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DIREITO PENAL I 4.º ANO DIA Coordenação e Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma Colaboração: Mestres Francisco Aguilar, Helena Morão, Inês Ferreira Leite e Licenciado João Matos Viana Teste de avaliação contínua 12 de Janeiro de 2007 Duração: 60 minutos + 30 minutos de tolerância O rapto Alcides, luso-brasileiro residente em Portugal, desesperado com a urgência na obtenção de uma avultada quantia em dinheiro destinada à cirurgia necessária a salvar a vida da sua filha Beatriz, decide raptar Carlos, espanhol, presidente do Conselho de Administração de uma conhecida instituição de crédito, sediada em Espanha. Para tal, no dia 26 de Dezembro de 2006, pelas 14 horas, quando Carlos saia de um restaurante em Madrid, Alcides interceptou-o e conduziu-o, sob ameaça de uma pistola, até junto da sua viatura. Aí, entraram para o banco de trás, tendo Dalila, sudanesa, mulher de Alcides e mãe de Beatriz, arrancado, prontamente, até uma casa isolada nos arredores de Bilbau, onde Carlos foi aprisionado. Na manhã do dia seguinte, é feito o pedido de resgate: 300.000 euros contra a entrega, são e salvo, de Carlos. Apôs alguma hesitação, os administradores do Banco, assessorados pela polícia, acabaram por aceder ao pedido e, em 3 de Janeiro de 2007, deixaram o dinheiro no local combinado (próximo do Museu do Prado). No dia 5 de Janeiro, Alcides, que vigiara Carlos todo este tempo, libertou-o em Badajoz. A 7 de Janeiro, Alcides e Dalila regressaram a Portugal, onde ultimam os preparativos para a deslocação a Londres, onde se realizará a intervenção cirúrgica na pequena Beatriz. Sabendo que: i) Dalila foi cúmplice no crime de rapto de Alcides e que a sua actuação se circunscreveu à condução da viatura de Alcides no dia 26 de Dezembro; e supondo que: i) em 30 de Dezembro de 2006, entrou em vigor uma Lei, que aditou ao Código Penal o artigo 160.º-A, que pune o rapto qualificado que perdure por mais de sete dias com uma pena de prisão de 6 a 16 anos; ii) em 31 de Dezembro de 2006, entrou em vigor uma Lei, que modificou a punição do rapto qualificado previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 160.º do Código Penal para uma pena de prisão de 5 a 15 anos; iii) em 1 de Janeiro de 2007, foi publicada uma Lei, que modificou a punição do rapto qualificado previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 160.º do Código Penal para uma pena de prisão de 6 a 15 anos; iv) em 6 de Janeiro de 2007, entrou em vigor um Decreto-Lei não autorizado, que modificou a punição do rapto qualificado previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 160.º do Código Penal para uma pena de prisão de 3 a 12 anos; v) no Sudão, o rapto pode ser punido com pena de morte; vi) em 8 de Janeiro de 2007, o Estado espanhol requisitou a extradição de Alcides e o Estado sudanês requisitou a extradição de Dalila, comprometendo-se o seu embaixador em Lisboa, com a sua palavra de honra, em como a pena de morte estaria, neste caso, fora de cogitação; vii) em 9 de Janeiro de 2007, Alcides renunciou à nacionalidade portuguesa, solicitando, de imediato, o registo da sua declaração, o qual viria a ocorrer dois dias depois; e viii) em 13 de Junho de 2008, uma vara criminal de Lisboa condenará Alcides e Dalila “na pena máxima prevista na lei” (sic) pelo rapto contra Carlos, “atendendo à ignomínia que representou a deslocação física imposta à vítima e a inerente privação da sua liberdade, inaceitável num Estado de Direito, como decorre, desde logo, do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa” (sic); responda, fundamentadamente , às questões que se seguem: 1. Determine a competência espacial da lei penal portuguesa, relativamente ao crime de rapto, quanto a Alcides e quanto a Dalila. 2. Admitindo que a lei penal portuguesa é competente, qual a lei aplicável ao crime de rapto de Alcides e de Dalila? 3. Comente, quanto ao conteúdo, a decisão do tribunal português (ponto viii). Cotações: 1, seis valores; 2, oito valores; 3, quatro valores; sistematização, clareza e português, dois valores.

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exame e correcção de direito penal

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Page 1: Examesgrelhas1 DT Penal

DIREITO PENAL I 4.º ANO – DIA

Coordenação e Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma Colaboração: Mestres Francisco Aguilar, Helena Morão, Inês Ferreira Leite e Licenciado João Matos Viana

Teste de avaliação contínua 12 de Janeiro de 2007

Duração: 60 minutos + 30 minutos de tolerância

O rapto

Alcides, luso-brasileiro residente em Portugal, desesperado com a urgência na obtenção de uma avultada quantia em dinheiro destinada à cirurgia necessária a salvar a vida da sua filha Beatriz, decide raptar Carlos, espanhol, presidente do Conselho de Administração de uma conhecida instituição de crédito, sediada em Espanha. Para tal, no dia 26 de Dezembro de 2006, pelas 14 horas, quando Carlos saia de um restaurante em Madrid, Alcides interceptou-o e conduziu-o, sob ameaça de uma pistola, até junto da sua viatura. Aí, entraram para o banco de trás, tendo Dalila, sudanesa, mulher de Alcides e mãe de Beatriz, arrancado, prontamente, até uma casa isolada nos arredores de Bilbau, onde Carlos foi aprisionado. Na manhã do dia seguinte, é feito o pedido de resgate: 300.000 euros contra a entrega, são e salvo, de Carlos. Apôs alguma hesitação, os administradores do Banco, assessorados pela polícia, acabaram por aceder ao pedido e, em 3 de Janeiro de 2007, deixaram o dinheiro no local combinado (próximo do Museu do Prado). No dia 5 de Janeiro, Alcides, que vigiara Carlos todo este tempo, libertou-o em Badajoz. A 7 de Janeiro, Alcides e Dalila regressaram a Portugal, onde ultimam os preparativos para a deslocação a Londres, onde se realizará a intervenção cirúrgica na pequena Beatriz.

Sabendo que: i) Dalila foi cúmplice no crime de rapto de Alcides e que a sua actuação se circunscreveu à condução da

viatura de Alcides no dia 26 de Dezembro; e supondo que: i) em 30 de Dezembro de 2006, entrou em vigor uma Lei, que aditou ao Código Penal o artigo 160.º-A,

que pune o rapto qualificado que perdure por mais de sete dias com uma pena de prisão de 6 a 16 anos; ii) em 31 de Dezembro de 2006, entrou em vigor uma Lei, que modificou a punição do rapto qualificado

previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 160.º do Código Penal para uma pena de prisão de 5 a 15 anos; iii) em 1 de Janeiro de 2007, foi publicada uma Lei, que modificou a punição do rapto qualificado previsto

na alínea a) do n.º 2 do artigo 160.º do Código Penal para uma pena de prisão de 6 a 15 anos; iv) em 6 de Janeiro de 2007, entrou em vigor um Decreto-Lei não autorizado, que modificou a punição

do rapto qualificado previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 160.º do Código Penal para uma pena de prisão de 3 a 12 anos;

v) no Sudão, o rapto pode ser punido com pena de morte; vi) em 8 de Janeiro de 2007, o Estado espanhol requisitou a extradição de Alcides e o Estado sudanês

requisitou a extradição de Dalila, comprometendo-se o seu embaixador em Lisboa, com a sua palavra de honra, em como a pena de morte estaria, neste caso, fora de cogitação; vii) em 9 de Janeiro de 2007, Alcides renunciou à nacionalidade portuguesa, solicitando, de imediato, o registo da sua declaração, o qual viria a ocorrer dois dias depois; e viii) em 13 de Junho de 2008, uma vara criminal de Lisboa condenará Alcides e Dalila “na pena máxima prevista na lei” (sic) pelo rapto contra Carlos, “atendendo à ignomínia que representou a deslocação física imposta à vítima e a inerente privação da sua liberdade, inaceitável num Estado de Direito, como decorre, desde logo, do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa” (sic); responda, fundamentadamente, às questões que se seguem:

1. Determine a competência espacial da lei penal portuguesa, relativamente ao crime de rapto, quanto a Alcides e quanto a Dalila.

2. Admitindo que a lei penal portuguesa é competente, qual a lei aplicável ao crime de rapto de Alcides e de Dalila?

3. Comente, quanto ao conteúdo, a decisão do tribunal português (ponto viii). Cotações: 1, seis valores; 2, oito valores; 3, quatro valores; sistematização, clareza e português, dois valores.

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DIREITO PENAL I

Proposta de Correcção do Teste de Avaliação Contínua

de 12 de Janeiro de 2007

1. No que respeita à determinação do âmbito de competência internacional penal dos tribunais portugueses,

cumpre consultar os artigos 4.º a 7.º do Código Penal (CP) e, caso necessário, os artigos relevantes da Lei de

Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal (LCJIMP) – L-144/99 – e da Lei do Mandado de Detenção

Europeu (LMDE) – L-65/2003.

Visto que temos dois agentes distintos, o Alcides e a Dalila, teremos que analisar a possibilidade de cada um

de estes agentes de modo individual.

a) Alcides é nacional português residente habitual em Portugal, que vem a praticar um crime de rapto (art.

160.º do CP) em Espanha. O crime de rapto enquadra-se no âmbito das infracções duradouras, sendo um crime

comissivo por acção – um crime de dano e de resultado – cujo resultado ocorre em simultâneo à execução do

facto, visto que se trata de um crime permanente, integrando também, portanto, uma conduta omissiva constante

que se traduz na omissão de libertar a vítima e cessar a compressão do bem jurídico liberdade. A execução do

crime de rapto praticado por Alcides iniciou-se no dia 26.12.2006 e cessou no dia 05.01.2007. Consequentemente,

é manifesto que toda a acção se desenvolveu em Espanha e foi também aí que se produziu o resultado. Ficam,

assim, afastados os artigos 7.º e 4.º do CP e, com eles, o critério da territorialidade. Resta-nos, então, avaliar a

aplicabilidade do art. 5.º do CP. E, neste ponto, importa analisar duas hipóteses alternativas de resolução:

Opção A) – Tratando-se de um crime de rapto, poderá aplicar-se a alínea b) do n.º 1 do art. 5.º, ao abrigo do

critério da universalidade. Ora, para que esta alínea determine a competência internacional penal dos tribunais

portugueses é necessário que: i) o agente aqui seja encontrado (o que se verifica); ii) que a extradição não possa ser

concedida. Cumpre, portanto, saber se Alcides pode ser extraditado para Espanha. O único obstáculo existente

reside na nacionalidade portuguesa do agente. Mas, visto que Alcides veio a renunciar à nacionalidade portuguesa,

com efeitos a partir do dia 11.01.2007, este obstáculo deixa de existir à luz do art. 32.º n.º 6 da LCJIMP. Em

qualquer caso, a nacionalidade não seria um obstáculo intransponível à luz da LMDE, de acordo com o disposto

nos arts. 12.º g) e 13.º c). Em conclusão, Alcides seria extraditado para Espanha, pelo que não haveria

competência dos tribunais nacionais. À mesma conclusão se chegaria pela aplicação da alínea c) do n.º 1 do art. 5.º

do CP. Ou,

Opção B) – Apesar de se tratar de um crime previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 5.º, o critério da

universalidade ou da tutela transnacional de determinados crimes considerados, pela comunidade internacional,

como lesivos de bens jurídicos supranacionais, não se pode aplicar a qualquer conduta que seja subsumível a um

dos tipos aí elencados. É possível defender-se que, para que se possa aplicar a alínea b) é necessário, para além de

Page 3: Examesgrelhas1 DT Penal

3se tratar de um dos crimes aí previstos, que se trate de um crime que coloque em causa bens jurídicos

supranacionais (crimes contra a humanidade ou condutas integradas na prática de tais crimes, como pode ocorrer

com as condutas associadas ao terrorismo internacional: rapto por motivos políticos, por exemplo) ou de um

crime de execução internacional (no que respeita ao tráfico de pessoas, tráfico de crianças e às redes internacional

de pedofilia). Consequentemente, a alínea b) não seria aplicável a este caso, pois trata-se de uma infracção comum.

Aplicar-se-ia então a alínea c) do n.º 1 do art. 5.º CP. Para que, por esta alínea, os tribunais portugueses

possuíssem competência internacional penal, seria necessário que: i) o agente fosse encontrado em Portugal (o que

se verifica); ii) que a infracção seja punível pela lei Espanhola (o que também se verifica, como resulta da

apresentação de um requerimento de extradição) iii) que a extradição não possa ser concedida. Ora, como já

vimos, Alcides poderia ser extraditado para Espanha, pelo que não haveria competência dos tribunais nacionais.

b) Dalila é nacional do Sudão, residente habitual em Portugal, que vem a ser cúmplice do crime de rapto

praticado por Alcides, tendo também agido exclusivamente em Espanha. Apesar de o rapto ser um crime

permanente, o crime praticado por Dalila, enquanto cúmplice, deverá considerar-se uma infracção instantânea. De

facto, as condutas devem ser analisadas separadamente, e a cumplicidade, nos termos do artigo 27.º do CP, limita-

se à prestação de um auxílio material ou moral – no nosso caso, material – ao autor, para que este possa levar a

cabo a prática do crime principal. A conduta de Dalila desenrolou-se integralmente em Espanha, pelo que ficam

também afastados os artigos 7.º e 4.º do CP e, com eles, o critério da territorialidade. Resta-nos, então, avaliar a

aplicabilidade do art. 5.º do CP. E, neste ponto, importa analisar duas hipóteses alternativas de resolução:

Opção A) – Tratando-se de um crime de rapto, poderá aplicar-se a alínea b) do n.º 1 do art. 5.º, ao abrigo do

critério da universalidade. Ora, para que esta alínea determine a competência internacional penal dos tribunais

portugueses é necessário que: i) o agente aqui seja encontrado (o que se verifica); ii) que a extradição não possa ser

concedida. Cumpre, portanto, saber se Dalila pode ser extraditada para o Sudão. No Sudão, o crime de rapto é

punido com pena de prisão de morte, logo a extradição está, em princípio, vedada por força do art. 33.º n.º 6 da

CRP. No entanto, o art. 6.º n.º 2 a) da LCJIMP permite que a extradição aconteça caso o Estado requisitante

(Sudão) tenha comutado previamente a pena por acto irrevogável e vinculativo para os tribunais. Ora, a palavra de

honra de um Embaixador não impõe, aos tribunais do respectivo Estado, a comutação irrevogável da pena. Aliás,

sobre esta matéria existe extensa jurisprudência do Tribunal Constitucional (da qual se destaca o Acórdão 1/2001)

e do Supremo Tribunal de Justiça (em geral, contrária à posição constante do TC), que podia ser chamada à

colação para a justificação da resposta. Em conclusão, a Dalila não podia ser extraditada para o Sudão, devendo

ser julgada em Portugal de acordo com o art. 5.º n.º 1 b). Ou,

Opção B) – Apesar de se tratar de um crime previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 5.º, o critério da

universalidade ou da tutela transnacional de determinados crimes considerados, pela comunidade internacional,

como lesivos de bens jurídicos supranacionais, não se pode aplicar a qualquer conduta que seja subsumível a um

dos tipos aí elencados. É possível defender-se que, para que se possa aplicar a alínea b) é necessário, para além de

se tratar de um dos crimes aí previstos, que se trate de um crime que coloque em causa bens jurídicos

supranacionais (crimes contra a humanidade ou condutas integradas na prática de tais crimes, como pode ocorrer

com as condutas associadas ao terrorismo internacional: rapto por motivos políticos, por exemplo) ou de um

crime de execução internacional (no que respeita ao tráfico de pessoas, tráfico de crianças e às redes internacional

Page 4: Examesgrelhas1 DT Penal

4de pedofilia). Neste caso, mais do que na questão a), a opção é relevante, pois não sendo aplicável a alínea b),

resta apenas a ponderação da aplicabilidade da alínea e), já que se trata de crime praticado por estrangeiro, contra

estrangeiro, no estrangeiro. E, para que esta alínea possa conferir competência penal internacional aos tribunais

portugueses torna-se necessário que a extradição seja efectivamente requerida, sendo então recusado o pedido. Já

na alínea b), basta que a extradição não seja possível, não sendo necessária a apresentação de qualquer pedido de

extradição. Em qualquer dos casos, a solução seria a mesma: a Dalila não podia ser extraditada para o Sudão,

devendo ser julgada em Portugal, desta feita, de acordo com a alínea e) do n.º 1 do art. 5.º do CP.

Inês Ferreira Leite

2. a) O crime cometido por Alcides assume uma natureza duradoura ou permanente pelo que o

momento da prática do facto se prolonga durante todo o período de compressão do bem jurídico, ocorrendo

de 26/12/06, data em que a liberdade da vítima é, pela primeira vez, coarctada, até à altura da sua libertação a

5/01/07 (art. 3.º do CP).

Existindo três regimes penais distintos sucessivamente em vigor durante este tempus delicti, o do art. 160.º, n.º

2, alínea a), do Código Penal (L1), o da Lei de 30/12/06 (L2) e o da Lei de 31/12/06 (L3), e ocorrendo o rapto

parcialmente na vigência de cada um deles, há que determinar qual das leis deve ser aplicada ao facto praticado.

A L2, que, ao aditar ao Código Penal um novo artigo 160-A.º, pune o rapto que perdure por mais de sete

dias com uma pena de prisão de 6 a 16 anos, não pode ser relevante para esse efeito. Efectivamente e não

obstante o rapto se ter mantido por mais de uma semana, o novo pressuposto típico da incriminação introduzido

pela L2 e de que depende a aplicabilidade da nova moldura penal não se verificou integral, mas apenas

parcialmente, no âmbito da sua vigência, pelo que a aplicação da L2 redundaria numa violação do princípio da

irretroactividade da lei penal desfavorável e dos fundamentos que lhe subjazem, associados à garantia da segurança

jurídica em matéria de direitos, liberdades e garantias, à função de prevenção geral da norma penal e ao princípio

da culpa (art. 29.º, n.º 4, 1ª parte, da CRP e art. 2.º, n.º 1, do CP).

Já no que se refere à L1, que pune o rapto com duração superior a 2 dias com pena de prisão de 3 a 15

anos, e à L3, que mantém a incriminação do mesmo comportamento, elevando o limite mínimo da respectiva

pena de 3 para 5 anos, o problema da determinação do regime aplicável torna-se mais complexo, uma vez que

quer o comportamento típico quer o preenchimento dos respectivos pressupostos se verificam no âmbito de

vigência de qualquer uma das leis. Deve, neste tipo de casos, optar-se não pela aplicação, a todo o facto, do

regime mais favorável consagrado na L1, por não haver qualquer analogia com o fundamento do princípio da

retroactividade da lei penal mais favorável, isto é, uma alteração da concepção legislativa relativa à

desnecessidade de pena mais grave, mas pelo regime que exprime o juízo soberano mais actual quanto à

dignidade e ao merecimento punitivo do rapto, isto é, o da L3, que se encontra em vigor no momento em que

cessa a acção delituosa. É, desta forma, a L3 que, de entre os diferentes regimes penais que se encontram

sucessivamente em vigor durante o tempus delicti, deve ser aplicada ao crime de rapto cometido por Alcides.

Page 5: Examesgrelhas1 DT Penal

5A L4, publicada em 01/01/07, também não é aplicável à hipótese em análise, sob pena de violação do

princípio constitucional da proibição de retroactividade penal in pejus, uma vez que, na ausência de fixação de um

período especial de vacatio legis, só entrou em vigor no 5.º dia posterior à respectiva publicação (art. 2.º, n.º 2, da

Lei n.º 74/98), isto é, já depois de cessar a prática do facto, e assume um conteúdo menos favorável para o agente,

na medida em que modifica a punição do rapto qualificado previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 160.º do Código

Penal para uma pena de prisão de 6 a 15 anos (art. 29.º, n.º 4, 1ª parte, da CRP).

Também a L5 (Decreto-Lei de 06/01/07) não pode ser retroactivamente aplicada, ao abrigo do regime

de sucessão de leis previsto no art. 29.º, n.º 4, segunda parte, da CRP, do art. 2.º, n.º 4, do CP e dos respectivos

fundamentos ligados aos princípios da igualdade e da necessidade da pena, apesar de entrar em vigor após a

prática do rapto e revestir conteúdo mais favorável para o agente, consagrando uma pena de prisão de 3 a 12

anos para o crime de rapto com duração superior a 2 dias. Efectivamente, a L5 assume a forma de um

Decreto-Lei não autorizado, padecendo assim do vício da inconstitucionalidade orgânica, por violação da

reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria penal (art. 165.º, n.º 1, alínea

c), da CRP), que, de acordo com a jurisprudência constitucional, inclui também as vertentes negativas de

definição do crime e da pena, isto é, as matérias da descriminalização e da atenuação da responsabilidade

criminal.

Desta forma, a L5 é nula, não tendo realmente “entrado em vigor” nem revogado validamente a L3 (art.

3.º, n.º 3, da CRP), e não pode ser aplicada (art. 204.º da CRP), uma vez que a determinação da lei válida é algo

que antecede, lógica e valorativamente, a colocação do problema da sucessão de regimes jurídicos no tempo.

Por outro lado, sendo o rapto praticado por Alcides anterior à aparência de vigência deste regime

inconstitucional que, como tal, não pode ter orientado o seu comportamento, não deve sequer ser invocada

qualquer expectativa legítima a tutelar de acordo com o regime da falta de consciência da gravidade do ilícito,

que conduziria a uma atenuação da pena prevista pela L3 de modo a aproximá-la do limite da estatuição da L5.

Alcides deverá, pois, ser punido ao abrigo da L3, incorrendo numa pena de 5 a 15 anos de prisão pela

prática de um crime de rapto.

b) A solução do caso terá de ser necessariamente diferente no que se refere a Dalila, já que esta, enquanto cúmplice de Alcides,

se limita a conduzir o automóvel do rapto no dia 26/12/06. Desta forma, relevante, para efeitos de determinação do tempus delicti

nos termos do art. 3.º do CP, que, de resto, se refere amplamente a “agente”, será o momento da prestação do auxílio,

independentemente da altura em que o autor principal, no caso Alcides, actue. Como no momento da prática do facto se encontra em

vigor a L1 (art. 160.º, n.º 2, alínea a), do CP, sem alterações) a pena aplicável a Dalila será a de prisão de 3 a 15 anos (art. 29.º,

n.º 4, 1ª parte, da CRP e art. 2.º, n.º 1, do CP).

Com efeito, as L2 a L4 não podem aqui ser atendidas uma vez que, sendo posteriores à prática do facto e

de conteúdo menos favorável, a sua aplicação redundaria numa violação do princípio constitucional da proibição

de retroactividade penal in pejus, por fundamentos análogos aos já explicitados a propósito da inaplicabilidade da

L4 ao comportamento de Alcides. A aplicação da L5 é também de excluir por razões idênticas às referidas a

propósito da análise de Alcides e que se dão aqui, mutatis mutandi, por reproduzidas.

Page 6: Examesgrelhas1 DT Penal

6

3. A fundamentação utilizada pelo tribunal da condenação de Alcides e Dalila para sustentar a aplicação da

pena máxima prevista para o crime de rapto assenta unicamente em considerações de prevenção geral, isto é, de

necessidade de tutela de bens jurídicos, no caso concreto, a liberdade pessoal. Desta forma, o acórdão

condenatório incorre numa dupla violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (arts. 1.º e

27.º da CRP), tal como se encontra densificado, numa perspectiva jurídico-penal, nos arts. 40.º e 71.º do Código

Penal.

Assim, verifica-se, por um lado, na hipótese sub judice uma desconsideração de razões de prevenção

especial que implicam o tratamento do condenado como ser livre, susceptível de escolher o bem e de se

recuperar para a vida em sociedade, o que, na linha da jurisprudência constitucional, proíbe que fundamentos

de prevenção geral imponham uma pena superior à estritamente necessária para obter a ressocialização do

delinquente (art. 18.º da CRP e art. 40.º, n.º 1, in fine, do CP).

Por outro lado, na medida em que ambos os agentes actuam altruisticamente, numa situação atenuante

de “quase estado de necessidade”, visando evitar a morte da respectiva filha, o grau de censurabilidade do

ilícito praticado encontra-se mais próximo do limite mínimo do que do limite máximo da pena aplicável,

ocorrendo assim uma ofensa do princípio da culpa, na vertente de limite inultrapassável da medida da pena, o

que conduz a uma instrumentalização da pessoa humana na obtenção de efeitos sociais úteis (art. 40.º, n.º 2, do

CP).

Helena Morão

Page 7: Examesgrelhas1 DT Penal

7FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

TESTE DE DIREITO PENAL I 27 de Abril de 2007

Regência: Prof. Maria Fernanda Palma Colaboração: Mestres Francisco Aguilar, Helena Morão, Inês Ferreira Leite e Lic. João Matos Viana

KOOL

Anocas, Bruno e Caló compõem uma banda nacional – os “KOOL”. No dia 27.04, os KOOL deram uma conferência de imprensa (CI) num Hotel, anunciando a nova digressão de Norte a Sul do país. A assistir à CI encontrava-se Dário, um fã furioso por não ter resposta às suas cartas, que decide matar os KOOL. Iniciando-se a CI, Dário tira do bolso uma pistola, disparando três tiros.

O primeiro tiro acertou no peito de Caló, o qual tombou para cima das pernas de Fernando (seu agente e responsável por este, já que o mesmo era menor) que se encontrava sentado ao seu lado. Caló e Fernando estiveram, durante cerca de 20 minutos, sozinhos debaixo da mesa da CI, enquanto os acontecimentos prosseguiam. Assim que Fernando reparou que o atirador já não estava na sala e apercebendo-se da gravidade do ferimento de Caló, decidiu ir para casa, nada fazendo e deixando Fernando inconsciente, debaixo da mesa. Caló veio a falecer por grave hemorragia.

O segundo tiro acertou no pescoço de Bruno, sendo este posteriormente transportado para o Hospital, numa ambulância conduzida por Jocas, que circulou a velocidade elevada. Ao entrar numa estrada recta, saindo de uma curva, a ambulância chocou violentamente contra o carro de Guida, parado por avaria, sem estar devidamente assinalado com o triângulo luminoso. Bruno teve morte imediata.

Ao ouvir os tiros, Anocas fugiu pela porta que se encontrava à sua esquerda, sendo logo perseguida por Dário. Chegados à entrada do Hotel, Dário apontou para Anocas e disparou. Imediatamente, Anocas afasta-se para o lado e a bala acerta numa outra fã, Isilda, que se encontrava muito perto de Anocas. Isilda fica gravemente ferida, pedindo ajuda a Igor, seu amigo, e a Anocas, visto serem as únicas pessoas que se encontravam a seu lado Com o choque, Anocas desmaia ficando inconsciente. Igor decide fugir, nada fazendo. Isilda vem a morrer por falta de assistência médica.

Veio a provar-se mais tarde que: i) Não foi Caló quem faleceu com o disparo e posterior hemorragia, mas Élio, um fã dos KOOL, por coincidência irmão menor de Fernando (com quem vivia) e extremamente parecido com Caló, a quem este último tinha pedido o favor de o substituir na CI, já que Fernando lhe tinha imposto a obrigação de estar presente na mesma, sem que mais ninguém soubesse da troca. ii) Mesmo que Guida tivesse colocado o triângulo, analisadas as medições e o teor de álcool do condutor da ambulância, Jocas, muito provavelmente, este não teria evitado o embate violento. iii) Na autópsia realizada a Bruno veio a detectar-se um aneurisma cerebral não operável e prestes a rebentar, o que daria a Bruno apenas algumas horas de vida; iv) Dário confessou que era um mau atirador e que, se conseguiu acertar em Élio e Bruno, foi com a ajuda da sorte.

Aprecie a responsabilidade penal de Dário, Fernando, Anocas, Igor e Jocas. Pontuação: Dário (6 valores), Fernando (5 valores), Anocas (1,5 valores), Igor (2 valores), Jocas (3,5 valores), Ponderação Global (2 valores). Duração: 1 hora e 30 minutos

Page 8: Examesgrelhas1 DT Penal

8FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

TESTE DE DIREITO PENAL I 27 de Abril de 2007

Proposta de resolução

1. Dário:

A) Anocas: D pratica uma acção penalmente relevante. Trata-se de um caso fronteira entre a aberratio ictus e o

dolo alternativo. Isto, quer porque A e Isilda (Isilda) estavam muito próximas (facto que não poderia deixar de ter sido reparado por D), quer porque D confessa ser mau atirador, pelo que teve que prever como possível a possibilidade de não acertar em A e, então, vir a acertar em Isilda. Não parece tratar-se de um caso de aberratio ictus, depois de analisada a distinção entre negligência consciente e dolo eventual. D sabia que tinha má pontaria e sabia que, muito possivelmente iria falhar o tiro. Sabia também que Isilda estava muito próxima de A e, no entanto, tentou o tiro. Pelo que, D não tinha razões para confiar, fundamentadamente, na sua capacidade de evitar o resultado. Assim, a responsabilidade de D face ao homicídio de Isilda não é meramente negligente. Esta hipótese está mais próxima de um caso de dolo alternativo, visto que D configurou a possibilidade de acertar em A ou Isilda. No entanto, não se trata de um simples caso de dolo alternativo, pois para D, qualquer uma das possibilidades não lhe era completamente indiferente. Este é um caso em que o agente tem dolo com objecto alternativo. Embora o seu objectivo seja matar A, ele conforma-se com a possibilidade de matar Isilda. Pelo que são, em abstracto, possíveis duas soluções: punição, de acordo com o regime do dolo alternativo (homicídio doloso consumado) ou punição de acordo com a plúrima intencionalidade do agente e respectiva criação de risco (tentativa de homicídio com dolo directo para A em concurso efectivo ideal com homicídio consumado face a Isilda, com dolo eventual). Face ao princípio da culpa, valorados o ne bis in idem material e a necessidade da pena, a primeira solução afigura-se mais adequada. A omissão de Igor não é apta a interromper o nexo de imputação objectiva face a D, pois trata-se de uma omissão pura.

B) Bruno: D pratica uma acção penalmente relevante. No que respeita à imputação objectiva, verifica-se uma

interrupção do nexo de imputação objectiva por força da conduta de J, visto que este vem a provocar, de modo directo e por acção, a morte de B. No que respeita à imputação subjectiva, apesar da falta de pontaria de D, mantém-se o dolo directo, uma vez que este tinha intenção de acertar em B, não sendo o dolo directo afastado pelo grau de probabilidade de sucesso do facto do agente. Assim, D seria punido por tentativa de homicídio doloso de B, nos termos dos arts. 131.º, 22.º e 23.º do CP.

C) Caló: D pratica uma acção penalmente relevante. No que respeita à imputação objectiva, verifica-se uma

interrupção do nexo de imputação objectiva por força da omissão de Fernando, visto que este tem posição de garante face ao resultado morte do irmão, E. Trata-se de uma omissão impura, como tal apta a interromper o nexo de imputação objectiva. No que respeita à imputação subjectiva, D está em erro sobre a identidade (error in personna vel objecto), o qual é irrelevante, visto que a identidade da vítima não é um elemento do tipo do art. 131.º do CP. De novo, apesar da falta de pontaria de D, mantém-se o dolo directo, uma vez que este tinha intenção de acertar em C, não sendo o dolo directo afastado pelo grau de probabilidade de sucesso do facto do agente. Assim, D seria punido por tentativa de homicídio doloso de E, nos termos dos arts. 131.º, 22.º e 23.º do CP.

Conclusão: D seria punido, em concurso efectivo real homogéneo, por dois crimes de tentativa de homicídio, com dolo directo (arts. 131.º, 22.º e 23.º) e por um crime de homicídio doloso consumado, com dolo eventual (art. 131.º).

2. Fernando: F pratica uma omissão penalmente relevante. No que respeita à imputação objectiva, F tem posição de garante face ao irmão, porque este é menor e vive com ele (relações familiares que são fonte de deveres de cuidado e protecção). F tinha capacidade de acção: podia e devia ter realizado uma acção adequada a diminuir ou a afastar o resultado típico. Pelo menos, deveria ter providenciado assistência médica para o irmão. Existe nexo de imputação objectiva, pois E vem a falecer de grave hemorragia, a qual poderia ter sido evitada com a adequada assistência. No que respeita à imputação subjectiva, estamos perante uma caso de erro sobre a identidade irrelevante (error in personna vel objecto). Isto porque F pensa que é C quem se encontra debaixo da mesa. Logo, F pensa que debaixo da mesa se encontra alguém, gravemente ferido e a precisar de cuidados médicos, em relação ao qual F tem posição de garante. Veja-se que F não é um mero agente de C. Porque C é menor, F é agente e responsável por C. Portanto, F funciona como tutor, quando C se encontra ao serviço da banda. Assim, o único erro que houve foi sobre a identidade do destinatário da posição de garante. Ora, este erro, face ao tipo descrito nos arts. 131.º e 10.º n.º 2, é irrelevante e não se lhe pode aplicar o art. 16.º n.º 1. Assim, F seria responsável por um homicídio, por omissão, consumado, pelo menos com dolo eventual, praticado contra E. Completamente excluída estaria a responsabilidade pelo 132.º, por haver um erro-ignorância face a um dos elementos do tipo qualificante nos termos do art. 16.º n.º 1.

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3. Anocas: A não pratica uma omissão penalmente relevante, embora pudesse estar em causa um dever de agir, pelo menos, de acordo com o art. 200.º do CP. Visto que desmaia, involuntariamente, ficando inconsciente, A está incapaz de agir, pelo que lhe não é devida nenhuma acção. Verificando-se uma incapacidade de acção, afasta-se a responsabilidade de A logo no momento em que se analisa a existência de um facto penalmente relevante, não sendo necessário analisar mais nenhum pressuposto.

4. Igor: I pratica uma omissão penalmente relevante. De acordo com o art. 200.º, este tem o dever de agir e

promover o socorro de I, pelo menos, alertando alguém para a necessidade de assistência médica. Poderia discutir-se: i) se a qualidade de amigo fundamentava a posição de garante (claramente que, de modo isolado, não o poderia fundamentar); ii) se haveria uma situação de monopólio de salvamento fundamentadora de posição de garante (independentemente das opiniões sugeridas pela doutrina, a resposta deveria estar fundamentada: extrema facilidade de executar o salvamento, exigência de um mínimo esforço por parte do garante, etc.). Face às circunstâncias (grande confusão, existência de um atirador à solta) não parecerem verificar-se os pressupostos do monopólio de salvamento. Pelo que I só poderia ser responsabilizado pela omissão de auxílio, nos termos do art. 200.º do CP, tendo agido com dolo directo.

5. Jocas: J pratica uma acção penalmente relevante, aumentado um risco, proibido, para a vida de B, ao conduzir

em excesso de velocidade e com excesso de álcool no sangue. Embora o excesso de velocidade pudesse estar coberto pelo risco permitido, visto tratar-se de uma ambulância, nunca o estaria em caso de perigo de despiste. Poderia discutir-se aqui a interconversão entre acção e omissão na negligência, embora este caso parece ser um caso claro de acção. É certo que G também viola uma norma de cuidado, esquecendo-se de colocar o triângulo sinalizador. No entanto, face a G, coloca-se um problema de comportamento lícito alternativo. Vindo a demonstrar-se que o acidente, muito provavelmente, não teria sido evitado com a colocação do triângulo, devido ao excesso de velocidade e excesso de álcool, o cumprimento da norma por parte de G não teria cumprido os fins da mesma – evitar o resultado, sendo que é o desvalor do resultado que é, essencialmente, punido nos crimes negligentes. Pelo que se afasta a responsabilidade de G, concluindo-se pela responsabilidade de J. No que respeita à imputação subjectiva, J actua com negligência inconsciente, pois este não previu a possibilidade de se deparar com aquela específica situação. A responsabilidade de J não é excluída pelo facto de ter sido detectado um aneurisma cerebral em B, visto que esta circunstância se reconduz a uma mera causa virtual. Esta circunstância não teve qualquer interferência no processo causal preconizado por J, nem corresponde à violação, por terceiro, de qualquer outra norma de cuidado. Trata-se, simplesmente, de um acaso que levaria a que B viesse, por coincidência, a falecer em poucas horas. Ora, as causas virtuais não têm qualquer relevância em Direito Penal. Em última análise, todos nós morreremos um dia, pelo que a punição por homicídio estaria sempre excluída! Assim, J é responsável pelo homicídio negligente de B.

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FACULDADE DE DIREITO DE LISBOA Exame de Direito Penal I

4º Ano – Dia 5 de Junho de 2007

A arma do crime

Ana e Bernardo, de 17 e 15 anos, toxicodependentes, decidiram assaltar uma bomba de gasolina para, com o dinheiro

obtido, pagarem ao traficante Carlos que os ameaçara de morte se não o fizessem naquela semana. Levaram uma arma que um estranho ferro-velho lhes emprestara, “desconfiando” que eles a iriam utilizar em assaltos.

Na bomba de gasolina, Bernardo ameaçou a empregada Maria, encostando-lhe a arma à cabeça, exigindo que ela lhes entregasse o dinheiro da caixa. Maria não chega a concretizar a entrega do dinheiro, porque apareceu um carro da polícia, chamado por um telefonema anónimo.

Ana e Bernardo, temendo ser detidos, arrastaram violentamente a empregada, continuando Bernardo, sempre, a encostar a arma à cabeça dela e utilizando-a como escudo contra qualquer disparo da polícia.

David, um dos polícias, ordenou a Ernesto, seu subordinado, que disparasse sobre Ana, sabendo que Ernesto tinha fraca pontaria. Ernesto, cumprindo a ordem, disparou, mas atingiu Maria, ferindo-a levemente num braço.

Ana e Bernardo levaram consigo a vítima, receando que ela os denunciasse e iniciaram a fuga num carro ali estacionado.

Dentro do carro, Bernardo, de súbito, num impulso, acciona o gatilho da arma que apontava à cabeça de Maria, mas em vão, porque a arma encrava.

Param o carro, deixam-no com Maria lá dentro e começam a afastar-se. Convencido de que Ana e Bernardo ainda se encontram no interior do carro, David, que seguia atrás, vendo o carro parado, no escuro da noite, ordena a Ernesto que dispare na direcção do condutor para salvar Maria e impedir a fuga. Ana, ao fugir, vendo a polícia perto do carro, acciona a arma sem grande convicção para impedir a perseguição, mas ela afinal funciona. O tiro atinge Ernesto no preciso momento em que este se preparava para disparar na direcção do carro onde estava apenas Maria. Ernesto não chega, contudo, a disparar, porque é atingido na mão.

O ferro-velho, que nunca mais alguém viu, deixou um bilhete em que dizia «a arma impedirá o crime». Analise a responsabilidade jurídico-penal dos intervenientes.

Cotações: Ana e Bernardo, 9 v.; Carlos, 2 v.; David, 2 v.; Ernesto 3 v.; ferro-velho, 2 v.; apreciação global, 2v.

Duração: 3 horas

Coordenadora e regente: Professora Doutora Maria Fernanda Palma Colaboradores: Mestres Francisco Aguilar, Helena Morão e Inês Ferreira Leite; Lic. João Matos Viana.

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DIREITO PENAL I Coordenadora e regente: Professora Doutora Maria Fernanda Palma

Colaboradores: Mestres Francisco Aguilar, Helena Morão e Inês Ferreira Leite; Lic. João Matos Viana Exame final

5 de Junho de 2007 Grelha de Correcção

I. Responsabilidade jurídico-penal de Ana: 6 ,5valores 1. Co-autoria da tentativa de roubo (artigos 22.º, 2, b; 23.º/1; 210.º/1) em concurso aparente com uma tentativa

de coacção [que, por sua vez, consumira o crime de ameaça] (consumpção)

Tipicidade objectiva Co-autoria de Ana e Bernardo: ambos tomam parte directa, por acordo, na execução do roubo. Isto é, cada um desempenha uma tarefa de carácter essencial no sucesso do plano criminoso (domínio funcional do facto): mesmo a intervenção de Ana – menos intensa que a de Bernardo (que ameaça Maria e lhe encosta a arma à cabeça) – é decisiva, porquanto a sua presença reforça, significativamente, as possibilidades de sucesso do empreendimento criminoso.

0,5v.

Esta resposta não é afastada pela circunstância de Bernardo ter 15 anos. O facto de este ser inimputável em razão da idade não transforma Ana em autora mediata, porquanto não há, inequivocamente, instrumentalização de Bernardo por parte de Ana.

0,25v. Trata-se de uma tentativa de roubo e não de um roubo consumado, porquanto Maria “não chega a concretizar a entrega do dinheiro”.

Tipicidade subjectiva

0,25v. Ana e Bernardo “decidiram assaltar uma bomba de gasolina: dolo directo de 1.º grau (artigo 14.º/1).

Culpa

Não se verifica a causa de desculpa do artigo 35.º/1. Não obstante, Ana precisar de determinada quantia monetária até final da semana, sob pena de, de outro modo, ser morta por Carlos, estando assim em causa um perigo actual que ameaça a sua vida, não é claro que o perigo não pudesse ser removido de outro modo – v.g., o recurso às autoridades policiais – ou que não se lhe fosse exigido comportamento diferente. Claro está, que, não obstante, esta mesma ameaça feita por Carlos deverá ser tida em conta como circunstância atenuante da responsabilidade de Ana.

0.5v.

Naturalmente que a inimputabilidade de Bernardo não se comunica a Ana (artigo 29.º).

Punibilidade 0.5 v.

Aparecendo o carro da polícia, Maria não chegou, como vimos, a entregar o dinheiro a Ana/Bernardo. Estes decidem, então, fugir, ao invés de prosseguir com o assalto. Há, assim, por parte de Ana e de Bernardo, uma desistência da tentativa de roubo.

Fácil é de ver, contudo, que esta desistência não possui relevância como causa pessoal de isenção da pena, porquanto ela é involuntária. Com efeito, a decisão de não prosseguir com o assalto é claramente exógena aos agentes, assentando em última análise, numa alteração das circunstâncias que envolveram o roubo: a saber, com a chegada do carro da polícia, as possibilidades de sucesso da actuação desceram ao ponto de, na ponderação vantagens/desvantagens em prosseguir com a execução do facto, as segundas passaram a apresentar-se como flagrantemente superiores.

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12Ana será, destarte, punida como co-autora de uma tentativa de roubo.

Punição

Tratando-se de uma tentativa, Ana irá, necessariamente, beneficiar de uma atenuação especial obrigatória (artigo 23.º/2), com os efeitos previstos no artigo 73.º/1.

0,25v.

Uma vez que Ana tem 17 anos à data da prática do facto, ela poderá beneficiar, além disso, do regime especial para jovens adultos (16 a 21 anos) previsto no D.L. n.º 401/82, de 23 de Setembro, designadamente, da atenuação prevista no artigo 4.º deste diploma.

2. Co-autoria do rapto de Maria (artigo 160.º/1/d) em concurso aparente com uma ofensa à integridade física [o arrastar violento de Maria] e o sequestro

Tipicidade objectiva Ana e Bernardo, continuando a arrastar Maria, conduzem-na para o carro e arrancam. Com isto, privam, por meio de violência, Maria da sua liberdade. Trata-se de um crime permanente.

Tipicidade subjectiva

Dolo directo de 1.º grau (artigo 14.º/1).

0,25v.

Verifica-se de igual modo o elemento subjectivo especial deste crime de resultado cortado ou parcial: a intenção de constranger a autoridade pública a uma omissão (leia-se, constranger a polícia a tolerar a fuga).

Punibilidade

Ana e Bernardo “param o carro, deixam-no com Maria lá dentro e começam a afastar-se”. Poderia isto equivaler a uma desistência do rapto? Porventura poderia ter esse significado – mas seria, então, desistência de um crime de rapto agravado (artigo 160.º/2/a) – se Ana e Bernardo pretendessem, por exemplo, que a privação da liberdade se protelasse por mais de dois dias. No caso em análise, isso não sucedeu, pelo que, estando apenas em causa o crime de rapto simples, a reposta correcta será a de entender que estamos na presença de um crime permanente já consumado. Ou seja, esta conduta de Ana e Bernardo marca apenas e tão só a cessação da execução do crime de rapto, não afastando a correspondente punibilidade de Ana e Bernardo.

Punição

0,5v.

Uma vez que Ana tem 17 anos à data da prática do facto, ela poderá beneficiar do regime especial para jovens adultos (16 a 21 anos) previsto no D.L. n.º 401/82, de 23 de Setembro, designadamente, da atenuação prevista no artigo 4.º deste diploma.

3. Co-autoria da ofensa à integridade física de Maria (artigo 143.º/1) Tipicidade objectiva 0.5v. Bernardo utiliza ainda Maria como “escudo humano contra qualquer disparo da polícia”. Logo, tendo

Ernesto – polícia – atingido Maria num braço, “ferindo-a levemente”, Bernardo “responde” impreterivelmente por esse mesmo ferimento a título doloso, o qual se enquadra, inequivocamente, na sua área de responsabilidade. Ora, pelo mesmo ferimento irá responder, também, Ana, pois a utilização de Maria como escudo humano não constitui qualquer “excesso” de Bernardo quanto ao decorrer da fuga: forte indício disso mesmo é o facto, já analisado, de também Ana ter arrastado violentamente Maria. Ilicitude

0,25v.

Utilizar uma pessoa como “escudo humano” não pode ser visto como justificação do facto, nem ao abrigo

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13da legítima defesa, nem ao abrigo do direito de necessidade. Culpa Naturalmente que a inimputabilidade de Bernardo não se comunica a Ana (artigo 29.º). Punição Uma vez que Ana tem 17 anos à data da prática do facto, ela poderá beneficiar do regime especial para jovens adultos (16 a 21 anos) previsto no D.L. n.º 401/82, de 23 de Setembro, designadamente, da atenuação prevista no artigo 4.º deste diploma.

4. Ausência de responsabilidade quanto ao disparo fracassado de Bernardo sobre Maria Tipicidade objectiva 0,5v. Ana não irá responder pela tentativa de homicídio que Bernardo leva a efeito sobre Maria. Aqui sim – ao

contrário do que vimos suceder na situação imediatamente anterior –, verificando-se claro excesso de Bernardo em face de tudo aquilo que poderia ter ficado acordado ou que fosse, pelo menos, expectável, Ana não é co-autora na tentativa de homicídio de Maria.

5. Tentativa de ofensa à integridade física simples de Ernesto (artigos 23.º/1; 143.º/1)

Tipicidade objectiva 0.25v. Aferição do juízo de imputação objectiva que relaciona o comportamento de Ana com a lesão verificada na

mão de Ernesto (v. artigo 143.º).

Tipicidade Subjectiva 0.75v. Dolo directo de 1.º grau (artigo 14.º/1): Ana dispara “sem grande convicção”. Não obstante essa pouca

convicção – que resulta do facto de a arma ter ficado encravada aquando do anterior disparo de Bernardo – a verdade é que Ana actua querendo “impedir a perseguição”. Ou seja, apesar da patente fragilidade, in casu, do elemento intelectual do dolo [não nos esqueçamos, porém, que o dolo directo de 1.º grau e o dolo eventual podem comungar dessa mesma reduzida intensidade da representação do facto típico], o elemento volitivo é, aqui, de tal modo intenso, que não pode deixar de se considerar presente a intenção de atingir a polícia, para pôr fim à fuga.

Ilicitude e culpa

1v. Verificação de um caso de erro-ignorância sobre os pressupostos objectivos (elementos situacionais) da causa de justificação legítima defesa: Ana desconhecia que Ernesto se encontrava prestes a alvejar Maria (agressão actual contra interesse juridicamente protegido de terceiro). Por outras palavras, Ana encontra-se, objectivamente, em legítima defesa de terceiro (ou auxílio necessário), mas ignora esse mesmo facto. Falta, pois, o elemento subjectivo das causas de exclusão da ilicitude exigido pela maioria da doutrina: a saber, a consciência da situação justificante (in casu, da situação defensiva). Nestes termos, a solução, que é também hoje maioritária, é a da tese da analogia substancial em face da tentativa [i.e., do reconhecimento, à presença isolada dos elementos objectivos de uma causa de justificação do facto, da virtualidade de compensar o desvalor do resultado próprio do crime consumado], o que conduz, à luz do Direito português, à aplicação, in casu analógica, do artigo 38.º/4. Note-se que se trata de uma analogia permitida em Direito penal, porquanto ela opera in bonam partem: a alternativa seria mais gravosa, pois conduziria à punição pelo crime doloso consumado.

Punibilidade? 0,75v. Há, contudo, ainda um problema por resolver: a remissão do artigo 38.º/4 consubstancia uma remissão

genérica para o regime da tentativa – incluindo, portanto, o carácter descontínuo e fragmentário da sua punição (artigo 23.º/1) – ou uma remissão específica para a mera atenuação especial obrigatória da pena (artigo 23.º/2)? Parece-nos que a solução mais consentânea com a fundamentação da própria teoria da analogia substancial em face da tentativa aponta para a primeira solução (contra, cfr. Costa Andrade): de outro modo cairíamos no paradoxo – em face do princípio da legalidade – de punir o agente por uma tentativa… não punível na nossa ordem jurídica. Assim, aplicando ao caso o artigo 23.º/1, temos que Ana não seria punida, pois a ofensa à integridade física simples (artigo 143.º/1) é punida com pena cujo limite máximo não é superior a três anos, inexistindo preceito que expressamente ressalve a sua punibilidade (artigo 23.º/1).

II. Responsabilidade jurídico-penal de Bernardo: 3 valores

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1. Co-autoria da tentativa de roubo (artigos 22.º, 2, b; 23.º/1; 210.º/1) em concurso aparente com uma tentativa de coacção [que, por sua vez, consumira o crime de ameaça] (consumpção)

Tipicidade objectiva Co-autoria de Ana e Bernardo: ambos tomam parte directa, por acordo, na execução do roubo. Isto é, cada um desempenha uma tarefa de carácter essencial no sucesso do plano criminoso (domínio funcional do facto). Trata-se de uma tentativa de roubo e não de um roubo consumado, porquanto Maria “não chega a concretizar a entrega do dinheiro”.

Tipicidade subjectiva

Ana e Bernardo “decidiram assaltar uma bomba de gasolina: dolo directo de 1.º grau (artigo 14.º/1).

Culpa

Bernardo tem 15 anos pelo que é inimputável (artigo 19.º). Quanto a Bernardo não é, assim, possível a formulação de um juízo de censura próprio da culpa, pois o legislador presume que os menores de 16 não possuem capacidade de motivação pela norma.

0.75

Não obstante, tenha-se presente a possibilidade de se sujeitar o agente à aplicação de uma medida tutelar educativa prevista na Lei Tutelar Educativa (L. 166/99 de 14 de Setembro), para a prática por menores entre os 12 e os 16 anos [era o caso, portanto] de facto qualificado pela lei como crime.

2. Co-autoria do rapto de Maria (artigo 160.º/1/d) em concurso aparente com uma ofensa à integridade física [o arrastar violento de Maria] e o sequestro

Tipicidade objectiva Ana e Bernardo, continuando a arrastar Maria, conduzem-na para o carro e arrancam. Com isto, privam, por meio de violência, Maria da sua liberdade. Trata-se de um crime permanente.

Tipicidade subjectiva

Dolo directo de 1.º grau (artigo 14.º/1).

Verifica-se de igual modo o elemento subjectivo especial deste crime de resultado cortado ou parcial: a intenção de constranger a autoridade pública a uma omissão (leia-se, constranger a polícia a tolerar a fuga).

Ana e Bernardo “param o carro, deixam-no com Maria lá dentro e começam a afastar-se”. Poderia isto equivaler a uma desistência do roubo? Porventura poderia ter esse significado – mas seria, então, desistência de um crime de rapto agravado (artigo 160.º/2/a) – se Ana e Bernardo pretendessem, por exemplo, que a privação da liberdade se protelasse por mais de dois dias. No caso em análise, isso não sucedeu, pelo que, estando apenas em causa o crime de rapto simples, a reposta correcta será a de entender que estamos na presença de um crime permanente já consumado. Ou seja, esta conduta de Ana e Bernardo marca apenas e tão só a cessação da execução do crime de rapto, não afastando a correspondente punibilidade de Ana e Bernardo.

0,25

Culpa

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15

Bernardo tem 15 anos pelo que é inimputável (artigo 19.º). Quanto a Bernardo não é, assim, possível a formulação de um juízo de censura próprio da culpa, pois o legislador presume que os menores de 16 não possuem capacidade de motivação pela norma. Não obstante, tenha-se presente a possibilidade de se sujeitar o agente à aplicação de uma medida tutelar educativa prevista na Lei Tutelar Educativa (L. 166/99 de 14 de Setembro), para a prática por menores entre os 12 e os 16 anos [era o caso, portanto] de facto qualificado pela lei como crime.

3. Co-autoria da ofensa à integridade física de Maria (artigo 143.º/1) Tipicidade objectiva

Bernardo utiliza ainda Maria como “escudo humano contra qualquer disparo da polícia”. Logo, tendo Ernesto – polícia – atingido Maria num braço, “ferindo-a levemente”, Bernardo “responde” impreterivelmente por esse mesmo ferimento a título doloso, o qual se enquadra, inequivocamente, na sua área de responsabilidade. Ora, pelo mesmo ferimento irá responder, também, Ana, pois a utilização de Maria como escudo humano não constitui qualquer “excesso” de Bernardo quanto ao decorrer da fuga: forte indício disso mesmo é o facto, já analisado, de também Ana ter arrastado violentamente Maria. Não há consumpção desta ofensa em face do rapto pois, utilizar uma pessoa como escudo humano, parece extravasar o comum acompanhamento criminológico de um rapto.

Culpa

Bernardo tem 15 anos pelo que é inimputável (artigo 19.º). Quanto a Bernardo não é, assim, possível a formulação de um juízo de censura próprio da culpa, pois o legislador presume que os menores de 16 não possuem capacidade de motivação pela norma.

0.25

Não obstante, tenha-se presente a possibilidade de se sujeitar o agente à aplicação de uma medida tutelar educativa prevista na Lei Tutelar Educativa (L. 166/99 de 14 de Setembro), para a prática por menores entre os 12 e os 16 anos [era o caso, portanto] de facto qualificado pela lei como crime.

4. Tentativa impossível punível de homicídio de Maria (artigos 22.º/2/b; 23.º/3; 131.º) Acção 0.25v. Bernardo actua “num impulso”. Trata-se, claramente, de uma acção: há um comportamento dominável

pela vontade, ou, na feliz expressão roxiniana, de uma manifestação da personalidade. Neste caso, verifica-se a intervenção do sistema nervoso central, pelo que nos encontramos muito longe da constelação – essa sim, de ausência de vontade – do acto reflexo.

Tipicidade objectiva Bernardo acciona o gatilho da arma apontada à cabeça de Maria, mas a “arma encrava”. Bernardo efectua uma tentativa de homicídio sobre Maria. O acto de disparar a arma apontada à cabeça de Maria corresponde cristalinamente à alínea b) do n.º 2 do artigo 22.º. Trata-se de uma tentativa impossível por inidoneidade do meio. Tipicidade subjectiva

0.5 v.

Disparar uma arma apontada à cabeça de outra pessoa, não pode ter outro significado que o dolo de homicídio.

Punibilidade É uma tentativa impossível punível, pois a inidoneidade do meio não é, aos olhos do observador médio, manifesta, havendo, destarte, uma impressão social de perigo. Acresce que, neste caso, não sendo absoluta a impossibilidade, não se colocam obstáculos constitucionais há punição do agente, porquanto a protecção de bens jurídicos e a esfera de liberdade de acção da vítima foram efectivamente postergadas (Maria Fernanda Palma).

0.75

Finalmente, pergunta-se, há desistência da tentativa por parte de Bernardo? Em rigor, e na terminologia roxiniana, não: Bernardo não volta a disparar, porque a arma encravara e, à partida, a repetição do exercício estaria, também ela, destinada ao fracasso. Ou seja, Bernardo reconheceria que já não poderia matar Maria com a arma, termos em que estamos na presença de uma tentativa falhada, ou seja, uma tentativa que não comporta desistência.

Culpa

0.25 Bernardo tem 15 anos pelo que é inimputável (artigo 19.º). Quanto a Bernardo não é, assim, possível a

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16formulação de um juízo de censura próprio da culpa, pois o legislador presume que os menores de 16 não possuem capacidade de motivação pela norma. Não obstante, tenha-se presente a possibilidade de se sujeitar o agente à aplicação de uma medida tutelar educativa prevista na Lei Tutelar Educativa (L. 166/99 de 14 de Setembro), para a prática por menores entre os 12 e os 16 anos [era o caso, portanto] de facto qualificado pela lei como crime.

5. Tentativa de ofensa à integridade física simples de Ernesto (artigos 23.º/1; 143.º/1)

Tipicidade objectiva ? v. Na tentativa não punida de ofensa à integridade física simples de Ernesto, supra tratada quanto a Ana,

Bernardo seria co-autor, porquanto dificilmente se poderia considerar como excesso um disparo de um dos co-autores de um assalto aquando da respectiva fuga.

Punibilidade? ? v. Bernardo não seria punido, mesmo que fosse imputável, pela mesma razão que conduziu à não punição de

Ana: a aplicação do artigo 23.º/1. (v. supra, a fundamentação na resposta à responsabilidade de Ana)…. III. Responsabilidade jurídico-penal de Carlos: 1,5 valores 1. Tentativa de coacção grave a Ana e Bernardo (artigo 155.º/1/a) em concurso aparente com uma ameaça grave

(consumpção)

Tipicidade objectiva 0.5 v. Carlos “ameaçara de morte” Ana e Bernardo, se não pagassem a dívida naquela semana. Através daquela

ameaça com um mal inequivocamente importante, Carlos constrange Ana e Bernardo a uma acção (o dito pagamento). Simplesmente essa acção não se chega a concretizar, pelo que teremos apenas uma tentativa.

Tipicidade Subjectiva

0,25v. Dolo directo de 1.º grau (artigo 14.º/1). 2. Autoria mediata ou instigação da tentativa de roubo de Ana e Bernardo?

Carlos não é autor mediato da tentativa de roubo realizada por Ana e Bernardo. Não é autor mediato, pois não possui o domínio da vontade, que caracteriza o domínio do facto próprio da autoria mediata. Com efeito, não há uma instrumentalização da vontade de Ana e Bernardo, por parte de Carlos, tendente à realização do assalto. Não estamos, com efeito, perante uma das constelações típicas consensualmente reconhecidas do erro excludente do dolo ou da culpa, da coação excludente da culpa ou da falta de domínio ético-social da acção quanto a Ana e a Bernardo. É verdade que Carlos coage, como vimos, Ana e Bernardo: mas coage ao pagamento, não a um assalto. É verdade, de igual modo, que Bernardo é menor, mas tal não releva, pois, para além da idade de Bernardo estar muito próxima da imputabilidade, o facto decisivo é a inexistência de um comando dirigido ao assalto. A autoria mediata é, por conseguinte, afastada, desde logo, ao nível da tipicidade objectiva.

0,75v

Carlos não é instigador da tentativa de roubo realizada por Ana e Bernardo. Não é instigador, pois não cria em Ana e Bernardo a decisão do assalto. Com efeito, a exigência do pagamento por parte de Bernardo não pode ser vista como uma influência psíquica decisiva para a prática de um assalto. Quando muito, poder-se-ia dizer que a motivação do assalto foi o pagamento a Carlos, mas isso não é suficiente para afirmar a imputação objectiva da tentativa de roubo de Ana e Bernardo a Carlos. Não se verifica, deste modo, a tipicidade objectiva da instigação.

IV. Responsabilidade jurídico-penal de Ernesto: 3,5 valores 1. Ofensa à integridade física simples de Maria (artigo 143.º/1)

Tipicidade objectiva 0.25v. Ernesto disparou, atingindo Maria, “ferindo-a levemente num braço”.

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17É óbvia a presença de um juízo de imputação objectiva da lesão corporal de Maria ao disparo efectuado por Ernesto, à luz de qualquer das teorias: tomando, a título de exemplo, a teoria da conexão do risco, Ernesto criou um risco proibido para o corpo de Maria, o qual se veio a materializar na ferida no braço.

Tipicidade subjectiva

0.5v. Dolo eventual (artigo 14.º/3). Poder-se-ia discutir se estamos na presença de uma aberractio ictus ou de um dolo alternativo: é que Ernesto fez pontaria, não para Maria, mas para Ana. A “fraca pontaria” de Ernesto – seguramente conhecida, também, pelo próprio – associada ao facto de Maria estar a ser visivelmente utilizada como escudo humano são, porém, fortes indícios da elevada magnitude do risco de alvejar Maria. Termos em que, existindo dolo directo de 1.º grau de ofensas quanto a Ana e dolo eventual quanto à integridade física de Maria, a figura a equacionar só poderá ser a do dolo alternativo.

Ilicitude Ernesto não está a agir ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude. Note-se que não há legítima defesa de terceiro pois, nem disparar sobre Ana seria um meio idóneo a fazer cessar a agressão sobre Maria (que tinha uma arma apontada à sua cabeça por Bernardo), nem lesar Maria (a própria vítima) poderia ser justificado à luz da ratio desta causa de justificação. Culpa

0.5v

Esta situação não corresponde à causa de desculpa da obediência indevida desculpante (artigo 37.º), porquanto não poderia ser evidente, à luz dos elementos já analisados, que o cumprimento daquela ordem não conduziria à prática de um crime.

Punibilidade 0.25v. Ernesto irá, então, ser punido no quadro do dolo alternativo. Mas em que termos?

A única resposta constitucionalmente conforme aos princípios, com assento constitucional, da culpa e do ne bis in idem é a da punição de Ernesto por um só crime doloso: a saber o mais grave que tenha sido praticado. Ernesto seria, destarte, punido pela ofensa à integridade física consumada de Maria.

Resposta alternativa

Caso, em face dos fortíssimos indícios objectivos supra analisados da magnitude do risco de atingir Maria, se tivesse considerado, inclusive, um risco para vida desta, então, mais do que dolo eventual de ofensas, verificar-se-ia um dolo eventual de homicídio de Maria. A resposta final seria, então, a da punição de Ernesto por uma tentativa de homicídio, que assim absorveria, em concurso aparente, a ofensa à integridade física.

2. Atipicidade da “tentativa negligente” de ofensa à integridade física de Ana e Bernardo

Tipicidade objectiva 0.25v. Ernesto, uma vez mais no cumprimento de uma ordem, preparava-se para disparar sobre o carro (artigo

22.º/2/c). Não chega, contudo, a disparar por força da intervenção de Ana.

Tipicidade subjectiva 0.5v. Ernesto sabia que tinha fraca pontaria (v. supra): isto opera como indício objectivo do dolo eventual de

Ernesto quanto à possibilidade de atingir Ana ou Bernardo. Ora, o dolo eventual é compatível com a punição da tentativa (contra, cfr. Faria Costa).

Ilicitude

0.75 Verificação de um caso de erro-suposição sobre os pressupostos objectivos (elementos situacionais) da causa de justificação legítima defesa: Ernesto julgou que Ana e Bernardo estavam no carro, desconhecendo que o sequestro de Maria já havia cessado. Ernesto supõe, assim, uma agressão efectivamente já inexistente.

Decorrências

0.5 1) artigo 16.º/2: exclusão da imputação dolosa (do dolo no tipo – teoria limitada da culpa [clássica] – ou do

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18dolo na culpa). O facto não é justificado. 2) artigo 16.º/3: não há punição a título de negligência, uma vez que estando embora previsto o tipo incriminador negligente da ofensa à integridade física (artigo 148.º), não há punição da “tentativa negligente” (cfr. artigo 22.º/1). É, aliás, linguisticamente incongruente a consideração dogmática dessa figura.

Resposta alternativa

Poder-se-ia alcançar uma resposta final idêntica, mas com um enquadramento típico inicial diverso: seria o caso de se considerar a existência de um dolo eventual não apenas de ofensas mas também do próprio homicídio, alicerçado, uma vez mais, na já proverbial falta de pontaria de Ernesto. A resposta final seria também a da impunidade, porque a “tentativa negligente” de homicídio é, nos mesmos termos (v. supra), atípica.

V. Responsabilidade jurídico-penal de David: 2 valores 1. Instigação na ofensa à integridade física simples de Maria (artigo 143.º/1)

Tipicidade objectiva David é instigador de Ernesto: ao ordenar o disparo sobre Ana, David cria a decisão de disparo de Ernesto. Termos em que o disparo de Ernesto lhe é também objectivamente imputável a título de instigação.

0.5v.

Note-se que David não é autor mediato, porquanto não estamos em presença da constelação roxiniana do domínio da vontade por domínio da organização: os casos de “aparelho organizado de poder”. É evidente, que, in casu, a polícia não é, desde logo, uma instituição que actue “fora do Direito”, ou, por outras palavras, uma organização que funcione “desvinculada do Direito”.

Tipicidade subjectiva

? 0.5v. Dolo eventual quanto ao facto praticado pelo autor imediato (artigo 14.º/3). Vimos, não obstante, que David ordenou um disparo sobre Ana: ora, quem foi atingida foi Maria. Quid juris? No fundo poder-se-ia discutir a repercussão do dolo alternativo de Ernesto (autor imediato) na punição de David: e poderia concluir-se, seguramente, à partida, que David não poderia ser responsabilizado pelo crime doloso consumado de Ernesto quanto a Maria. Simplesmente, é o próprio enunciado que nos alerta para o facto de David saber “que Ernesto tinha fraca pontaria”. Destarte, a resposta será igual, mutatis mutandis, à anteriormente realizada para Ernesto. I.e., também para David temos um dolo alternativo. A “fraca pontaria” de Ernesto associada ao facto de Maria estar a ser visivelmente utilizada como escudo humano são fortes indícios da elevada magnitude do risco de alvejar Maria. Termos em que, existindo dolo directo de 1.º grau de ofensas quanto a Ana e dolo eventual quanto à integridade física de Maria, a figura a equacionar só poderá ser a do dolo alternativo.

Ilicitude David, tal como Ernesto, não está a agir ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude. Note-se que não há legítima defesa de terceiro pois, nem disparar sobre Ana seria um meio idóneo a fazer cessar a agressão sobre Maria (que tinha uma arma apontada à sua cabeça por Bernardo), nem lesar Maria (a própria vítima) poderia ser justificado à luz da ratio desta causa de justificação. Punibilidade David irá, então, ser punido no quadro do dolo alternativo. Mas em que termos? A única resposta constitucionalmente conforme aos princípios, com assento constitucional, da culpa e do ne bis in idem é a da punição de David por um só crime doloso: a saber o mais grave que tenha sido praticado. David seria, destarte, punido pela ofensa à integridade física de Maria.

0.25

Note-se que sendo David um participante, a acessoriedade limitada, encontrava-se cumprida na prática por Ernesto do facto típico e ilícito que temos vindo a analisar

Resposta alternativa

Caso, em face dos fortíssimos indícios objectivos supra analisados da magnitude do risco de atingir Maria, se

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19tivesse considerado, inclusive, um risco para vida desta, então, mais do que dolo eventual de ofensas, verificar-se-ia um dolo eventual de homicídio de Maria.

A resposta final seria, então, a da punição de David como instigador na tentativa de homicídio de Maria realizada por Ernesto (participação na tentativa), que assim absorveria, em concurso aparente, a instigação à ofensa à integridade física.

2. Atipicidade da “tentativa negligente” de ofensa à integridade física de Ana e Bernardo

Tipicidade objectiva David é instigador de Ernesto: ao ordenar o disparo sobre Ana, David cria a decisão de disparo de Ernesto. Termos em que o disparo de Ernesto lhe é também objectivamente imputável a título de instigação. Note-se que David não é autor mediato, porquanto não estamos em presença da constelação roxiniana do domínio da vontade por domínio da organização, nos mesmos já expostos (v. supra). Tipicidade subjectiva David sabia que Ernesto tinha fraca pontaria (v. supra): isto opera como indício objectivo do dolo eventual de David quanto à possibilidade de atingir Ana ou Bernardo. Ora, o dolo eventual é compatível com a punição da instigação. Quanto ao dolo da determinação esse foi, claro está, directo.

Ilicitude Verificação de um caso de erro-suposição sobre os pressupostos objectivos (elementos situacionais) da causa de justificação legítima defesa: David julgou que Ana e Bernardo estavam no carro, desconhecendo que o sequestro de Maria já havia cessado. David supõe, assim, uma agressão efectivamente já inexistente.

Decorrências 1) artigo 16.º/2: exclusão da imputação dolosa (do dolo no tipo – teoria limitada da culpa [clássica] – ou do dolo na culpa). O facto não é justificado.

0,25v.

2) artigo 16.º/3: não há punição a título de negligência, uma vez que inexiste o tipo incriminador da “instigação negligente”.

Nota 0.5v. David não seria punido, mesmo que não estivesse ele próprio em legítima defesa putativa.

Isso mesmo decorre da acessoriedade limitada: é que, como vimos (v. supra), a conduta de Ernesto (autor imediato) acabou por ser atípica (“tentativa negligente”), termos em que, não tendo o autor imediato praticado um facto penalmente típico e ilícito, o seu instigador não poderia ser punido por falta de verificação, no caso sub juditio, da acessoriedade qualitativa (contra, exigindo apenas a acessoriedade quantitativa para a instigação, cfr. Figueiredo Dias).

Resposta alternativa

Poder-se-ia alcançar uma resposta final idêntica, mas com um enquadramento típico inicial diverso: seria o caso de se considerar a existência de um dolo eventual não apenas de ofensas mas também do próprio homicídio, alicerçado, uma vez mais, na já proverbial falta de pontaria de Ernesto. A resposta final seria também a da impunidade, com os mesmíssimos fundamentos acabados de invocar.

VI. Responsabilidade jurídico-penal do ferro-velho: 2 valores 1. Ausência de responsabilidade quanto à tentativa de roubo de Ana e Bernardo

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20

Tipicidade objectiva Ana e Bernardo utilizaram, no assalto, uma arma que lhes o personagem místico da nossa história – o estranho ferro-velho – “lhes emprestara”. Coloca-se, então, a questão de saber se há, ou não, cumplicidade do ferro-velho na tentativa de roubo.

1v

Com aquele gesto seria, à partida, indiscutível que, objectivamente, a conduta do ferro-velho foi co-causal [na perspectiva da modificação meramente concreta com que a doutrina tradicionalmente caracteriza a causalidade na cumplicidade] da tentativa de roubo. Adicionalmente, exige-se, porem, que a conduta tenha aumentado, de modo não permitido, o risco da produção do facto principal: ora, neste nosso caso, responder a essa pergunta torna-se um desafio intrigante, porquanto sabemos que, para o ferro-velho, a “arma impedirá o crime”. Isto indicia que o ferro-velho saberia das particularidades desta arma (v.g., saberia que ela iria encravar). Pergunta-se, então: há aumento do risco? Se o crime projectado fosse um homicídio ou uma ofensa à integridade física, diríamos, imediatamente, que não. Sucede, porém, que a arma seria utilizada num assalto: ora, num assalto, a simples presença de uma arma, sem que um único disparo seja efectuado, aumenta o risco do respectivo sucesso. Termos em que nos parece poder afirmar-se, ainda numa perspectiva puramente objectiva, um aumento do risco. Mas esse juízo apela para a uma aferição ex ante, aos olhos de um observador médio. Cumpre então perguntar, se seria previsível que a arma tivesse sido solicitada para utilização no assalto. A resposta não é inequívoca: o enunciado diz-nos que o ferro-velho desconfiara da utilização da arma. Resta saber, o porquê dessa desconfiança. Se se tratar de uma desconfiança em que só incorresse o nosso estranho personagem fruto de alguma das suas idiossincrasias místicas, não haverá aumento do risco proibido, termos em a cumplicidade do ferro-velho seria, liminarmente, excluída ao nível do próprio tipo objectivo [sabendo-se, desde logo, à partida que uma eventual tentativa de cumplicidade não seria punida na nossa ordem jurídica]. Se, pelo contrário, aquela desconfiança tivesse o mínimo de inter-subjectividade, então haveria imputação objectiva ao nosso ferro-velho. Avançamos na nossa hipótese, supondo como correcta a segunda alternativa.

Tipicidade subjectiva

1v. Admitindo que houve tipicidade objectiva, pergunta-se: houve dolo de cumplicidade? O problema coloca-se quanto ao segundo objecto do dolo: o facto principal dos, in casu, co-autores. Encontramos dois elementos que apontam em sinal contrário. Por um lado, o facto de o ferro-velho “desconfiar” do assalto, aponta para o dolo eventual. Por outro lado, o facto de ter emprestado conscientemente uma arma muito especial – a tal que iria impedir o crime – parece fazer inclinar os pratos da balança no sentido oposto: isto é, no sentido da não conformação com o sucesso do assalto. Ora, entre estas duas considerações, e no meio de toda a perplexidade da adivinhação do verdadeiro significado da actuação e das palavras de tão singular indivíduo, chegamos ao único ponto inequívoco de apoio em sede de apuramento da sua vontade: o ferro-velho – e nisto todos podemos assentar – não se conforma com a consumação do assalto. Ou seja, quanto muito apenas poderia haver dolo eventual quanto à tentativa de roubo, não quanto ao roubo consumado. Com esta simples – mas sólida – constatação estamos em condições de afastar a responsabilidade do ferro-velho como cúmplice da tentativa de roubo: é que a doutrina claramente maioritária vem exigindo a inclusão no objecto do dolo tanto do instigador como do cúmplice não apenas da tentativa do facto do autor mas do respectivo facto principal consumado. Faltando, na nossa hipótese, o dolo de consumação quanto ao facto de Ana e Bernardo, por parte do ferro-velho, este não seria punido, por falta do tipo subjectivo, inexistindo, ainda, a punição da “cumplicidade negligente” (artigo 13.º) [isto tudo, claro está, na suposição de que a imputação do ferro-velho não teria sido excluída, a montante, ao nível da tipicidade objectiva, o que, como vimos (v. supra), não é líquido].

VII. Sistematização, clareza e português: 1,5 valores