exu- orixa

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E– ORIXÁ Os primeiros europeus que tiveram contato na África com o culto do orixá Exú dos iorubás, venerado pelos fons como o vodum Legba ou Elegbara, atribuíram a essa divindade uma dupla identidade: a do deus fálico greco-romano Príapo e a do diabo dos judeus e cristãos. A primeira por causa dos altares, representações materiais e símbolos fálicos do orixá; a segunda em razão de suas atribuições específicas no panteão dos orixás e voduns e suas qualificações morais narradas pela mitologia, que o mostra como um orixá que contraria as regras mais gerais de conduta aceitas socialmente. Atribuições e caráter que os recém-chegados cristãos não podiam conceber, enxergar sem o viés etnocêntrico e muito menos aceitar. Nas palavras de Pierre Verger, Exú "tem um caráter suscetível, violento, irascível, astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente", de modo que "os primeiros missionários, espantados com tal conjunto, assimilaram-no ao Diabo e fizeram dele o símbolo de tudo o que é maldade, perversidade, abjeção e ódio, em oposição à bondade, pureza, elevação e amor de Deus". Assim, os escritos de viajantes, missionários e outros observadores que estiveram em território Fom ou Iorubá entre os séculos XVIII e XIX, todos eles de cultura cristã, quando

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Sobre o Orixá

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EX ORIX Os primeiros europeus que tiveram contato na frica com o culto do orix Ex dosiorubs, venerado pelos fons como o vodum Legba ou Elegbara, atriburam a essa divindadeumaduplaidentidade:adodeusflicogreco-romanorapoeadodiabodos!udeusecrist"os# $ primeira por causa dos altares, representa%&es materiais e smbolos flicos doorix' a segunda em ra("o de suas atribui%&es especficas no pante"o dos orixs e voduns esuas qualifica%&es morais narradas pela mitologia, que omostra comoumorix quecontrariaas regras mais gerais de conduta aceitas socialmente# $tribui%&es e carter que osrec)m-c*egados crist"os n"o podiam conceber, enxergar sem o vi)s etnoc+ntrico e muitomenosaceitar#,aspalavrasdeierre-erger, Ex.temumcartersuscetvel, violento,irascvel, astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente., de modo que .os primeiros missionrios,espantados com tal con!unto, assimilaram-no ao /iabo e fi(eram dele o smbolo de tudo oque ) maldade, perversidade, ab!e%"o e 0dio, em oposi%"o 1 bondade, pure(a, eleva%"o eamor de /eus.#$ssim, os escritos de via!antes, missionrios e outros observadores que estiveram emterrit0rio 2om ou 3orub entre os s)culos 4-333 e 434, todos eles de cultura crist", quandon"ocrist"os deprofiss"o, descreveramExsempreressaltandoaqueles aspectos queomostravam, aos ol*os ocidentais, como entidade destacadamente Exali(ada e demonaca#5mdos primeiros escritos que se referema Legba, sen"o o primeiro, ) devido aommegorge, do qual se publicou em 6789 um relato de viagem informando que .a umquarto de l)gua do forte os daomeanos * um deus rapo, feito grosseiramente de terra,com seu principal atributo :o falo;, que ) enorme e exagerado em rela%"o 1 propor%"o doresto do corpo.# /e 68 preciso gerar muitos fil*os, de modo que, nessas culturas antigas, o sexo tem umsentido social que envolve a pr0pria id)ia de garantia da sobreviv+ncia coletiva eperpetua%"odaslin*agens, cl"secidades# Ex)opatronodac0pula, quegerafil*osegarante a continuidade do povo e a eternidade do *omem# ,en*um *omem ou mul*er podese sentir reali(ado e feli( sem uma numerosa prole, e a atividade sExal ) decisiva para isso#>darela%"ontimacomareprodu%"oeasExalidade, t"oexplicitadaspelossmbolosflicosqueorepresentam, quedecorreaconstru%"omticadog+niolibidinoso, lascivo,carnal e desregrado de Ex-Elegbara#3sso tudo contribuiu enormemente para modelar sua imagem estereotipada de orixdifcileperigosoqueoscrist"osrecon*eceramcomodemonaca# Juandoareligi"odosorixs, originalmente politesta, veio a ser praticada no Arasil do s)culo 434 por negros queeram ao mesmo tempo cat0licos, todo o sistema crist"o de pensar o mundo em termos dobem e do mal deu um novo formato 1 religi"o africana, no qual um novo papel esperava porEx#Osincretismon"o), comose pensa, uma simplestbua de correspond+ncia entre orixs e santoscat0licos, assimcomo n"o representava o simplesdisfarce cat0lico que os negros davam ao seus orixspara poder cultu-los livres da intransig+ncia dosen*or branco, como de modo simplista se ensina nasescolas at) *o!e# O sincretismo representa a captura dareligi"o dos orixs dentro de um modelo quepressup&e, antes demais nada, aexist+nciadedoisp0los antagInicos que presidem todas as a%&es*umanas: obemeomal' deumladoavirtude, dooutro o pecado# Essa concep%"o, que ) !udaico-crist",n"o existia na frica# $s rela%&es entre os seres*umanos e os deuses, como ocorre em outras antigasreligi&es politestas, eramorientadas pelos preceitossacrificiais e pelo tabu, e cada orix tin*a suas normasprescritivaserestritivaspr0priasaplicveisaosseusdevotos particulares, como ainda se observa nocandombl), n"o *avendo um c0digo decomportamentoevalores nicoaplicvel atodaasociedadeindistintamente, comonocristianismo, uma lei nica que ) a c*ave para o estabelecimento universal de um sistemaque tudo classifica como sendo do bem ou do mal, em categorias mutuamente exclusivas#,o catolicismo, o sacrifcio foi substitudo pela ora%"o e o tabu, pelo pecado, regradopor um c0digo de )tica universali(ado que opera o tempo todo com as no%&es de bem e malcomo dois campos em luta: o de deus, que os cat0licos louvam nas tr+s pessoas do ai, 2il*oe Esprito Canto, que ) o lado do bem, e o do mal, que ) o lado do diabo em suas mltiplasmanifesta%&es# $baixo de deus est"o os an!os e os santos, santos que s"o *umanos mortosque em vida abra%aram as virtudes cat0licas, 1s ve(es por elas morrendo#O lado do bem, digamos, foi assim preenc*ido pelos orixs, exceto Ex, gan*andoOxal, o orix criador da *umanidade, o papel de =esus Gristo, o deus 2il*o, mantendo-seOxal no topo da *ierarquia, posi%"o que ! ocupava na frica, donde seu nome Orixal ouOrix ,l, que significa o Mrande Orix# O remoto e inatingvel deus supremo Olorum dosiorubsa!ustou-se1concep%"ododeus ai !udaico-crist"o, enquantoos demais orixsgan*aram a identidade de santos# Eas ao vestirem a camisa de for%a de um modelo quepressup&eas virtudescat0licas,os orixs sincreti(ados perderammuito de seusatributosoriginais, especialmente aqueles que, como no caso da sExalidade entendida como fonte depecado, podemferirocampodobem, comoexplicouEonique $ugras, aomostrarquemuitas caractersticas africanas das Mrandes E"es, inclusive 3eman! e Oxum, foramatenuadas ou apagadas no culto brasileiro dessas deusas e passaram a compor a imagempecaminosa de ombagira, o Ex femini(ado do Arasil, no outro p0lo do modelo, em queEx reina como o sen*or do mal#2oi sem dvida o processo de cristiani(a%"o de Oxal e outros orixs que empurrouExpara odomniodoinfernocat0lico, comoumcontrapontorequeridopelomoldesincr)tico# ois, aosea!ustarareligi"odosorixsaomodelodareligi"ocrist", faltavaevidentemente preenc*er o lado satHnico do esquema deus-diabo, bem-mal, salva%"o-perdi%"o, c)u-inferno, e quem mel*or que Ex para o papel do demInioN Cua fama ! n"oera das mel*ores e mesmo entre os seguidores dos orixs sua nature(a, que n"o se a!usta aosmodelos comuns deconduta, eseucarter n"oacomodado, autInomoeembusteiro!fa(iam dele um ser contraventor, desviante e marginal, como o diabo# $ prop0sito do cultode Ex na Aa*ia do final do s)culo 434, o m)dico Daimundo ,ina Dodrigues, professor da2aculdadedeEedicinadaAa*iaepioneirodos estudos afro-brasileiros, escreveu em69OO as seguintes palavras:PEx,Aar ou Elegbar ) um santo ouorix que os afro-baianos t+m grandetend+ncia a confundir comodiabo# @en*oouvido mesmo de negrosafricanos que todosos santos podem se servir de Ex para mandartentar ouperseguir aumapessoa# Emumapelomotivomaisftil, n"o)raroentren0souvir-segritarpelosmaisprudentes: 2ulanool*aExQrecisamentecomodiriamvel*asbeatas: Ol*a a tenta%"o do demInioQ ,oentanto, sou levado a crer que estaidentifica%"o ) apenas o produto de umainflu+ncia do ensinocat0licoR#@ransfiguradonodiabo, Extevequepassar por algumas mudan%as para se adequarao contexto cultural brasileiro*egemonicamente cat0lico# $ssim, num meioem que as conota%&es de ordem sExal eramfortementereprimidas, oladopripicodeExfoimuitodissimuladoeemgrandeparteesquecido# Cuasimagens brasileirasperderamoesplendor flicodoexplcitoElegbara,disfar%ando-se tanto quanto possvel seus smbolos sExais, pois mesmo sendotransformado em diabo, era ent"o um diabo de crist"os, o que impIs uma inegvel pudicciaque Ex n"o con*ecera antes# Em troca gan*ou c*ifres, rabo e at) mesmo os p)s de bodepr0prios de demInios antigos e medievais dos cat0licos#Gom o avan%o das concep%&es crist"s sobre a religi"o dos orixs, ao qual vieram se!untar no final do s)culo 434as influ+ncias do espiritismo Sardecista, que tamb)mabsorvera orienta%&es,vis&es e valores )ticos crist"os,Ex foi cada ve( mais empurradopara o lado do mal, cada ve( mais obrigado, pelos seus pr0prios seguidores sincr)ticos, adesempen*ar o papel do demInio#O preceito segundo o qual Ex sempre recebe oferenda antes das demais divindadesserem propiciadas, e que nada mais representa que o pagamento adiantado que Ex devegan*ar para levar as oferendas aos outros deuses, acabousendobastante desvirtuado#assou-se a acreditar que as oferendas e *omenagens preliminares a Ex devem ser feitasparaqueelesimplesmenten"otumultueouatrapal*eascerimIniasreali(adasaseguir#Mrande parte dos devotos dos orixs pensam e agem como se Ex devesse assim ser evitadoeafastado, momentaneamentedistradocomas*omenagens, neutrali(adocomoodiabocom que agora ) confundido# Ceu culto transformou-se assim num culto de evita%"o# 3stopodeser observado*o!eemqualquer partedoArasil, namaior partedos terreiros decandombl) e umbanda, e tamb)m na frica e em Guba# 2a(-se a oferenda n"o para que Excumpra sua miss"o de levar aos orixs as oferendas e pedidos dos *umanos e tra(er de voltaasrespostas, massimplesmenteparaqueelen"oimpe%apormeiodesuasartiman*as,brincadeiras e ardis a reali(a%"o de todo o culto# Ex ) pago para n"o atrapal*ar,transformou-se num empecil*o, num estorvo, num embara%o# Gomo se n"o bastasse, ) tidocomo aquele que se vende por um prato de farofa e um copo de aguardente#> evidente que em certos terreiros da religi"o dos orixs, sobretudo em uns poucoscandombl)s antigos mais pr0ximos das ra(es culturais africanas, cultiva-se uma imagem deEx calcada em seu papel de orix mensageiro dos deuses, cu!as atribui%&es n"o s"o muitodiferentes daquelas tra(idas da frica# ,esse meiorestrito, sua figura continua sendocontradit0ria e problemtica, mas ) discreta sua liga%"o sincr)tica com o diabo cat0lico# Omesmo n"o ocorre quando ol*amos para a imagemde Ex cultivada por religi&esoponentes,imagem que)largamente inspirada nos pr0prioscultosafro-brasileiros equedescrevem Ex como entidade essencialmente do mal# $ imagem de Ex consolidada poressasreligi&es, especialmenteasevang)licas, queusamfartamenteordioeatelevis"ocomo meios de propaganda religiosa, extravasa para os mais diferentes campos religiosos eprofanos da cultura brasileira e fa( dele o diabo brasileiro por excel+ncia#$ imagemdeEx, o/iabo, )fartamenteexploradapelasreligi&esquedisputamseguidores com a umbanda e o candombl) no c*amado mercado religioso, especialmente asigre!as neopentecostais# Gomo mostrouDicardo Eariano, o neopentecostalismo caracteri(a-se por .enxergar a presen%a e a%"o do diabo em todo lugar e em qualquer coisa e at) invocaramanifesta%"odedemIniosnoscultos.para*umil*-loseosexorci(ar, demIniosaosquaisosevang)licosatribuemtodososmalesqueafligemaspessoasequeidentificamcomosendo, especialmente, entidadesdaumbanda, deusesdocandombl)eespritosdoSardecismo, ocupandoosExsepombagirasumlugardedestaquenopalcoemqueospastores exorcistas fa(em desfilar o diabo em suas mltiplas vers&es# Em ritos de exorcismotelevisivosda3gre!a5niversal doDeinode/eus, querepresenta*o!eomaisradical eagressivo oponente crist"o das religi&es afro-brasileiras, Exs e pombagiras s"o mostradosno corpo possudo de novos conversos sados da umbanda e do candombl), com a exibi%"odeposturas egestosestereotipados aprendidospelosex-seguidoresnos pr0priosterreirosafro-brasileiros# @odos os males, inclusive o desemprego, a mis)ria, a crise familiar, entreoutras afli%&es que atingem os cotidianos das pessoas, sobretudo os pobres, s"oconsiderados pelos neopentecostais como tendo origem no diabo, identificadopreferencialmentecomas entidades afro-brasileiras, conformetamb)mmostraDonaldo$lmeida#O desemprego, por exemplo,ao inv)s de ser considerado como decorrente dasin!usti%as sociais e problemas da estrutura da sociedade, como explicariam os cat0licos dascomunidades eclesiais de base, ) visto pela 3gre!a 5niversal como resultante da possess"odealgumaentidadecomoEx@rancaDuaouExCeteEncru(il*adas# ,estecaso, oexorcismo deve expulsar o Ex que provoca o desemprego#Os evang)licos se valem ritualmente do transe de incorpora%"o afro-brasileiro paratra(er 1 cena as entidades que eles identificam como demonacas e se prop&em a expulsaremritos que c*amamde liberta%"o# Eari(a Coares identifica outro paralelo muitoexpressivo entre o rito umbandista do transe e o rito exorcista pentecostal# /i( ela: .$ sexta-feira ) con*ecida na umbanda como o dia das giras de Ex que se d"o geralmente 1 noite# $meia-noite, K*ora grandeK de sexta para sbado ) o momento em que os Exs se manifestametrabal*am# >!ustamentenestamesma*oraquenasigre!asPevang)licasRest"osendoreali(adas as cerimInias onde esses Exs s"o invocados para, em seguida, serem expulsosdos corpos das pessoas presentes.#$o descrever um ritual exorcista presenciado em um templo da 3gre!a 5niversal nobairro de Canta Geclia, no centro de C"o aulo, em que se expulsava uma entidade que foiincorporada atrav)s do transe e que se identificou como Ex @ranca Dua, Eariano registrouosversos do cHntico ent"oentoado freneticamentepelos fi)is: .@ranca Duae ombagirafi(eramcombina%"oTcombinaram acabarcomavida docrist"oTtorce,retorce,voc+ n"opode n"oT eu ten*o =esus Gristo dentro do meu cora%"o.# Eles acreditam que * um pactofirmadoentreas entidades demonacas paraseapossar dos *omens eos destruir peladoen%a, pelo infortnio, pela morte# > o que representa Ex para os neopentecostais, masessa imagem est longe de estar confinada 1s suas igre!as#Entreosseguidoresdocatolicismo, avel*aanimosidadecontraasreligi&esafro-brasileiras, que parecia arrefecida desde a d)cada de 69UO, quando a igre!a cat0lica deixoude lado a propaganda contra a umbanda, que c*amava de .baixo espiritismo., reavivou-secom a Denova%"o Garismtica# Eovimento conservador que divide com o pentecostalismomuitascaractersticas, inclusiveaintransig+nciaparacomoutrasreligi&es, ocatolicismocarismticovoltouabaternatecladequeasdivindadeseentidadesafro-brasileirasn"opassam de manifesta%&es do diabo, que se apresenta a todos, sem disfarce, nas figuras deExs e pombagiras# Est de volta a vel*a persegui%"o cat0lica aos cultos afro-brasileiros,agora sem contar com o bra%o armado do estado, cu!a polcia, pelo menos at) o incio dad)cada de 69