estudo sobre aenais

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virgilio

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    Musa, agora as causas: uma leitura da invocao da EneidaAutor(es): Thamos, MrcioPublicado por: Sociedade Brasileira de Estudos ClssicosURLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/35716

    Accessed : 27-Jul-2015 14:21:12

    digitalis.uc.ptimpactum.uc.pt

  • Musa, agora as causas:

    uma leitura da invocao da Eneida

    MRCIO THAMOSUniversidade Estadual Paulista

    Brasil

    RESUMO . O texto traz uma anlise dos quatro versos do pico virgiliano que correspon-dem invocao musa, os hexmetros de 8 a 11. Nessa anlise, procura-se dar relevo a determinados aspectos do discurso que se configuram como recursos de expresso. Des-taca-se principalmente a famosa questo da pietas de Enias, num esforo de redefini-la em outras bases, a partir de um ponto de vista essencialmente diverso daquele adotado pela tradio e, em seguida, apresenta-se um efeito relevante de meno sub-reptcia ao nome do varo que se pode perceber no ltimo verso desse trecho da epopia.

    PALAvRAS-CHAvE . Virglio; Eneida; Canto I; invocao; pietas; Enias.

    Os quatro versos que se seguem proposio da Eneida, os hexmetros de 8 a 111, constituem uma espcie de apelo que o poeta dirige diretamente a uma divindade a fim de obter-lhe o sagrado auxlio na consecuo de seu intento. A invocao musa exprime de maneira dramtica a grandiosidade do tema a ser cantado, conferindo composio da obra o carter de uma tarefa sobre-humana. Como ser capaz de desvelar os mistrios profundos dos fados? Como conhecer cada detalhe das aes imemoriais que deram origem ao suntuoso Imprio? Para uma celebrao potica digna dos fatos referidos na proposio, isto , para o desenvolvimento do projeto esboado nos sete primeiros versos da obra, preciso contar com a inspirao divina e tornar-se um servo da musa, a fim de ser agraciado pelo favor que s ela pode conceder. Ao ser invocada a divindade, prenuncia-se performativamente uma transformao significativa: a figura do poeta que se eleva do vate.

    O imperativo de segunda pessoa singular empregado no oitavo hexme-tro memora a forma verbal responsvel por essa mudana no regis-tro enunciativo: diante da impossibilidade de conhecer os desgnios divinos

    Email: [email protected] de Cincias e Letras, cmpus de Araraquara.

    1 Cf. o texto original seguido de traduo, no final deste artigo.

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    que, num tempo to remoto, teriam exposto o heri a tamanhas dificuldades no cumprimento de sua misso fundadora no Lcio, o poeta, ciente de sua condio humana, recorre entidade superior que costuma partilhar com os mortais o saber ilimitado dos deuses. A prpria ocorrncia desse imperativo gramaticalmente marcado como presente, uma vez que a oposio sistmica do latim prev a possibilidade de um imperativo futuro, torna bastante ex-pressivo o sentido pattico da invocao: se a musa no atende com pronti-do splica do poeta, no possvel realizar-se a magnitude projetada para a obra, que, nesse caso, ficaria resumida a no mais do que alguns poucos versos desiderativos. Contudo, a seqncia de hexmetros que se desdobra copiosamente aps o exrdio do poema, isto , depois dos onze primeiros versos, e se mantm em perfeita unidade entretecida, d mostras da genero-sidade divina; e aquele memora da invocao confere a toda a narrativa que se segue um carter de enunciao sagrada hinc et nunc, pois o fato mesmo de haver continuidade discursiva aps um tal apelo confirma, do ponto de vista do engendramento dos efeitos de sentido, a presena da musa que se manifesta atravs do poeta, tendo sido este, desde ento, transfigurado em vate aquele cujo conhecimento de tudo o que se passou e do que ainda est por vir transcende extraordinariamente as limitadas faculdades dos mortais. E no deixa de ser tambm significativo, quanto a essa, por assim dizer, in-corporao do vate assumida pelo poeta em seu discurso, lembrar-se de que na Antiguidade greco-romana os orculos tradicionalmente se exprimiam em hexmetros e de que Virglio, em toda sua obra (incluindo-se as Buclicas e as Gergicas), no adotou outro metro seno esse.

    ainda na invocao que se completa a caracterizao sumria de Enias, o varo insigne pela piedade, como se l no hexmetro 10 (insig-nem pietate uirum). Pietas, que se traduz sofrivelmente por piedade, um sentimento ao qual os romanos atribuam grande valor2, uma espcie de cimento afetivo que d firmeza ao amlgama social: tem em princpio uma dimenso familiar, tomando por base o respeito aos pais e aos antepassa-dos, o que leva naturalmente ao zelo por suas tradies, alcanando assim, por um lado, uma dimenso religiosa, no culto aos deuses ancestrais, e, por outro, uma dimenso poltica, no amor ptria. , em ltima instncia, a disposio de esprito responsvel pela manuteno de uma estrutura que assente e suporte de forma harmoniosa e coesa toda a comunidade humana. Da a importncia de sublinhar desde o incio e antes mesmo que seja explicitamente referido o nome do heri, cuja primeira meno s ser feita

    2 Veja-se a respeito o breve e proveitoso estudo de MARIA HELEnA DA ROCHA PEREIRA (Estudos de histria da cultura clssica: Cultura Romana, v. 2, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 32002, p. 338-342) sobre a pietas dos romanos.

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    no hexmetro 92 a principal qualidade moral desse varo, da qual de-riva o epteto que o distingue por suas aes e que ocorre com freqncia ao longo da obra: o piedoso Enias (pius Aeneas). essa caracterstica intrnseca que confere uma natural legitimidade ao ttulo de Pater Aeneas, que o heri recebe, tambm bastante recorrente em todo o poema, e o que faz desse varo primeiro um verdadeiro Pai da Ptria na concepo mtica dos antigos romanos.3

    Mas, ainda a respeito da pietas esse valor humano fundamental fi-gurativizado na Eneida vale a pena demorar aqui um pouco mais e apro-veitar a oportunidade para fazer algumas outras reflexes. De certo ponto de vista e fazendo-se algum esforo de abstrao , talvez no seja de todo verdadeiro dizer que o termo latino no se traduza bem por piedade. A dificuldade que nas lnguas modernas ocidentais se atesta em traduzir o termo latino deve-se com certeza mais a um problema de foco cultural do que propriamente a uma lacuna lxica no preenchida a contento por esses idiomas. Essa dificuldade decorre, de fato, da aura crist que se projeta na palavra como se fosse ela mesma um puro termo cannico. Se formos se fssemos... capazes de imaginar a expresso da piedade num mundo no inteiramente dirigido pela orientao dogmtica da sensibilidade ju-daico-crist, a despeito de qual fosse a maneira dominante que a manifes-tao da religiosidade latente do homem pudesse assumir, tal sentimento, em si mesmo considerado, se apresentaria como um atributo natural e uni-versalmente humano. A humanidade no teve que esperar pelo advento do cristianismo para descobrir o sentido da piedade, como faz supor um autor ainda to bem acolhido pelo pensamento acadmico contemporneo como Teodoro Haecker, com seu Virglio: pai do Ocidente4. Tal idia parece advir de uma viso marcada por um determinismo histrico simplista, que pre-sume no mundo antigo a infncia do homem.

    Na Antiguidade greco-romana eminentemente politesta, deve-se frisar , a expresso da piedade pode ser to bem representada pela fi-gura de Enias carregando nos ombros o velho pai, ao deixar as runas de Tria (cena imortalizada por Virglio no Canto II da Eneida), quanto pela de Pramo implorando humildemente a Aquiles que lhe devolva o corpo do filho Heitor ou e por que no? pela imagem dos prprios cavalos do ecida chorando humanamente a morte de Ptroclo (nos respectivos Cantos

    3 Da Enias ser chamado Jpiter Indgite (Livius Epon. 1.2.5), como o principal deus na-cional que se prende s origens de Roma. E tambm no por outro motivo seria a pietas uma qualidade bastante desejvel de poder-se reconhecer nos Imperadores, que se aproximavam assim de uma figura extremamente importante para o imaginrio mtico da ptria latina.4 Virgilio: padre de occidente, trad. Valentn Garcia yebra, Madrid, Epesa, 1945.

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    XXIV e XVII da Ilada), ou ainda pela determinao do jovem Telmaco em enfrentar todos os perigos e adversidades a fim de obter qualquer notcia sobre o pai, Ulisses, que, terminada a guerra de Tria, aps tantos anos no retornara a taca (assunto que domina os primeiros Cantos da Odissia). Nem por isso deseja Haecker seja Homero o pai do Ocidente quando talvez naturalmente o fosse ainda com mais propriedade do que Virglio , chegando mesmo, no af de afirmar sua tese, a argumentar que5

    Se nos ha dicho que Virgilio copi a Tecrito y a Homero; ms an, hay quien no se ha espantado de decir que Virgilio fu un plagiario cosa que deshonrara al ms nfimo escritor de hoy, si se le pudiera demostrar con tanta evidencia como a Virgilio en el caso de Tecrito y de Homero. Pero aqu es diferente; aqu se trata del cumplimiento de una ley: que lo superior supone lo inferior, como el animal supone la planta y el hombre supone el animal y la planta. y, aun en el mismo plano, puede un poeta plagiar impunemente si, como poeta, es mayor que aqul a quien roba; cunto ms en un plano objetivamente superior. Tal es el caso de Virgi-lio, cuya plenitud y cuyos puntos son ms decisivos y ms espirituales que los de Homero.

    Seja l o que Haecker entenda por um plano objetivamente superior, no qual se encontraria Virglio, em relao a quem seria Homero alijado a um plano inferior, na verdade, para o crtico alemo, o poeta helnico no pode ser nem mesmo igualado ao latino porque pertence irremediavelmente ao antigo mundo pago. J Virglio, que viveu num perodo histrico mais prximo do surgimento do cristianismo (de 70 a 19 a. C.), poderia ser dono de uma alma naturalmente crist6, sendo esta de fato a grande razo do elogio que Haecker lhe dirige.

    H, nesse tipo de viso sublimatria do poeta romano, uma enorme confuso, para dizer o mnimo. O fato que, quando o comentador alemo fala de Roma, ele pensa na Igreja Catlica (p. 125):

    Todos nosotros somos an miembros del Imperium Romanum, que, des-pus de crueles errores, acept el Cristianismo sua sponte, por su libre voluntad, y ya no puede abandonarlo sin abandonarse tambin a s propio y abandonar el humanismo.

    Mas o Imperium Romanum conocido en su grandeza natural y con-templado en el esplendor de su hermosura por Virgilio7 decisivamente no

    5 Idem, p. 102.6 Anima naturaliter christiana o ttulo do penltimo captulo do livro de HAECKER (ver nota 4).7 Idem, p. 125.

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    esse que se quer identificado por completo com a doutrina catlica, como afirma o autor, pois, quando Roma se converte ao cristianismo, o que real-mente lhe restava de sua grandeza natural e do esplendor de sua beleza? Claro e evidente, como a histria registra, que Roma, ento, j deixara de ser Roma. Ao menos aquela de Virglio, de Horcio e de Ovdio, a Roma de Csar e de Ccero, aquela de Catulo e de Lucrcio, a de Plauto e de Terncio... enfim, a Roma que possibilitou e por si prpria exigiu a composio de uma obra em que valores genunos e tradicionais da ptria pudessem expressar-se legitimamente, como na Eneida.

    Na verdade, o que Haecker faz reconhecer na obra de Virglio, so-bretudo em sua pica, autnticos valores humanos, dos quais se destaca a piedade de Enias. Ento, supondo-os somente porque assim os quer imprprios ao politesmo, toma-os sempre por necessariamente cristos8. Para esse autor, tudo se passa como se a prpria sensibilidade humana fosse uma espcie de ddiva ou inveno do cristianismo e como se somente a partir do triunfo da religio catlica a civilizao romana pudesse conceber idias ligadas generosidade e harmonia na relao dos homens entre si mesmos e com as divindades. Mas falta a essa concepo razo e bom senso, pois, claro, os sentimentos fundamentais do esprito humano so maiores do que os que se queiram exclusivamente cristos e, no h como duvidar, anteriores a estes. Fato iniludvel e significativo demais para deixar de ser lembrado: uma grande expresso histrica do humanismo inteiramente pag, a ponto de, no perodo do Renascimento, quando se quis reestruturar a sociedade ocidental redefinindo-lhe conseqentemente todos os valores, terem-se buscado na Antiguidade greco-romana a inspirao e os modelos para a afirmao dos modernos ideais humanos.

    Pietas , pois, um sentimento que independe do mundo cristo para em si mesmo presumir grande disposio benevolncia, comiserao, bondade e justia. Assim, o tom de indignao com que o poeta expressa sua surpresa diante de tamanha ira divina para com Enias, na ltima frase da invocao (Tantaene animis caelestibus irae?), refora, por marcante contraste, a caracterstica precpua do heri, ao denunciar a impiedade dos

    8 Vale aqui destacar o seguinte comentrio de Andr Bellessort (HEnRI GOELzER et AnDR BELLESSORT, Virgile nide livres I-VI, Paris, Les Belles Lettres, 91949, p. 261): Lnide ne serait pas le grand pome de Rome et de la civilisation latine, si elle navait un intrt uni-versel. Nous nen comprenons toutes les beauts et toute la majest quen nous reportant aux Antiquits romaines et lEmpire; mais, en dehors des circonstances historiques que nous pourrions ignorer, elle est du petit nombre de ces uvres o, moins de se renier, lhumanit se reconnat et la nature avec elle, et o nous prenons un merveilleux plaisir contempler le spetacle de nos propres misres. Elle nous procure, unies aux jouissances dart les plus fines et les plus fortes, des motions profondment humaines.

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    prprios deuses imortais: a figura do varo ascende desse modo a uma natu-reza sobre-humana, capaz de cultivar em sua essncia aquela qualidade que nem mesmo em nimos celestes constante (coisa que, vale lembrar, evi-tando possveis preconceitos, no nenhum privilgio dos deuses pagos: no Antigo Testamento, tambm a ira de Deus se mostra imensa).

    Ainda com relao ltima frase da invocao, possvel notar um efeito da expresso bastante relevante, conquanto um tanto sutil e pouco perceptvel a uma primeira leitura: o nome do heri que, como j foi dito, s ocorrer explicitamente bem mais frente no texto, insinua-se ali de modo oblquo, evocado por recurso sub-reptcio.

    Ao procurar distinguir a poesia da prosa, Fernando PESSOA, em seus escritos de teoria literria, faz a seguinte considerao9 (19--,):

    A pausa de fim de verso independente do sentido, e to ntida como se ali houvesse pontuao. Erram pois contra toda a substncia da poesia os que lem ou dizem versos, correndo-os de um para outro quando no h pontuao no fim de uma linha. O discurso potico exposto em linhas precisamente para que se faa uma pausa, artificial embora, onde a linha termina. A poesia assim a prosa feita msica, ou a prosa cantada; o artifcio da msica conjugado com a naturalidade da palavra.

    Seria essa uma espcie de definio externa do verso como unidade rtmica do poema, que o delimita objetivamente por uma pausa final obri-gatria. A noo complementar que se lhe pode apor seria uma espcie de definio interna do verso como unidade rtmica do poema, que o delimita, objetivamente tambm, por uma contigidade fnica obrigatria. A potica em qualquer lngua impe como prosdia regular que todo verso seja lido de modo a preservar-se a continuidade seqencial de slabas, isto , do incio ao fim, sem interrupes, como se fora uma nica e longa palavra. A prpria cesura, que de ordinrio os tratados de mtrica insistem em definir como uma pausa interna, nada tem a ver com a insero objetiva, vale dizer, fisica-mente mensurvel, de rpidos perodos de silncio entrecortando a leitura do verso, seno com possveis inflexes significativas na prosdia, relacionveis estruturao sinttico-semntica do enunciado, que apenas de um ponto de vista subjetivo poderiam eventualmente ser identificadas como breves interrupes da prolao e assumir portanto no nvel supra-segmental um valor de pausa10 (coisa bem diferente do que ocorre com a pausa de

    9 Pginas de esttica e de teoria e crtica literrias. Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, tica, 19--, p. 77.10 Como, por exemplo, no caso nada raro da ordinria cesura aps um verbo que, iniciando o hexmetro, fecha uma frase anteriormente esboada.

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    fim de verso, que em si mesma reconhecvel como suspenso momentnea da emisso de voz). Do contrrio, a minuciosa observncia da mtrica pelos poetas pareceria um trabalho insano, por sua completa inutilidade; e mesmo o moderno verso livre seria perfeitamente injustificvel uma vez que no cumprisse sua funo potica fundamental de unidade rtmica.

    Assim, na conjuno fnica das palavras, decorrente da leitura do d-cimo primeiro hexmetro, configura-se sugestivamente o arranjo silbico aenean, a partir do encontro tantaene animis. Uma vez percebido, difcil deixar de relacion-lo ao acusativo grego do nome Enias, , trans-literado, em latim, Aenean, justamente a forma adotada em toda a obra11.

    Com a escanso do hexmetro, isto , pela descrio metalingstica de sua prosdia, possvel notar que haveria uma ntida diferena de pronn-cia entre a forma grega transliterada e aquela outra, que subjaz estrutura frasal. No acusativo do nome prprio, a vogal temtica -a-, que compe a desinncia -an, seria sempre longa (Aenen), enquanto naquela outra forma, que s pode emergir da contigidade fnica das palavras entretecidas pelo verso, o que figura em ponto anlogo , na verdade, um -a- breve (aenen). Alm disso, nota-se tambm a ocorrncia da sinalefa, espcie de contrao de duas slabas em uma, que, na pronncia, causaria a assimilao do -e final de tantaene ao a- inicial de animis, conforme a anlise mtrica reproduzida abaixo, o que no aconteceria slaba interna da palavra considerada num contexto de manifestao, por assim dizer, convencional:

    mpl|rt.||Tn|ten(e) n|ms||ce|lstbs|re?

    Apesar de no constituir exatamente, como se v, a forma do acusativo para o nome do heri, uma tal configurao fnica seria decerto suficiente para evoc-lo por semelhana; tanto mais quando se sabe que a forma ver-ncula equivalente, seguindo as palavras de tema em -a-, trazia na desi-nncia -am do acusativo um -a- breve. Assim, em Tito Lvio, por exemplo, autor contemporneo a Virglio, encontra-se sempre a forma correspondente Aenempara o acusativo12. De todo modo, h que se notar, ao menos do ponto de vista grfico, a remisso absolutamente perfeita.

    Contudo, em princpio poderia parecer um tanto imprpria a forma do acusativo figurando de maneira independente, fora de um contexto sinttico definido que a pudesse justificar. Sendo assim, o nominativo se apresentaria

    11 Os nomes de origem grega adaptam-se em geral declinao latina, adotando-lhe as desi-nncias prprias. No entanto, ao lado dessas, mantm-se muitas vezes as formas helnicas, empregadas sobretudo pelos poetas.12 Cf. principalmente o incio do Livro I de sua Histria de Roma, Ab Vrbe Condita.

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    como mais adequado e natural, j que o caso designativo por excelncia, conforme atestam as inscries em geral, usado sempre que se pretende ape-nas referir objetivamente, do modo mais neutro possvel, isto , daquele de cujo contexto frasal s lcito inferir um verbo de ligao como esse. E , na verdade, esse possvel estranhamento inicial quanto ao caso em que o nome do varo se insinua que, ao resolver-se da maneira mais significativa, confirma e refora o efeito de sentido dessa ocorrncia furtiva no verso. Em relao a ela, pois, deve-se notar que, em sendo admitida como suficiente para aludir ao nome do varo (conforme a descrio apresentada):

    1) O acusativo Aenean, maneira de um aposto, estaria em perfeita consonncia sinttica com uirum, que figura no verso imediatamente anterior, na expresso insignem pietate uirum, termo complementar de impulerit. Esse verbo, aparecendo no mesmo hexmetro em que se observa a ocorrncia dissimulada do nome do varo, teria, dada a grande proximidade sinttica, um poder de atrao natural sobre aquele termo, sugerindo por si prprio a relao apositiva dos nomes uirum e Aenean, que assim se colocariam sob sua regncia: o varo insigne pela piedade, [Enias].

    2) O acusativo Aenean, poderia ser perfeitamente considerado uma frase em si, com sentido completo, maneira de um acusativo de exclamao, como costumam referir-se as gramticas a esse recurso previsto pela lngua latina para a expresso de um sentimento ur-gente e profundo. Assim, a exclamao Aenean!, dentro do contexto frasal Tantaene animis caelestibus irae?, soaria como uma espcie de lamento pelos padecimentos do heri, causados pela ira de Juno: [oh, Enias!].

    Mantendo-se a leitura dentro desse mesmo esprito ldico que busca perceber outros sentidos ou acrscimos de significao alm da estrutura frasal mais aparente, isto , dando seqncia investigao das palavras sob as palavras no verso latino estudo a que o prprio Ferdinand de Saussure entregou-se apaixonadamente em determinado momento de sua carreira como pesquisador da linguagem (embora procurasse estabelecer um outro padro de anlise)13 , encontra-se, no hexmetro final da invocao, ainda outra subocorrncia sugestiva, que se pode considerar ligada quela primeira, uma espcie de didasclia nas entrelinhas.

    13 Cf. JEAn STAROBInSKI, As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand de Saus-sure, trad. Carlos Vogt, So Paulo, Perspectiva, 1974.

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    A partir do recorte fnico do verso, que projeta a forma aenean, iden-tificvel com o acusativo do nome do heri, configura-se, na seqncia, uma nova forma imis , que , tambm do ponto de vista grfico, perfeita-mente comparvel ao ablativo imis do substantivo latino, neutro, plural, de tema em -o-, cujo nominativo se apresenta ima14 e pode traduzir-se por o fundo. A embora mais uma vez deva-se ressaltar a clara diferena entre uma vogal breve (aquele -i- interno palavra anmis) e outra longa (como se daria normalmente o i- na slaba inicial de mis) a equivalncia alusiva, dentro do jogo potico das analogias fnicas, pode ser novamente reconhe-cida. Assim, em Tant/aenean/imis/, insinuar-se-ia, alm da exclamao do nome do heri, tambm uma indicao subliminar contgua, chamando a ateno do ouvinte-leitor para o lugar em que se d aquela ocorrncia no verso: [no fundo].

    Por fim, tambm relevante notar que, ainda no hexmetro 11, h uma grande insistncia no ditongo ae (impulerit. Tantaene animis caelestibus irae?), que tem em si o poder latente de provocar a associao mnemnica com o nome do heri, a partir da analogia fnica com a primeira slaba deste. Por outro lado, no demais observar, essa associao analgica no se d, na leitura, de maneira gratuita, forando-se a interpretao, mas despertada com toda a naturalidade pelo prprio contexto semntico, pois, nesse passo, o da invocao, embora no se lhe mencione diretamente o nome, Enias a principal referncia. E o efeito torna-se ainda mais expressivo quando se verifica que uma tal freqncia do ditongo ae num mesmo verso bastante rara em toda a obra. Para poder avaliar o reforo significativo que traz quela meno sub-reptcia ao nome do varo, basta notar que dos 756 hexmetros que compem o Canto I, em apenas outros quatro encontram-se trs ocor-rncias do ditongo ae, conforme abaixo se destacam:

    99 saeuos ubi Aeacidae telo iacet Hector, ubi ingens128 Disiectam Aeneae toto uidet aequore classem,157 Defessi Aeneadae quae proxima litora cursu605 praemia digna ferant. Quae te tam laeta tulerunt

    E notvel ainda, com relao a esses quatro versos, que tambm eles mantm uma relao direta com Enias, quer seja do ponto de vista referen-cial, quer do ponto de vista enunciativo: os hexmetros 128 e 157 remetem explicitamente ao nome do varo (Aeneae classem, a frota de Enias, no primeiro, e Defessi Aeneadae, Os Eniadas exaustos, no segundo), e os

    14 Embora nos dicionrios registre-se tambm a forma singular imum, em Virglio, esse vo-cbulo ocorre normalmente seguindo o comportamento dos termos pluralia tantum.

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    de nmero 99 e 605 pertencem, por sua vez, a falas proferidas pelo prprio heri discursos diretos, portanto , que se encaixam dentro da narra-tiva (a primeira quando, numa espcie de solilquio, Enias se lamenta pela prpria sorte, em meio a uma terrvel tempestade, e a segunda, quando se dirige, comovido e cheio de gratido, rainha de Cartago).

    Para encerrar, seguem os quatro versos da invocao da Eneida, acom-panhados de uma proposta de traduo e notas:

    Musa, mihi causas memora, quo numine laesoquidue dolens regina deum tot uoluere casus insignem pietate uirum, tot adire laboresimpulerit. Tantaene animis caelestibus irae ? Musa15, agora as causas me recorda:a rainha dos deuses16 que sentiu? Em que se lhe ofendeu a divindade para impor ao varo piedoso17 e ilustretantos esforos e perigos tantos?Quanta ira em espritos celestes!

    TITLE . Tell me the reasons, Muse: a reading of the Aeneids invocation

    ABSTRACT . This paper brings an analysis of the four verses that constitute the invocation of Virgils epic work, the hexametres from 8 to 11. The essay attemps to show certain aspects concerning the poetical expressiveness, mainly those regarding the notable at-tribute of Aeneas, his pietas (a term we could hardly translate properly in our modern languages). We focus on this matter in a way that is definitely unlike the standpoint adopted by tradition. Afterwards, in the last verse, the heros name is revealed in an unexpected, surreptitious mention we could realize under the words.

    KEYwORDS: Virgil; Aeneid; first Book; invocation; pietas; Aeneas.

    15 Musa: uma das nove filhas de Jpiter e Mnemsine, deusa da memria, responsveis por toda a inspirao do engenho humano. Tradicionalmente Calope a musa da poesia pica.16 A rainha dos deuses: Juno, esposa e irm de Jpiter.17 O varo piedoso: expresso que se refere a Enias e virtude que melhor o caracteriza, sua pietas.