excelentÍssimo senhor doutor juiz de direito da 4ª vara · para a degradação humana. mesmo...

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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS 25ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE GOIÂNIA 1 EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA 4ª VARA CRIMINAL DE GOIÂNIA – VARA DA EXECUÇÃO PENAL. "Ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões. Uma nação não deve ser julgada pelo modo como trata seus cidadãos mais elevados, mas, sim, pelo modo como trata seus cidadãos mais baixos". NELSON MANDELA O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS, por seu 25º Promotor de Justiça da Comarca de Goiânia, vem à presença de Vossa Excelência, com fundamento no art. 66, VIII, da Lei de Execução Penal, requerer a INTERDIÇÃO PARCIAL dos estabelecimentos penais que compõem o COMPLEXO PENITENCIÁRIO DE APARECIDA DE GOIÂNIA e da CASA DO ALBERGADO MINISTRO GUIMARÃES NATAL, nos termos seguintes: I – OCUPAÇÃO/SUPERLOTAÇÃO DAS UNIDADES O complexo penitenciário de Aparecida de Goiânia é integrado pela Penitenciária Odenir Guimarães (POG), Casa de Prisão Provisória (CPP), Penitenciária de Mulheres, Núcleo de Custódia e pela Colônia Agroindustrial do regime semi-aberto. A Casa do Albergado Ministro Guimarães Natal, destinada ao regime aberto, situa-se no Jardim Europa, nesta Capital. A superlotação dos estabelecimentos penais não é novidade, sendo uma situação que remonta há décadas, marcadas pela falta de políticas públicas voltadas para

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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS

25ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE GOIÂNIA

1

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA 4ª VARA

CRIMINAL DE GOIÂNIA – VARA DA EXECUÇÃO PENAL.

"Ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas

prisões. Uma nação não deve ser julgada pelo modo como trata seus cidadãos mais

elevados, mas, sim, pelo modo como trata seus cidadãos mais baixos".

NELSON MANDELA

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS, por seu 25º

Promotor de Justiça da Comarca de Goiânia, vem à presença de Vossa

Excelência, com fundamento no art. 66, VIII, da Lei de Execução Penal,

requerer a INTERDIÇÃO PARCIAL dos estabelecimentos penais que

compõem o COMPLEXO PENITENCIÁRIO DE APARECIDA DE

GOIÂNIA e da CASA DO ALBERGADO MINISTRO GUIMARÃES

NATAL, nos termos seguintes:

I – OCUPAÇÃO/SUPERLOTAÇÃO DAS UNIDADES

O complexo penitenciário de Aparecida de Goiânia é integrado pela

Penitenciária Odenir Guimarães (POG), Casa de Prisão Provisória (CPP), Penitenciária

de Mulheres, Núcleo de Custódia e pela Colônia Agroindustrial do regime semi-aberto.

A Casa do Albergado Ministro Guimarães Natal, destinada ao regime aberto, situa-se no

Jardim Europa, nesta Capital.

A superlotação dos estabelecimentos penais não é novidade, sendo uma

situação que remonta há décadas, marcadas pela falta de políticas públicas voltadas para

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o setor penitenciário, notadamente pelo desinteresse na construção de novas unidades. O

resultado que se tem é uma ocupação desmedida das prisões, diante da tolerância que

existe ao amontoamento de homens e mulheres em ambientes que somente contribuem

para a degradação humana. Mesmo conscientes dos reflexos nefastos do

encarceramento de pessoas em prisões superlotadas (comprovadamente um dos

principais fatores criminógenos na atualidade), os agentes do Estado insistem em

ignorar essa realidade, limitando-se a repetir os erros do passado, fazendo das prisões

simples depósitos de pessoas, sem qualquer respeito aos limites físicos de ocupação.

No caso dos estabelecimentos jurisdicionados por essa Vara de Execução

Penal, segundo o mais recente relatório da Secretaria de Estado da Justiça repassado a

esta Promotoria de Justiça (docs. 1-8), as unidades estão assim ocupadas:

Estabelecimento Penal Capacidade Ocupação atual Déficit

PENITENCIÁRIA ODENIR

GUIMARÃES 730 1406 676

CASA DE PRISÃO PROVISÓRIA 680 1208 528

NÚCLEO DE CUSTÓDIA 30 59 29

PENITENCIÁRIA DE MULHERES 24 49 25

COLÔNIA AGROINDUSTRIAL (NOVO

SEMI-ABERTO) 230 394 164

COLÔNIA AGROINDUSTRIAL

(ANTIGO SEMI-ABERTO) 109 186 77

CASA DO ALBERGADO 120 237 117

TOTAL GERAL 1923 3539 1616

Chega a ser assustador, mesmo para quem há tanto tempo milita na

execução penal, o panorama desolador e degradante desses estabelecimentos penais

superlotados. Seja na cadeia pública ou na penitenciária; nas unidades de homens ou de

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mulheres; nas unidades do regime fechado ou semi-aberto; ou até no albergue, o que se

vê é miséria, abandono e indignidade. Resultado não apenas da superlotação carcerária,

mas que se potencializa pelas previsíveis conseqüências advindas dessa cultura que tem

a prisão como mero depósito de pessoas, amontoadas de qualquer maneira, mesmo que

não haja espaços sequer para o repouso noturno.

Particularmente no que tange à Casa de Prisão Provisória, cuja ocupação

fora discutida em incidente específico perante essa VEP no final do ano de 2003, numa

iniciativa que já demonstrava a preocupação dos órgãos da execução penal,

particularmente do Ministério Público e da própria VEP, para com a ocupação ilimitada

dos espaços carcerários, há uma fixação judicial do limite de superlotação daquela

unidade. Na ocasião fixou-se em 1.250 presos o limite de ocupação da CPP. Mesmo

tendo sido tal providência determinada em procedimento instaurado por este Órgão,

hoje percebe-se o equívoco da medida que, não obstante algum pequeno efeito positivo,

acabou na prática por legitimar o abuso e a ilegalidade da superlotação. Talvez tenha se

servido aquela providência como uma espécie de pausa para a reflexão, até que viesse

uma medida duradoura, como a que ora se apresenta.

Os espaços carcerários há muito estão superlotados, fato que, a despeito

das extremamente danosas consequências derivadas do amontoamento de pessoas nas

prisões, é por muitos visto como normal. Regras estabelecidas em diversos estatutos,

desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem, passando pelo Pacto de San José

da Costa Rica, pela Constituição brasileira, chegando às expressas disposições da Lei de

Execução Penal, são simplesmente ignoradas.

A tragédia humanitária que se percebe no interior das prisões deixa

patente que não é sem razão que o Brasil vem sendo reiteradamente denunciado pelos

órgãos internacionais de defesa de direitos humanos.

II – DEFICIÊNCIA NA ASSISTÊNCIA À SAÚDE DOS PRESOS

Sobre a assistência ao preso, dispõe a Lei de Execução Penal:

Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o

crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.

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Parágrafo único. A assistência estende-se ao egresso.

Art. 11. A assistência será:

I - material;

II - à saúde;

III - jurídica;

IV - educacional;

V - social;

VI - religiosa.

No complexo penitenciário de Aparecida de Goiânia têm sido rotineiras

reclamações trazidas ao Ministério Público em razão da deficiência no atendimento à

saúde da população carcerária, situação decorrente, dentre outros fatores, também da

superlotação. As unidades prisionais não estão aparelhadas para uma demanda que vai

muito além de sua capacidade e de suas condições estruturais.

Não obstante a formalização de recomendações deste Órgão diretamente

aos diretores das unidades1 ou mesmo às instâncias superiores da Secretaria de Estado

da Justiça, as deficiências persistem e continuam a resultar em violações a esse direito

básico do preso. Sobre a assistência à saúde, dispõe a LEP:

Art. 14. A assistência à saúde do preso e do internado de caráter preventivo e curativo,

compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico.

§ 1º (Vetado).

1 A partir de reclamações de presos e familiares de presos, bem como da Pastoral Carcerária, somente no

ano de 2007 e neste início de 2008, foram encaminhadas 39 (trinta e nove) recomendações formais do

Ministério Público às diversas instâncias da administração penitenciária, objetivando a garantia de

atendimento à saúde da população carcerária nos casos mais graves.

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§ 2º Quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência

médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do

estabelecimento.

Pessoas com doenças graves ou infecto-contagiosas alojadas em

ambientes superlotados e insalubres, em contato direto com outros presos; homens que

carecem de intervenções cirúrgicas ou acompanhamento pós-operatório, outros de

atendimento odontológico de urgência; portadores de distúrbios psiquiátricos sem

acesso à medicação de controle. Essa é a realidade dos estabelecimentos penais do

complexo de Aparecida de Goiânia, perceptível em visita a qualquer de suas unidades.

O crônico problema da falta de água potável para consumo dos presos,

embora objeto de procedimento no âmbito do Ministério Público com perspectiva de

solução em termo de ajustamento de conduta, persiste há tempos e expõe mais ainda a

saúde da população carcerária. A propósito do assunto, em relatório após inspeção

realizada por aquele Órgão na Penitenciária Odenir Guimarães (doc. 9), o Conselho

Penitenciário do Estado de Goiás atestou:

“Situação precária. A água do presídio é fornecida pelo DAIAG – Distrito Agroindustrial

de Aparecida de Goiânia. A interrupção no fornecimento de água em um domingo anterior

a essa inspeção (dia de visita) provocou um início de revolta pelos presos, cujo movimento

foi contido com tomada de providência rápida. Na ocasião, foi feito o abastecimento pela

Saneago e Corpo de Bombeiros”.

Convém também registrar que em recente visita à Penitenciária Odenir

Guimarães (realizada em fevereiro último), esta Promotoria de Justiça foi comunicada

pela direção que não havia sequer aspirinas na farmácia daquela unidade e que os

medicamentos somente ficam disponíveis quando se consegue alguma doação. Na

ocasião, não havia previsão sobre futuro provimento de medicamentos para o

atendimento básico da população carcerária. Sobre a questão, o relatório do Conselho

Penitenciário, acima referido, também informa:

“Geralmente são recebidas doações de medicamentos feitas por laboratórios, os quais, no

entanto, não são utilizados em razão de que não existe o profissional para fazer a

prescrição”.

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Outro agravante em matéria de assistência ao preso é o deficiente serviço

de transporte e escolta. Mesmo aqueles presos que conseguem a marcação de consultas

ou de exames laboratoriais não têm garantido o atendimento, pois nem sempre haverá

transporte disponível ou, eventualmente, escolta para o serviço. Inclusive procedimentos

cirúrgicos já se frustraram pela deficiência no transporte. Como se vê dos documentos

provenientes da Secretaria de Estado da Justiça, somente no ano de 2007 cerca de 100

(cem) procedimentos agendados deixaram de se realizar por deficiência no serviço de

transporte e de escolta (docs. 10-11), ao passo que somente nos quatro primeiros meses

deste ano de 2008 outros 65 (sessenta e cinco) procedimentos se frustraram pelos

mesmos motivos (doc. 12).

Embora seja desnecessário argumentar acerca do prejuízo humano

decorrente da não realização de procedimentos dessa natureza, nunca é demais lembrar

que é previsível o agravamento do quadro clínico do doente, que, além de levar ao

aumento do sofrimento e da dor, pode resultar em mutilações, atrofias irrecuperáveis,

debilidades permanentes, morte.2

Não há, é bom que se diga, uma rebelião em andamento ou qualquer

outra espécie de insubordinação ou alteração da ordem interna dos estabelecimentos3.

Ocorre, sim, uma tragédia silenciosa. Colapso talvez seja palavra que defina o que

2 Em visita realizada na Casa de Prisão Provisória no dia 17 de abril/2008, constatei pessoalmente a

situação crítica em que se encontra a assistência à saúde da população carcerária. Na ocasião, visitei o

posto de saúde da CPP, onde conversei com diversos presos doentes, dois dos quais (Marcos Correia

Braga e Valtemir Ribeiro da Costa) correm o risco de terem braços amputados por não conseguirem

atendimento adequado. Tudo isto diante de uma única técnica em enfermagem, impotente diante da

situação, talvez tão desamparada nas suas condições de trabalho quanto os presos na assistência à saúde.

3 É fato, todavia, que no final de 2007 houve uma rebelião no interior da Penitenciária Odenir Guimarães,

que resultou inclusive na morte de um preso, evento ocorrido logo após a veiculação na imprensa

goianiense de imagens produzidas em vídeo pela ASPEGO (Associação dos Servidores do Sistema

Prisional do Estado de Goiás), documento que mostra com muito realismo a precariedade das instalações

e o quadro de superlotação daquela unidade prisional (doc. 13).

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acontece no interior das unidades prisionais. Homens e mulheres encarcerados sob

condições de indignidade em ambientes insalubres e que não comportam tantas pessoas,

sem um mínimo atendimento à saúde.

Situação que afronta o princípio da dignidade da pessoa humana, pilar da

República Federativa do Brasil enquanto Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, da

CF), expondo seres humanos a um desnecessário sofrimento extra no cumprimento da

pena, em colisão direta com os direitos do preso expressamente previstos na

Constituição e na Lei de Execução Penal.

Afinal, a Constituição veda penas cruéis (art. 5º, XLIII) e assegura aos

presos o respeito à sua integridade física e moral (art. 5º, XLIX), ao passo que o art. 3º

da LEP prevê textualmente que “ao condenado e ao internado serão assegurados todos

os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”.

III – CONFIGURAÇÃO DE TORTURA

O que ocorre no complexo penitenciário de Aparecida de Goiânia quanto

à superlotação e às deficiências no atendimento à saúde da população carcerária é de tal

gravidade a ponto de configurar crime de tortura, tipificado pela Lei nº 9.455/97, que

assim dispõe:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe

sofrimento físico ou mental:

(...)

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de

segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto

em lei ou não resultante de medida legal.

§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou

apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

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(...)

§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

I – se o crime é cometido por agente público;

(...)

O estatuto jurídico estabelecido pela Lei de Execução Penal, ao definir os

limites da ação do Estado no exercício do jus puniendi, particularmente no momento em

que executa a sanção penal, estabelece textualmente as obrigações e os direitos do

preso. Determina também que esses direitos devem ser preservados por não terem sido

alcançados pela sentença condenatória ou pela lei. A pena é privativa da liberdade,

exclusivamente da liberdade, não podendo atingir, entre outros, o direito a um espaço

mínimo que garanta respeito à dignidade humana ou o direito à assistência à saúde da

pessoa submetida à prisão.

Inúmeros direitos expressamente previstos na Constituição e na Lei de

Execução Penal são violados pela ação do Estado que, na execução penal, insiste em

considerar o indivíduo preso como objeto. Ao manter pessoas humanas em espaços

insuficientes (que muitos já disseram se parecer com latas de sardinha, mas que são de

concreto mesmo), bem como ao negar assistência à saúde daquele indivíduo

encarcerado, ignorando os gritos abafados pelos corredores das prisões, o Estado pratica

tortura, provoca sofrimento ilegal e absolutamente desnecessário ao preso,

desrespeitando princípio que é um dos fundamentos da sociedade brasileira

estabelecidos no art. 1º da Constituição Federal: a dignidade da pessoa humana4.

4 Sobre o direito ao respeito à dignidade como direito que merece proteção absoluta, a lição de MIREILLE

DELMAS-MARTY: “Quando se pergunta a um cidadão qualquer quais os direitos que ele colocaria no alto

da hierarquia, geralmente ele cita o direito à vida. Ora, o direito à vida, nessa hierarquia implícita dos

direitos humanos, não se encontra no cimo, pois todos os textos admitem o homicídio em caso de guerra

ou de legítima defesa e alguns admitem ainda a pena de morte. Então, que direito absoluto é esse que os

Estados não podem infringir nem sequer em caso de guerra ou de ameaças graves? É um direito que

formulamos pela proibição: a proibição da tortura e dos tratamentos desumanos e degradantes, a proibição

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E a Lei nº 9.455/97, acima citada, exige a atuação daqueles que têm o

dever legal de apurar ou evitar a tortura, sob pena de incorrer nas sanções previstas em

seu art. 1º, § 2º, não se podendo afastar dessa responsabilidade, cabe aqui salientar, os

agentes administrativos da execução e também aqueles a quem compete a fiscalização

dos estabelecimentos penais, com destaque para o Ministério Público e o Juízo da

Execução Penal.

É de se rechaçar, de maneira plena, a ilegalidade derivada dessa prática,

competindo essa relevante missão a Vossa Excelência, por força do disposto no art. 66,

VIII, da LEP. Não se pode compactuar com a tortura praticada no interior das prisões,

especialmente quando caracterizada pelo amontoamento ilimitado de seres humanos e

pela omissão em se atender aquela pessoa que padece de uma enfermidade e que,

portanto, carece de assistência à saúde.

III – DA ATUAÇÃO ADMINISTRATIVA DO JUÍZO DA EXECUÇÃO PENAL

Na execução penal, a par de suas competências classificadas como de

natureza estritamente jurisdicional, o juiz tem também atribuições de natureza

administrativa. Acerca do tema, a lição do saudoso MIRABETE:

“Além da competência jurisdicional estrita, o juiz também tem atribuições de caráter

administrativo quando tem por objetivo normalizar a execução penal, que está sujeita a

normas legais e a prescrições regulamentares. Nessa atividade, o juiz, agora como órgão de

administração, atua para tornar efetivo o interesse do Estado, decidindo, como titular de um

interesse particular, defender e preservar e tendo como limite apenas a lei. Exerce assim

funções administrativas, muitas vezes denominadas funções judiciárias em sentido estrito e

não função jurisdicional. Daí determinar a lei que compete ao juiz zelar pelo correto

da escravidão, ou seja, o único direito à proteção absoluta é o direito ao respeito da dignidade, no sentido

mais forte do termo: a dignidade da família humana. Pode-se matar em caso de guerra, mas não se pode

utilizar a tortura. A razão disso talvez seja o fato de que a morte atinge apenas o indivíduo e seus

próximos, é claro, enquanto que a tortura atinge, além das pessoas diretamente implicadas, a humanidade

inteira” (MIREILLE DELMAS-MARTY. Acesso à humanidade em termos jurídicos. In: A religação dos

saberes – o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 257-266).

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cumprimento da pena e da medida de segurança, inspecionar estabelecimentos penais,

interdita-los, compor e instalar o Conselho da Comunidade etc. (art. 66, incs. VI a IX)”.5

Elencando atribuições decorrentes da atuação administrativa do juízo da

execução penal, dispõe a LEP em seu art. 66, incisos VI a VIII:

Art. 66. Compete ao juiz da execução:

...

VI - zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança;

VII - inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providências para o

adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de

responsabilidade;

VIII - interditar, no todo ou em parte, estabelecimento penal que estiver funcionando em

condições inadequadas ou com infringência aos dispositivos desta Lei.

Especificamente sobre a possibilidade de interdição total ou parcial de

estabelecimento penal como decorrência da atuação administrativa do juízo da

execução, também ensina MIRABETE:

“O art. 66 da Lei de Execução Penal prevê também as hipóteses de competência do juiz da

execução para as atividades administrativas da execução penal. (...) Pode o juiz também

interditar, no todo ou em parte, o estabelecimento penal que estiver funcionando em

condições inadequadas ou com infringência aos dispositivos da lei (art. 66, VIII). Se, por

deficiências materiais, falta de segurança, inexistência de condições de salubridade etc.,

verificar o juiz a impossibilidade de se atender aos requisitos mínimos previstos para a

execução penal, deve interditar o estabelecimento total ou parcialmente. Evidentemente, tal

determinação somente se justifica na hipótese de graves irregularidades ou deficiências, que

não possam ser sanadas por outros meios menos drásticos, já que a interdição,

principalmente nos estabelecimentos penais de grande porte, provoca sérios problemas de

acomodação da população carcerária”.6

5 JULIO FABBRINI MIRABETE. Execução Penal, 11. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 177-1778.

6 Idem, p. 225.

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No caso dos estabelecimentos penais em comento, há dois motivos

principais que tornam imprescindível a atuação de Vossa Excelência para a

regularização do funcionamento daquelas unidades: a superlotação carcerária e a

extrema deficiência na assistência à saúde dos presos.

A superlotação é problema histórico, para o qual não há perspectivas de

solução, tanto pelo desinteresse de grande parte da sociedade quanto, particularmente,

pela pouca disposição política da União e do Estado de Goiás em enfrentar a questão.

Quanto às deficiências na assistência à saúde da população carcerária,

correspondem também a um problema crônico, antigo, e mesmo havendo iniciativas

esparsas para o melhor encaminhamento do tema, a questão não obtém uma definição

clara de como deve ser a rotina de atendimento ou, o que tem sido muito comum, não é

objeto da devida atenção pela administração penitenciária, que sofre também pelas

extremas carências de equipamentos e de pessoal, o que leva à precariedade do

atendimento e, muitas vezes, à não realização desse atendimento. É fato também que a

priorização absoluta das rotinas de segurança (fenômeno comum no sistema

penitenciário) faz com que o atendimento à saúde fique sempre para um segundo plano.

Mas é chegada a hora – aliás já é bem tarde – de se atuar com

determinação e fôlego redobrado para a busca de caminhos que possam auxiliar na

construção de um sistema penitenciário que contemple o encarceramento de pessoas

com respeito à dignidade humana. É a dignidade do indivíduo, como primeiro limite

material a ser respeitado por um Estado democrático, que fixa limites máximos à rigidez

das penas e aguça a sensibilidade de todos com relação aos danos por elas causados7. E

essa dignidade, leciona ADAUTO SUANNES, “diz com a necessidade de serem

observados por todos os membros da sociedade – e, por motivos bastante óbvios,

7 Cf. SANTIAGO MIR PUIG, Direito Penal – fundamentos e teoria do delito, p. 99.

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principalmente por seus juízes – determinados princípios, que se consideram

fundamentais para que aquela dignidade seja concretamente respeitada e feita valer” 8.

É certo que o problema das prisões não é exclusividade de Goiás ou do

complexo penitenciário de Aparecida de Goiânia. É um problema do país. Mas como a

atuação desse juízo, assim como desta Promotoria de Justiça, tem uma delimitação

precisa, nada impede que a solução por aqui tenha começo9, dentro dos exíguos espaços

da competência da Vara da Execução Penal de Goiânia. É tempo de dar um basta a tanta

atrocidade. Não só por significar desrespeito à dignidade de seres humanos, mas

também por produzir mais crime e mais violência. Sob a ótica de perdas e ganhos, o

resultado do que temos em decorrência da superlotação carcerária traz somente perdas...

E para todos, presos ou livres.

Nunca é demais lembrar, como faz LUIGI FERRAJOLI, que o Estado que

mata, que tortura, que humilha o cidadão, não só perde qualquer legitimidade como

contradiz a sua própria razão de ser, que é servir à tutela dos direitos fundamentais do

homem, colocando-se no mesmo nível dos delinqüentes10. No Brasil temos uma

execução penal jurisdicionalizada, o que faz muito sentido. E nesse espaço em que se

mostra para muitos tão estranha a idéia de direito e legalidade, sobressai a importância

da jurisdicionalização e da atuação garantista do juízo da execução penal, valendo aqui

o registro da memorável lição de ALBERTO SILVA FRANCO: “O juiz e a Constituição

devem ter, em verdade, uma relação de intimidade: direta, imediata, completa. Há um

nível de cumplicidade que os atrai e os enlaça. Na medida em que, de maneira explícita

8 ADAUTO SUANNES, Os fundamentos éticos do devido processo penal, p. 76.

9 Merece registro que a interdição parcial em termos próxima da que ora se propõe não é inédita, já tendo

sido decretada – até com maior amplitude – pela Vara da Execução Penal de São Luiz do Maranhão que,

em dezembro de 2005, determinou a INTERDIÇÃO PARCIAL dos estabelecimentos penais integrantes

do complexo penitenciário de Pedrinhas, naquele Estado, sob fundamentos e com objetivos muito

parecidos com os que aqui se apresentam (doc. 14).

10 Cf. LUIGI FERRAJOLI, Direito e razão, p. 364.

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ou implícita, dá-se positividade constitucional aos direitos fundamentais da pessoa

humana, estabelece-se, ao mesmo tempo, um sistema de garantias com o objetivo de

preservá-los. O juiz passa a ser o garantidor desse sistema”.11

IV – DAS PROVIDÊNCIAS A CARGO DO JUÍZO DA EXECUÇÃO PENAL

Aos órgãos fiscalizadores da execução penal compete atuar no sentido de

garantir a legalidade do funcionamento do sistema penitenciário, sob pena de incorrer o

agente omisso em crime previsto pela Lei de Tortura, conforme visto em linhas

pretéritas. Seja administrador de prisão, promotor de justiça, agente penitenciário ou

juiz de direito, o dever legal de agir se impõe.

E sobre esses agentes – entre os quais inclui-se obviamente o órgão do

Ministério Público que subscreve esta petição – pesa responsabilidade maior, qual seja,

a de garantir uma execução penal isenta de desvios ou de excessos; uma execução penal

que contribua para a segurança da sociedade, mas que, ao mesmo tempo, seja

respeitadora da dignidade daqueles seres humanos levados ao cárcere.

Será, pois, da atuação corajosa dos órgãos da execução, particularmente

do Juízo da Execução Penal, que se implementará esse modelo já previsto na

Constituição e nas leis. Esse modelo que faz do sistema penitenciário um espaço de

castigo limitado pela dignidade da pessoa humana, princípio que, como se disse,

compõe a estrutura fundamental do Brasil enquanto Estado Democrático de Direito.

São providências duras e corajosas que o Ministério Público vem propor

a Vossa Excelência, mas também imprescindíveis para a regularização do

funcionamento das unidades prisionais que integram o complexo penitenciário de

Aparecida de Goiânia. É fato que não há solução mágica ou imediata, mas é também

verdade que a solução só virá, mesmo que a médio ou a longo prazos, a partir do

primeiro passo.

11 ALBERTO SILVA FRANCO, Crimes hediondos, p. 70.

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A providência inicial passa necessariamente pelo respeito da

administração penitenciária aos limites dos espaços físicos de cada estabelecimento

penal, de sorte que cada unidade seja ocupada, no máximo, pelo número de vagas

existentes.

Dessa primeira medida resultará naturalmente um panorama novo, em

que os espaços serão ocupados de maneira a respeitar a condição humana dos presos e,

daí, ter-se-á um ambiente adequado para a garantia dos direitos não atingidos pela

sentença ou pela lei. E a administração penitenciária, em melhores condições para

administrar o sistema, poderá fazer funcionar serviços voltados à assistência à saúde do

preso, objeto específico da segunda medida a seguir proposta.

A segunda providência, que visa garantir o atendimento à saúde da

população carcerária, depende naturalmente da primeira providência acima referida,

uma vez que o estabelecimento penal ocupado dentro dos seus limites arquitetônicos,

observado rigorosamente o número de vagas, terá melhores condições para a triagem

dos casos mais urgentes, dentro de uma ação preventiva por parte dos profissionais da

saúde, bem como poderá definir rotinas de atendimento dentro de sua capacidade e dos

recursos humanos e materiais disponíveis. Mas a regularização dos serviços de

assistência à saúde demanda ainda outras providências, como a imediata verificação de

todos os procedimentos frustrados no passado recente, bem como com a definição de

protocolos de ação, de maneira sistemática, para o encaminhamento de todas as

demandas por atendimento médico, farmacêutico e odontológico.

Impõe-se também o provimento de uma farmácia que atenda às

necessidades básicas por medicamentos da população carcerária de todos os

estabelecimentos penais do complexo prisional.

Faz-se necessário o funcionamento de serviço de Enfermagem em tempo

integral. Hoje as unidades não dispõem de serviço de Enfermagem no período noturno.

Durante o dia, carecem de profissionais em número suficiente.

O transporte para atendimento à saúde, acompanhado do necessário

serviço de escolta, deve ter prioridade em relação a qualquer outro atendimento ou,

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preferencialmente, que sejam definidas equipes exclusivamente voltadas para esse

trabalho (transporte e escolta), de forma a evitar a frustração de consultas e outros

procedimentos.

É imperioso que o complexo penitenciário disponha de atendimento

odontológico, com a contratação de profissionais para atender de maneira contínua – e

não somente em ritmo de raros mutirões – à demanda por esse serviço especializado.

V – DA INTERDIÇÃO PARCIAL PLANEJADA

Uma decisão judicial que apenas decrete a interdição das unidades do

complexo penitenciário de Aparecida de Goiânia proibindo a entrada de novos presos e

a retirada do excedente de lotação poderia ter algum efeito impactante momentâneo,

mas não atenderia a contento, todavia, ao objetivo almejado, qual seja, a regularização

da execução penal dentro de patamares aceitáveis em face da estrutura penitenciária

disponível. Além do mais, a simples proibição de ingresso de novos presidiários

engessaria o sistema por inteiro, sem espaço para a movimentação exigida no sistema

progressivo (progressões e regressões do regime prisional), assim como impediria a

prisão provisória nos casos de novos crimes, especialmente os mais graves.

Nesse sentido, o Ministério Público propõe que haja uma

INTERDIÇÃO PARCIAL PLANEJADA, com metas a serem alcançadas no curto e

médio prazos, refletindo-se de maneira indireta também em providências a serem

tomadas no longo prazo.

A interdição parcial planejada é medida interessante também para que a

administração penitenciária possa providenciar as necessárias correções, inclusive

abertura de novas vagas em prazo razoável, sem a pressão de uma medida puramente

proibitiva.

Nesse ínterim, abre-se espaço também para que se estabeleça um debate

público sobre as prioridades que devem orientar a ocupação das prisões, para o que será

fundamental a participação dos órgãos ligados ao sistema penitenciário e à segurança

pública, Poder Judiciário, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil,

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Departamento Penitenciário Nacional e, dentre outros, de representantes da

comunidade. Afinal, não há solução mágica e tampouco uma decisão judicial neste

incidente conseguirá resolver os graves problemas do sistema penitenciário.

Essa interdição parcial planejada há de ser implantada não de uma única

vez ou mediante ato judicial isolado. A execução penal é um processo dinâmico e que

tem uma antiga história de descaso e abandono, problema para o qual não se deve

buscar uma solução simplista – mesmo que justificável – de fechar as portas de entrada

e retirar de maneira abrupta a população carcerária excedente. Aliás, medidas radicais a

esse ponto não são bem absorvidas e acabam não se sustentando em outras instâncias do

próprio Poder Judiciário.

A idéia é então conduzir a ocupação carcerária gradativamente até o

limite de cada estabelecimento prisional, para o que o Ministério Público vislumbra o

prazo de dois anos como um limite razoável, desde que haja rigoroso monitoramento

das medidas a serem adotadas.

O que não se pode mais admitir é a ocupação desordenada e ilimitada dos

espaços carcerários, desconsiderando a condição humana do preso. Tal situação expõe a

segurança interna dos presídios, mas também a segurança pública, favorecendo, dentre

tantas conseqüências nefastas, à construção de uma criminalidade cada vez mais

perversa e violenta. E a desatenção aos limites legais estabelecidos para a ação punitiva

do Estado, inclusive os limites decorrentes do espaço físico das prisões, leva à

responsabilização não apenas dos agentes da administração penitenciária, mas também,

como já se disse, dos órgãos fiscalizadores da execução penal.

De tal sorte, o pedido que se formulará apresenta uma equação

matemática a ser observada pela administração de cada uma das unidades: A CADA TRÊS

PESSOAS QUE SAÍREM DO ESTABELECIMENTO PENAL ABRE-SE A POSSIBILIDADE DE

INGRESSO DE UM NOVO PRESO. A medida, a ser verificada e conferida ao final de cada

mês, levará a uma gradual redução da ocupação carcerária até que se alcance o limite

máximo de cada estabelecimento prisional.

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VI – DA PARTICULAR SITUAÇÃO DA COLÔNIA AGROINDUSTRIAL

(DESTINADA AO REGIME SEMI-ABERTO)

No caso da Colônia Agroindustrial, a interdição parcial planejada não

será capaz de atender à urgência das medidas que se fazem necessárias naquela unidade

prisional.

Em inspeção noturna realizada no dia 22 de abril/2008, esta Promotoria

de Justiça pode verificar in loco a extrema precariedade do funcionamento daquele

estabelecimento penal destinado a quem cumpre pena no regime semi-aberto. Conforme

Vossa Excelência poderá observar por ocasião da inspeção judicial abaixo requerida, a

situação em que os cerca de 400 (quatrocentos) condenados do novo semi-aberto e dos

quase 200 (duzentos) do antigo semi-aberto se encontram é de absoluta indignidade.

Vale lembrar que aqueles homens, na sua maioria, estão autorizados ao trabalho

externo, devendo retornar diariamente para o pernoite na Colônia.

As condições de alojamento da unidade fazem do pernoite dos presos

algo como uma sujeição voluntária à tortura. Após um dia de trabalho – no caso

daqueles que efetivamente desempenham alguma ocupação lícita – o condenado

simplesmente retorna para passar a noite na Colônia, pois sono e repouso são

absolutamente incompatíveis com a estrutura atual daquele estabelecimento penal, como

Vossa Excelência poderá perceber por ocasião da inspeção judicial.

Como exigir desses seres humanos a abnegação diária da própria

dignidade e do direito a um mínimo de repouso após a jornada de trabalho!?

A Lei de Execução Penal fala em integração social (art. 1º) e respeito aos

direitos não atingidos pela sentença ou pela lei (art. 3º). Todavia, o que se tem nas

unidades do semi-aberto (embora não com exclusividade, pois as demais unidades

também apresentam falhas graves no seu funcionamento) é a negação plena da condição

humana daqueles que ali cumprem pena.

As fugas, constantes e reiteradas, são perfeitamente naturais nesse

ambiente de horror e medo. Aliás, plenamente justificadas pela simples verificação dos

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espaços onde pessoas são recolhidas naquelas unidades. Algumas pocilgas são espaços

mais dignos do que os alojamentos das unidades do regime semi-aberto12.

Em relação a essas unidades, a proposta ministerial será mais abrangente,

para que se garanta desde já alguma condição de sobrevivência dos condenados nos

alojamentos da Colônia. Para tanto, como se verá, o Ministério Público apresentará

requerimento para que se restabeleça antigo instituto outrora utilizado por essa VEP: a

apresentação semanal. De tal sorte, a população carcerária excedente ao número de

vagas poderá ser autorizada a permanecer em prisão domiciliar, sob monitoramento de

agentes da Secretaria de Estado da Justiça e com a obrigação de obter ocupação lícita,

bem como comparecer semanalmente em local a ser designado por Vossa Excelência,

onde o condenado irá justificar suas atividades, dentre outras condições a serem fixadas.

VII – DA INSPEÇÃO JUDICIAL

Caso Vossa Excelência entenda necessário, requer inicialmente o

Ministério Público, como complementação à prova documental que instrui esta petição,

a realização de INSPEÇÃO JUDICIAL às dependências dos estabelecimentos

prisionais objetos do pedido, inclusive no período noturno no caso dos alojamentos

destinados aos regimes semi-aberto e aberto.

VIII – DOS PEDIDOS

12 No dia 22 de abril/2008, realizei inspeção noturna nas dependências da colônia do regime semi-aberto.

Não obstante os muitos anos atuando na execução penal, fiquei estarrecido com a precariedade dos

alojamentos e a condição inominável em que estão recolhidos os condenados daquela unidade prisional.

Presos deitados no chão das celas e até no “boi” (banheiro), lixo por toda parte, agentes penitenciários em

número insuficiente, esgoto a céu aberto no pátio levando o odor fétido para o interior dos alojamentos,

guaritas desguarnecidas de policiais, homens clamando por atendimento médico e jurídico. O que era

ruim ficou pior e pode se deteriorar ainda mais.

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Diante do que se expôs, requer o Ministério Público:

1. INTERDIÇÃO PARCIAL da Casa de Prisão Provisória, Penitenciária Odenir

Guimarães, Penitenciária Feminina, Núcleo de Custódia e da Casa do Albergado

Ministro Guimarães Natal, a ser implementada nos seguintes termos:

1.a) REDUÇÃO GRADATIVA da ocupação dos espaços carcerários, a ser obtida

mediante a seguinte fórmula: A CADA TRÊS PESSOAS QUE SAÍREM DO

ESTABELECIMENTO PENAL ABRE-SE A POSSIBILIDADE DE

INGRESSO DE UM NOVO PRESO, até que seja alcançado o limite máximo

previsto para a ocupação de cada um dos estabelecimentos prisionais;

1.b) MONITORAMENTO MENSAL do movimento de entrada e saída de presos

de cada uma das unidades, mediante relatório a ser encaminhado pelos respectivos

diretores a essa VEP, com a indicação, dentre outras informações relevantes, do

nome de cada um dos presos que saíram e dos que ingressaram no estabelecimento;

2. Como conseqüência da interdição parcial e visando a abertura de vagas para o regime

semi-aberto, que seja deferida, com fundamento no art. 1º, inciso III, da Constituição

Federal, c/c. artigos 3º e 116 da LEP, a inclusão dos condenados do REGIME

ABERTO EM PRISÃO DOMICILIAR, sob a condição de comparecimento mensal e

obrigatório ao Setor Interdisciplinar Penal dessa VEP e prestação de serviços à

comunidade, além de monitoramento por equipes próprias da administração

penitenciária;

3. INTERDIÇÃO PARCIAL da Colônia Agroindustrial do Regime Semi-aberto, a ser

implementada nos seguintes termos:

3.a) TRIAGEM dos condenados dos alojamentos (antigos e novos) do regime

semi-aberto, para liberação da população carcerária excedente à efetiva capacidade

das unidades, a partir de critérios a serem definidos por Vossa Excelência;

3.b) Como CRITÉRIOS que podem ser aproveitados na triagem dos presos, sugere

o Ministério Público os seguintes: tempo efetivo de cumprimento de pena,

desempenho de trabalho externo, comportamento carcerário;

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3.c) APRESENTAÇÃO SEMANAL: a partir da triagem acima referida, os presos

liberados do comparecimento à unidade prisional deverão comparecer

semanalmente em local a ser designado por Vossa Excelência, preferencialmente

aos sábados ou domingos e na própria Secretaria de Estado da Justiça (situada no

prédio do IPASGO, no Setor Pedro Ludovico, nesta Capital), órgão que deverá

designar equipe de servidores para tal tarefa;

3.d) Dentre outras CONDIÇÕES, que sejam fixadas, para os presos autorizados à

apresentação semanal, as seguintes obrigações: exercício de ocupação lícita;

proibição de que se ausentem da região metropolitana de Goiânia sem expressa

autorização judicial; recolhimento à própria residência até às 21 horas nos dias

úteis; permanência no local de residência durante todo o período nos dias de

domingo e feriados; tudo mediante aceitação formal em audiência solene perante

essa VEP;

3.e) MONITORAMENTO contínuo de todos os condenados beneficiados com a

apresentação semanal, a ser realizado pela Secretaria de Estado da Justiça, com a

elaboração de relatório mensal a ser encaminhado a essa VEP;

4. COMUNICAÇÃO da INTERDIÇÃO PARCIAL à Secretaria de Estado da Justiça

(cujas atribuições são atualmente exercidas pela Secretaria de Segurança Pública13), à

própria Secretaria de Segurança Pública, ao Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, à

Corregedoria Geral da Justiça, à Procuradoria Geral de Justiça, à Corregedoria Geral do

Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Goiás, ao Conselho

Penitenciário de Goiás, ao Conselho da Comunidade de Goiânia, ao Conselho Nacional

de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), ao Departamento Penitenciário Nacional

(DEPEN);

5. DETERMINAÇÃO ao órgão gestor do sistema penitenciário de Goiás da adoção

das seguintes providências:

13 Conforme Decreto nº 6.728, de 14 de março de 2008 (doc. 15).

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5.a) Verificação, no prazo máximo de quinze dias, de todos os procedimentos

voltados ao ATENDIMENTO À SAÚDE que tenham sido frustrados nos últimos

doze meses, bem como a definição de protocolos de ação de maneira sistemática,

para o encaminhamento das demandas por atendimento médico e odontológico da

população carcerária do complexo penitenciário de Aparecida de Goiânia;

5.b) Definição de equipes responsáveis exclusivamente (ou prioritariamente) pelo

TRANSPORTE E ESCOLTA DE PRESOS para o atendimento à saúde, de

forma a evitar a frustração de consultas e outros procedimentos, como exames

laboratoriais e cirurgias;

5.c) Programação da AQUISIÇÃO PERIÓDICA DOS MEDICAMENTOS

destinados ao atendimento básico da população carcerária e que devem constar das

farmácias que atendem o complexo penitenciário de Aparecida de Goiânia;

5.d) Designação de profissionais e técnicos em ENFERMAGEM para atendimento

em tempo integral da população carcerária de todas as unidades do complexo

penitenciário de Aparecida de Goiânia.

6. REUNIÃO MENSAL de avaliação e monitoramento da implementação das

providências determinadas, com a participação da autoridade gestora do sistema

penitenciário, dos diretores dos estabelecimentos penais, de representantes da Secretaria

de Segurança Pública, do Conselho Penitenciário, do Conselho da Comunidade de

Goiânia, além do Ministério Público e dessa VEP.

Goiânia, 29 de abril de 2008.

HAROLDO CAETANO DA SILVA

PROMOTOR DE JUSTIÇA

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