 68

    2.2. Os meandros da formatividade na Teoria da Formatividade ..................................... 74

    2.2.1. A cadeia produtiva da obra de arte: forma, pessoa e formatividade ............ 74

    2.2.2. Correlao entre forma formante e forma formada ......................................... 76

    2.2.3. A inseparabilidade do fazer e da inveno da obra de arte na Teoria da

    Formatividade ...................................................................................................................78

    2.2.4. Legalidade da forma e a noo de intuio na Teoria da Formativida ............... 79

    2.3. Outros aportes para a Teoria da Formatividade: .......................................................... 83

  • 8

    CAPTULO III: Arte como mmesis e a autononia da obra de arte na Teoria da

    Formatividade .................................................................................................................................. 87

    3.1. O conceito de mmesis sob a tica da Teoria da Formatividade ................................... 87

    3.2. A negatividade da mmesis em Plato ........................................................................ 88

    3.3. Mmesis e phantasa em Plato ...................................................................................... 92

    3.4. A positividade da mmesis em Aristteles ............................................................... .100

    3.5. Phantasa e a imagem pictrica em Aristteles. ........................................................ ..107

    3.6. Imitao e autonomia da obra de arte em Pareyson ..................................................... 110

    CAPTULO IV: Autonomia da obra de arte e mmesis na produo artstica de Gerhard

    Richter luz da Teoria da Formatividade. ............................................................................. 115

    4.1. O estudo da formatividade no relato da experincia do artista .............................. 115

    4.2. Formae formatividade no Atlas de Gerhard Richter ............................................ 117

    4.2.1. O Atlas e a pintura de Gerhard Richter: a imitao na abstrao .......................... 118

    4.3. Imaginao na abstrao: a pintura de Gerhard Richter .............................................. 122

    4.4. Representao na abstrao ......................................................................................... 124

    4.5. Imitao e imaginao na figurao ............................................................................ 127

    4.6. Figurao e abstrao ................................................................................................... 132

    4.7. O estatuto ontolgico ............................................................................................... ....137

    CONCLUSO ................................................................................................................................ 140

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................................................... 144

  • 9

    INTRODUO

    O estudo sobre a histria da produo artstica no Ocidente, sobretudo a pictrica,

    revela um movimento pendular acerca do posicionamento de tericos e artistas com relao

    aceitao da pintura ora como imitao da realidade, ora como afirmao de si mesma

    enquanto coisa no mundo. Isto , o questionamento da pintura como representao tem sido

    retomado na forma de outro (ou novo) movimento artstico de orientao figurativa e/ou

    abstrata. E ainda, esse vai e vem de assertivas e oposies para com a arte como

    representao fortalece o lugar comum da morte da pintura 1, que em ltima anlise

    questiona a pertinncia da prpria existncia da pintura, se no da prpria arte como um todo.

    Todavia, apesar das controvrsias, possvel constatar que parte do meio artstico da

    atualidade reabilitou a pintura e est relendo a problemtica do jogo entre imitao e realidade

    na arte pictrica. E mais ainda: a produo de arte contempornea,2 e em especial, a produo

    pictrica de Gerhard Richter (Dresden, 1932) possibilitam pensar que as dicotomias entre

    figurao e abstrao, entre imitao e inveno, e entre imagem e objeto podem ser

    questionadas. Ao reconhecer o ressurgimento da pintura figurativa, de certa maneira, artistas e

    tericos negaram os pressupostos de que a pintura deveria se libertar da imitao ou at

    mesmo deixar de existir. Contudo, ao reabilitar a retomada da pintura, no excluram outras

    formas de arte, que negam a imitao ou que trazem novas formas de construo de imagens,

    inclusive, pondo em cheque a prpria materialidade da arte.

    Nesse sentido, pode-se afirmar que essas hipteses direcionam um estudo para uma

    investigao acerca da problematizao da arte e da pintura enquanto imitao da realidade; 1 possvel identificar nesta expresso uma relao ideia de morte da arte cunhada por Hegel em seus

    Cursos de Esttica, que foram compilados e publicados ainda no incio do sculo XIX; proposio esta,

    amplamente discutida por vrios pensadores desde ento, e que indubitavelmente muito influencia o pensamento

    sobre arte ainda hoje. Entretanto, nossa colocao no diz respeito exatamente consciente filiao s ideias de

    Hegel, e sim a um movimento acfalo e pouco ciente de suas antecedncias. Ou seja, diz respeito a um locus que

    se formou entre artistas, professores de arte e crticos, que usam as expresses morte da arte e, sobretudo,

    morte da pintura de maneira at muitas vezes ingnua e inconsequente em ambientes de cursos de arte, atelis

    e em textos de catlogos de exposio e afins.

    2 A despeito das controvrsias inerentes aos rtulos utilizados para as classificaes de perodos, estilos e

    movimentos artsticos, neste contexto a palavra arte contempornea deve ser entendida na sua acepo de uso

    corrente da palavra contemporneo, isto , diz respeito produo de arte vigente nos dias de hoje, de todo e

    qualquer artista que est em produo. Entretanto, uma vez que os artistas produzem suas obras no decorrer das

    dcadas correspondentes as suas prprias vidas, logo, a produo de arte contempornea igualmente pode

    corresponder produo das ltimas dcadas. Portanto, neste contexto, arte contempornea no determina um

    exato limite temporal, de incio ou trmino, nem faz distino de grupos, ou geraes de artistas, no se refere a

    um movimento em particular, mas sim, atualidade, com todas as suas idiossincrasias.

  • 10

    que culmina na intricada relao do artista para com a apreenso do mundo, e a consequente

    negao da possibilidade dessa relao, at o questionamento da pertinncia da prpria

    existncia da pintura e/ou da arte.

    possvel constatar que estas problemticas remontam antiguidade grega e se

    estendem por toda a histria da pintura, podendo ser resumidas no embate entre realidade e

    arte. Neste sentido, surge a necessidade de recorrer aos textos dos filsofos antigos,

    sobretudo, os de Plato e Aristteles, a fim de identificar a origem das questes descritas

    acima, e que at hoje esto no ncleo da reflexo sobre a arte, sobretudo, pictrica.

    Uma chave para esse dilogo entre o pensamento da Grcia antiga e o pensamento da

    atualidade, no campo da investigao esttica, pode ser encontrada no pensamento de Luigi

    Pareyson (1918-1991), que recorre, principalmente, a Aristteles para a construo da sua

    teoria sobre arte.

    Portanto, tendo em conta este embasamento terico, a presente pesquisa revisita a

    discusso da intrincada relao entre arte e realidade, isto , retoma os questionamentos que

    envolvem a proposio de que a arte, em especial a pintura, representao, embora tambm

    seja definida como apresentao de si mesma, visto que por meio das leituras dos textos de

    Pareyson e em especial, os que diretamente versam sobre a Teoria da Formatividade,

    constata-se a reivindicao do estatuto ontolgico da arte como realidade em si mesma, ou

    seja, da arte, e em especial da arte pictrica como, necessariamente, inveno de nova

    visualidade, e, sobretudo, de nova realidade.

    Vale assinalar que o presente enfoque filosfico sobre a arte se d, preferencialmente,

    acerca do processo de elaborao da obra, levando em conta que na Teoria da Formatividade,

    Luigi Pareyson prope um modo de abordagem esttica sob a tica da produo artstica: Era

    mais que tempo, na arte, de por a nfase no fazer mais que no simplesmente contemplar. 3

    Embora o filsofo reconhea e coloque em destaque a importncia da experincia

    artstica para o embasamento do estudo filosfico sobre a arte, ele no deixa de levar em conta

    a necessria investigao conceitual que a reflexo filosfica pressupe. Desse modo, o

    3 PAREYSON, L. Esttica: Teoria da Formatividade. Traduo de Ephraim Ferreira Alves Petrpolis, RJ:

    Vozes, 1993, p.9. (Prefcio do autor da edio de 1988)

  • 11

    prprio Pareyson explicita alguns pontos que devem ser considerados para o estudo da

    Filosofia da Arte, que antes de tudo , sobretudo, Filosofia: Urge, pois, reconhecer que a

    esttica filosofia, e somente sob a condio de ser filosofia justifica a prpria pesquisa e

    mantm sua autonomia [...].4 Em outra passagem ele destaca que a filosofia da arte :

    [...] uma anlise da experincia esttica: no uma definio da arte

    considerada abstratamente em si mesma, mas um estudo do homem

    enquanto autor da arte e no ato de fazer arte. Em sntese, reflexo filosfica

    sobre a experincia esttica e no intuito de problematiz-la no seu conjunto,

    de mostrar-lhe a possibilidade, estabelecer-lhe o mbito e os limites [...] 5

    Nesse sentido, partindo dos prprios apontamentos do filsofo, constata-se que se faz

    necessrio um embasamento conceitual preliminar para o estudo da experincia artstica,

    incluindo a pictrica. Igualmente, a partir das afirmaes do prprio Pareyson, parece seguro

    afirmar que a Teoria da Formatividade teve nos pensamentos filosficos de Plato, e,

    sobretudo, de Aristteles importantes pontos de apoio e de dilogo para a construo de seus

    conceitos centrais.

    Portanto, na primeira etapa da pesquisa, prope-se uma demarcao terminolgica de

    alguns pontos importantes advindos do pensamento filosfico grego, em especial dos textos

    de Plato e Aristteles, que dialogam com a concepo particular da filosofia de Pareyson,

    sobretudo, relacionada com a sua concepo de arte, servindo como ponto de apoio para o

    embasamento conceitual e terico da Teoria da Formatividade.

    O segundo momento trata das ideias centrais da Teoria da Formatividade

    relacionando-a com o campo mais abrangente do pensamento filosfico de Pareyson. E,

    novamente, h uma delimitao dos aportes que embasam a conceituao pareysoniana,

    sobretudo os advindos de definies aristotlicas (embora tais definies no sejam

    necessariamente relacionadas exclusivamente s questes sobre arte que o estagirita discutiu).

    4 PAREYSON, L. Esttica: Teoria da Formatividade. Traduo de Ephraim Ferreira Alves Petrpolis, RJ:

    Vozes, 1993, p.19. Bisogna, dunque ricoscere Che lestetica filosofia, e solo a patto desser filosofia

    giustifica la prpria ricerca e mantiene la prpria autonomia [...] (Idem. Estetica: Teoria della Formitivit.

    Bolonha: Editore Zanichelli. 2 Edizione, 1960. p.4.)

    5 Ibidem, op. cit., p.11. (Prefcio do autor da edio de 1988)

  • 12

    Embasada pelas demarcaes das definies conceituais elaboradas nos captulos

    anteriores, a terceira etapa deste percurso investigativo discorre sobre as diferentes

    conceitualizaes sobre imitao, inteno, imaginao, bem como representao no campo

    da arte, sobretudo, da arte pictrica, advindas dos pensamentos de Plato, de Aristteles, em

    contraponto com os conceitos centrais advindos da Teoria da Formatividade.

    A quarta etapa desta pesquisa discorre sobre as obras do pintor alemo Gerhard

    Richter, para investigar as relaes do artista com a realidade enquanto imitador desta, bem

    como, enquanto criador de uma nova/outra visualidade e realidade na contemporaneidade. E,

    consequentemente, a possibilidade da obra de arte, em especial a pintura, como apresentao

    de si mesma, isto , como coisa entre coisas, sem que isso faa com que a imagem deixe

    tambm de fazer referncia a um modelo. Vale ressaltar que toda esta reflexo traz, no s a

    questo da arte como imitao ao mesmo tempo, mas tambm como coisa nova e original.

    Em suma, este estudo discorre a respeito das problemticas especficas da arte,

    sobretudo da pintura, na atualidade, tendo como base a teoria da arte pareysoniana em dilogo

    com os pensamentos de Plato e de Aristteles. Esses aportes tericos visam compreenso

    do fenmeno artstico, com nfase no pictrico; entendendo a arte como produo formante,

    que imita e representa ao mesmo tempo em que inveno de coisa autnoma. Isto , esta

    pesquisa visa investigar como o estatuto ontolgico da obra de arte, ou seja, a dignidade de

    autonomia da arte que Pareyson reivindica, influencia na leitura sobre a problemtica da

    questo da arte enquanto imitao. Logo, a proposta mostrar como o reconhecimento destas

    trs dimenses inseparveis da arte, enquanto produo, imitao e inveno, possibilita uma

    leitura dos desdobramentos da produo artstica pictrica no sculo XXI, tomando como

    ponto de investigao especfica a obra pictrica de Gerhard Richter.

  • 13

    CAPTULO I

    Tkhne e Poesis nos pensamentos de Plato, Aristteles e Pareyson

    A ideia de que a esttica uma disciplina moderna, pouco

    mais do que um lugar comum, mas que pode degenerar em um

    erro se se chegar ao ponto de rejeitar o mundo antigo como

    uma fonte de inspirao para o estudo da arte.

    Luigi Pareyson, 1966 6

    1.1. Conceitos filosficos platnicos e aristotlicos como recursos para a fundamentao

    da Teoria da Formatividade

    Conforme foi exposto na Introduo, um retorno s origens das definies e

    entendimentos sobre as questes centrais que permeiam o pensamento sobre a arte e a arte

    pictrica se faz necessrio para que o pensamento de Luigi Pareyson7 possa ser localizado no

    campo do pensamento sobre arte. Ele mesmo estabelece os limites desse dilogo ao citar

    frequentemente o pensamento da antiguidade grega, situando-a como ponto de partida para a

    conceituao das problemticas artsticas pertinentes ainda hoje. Nas palavras dele, sobre a

    questo das definies de arte:

    6 (Traduo nossa da traduo em espanhol.) La idea de que la esttica es una disciplina moderna es poco

    menos que un lugar comn, pero puede degenerar en un error si se llega hasta el punto de rechazar el mundo

    antiguo como fuente de inspiracin para el estudio del arte. (PAREYSON, Luigi. Forma, organismo y

    abstraccin In: ______. Conversaciones de esttica. Trad. de Zsimo Gonzles, Madrid: Visor, 1988, p.85.)

    7 Italiano, nasceu em 1918, faleceu em 1991. Formou-se em filosofia em 1939 na cidade de Turim, e, em 1943

    passou a ser professor de filosofia na Universidade de Turim, ficando na mesma instituio at 1988. Dirigiu a

    revista de esttica (Rivista di Esttica) da citada instituio por mais de 25 anos. As primeiras interlocues

    filosficas de Pareyson se deram com os filsofos alemes, com destaque para ensaios realizados sobre as obras

    de pensadores como Kant, Schelling, Schiller, Fichte, Kierkegaard e Goethe, sem deixar de mencionar o

    destaque ao estudo da obra de Karl Jasper. Alm dos alemes, ele desenvolveu importantes ensaios sobre os

    pensamentos de Aristteles, Vico e Valry. Contudo, ainda estabeleceu interlocues com pensadores

    contemporneos a ele, como Heidegger, Gadamer, Dewey, Focillon e Gilson. Ainda, saindo do foco da

    interlocues e dilogos com outros filsofos, como sntese do percurso filosfico de Pareyson, Sarto discorre:

    Dotado de una profunda curiosidad cientfica y de una notable erudicin, Pareyson fue capaz de elaborar una

    sntesis original: un pensamiento que parte del existencialismo, pasa por el personalismo, la esttica y la

    hermenutica, para acabar en la ontologa de la libertad [...] (SARTO, Pablo Blanco. Hacer arte, interpretar

    el arte: Esttica y hermenutica en Luigi Pareyson.Pamplona: EUNSA, 1998, p.21.) Ver tambm: ECO,

    Umberto. A esttica da formatividade e o conceito de interpretao, p.14-15. In: _____. A definio da arte.

    Traduo de Jos Mendes Ferreira. Lisboa: Ed. 70, 2008.

  • 14

    As definies mais conhecidas da arte, recorrentes na histria do

    pensamento, podem ser reduzidas a trs, ora a arte como um fazer, ora como

    um conhecer, ora como um exprimir. [...] Na Antiguidade, prevaleceu a

    primeira: a arte foi entendida como tkhne como um fazer em que era,

    explcita ou implicitamente, acentuado o aspecto executivo, fabril, manual. 8

    Embora, como diz Pareyson: Essas diversas concepes ora se contrapem ora se

    excluem umas s outras, ora, pelo contrrio, aliam-se e se combinam de vrias maneiras

    (1989, p.29) 9, o presente estudo volta-se para o entendimento da arte como fazer e suas

    nuances, partindo da interpretao das variantes dos significados dos termos tkhne 10 e

    poesis, visto que o aspecto fabril da obra de arte, bem como as definies advindas da

    filosofia grega, sobretudo de alguns textos de Aristteles, so chaves capitais para o

    entendimento da Teoria da Formatividade11

    do filsofo de Turim.

    8 PAREYSON, Luigi. Os problemas da esttica. Traduo de Maria Helena Nery Garcez. 2 ed. So Paulo:

    Martins Fontes,1989, p.29. Le definizioni pi famose dellarte si possono ridurre a tre, ricorrenti nella storia

    de pensiero: larte concepita ora come un fare, ora come un conoscere, ora come un esprimere.

    [...]Nellantichit prevalse la prima: larte fu intesa come , come un fare in cui era esplicitamente o

    implicitamente accentuato laspetto esecutivo, fabrile, manuale;[...] (Idem. I Problemi DellEstetica In:

    Problemi DellEsttica I. Teoria a cura di Marco Ravera, Milano: Mursia Editore, 2009, p.229.)

    9 Idem. Os problemas da esttica. 2 ed. Traduo de Maria Helena Nery Garcez. So Paulo: Martins

    Fontes,1989, p.29. Queste diverse concezioni ora si contrappongono e si escludono fra loro, ora invece si

    alleano e si combinano variamente; ma in definitiva rimangono le tre definizioni principali dellarte (Idem. I

    Problemi DellEstetica In: Problemi DellEsttica I. Teoria a cura di Marco Ravera, Milano: Mursia Editore,

    2009, p.229.)

    10

    Optou-se por transliterar todos os termos em grego para os caracteres latinos. Os parmetros para a

    transliterao do alfabeto grego para o alfabeto latino seguiram os mesmos utilizados por GOBRY, Ivan.

    Vocabulrio Grego de Filosofia. Trad. Ivone C. Benedetti. So Paulo: Martins Fontes. 2007. (Cf. Op. cit. p. 5 a

    8). Esses parmetros s no foram usados nas citaes onde os autores optaram por parmetros diversos dos

    seguidos por Gobry, nesses casos, a grafia do texto original citado foi mantida.

    11

    A obra de Luigi Pareyson percorre desde textos de cunho historiogrfico, estudos e comentrios sobre as obras

    e outros filsofos, at textos tericos autnomos como os dois livros especficos de Esttica que serviram como

    base central para a presente dissertao, isto : Estetica. Teoria della formativit, publicado pela primeira vez em

    1954, e traduzido para o portugus em 1993; e ainda, o livro: I problemi dell'estetica, com a primeira edio

    italiana de 1966, e, publicado no Brasil em 1984. Segue uma lista das obras de Luigi Pareyson consideradas mais

    significativas, esto dispostas por ordem cronolgica a partir da primeira publicao em italiano de cada obra: La

    filosofia dell'esistenza e Karl Jaspers (1939), Studi sull'esistenzialismo, (1943), Corso di estetica (1946), Etica

    ed estetica in Schiller (1949), L'estetica di Kant (1949), Etica ed estetica in Schiller (1949), Fichte. Il sistema

    della libert (1950), Esistenza e persona (1950), Esistenza e persona (1950), L'estetica di Fichte (1950)

    L'estetica dell'idealismo tedesco, (1950), Unit della Filosofia (1952), Estetica. Teoria della formativit (1954),

    Teoria dell'arte, (1965), I problemi dell'estetica,(1966), Conversazioni di estetica, (1966), Il pensiero etico di

    Dostoevskij, (1967), Verit e interpretazione (1971) L'esperienza artistica, (1974) Schelling,(1975), Rettifiche

    sullesistenzialismo (1975), Dostoevskij: filosofia, romanzo ed esperienza religiosa, (1976); Ltica e esttica

    em Schiller (1983), Filosofia della libert, (1989), Ontologia della libert. Il male e la sofferenza, (1995 -

    pstuma), entre outros livros e artigos publicados em revistas e anais. Atualmente, sob a rubrica de "Opere

    complete, os livros de Pareyson esto sendo republicados pelo "Centro Studi Filosofico Religiosi Luigi

  • 15

    As diferentes acepes utilizadas para as palavras tkhne e poesis so por si s, um

    empecilho para a leitura atenta dos diversos textos, no s de Plato e Aristteles, mas

    tambm dos textos de outros autores antigos. As dificuldades iniciam, sobretudo, no

    entendimento de como esses autores pensavam as vrias dimenses da atividade artstica; da

    produo fruio. Portanto, faz-se necessria uma breve demarcao terminolgica a fim de

    evitarmos imprecises, j que os termos em grego ainda povoam os textos atuais sobre arte.

    A palavra tkhne comumente no traduzida em muitos textos sobre arte ainda hoje.

    Mas quando o , usualmente traduzida por arte para o portugus. Como em portugus a

    palavra que utilizamos de origem latina [ars ou artis], e no existe nenhuma palavra em

    grego que abarque todos os complexos significados e delimitaes que o vocbulo foi

    ganhando no decorrer dos sculos, muitos textos atuais acabam por aceitar que tkhne

    signifique simplesmente arte.

    Entretanto, a acepo da palavra arte que um grande grupo de pessoas tem em mente

    atualmente costuma vir acompanhada de qualidades como subjetividade, expressividade e

    beleza. Notadamente, porque a definio de arte acrescida das noes de subjetividade,

    expressividade e beleza diz respeito a um entendimento alicerado na tradio do pensamento

    sobre arte que se cristalizou a partir do sculo XVIII, nos meios que de modo geral se

    identificam pelo pensamento idealista e romntico. Ideias que no estariam inteiramente

    presentes nas acepes gregas de tkhne, e que no correspondem mais a grande parte das

    concepes de arte mais amplamente aceitas nos dias de hoje, e, sobretudo, no vo de

    encontro com o que Pareyson prope para a Teoria da Formatividade. O filsofo italiano faz

    esta distino pontualmente: De um lado, a arte como tkhne, saber fazer, perfeio formal;

    de outro a arte como inspirao e paixo 12

    Pareyson" da Universidade de Turim. Por isso muitos ttulos originais, bem como a organizao interna dos

    textos publicados foram reorganizados sob uma nova ordem. Cf. em: RAVERA, Marco. Premessa del Curatore

    In: Problemi DellEsttica I. Teoria a cura di Marco Ravera, Milano: Mursia Editore, 2009, p.5-9. (Centro

    Studi Filosofico Religiosi Luigi Pareyson, Opere Complete - Vol. 10)

    11

    PAREYSON, L. Esttica: Teoria da Formatividade. Traduo de Ephraim Ferreira Alves Petrpolis, RJ:

    Vozes, 1993, p.9. (Prefcio do autor da edio de 1988)

    12

    Idem. Os problemas da esttica. 2 ed. Traduo de Maria Helena Nery Garcez. So Paulo: Martins Fontes,

    1989. p.71. Da un lato, larte come , saper fare, perfezione formale,; dallaltro larte come inspirazione e

    passione. (Idem. I Problemi DellEstetica In: Problemi DellEsttica I. Teoria a cura di Marco Ravera,

    Milano: Mursia Editore, 2009, p.266.)

  • 16

    Portanto, Pareyson chama a ateno sobre a importncia de se pensar a arte como

    saber-fazer [tkhne], concepo, no s presentes nos pensamentos de ambos os filsofos

    gregos supracitados, mas, central nos textos da Grcia Antiga em geral. Parece claro que o

    professor de Turim o faz no intuito de retomar as definies primeiras de arte, como fica

    evidente na introduo do livro Esttica: Teoria da Formatividade, quando ele expe que

    quer: [...] entrar imediatamente no tema propondo, ao invs dos princpios croceanos13

    da

    intuio e da expresso, uma esttica da produo e da formatividade. 14

    Por isso, um olhar mais prximo das especificidades dos diversos significados dos

    termos gregos presentes nos textos antigos, e repetidos nos textos atuais, pretende ajudar a

    desfazer as imprecises que ocorrem por falta de uma distino criteriosa que respeite as

    variaes conceituais de cada poca.

    Em suma, nem para Plato, to pouco para Aristteles tkhne e poesis tm um

    significado particular, e, sobretudo, no coincidem com as acepes de arte que costumamos

    utilizar no portugus corrente. Contudo, Pareyson resgata uma srie desses sentidos presentes

    nos textos dos filsofos gregos para compor os conceitos que embasam a sua esttica. Nesse

    intuito, foram elencados os principais sentidos de tkhne, poesis e outros termos e conceitos

    correlatos presentes nos primeiros escritos sobre arte na Antiguidade Grega, com nfase nos

    pensamentos de Plato e Aristteles. Assim como, algumas definies relevantes de ars,

    advindas da tradio latina, mereceram ateno.

    No entanto, a proposta desta reviso terminolgica no de fazer uma extensa reviso

    histrica que proponha abarcar todo o pensamento sobre arte, de Plato Pareyson. Foram

    destacados, sobretudo, aqueles significados e pontos de conjuno das acepes

    13

    Referente s ideias de Benedetto Croce (Pescasseroli, 1866 - Npoles, 1952), filsofo italiano amplamente

    influente na Itlia na poca de Pareyson. Croce, com uma esttica baseada em aportes tericos, sobretudo,

    advindos do idealismo romntico, foi um importante contraponto no discurso esttico pareysoniano, entretanto,

    nota-se que Pareyson faz meno s ideias crocianas, na maioria das vezes, para marcar as diferenas entre estas

    e a Teoria da Formatividade, pontuando a necessidade de uma reviso na reflexo filosfica sobre arte.

    Portanto, embora Croce seja, por uns, apontado como o contraponto principal de Pareyson, pautados,

    provavelmente, nas inmeras menes a Croce recorrentes no textos de Pareyson, todavia, em geral, estas

    menes so com o intuito de crtica e oposio.

    14

    Idem. Esttica: Teoria da Formatividade. Traduo de Ephraim Ferreira Alves Petrpolis, RJ: Vozes, 1993,

    p.9. (Prefcio do autor da edio de 1988)

  • 17

    terminolgicas relacionados s problemticas contidas na Teoria da Formatividade, e que se

    encontram em alguns outros pensadores, sobretudo, Plato e Aristteles.

    Antes de analisar algumas definies de tkhne e poesis separadamente, vale lembrar

    que tanto Plato, quanto Aristteles cotejam as diferentes modalidades de arte, tais como a

    pintura, a poesia, o teatro, escultura, utilizando parmetros e definies gerais que abrigam

    qualquer linguagem artstica. Isso permite que as definies cunhadas por Plato e Aristteles

    sejam no apenas aplicadas atividade teatral e poesia textual em si, mas, que se estendam

    produo da obra de arte de maneira geral, incluindo a da pintura e assim por diante.

    Por exemplo, apesar de um dilogo como o on de Plato ter como foco principal a

    apresentao de poesia homrica orquestrada por um rapsodo15

    , Scrates - enquanto um dos

    personagens do dilogo - relaciona as atividades de Homero e de on s do pintor e do

    escultor. Como quando Scrates cita um caso o caso da pintura para exemplificar seu

    argumento sobre o pouco alcance do conhecimento tcnico- racional de on, que s fala de

    Homero, e no de todos os poetas (532 d 533 a).16

    Tambm, assim como na Repblica ,

    Plato ao discorrer sobre a distncia que a poesia trgica est para com a verdade, i.e., trs

    15

    Espcie de cantor-ator ou declamador profissional, que ornado com belas vestes e segurando um basto, o

    rbdos, da o nome rapsodo, recita a poesia de outros poetas. No caso de on, ele um especialista em Homero.

    on no s recita, mas explica o contedo da poesia, a interpreta, acumulando, portanto, a ao de artista e de

    uma espcie de crtico- professor de arte. A sua especialidade em recitar somente Homero, um dos argumentos

    usados por Scrates para desmerecer um suposto conhecimento tcnico adquirido por on para exercer o seu

    ofcio. Cf. PLATO, on, 530c.

    16

    PLATO, on, 532 d- 533a: - Sc: [...]Partamos desse raciocnio: existe uma arte pictrica que um

    conjunto? - on: Sim. - Sc.: Portanto, tambm na pintura h e houve muitos pintores bons e muitos medocres?

    - on: Perfeitamente. - Sc: Ento j viste algum que capaz de discorrer sobre Polignoto, filho de

    Aglaofonte, demonstrando ser perito sobre o que ele desenha bem e sobre o que no desenha e seja incapaz de

    fazer o mesmo sobre os outros pintores? E quando algum aponta para as obras dos outros pintores, ele

    adormece, fica embaraado, e no tem o que se conjecturar, mas quando sobre Polignoto ou algum outro que

    queiras, havendo necessidade de demonstrar conhecimento de apenas um dos desenhos, desperta e presta

    ateno e bem transita no que diz?- on: No, por Zeus, certamente, no! (Traduo de Andr Malta. Porto

    Alegre: L&PM Pocket, 2007.)

    [532d] : ,

    ; , , ; : , ,

    . : ,

    ,

    , [532e] . ,

    , , .

    ; :.:

    ; : . :

    ,

    [533a] ; ,

    ,

    , ; : , .

  • 18

    vezes distante desta; ele afirma que tambm a pintura uma imitao trs graus distante da

    verdade. (Livro X, 597 d) 17

    Aristteles igualmente recorre pintura para tratar de questes de poesia, como na

    passagem do Captulo VI da Potica, quando ele coteja a construo e especificidades da

    tragdia com a pintura da poca, citando Zuxis e Polignoto (1450a 22 -30) 18

    . Mais adiante,

    a comparao entre poesia trgica e pintura se repete:

    [...] o mito o princpio e como que a alma da tragdia; s depois vm os

    caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se algum aplicasse

    confusamente as mais belas cores, a sua obra no nos comprazeria tanto,

    como se apenas houvesse esboado uma figura em branco. (Ibidem, 1450b

    1-5) 19

    Portanto, a partir do parmetro de que tanto Plato como Aristteles usavam a

    pintura e a escultura para falar de teatro e/ou poesia e vice e versa, sem discriminar

    inteiramente os mecanismos gerais de cada modalidade artstica, que as referncias e

    interpretaes dos conceitos correlatos s questes da arte utilizados e cunhados por eles sero

    analisadas neste presente estudo.

    17

    Sc.: Ora, exatamente como ele (pintor), encontra-se o poeta trgico, por estar, como imitador, trs degraus

    abaixo do rei da verdade, o que alis, se d, com todos os imitadores. (PLATO. Repblica. Trad. de Carlos

    Alberto Nunes 3 Ed. Belm: EDUFPA, 2000.)

    , ,

    , .

    18

    Sem ao no poderia haver tragdia, mas poderia hav-la sem caracteres. As tragdias da maior parte dos

    modernos no tm caracteres, e, em geral, h muitos poetas desta espcie. Tambm, entre os pintores, assim

    Zuxis comparado com Polignoto, porque Polignoto excelente pintor de caracteres e a pintura de Zuxis no

    apresenta carter nenhum. (ARISTTELES. Potica. Traduo de Eudoro de Souza. 1 ed. So Paulo: Ed.

    Abril Cultural, 1973, p. 448.)

    , [25]

    , ,

    , .

    19

    ARISTTELES. Potica. Traduo de Eudoro de Souza. 1 ed. So Paulo: Ed. Abril Cultural, 1973, p. 449.

    [1] ,

    ) . [5]

    ,

    , .

    , [ [10] ].

  • 19

    1.2 Tkhne como saber-fazer

    Notadamente, para Plato, em muitos de seus dilogos, tkhne tem um sentido mais

    amplo e por vezes at antagnico para com algumas definies de arte atuais. A primeira

    diferena significativa entre tkhne e arte a distino que fazemos atualmente entre arte e

    tcnica, de onde podem surgir vrias possveis interpretaes errneas. Como lembra

    Pareyson: [...] O pensamento antigo pouco se preocupou em teorizar a distino entre a arte

    propriamente dita e o ofcio ou a tcnica do arteso. 20

    Para o discpulo de Scrates tkhne costumar ter um sentido de tcnica na acepo

    simples do termo, ou seja, habilidade no fazer, destreza na profisso. E ainda, pode ser

    considerada como sinnimo de cincia, e, sobretudo, abarca todo tipo de atividade humana.21

    .

    Assim como Plato, Aristteles frequentemente usa a palavra tkhne no sentido amplo

    do saber-fazer. E tambm, em ambos os pensadores, tkhne , por vezes, encontrada como

    sinnimo ou em paralelo cincia [epistme].22

    Entenda-se episteme aqui no sentido mais lato

    e primrio do termo, isto , todo e qualquer conhecimento verdadeiro e racional do

    universal.23

    Como explica Giovanni Reali nos comentrios de sua traduo da Metafsica de

    Aristteles: [...] Arte [tkhne] algo muito prximo da cincia, enquanto implica,

    20

    PAREYSON, Luigi. Os problemas da esttica. 2 ed. Traduo de Maria Helena Nery Garcez. So Paulo:

    Martins Fontes, 1989, p.29. [...]ma il pensiero antico poco si preoccup di teorizzare la distinzione fra larte

    propriamente detta e il mestiere o la tcnica dell'artigiano[...] (Idem. Problemi DellEsttica I. Teoria a cura

    di Marco Ravera, Milano: Mursia Editore, 2009, p.229.)

    21

    Plato no utiliza o termo tkhne de maneira uniforme em seus dilogos. Entretanto, possvel afirmar que,

    diante de variadas acepes, persiste ao menos um aspecto semntico comum correspondente ao entendimento

    de que tkhne diz respeito a qualquer atividade humana que exige racionalidade e destreza, como, por exemplo,

    no dilogo on (538-541), onde Scrates discorre sobre vrias atividades que precisam da tkhne para serem

    bem executadas, como as do general, do barqueiro, do navegador, da fiandeira, do mdico, e tambm da

    atividade dele mesmo. Sobre as variantes do sentido de tkhne nos diversos dilogos de Plato, ver tambm em:

    BRISSON, L., PRADEAU, J-F. Vocabulrio de Plato. Trad. de Claudia Berliner. So Paulo: Ed. Martins.

    Fontes, 2010, p. 70 -71.

    22

    Cf. PELLEGRIN, Pierre. Vocabulrio de Aristteles, Trad. Claudia Berliner. So Paulo: Ed. Martins Fontes.

    2010, (verbete: , p. 21- 22). e GOBRY, Ivan. Vocabulrio Grego de Filosofia. Trad.

    Ivone C. Benedetti. So Paulo: Martins Fontes. 2007. (Verbete: , p. 142-143.)

    23O termoepistme pode ser entendido em dois sentidos. H um estrito de epistme, definido nos Segundos

    analticos: uma disciplina particular, confinada por um gnero particular, a respeito do qual prova por

    demonstraes, seus atributos per se. [...] Pode-se entender epistme em sentido mais lato, como ato

    cognitivo pelo qual apreendemos cientificamente determinada coisa, por exemplo, como conhecimento de uma

    determinada concluso [...].(ANGIONI, Lucas. Comentrios In: ARISTTELES. Fsica I II. Prefcio,

    traduo e comentrios de Lucas Angioni. Campinas: Ed. Unicamp, 2009, p. 234-235.)

  • 20

    justamente, conhecimento dos universais. Na linguagem moderna a palavra arte no tem

    mais o antigo sentido e, portanto, existe o risco de equvocos [...] 24

    Portanto, a tkhne grega configura com um conhecimento que se situa em oposio

    natureza, irracionalidade e ao acaso; como por exemplo, no sentido explicitado neste trecho

    da tica a Nicmaco de Aristteles: No obstante, ho de concordar que o homem que

    deseja tornar-se mestre numa arte [tkhne] ou cincia deve buscar o universal e procurar

    conhec-lo to bem quanto possvel [...]. (X, 1180b 20) 25

    Todavia, nem sempre Aristteles entende tkhne e cincia como sinnimas, como

    quando ele faz distines importantes entre tkhne, prxis e theoria, distines que sero

    comentadas mais adiante.26

    Portanto, a traduo simplificada de tkhne como arte, no que diz respeito aos textos

    que tratam da arte no seu sentido estrito, pode no ser a melhor escolha. Muitas vezes, a

    melhor escolha poderia ser a palavra tcnica, no sentido de saber adquirido e voltado ao fazer

    ou at mesmo cincia, no sentido do saber racional e verdadeiro. Esse cuidado na traduo

    particularmente importante, especialmente nos casos dos textos sobre arte, para que tkhne

    no se confunda com os diversos conceitos que a palavra arte abarca nos dias de hoje.

    Angioni esclarece mais alguns pontos sobre essa questo, nos comentrios da sua traduo da

    Fsica I-II de Aristteles:

    [...] outra traduo para techn arte. Em tica a Nicmaco 1140 a 10, a

    techn definida como habilitao (ou disposio) produtiva, com discurso

    verdadeiro (hexis meta logou althou poitik). Trata-se da capacidade de

    produzir, de modo racional, alguma coisa que admite ser e no ser (algo

    24

    REALI, Comentrios e notas (Metafsica, 981 a 7-12) In: ARISTTELES. Metafsica Vol III, traduo de

    Giovanni Reali e Trad. de Marcelo Perine. So Paulo: Ed. Loyola, 2002, p. 8-9.

    25

    ARISTTELES. tica a Nicmaco. Traduo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da verso inglesa de W.

    D. Ross. 1. Ed. So Paulo: Ed. Abril Cultural, 1973. (Coleo Os Pensadores V. IV), p. 434.

    (20) . '

    , ' .

    ' , ' , (25)

    , ' .

    26

    Cf. GOBRY, Ivan. Vocabulrio Grego de Filosofia. Trad. Ivone C. Benedetti. So Paulo: Martins Fontes.

    2007. (verbete: epistme p.56-57).

  • 21

    contingente), e cujo princpio est no produtor, no naquilo que se produz

    (1140 a 12-4). Em expresses como a arte da medicina, a arte do

    timoneiro etc., temos perfeitamente o sentido pretendido por Aristteles.

    Mas quando o termo techn usado sem complementos, parece-nos mais

    adequado vert-lo por tcnica [...] 27

    Veremos no decorrer deste captulo como essa acepo de tkhne como saber-fazer,

    utilizada tanto por Plato como por Aristteles, e acrescida de todas as nuanas que dela

    derivam, serviu como parmetro para a teoria sobre a arte que Pareyson desenvolve.

    1.3. Tkhne como fruto da experincia

    A noo de tkhne como fruto da experincia outro aspecto da definio de tkhne que

    ajuda a entender como funciona esse mecanismo do saber que se configura em fazer nos

    meandros do processo artstico, que o professor de Turim explicita em sua teoria da arte.

    Tambm, como Plato, Aristteles identifica a experincia como origem da tkhne.

    Mas, enquanto Plato ope cincia [epistme] e experincia [empera], sobretudo por

    desacredit-la como meio de obter conhecimento, Aristteles situa a experincia como

    conhecimento individual que precisa da tkhne e da epistme para torn-la universal28

    . Nesses

    trechos da Metafsica, Aristteles explica como se d o conhecimento da tkhne a partir da

    experincia:

    A experincia parece um pouco semelhante cincia e arte. A experincia,

    como diz Polo, produz a arte, enquanto a inexperincia produz o acaso. A

    arte se produz quando, de muitas observaes da experincia, forma-se um

    27

    ANGIONI, Lucas. Comentrios. In: ARISTTELES, Fsica I II. Prefcio, traduo e comentrios de Lucas

    Angioni. Campinas: Ed. Unicamp, 2009, p.363.

    28Tal como foi definida em Aristteles (Eth. Nich. VI, 1140a) a tkhne uma caracterstica (hexis) mais

    dirigida produo (poietike) do que ao (praktike). Emerge da experincia (empeiria) de casos individuais

    e passa da experincia tkhne quando as experincias individuais so generalizadas num conhecimento de

    causas[...]() (PETERS, F.E., Termos filosficos gregos- um lxico histrico. Trad. Beatriz

    Rodriguez Barbosa. Lisboa: Fundao Calouste Gulbekian. 1977, p. 225- 226.)

  • 22

    juzo geral e nico passvel de ser referido a todos os casos semelhantes. (A

    981a) 29

    Ou seja, as tkhnai, como explica Aristteles, esto no campo do saber-fazer tcnico,

    habilidades do fazer, adquiridas atravs da sensao [asthesis] e da experincia [empera] 30

    ,

    podendo ser ensinadas, e possibilitando a produo humana das coisas no mundo atravs da

    competncia adquirida.

    Esta outra distino fundamental que est presente na base do entendimento dos

    mecanismos da arte que Pareyson props estudar. Ou seja, diferente dos pensadores gregos,

    para o filsofo italiano, o saber-fazer, e, sobretudo, o artstico, adquirido num fazer

    inventivo e simultneo produo da obra. Como Pareyson define:

    A arte uma atividade na qual a execuo e inveno [invenzione] procedem

    pari passu, inseparveis, na qual incremento de realidade constituio de

    um valor original. Nela concebe-se executando, projeta-se fazendo,

    encontra-se a regra operando, j que a obra existe s quando acabada, nem

    pensvel projet-la antes de faz-la e, s escrevendo, ou pintando, ou

    cantando que encontrada e concebida e inventada. 31

    Esta uma das especificaes fundamentais da fabricao da arte sob a tica da Teoria

    da Formatividade, ou seja, a tcnica da arte est constantemente em processo de se reinventar.

    No entanto, apesar de Pareyson indicar no ncleo da Teoria da Formatividade, que, na arte, o

    saber adquiro no momento de fazer, no depois, nem mesmo antes: Ela (arte) um tal

    29

    Aristteles. Metafsica. Traduo e comentrios de Giovanni Reali, traduo para o portugus de Marcelo

    Perine, So Paulo: Edies Loyola, 2002, p.3. ,

    ' ,

    , [5] ' .

    .

    30

    Cf. GOBRY, Ivan. Vocabulrio Grego de Filosofia. Trad. Ivone C. Benedetti. So Paulo: Martins Fontes.

    2007. p.53 e p.143.

    31

    PAREYSON, Luigi. Os problemas da esttica. 2 ed. Traduo de Maria Helena Nery Garcez. So Paulo:

    Martins Fontes, 1989, p.32. L'arte un'attivit in cui esecuzione e invenzione procedono di pari passo,

    simultanee e inscindibili, e in cui l'incremento di realt costituzione d'un valore originale: in essa si

    concepisce eseguendo, si progetta facendo, si trova la regola operando, giacch l'opera esiste solo quancl'

    finita, n pensabile di progettarla prima di farla, e solo scrivendo o dipingendo o cantando la si trova e la si

    concepisce e la s'inventa. (Idem. Problemi DellEsttica I. Teoria a cura di Marco Ravera, Milano: Mursia

    Editore, 2009, p.232.)

  • 23

    fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer..32

    Ele esclarece que esse

    fazer que inventa o modo de fazer no um mero acaso, ou seja, a experincia adquirida

    participa e ajuda a organizar o aparente caos do fazer artstico. Nas palavras dele:

    Tudo isto contrrio experincia dos artistas, os quais embora arrastados

    pelo estro de veia fcil e abundante conhecem, todavia o inflexvel rigor e a

    severa legalidade que preside ao xito das suas obras, e no esto facilmente

    dispostos a conceder que a sua arte se reduza ao resultado de uma

    espontaneidade cega e incontrolada. 33

    1.4. Tkhne e inspirao

    Nesse sentido, outro aspecto importante a ser destacado sobre os significados de

    tkhne, sobretudo em Plato, pode ser visto a partir da leitura atenta de um dos dilogos do

    discpulo de Scrates: on.

    Nesse dilogo, Scrates afirma que o poeta no tem arte [tkhne], transformando a fala

    do filsofo em algo estranho, para no dizer contraditrio aos leitores desavisados de hoje.

    Ou seja, Scrates diz que o artista no tem o conhecimento de uma arte [tkhne], faz o que faz

    por meio de uma fora divina [thea dnamis] 34

    , e essa fora que lhe d a habilidade de

    recitar Homero e encantar o pblico e no um saber fazer adquirido racionalmente. Segundo

    este texto35

    , o rapsodo est fora de si no momento da produo [poesis], ou seja, est

    possudo pela Musa, da o carter irracional da arte que apontado no dilogo sobre a Ilada.

    32

    PAREYSON, Luigi. Os problemas da esttica. 2 ed. Traduo de Maria Helena Nery Garcez. So Paulo:

    Martins Fontes, 1989, p 32. [...]essa (L'arte) un tal fare che, mentre fa, inventa il da farsi e il modo di fare.

    (Idem. Problemi DellEsttica I. Teoria a cura di Marco Ravera, Milano: Mursia Editore, 2009, p.232.)

    33

    Ibidem, op. cit., p.138. Tutto ci contrario all'esperienza degli artisti, i quali, per quanto trascinati

    dall'estro e di vena facile e abbondante, conoscono tuttavia l'inflessibile rigore e la severa legalit che presiede

    alla riuscita delle loro opere, e non sono facilmente disposti a concedere che la loro arte si riduca al risultato

    d'una spontaneit cieca e incontrollata. (Ibidem, op. cit., p.324)

    34

    Cf. PLATO. on, 533 d- 534.

    35

    Ibidem, 532c: Sc: No difcil imaginar isso, companheiro, mas a todos evidente, que com tcnica e

    cincia s incapaz de falar sobre Homero. Pois se tu fosses capaz de falar por tcnica, serias capaz de falar

    tambm de todos os outros poetas, pois que h uma arte potica como um todo, no h? (Traduo de Andr

    Malta. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2007) : , ,

  • 24

    Outro dilogo que o assunto da inspirao no artista mencionado o Fedro36

    , aqui a

    ideia de inspirao examinada sob a tica da loucura divina, isto , do delrio [mana].

    Portanto, a partir dessas leituras entende-se que a concepo platnica de tkhne pode

    ser entendida, em alguns momentos, como antagnica produo artstica, tais como a

    pintura, poesia e msica. Essas atividades teriam a inspirao [enthousiasmos] na forma de

    fora divina [thea dnamis] como propulsoras da produo [poesis] da obra. Uma inspirao

    que se configura como uma espcie de loucura, porm de ordem divina, e, portanto benfica.

    ,

    ' . ;

    Noutro trecho: on, 542 a-b: Sc. :[...]Assim, se voc, no possui arte (aquilo que eu dizia agora pouco),

    depois de me prometer uma demonstrao sobre Homero, fica agora, me enganando, voc faz mal; mas se voc

    no possui arte, e por poro divina, estando tomado por Homero e nada sabendo, diz muitas e belas coisas

    sobre o poeta ( conforme eu disse a seu respeito), voc no faz nada de mal. Escolha ento como voc prefere

    ser considerado por ns: homem malfeitor ou divino... - on: H muita diferena, Scrates! Pois mais belo ser

    considerado divino!- Sc.: para ns ento algo mais belo lhe pertence, on, ser divino e de Homero um louvador

    sem arte.] (Traduo: Ibidem)

    :[...] , , ,

    ,

    , , .

    . [542b] : , .

    : ' , ,

    .

    36

    Idem. Fedro, 244 a: Scrates: [...] Isto seria verdade se a loucura fosse apenas um mal; mas, na verdade,

    porm, obtemos grandes bens de uma loucura inspirada pelos deuses [...] (Traduo de Jorge Paleikat. Rio de

    Janeiro/ Porto Alegre: Ed. Globo, s/ data)

    [...] ,

    , . [...]

    Ainda noutro trecho: Ibidem, 244d 245a: Scrates: [...] H ainda uma terceira espcie de delrio:

    aquele inspirado pelas Musas. Quando ele atinge uma alma virgem e pura, transporta-a para um mundo novo e

    inspira-lhe odes e outros poemas que celebram as gestas dos antigos e que servem de ensinamentos s novas

    geraes. (Traduo: Ibidem.)

    :[...] ,

    , ,

    , []

    , .

    E mais, no dilogo Fedro, 265: Scrates: Em seguida, classificamos o delrio divino em quatro espcies:

    um era o sopro proftico de Apolo; outro, a inspirao mstica de Dionsio; o terceiro, o delrio potico

    inspirado pelas Musas, e finalmente, a quarta espcie de delrio devia-se influncia de Afrodite e de Eros.

    Afirmamos que o delrio causado pelo amor o melhor de todos. No s como, ns que tambm somos atingidos

    pelo sopro do deus do amor, afastando e aproximando-nos da verdade ao fazer um discurso ao qual no faltava

    sentido - pudemos compor um hino mitolgico ao amor, o deus dos jovens, o teu, o meu deus. (Traduo:

    Ibidem) : ,

    , , , ,

    , ,

    , , ,

    , ,

    .

    http://remacle.org/bloodwolf/philosophes/platon/cousin/ion.htm#542b

  • 25

    Isto , o seu carter de loucura evidencia o descontrole e a irracionalidade, distanciando

    ainda mais o saber artstico do cientfico, que racional e controlado pelo homem, prprios

    daqueles que possuem um saber-fazer, uma tkhne. Conclui-se, ento, que Plato ope arte

    [tkhne] e inspirao. A tkhne sendo prpria das cincias, incluindo a sua atividade de

    filsofo, e a inspirao como prpria daquilo que hoje chamamos de arte de maneira geral,

    incluindo a atividade do pintor.

    O entendimento do descontrole humano no fazer artstico, que visto em alguns

    dilogos platnicos como conflitante e oposto racionalidade advinda da tkhne, entendida

    nesse contexto como saber-fazer racional, por vezes, sobrecai no estudo do fazer artstico

    velando o olhar s zonas intermedirias do fazer da obra de arte. Lugar onde possvel

    encontrar certa irracionalidade e certa racionalidade concomitantemente.

    Descortinar as zonas cinzentas da operosidade da obra de arte fundamental para que se

    possa entender a Teoria da Formatividade que Pareyson prope: ele no usa a palavra

    irracional propriamente dita, nem mesmo inspirao para falar do processo de produo da

    obra de arte. Mas, tampouco situa o processo artstico como um saber-fazer totalmente

    controlado e sabido previamente e completamente racional. Sobre os meandros do processo

    artstico, Pareyson explica:

    Eis como o processo artstico pode ser ao mesmo tempo criao e

    descoberta, liberdade e obedincia, tentativa e organizao, escolha e

    coadjuvao, construo e desenvolvimento, composio e crescimento,

    fabricao e maturao. O que caracteriza o processo artstico

    precisamente esta misteriosa e complexa co-possibilidade, que, no fundo,

    consiste numa dialtica entre a livre iniciativa do artista e a teleologia

    interna do xito, donde se pode dizer que nunca o homem to criador como

    quando d vida a uma forma to robusta, vital e independente de impor-se a

    seu prprio autor, e que o artista tanto mais livre quanto mais obedece

    obra que ele vai fazendo; ante, o mximo de criatividade humana consiste

    precisamente nesta unio de fazer e obedecer, pela qual na livre atividade do

    artista age a vontade autnoma da forma.37

    37

    PAREYSON, Luigi. Os problemas da esttica. Traduo de Maria Helena Nery Garcez. 2 ed. So Paulo:

    Martins Fontes, 1989, p. 144. Ecco come il processo artistico pu essere al tempo stesso creazione e scoperta,

    libert e obbedienza, tentativo e organizzazione, scelta e assecondamento, costruzione e sviluppo, composizione

  • 26

    Seguindo esse raciocnio, no seria absurdo relacionar esta obedincia obra de arte que

    Pareyson repetidamente invoca no processo de fabricao artstico a uma fora externa

    vontade do artista presente no fazer artstico que tantos pensadores, entre eles e pioneiramente

    Plato, identificam. Nas palavras de Pareyson: Eis a o mistrio da arte: a obra de arte se faz

    por si mesma, e, no entanto o artista que a faz.38

    Portanto, aqui vemos um ponto onde Pareyson traz uma soluo entre as duas vises

    divergentes dos dois filsofos gregos; ele traz a ideia que na arte o saber-fazer adquirido no

    momento do fazer, por um inventar que segue a dinmica da prpria obra formante. Isto ,

    para Pareyson, o processo artstico no completamente premeditado e controlado, como

    fruto de uma experincia prvia que foi racionalizada como Aristteles descreve, tampouco

    fruto de uma fora divina incontrolada pelo artista como se v em alguns dilogos de Plato.

    Em suma, se por um lado, Aristteles entende as artes como racionais e passveis de

    serem aprendidas atravs da racionalizao da experincia, por outro lado, Plato identifica as

    artes como inspiradas, e, portanto, traz a ideia de que a arte no pode ser aprendida, e, nem

    sequer ser produzida por meios racionais, pois no haveria esse sentido especfico de tkhne

    presente na atividade do artista.

    Esse entendimento de Plato ajuda a explicar porque o fundador da Academia no

    costuma incluir as atividades do poeta, do pintor e de outros artistas como similares s tkhnai

    em geral, como ser mostrado a seguir.

    e crescita, fabbricazione e maturazione. Ci che caratterizza il processo artistico appunto questa misteriosa e

    complessa compossibilit, che consiste in fondo in una dialettica fra la libera iniziativa dell'artista e la

    teleologia interna della riuscita, per cui si pu dire che mai l'uomo tanto creatore come quando d vita a una

    forma cos robusta e vitale e indipendente da imporsi al suo stesso autore, e che l'artista tanto pi libero

    quanto pi obbedisce all'opera ch'egli va facendo; anzi, il massimo della crealivit umana consiste appunto in

    questa unione di fare e obbedire, per cui nella libera attivit dell'artista agisce la volont autonoma della

    forma. (Idem. Problemi DellEsttica I. Teoria a cura di Marco Ravera, Milano: Mursia Editore, 2009,

    p.329.)

    38

    Idem. Esttica: Teoria da Formatividade.Traduo de Ephraim Ferreira Alves Petrpolis, RJ: Vozes, 1993,

    p.78. Ch questo il grande misterio dellarte: lopera darte si fa da s, eppure la fa lartista. (Idem: Teoria

    della Formitivit. Bolonha: Editore Zanichelli. 2 Edizione, 1960, p.61.)

  • 27

    1.5. Tkhne como operosidade humana e arte como parte das tkhnai

    Outro ponto de divergncia entre Aristteles e seu predecessor a respeito dos conceitos

    correlatos a tkhne , como foi sugerido acima, a relao das artes com outras tcnicas

    humanas, ou melhor, outras atividades tecnolgicas humanas. Diferente de Plato, Aristteles

    frequentemente inclui as atividades artsticas como uma das tkhnai.39

    Isto , o estagirita

    entende a atividade artstica paralelamente em conjunto com todas as outras atividades e

    saberes humanos de forma anloga.

    O fato de Aristteles ter escrito a Potica, texto dedicado a discorrer exclusivamente

    sobre as questes concernentes poietik tkhne - expresso que neste contexto pode ser

    definida por arte potica mesmo, de poesia no sentido estrito do termo - comprova por si s,

    que ele incluiu as artes (na acepo que entendemos hoje) no mbito do conjunto das tkhnai.

    E no como Plato normalmente indicava, em oposio para com as atividades racionais que

    so acompanhadas de conhecimentos tcnicos, tal como a atividade do mdico ou do

    marceneiro.

    Ou seja, tal como foi mostrado no item anterior, pode-se supor que Plato costumava

    isolar as artes tal como as entendemos hoje, i.e., a pintura, escultura, teatro, msica, situando-

    as separadas das atividades racionais e tcnicas; atividades estas, que em vrios de seus

    dilogos aparecem circunscritas como atividades guiadas pelas Musas, enfatizando, assim, um

    carter divino e irracional.

    Esse aspecto do conceito das tkhnai em Aristteles, que inclui as atividades artsticas,

    tal como as entendemos hoje, no mbito de todas as outras atividades e saberes humanos,

    fundamental para o entendimento do pensamento de Pareyson, que tambm no separa a

    atividade do artista das outras atividades humanas. Diz ele que a formatividade no

    exclusividade da arte, mas sim, de qualquer atividade produtiva humana: [...] O aspecto

    39

    Cf. Verbete In: PELLEGRIN, Pierre. Vocabulrio de Aristteles, Trad. Claudia Berliner. So

    Paulo: Ed. Martins Fontes, 2010, p.11-12.

  • 28

    essencial da arte o produtivo, realizativo, executivo. Mas tambm aqui preciso no

    esquecer que todas as atividades humanas tm um lado executivo e realizativo [...]. 40

    Esse raciocnio sobre a relao entre arte e as outras atividades humanas embasa a

    Teoria da Formatividade de forma central, como fica explcito nesse trecho do prefcio da

    edio de 1988 do livro homnimo:

    O livro estuda a formatividade em todo o mbito da formatividade humana,

    indicando em cada operao do homem aquele carter formativo pelo qual

    ela , ao mesmo tempo, produo e inveno no sentido esclarecido. Mas

    demora-se mais a considerar, sobretudo que caractersticas essa

    formatividade assume uma vez que se especifica na arte no sentido

    propriamente dito. 41

    Ainda nas palavras dele, retiradas do livro Os Problemas da Esttica: Mas a

    especificao da arte no deve isol-la do resto: ela s tem sentido se considerada sobre o

    fundo da extenso da arte sobre toda a operosidade humana. 42

    Mais adiante, ele completa:

    A arte, verdadeira e propriamente dita, no teria mais lugar se toda a operosidade humana

    no tivesse j um carter artstico, que ela prolonga, aprimora e exalta. 43

    Nesses trechos acima citados fica evidente que a colocao de Pareyson no apenas

    uma questo de equivalncia, isto , pensar as artes no conjunto das outras atividades sem

    discrimin-las ou isol-las como dos outros fazeres. Mas , sobretudo, uma questo de no

    separao das operosidades humanas como um todo.

    40

    PAREYSON, Luigi. Os problemas da esttica. Traduo de Maria Helena Nery Garcez. 2 ed. So Paulo:

    Martins Fontes, 1989, p.31. [...] che l'aspetto essenziale dell'arte quello produttivo, realizzativo, esecutivo.

    Ma anche qui non bisogna dimenticare che tutte le attivit umane hanno un lato esecutivo e realizzativo

    [...](Idem. Problemi DellEsttica I. Teoria a cura di Marco Ravera, Milano: Mursia Editore, 2009, p.231.)

    41

    Idem. Esttica: Teoria da Formatividade.Traduo de Ephraim Ferreira Alves Petrpolis, RJ: Vozes, 1993,

    p.12-13 (Prefcio do autor da edio de 1988)

    42

    Idem. Os problemas da esttica. Traduo de Maria Helena Nery Garcez. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes,

    1989, p.37. Ma la specificazione dell'arte non deve isolare l'arte dal resto: essa ha senso solo se accampata

    sullo sfondo dell'estensione dell'arte all'intera operosit umana. (Idem. I Problemi DellEstetica In: Problemi

    DellEsttica I. Teoria a cura di Marco Ravera, Milano: Mursia Editore, 2009, p.235.)

    43

    Ibidem, op. cit., p.38. L'arte vera e propria non avrebbe mai luogo se l'intera operosit umana non avesse

    gi un carattere artistico ch'essa prolunga, raffina ed esalta. (Ibidem, op. cit., p.235)

  • 29

    Todavia, esse entendimento de conexo indissolvel entre o saber produtivo da arte e

    os outros campos dos saberes produtivos humanos no desqualifica ou nivela a arte; que claro,

    tem muitas especificidades, especificidades estas minuciosamente estudadas pelo professor de

    Turim.

    Vale ressaltar que essa relao da atividade artstica para com as outras atividades

    humanas uma das questes mais complexas para se pensar sobre a arte. Uma compreenso

    apressada sobre essa relao pode acarretar distores sobre as reais diferenas e

    similaridades entre a produo da arte e de qualquer outra atividade, como Pareyson alerta:

    Eis o problema das relaes da arte com as outras atividades humanas, que

    dos mais importantes da esttica, e tambm dos mais complexos, dada a

    variedade dos liames que, mais ou menos estreita a inextricavelmente,

    instituem-se entre as atividades do homem. 44

    Uma destas distines, que no se localiza no interior do processo artstico

    propriamente dito, corresponde eterna celeuma da relao arte-artesanato. Que, por um lado,

    pode identificar a atividade artstica como um mero fazer mecnico, no sentido braal,

    reduzindo a arte mera tcnica, sem que se verifique que arte no e no pode ser reduzida

    tecnicidade da produo de uma obra, pois necessrio que se leve em conta todo o processo

    de elaborao intelectual e imaginativa do artista.

    No entanto, por outro lado, a desvalorizao do aspecto tecnicista e fabril da

    elaborao de uma obra de arte, pode, ainda, enveredar para uma noo de arte isolada de

    tudo,45

    localizando-a no mbito de um fazer inexplicvel, e inserida-a numa categoria do

    irracional, ou at mesmo, no campo do divino, como, por vezes, Plato o fez. 46

    44

    PAREYSON, L. Os problemas da esttica. 2 ed. Traduo de Maria Helena Nery Garcez. So Paulo: Martins

    Fontes, 1989, p.38. Ecco il problema dei rapporti dell'arte con le altre attivit, ch' uno dei pi importanti

    dell'estetica, e anche dei pi complessi, data la variet dei legami che pi o meno strettamente e

    inestricabilmente s'istituiscono fra le attivit dell'uomo. (Idem. I Problemi DellEstetica In: Problemi

    DellEsttica I. Teoria a cura di Marco Ravera, Milano: Mursia Editore, 2009, p.236.)

    45

    Cf. Ibidem, op. cit., p.41-42.

    46

    Cf. on e Fedro de Plato.

  • 30

    Ou ainda, e, sobretudo na contemporaneidade, por parte de algumas linhas de

    raciocnio, h alguns que enveredaram por transformar em artstica toda e qualquer atividade,

    como se tudo fosse embebido de arte, numa tentativa de inserir a arte em tudo e

    transformando todos em artistas, ignorando, assim, as vrias especificidades da atividade

    artstica e seus meandros. Isso at que pode ser benfico, se for feito consciente das

    especificidades da operosidade artstica e sua relao simbitica com a operosidade humana.

    Contudo, essa problemtica geralmente, envereda para um esvaziamento da arte em si,

    e para a perda do entendimento das especificidades que a operosidade artstica pode trazer

    vida, como se tudo fosse especial o tempo todo, nesse sentido o especial da arte perde sua

    razo de ser. Sobre esta questo, nas palavras de Pareyson:

    [...] hoje, no faltam aqueles que, reparando, precisamente, em como h um

    carter artstico inerente a toda e qualquer atividade humana, intervindo em

    qualquer lugar onde se alcance um xito, seja em que campo for,

    preocupam-se pouco, depois, com distinguir a arte verdadeira e propriamente

    dita, desta artisticidade genrica. Disso resulta que no se garante

    suficientemente a especificidade da arte e que no se lhe oferece um reino

    prprio, ainda que estreitamente unido com todo o resto. (1989, p.35) 47

    47

    PAREYSON, Luigi, Os problemas da esttica. 2 ed. Traduo de Maria Helena Nery Garcez. So Paulo:

    Martins Fontes, 1989, p.35. [...] non mancano oggi coloro che, giustamente rilevando come un carattere

    artistico inerisce a tutta intera l'attivit umana, intervenendo ovunque si raggiunga la riuscita in qualsiasi

    campo, si preoccupano poco, in seguito, di distinguere da questa generica artisticit l'arte vera e propria, col

    risultato di non garantire sufficientemente la specificazione del 'arte e di non offrirle un regno proprio, anche se

    strettamente congiunto con tutto il resto. (Idem. I Problemi DellEstetica In: Problemi DellEsttica I. Teoria

    a cura di Marco Ravera, Milano: Mursia Editore, 2009, p.233.)

  • 31

    1.6. Tkhne e phsis48

    [natureza - entes naturais]

    Outro ponto importante que vale ser destacado sobre como Aristteles define as tkhnai,

    a relao simtrica entre estas, como domnio dos conhecimentos e atividades humanos, e o

    domnio do conhecimento e atividade da phsis [natureza], que serve como paradigma para a

    primeira.49

    Esta simbitica relao pode ser verificada na leitura da to citada frase do filsofo

    grego: he tkhn mimetai tn phsin, isto , [arte [tkhne] imita [mimetai] a natureza

    [phsis]] (Fsica II, 194a) 50

    , nesta breve sentena, identifica-se os termos desta relao; ou

    seja, o entendimento de tkhne, em Aristteles, est intimamente conectado com o conceito de

    phsis51

    . Relao que define e fundamenta o conceito de tkhne [arte] como imitao, outra

    definio que central no pensamento do estagirita.

    No entanto, a definio de arte como imitao da natureza no pode ser pensada como

    mera cpia servil, pois a relao entre arte e natureza que se pode fazer a partir da leitura de

    Aristteles prope a ideia da natureza como paradigma da tcnica, ou seja, prope uma

    correlao e um paralelismo entre tkhne e phsis, que culmina no entendimento de que as

    tkhnai, por vezes, completam a natureza, fazendo aquilo que ela (a natureza) no faz. Outro

    ponto importante que esse binmio tkhnai-phsis traz a ideia de e que as coisas fabricadas

    48

    Phsis, no contexto da frase, deve ser entendida como natureza como os entes naturais e no

    necessariamente como a natureza no sentido de me natureza. Como explica Lucas Angioni: Ao leitor

    contemporneo talvez seja estranho o uso que Aristteles faz do termo "natureza" ("physis"). preciso delimitar

    sob qual sentido, precisamente, tal termo designa o objeto de interesse do livro II da Fsica. Em Metafsica V 4,

    Aristteles distingue vrios sentidos de "physis": (i) "physis" no sentido de processo, pelo qual algo nasce

    (1014b 16-8; c f 193b 12-3); (ii) "physis" como princpio "de onde se d o movimento primeiro em cada ente

    natural em si mesmo, enquanto ele ele mesmo" (1014b 18-20; cf 192b 20-3); ( iii) "physis" no sentido de coisa

    ou substncia a que atribumos propriedades (1015' 11 -3; c f 193" 32-3) e, de modo mais geral, realidade

    subjacente ao discurso (cf. Metafsica 1003a 27; l053b 13; As partes dos animais 639a 10). raro, no

    vocabulrio aristotlico, o sentido de "natureza" que, para ns, o mais corriqueiro: a "me-natureza", o

    conjunto de todos os seres naturais, o ambiente terrestre em seu todo, enquanto conjunto de seres naturais.

    (ANGIONI, Lucas. Comentrios In: ARISTTELES. Fsica I II. Prefcio, traduo e comentrios de Lucas

    Angioni. Campinas: Ed. Unicamp, 2009, p.195) Tambm cf. Em: PELLEGRIN, Pierre, Vocabulrio de

    Aristteles, Trad. Claudia Berliner. So Paulo: Ed. Martins Fontes. 2010, p. 46-47. e PETERS, F.E., Termos

    filosficos gregos- um lxico histrico. Trad. Beatriz Rodriguez Barbosa. Lisboa: Fundao Calouste Gulbekian.

    1977, p. 189-190.

    49

    Esta passagem, que inicia o Livro II da Fsica bastante exclarecedora sobre como Aristteles entende os

    entes naturais e a relao da tcnica com eles: Cf. BITTAR, Eduardo C.B. Curso de Filosofia Aristotlica

    leitura e interpretao do pensamento aristotlico. Barueri: Ed. Manole, 2003, p. 382-385.

    50

    Em grego transliterado: he tkhn mimetai tn phsin (ARISTTELES, Fsica II, 2, 194 a) As problemticas

    concernentes s definies de mmesis sero abordadas no captulo III desta dissertao.

    51

    GORBRY, Ivan. Vocabulrio Grego de Filosofia. Trad. Ivone C. Benedetti. So Paulo: Martins Fontes. 2007,

    p.119.

  • 32

    pela tkhne tm mecanismos anlogos s coisas fabricadas pela natureza52

    . Nas palavras de

    Aristteles:

    Em geral, a tcnica perfaz certas coisas que a natureza incapaz de elaborar

    e a imita. Assim, se as coisas que so conforme a tcnica so em vista de

    algo, evidentemente tambm o so as coisas conforme a natureza, pois os

    itens posteriores e os itens anteriores comportam-se entre si de maneira

    semelhante nas coisas que resultam da tcnica e nas coisas que resultam da

    natureza. (Fsica II, 199a 8- 20) 53

    E assim como o estagirita, Pareyson faz uma correlao entre os entes naturais e as

    obras de arte, esse paralelismo se configura como a base da noo de forma como

    organismo que o filsofo de Turim cunha. Nas palavras dele: Como as coisas da natureza,

    assim tambm as obras de arte possuem o trao de serem puras existncias, que se do

    inteiramente em sua presena fsica. [...] 54

    .

    Tanto o destaque que Pareyson faz da relao arte-natureza, como as diferenas e

    similaridades para com a relao que Aristteles faz entre tkhne e phsis so aspectos

    fundamentais para entender o raciocnio sobre a ontologia e da autonomia da obra de arte no

    pensamento do filsofo italiano, que, por sua vez, um dos pilares do conceito de arte como

    forma.

    Essa questo acerca do conceito de forma como organismo, a partir do estudo da

    filosofia aristotlica, ser amplamente estudada no captulo II desta dissertao. Pois, embora

    este tambm possa ser considerado um ponto de interseco entre os pensamentos de

    Aristteles e Pareyson, a maneira como Pareyson toma os conceitos aristotlicos ultrapassa

    52

    Ver mais nos comentrios de Angioni In: ARISTTELES. Fsica I II. Prefcio, traduo e comentrios de

    Lucas Angioni. Campinas: Ed. Unicamp, 2009, p. 214-215.

    53

    ARISTTELES. Fsica I II. Prefcio, traduo e comentrios de Lucas Angioni. Campinas: Ed. Unicamp,

    2009, p.58. . ,

    . ,

    .

    54

    PAREYSON, Luigi. Esttica: Teoria da Formatividade.Traduo de Ephraim Ferreira Alves Petrpolis, RJ:

    Vozes, 1993, p.117. Come le cose della natura, cos le opere dell'arte hanno il carattere d'esser pure esistenze,

    che si danno interamente nella loro presenza fisica[...] (Idem. Estetica: Teoria della Formitivit. Bolonha:

    Editore Zanichelli. 2 Edizione, 1960, p.100.)

  • 33

    o sentido de dilogo e de interpretao, se configurando mesmo como uma apropriao que

    Pareyson fez de certos pontos da filosofia aristotlica, para assim construir uma das chaves

    fundamentais e centrais da sua Teoria da Formatividade, isto , o conceito de forma.

    Outro ponto apenas esboado aqui, ou seja, as problemticas concernentes em torno

    das noes Platnica e Aristotlica de mmesis tambm sero esmiuadas mais adiante, no

    captulo III desta dissertao. Pois, tambm, embora sejam interseces entre Plato,

    Aristteles e Pareyson, as possibilidades de abordagem deste assunto prescindem ainda das

    definies de forma e formatividade pareysonianas, que sero assunto do captulo II.

    1.7. Poesis como produo

    Poesis outra palavra que no corresponde nem ao ars latino, muito menos aos

    muitos significados de arte empregados hoje. Algumas sutis, porm esclarecedoras diferenas

    valem ser ressaltadas.

    Tanto em Plato como em Aristteles, poesis pode ser entendida como sinnimo de

    criao; fabricao, confeco, fazer, produo, isto , a ao de produzir alguma coisa.

    Contudo, ambos os filsofos tambm utilizam a palavra poesis para se referir poesia no

    sentido estrito do termo. Essa acepo corresponde a um dos sentidos de poesia que se usa

    ainda hoje, i.e., poesia como a poesia mesma, e.g., a poesia de Homero, podendo ser escrita,

    falada, cantada.

    J o termo utilizado por eles no sentido lato, difere consideravelmente do entendimento

    de poesia que muitas vezes se l em textos atuais, i.e., o sentido de potico como artstico,

    ligado s noes de sensibilidade e de expressividade. Pois, no caso de Plato e at mesmo em

    Aristteles, poesis mais utilizada no sentido de produzir mesmo, o de produzir qualquer

    coisa, no necessariamente uma obra artstica, ou potica (poesia mesma), e principalmente,

    sem o carter de expressividade subjetiva que por vezes o termo carrega atualmente.

  • 34

    Todavia, a ideia de poesis na acepo lata do termo que os gregos usualmente

    utilizavam, isto , o sentido de produo, essa acepo que interessa aqui no momento,

    como nessa passagem de Aristteles:

    [1140a 6] Dado que a arte de edificar certa tcnica e, precisamente, certa

    habilitao [hexis] racional para produzir, e dado que no h tcnica alguma

    que no seja habilitao [hexis] racional para produzir, e no h nenhuma

    habilitao [hexis] desse tipo que no seja tcnica, equivalem ao mesma

    tcnica e habilitao [hexis] para produzir por raciocnio verdadeiro.

    [1140a10] Toda tcnica diz respeito ao vir a ser, isto , a empreender e

    examinar como se engendra algo que pode ser e no ser e cujo princpio

    reside no produtor, no na coisa produzida [...] (tica a Nicmaco, 1140a 6-

    10) 55

    Entendam-se aqui as palavras tcnica e arte como traduo de tkhne e produzir como

    traduo de poesis. Pois, parecer ser, claramente, essa a definio de poesis, anloga ao

    sentido de tkhne, que foi retomada por Pareyson na base da Teoria da Formatividade, como

    fica explcito nesse trecho de seu livro homnimo: Ocioso seria insistir no evidente aspecto

    realizativo, executivo e poitico da formatividade: formar significa, antes de mais nada,

    fazer, poien em grego.56

    55

    Traduo de Lucas Angioni. In: tica Nicomaco, livro VI, In: Dissertatio n34 - Revista de filosofia

    (Universidade Estadual de Campinas/CNPq), Campinas: 2011.

    , ,

    , [10] .

    ,

    : .

    Outra traduo do trecho acima, disponvel em portugus: Ora, como a arquitetura uma arte, sendo

    essencialmente uma capacidade raciocinada de produzir, e nem existe arte alguma que no seja uma

    capacidade desta espcie, nem capacidade desta espcie que no seja uma arte, segue-se que a arte idntica a

    uma capacidade de produzir que envolve o reto raciocnio. (ARISTTELES. tica a Nicmaco. Traduo de

    Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da verso inglesa de W. D. Ross. In: ______. Os Pensadores IV- 1. Ed. So

    Paulo: Ed. Abril Cultural, 1973. p.343.)

    56

    PAREYSON, L. Esttica: Teoria da Formatividade.Traduo de Ephraim Ferreira Alves Petrpolis, RJ:

    Vozes, 1993, p.59. Inutile insistire sullevidente aspetto realizativo, esecutivo e potico della formativit:

    formare significa, anziutto, fare, poin. (Idem. Estetica: Teoria della Formitivit. Bolonha: Editore

    Zanichelli. 2 Edizione, 1960. p.43.)

  • 35

    1.8. Tkhne poietiks

    Na Metafsica, Aristteles divide as cincias [epistme] 57

    em trs grupos: pratike

    (prxis), poietike (tkhne poietike) e theoretike (theoria) 58

    , e o grupo que diz respeito s artes

    o das cincias produtivas ou artes poticas [tkhnai poietiks]. 59

    Pensadas como sinnimos em algumas passagens do filsofo estagirita, e traduzidas

    como tal por alguns especialistas; a relao entre tkhne e poesis em Aristteles

    fundamental para a demarcao e entendimento da sutil, porm fundamental, distino entre a

    produo de uma obra e o saber que envolve este fazer produtivo e que possibilita a realizao

    da obra em si. A relao do saber-fazer com o fazer produtivo uma das chaves para entender

    como Aristteles pensava a atividade artstica, uma atividade que inclui um saber necessrio

    para a possibilidade de um fazer produtivo.

    Partindo do conceito duplo de tkhne poietiks cunhado por Aristteles60

    , Pareyson vai

    ainda mais longe para explicar a relao intrnseca entre o saber e o produzir da obra de arte;

    isto , ele traz tona que o saber-fazer da arte adquirido no momento do fazer propriamente

    57

    Aristteles emprega com frequncia, como os outros filsofos e cientistas gregos, os termos epistme e tkhne

    (arte) como sinnimos. Contudo, a cincia no tem como finalidade a produo, exceto as cincias

    poticas. A cincia tambm se distingue da percepo e da experincia, na medida em que se move na esfera

    do universal. (Verbete: CINCIA - epistme) (PELLEGRIN, Pierre. Vocabulrio de Aristteles, Trad. Claudia

    Berliner. So Paulo: Ed. Martins Fontes. 2010, p.21-23.)

    58Aristteles distingue trs tipos de c