yvone maggie guerra orixa

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  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    1/90

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

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    Cop yright 2001, Yvonne Maggie

    Todos os direitos reservados.

    A reproduo no-autorizada desta publicao, no todo

    ou em parte, consti tui violao de direitos autora is. (Lei 9.610/98)

    2001

    Direitos para esta ed io contratados com:

    Jorge Zahar Editor Ltda .

    rua

    Mxico

    31

    sobreloja

    20031-144 Rio de Janeiro, RJ

    te .: (2 1) 2240-0226 /

    fax:

    (21) 2262-5123

    e-mail: [email protected]

    site: www.zahar.com.br

    Capa: Srgio Campante

    CIP-Brasil. Catalogao-na- fonte

    Sindicato Nacional dos Editores de Liv ros, RJ.

    Ma

    gg

    te, Yvonne

    Ml 72g Guerra de Orix: um estudo de ritual c confiito

    I

    3.ed. Yvonne Maggi

    e.

    - 3.ed. - Rio de Janeiro: Jo rge

    Zahar Ed., 2001

    Inclui bibliografia.

    I

    SBN 85

    -7110-611-8

    - An t ropologiasocial)

    1. Brasil - Religio - Influnc ia africana. 2.

    Cultos afro-brasil ei ros- Es mdo de casos. 3. Sincre

    th mo ( Religio). 4. Etnografia.

    I.

    Ttulo. II. Srie.

    coo

    306.60981)

    III 1

    1111

    CDU

    316.74:2(81)

    umrio

    1

    tl/r1t io

    3 ed i

    o . . . . . .

    . . . .

    . . . . .

    . . . . . . . . .. ..

    . . .

    . . . .

    . . . . . . .

    7

    l tl/rlrio

    1

    ed io . .

    .

    11

    111/t/lr/ll(fiO

    .

    . . . .

    . . . 13

    I

    i l( t l i

    iO 1-

    O

    T ERREIRO . . . ..... . . . . .. . .. .

    ......

    19

    I l jdtu l o - 0

    DRA

    MA..... . ....... . ..............

    43

    A loucura da me-

    de-santo

    . . . . . . . . . .. . .. . . . . . . .. . . . . . . . . 47

    A vo lta

    da

    me

    -d

    e-s

    anto

    . . . . . . . . . . . .

    .

    . . . . .

    ..

    . . . . . .

    .

    .. . . .

    . 52

    A

    de

    manda de Aparecida

    . .

    . . .

    . . . . . . . . . . . .

    . . . . .

    . . . . . . . . . . 55

    duas ordens.. . . . . . . . . . .

    ..

    .

    . . . . . .

    ..

    . . .

    .

    . . .

    . . . . . . . . . . . 59

    A vlnda de ve

    lh

    a Leda

    . . . . . .

    . . . . ..

    . . . . . . . . . . . .

    . . . . . . . . . . .

    63

    A

    pmva

    de fogo

    ou uma guerra

    de orix

    . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 67

    1

    l 1 istn a . . . . .

    . . . . . . ..

    .

    ..

    70

    I ) drama: anlise . . . . .

    . . .

    . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . .. 77

    I tl tdo II I - Q

    UAT

    RO PERSONAGENS

    DO

    D

    RAMA

    .....

    .... ...

    83

    ~ l i l

    o

    pr

    es

    ident

    e

    . . . . . . . . . . . .

    ..

    . . . .

    . . . . . . . .. .. . . . . .

    . . .

    85

    MMina: a prim ei

    ra

    m

    e-peq

    u

    ena . . . . . .

    . . . . . . . . .. . .

    . . . . . ..

    93

    I d

    1'0:

    o

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    de

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    .

    . . . . .

    . .

    . . .

    ..

    . .

    . 96

    fl lli:t:asegunda me- p

    eque

    na

    . . . . . . . .

    . . . . . . . . . . . . . . .. . . 100

    A11.1lisc:

    o

    cd

    igo do

    sa

    n to e o cd i

    go

    burocrti

    co

    . .

    . . .

    . . . . . 103

    I

    lj

    l( l

    li

    iO IV RITUAL ECONFLITO: ANLISE SIMB LICA .... ... 111

    1 /tt .\cJcs . . . .

    .

    . .

    .

    1

    29

    Nll/rl\ . .

    .

    .

    135

    t ,f,,lll t o . . . ..

    . . . . . . . . . . . .

    .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    140

    l t

    /r t

    bibliogrficas

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    155

    / , /rkio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . .. .

    . .

    15 7

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    3/90

    Prefcio 3 edio

    lttli ,, an

    os

    de

    pois de

    ter escrito

    Guerra de orix

    um

    estudo de

    111111/ r1

    ouj

    lito c

    om

    o qual

    me

    iniciei como

    antroploga,

    pos

    so

    dizer

    I '

    lt

    t\

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    4/90

    Guerra de o rix

    me smo

    do su

    rgimento desta

    onda

    mais reflexiva sobre o papel e a

    au

    t

    or

    idade

    do

    antroplogo

    no

    campo,

    que

    influenciou o fazer

    da

    etn

    ogra

    fia a

    partir

    do final

    da

    dcada de 1980, aproximei-me de

    Ma

    x

    Gluckman e Victor Turner para falar de verses dos acontecimentos

    qu

    e se es

    truturam

    e,

    com um olhar muito

    crtico, percebi a

    import

    n

    cia de refletir sobre a presena e a posio

    do

    observador

    no drama

    e

    de

    seu papel no desenrolar

    da

    histria. Se t ivesse

    que

    escrever este

    livro hoje,

    no poderia

    deixar

    de

    lanar mo da anlise de evento e

    es

    trutura

    de Marshall Sahlins em

    Ilhas de histria

    para entender ain

    da

    mais a

    estrutura da conjuntura

    e desvendar as verses

    do grup

    o

    so

    bre o lugar do observadorneste

    drama

    .

    Atravs da noo

    de drama

    social" elaborada por Victor Turner,

    pude perceber a importncia dos acontecimentos que estavam se de

    senro

    lando

    sem perder de

    vista

    que

    tais transformaes e sucesses

    de

    conflitos

    eram

    percebidas

    dentro de um

    contexto ritual e

    interpr

    eta

    das

    luz

    de

    cdigos prprios. Victor

    Turner

    foi guia

    ne

    ste estudo e

    pude, anos

    mais tarde, retribuir o privilgio de suas lies proporcio

    nando

    a ele e a Edith Turner, sua esposa,

    uma

    visita a

    um

    dos

    terr

    eiros

    por mim

    estudados

    no

    Rio de Janeiro.

    Duas

    principais crticas foram levantadas e merecem ser discuti

    das por terem

    produzido

    respostas

    que

    busquei aprofundar em traba

    lhos posteriores.

    A

    primeira

    e mais recorrente

    se

    refere ao fato de

    ser

    um

    estudo

    de

    caso. Apenas

    um

    terreiro estudado, segundo os crticos,

    no pod

    e

    explicar a complexidade de uma religio.

    O

    caso estudado,

    um te

    rrei

    ro

    na

    Zo

    na

    Norte

    da

    cidade do Rio

    de

    Janeiro e sua brevssima hist

    ria, foi o palco

    por onde

    tentei desvendar as formas pelas quais o

    po

    der

    estrutura

    do nesta instituio religiosa. Estudei assim em

    um

    terr eiro e

    no

    o terreiro e segui trilhas que

    foram

    abertas

    por

    trs dos

    ma is importantes estudiosos do tema e que mais marcaram minha

    trajet

    ria

    neste

    campo de estudo

    :

    Nina

    Rodrigues

    em O nimis

    mo

    J t chista dos negros baianos Nunes

    Pereira

    em A casa das

    min s e Ruth

    Lnndcs cm

    A cidade das mulheres.

    Estes trabalhos foram

    to impor-

    ~ s

    pnra a

    minha

    compreenso destas religies e do

    prprio

    fazer

    dnu n t1 'opn l

    og

    ia que decidi,

    muito

    tempo antes de encontrar o terrei

    IO 1111 qtt:d pes

    qu

    isaria ,

    que

    faria

    um

    estudo deste tipo. De

    toda

    a

    llt tn

    1

    111

    '

    11

    sob re o L

    ma

    estes trs livros so os

    que

    at hoje

    no

    perde-

    11

    11l

    sun

    i l l ~

    l X plic

    at

    iv

    a.

    A razo desta fo r

    a

    est, a meu ver,

    no

    fato

    dt

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    5/90

    10

    Guerra de

    or

    ix

    lhidos, vivenciei a tenso entre ter estudo e ser bom no santo", c

    tambm entre ser

    um

    bom pai-de-santo e ser um

    estud

    ante, inde

    pe

    ndentemente de

    ser

    negro

    ou

    branco.

    Hoje meu esforo se volta

    para a pes

    qu i

    sa sobre educao e relaes raciais.

    Guerra de orix foi portanto um livro de estria, mas constituiu

    se tambm em um plano

    de

    vo da minha vida profissional.

    Jorge Zahar, o

    grande editor

    brasile

    iro

    e

    amigo sa

    udoso, acredi

    tou

    e

    con

    fiou

    naquela

    iniciante, e devo a ele o

    priv

    ilgio da

    oportuni

    dade. Foi dele a coragem de lanar um trabalho que ia to contra a

    co

    rr

    ente

    da

    poca.

    R

    io

    de janeiro maio de 2 1

    Prefcio e i o

    lstc

    trabalho

    foi apresent

    ado

    como

    di

    sse

    rtao de mestrado no Pro

    grama de Ps -Graduao em Antropologia Social

    da

    Diviso de An

    tropo logia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio

    de

    Janeiro UFRJ). Teve como ponto de partida a leitura crtica da itera

    Jura sobre c

    ulto

    s afro-b rasileiros realizada no Brasil e

    na

    Universidade

    do

    Texas, Austin, Es

    tados

    Unidos. A

    partir

    da

    leit

    ur

    a e

    an

    lise desse

    lllOerial pude repensar alguns problemas que me levaram a procurar

    rcspostas atravs de

    um

    estudo de caso.

    O trabalho de campo foi realizado em um

    te

    rreiro de um banda

    lo

    calizado no

    bair

    ro do Andara RJ),

    no

    perodo compreendido entre

    Jnnho e setembro d e

    1972.

    Nesses quatro meses observei a vida

    des

    te

    tc:rreiro, desde sua inaugurao at s eu fechamento. De setembro a

    ou

    tubro

    de 1972 acompa

    nhei a trajetria do grupo

    que

    se

    dispersou

    depo is do seu fim.

    Quero agradecer ao Consel

    ho

    Nacional

    de

    Pesquisas atravs do

    qua l obtive bo lsa

    para

    freqentar os cursos

    do Programa de

    Ps -Gr

    a-

    11

    o

    em

    A

    ntro

    polog

    ia Social da Diviso

    de

    An tr

    opolog

    ia

    do

    Mu

    seu

    Nacional da UFRJ, assim

    como para

    realizar o trabalho de campo.

    Agradeo

    ainda

    Fundao

    Ford

    pela bo lsa

    que me permit

    iu

    q e n t r a Universidade do Texas. Como special student

    no

    Depar

    l,,rncnto

    de Antropo

    logia dessa universidade tive oportun

    idade

    de

    c

    qentar

    cursos e manter contatos

    co

    m professores e alunos, aper

    lt'ioando minha perspectiva terica. Agra deo a todos eles, especial

    lllCnte aos professores Richard N. Adams e Anthony Leeds.

    C

    omo

    professora

    do Departamento

    de Cincias Sociais do Insti

    tuto de Filoso fia e Cincias Sociais da UFRJ contei sempre com o apoio

    de meus colegas.

    11

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    6/90

    12

    Guerra

    de orix

    Agradeo aos professores, colegas e amigos do Programa de Ps

    Graduao

    em

    Antropologia Social

    do

    Museu Nacional da UFRJ. Enfa

    ti

    zo particularmente o apoio do prof. Roberto Cardoso de Oliveira

    antigo diretor do Programa, e de seu atual diretor, meu orientador dr

    tese, prof. Roberto DaMatta. A este devo muito

    em

    termos de um

    contnuo e saudvel estmulo intelectual.

    As

    crticas e sugestes da prof Francisca Schurig Vieira Keller

    t'

    do prof. Peter Fry, membros de minha banca, muito incentivaram :1

    continuidade de

    meu

    trabalho.

    Minha

    gratido falecida prof Marina So Paulo de Vasconcc l

    los.

    Minha

    profissionalizao mu ito deve a seu incentivo e apoio.

    Agradeo a meus irmos que, de vrias maneiras, me ajudaram

    a

    realizar este trabalho.

    Este livro no teria sido realizado sem a cooperao e disposio

    dos mdiuns e clientes

    da

    Tenda Esprita Caboclo Serra Negra de me

    prestar informaes. Gostaria de agradecer a cada

    um

    em particular t'

    desculpar-me pela imperfeio deste livro. Seus nomes foram manti

    dos

    em

    sigilo e os aqui citados so fictcio s.

    Agradeo de forma particular a Gilberto Vel

    ho

    pelo carinho

    t'

    amor com

    que

    me ajudou e

    acompanhou

    durante todas as fases deste

    trabalho .

    ntroduo

    m n j

    no

    ss

    a me

    E

    nosso pai

    Eu vim aqui pedir aJesus

    E

    Virgem Maria

    No ssa Senhora nossa me

    E Oxal

    nosso pai.

    Eu vim aqui pedir a Jesus

    E

    Virgem

    Maria.

    Estrela

    d Alva

    nossa

    guia

    Que nos alumeia neste

    dia

    Eu vim aqui pedir a Jesus

    E Virgem Maria.

    Ponto cantado* na abertura

    das sesses* de domingo

    '

    1udn in iciei minhas leituras sobre o que

    se

    convencionou chamar

    111 i j\l

    lks

    afro-brasileiras, fiquei impr essionadacom a continuidade

    11 11 1 11cia com que eram tratados certos temas. Estes quase

    no

    ' 111l desde o incio dos estudos sobre essas religies.

    Os

    proble-

    1 ' 1

    ~ ~ ~

    r p r e t a e s

    variavam pouco apesar da imensa

    bib

    liografia

    I I IIl

    i

    .

    As questes

    abordadas no mudavam

    devido s

    determ

    i-

    '' ' ideolgicas

    dos

    autores. Foi necess

    rio

    fazer uma crtica

    da

    I 11 j, 1f\lll subjacente s afirmaes dos estudiosos que se dedicaram

    , 1

    II

    IIHI para tentar fazer novas perguntas que levassem a respostas

    t

    V

    t'u1 prime ro lugar, as religies afro-brasileiras foram sempre vis-

    11 1 11110 um fenmeno de sincretismo religioso no

    qua

    l

    se

    encontra

    ' os africanos associados a traos catlicos. A esse sincretismo

    h 1

    d loi acrescentada a mistura de traos

    do

    espiritismo kardecista

    ttl

    ~ o s indgenas. O

    prprio nome

    genrico que foi escolhido

    1 d1 0min-las expressa essa viso de uma religio sincretizada.

    lt n , poi s tinham traos africanos. Brasileiras, pois apresentavam tra

    ' 11

    1lli

    cos,

    es

    pritas e indgenas.

    ( I Vt

    ll \

    hulos assinalados com asterisco con s

    tam

    do Glossrio.

    13

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    7/90

    14

    Guerra de orix

    Em segun

    do

    lugar, esses traos fo ram associados a

    um ma

    ior ou

    men

    or

    grau de desenvolvimento ou de evoluo cultural. Assim,

    traos de or igem africana fo ram colocados no vrtice mais baixo da

    evoluo cultural, seguidos dos traos indgenas e dos t raos

    t l i

    assi

    mi

    la

    do

    s de forma pr imitiva. No vrtice mais elevado dessa evolu

    o c

    ultur

    al colocavam -se os traos espr itas.

    De incio, por serem religies classificadas como pr im itivas, fel

    chistas e mgicas, elas estariam, fre

    nt

    e a outras religies, n

    um

    estgio

    in

    feri

    or da evoluo

    cu

    ltural. Os prime iros autores

    qu

    e p r

    ocur

    aram

    dar uma abordagem cientfica a esse tipo de estudo colocaram

    e s s ~

    pr

    imit

    ivismo associado ao fa to de serem religies de ne gros, trans

    plantadas para o Brasil

    na

    poca da escravid

    o

    . Send o seus

    memb

    ros

    negros, suas crenas deveriam ser

    cond

    izentes com o estgio primil i

    vo e

    po

    r

    que

    no inferior dessa raa.Mais

    ta

    rde , com o aprimora

    menta das abordagens cie

    nt

    ficas, o prim itivismo fo i associado

    :h

    camadas baixas da populao brasileira que, com forte conti ngcnll'

    negro,

    ad

    otavam essas religies por no terem ai

    nda

    alc

    anado es

    l6

    gios m ais alt

    os

    da evoluo

    cultur

    al, a civilizao': Mais recen

    tem

    cn

    te,

    um

    outro ti

    po de

    associao foi

    fe

    ito . Esses

    tr

    aos foram associadm

    a um a mai

    or ou

    men

    or

    adaptao ao meio de vida

    urb

    ano. Aparc

    d

    t

    ll t' II

    O

    i

    emocional e br anco. Esses cultos

    eram

    colocados,

    ain

    da,

    ''

    1

    1111 t

    odo no

    vrtice mais p

    rimiti

    vo

    em

    relao s religies civi

    l I o

    o

    i

    t\11 ns

    autores vo at a frica

    para

    verificar de que grupos esses

    1',''

    II' I' m pr

    ovindo. Muitas vezes, os

    mesmos

    autores

    remet

    e

    m

    ''''1 1 l l ~ t para

    nele enco

    nt

    rar a explicao ou o significado

    de

    1 '

    l1n

    os. Essa busca de origens ocorr

    e, na

    g

    rande

    maio ria das

    '

    t' lll

    detrime

    nt

    o da anlise das explicaes dos prpr ios seguid

    o

    ' 1

    1 ~ H I

    religio no Brasil.

    lluKl'l'

    Bastide,

    por

    exemplo, faz

    uma

    an

    lise exaustiva

    de

    uma

    oh

    lllo l

    1

    mtral

    encontrada

    nos terreiros nags

    na

    Bahia. Cita Frobe

    tdtl , hdn

    clo

    vodu haitiano e descreve os mitos iorubanos da frica.

    I

    d1111

    '

    II

    IC chega seguinte concluso:

    A

    a

    bund

    ncia dessas repre-

    1111\0ts do espao, em pedra, em madeira e em ferro, comp rova a

    mesmo se s fiis esqueceram o significado desse simbo-

    du criao. (Bastide, 1958, p.72. O gr ifo m

    eu

    .)

    t \ ~ R i l l 1

    se os fi is no Brasil esqueceram o significado dos smbo-

    1..

    11 tor busca

    na

    sua origem seu significado. Ser

    que

    os fiis se

    jl ll 'l trnm de seu significado?

    Ou

    tero

    outro

    significado a dar? O

    I''' 11\u ifica um signo cujo smbolo j foi esquecido? Talvez este signo r

    nluna

    ce

    nt ra l -

    em

    relao a

    outros

    tenha se t

    rans

    f

    orma

    do

    em

    111

    1Vn

    smbolo. Mas fica d

    if

    cil saber, pois o autor, aparentemente,

    o

    1 l 'l'gunta aos

    fi

    is

    por

    que existe aquela coluna hoje.

    I o estou com isso neg

    and

    o a

    import

    ncia que tiveram esses

    lu11 para a compreenso de tais religies. Es tou apenas tentando

    1111 11 III C

    diante

    de

    ssas

    abo

    rdagens, te

    ntando

    perceber os valores

    que

    t

    t

    \'

    por

    tr

    s desses estudos,

    ou

    melhor, suas determinaes

    idea

    l

    'I h

    O que me im pressi

    on o

    u na lei

    tura

    dessas o

    br

    as foi a

    continui-

    1

    o .

    d

    tssc

    ti

    po

    de perspectiva

    de

    sde Nina Rodrigues, em fins do

    ttlt

    oX

    X,

    at Cnd ido Procpio na dcada de 1960 (Rodrigues, 1935

    I'J 1'

    1;

    Ca

    margo,

    1961).

    2

    'ouhjaccntes a

    tal

    viso estavam

    contid

    os, de forma branda, os

    lo t11i pos e preconceitos que Ni

    na

    Rodrigues no tinha

    pruri

    dos

    Talvez seja

    po

    r isso

    que

    sua

    obra con

    t

    inua

    at hoje

    11oln o documento

    ma

    is importante sobre o assunto.

    I

    'hnmar essas religies de afro escondia um

    medo

    de cham -las

    1.

    to

    ll

    nics negras.

    As

    or igens afr icanas lhes davam

    um

    carter mais

    \

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    8/90

    _

    {

    Guerra de orix

    I impo e aristocrtico . A frica est longe os africanos so estran

    ge iros e isso lhes confere um outro

    status

    Nesse sentido, na obra de

    d

    ison

    a

    rneiro (Carneiro, 1948 e 1964), embora contendo esses

    mesmos pressupostos, mencionado o carter nacional dos cultos, a

    sua nacionalizao, o que uma perspectiva menos comprometida.

    Na medida em que esses autores buscavam a explicao dos tra-

    i os na sua origem, no conseguiram dar conta do prprio objeto que

    se

    propunham

    a analisar,

    ou

    seja, o fenmeno

    do

    sincretismo.

    Num

    primeiro momento, viam os rituais sendo compostos de traos, peda

    os, smbolos. No entanto, buscavam na frica a explicao desses

    pedaos. No perceberam que a relao entre essas partes que d

    sentido ao todo. Ass im, no importava saber qual o significado de

    exu* na frica. Importava verificar o significado que lhe era dado

    pelas pessoas que praticavam esses rituais no Brasil e qual a relao

    entre esse

    t rao-

    exu - e os demais.

    Mas havia ainda uma outra problemtica que preocupava os au

    tores, qual seja, o fato de essas religies

    terem surgido nos centros

    urbanos e suas ramificaes no meio rural serem muito menos ricas.

    Por que

    no me

    io urbano

    uma

    religio fetichista? Alguns autores res

    ponderam que, por serem os membros desses cultos de origem rural,

    estariam tentando recriar no meio urbano os laos prim rios nele

    perdidos. Mas, ainda assim, o problema no se resolvia e a podemos

    encontrar um dos tipos de contradio dessa perspectiva evolucionis

    ta e de busca de africanismos.

    Diante do que foi exposto quero dizer que no estou interessada

    no sincretismo, nem na origem dos traos, nem tampouco

    no

    primi

    tivismo ou fetichismo dessas religies. No estou tambm vendo-as

    como religies negras. No estou, por outro lado, preocupada em dar

    uma explicao para esse fenmeno to abrangente e com tantas

    diferenas. No pretendo esgotar o estudo das religies chamadas de

    afro-brasileiras , nem de s

    ua

    ramificao no Rio, a

    umband

    a

    ou

    ma

    cumba.

    Meu objetivo neste trabalho muito restrito. Fiz um estudo de

    caso de um terreiro*, ou se ja

    um

    local de culto. Neste estudo de caso,

    r

    minha preocupao bsica foi partir das informaes do universo

    pesquisado c tentar verificar como um grupo de pessoas vivia, numa

    poca deterrn inada, usan

    do

    determinados rituai

    s

    smbolos e costu

    mes. Num segundo mome nto, procurei interpretar o que estava sendo

    expresso atravs da hist

    ri

    a desse terreiro, de seus rituais e da exegese

    , ,dos membros do grup o. Ou seja, pretendia perceber a lgica que

    Introduo 17

    estava por trs desses rituais, dos smbolos e do discurso daqueles que

    os praticavam.

    Minhas concluses sero, portanto, limitadas ao universo pesqui

    sado. No estou com elas explicando todo o fenmeno da umbanda

    ou

    macumba no Rio de Janeiro. Mas, na medida em que este terreiro

    fazia parte de

    um

    universo maior de terreiros, minhas concluses

    talvez possam explicar terreiros que

    tenham

    uma equivalncia estru

    tural com o caso estudado.

    No primeiro captulo discuto algumas categorias-chave e descre

    vo o terreiro e seus principais rituais.

    No segundo captulo narro o drama ,

    ou

    a h

    is

    tria do terreiro,

    desde seu nascimento at sua morte. Procuro relatar no s os fatos

    ocorridos como tambm as verses deles apresentadas

    por

    cada

    membro do grupo.

    No terceiro captulo descrevo quatro histrias de vida e a posio

    desses personagens no drama, tentando atravs delas entender por

    que tiveram essa posio e qual o seu significado.

    O quar to captulo uma tentativa de anlise simblica de alguns

    aspectos do drama e de alguns rituais realizados. Aqui

    minha

    preocu

    pao foi tentar verificar os modelos expressos pelos m embros do

    grupo e quais as vises que, atravs desses modelos, tinham da socie

    dade mais ampla.

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    9/90

    C PTULO

    t rr iro

    Eu

    me perdi, meu pai

    Eu

    me perdi

    L

    na

    mata da furema eu me

    perdi.

    Fui

    procurar

    seu

    S

    erra Negra

    No

    ach

    ei e

    l na

    mata

    da Jurema

    Eu

    encontre

    i.

    Eu

    me perdi, meu pai

    Eu me perdi.

    Ponto cantado do caboclo Serra Negra,

    que deu nome ao terreiro

    Neste captulo pretendo fazer a etnografi a

    do

    terreiro Tenda Esprita

    Caboclo Serra Negra e um breve relato de sua histria, assim como

    descrever os principais rituais realizados e a

    compos

    io

    da

    clientela e

    dos mdiuns .

    Como parte dessa

    mesma

    etnografia,

    pretendo

    me l

    oca

    lizar como

    observadora

    e, de certa forma, como participante

    dos

    fa tos ocorridos

    no

    c

    urto perodo

    de vida des

    te

    t

    erreir

    o.

    importante

    frisar

    que

    minha

    percepo

    do

    objeto de pesquisa aguou-se

    no momento em que

    compreendi

    que a relao observador e observado tambm faz parte

    desse objeto de pesquisa. Isso se d no nvel de in terferncia do obser

    vador

    na vida

    do

    observado, e

    sem

    a conscincia deste fato

    muitos

    dados

    imp

    or ta

    nt

    es se perdem.

    Fui apresentada aos membros do

    grupo

    estudado

    por

    seu presi

    dente , Mrio, meu aluno

    no

    curso de Cincias Sociai

    s.

    Este aluno era

    mdium de um terreiro na Zona Norte e freqentemente, convers

    vamos sobre problemas relativos

    umbanda e

    sua participao

    nessa religio.

    Ce

    rto dia, disse-me

    que

    estava

    querendo

    a

    brir

    um

    terreiro com

    uma

    conhecida

    qu

    e era me-

    de

    -santo. Pass

    ado

    algum

    temp o, convidou me para assistir

    inaugurao

    do terreiro do qual

    seria presidente. Comecei,

    en

    to, a freqent- lo. Mesmo

    me

    definin

    do como

    observadora, pesquisadora, a

    nt rop

    loga, e talvez

    por

    isso

    mesmo

    , passei a ser

    tam

    bm pea do

    drama.

    Meu primeiro

    contato

    tinha sido com o presidente, que fazia questo de me apresentar como

    sua professora na universidade. Cada vez que um el

    emento

    novo me

    19

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    10/90

    20

    Guerra de

    orix

    era apresentado pelo pai-de-santo*, este pedia ao presidente para

    dizer

    quem

    eu era. Ter estudo era para o grupo

    um

    sinal de prest

    gio, enfatizado pelo presidente, que

    era

    estudante universitrio. As

    sim,

    no

    tive

    muitos

    problemas para ser aceita, pois logo se estabele

    ceu um mecanismo atravs do qual aquele

    que

    me desse mais infor

    maes ganhava

    um

    pouco de prestgio.

    Mas ter

    estudo

    no era

    apenas

    um sinal de prestgio; tambm era

    sinal de ignorncia das leis

    da

    um b

    anda *

    ou da

    lei espiritual *, das

    coisas do santo *,

    como

    diziam. Eu

    mesma me

    definia

    como

    igno

    rante

    no

    assunto, queria aprender

    com

    eles, saber como pensavam e o

    que significava tudo o que ali se passava. Essa problemtica ficar

    mais clara no

    decorrer

    do

    trabalho

    .

    Senti

    tambm, por parte

    dos membros do terreiro, a necessidade

    de me classificar. Era

    uma

    pesquisadora e

    tinha

    estudo, mas

    queria

    aprender com eles. Freqentava todas as sesses, mas

    como

    observa

    dora; no incio, no

    queria

    participar.

    O pai-de-santo, logo

    no primeiro

    contato, terminou a conversa

    falando sobre vrios tipos

    de

    mdiuns, ressaltando o caso

    de

    um

    rapaz:

    Era

    igual senhora , disse, e conversava

    muito

    comigo. Me

    contou que estava l no interior de Minas e foi visitar um velho que

    morava

    numa

    casa pobre.

    Quando

    chegou

    na

    porta, antes de

    bater

    , o

    velho chamou ele e disse

    que

    sabia de tudo o

    que

    ele queria.

    Ensinou

    alguma coisa e disse que ele podia voltar pro Rio que ele ia ensinar

    tudo,

    ele em

    Minas

    e o rapaz aqui. Continuou dizendo que o rapaz,

    mesmo

    s

    estando estudando

    h seis meses, havia escrito

    um

    livro, e

    que agora

    trabalhava

    na

    Congregao Umbandista*,

    indo

    aos terrei

    ros

    para

    ver se tudo est feito de acordo

    com

    lei* . Terminou

    dizendo: Ele um cientfico, sabe de tudo mas no recebe*. Ele pode

    ver tudo, estar

    do

    seu lado

    num bar

    e saber sua vida.

    existe

    ainda

    o

    mdium

    cientfico*.

    Algum

    tempo depois, convers ando com o pai-de-santo e a me

    pequena*, depois de termos ouvido a gravao que eu havia feito

    numa sesso de domingo, esta perguntou-me: Voc no

    quer

    'traba

    lhar'* aqui?

    No

    entendi

    bem

    e ela insist iu, dizendo: Voc

    no quer

    ser mdium aqui? O pai-de-santo, que ouvia calado,

    olhou para

    a

    me-pequena e

    os

    dois comearam a rir. Resolvi no responder e ri

    tambm com eles.

    Uma outra mdium, durante uma

    conversa,

    j

    havia

    me

    pergun

    tado

    se

    eu no

    queria

    trabalhar no

    santo *.

    Um

    dia, possuda

    por

    seu

    O t rr iro

    2

    preto-velho*, chamou-me e pediu para colocar o charuto que fumava

    em minha boca com a brasa voltada para dentro. Relutei, mas insistiu

    e, ento, fiz o

    que

    tinha

    mandado

    -

    com

    muito

    medo,

    confesso.

    Devolvi-lhe o charuto e ela,

    abraando-me,

    disse: Chuc* filha-de

    f*, no

    queimou,

    vou proteg chuc e abri seus caminho*. Alguns

    dias depois o mesmo preto-velho

    me

    disse,

    meio

    rindo:

    Chuc

    filha-de -curiosidade*,

    mas

    vai

    s

    filha-de-f.

    Aps esses ensaios

    de

    classificao -

    mdium

    cientfico, filha

    de-curiosidade, filha-de no houve mais perguntas sobre o mo

    tivo de minhas idas ao terreiro. Passado

    algum

    tempo, a me-pequena

    insistiu para que eu entrasse de scia *, contribuindo como os ou

    tros

    para

    a

    manuteno do

    terreiro. De incio hesitei, m

    as

    depois

    resolvi

    contribuir

    e fui arrolada como scia

    da

    casa.

    Antes de iniciar a descrio do terreiro e de seus rituais, farei

    um

    breve

    histrico e discutirei algumas categorias-chave. Farei, tambm, a des

    crio

    da

    classificao dos deuses

    de sua

    relao

    com

    os

    mdiuns

    .

    O terreiro foi

    inaugurado por um

    grupo de 4 mdiuns e algumas

    pessoas que, mesmo no sendo mdiuns, eram a eles ligadas. O grupo

    de mdiuns, embora participasse de outros terreiros, era unido por

    conhecer

    Maria

    Aparecida,

    que

    era me-de-santo. No

    tendo um

    ter

    reiro, costumava

    dar

    consulta * nas casas das pessoas, inclusive des

    ses mdiuns.

    Um

    dos mdiuns do grupo, Mrio, resolveu

    ceder

    sua

    casa para que Maria Aparecida pudesse dar consultas sem precisar se

    deslocar

    de

    casa

    em

    casa. Nesse perodo,

    que

    durou

    uns

    trs meses, o

    grupo manteve estreito contato e os que

    no

    se

    conheciam

    antes

    puderam ali se conhecer. Foi nessa poca

    que

    o

    grupo

    resolveu abrir

    um terreiro para ajudar a

    me-de-santo

    que era excelente mas

    mui

    to

    pobre

    . Diziam tambm que no terreiro de

    origem

    no tinham

    conhecimentos ,

    enquanto

    no novo todos

    eram

    amigos.

    O terreiro foi

    inaugurado

    e Mrio, locatrio

    da

    casa,

    assumiu

    o

    posto de presidente. Uns dez dias depois da inaugurao a me-de

    santo

    ficou maluca , como diziam, e foi internada em um hospital

    psiquitrico. Depois disso, os mdiuns resolveram chamar um pai

    de-santo

    para

    substitu-la. Esse novo pai-de-santo s era conhecido

    por um casal do grupo original e,

    imediatam

    ente, reiniciou os traba

    lhos *. O terreiro teve

    um

    curto perodo

    de

    vida sob a chefia desse

    novo pai-de-santo,

    mas

    durante esse tempo houve intensa participa

    o dos

    membros do

    grupo. Dedicavam

    muitos

    dias e noites ao terrei-

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    11/90

    22

    Guerra de orix

    ro e alguns chegaram a largar seus empregos, enquanto outros de

    monstravam cansao depois de um dia de trabalho e vrias noites sem

    dormir. Nesse perodo, surgiu nova crise, com o conflito entre o pai

    de-santo e o presidente. O encaminhamento dessa crise levou ao

    fechamento definitivo do terreiro. Os membros se dispersaram e,

    passado algum tempo, a maioria dos mdiuns j se tinha integrado a

    outros terreiros. Essa histri a ser narrada no prximo captulo.

    Passarei agora a analisar algumas categorias, com o objetivo de verifi

    car como so empregadas pelo grupo estudado. Ex iste na literatura

    sobre religies afro-brasileiras uma srie de definies do que

    se

    ja,

    por exemplo, macumba, umbanda, quimbanda* e espiritismo* (Car

    neiro, 1964; Bastide, 1960 e Ramos, 1956). Constatei, no decorrer da

    pesquisa, que essas categorias eram empregadas no terreiro estudado

    de uma forma que,

    num

    certo sentido, se distanciava das definies

    que eu conhecia.

    No incio da pesquisa, minha primeira dificuldade foi a de classi

    ficar o grupo em termos dessas definies. Cada vez que, numa con

    ve

    rsa, tentava usar

    um

    desses termos, sentia que

    as

    pessoas emprega

    vam-nos de maneira distinta. Essa foi

    uma

    das ocasies em que pude

    perceber, claramente, dois sistemas de classificao distintos, o meu,

    como antroploga, e o dos membros do grupo.

    Embora o nome do terreiro fosse Tenda Esprita Caboclo Serra

    Negra, o grupo dizia que o terreiro era traado *, umbanda com

    candombl. Alguns usavam o termo macumba para definir sua reli

    io estou na macumba . Outro s usavam macumba ou macum

    beiro* para definir algum que usava a magia negra*. Quimbanda era

    usada raramente e sempre no sentido de acusar algum de trabalhar

    para o

    ma

    l *.Se eu perguntava, por exemplo,

    Por qu

    e voc entrou

    para a umbanda? , a resposta vinha sem que fosse usado uma s vez

    esse termo. Comecei a reparar que quase no se fa lava em umbanda,

    ou espiritismo, ou macumba. Perguntei, ento, ao pai-de-santo qual

    era a diferena entre umbanda e macumba e esta foi a resposta: Ma

    cumba o instrumento dos santos, o tambor*, mas o povo fala

    macumbeiro para aquele que trabalha na umbanda*. Macumba o

    tambor, macumbeiro, o tocador.

    No terreiro estudado, nunca ouvi algum definir

    outra

    pessoa

    como esprita

    ou

    umbandista, nem se definir com essas categorias.

    Falavam em pessoas que trabalham no santo e s usavam umbanda

    O terreiro

    23

    para definir a religio em termos amplos - as leis da umbanda -

    assim como macumba. Sempre se referiam ao trabalho no santo,

    esse negcio de santo *, trabal har no santo s no d dinheiro etc.

    Assim, umbanda, macumba e espiritismo eram raramente usa

    dos e s no sentido de definir uma religio.

    Qu

    imb anda, o trabalho

    para o mal, s era usado para acusar algum, sendo que alguns

    po-

    diam tambm usar macumbeiro nesse mesmo sentido. A categoria

    usada para definir um grupo de mdiuns era o trabalho no santo. Esse

    trabalho se realizava nas sesses, trabalhamos a noite inteira , e era

    definido como um ofcio. Um dia, um mdium, depois de ter se

    machucado numa sesso ao sair do transe, disse-me: So os ossos do

    ofcio.

    Mdium era aquele que trabalhava no santo e trabalhar no santo

    era um ofcio. Santo* era uma das denominaes dadas aos deuses ou

    espritos, que tambm eram chamados de guias*, orixs* e entida

    des*. Existia uma classificao desses orixs, santos ou guias, da qual

    fa

    larei adiante. O fato central, no entanto, era que esses orixs atua

    vam

    na

    terra* atravs dos mdiuns. Cada

    md

    ium era cavalo* de

    vrios santos. Ou se ja, atravs da possesso, os mdiuns se transfor

    mavam em veculos, cavalos dos orixs, para que estes pudessem vir

    fazer caridade na terra .

    2

    Trabalhar no sa

    nto

    era a expresso usada para definir o estado de

    possesso. Logo, o trabalho no santo expressa o aspecto central dos

    rituais de umbanda , a possesso.

    Os orixs eram classificados da seguinte forma: Oxal ou Zambi*: o

    orix maior. Esse orix no utilizava

    nenhum

    cavalo, apenas coma n

    dava os outros orixs, classificados em linhas*. Essas linhas eram

    categorias amplas qu e definiam como cada orix devia trabalhar ou

    seja, que tipo de dana fazia, como deveria ser sua representao

    corporal, quais as suas cores, dias da semana etc.

    As

    sete linhas de umbanda eram as seguintes: linha de Iemanj,

    linha de Xang*, linha de Oxosse*

    ou

    de caboclos*, linha de Ogum*,

    linha de pretos-velhos, linha de criana* e linha de exu*. Cada linha

    com seu che

    fe

    e seus subordinados era subdividida em sete falanges*,

    cada qual tambm com seu chefe e seus subordinados , todos subordi

    nados aos chefes de linha. Existe,

    por exemplo, na linha de Iemanj

    uma falange comandada por Ians* e outra

    por

    mame Oxum*, duas

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    12/90

    24

    Guerra

    de

    orix

    outras entidades femininas. Dentro de cada linha existiam, portanto,

    orixs com vrios nomes, classificados dent ro das falanges.

    Cada linha era associada a um local, uma cor, um dia da semana e

    a determinados tipos de comida. Havia tambm a categoria orix

    cruzado*,

    que

    definia

    um

    mesmo o rix pertencente a duas linhas. Um

    caboclo podia ser cruzado com exu, e ele seria metade exu, metade

    caboclo,

    um

    dos lados sendo caboclo e o outro lado sendo exu.

    Ou

    ainda,

    um

    preto-velho poderia ser metade

    do

    ano preto-velho e a

    outra

    metade exu.

    Essa era a classificao mais utilizada pelo grupo estudado, em

    bora houvesse variaes mesmo dentro desse grupo.

    3

    Alm dessas

    linhas de umbanda, o grupo falava nas naes do candombl *.

    Existiam sete naes: queto, jeje, nag, angola, omoloc, cambinda e

    guin. Diziam que o terreiro era traado quando eram utilizadas as

    linhas de umbanda e as naes do candombl. Dependendo da nao,

    o ritual seguia uma seqncia diferente, como por exemplo nas ses

    ses de domingo.

    Foi muito difcil recolher precisamente essa classificao, porque

    as pessoas falavam menos nas linh

    as

    e mais nos seus ori

    xs.

    No

    importava dizer de que linha eram; falavam, por exemplo, meu Xan

    g ~

    ou

    meu preto-velho . Isso indicativo de que para os mdiuns

    desse grupo essa classificao ampla tinha

    pou

    ca importncia para o

    ritual

    propri

    amente dito (Carneiro, 1964).

    Cada mdium recebia pelo menos um orix feminino e um o rix

    masculino de cada linha. Podia receber mais, no entanto. Um mdium

    pod

    eria escolher, dentre os orixs que recebia, aqueles com os quais

    fos

    se trabalhar mais.

    Ou

    seja, nem sempre recebiam todos os seus

    orixs.

    No terreiro estudado havia ainda a class ificao das entidades em

    duas categorias: os guias que davam consulta- pretos-velhos,exus e

    caboclos-

    e os guias que no davam consulta- das linhas de Xang,

    Ogum, Iemanj e criana. Havia vrios xangs, iemanjs, oguns e

    crianas, cada qual de um mdium.Estes ltimos orixs eram associa

    dos a santos catlicos. Exus, pretos-velhos, caboclos, iemanjs, xan

    gs, oguns e crianas eram os guias que usavam seus cavalos para

    trabalhar na terra, no terreiro.

    Embora havendo diferenas de classificao dos orixs e diferen

    as doutrinrias

    4

    entre membros do terreiro estudado, o fato de

    trabalharem no santo os unia. Por exemplo, os mdiuns do terreiro

    O terreiro

    25

    es tudado faziam distino entre terreiros e centros de mesa*, embora

    vissem os mdiuns dos dois tipos como sendo pessoas que trabalha

    vam no santo.

    O grupo estudado classificava ainda os terreiros em duas catego

    rias: terreiro

    de

    rua* e terreiro

    de morro

    *. O primeiro para definir

    terreiros em casas nos vrios bairros ou subrbios da cidade . O se

    gundo, terreiros localizados nas favela

    s.

    Meu o

    bj

    eto

    de

    estudo era

    um

    terreiro de rua, mas havia vrias

    categorias para design-lo. importante discuti-l

    as

    pois, embora

    houve

    sse

    um sentido que as unia, dependendo da situao eram em

    pregadas de maneiras diferentes. Tenda, terreiro, terra ou centro*

    eram categorias empregadas para designar a casa onde era realizada a

    maior parte dos rituais e, tambm, o grupo sob a chefia de um pai

    ou

    me-de-sa

    nto

    . Esse era o sentido que unia

    as qu

    atro categorias.

    Mas existiam diferenas no emprego de uma ou outra dessas

    categorias. Em primeiro lugar, centro e terreiro eram os mais usados

    pelos mdiuns. Essa diferena pode estar ligada s diferentes prove

    ninciasdos membros do grupo. Como a formao dos mdiuns se d

    no terreiro e

    como

    cada terreiro tem diferenas de linguagem, usar

    mais um do que outro pode significar uma diferena na socializao

    de cada mdium. Mesmo assim, no incio da pesquisa o grupo usava

    mais a categoria centro quando falava comigo, embora entre eles

    terreiro fosse o termo mais utilizado. No final da pesquisa, ta

    mbm

    usavam mais este ltimo termo quando se dirigiam a mim. Assim,

    parece-me que a categoria centro era mais empregada para falar com

    pessoas de fora, com pessoas que no pertenciam ao grupo.

    Terra era mais usada quando os orixs falavam, como,

    por

    exem

    plo, uma pomba-gira dizia: Esta minha terra. Era tambm usada

    pelo pai-de-santo, no sentido de domnio: Tenho trs terras.

    Ou

    pelos mdiuns para designar o domnio do pai-de -santo: Ele (pai

    de-santo)

    nunc

    a poderia aceitar

    aq

    uela terra como dele.

    Tenda

    nun

    ca foi usada , a no ser na

    porta

    da casa,

    em

    um pedao

    de papel escrito em letra de frma: Tenda Esprita Caboclo Serra

    Negra': Nos pontos cantados s eram usados terra ou terreiro.

    No decorrer do trabalho usarei se

    mpr

    e terreiro, pois era a catego

    ria mais usada pelos membros

    do

    grupo quando falavam entre si.

    Ou

    seja, era uma categoria do grupo para o grupo.

    Quero frisar que essas categorias (assim como o sistema de classi

    ficao dos orixs) eram empregadas pelos membros do grupo cstu-

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    13/90

    26

    Guerra de orix

    dado e que, portanto, no so, necessariamente, iguais s de outros

    grupos. Alm disso, muitos dos mdiuns eram novos no santo* e no

    conheciam bem as leis da umbanda. Porm, meu objetivo era partir

    das informaes deste grupo a fim de saber como pensavam e qual o

    significado que davam aos itens rituais e prpria doutrina da reli

    gio que praticavam. No seria portanto lgico saber se estavam usan

    do os termos

    ou

    se davam os significados corretos': pois a teramos

    de nos perguntar: corretos em relao a qu? literatura sobre cultos

    afro-brasileiros? Aos livros escritos pelos membros mais cultos des

    ses rituais? Se fizssemos isso, estaramos invertendo o trabalho do

    antroplogo que deve partir das formulaes do grupo estudado.

    Passarei agora anlise da composio do grupo de mdiuns e da

    clientela e ao exame da hierarquia existente no terreiro.

    O grupo que iniciou o terreiro era composto de 14 mdiuns

    (nove mulheres e cinco homens), todos ligados

    me-de-santo, Ma

    ria Aparecida. Alm desses mdiuns havia ainda duas pessoas que

    ajudaram a abrir o terreiro e que estavam sempre presentes. Uma

    delas era marido

    de

    uma mdium e a outra,

    uma

    senhora amiga de

    Mrio, o presidente. Outro amigo de Mrio, um bancrio, ajudava o

    terreiro financeiramente, mas nunca comparecia.

    Desse grupo inicial de mdiuns, cinco eram vizinhos - mora

    vam na mesma rua. Dez haviam pertencidoanteriormente a um mes

    mo terreiro, sendo que dois desses faziam parte do grupo de vizinhos.

    Tr s

    dos vizinhos freqentavam terreiros distintos e apen

    as um

    no

    freqentava terreiro algum. Todos eles, antes de abrirem o terreiro

    estudado, consultavam-se com a me-de-santo Maria Aparecida. A

    maioria do grupo havia freqentado o mesmo terreiro, alguns h

    muitos anos, mas nenhum tinha posio de destaque na hierarquia

    desse terreiro de origem, o terreiro da

    rua

    do Bispo.

    Com o afastamento da me-de-santo, quatro pessoas do grupo

    original de fundadores saram do te rreiro es tudado e vo ltaram para o

    terreiro de origem. Mas com a vinda do novo pai-de-santo, sete novos

    mdiun s

    entraram

    cinco

    do

    prprio bairro que, indo ao terreiro,

    resolveram ficar; um deles

    pa

    rticipava de um te

    rr

    eiro vizinho e dois

    eram conhecidos de um dos mdiuns do g rupo inicial.

    O terreiro passou, portanto, por trs

    fases

    na composio de seus

    mdiun s. A primeira com 14 mdiuns (nove mulheres e cinco ho

    mens, sem incluir a me-de -santo ). A segunda com

    17

    mdiuns

    13

    O terreiro 27

    mulheres e quatro homens). A terceira com 15 mdiuns 12 mulheres

    e trs homens). Nestas duas ltimas fases havia ainda o pai-de-santo,

    Pedro. No total, desde a inaugurao, 22 mdiuns freqentaram a

    Tenda Esprita Caboclo Serra Negra':

    Os mdiuns tinham as seguintes ocupaes: estudante universit

    rio, datilgrafo , camel, manicura, dobradora de roupa em tinturaria,

    vendedor, confeiteiro, boy , enfermeira e e

    mpr

    egada domstica. A pri

    meira me-de-santo vivia apenas

    do

    dinheiro das consultas dadas nas

    casas de pessoas conhecidas. O pai-de-santo era pedreiro em uma

    esco

    la.

    A clientela era composta, na sua maioria, por pessoas modestas

    do bairro: empregadas domsticas, donas-de-casa, motoristas de ni

    bus, vendedores de loja etc. Havia uma parte bastante numerosa da

    clientela formada por familiares e amigos dos mdiuns. O terreiro era

    tambm freqentado por pessoas de posio social mais elevada,

    como, por exemplo,

    uma

    dona-de-casa de Copacabana, um portu

    gu

    s

    dono de loja e

    um

    despachante. Algumas delas chegavam de

    carro

    para

    consultar-se e outras raramente apareciam. A grande

    maioria dos clientes era composta de mulher

    es.

    O grupo cla

    ss

    ificava a hierarquia que organizava o terreiro em

    duas categorias: a hierarquia espiritual* e a hierarquia material*. A

    hierarquia espiritual era composta dos seguintes postos pela ordem

    de importncia:

    Pai ou Me-de-santo: chefe espiritual do terreiro, zelava pela uni

    dade* e mediunidade* de seus filhos. O pai-de-santo era responsvel

    pelos mdiuns e pela clientela, ensinava as leis da umbanda, coman

    dava as sesses e os trabalhos.

    Me-pequena: auxiliar do pai-de-santo durante as sesses. Era

    responsvel pelo dinheiro recolhido nas consultas e pela compra de

    itens rituais, como velas, charutos, cigarros etc.

    Samba : auxili

    ar

    da me-pequena. Ajudava os clientes durante as

    consultas, anotando o que os guias prescreviam

    ou

    traduzindo algu

    mas palavras por eles pronunciadas de maneira confusa.

    Mdiuns: deviam obedincia aos postos superiores da hierarquia

    material e espiritual. Alguns mdiuns eram, s vezes, escolhidos pa ra

    tomar conta da assistncia, no permitindo a ent rada de pessoas al

    coolizadas e auxiliando no que fosse preciso.

    A hierarquia material era composta dos seguintes posto

    s:

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    14/90

    8

    Guerra de orix

    Presidente chefe material

    do

    terreiro. Zelava pelos problemas que

    surgissem na casa, como pagamento de contas, arrumao, consertos

    de coisas quebradas etc. Tinha tambm de arrecadar dinheiro para o

    pagamento do aluguel, e era o locatrio da casa.

    Scios contribuam com

    uma

    mensalidade e auxiliavam o presi

    dente. Todos os mdiuns eram scios e havia uma mensalidade estipu

    lada para eles. Mas havia tambm outros scios que no eram mdiuns,

    dois deles eram mais prsperos e

    por

    isso contribuam com mais.

    Embora os membros do grupo empregassem sempre essa classi

    ficao em termos de hierarquia espiritual e material, havia certa

    ambigidade na delimitao das funes de cada um desses postos. O

    presidente, por exemplo, tambm zelava pelos mdiuns , verificando

    se

    chegavam na hora certa, e pela clientela, controlando a relao

    en

    tr

    e homens e mulheres

    na

    assistncia. Isso, de certa forma, entrava

    em choque com as atribuies do pai-de-santo.

    Embora em todos os terreiros haja uma hierarquia, existem varia

    es entre elas (Lapassade e Luz, 1972). No terreiro estudado no

    havia og*, funo preenchida por

    um

    scio, marido de

    uma

    das

    mdiuns. O novo pai-de-santo reclamava

    mu

    ito desse scio, pois di

    zia que ele no sabia bater*. Algumas vezes era ele que ia at o ataba

    que* e passava algum tempo tocando.

    Os postos hierrquicos

    do

    terreiro estudado foram distr ibudos

    duas vezes: uma pela primeira me-de-santo, que escolhera Mrio

    para presidente, Marina para me-pequena e Carmen para samba, e

    outra pelo pai-de-santo que a sucedeu confirmando todos os postos,

    com exceo

    do

    lugar de me-pequena, para o qual escolheu Snia.

    O terreiro estudado era filiado

    Congregao Esprita Umban

    dista do

    Brasil-

    mbito Nacional. A me-de-san to, Maria Apareci

    da, e o pres idente, Mrio, fizeram a inscrio nesta congregao e seus

    no

    mes figuravam

    como

    responsveis pelo terreiro

    no

    certificado

    de

    funcionamento

    que

    a congregao concedeu ao terreiro. Tal filiao,

    no entanto, no significava que a congregao tivesse algum tipo de

    controle sobre o terreiro, que nunc a foivisitado por nenhum membro

    dessa ent idade, e os mdiuns no lhe deviam nenhuma obrigao. O

    certificado era, a meu ver, necessrio para legitimar o terreiro perante

    os rgos policiais.

    O velho sobrado onde se lo calizava a Tenda Esprita Caboclo Serra

    Negra estava situado no final de

    uma

    rua importante do bairro do

    O terreiro

    29

    Andara. A iluminao dessa

    par

    te da rua e

    ra

    precria e o quarteiro

    tinha vrios sobrados ocupados por lojas no primeiro andar. O se

    gundo andar de alguns deles era habitado

    por

    famlias.

    noite, com a

    rua mal iluminada e apenas algumas luzes acesas nos sobrados vizi

    nhos, o terreiro destoava, com o batuque dos tambores e a sala do

    gong* muito iluminada.

    O primeiro andar do sobrado ond e o terreiro estava instalado no

    era ocupado. Subindo-se

    por

    uma escada estreita chegava-se

    sala da

    assistncia*, relativamente pequena, com 4m de largura por 4m de

    comprimento. As paredes, pintadas de rosa, eram nuas, com apenas

    duas reprodues de Jesus Cristo e o certificado da Congregao

    pendurados. Quatro bancos de madeira, pintados de branco, ocupa

    vam a sala inteira, deixa

    ndo

    apenas uma passagem de circulao da

    cozinha para a sala

    do

    gong. Entre as duas ltimas fileiras de bancos

    havia

    um

    espao maior para permitir o acesso a

    um

    pequeno quarto

    que ficava em frente

    escada.

    Quem entrasse na sala da assistncia, pela escada, via

    direita

    um

    a porta que dava para a cozinha e

    uma

    janela que se abria para

    uma

    pequena rea e, esquerda, a sala

    do

    gong. Nessa pequena rea, com

    cerca de 3m de largura por 3m de comprim ento, havia a casa de exu*

    e a casa das almas*, dois pequenos barraces de madeira cobertos com

    folhas de zinco. A casa de exu, dos compadres*, era pintada de verme

    lho, tendo lm de largura por l Sm de comprimento e altura. A casa

    das almas,

    do

    povo do cemitrio *, era pintada de branco e ligeira

    mente menor que a outra. Na casa de exu havia algumas imagens de

    cermica pintadas, como a de

    uma

    pomba-gira a ciganinha* de

    Mrio': de seu Sete Encruza* e de exu Mangueira . Esta ltima estava

    colocada na en trada do terreiro, num nicho logo perto da porta, e

    depois da vinda

    do

    novo pai-de-santo foi trazi

    da

    para a casa de exu.

    Essas imagens eram compradas pelos prprios mdiuns e no com o

    dinheiro das consultas, como no caso dos outros itens rituais. Na casa

    das almas havia uma imagem de Obalua , uma pequena cruz de

    madeira branca e sempre uma tigela com pipocas.

    A sala da assistncia comunicava-

    se

    com a sala

    do

    gong atravs

    de dois arcos. A passagem

    se

    fazia

    por um

    dos arcos, onde existiam

    duas tbuas de madeira, de aproximadamente SOem de altura, presas

    de um lado e de outro do arco, permitindo a passagem para a sala do

    gong sem atrapalhar a viso da assistncia. O outro arco era tambm

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    15/90

    30

    Guerra de or i

    x

    fech

    ado

    por

    dua

    s tbuas flxas

    que impediam

    a passagem, mas

    permi

    tiam a viso.

    A sala

    do

    gong

    tinha

    cerca de 7m de

    compr

    i

    mento por

    3m

    de

    largura, estendendo-se

    perpendicu

    l

    armente

    sala da assistncia. Seu

    teto era coberto p

    or

    pequenas bandeiras

    de

    papel colo

    rid

    o. direita

    da

    porta, por o

    nde

    se

    entr

    ava nesta sala, ficava o gong e

    esquerda

    havia um

    banco

    reservado para os convidados importan tes': Na

    pa

    rede em frente

    porta

    de en

    tr

    ada

    havia

    duas

    jane

    las vo

    lt

    adas p

    ara

    a

    rua,

    permitindo

    a boa iluminao da sal

    a.

    Debaixo da janela

    mai

    s

    pr

    xima

    do

    gong ficavam dois

    ta

    mbores,

    um

    pequeno e o ut ro maior,

    e dois bancos para os tocadores. Entre essas duas jan elas havia

    uma

    porta que se abria para

    um

    pequeno balco.

    Perto

    do

    go

    ng

    fic

    avam

    uns

    sete bancos p

    equeno

    s de madeira

    onde os m

    diun

    s se sentavam para dar consulta. Esses bancos, tocos*,

    dis

    punham

    -se em dois semicrculo s direita e esquerda do gong.

    esquerda deste tambm havia um a mesa

    mai

    s baixa,

    construda

    de

    pois

    da vinda

    do novo

    pai

    -de-santo.

    Em

    c

    ima da

    m esa, antes das

    sesses, acendiam- se as ve las e colocava

    m-

    se os copos

    com

    g

    ua

    para

    os anjos

    da

    guarda*

    dos

    m

    diuns

    . Antes da con

    struo

    da mesa, as

    velas eram acesas no parapeito das janelas. Debaixo

    da

    mesa, coberta

    por um pano

    , guardava-se o d

    in heiro

    das consultas e diversos itens

    ritu

    ai

    s:

    charutos, velas, pembas* etc.

    O go

    ng

    era um a mesa alta e la

    rg

    a com l m de altura e com cer

    ca

    de 1m de comprimento por 60 cm de largura. Era coberta por um

    pano

    azul-claro

    sobr

    e o

    qual

    se colocava o

    ut r

    o

    de

    re

    nd

    a

    bra

    nca

    que

    descia at o cho. Acima

    de

    ssa mesa havia duas prateleiras. Na primei

    ra ficavam as

    imag

    ens de Iemanj, Ians e mam e Oxum. Na segunda,

    vasos de flores e a imag

    em

    do Sagrado Corao de Jesus, de cermica,

    com os braos abertos e cados para baixo e com um corao verme

    lho

    em

    alto-relevo.

    Em

    volta desse Cristo, o

    Oxa

    l, havia

    um

    crculo d e

    pe

    qu

    enas lmpadas azui

    s.

    Em c

    im

    a

    da

    mesa, do lado direito, um a

    imagem de seu Serra Negra, o caboclo que dava nome

    ao

    terreiro e, do

    lado esquerdo , um a

    im

    agem de so Jernim o, o Xang. Havia out ras

    im

    agens e

    ntre

    es

    ta

    s

    dua

    s, co

    mo

    a de Nossa Se

    nhora

    Aparecida,

    peq

    ue

    na e de plst ico, a de so Jorge

    em

    seu cavalo, o

    Ogum,

    t

    ambm

    pequena, e

    ainda

    duas

    de

    pretos-velhos - Vov Lusa* e o Velho

    Caetano da Bahia*. Vov Lusa foi retirada depois, assim como uma

    pequena imagem de

    um

    exu menino*,

    preto

    e acocorado. Esse exu

    menino foi colocado

    perto da

    casa de exu,

    onde

    improvisaram

    uma

    O terreiro 31

    pequenina casa com dois tijolos cobert

    os

    por

    um

    papelo. O gong

    devia s

    empre

    ter

    uma

    luz acesa, mesmo du rante a noite , quer de vela,

    qu er

    lu

    zes azuis, para no deixar os

    san

    tos no escuro': como me

    explicaram .

    Na cozinha havia uma p

    orta

    em frente a

    um pequeno banheiro

    e

    o ut ra que dava para a rea

    onde

    estavam as casas de exu e das almas.

    Havia problemas com a gua, pois canos e ralos estavam

    sempre

    entup

    idos.

    Com

    freqncia, a cozinha e a rea ficav

    am

    alagadas,

    obr

    i

    gando os

    mdiuns a passar muito tempo com

    um

    a lata e um balde

    para retirar a g

    ua

    e usa

    ndo

    arames para tentar desentupir os ralos.

    Sentia-se sempre

    um

    cheiro de gordura e

    de

    podre, pois a caixa de

    go rdura ficava debaixo da pia e s vezes, tr ansb

    or

    dava. Havia na

    coz

    inh

    a

    um

    fogo,

    uma pia

    e

    um

    a mesa o

    nde

    eram colocados copos,

    xcaras, caf e a

    c

    ar. Debaixo

    da

    mesa, coberta

    por um

    plst ico at o

    cho, guardavam-se outros

    it

    ens rituais como incenso, carvo, dend,

    restos de ve las e tambm al

    guns

    manti

    me

    ntos.

    O

    quart

    i

    nho

    qu e ficava

    em

    fren te escada ti

    nh

    a aproximadamen

    te 3m de comprime

    nto

    por l

    S

    m de largura. Ne le os m

    diun

    s troca

    vam

    de

    roupa,

    que

    penduravam

    em pregos

    na

    parede. Havia

    um

    t

    anq

    ue, q ue no era utilizado, e

    um

    a ca

    ma

    , sobrando pouco espao

    para

    as pessoas a

    li

    circulare m. Nesse quarto dormia o pai-de-sa

    nto

    ,

    qu e para l se

    mudou

    logo depois de ter assumido a chefia do terreiro.

    O terreiro foi sen

    do mo

    dificado dur ante sua curta existncia. O

    cho, de incio sem cera, um dia foi raspado e encerado por alguns

    mdiuns. Os bancos de madeira foram substitudos por cadeiras,

    doa

    das

    po

    r

    um

    amigo

    do

    pr

    es

    idente;

    em

    n me

    ro

    maior,

    permitiam que

    mais pessoas

    pudessem

    assistir s sesses se

    nt

    adas. Novas imagens

    foram sendo compradas e um a pequena caixa de m ade ira foi pendu

    r

    ada

    numa das paredes

    da

    sala da assistncia para que nela fosse

    depos

    it

    a

    do

    o

    dinheiro

    das cons

    ul t

    as.

    Havia um a gra

    nd

    e flexibilidade no uso da casa e dos itens rituais.

    Quando chovia, a consulta dos exus se fazia dentro da sala do gong e

    no perto da casa de exu, como habitualmente. No tendo pemba de

    cor bran

    ca para riscar

    os pont

    os *, r iscava-se

    com pemba de outra

    cor. No havendo nmero suficiente de velas, ace

    nd

    iam-se

    apena

    s

    uma

    ou duas

    para

    todo

    s

    os

    anjos

    da

    guarda dos md

    iun

    s e

    no uma

    para cada. Algum as vezes no se cobria o gong com o pano

    na

    hora

    dos exus *, como se fazia mais freqentemente. s vezes escalava-se

    um

    mdi

    um para tomar

    conta

    da

    entrada,

    outras

    vezes no.

    No

    cn-

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    16/90

    :12

    uerr de orix

    tonto, apesar dessa flexbilidade, notava-

    se

    a preocupao em marcar,

    ritualmente, cada parte

    da

    casa: separando uma sala da outra, colo

    cando os exus do lado de fora e procura ndo seguir sempre um mesmo

    padro nas se

    q

    ncias das sesses. Uma das preocupaes

    do

    presi

    den te e do pai-de-santo referia-se ao fato de que os bancos da assis

    n c i deveriam estar

    se

    parados em dois grupos, um para homens e

    ou t

    ro para mulheres, a fim de impedir liberdades . Mas quando no

    hav ia espao, homens e mulheres mist

    ur

    avam-se na assistncia.

    Os limites do terreiro no terminavam, no entanto, nesse sobra

    do. A mata, a cachoeira, a praia, a encruzilhada e o cemitrio eram

    seus limites espaciais mximos. O grupo sob a chefia do pai-de-santo

    a realizava alguns rituais c omo sacrifcios denominados obrigaes*.

    Nesses locais, com exceo das encruzilhadas, eram tambm realiza

    dos rituais em que os orixs desciam* em seus cavalos.

    5

    Cada um

    desses lugares era associado a um grupo de orixs: a cachoeira a

    mame Oxum, a mata aos caboclos, a pra ia a Iemanj, a encruzilhada

    a exu e o cemitrio a Obalua. Durante a vida do terreiro quatro

    rituais foram efetuados nesses locais: antes da inaugurao, logo aps,

    depois

    do

    afastam

    ento

    da

    me-de-santo e quando o conflito entre o

    pai-de-santo e o presidente se agravou.

    Alguns itens ri

    tu

    ais, depois de usados, no podiam ser lanados

    em qualquer lugar, porq

    ue, com o me explicaram, pod

    er

    iam ser utili

    zados por pessoas que quisessem fazer trabalhos contra o terreiro. Por

    is

    so, as pontas de charutos e de cigarros, restos de velas e a gua dos

    copos eram jogados na mata. Em ana logia ao es

    pa

    o sagrado da mata

    um vaso de plantas,

    na

    sala

    da

    assistncia , era utilizado para depositar

    a gua.

    No terreiro, pr

    opr

    iame

    nt

    e, realizavam-se trs tipos de rituais distin

    tos: as consultas , o desenvolvimento* e as sesses de domingo - a

    gira

    .

    No houve nenhum ritual dedicado especialmente a um nico

    orix.

    As consultas eram realizadas s segundas e sextas-feiras: segundas

    para caboclos e pretos-velhos; sextas para exus. As pessoas consul

    tavam-se com os guias, no

    com

    os mdiuns. Nesses dias no se batia

    tambor e os mdiuns an tes de comear a consulta iam at o gong,

    batiam cabea *, colocando a testa em cima da mesa e batendo

    levemente trs vezes, para a esquerda, direita e depois de frente. De

    pois disso, concentravam-se*, uns de p em frente ao altar, outros

    O terreiro 33

    se

    ntad

    os nos tocos. A concentrao consistia em ficar alguns segun

    dos em silncio para logo comear a ent rar em transe. O tempo para

    iniciar o transe no era igual para todos - uns demoravam mais,

    outros menos. Tambm no ocorria da mesma forma: os que estavam

    senta

    dos enrijeciam o corpo e comeavam a balan-lo para a frente e

    para trs, e os que ficavam em p enrijeciam tambm o corpo, mas

    tremiam da cabea aos ps at que o santo incorporasse*. Sentados ou

    em p, depois desse

    mov

    ime

    nto

    surgia a figura

    do

    santo, logo reco

    nh

    ec

    ida

    por

    ter caracterstic

    as

    bem marcantes. O preto-

    vel

    ho, por

    exemplo, era uma figura encarquilhad

    a,

    andando com dificuldade e

    falando muito atrapalhado. Depois que o santo incorporava, iam

    se

    n

    tar-

    se

    nos tocos e iniciava-se a consulta.

    Os clientes eram encaminhados par a falar com os guias pela me

    pequena, que antes recolhia o dinheiro do consulente, uma quantia de

    cinco cruzeiros para cada consulta. Os clientes ent ravam na sala do

    gong sem sapato

    s.

    Alguns faziam um cumprimento diante do gong,

    curva

    nd

    o ligeiramente o corpo para baixo e depois dirigiam se ao

    guia com

    quem desejavam falar. C

    umprim

    e

    nta

    vam o guia com o

    a

    br

    ao ritual (encosta-se o ombro direito

    no

    ombro direito

    do

    m

    dium e depois o esquerdo no esquerdo do mdium). Geralmente o

    guia iniciava a consulta perguntando como ia a pessoa e logo depois

    se

    u nome, quando no era conhecida. O cliente, ento, comeava a

    contar o problema que o levara consulta.

    Nem todos os mdiuns incorporavam guias que davam consult

    a.

    Apenas Mrio, o presidente; Pedro, o pai-de-sa

    nt

    o; Marina, Carmen,

    Manuel e d. Jandira. Mais tarde, a irm de Pedro, Josefa, pa

    sso

    u tam

    bm a poder dar consulta com

    se

    u preto-velho.As tcnicas usad

    as

    nas

    consultas

    por

    cada um dos guias dessas pessoas variavam.

    O pai-de-santo jogava

    b

    zios ,s vezes incorporado, outras vezes

    no. Mrio,

    quando

    recebia sua pomba-gira, botava cartas e lia a

    mo

    .

    Os guias de Carmen apenas conversavam com os clientes e

    costumavam, mais do que os outro

    s,

    descarregar* as pessoas, ou

    se

    j

    a,

    afastar dela os maus fluidos. Costuma-se dizer que a pessoa est car

    regada, quer dizer, c

    om

    problemas causados por feitio, olho grande*

    ou pelos orixs e qu e precisam ser descarregada

    s.

    um ato de puri

    fi-

    cao que o guia faz, passando a mo pelo corpo do cliente e puxando

    suas mos com fora para baixo. Marina costumava mandar os clien

    tes guardarem a guimba de seus charutos ou, ento, fum-los, para

    abri r

    se

    us caminhos, isto , para melhorar a vida deles. Manuel rece-

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    17/90

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    18/90

    36

    Guerra de orix

    O desenvolvimento era uma aula,

    na

    s palavras do pai-de-santo,

    que iniciou uma delas dizendo: Hoje dia de desenvolvimento. No

    s para desenvolver os guias. uma aula; para vocs saber riscar

    um ponto, saber o que um tambor,

    uma

    ve la e pra que serve. pra

    vocs aprender as coisas da lei:

    Todos os mdiuns eram obrigados a comparecer nesse dia. O

    pai-de-santo iniciava os trabalhos fazendo uma breve preleo, quer

    dando uma explicao, quer repreendendo os mdiuns pelos erro s

    cometidos na semana: atrasos, problemas de freqncia

    ou

    falta de

    responsabilidade.

    Os mdiuns ouviam sentados nos tocos ou em p.

    Depois, o pai-de-santo mandava comear a bater e os mdiuns, de

    p, formavam dois semicrculos, de um lado e de outro do altar,

    homens direita e mu lheres esquerda. Comeavam a cantar os

    pontos dos orixs e os dois semicrculos transformavam-se em uma

    roda que ia girando, enquanto pouco a pouco os mdiuns entravam

    em transe. Iniciava-se, ento, o desenvolvimento dos guias, que con

    sistia em fazer com que o mdium fosse controlando e dando forma a

    seus guias. O desenvolvimento dos guias era um exerccio que consis

    tia em fazer com que o mdium, com os ps

    fixos

    no

    cho, c

    ont

    rolasse

    o transe. Enquanto isso, o pai-de-santo gritava: Firma*, firma .. e

    dizia o nome do guia que estava sendo incorporado. O mdium ia

    controlando os movimentos do corpo

    e,

    ento, sem que casse no

    cho ou ficasse desequilibrado, ia-se

    de

    lineando a figura de

    um

    guia.

    Esses exerccios eram feitos com todos os mdiuns, mas especial

    mente com os que estavam comeando - novos no santo. Muitas

    vezes o pai-de-santo pedia a um mdium j mais desenvolvido, e em

    estado de possesso, que ajudasse outro mais novo. O primeiro segu

    rava as mos do segundo e gritava o nome do seu g

    ui

    a em seu ouvido.

    Essas sesses demoravam muito tempo e muitas vezes um ou

    outro mdium passava mal *, exigindo cuidados especiais do pai

    de-santo. Esse fato ocorreu mais vezes no ltimo ms de vida do

    terreiro, quando o conflito entre o pai-de-santo e o presidente se

    agravou. Passar ma l no era visto como doena. O mdium podia

    desmaiar, vomitar etc., mas esses males eram provocados por feitio

    (coisa feita*), olho grande ou pelos prprios guias do mdium.

    Num desses dias de desenvolvimento, vi

    um

    guia surgir. A m

    dium que estava sendo desenvolvida era uma moa que qua

    se

    nunca

    entrava em transe e c

    uj

    os movimentos, quando isso acontecia, eram

    descoordenados, levando-a muitas vezes a cair no cho. Nesse dia,

    O t erreiro

    37

    enquanto o pai-de-santo ia dizendo Firma': uma figura retorcida ia

    surgindo. A cabea meio virada para o lado, uma das mos para trs ,

    a outra movimentando-se em forma de garra. Dava uivos e uma

    gargalhada estridente, e comeou a falar, ameaando de morte uma

    senhora da assistncia.

    Es

    ta foi at a sala do gong e recebeu tambm

    um guia que comeou a falar uma lngua estranha com o guia que a

    ameaava. A out ra parecia entender, pois respondia, sempre amea

    ando fazer passar * o cavalo. Disseram-me depois que aquela figura

    era um exu de duas cabeas* e que a tal senh

    ora

    - desconhecida da

    mdium - tinha-lhe prometido algo que no cumprira. A senhora,

    uma negra aparentando 35 anos, tinha

    um

    terreiro e era a primeira

    vez que ia ao Caboclo Serra Negra. Enquanto tal cena

    se

    passava, os

    outros mdiuns pareciam nervosos e agitavam-se de um lado para o

    outro. O pai-de-santo

    procu

    rava acalmar o exu de duas cabeas que

    pela primeira vez descia naquela terra. O desenvolvimento parecia

    uma aula de preparao de ator para que representasse bem um papel.

    Mas essa aula diferia da outra pela violncia simblica da repre

    sentao dos atares. No eram papis que um ator de teatro repre

    senta com certo distanciamento. Eram figuras, guias, que faziam parte

    ou

    eram parte do ator em causa, o cavalo.

    O terceiro tipo de ritual realizado no terreiro era a sesso de

    domingo- a gira. Tais sesses eram ded

    ic

    adas ao trabal

    ho

    com todos

    os or ixs, permitindo que todos viessem terra.

    Ass

    im como o desen

    volvimento, elas eram de incio quinzenais, passando depois a sema

    nais e, no ltimo ms, novamente passaram a ser realizadas quinze

    nalmente. Deviam

    co

    mear s

    16

    horas,mas sempre comeavam mais

    tarde. Essas mudanas foram exigidas pelo pai-de-santo e estavam

    ligadas aos fatos que ocorriam no terreiro. No prximo captulo isso

    ser explicado.

    A primeira sesso

    de

    domingo do terreiro

    fo

    i realizada sob a

    chefia do novo pai-de-santo. Essas sesses seguiam

    um

    determinado

    encaminhamento qu e se manteve inalterado duran te todo o tempo de

    vida do terreiro. Os mdiuns descreviam a sesso, dividindo-a em

    duas partes: a primeira chamada de dar firmeza ao terreiro * e a

    segunda que se relacionava com a chamada dos orixs *.

    Afirmeza do terreiro iniciava-se com o pai-de-santo riscando um

    ponto de Ogum debaixo do altar e outros doi s pontos riscados* em

    dois cantos da sala da assistncia e da sala do gong. Os pontos ri sca

    dos so as insgnias de cada orix (o smbolo de cada o rix, como rnc

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    19/90

    l

    38

    Guerra de orix

    disse Mrio). Eram feitos da seguinte forma: traava-se

    um

    crculo

    com giz (a pemba) no cho, dentro do qual desenhavam-se sinais

    como cruzes, espadas etc. Em cima de cada ponto riscado eram colo

    ca

    do

    s

    um

    copo com gua e uma vela. Riscavam-se ainda pontos na

    casa das almas e de exu e na

    porta

    de entrada do terreiro. Enquanto

    isso, os mdiuns acendiam suas velas ao lado de um copo com gua

    para seus anjos da guarda. Depois, vestidos de branco, ficavam em

    forma *,

    ou

    seja, dispos

    to

    s em dois

    se

    micrculo

    s,

    mulheres do lado

    esquerdo e homens do lado direito do gong. O pai-de-santo coloca

    va-se de costas em frente a este, e a me-pequena a

    se

    u lado. O tambor

    comeava a tocar sob as ordens do pai-de-santo, que iniciava o pon to

    de defumao*. Enquanto isso a me-pequena ia com o defumador*

    purificando cada

    um

    dos mdiuns, o gong, os cantos das salas do

    gong e da assistncia (inclusive a porta que dava passagem de uma

    sala para a o

    ut r

    a) a e

    ntrad

    a

    da

    escada para a sala da a

    ss

    istncia, para a

    rea, a casa de exu e das almas, a porta que dava entrada para esta rea

    e a ent rada do terreiro. Algumas vezes defumava, um por um todos os

    assistentes, que deviam ficar de frente para o defumador com os

    br

    aos abertos e voltados para baixo e depois

    dar

    -lhe as costas. Algu

    mas pessoas, quando de frente, faziam um gesto como se estivessem

    lavando as mos na fumaa.

    Ca ntava-se depois o ponto da encruza* enquanto a me-pequena

    fazia com uma pemba branca uma cruz nas palmas e nas costas das

    mos de cada mdium algumas vezes de cada assistent

    e.

    Entregava

    depois a pemba ao pai-de-santo. Este desenhava cruzes nas mos da

    me-pequena e nas suas, voltava-se para o altar e fazia uma genufl

    e-

    xo, marcando ao mesmo tempo

    uma cr

    uz

    no

    cho. Isto feito, era

    cantado o ponto de abertura

    da

    gira*, enquanto a me-pequena pega

    va uma pemba e retirava um pedao que levava para a casa das almas,

    de exu e para a

    porta

    do terreiro. Em seguida os m

    diun

    s ajoelhavam

    se e com uma das mos

    no

    cho cantavam

    um

    ponto de louvor a Jesus

    e Virgem Maria e o tambor no tocava. Cantavam um ponto de

    abertura dos trabalhos*, salvando* Oxal, e ainda outro para pedir a

    so Jorge que firmasse o terreiro.

    Passava-se ao pon

    to

    de bater cabea* e

    um

    por

    um

    os mdiuns

    d

    ei

    tavam-

    se em

    frente ao al

    tar

    e batiam a cabea

    tr

    s vezes no cho,

    para a direita, para a esquerda e para a frente. Levantavam-se e batiam

    mais trs vezes com a testa no gong, deitavam-se novamente (repe-

    tindo o gesto

    qu

    e fizeram diante do a

    lt

    ar) diante da me-pequena e

    O terreiro 39

    depois em fren

    te

    ao pai-de-santo, os quais faziam

    um

    leve aceno

    mandando que se levantassem. Quando todos os mdiuns termina

    vam esses gestos, a

    m

    e-pequena fazia o mesmo. O pai-de-santo no

    se deitava em frente ao altar; batia apenas a testa no gong e depois

    ajoelhava-se diante dele e beijava o pano que o cobria. Ajoelhava-se

    novame

    nt

    e diante

    da

    mesa onde ficavam

    as

    velas para os anjos da

    guarda e beijava tambm a toalha que a cobria. Virava-se depois para

    os mdiuns

    e,

    diante de cada um, batia a

    mo

    trs

    ve

    zes

    no cho em

    forma de c

    ru

    z. Voltava-se, finalmente, para a assistncia e cumpri

    mentava-a levantando os braos para cima com as palmas das mos

    viradas para a frente.

    Iniciava-se

    en t

    o a seg

    un

    da parte

    da

    sesso, com a chamada de

    todos os orixs. Os mdiuns formavam um crculo que girava ao

    mesmo tempo em que eles danavam, rodando em torno de si mes

    mos balanando os braos e batendo palmas. Havia uma ordem de

    chamada dos orixs: iniciava-se com os caboclos, seguidos de

    Og

    um,

    exu, Xang, Iemanj, mame Oxum, pretos-velhos e, finalmente,

    crianas. Em cada uma das chamadas cantavam-se os pontos dos

    guias

    de

    todos os m diun

    s,

    que iam,

    um

    a

    um

    , e

    nt

    rando em transe,

    receben

    do

    seus guias. Quando terminavam todos os pontos

    do

    s cabo

    clos, por exemplo, cantava-se o ponto de subida de cada um deles e

    pouco a pouco os mdiuns iam saindo do transe. Ass im se dava para

    todos os orixs: primeiro a chamada, depois a subida. A me-pequena

    ge

    ralmente puxava os pontos* e, quando

    um

    mdium comeava o

    transe, batia uma campainha e gritava o nome do guia do mdium,

    at que a possesso propriamente dita ocorresse.

    A ordem da chamada dos orixs podia variar um pouco; mas

    se

    mpr

    e era in iciada com os caboclos.

    s

    vezes chamavam-se os exus,

    logo depois dos caboclos e depois, ento, os outro

    s. Alg

    umas vezes

    deixav

    am

    de cha

    mar

    Xang

    ou

    Ian

    s.

    Fazia-se, ento, uma pausa e os

    mdiuns iam para a sala da assistncia conversar com os amigos

    ou

    parent

    es

    que l estivessem. As mulheres iam para a cozinha e serviam

    caf, bolo

    ou

    sanduch

    es

    para a assistncia. Essa pausa dura

    va

    cerca de

    20 minutos, quando a sesso era reiniciada.

    Na hora da chamada dos exus, geralmente colocava-se

    um

    pano

    sobre as imagens do altar e ningum podia sair do terreiro. A sesso

    demorava mais na

    ho

    ra dos exus e pretos-velhos e n

    esse

    momento

    ficava mais animada':

    Na

    hora das crianas, os meninos e as meninas

    da a

    ss

    istncia participavam, entrando na sala do gong, recebendo

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    20/90

    40

    Guerra

    de

    orix

    bala e bolo dos guias. O terreiro ficava cheio de papel de bala e de

    pedaos de bolo. Quando chamavam Ogum, um dos mdiuns ia at o

    altar e riscava seu ponto.

    A sesso terminava com todos os mdiuns batendo cabea, desta

    vez

    s em frente ao altar. O pai-de-santo, ento, os liberava.

    Cada uma das entidades usava determinados objetos rituais: cha

    rutos e cigarros de palha para os caboclos; cachimbo e vinho para os

    pretos-velhos e

    cachaa-

    marafo* - para os exus.

    As

    crianas be

    biam guaran e algumas traziam chupetas, bonecas ou outros brin

    quedos.

    As

    bebidas eram servidas no coit* e os mdiuns, incorpora

    dos, iam s vezes at a assistncia oferecer sua bebida. Me-pequena e

    samba auxiliavam os mdiuns.

    Cada entidade tinha uma representao corporal, voz

    ou

    gritos

    especficos. Os exus falavam palavro e as pombas-giras faziam gestos

    obscenos, masturbando-se ou chamando os homens. Os pretos-ve

    lhos sentavam-se nos tocos ou andavam curvados. Ians e Iemanj

    ofereciam bebida em clices para a assistncia. Todos os orixs apre

    sentavam suas danas especficas para a assistncia e cumprimenta

    vam

    -n

    a

    com

    o abrao ritual.

    Esta era a ordem de seqncia dos trabalhos, mas

    as

    sesses de

    domingo nunc a se realizavam sem que houvesse incidentes que sero

    narrados no prximo captulo.

    Houve mudanas na atitude dos mdiuns e na prpr ia vivncia

    das sesses du rante o perodo de vida do terreiro. Falarei sobre dois

    momentos bem marcante

    s.

    O primeiro, que vai do afastamento da

    me-de-sa

    nto

    at o incio do conflito entre o pai-de-santo e o presi

    dente e o segundo, dai at a ltima sesso de domingo.

    Durante o primeiro perodo, os mdiuns realizavam

    as

    sesses

    em ambiente de euforia. Todos chegavam cedo no terreiro e a sesso

    estendia-se noite adentro. A me-pequena, quand o tocava a

    ca

    mpai

    nha perto do mdium que iniciava o transe, sorria para

    ele.

    Os orixs

    cumprimentavam a assistncia muitas

    vezes,

    levantando os braos e

    abraando

    um

    ou outro cliente. Quando abraavam diziam frases

    como: Vo u proteg chuc

    ou

    Chuc formosa':

    ou

    ainda Chuc

    vai bem? Ofereciam bebidas aos clientes e havia maio r movimenta

    o dos mdiuns incorporados entrando e saindo da sala do gong.

    Havia consulta na hora dos exus, pretos-velhos e caboclos. Esta

    hora era ao mesmo tempo tensa e confusa. Os mdiuns possudos iam

    para perto da casa de exu e davam consulta. Alguns assistentes logo se

    O terreiro 4

    encaminhavam seguros, outros iam devagar com uma expresso de

    medo e espanto. Principalmente, na hora dos dois primeiros o terrei

    ro ficava em rebulio, com pessoas entrando c saindo da sala do

    gon

    g.

    Como tinham de tirar os sapatos para entrar nesta sala, ficava

    difcil a passagem com tantos pares de sapatos amontoados perto da

    porta. Os exus

    fa

    lavam alto, dizendo palavres e os clientes apenas

    riam, sem

    se

    importar, pois eram os guias que estavam

    fa

    lando. Nessa

    hora,

    s

    o tambor tocava e

    um

    ou outro mdium que ainda no

    recebia cantava os pontos

    7

    . Os clientes levavam presentes para os

    guias e estes conversavam longamente com eles sem se preocupar com

    o tempo.

    O nico mdium que passava mal era a primeira me-pequena e

    era sempre ajudada por seus pares. Algumas pessoas da assistncia,

    principalmente mulheres, entravam

    num

    transe desordenado e os

    mdiuns iam at el

    as

    e levavam-nas para a sala do gong, onde o

    pai-de-santo

    as

    ajudava a sair do transe ou a receber o guia. s vezes

    aparecia um bbado- era proibida a entrada de pessoas alcoolizadas

    no terreiro - e a sesso custava a terminar, pois tinham de fazer

    trabalhos para limpar a casa*.

    Todos os mdiuns tinham o mesmo papel na sesso, ou seja,

    recebiam, danavam e davam consulta. Os pontos para os guias de

    cada mdium no seguiam a ordem de importncia na hierarquia,

    dependiam da vontade da me-pequena ou

    do

    pai-de-santo

    8

    . Este,

    mesmo estando incorporado, dirigia a sesso mandando cantar os

    pontos, dizendo a hora em que os orixs deviam subir* e resolvendo

    os problemas que surgiam. Recebia muitos orixs e gostava de bater o

    tambor quando percebia que o ritmo do og improvisado estava

    atrapalhando os trabalhos. No intervalo para descanso havia muita

    conversa, no s entre os mdiuns como ent re eles e as pessoas da

    assistncia.

    No segundo perodo, como o presidente exigira que as sesses

    terminassem mais cedo, no

    se

    permitiam mais consultas. Assim, a

    participao da assistncia no ritual diminuiu. Os cumprimentos e

    oferecimentos das bebidas aos clientes tambm diminuram. O pai

    de-santo passou a receber apenas seu preto-velho e houve sesses em

    que no recebeu nem este. Os mdiuns tinham mais dificuldade de

    entrar em transe e muitos passavam mal, inclusive o pai-de-santo. A

    me-pequena no sorria mais para chamar os guias dos mdiuns no

    incio do transe e ela mesma no incorporava mais nenhum guia . Os

  • 7/21/2019 Yvone Maggie Guerra Orixa

    21/90

    42

    Guerra de orix

    mdiuns comearam a demorar para chegar no ter re iro e muitos

    comearam a faltar s sesses.

    A di ferena fundamental, no entanto, foi a mudana do papel do

    pres idente nas sesses. No era mais um dos o?edecendo s

    ordens do pai-de-santo; passou a ficar a sesso mtetra mcorpora

    do

    ,

    com sua pomba-gira, para segurar a gira, distinguindo-se,

    p o r : a ~ t o

    dos outros mdiuns. Essa mudana fic ar mais clara no proximO

    capitulo. . ,

    Minha prpria participao nesses d01s penados r e u algumas

    al

    teraes. Na primeira sesso de domin

    go, g u ~ s

    .mdmns me

    guntaram se eu no queria me consultar. N

    o

    aceitei, pensando par_l

    cipar apenas como observadora. Mas isso no durou nem essa sessao.

    Quase no fin al

    0

    pai-de-santo, incorporado com seu preto-velho,

    chamou-me para a sala

    do

    gong . Tirei os