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DF - 1 ESTUDO DAS ALTERAÇÕES QUÍMICAS, FÍSICAS E ESTRUTURAIS DA PÊRA PASSA DE VISEU Escola Superior Agrária de Viseu Quinta da Alagoa, Estrada de Nelas, 3500-606 Viseu. Telefone: 232 480600; Fax: 232 426536; www.esav.ipv.pt. Dulcineia Ferreira, †,‡,* ; Professor Adjunto, Email: [email protected] Ivonne Delgadillo e Manuel A. Coimbra Introdução A pêra (Pyrus communis L. var. S. Bartolomeu) é seca ao sol por um processo artesanal que envolve as seguintes operações: colheita, transporte do fruto para casa do produtor da passa, descasque, secagem na passeira, embarrilamento em cabazes, espalma e secagem na eira [1]. Tradicionalmente, as peras são descascadas logo a seguir à apanha e permanecem, em regra, 5 dias ao sol. A pêra secada é comercializada com o nome de pêra passa de Viseu, ou ainda presuntinhos de Viseu devido à sua cor de tijolo ou colorau (Figura 1.1). É produzida a partir da pereira de S. Bartolomeu uma fruteira de variedade regional. A zona de produção abrange os concelhos de Oliveira do Hospital e Seia e alguns concelhos do distrito de Viseu. É bastante apreciada pelos consumidores devido aos seus atributos sensoriais de cor, sabor e textura, que lhe confere características organolépticas únicas. A secagem de frutos é uma forma tradicional de conservação dos alimentos. A tecnologia de secagem de frutos tem sido objecto de estudo [2,3], todavia, há ainda uma grande escassez de informação acerca das alterações bioquímicas e físico- químicas que ocorrem nos tecidos vegetais durante este processo. Neste contexto, torna-se premente adquirir conhecimentos, menos empíricos e mais racionais, das modificações estruturais que ocorrem na pêra secada e que conferem ao fruto processado características organolépticas singulares. Estes conhecimentos poder-se-ão traduzir por um conjunto mais objectivo de parâmetros de processamento e, finalmente, por um controlo mais estreito dos fenómenos que acompanham a transformação da pêra em produto secado. Neste estudo avaliaram-se as modificações que ocorrem no fruto secado ao nível dos polissacarídeos das paredes celulares e dos compostos fenólicos, da microestrutura e da textura. Estes são aspectos estruturais de grande importância porque podem contribuir para uma melhor compreensão das possíveis relações entre os elementos estruturais do alimento e as suas propriedades físico-químicas. Estas propriedades podem manifestar-se em atributos sensoriais, como a cor, a textura e o sabor, importantes parâmetros de qualidade para que o fruto processado seja apreciado pelo consumidor. Polissacarídeos das paredes celulares De acordo com os produtores da pêra secada o produto final é heterogéneo no que diz respeito à textura. Algumas pêras após secagem ficam mais “moles” e outras mais “duras”. Os polissacarídeos das paredes celulares que têm um papel importante na resistência mecânica das paredes e na adesão celular podem estar a contribuir para essas diferenças de textura que são indesejáveis do ponto de vista do consumidor que terá preferência por uma pêra secada que não seja muito “dura”. Os resultados do estudo Fig. 1.1 – A pêra de S. Bartolomeu (Pyrus communis) em fresco A e após secagem ao sol B. A B Secagem ao sol Massa = 58 g Dimensões = 6 × 5 cm Massa = = 10 g Dimensões = = 5 × 3 × 1 cm

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DF - 1

ESTUDO DAS ALTERAÇÕES QUÍMICAS, FÍSICAS E ESTRUTURAIS DA PÊRA PASSA DE VISEU

† Escola Superior Agrária de Viseu Quinta da Alagoa, Estrada de Nelas, 3500-606 Viseu. Telefone: 232 480600; Fax: 232 426536; www.esav.ipv.pt. Dulcineia Ferreira,†,‡,* ; Professor Adjunto, Email: [email protected] Ivonne Delgadillo‡ e Manuel A. Coimbra‡

Introdução

A pêra (Pyrus communis L. var. S. Bartolomeu) é seca ao sol por um processo artesanal que envolve as seguintes operações: colheita, transporte do fruto para casa do produtor da passa, descasque, secagem na passeira, embarrilamento em cabazes, espalma e secagem na eira [1]. Tradicionalmente, as peras são descascadas logo a seguir à apanha e permanecem, em regra, 5 dias ao sol. A pêra secada é comercializada com o nome de pêra passa de Viseu, ou ainda presuntinhos de Viseu devido à sua cor de tijolo ou colorau (Figura 1.1). É produzida a partir da pereira de S. Bartolomeu uma fruteira de variedade regional. A zona de produção abrange os concelhos de Oliveira do Hospital e Seia e alguns concelhos do distrito de Viseu. É bastante apreciada pelos consumidores devido aos seus atributos sensoriais de cor, sabor e textura, que lhe confere características organolépticas únicas.

A secagem de frutos é uma forma tradicional de conservação dos alimentos. A tecnologia de secagem de frutos tem sido objecto de estudo [2,3], todavia, há ainda uma grande escassez de informação acerca das alterações bioquímicas e físico-químicas que ocorrem nos tecidos vegetais durante este processo. Neste contexto, torna-se premente adquirir conhecimentos, menos empíricos e mais racionais, das modificações estruturais que ocorrem na pêra secada e que conferem ao fruto processado

características organolépticas singulares. Estes conhecimentos poder-se-ão traduzir por um conjunto mais objectivo de parâmetros de processamento e, finalmente, por um controlo mais estreito dos fenómenos que acompanham a transformação da pêra em produto secado.

Neste estudo avaliaram-se as modificações que ocorrem no fruto secado ao nível dos polissacarídeos das paredes celulares e dos compostos fenólicos, da microestrutura e da textura. Estes são aspectos estruturais de grande importância porque podem contribuir para uma melhor compreensão das possíveis relações entre os elementos estruturais do alimento e as suas propriedades físico-químicas. Estas propriedades podem manifestar-se em atributos sensoriais, como a cor, a textura e o sabor, importantes parâmetros de qualidade para que o fruto processado seja apreciado pelo consumidor.

Polissacarídeos das paredes celulares

De acordo com os produtores da pêra secada o produto final é heterogéneo no que diz respeito à textura. Algumas pêras após secagem ficam mais “moles” e outras mais “duras”. Os polissacarídeos das paredes celulares que têm um papel importante na resistência mecânica das paredes e na adesão celular podem estar a contribuir para essas diferenças de textura que são indesejáveis do ponto de vista do consumidor que terá preferência por uma pêra secada que não seja muito “dura”. Os resultados do estudo

Fig. 1.1 – A pêra de S. Bartolomeu (Pyrus communis) em fresco A e após secagem ao sol B.

A B

Secagem ao sol

Massa = 58 g Dimensões = 6 × 5 cm

Massa = = 10 g Dimensões = = 5 × 3 × 1 cm

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dos polissacarídeos das paredes celulares mostraram que na pêra secada houve uma perda global de 36% (em massa de polpa seca) dos polissacarídeos componentes das paredes celulares da polpa da pêra em fresco. Este decréscimo deveu-se a uma diminuição generalizada dos polissacarídeos, como ilustra a Figura 1.2.

Compostos fenólicos

Os resultados do estudo dos compostos fenólicos mostraram que na pêra secada houve um decréscimo de 64% (em massa de polpa seca) na quantidade total de compostos fenólicos nativos [4]. Os ácidos hidroxicinâmicos e as procianidinas foram os mais afectados. Este estudo deu evidências de que o processo de secagem ao sol causou

modificações nos compostos fenólicos nativos da polpa da pêra, o que pode ter resultado da oxidação e de reacções com outros componentes de tal modo que estes ficaram ligados irreversivelmente e não puderam ser extraídos pelos solventes orgânicos usados.

Microestrutura

Ao nível microestrutural observaram-se alterações no mesocarpo da pêra secada, sendo de salientar a degradação das paredes celulares a dois níveis: (1) da adesão celular, que causa a separação das células quando se efectua o corte transversal em vez de ruptura das células (Figura 1.3-A e B); (2) das microfibrilhas de celulose, com o aparecimento de estruturas relativamente desorganizadas. Outra consequência da secagem na microestrutura foi a perda de turgidez das células e a alteração da sua forma, observando-se células com contornos mais irregulares.

Fig. 1.3 – Microfotografias do mesocarpo da pêra de S. Bartolomeu obtidas por microscopia electrónica de varrimento: (A) em fresco e (B) secada, mostrando a perda de adesão das células parenquimatosas na pêra secada. CP, célula de parênquima EI, espaço intercelular.

0

5

10

15

g/kg

pol

pa se

caM

m

PolissacarídeosPécticos

Xiloglucanas Glucuronoxilanas Mananas Celulose

Fresca Secada

Fig. 1.2 – Composição em polissacarídeos (g por kg de polpa seca) das paredes celulares da polpa da pêra de S. Bartolomeu, em fresco e após secagem.

EI CP

A B

CP EI

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Textura

As propriedades de textura da pêra secada foram alteradas relativamente ao observado na pêra fresca, verificando-se uma diminuição da dureza, firmeza e gomosidade e um aumento da coesividade, adesividade e elasticidade. A maior resistência mecânica à fractura pode estar relacionada com a degradação e/ou solubilidade dos polissacarídeos das paredes celulares que ao tornar as interacções entre os polímeros mais fracas leva provavelmente a uma maior capacidade por parte do material de absorver as tensões impostas, propagando-as mais lentamente, resultando um comportamento elástico. A maior elasticidade da pêra secada traduz-se por uma maior extensão de recuperação à deformação imposta. Por outro lado, a firmeza da polpa da pêra diminui com a secagem, ou seja, aplicando a mesma força, por unidade de área, obtém-se uma maior deformação elástica na pêra secada.

Conclusões

Este estudo mostrou que a secagem da pêra causou modificações a três níveis estruturais: o macromolecular, o microestrutural e o macroestrutural. A textura que é um atributo sensorial de grande relevância para que a pêra secada seja apreciada pelo consumidor foi afectada pela secagem como mostraram os resultados da análise do perfil de textura. A perda de firmeza do fruto determinada nesse estudo pode estar relacionada com a perda de integridade das paredes celulares observada por microscopia electrónica de varrimento e que envolveu a perda da adesão celular e a destruição das paredes celulares primárias. A perda de turgor, que causou a contracção das células, e as modificações nos polissacarídeos das paredes celulares, envolvendo a sua degradação e/ou solubilidade parcial, são dois aspectos a serem considerados na perda de integridade das paredes celulares por efeito da secagem. As alterações de textura podem também estar relacionadas com o estabelecimento de uma rede adicional menos hidrofílica, como consequência de reacções entre as procianidinas e os polissacarídeos da matriz das paredes celulares. A insolubilidade das procianidinas com um grau de polimerização elevado e o decréscimo no seu conteúdo pode possivelmente explicar a perda de adstringência da pêra secada, quando comparada com a pêra em fresco.

Referências bibliográficas

[1] Fragata, A. 1992. Pêra passa de Viseu: um fruto a renascer? Semente, 23-27.

[2] Broomfield, R. W. 1995. The manufacture of preserves, flavouring and dried fruits. Em Fruit Processing; Arthey, D., Ashurst, P. R., Eds.; Blackie Academic & Professional:; 165-195.

[3] McBean, D. McG., Joslyn, M. A., Nury, F. S. 1971. Dehydrated Fruit. Em The Biochemistry of Fruits and their Products; Hulme, A. C., Ed.; Academic Press: Londres,; 623-652.

[4] Ferreira, D.; Guyot, S.; Marnet, N.; Delgadillo, I.; Renard, C. M. G. C.; Coimbra, M. A. 2002. Composition of phenolic compounds in a Portuguese pear (Pyrus communis L. var. S. Bartolomeu) and changes after sun- -drying. J. Agric. Food Chem., 50, 4537-4544.

Nota

Este estudo insere-se no âmbito do doutoramento em Química da docente da ESAV, Dulcineia Ferreira, sob a orientação científica do Doutor Manuel António Coimbraa, Professor Associado e da Doutora Ivonne Delgadillob, Professora Associada do Departamento de Química da Universidade de Aveiro. O estudo da textura foi efectuado em colaboração com o Doutor José Lopes da Silvac, Professor Auxiliar do Departamento de Química da Universidade de Aveiro. O estudo da microestrutura foi realizado em colaboração com a Doutora Conceição Santosd, Professora Auxiliar do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro. O estudo dos compostos fenólicos foi realizado com a colaboração da Doutora Catherine Renarde da Unité de Recherches Cidricoles – Biotransformations des Fruits et Légumes (em Rennes, França) do Institut National de la Recherche Agronomique. ‡ a([email protected]), b([email protected]). c ([email protected]). d ([email protected]). e ([email protected]).