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Estudos Linguísticos e Literários:
Saberes e Expressões Globais
ISSN 2175 389X
Foz do Iguaçu, 2011
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A APROPRIAÇÃO DO FAUSTO DE GOETHE EM GUIMARÃES ROSA E
MACHADO DE ASSIS: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
REDEL, Elisângela (UNIOESTE)1
FLORY, Alexandre (Orientador)2
RESUMO: Os textos literários, sob um discurso plural, historicamente situado e consciente das diferenças que caracterizam cada corpus literário, passaram a ser analisados, depois dos anos 70, como vozes que dialogam com outras, mas também como eco das vozes de seu tempo, da história de um grupo social, de seus valores, crenças e preconceitos, calcado na aceitação das diferenças. Nesse sentido, o mito do Fausto, desenvolvido a partir de uma figura histórica que viveu no começo do século XVI na Alemanha, tornou-se, sem dúvida, uma das mais representativas e importantes referências literárias da civilização ocidental, assumindo a dimensão de figura mitológica em função de seu pacto com o diabo e sua ansiedade por tudo conhecer e sentir, aspiração essa que é tanto romântica quanto universal. Abrigado no fato de o mito de Fausto ter se tornado uma referência fundamental no ocidente, o presente trabalho está calcado em sua apropriação brasileira, seja pela citação que Machado de Assis faz de Fausto em A igreja do diabo (1983), seja pela remissão e recriação do motivo do pacto em Grande Sertão: Veredas (1985), de Guimarães Rosa. Dessa perspectiva, foram escolhidos alguns aspectos a serem comparados no intuito de apresentar as divergências e convergências entre essas obras, autores e culturas literárias num contexto cultural, em que as literaturas nacionais, reservando sua especificidade, são apresentadas como um todo mais amplo formado por variadas relações, apropriações e mediações.
PALAVRAS – CHAVE: literatura comparada, Fausto
O presente artigo tem por objetivo discutir as distintas formas em que o mito do Dr. Fausto
de Johann Wolfgang von Goethe é representado na obra de João Guimarães Rosa, em Grande
Sertão: Veredas (1985), e também no conto de Machado de Assis, A igreja do diabo (1983), ora de
formas divergentes, ora de formas semelhantes. A análise basear-se-á na remissão direta que o
diabo, em Machado de Assis, faz no capítulo II do conto, como se verá adiante, e a alusão feita a
este mesmo Fausto de Goethe na obra Grande Sertão: Veredas (1985).
1 Elisângela Redel, UNIOESTE, [email protected] 2 Alexandre Flory, UEM, [email protected]
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Existe um elemento comum nestas três obras em questão que permite realizar esta análise
comparativa que é o mito de Fausto (de forma particular a conformação deste feita por Goethe
(1981) ) e por meio deste a ligação inconsciente, imaginária do homem com o diabo. Na obra de
Goethe (1981), esta ligação é comprovada pelo “pacto” de Fausto com o diabo, assinada com
sangue sob a condição de que Fausto só entregaria sua alma quando dissesse: “Pára, és tão belo”, o
que implica ser, de forma irônica, antes uma aposta do que um pacto. À esta figura lendária
Machado de Assis (1983) faz referência através de uma citação, quando o diabo chega ao céu e diz
a deus não vir pelo servo Fausto, “mas por todos os faustos do século e dos séculos” (ASSIS, 1983,
p.43). No caso de o Grande Sertão: Veredas (1985), observa-se a presença deste mito de outra
perspectiva. Nesta, o pacto com o demônio está no centro da questão e gira em torno de um possível
pacto entre Riobaldo e o diabo, no qual este primeiro acredita na existência do ser sobrenatural
como parte do homem. Na verdade, depois de fazer parte do imaginário da literatura universal,
Fausto torna-se um mito estético.
Quando se falar de mito, aqui, esta será a acepção de base. Esta análise comparativa tem
como intuito focalizar o diálogo que existe entre estas distintas obras, não como uma busca
exaustiva dos itens que podem ser comparados, mas elencando alguns aspectos que sirvam para
mostrar a importância e pertinência da literatura comparada (como a presença do diabo, a ânsia por
conhecimento e pelo absoluto, a permissão de deus, etc.) e que, embora se distingam em relação à
literatura, se apropriam e recriam o personagem Fausto, que expressa com muito vigor uma divisão
ontológica (da essência) do homem, a busca pelo saber, além de uma dimensão particular do
romantismo, a aspiração pelo absoluto.
1. A remissão a Fausto no conto A Igreja do Diabo, de Machado de Assis
Um primeiro tópico diz respeito à relação entre o Altíssimo (Deus) e Mefistófeles (o
Diabo), respectivamente em Fausto (1981) e na A igreja do diabo (1983). Nos dois casos fica
evidente uma “simpatia” recíproca entre as duas instâncias. Embora haja uma hierarquia nítida,
existe a possibilidade do encontro, que não é marcado por uma polarização exacerbada. Nem
Goethe nem Machado de Assis empregam as palavras gratuitamente, pois vemos na primeira obra a
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palavra “prazer” pronunciada pelo diabo em sinal de admiração a deus, e a “liberdade extrema” que
deus dá ao diabo para entrar no céu. Vejamos:
O Altíssimo: Também nisso te dou plenos poderes Jamais te odiei, a ti e aos teus iguais. É o magano o que me pesa menos, De todos vós, demônios que negais. Mefistófeles: Vejo, uma ou outra vez, o Velho com prazer, Romper com ele é que seria errôneo. É, de um grande Senhor, louvável proceder. Mostrar-se tão humano até com o demônio. (GOETHE, 1981, p.38-39)
De modo análogo, em Machado (1983) não importa apenas o momento em que o Diabo
chama Deus de mestre. Há também provas cabais da mútua admiração e nivelamento quando Deus
chama o Diabo de „velho retórico‟, por conta das franjas que ele pretende colher, os pecados e
pecadilhos mal escondidos pelos homens. Embora haja alguma ironia nos dois casos nessa
aproximação, ela é inegável, e nos dois casos a relação leva a uma aposta, em que Deus permite que
o Diabo tente o homem. São dois interlocutores, mais do que adversários, pois nos dois casos Deus
não disputa com o Diabo, mas permite que ele haja como lhe aprouver. Essa relação também se vê
na subserviência do Diabo em relação a Deus nas duas obras, em que ficam algo embaralhadas as
posições dos antagonistas. Em Fausto, quando Mefistófeles diz, sobre o homem: “Viveria ele algo
melhor, se da celeste / Luz não tivesse o raio que lhe deste; / De Razão dá-lhe o nome, e a usa,
afinal, / Para ser feroz mais que todo animal.” (GOETHE, 1981, p. 51). E Deus, num e noutro caso,
fica o seu tanto colérico, quase expulsando-o do céu, numa atitude própria de quem se entrega à
fúria, não ao comedimento e perdão.
Um segundo aspecto digno de comparação diz respeito às limitações impostas à figura de
Mefistófeles e do Diabo nas obras em questão. Se observarmos atentamente, em uma segunda
leitura, a espécie de “pacto” que Fausto fez com Mefistófeles, perceberemos que se trata, na
verdade, de uma aposta. O controle está com Fausto: se ele não proferir as palavras combinadas,
não entregaria sua alma a Mefistófeles. Não é uma questão de decurso de prazo (24 anos, por
exemplo, como em outros Faustos), mas uma decisão tomada por Fausto.
E sem dó nem mora!
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Se vier um dia em que ao momento Disser: Pára! És tão formoso! Então algema-me a contento Então pereço venturoso! Repique o sino derradeiro, A teu serviço ponhas fim, Pare a hora então, caia o ponteiro, O Tempo acabe para mim! (GOETHE, 1981, p.83)
Outro momento importante dessa limitação se vê na cena do primeiro contato entre os dois,
quando Mefistófeles não pode sair do quarto por conta de um ângulo mal desenhado num
pentagrama, e Fausto se ri desse poder inesperado que têm sobre Mefistófeles, que logo encontra
um meio de fazê-lo dormir e conseguir a ajuda de um rato para eliminar o problema. Aqui, a
limitação de Mefistófeles se tinge de tintas irônicas, pois Fausto abusa de seu poder momentâneo
sobre o magano para rir-se dele. Noutro momento, o da impossibilidade de Mefistófeles conseguir
que Margarida se entregue a Fausto, também se expressa essa limitação ante a força de Deus,
incorporada por Margarida por ser temente a Deus, casta e pura.
Mefistófeles - Aquela? Ora! Do padre vinha Que de pecados a achou inocente; Passei ao confessionário rente: É jovem muito ingênua e boa, Que foi à confissão à toa: Sobre essa eu não tenho poder! (GOETHE, 1981, p.124).
Baseando-se nestas remissões, é possível observar que Mefistófeles não tem poder
absoluto sobre as criaturas. De certo modo, essa limitação também aparece em Machado (1983). O
Diabo não consegue alcançar seus objetivos por meio de sua igreja, provocando o efeito contrário:
Um dia, porém, longos anos depois notou o diabo que muitos de seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católicos; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros. (ASSIS, 1983, p.148)
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Eis a ironia que se passa neste conto e que se assemelha, nesse sentido, ao Fausto de
Goethe (1981). O fato de o diabo não ter o poder suficiente para governar sobre as pessoas, e o
fracasso de sua igreja, torna a narrativa irônica.
Um terceiro ponto para a análise comparativa é a dialética entre o bem e o mal nos dois
textos. Em Fausto, Mefistófeles se define assim:
Mefistófeles: Sou parte da Energia Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria. Fausto: Com tal enigma, que se alega? Mefistófeles: O Gênio sou que sempre nega! E com razão; tudo o que vem a ser É digno só de perecer; Seria, pois, melhor, nada vir a ser mais. Por isso, tudo a que chamais De destruição, pecado, o mal, Meu elemento é, integral. (GOETHE, 1981, p.71)
Quando a igreja do Diabo de Machado (1983) entra em crise, os fiéis pecam e, assim,
fazem o bem. Depois da Igreja do Diabo vicejar, o Mal se torna Bem, os pecados são o Bem. Nesse
contexto, o vício, que é a prática do Mal, é fugir dos pecados, ou seja, praticar o Bem da igreja de
Deus. Mefistófeles acorda os desejos, coloca os limites humanos à vista, provoca a tentação, o que
pode levar à perdição, mas, também, à reflexão. O não, o diferente, marca do espírito que nega, é o
oposto do sim, que é a identidade, a perfeição, a falta de movimento, o imutável. O não instaura o
pensamento. Não é à toa que, também em Machado (1983), o Diabo se defina como o espírito que
nega, noutra remissão direta a Fausto (além da ironia quando diz, assim que avista Deus, que viera
não por um Fausto apenas, mas por todos os Faustos, ou seja, por todos os homens).
Machado (1983) embaralha as noções de Bem e Mal, que perdem o estatuto de perfeição e
harmonia divinas, e se tornam relativas. A Igreja do Diabo não equivale à extinção da Igreja de
Deus, mas mantém-se a forma, a crença em determinados valores, agora invertidos: a gula, a cólera,
o crime, a exploração, a entrega às paixões e aos desejos carnais fundam uma nova doutrina,
baseada também na fé e na ação. O homem, frágil, indeciso, veleidoso, inconstante, sem caráter,
peca contra o pecado: ao praticar o mal de acordo com a doutrina do Diabo, faz o Bem de Deus.
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A ironia está no fato da volta ao seio de Deus não ser fruto da virtude, da conscientização
do erro cometido, da retomada ao caminho da correção, ou seja, não é uma decisão moral de um
sujeito crítico. Ela decorre da entrega ao vício, da conspurcação dos valores aceitos, da desrazão
que governa os homens. Ou seja: a prática do Bem não é um ato afirmativo, mas a negação da
negação, o que evidencia, ainda mais, o ceticismo e a ironia típicas de Machado.
Embora sejam de diferentes épocas, Goethe (1981) também denuncia as ações humanas e
idéias de seu tempo relacionando-as com seu modo de pensar e interpretar a vida. Goethe (1981)
revela sua posição e representa por meio de sua obra a nova realidade do homem, um ser
“iluminado” e independente de Deus em suas ações e escolhas e, por isso mesmo, um pouco
perdido.
Na análise comparativa, deve-se considerar também os aspectos nas quais as obras se
divergem e apresentar, assim, os limites da comparação. Nestas duas obras, além de serem distintas
quanto à cultura, época e gênero, identifica-se outro aspecto considerável na divergência entre
ambas. Na igreja do diabo, o homem tem vontade fraca, diferentemente de Fausto, que tem vontade
cega e ilimitada. Este não age apenas sob os comandos de Mefistófeles: ele exige Margarida, tem
ânsia em conquistá-la. Desse modo, não podemos dizer que Fausto é o sujeito bom e Mefistófeles o
mal como o podemos fazer no conto de Machado. Este é, no seu materialismo, cinismo e até
niilismo, a negação como força produtiva, intrínseca à natureza, à psicologia humana e a própria
História.
2. O mito literário de Fausto e sua apropriação em Grande Sertão: Veredas
Kathrin Rosenfield em Os descaminhos do Demo (1993) mostra como os conceitos de
Guimarães Rosa, como o ser e a natureza humana, mexem com nossas convicções racionais visto
que não fornecem nenhuma verdade definitiva, mas, ao contrário, levam à reflexão, produzindo
reações polêmicas. Este é um grande fator que se deve levar em consideração na análise
comparativa deste mito nas obras em questão. O possível pacto compreendido na obra de
Guimarães Rosa e o concretizado na obra de Goethe desenvolvem de imediato o interesse pela
verdade, no intuito de compreender a existência ou não deste ser sobrenatural, de acreditar ou não
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na concretização de um pacto com o diabo ou se tal suposição existe somente no imaginário dos
homens.
A maneira mais evidente em que o mito de Fausto irrompe no romance maior de Rosa
(1985) é pelo suposto pacto que Riobaldo trava com o Diabo, que lhe dará forças para assumir o
comando do grupo de jagunços e enfrentar Hermógenes, ele mesmo outra figuração do mal na obra.
A dialética entre o Mal e o Bem, assim, faz parte de sua composição. A diferença é que o Diabo não
aparece em pessoa, mas por indícios, certamente poderoso em nível psicológico, mas questionado
quanto à sua existência material.
No entanto, existe em Fausto algo formal, uma assinatura com sangue para garantir a
realização e os termos do acordo, o que não encontramos na obra de Guimarães. No caso do Grande
Sertão: Veredas (1985), o pacto com o demônio está no centro da questão e o romance gira em
torno dessa provável tratativa, mas não há nada concreto que comprove essa suposição. Desta
perspectiva, pode-se levar em consideração a hipótese de este “pacto” se tratar apenas de um fruto
de sua imaginação, sendo, neste último caso, uma invenção dos homens. Em Fausto:
Fausto: O inferno, até lá tem leis? Mas, bravo! Podemos pois, firmar convosco algum contrato, Sem medo de anular-se o trato? Mefistófeles: Porque exageras teu fraseado Com jeito tão acalorado? Serve qualquer folheto ou nota. Com sangue assinas, uma gota! Fausto: Pois bem, a farsa, então, se adota, Já que te deixa contentado. Mefistófeles: Sangue é um muito especial extrato! (GOETHE, 1981, p. 84).
Comprova-se com as citações acima que de fato houve um pacto firmado com sangue entre
Fausto e o diabo. Vejamos agora como este mito, encontrado na obra de Guimarães Rosa (1985), é
um objeto de questionamentos, colocando em dúvida sua existência e autenticidade:
Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Falava das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender sua própria alma... invencionice falsa! E, alma, o que é? Alma tem de ser coisa interna supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah, alma absoluta! Decisão de vender alma é afoitez vazia,
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fantasiado de momento, não tem a obediência legal. (...) Pois. Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível. O senhor não acha? Me declare, franco, peço. (ROSA, 1985, p. 23).
Como se vê, não se trata apenas da dúvida sobre a concretização do pacto, mas das suas
condições de possibilidade. Questiona-se em todos os níveis cabíveis: se há alma e, em havendo, se
ela é de Deus ou se o homem pode dispor dela; mesmo a simples existência do próprio Diabo não
está a salvo de cogitações.
E as idéias instruídas do senhor me fornecem paz. Principalmente a confirmação, que me deu, de que o Tal não existe, pois é não? O arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-gracejos... Pois, não existe! E se não existe, como é que se pode se contratar pacto com ele? (ROSA, 1985, p.37)
Outro aspecto de sua argumentação enviesada, dialética, irrompe com toda força na citação
acima. Ao dizer que o Diabo não existe, ele enumera muitas expressões populares que se referem ao
Diabo, o que evidencia sua importância e pertinência naquele contexto simbólico-cultural. A força
do demônio ainda se potencializa pelo silêncio dos eufemismos, como se se estivesse cercando algo
tão poderoso que não cabe num nome apenas, num conceito singular. A reiteração, com o efeito da
repetição (pois todos os nomes se referem ao demônio) é outro elemento afirmativo por acúmulo,
adensamento, chegando próximo de se tornar uma ideia-fixa. Por todo o livro, essa dialética estará
presente, discutindo a existência e a essência do Bem e do Mal, a relação entre esses conceitos
envoltos em uma dúvida permanente e recorrente.
Assim como há uma dialética entre Mal e Bem no Fausto, como visto há pouco, aqui isso
também se verifica, e o pacto (o Mal, tenha ele existido ou não, psicologicamente permitiu que
Riobaldo assumisse o bando e o guiasse) serve para vencer Hermógenes, na composição do livro
quase a alegoria do Mal: ou seja, o Mal do pacto serve para vencer o Mal (Hermógenes) e, assim,
ele é o Bem. Nesse sentido, o jagunço Riobaldo podia fazer coro a Mefistófeles, e dizer que é parte
da energia “que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria”, como citado acima.
Outro ponto que merece destaque são as transformações dos personagens. Na obra de
Goethe (1981), Mefistófeles aparece a Fausto sob a figura de um cão negro e, após entrar em seu
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quarto, passa por muitas metamorfoses até assumir uma forma final, que não é a definitiva, mas a
que é mais afeita a Fausto, no entender de Mefistófeles.
Mais que me surge à vista? Não é possível que isto exista! É realidade? É sombra informe? Meu perro! Que alto fica e enorme! Que violento se ergue do chão! Isso não é forma de um cão! Que assombração trouxe eu para casa! Um hipopótamo parece já[...] (GOETHE, 1981, p. 68)
Já foi visto pouco acima como o demônio tem muitas faces em Rosa e, como acima,
nenhuma é a definitiva, inominável, assim como Mefistófeles é um dos espíritos que negam, entre
vários. Mais do que isso, no entanto, ao longo da obra Riobaldo conta vários casos em que o
demônio aparece sob diversas formas, embora nunca seja certo ser mesmo o diabo. Uma das
passagens é significativa por estar logo na abertura da narrativa, e trazer o provável demônio na
máscara de um cão:
Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu -; e com máscara de cachorro. Me disseram eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. (ROSA, 1985, p.7)
Fausto também será rejuvenescido, na cena com a bruxa, quando a mesma não reconhece
Mefistófeles por faltar o pé de cavalo, que ele não está usando. Riobaldo, por sua vez, será ainda
Tatarana, chefe Urutu-Branco; professor, jagunço, chefe do bando, dono de terras bem assentado,
narrador muito talentoso.
- Mano velho Riobaldo: tu crê que não merece, mas nós sabemos a tua valia...- Diadorim retornou. Assim instava, mão erguida, onde é que os outros, roda-a-roda, denotavam assentimento. - Tatarana! Tatarana! (ROSA, 1985, p. 75) - E o Urutu Branco? Ah! Não me fale. Ah! Esse tristonho levado, que foi – que era um pobre menino do destino...(ROSA, 1985, p. 16) - Ser chefe – por fora um pouquinho amargo; mas por dentro, é rosinhas flores. (ROSA, 1985, p. 66).
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Eis algumas citações que confirmam essa constante transformação na vida de Riobaldo,
não só em seu nome, mas também em suas funções. Essas múltiplas posições e nomes que assume
estão diretamente ligadas às buscas de Riobaldo por amor, amizade, justiça, poder, saber comportar-
se, numa movimentação material e intelectual ininterruptas. Apesar de Riobaldo pertencer à gente
simples do sertão brasileiro, muito distinto do protagonista de Goethe, ele carrega em si um ímpeto
fáustico notável. O poder supremo, o pacto com o demônio, o amor de Diadorim, mesmo que
proibido, a aceitação de Sêo Abão e o reconhecimento do doutor seu interlocutor, tudo isso deseja
ardentemente Riobaldo. O protagonista de Guimarães Rosa é um ser curioso que, assim como o
Fausto de Goethe, admira-se de seu mundo. Tanto Fausto como Riobaldo possuem conhecimento
condizente com a sua época e sua sociedade, embora estejam insatisfeitos consigo mesmos.
Riobaldo, rude sertanejo, destaca-se na sociedade do sertão, pois não é um analfabeto
como a maioria de seus companheiros e teve até professor que o ensinou a ler. Seus colegas o
consideravam um intelectual e aconselharam-no até a estudar latim na escola Régia: “Ah, não é por
falar: mas, desde o começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar
latim, em aula Régia – que também diziam. (ROSA, 1985, p. 14)
No entanto, apesar de terem certo conhecimento, o protagonista de Goethe e também
Riobaldo se encontram numa eterna busca de autoconhecimento, o que se mostra impossível, pois o
homem é sempre outro. Vejamos o que Fausto diz:
[...] De doutor tenho o nome e mestre em artes, E levo dez anos por estas partes, Pra cá e lá, aqui ou acolá Os meus discípulos pelo nariz. E vejo-o, não sabemos nada! [...] [...] Por isso me entrego à magia, A ver se o espiritual império Pode entreabrir-me algum mistério, Que eu já não deva, oco e sonoro, Ensinar a outrem o que ignoro; Para que aprenda o que a este mundo Liga em seu âmago profundo, Os germes veja e as vivas bases, E não remexa mais em frases. (GOETHE, 1981, p. 41)
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Vejamos então as diversas vezes em que Riobaldo fala sobre os conhecimentos, de como
inveja a instrução de seu visitante e de sua vontade de ter domínio sobre diversas coisas
inexplicáveis.
Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe! (ROSA, 1985, p. 93).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aproximação das obras analisadas neste trabalho de literatura comparada mostrou que,
elementos heterogêneos também podem ser colocados lado a lado. A propósito, quando se trata da
literatura alemã, tem-se um conceito um pouco mais complexo. Entretanto, autores como Machado
de Assis (1983) e Guimarães Rosa (1985), entre muitos outros, mostram como a remissão à
literatura alemã pode ser de grande valia. Até mesmo pelo fato de que a formação do indivíduo
burguês, especializado, limitado, vai demorar para se firmar no âmbito das literaturas em língua
alemã do que na francesa ou inglesa, postergação essa também tematizada em autores como os
brasileiros citados, no contexto de uma modernização conservadora tardia e, mesmo, até hoje
incompleta. O desejo pela totalidade não é um desejo burguês: de acordo com este, a formação se
confunde com a informação instrumental para um resultado mensurável estatisticamente, e a pedra
de toque é a especialização em todos os âmbitos da vida social.
Este trabalho comprovou que existe a possibilidade de se trabalhar obras literárias num
contexto cultural em que as literaturas nacionais, reservando sua autonomia e especificidade, não
são apresentadas como realidades isoladas, mas sim como um todo muito mais amplo formado por
variadas relações, influências, apropriações e mediações. Isso se dá tanto dentro do chamado
sistema literário, como na relação entre literatura e sociedade: não há como analisar e compreender
a literatura somente de uma perspectiva nacional.
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REFERÊNCIAS:
ASSIS, Machado de. A igreja do diabo. In: A cartomante e outros contos. São Paulo: Moderna,
1983.
CAMPOS, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981.
GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto I. Trad. de Jenny Klabin Segall. São Paulo: Itatiaia, 1981.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 18. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. ROSENFIELD, Kathrin. Os descaminhos do Demo: tradição e ruptura em Grande Sertão: Veredas. São Paulo: EDUSP, 1993.