estudo 2. análise exploratória de concepções e crenças ... · concepções científicas e...

62
II. MÉTODO: Estudo 2. Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem Mª Dulce Miguens Gonçalves 173 Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças pessoais sobre dificuldades de aprendizagem.

Upload: vohanh

Post on 18-Jan-2019

226 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

173

Estudo 2.

Análise exploratória de concepções e crenças pessoais sobre

dificuldades de aprendizagem.

Page 2: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

174

Page 3: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

175

Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças pessoais sobre

dificuldades de aprendizagem.

O segundo estudo foi desenvolvido como um trabalho exploratório sobre

concepções e crenças de senso comum, associadas às dificuldades de aprendizagem.

Trata-se de um estudo descritivo com o objectivo de identificar e descrever o modo

como sujeitos leigos, alunos de diferentes graus de ensino ainda sem formação

específica neste domínio da Psicologia Educacional, concebem e definem a noção de

“dificuldade de aprendizagem”. Foi concebido de acordo com os princípios e

pressupostos da investigação qualitativa e da investigação em acção.

A necessidade e a motivação para este estudo surgiram a partir de duas áreas

distintas: a prática clínica e a docência universitária.

Na prática clínica, a avaliação e sobretudo a intervenção psicológica junto de

alunos com dificuldades de aprendizagem, colocam o psicólogo na necessidade de

conhecer melhor o modo como os alunos pensam acerca dos seus próprios problemas de

aprendizagem (Furnham, 1984; Furnham & Henley, 1988). Para promover uma

modificação conceptual e ajudar a ultrapassar dificuldades, é necessário identificar

algumas das suas cognições disfuncionais presentes em cada aluno, cognições que

muitas vezes se baseiam em pressupostos, convicções e crenças erróneas. São noções

tácitas, intuitivas ou apreendidas no meio sócio-familiar e escolar, noções de senso

comum difundidas na comunidade, muitas vezes sem fundamento nem correspondência

na informação científica disponível sobre o tema (Furnham, 1992; Paz & Riveiro,

1996). Mas que, mesmo assim, podem influenciar e às vezes de forma determinante, o

comportamento do alunos e dos agentes educativos que o rodeiam.

Na docência em contexto universitário, a formação de futuros professores, de

futuros psicólogos ou de licenciados em ciências da educação, de médicos e de outros

técnicos em saúde escolar, bem como a formação contínua de professores em exercício,

coloca ao formador inúmeras questões e desafios. Constata-se que os alunos e

profissionais em formação manifestam, eles próprios, muitas dificuldades na

aprendizagem de conceitos científicos nucleares. Tais dificuldades podem decorrer da

Page 4: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

176

necessidade de integração dos conteúdos e processos em aprendizagem, nos seus

próprios quadros conceptuais. Nos cursos, os formandos são colocados perante uma

abordagem científica a conceitos que cada um deles já conhecia de uma forma intuitiva.

São confrontados com uma perspectiva diferente sobre coisas e processos que julgavam

familiares. Alguns desses conceitos são frequentemente referidos numa linguagem

comum, de forma coloquial e de acordo com uma perspectiva de “bom senso”. Outros

terão sido alvo de cursos e formações anteriores onde podem ter sido expostos de forma

diferente. De uma forma ou de outra, observam-se frequentemente resistências na

modificação das perspectivas pessoais anteriores, confrontam-se teorias de senso

comum e teorias científicas. Nesse debate e pela análise da argumentação utilizada,

podem inferir-se teorias, pressupostos e convicções pessoais. Por vezes, podem

reconhecer-se teorias pessoais empíricas, desenvolvidas com base na experiência de

vida, casos isolados, preconceitos ou valores culturais, muitas vezes sem fundamento

científico e associadas a crenças epistemológicas desadaptadas1.

As perspectivas e crenças pessoais que cada aluno traz consigo no início de cada

curso revelam-se, por vezes, de uma enorme resistência. Podem persistir durante a

formação e dificultar a aprendizagem, ou podem permanecer inertes e ocultas, mesmo

sob excelentes desempenhos e óptimos resultados. A investigação tem demonstrado

que as crenças e concepções pessoais prévias, mesmo que de carácter intuitivo e

experiencial, mesmo que sem fundamento teórico nos modelos estudados e

adequadamente aprendidos, podem mesmo assim persistir (Lonka, Joram & Brysom,

1996; Pintrich, Marx & Boyle, 1993; Poplin, 1988a). Depois dos cursos de formação,

apesar da formação, essas concepções e crenças prévias tendem, de novo, a determinar

as práticas e as reflexões pessoais dos profissionais em exercício.

Na prática clínica ou na docência, o ensino ou a modificação de crenças e

pressupostos pessoais podem beneficiar de um conhecimento mais profundo e detalhado

sobre teorias de senso comum. Compreender o ponto de vista ingénuo de quem aborda

(ou é abordado por) uma perspectiva científica pode ser um factor determinante dos

resultados, determinante do impacto final obtido.

1 A noção de desadaptação corresponde neste caso a um desfasamento entre os pressupostos

epistemológicos subjacentes aos modelos em estudo e a perspectiva pessoal do aluno.

Por exemplo, um aluno tende a sentir dificuldades se estuda a aprendizagem numa perspectiva

construtivista, baseado em pressupostos de natureza positivista.

Page 5: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

177

Os dados recolhidos e analisados neste estudo foram obtidos no âmbito de cursos

e acções de formação contínua para professores em exercício, ministrados na Faculdade

de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa (programa FOCO),

e no contexto da disciplina de Psicologia da Educação, inserida no currículo de

formação inicial de professores da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,

Ramo Educacional. Os alunos deste curso, são na maioria dos casos inexperientes e

sem qualquer prática pedagógica. Conhecem a realidade escolar enquanto alunos, mas

nunca ou quase nunca estiveram no lugar do professor. Muitos nem desejam vir a

exercer a profissão. Mesmo aqueles que estão decididos e motivados para o ensino,

desconhecem, não compreendem e nunca sentiram a maior parte dos problemas que

surgem na função, na carreira ou na vida de um professor.

Em ambos os casos, formação inicial ou formação contínua, as questões abertas

surgiram inicialmente sob a forma de exercícios de auto-observação e de reflexão

pessoal. Antecederam e serviram de enquadramento ao estudo de alguns modelos de

aprendizagem, nomeadamente numa perspectiva cognitivo-construtivista. Foram

colocadas por escrito a cada um dos alunos no contexto de uma das aulas ou sessões de

formação. Foram apresentados como exercícios preparatórios, com uma dupla

utilidade:

a) ajudar o formador (docente) na preparação das aulas seguintes com base num

conhecimento mais preciso da perspectiva de cada aluno/formando;

b) ajudar cada aluno/formando a tomar consciência do seu próprio ponto de

vista, facilitando assim a apreensão de novos conhecimentos e uma tomada de

posição crítica perante os modelos em estudo no curso.

Pediu-se a cada aluno/formando que respondesse de forma espontânea e tão

genuína quanto possível, procurando traduzir por escrito as suas próprias convicções, a

sua própria maneira de pensar naquele momento. Os alunos/formandos responderam de

forma livre e manuscrita, usando para isso todo o tempo de que necessitaram. Nalguns

casos utilizaram apenas alguns minutos, noutros alongaram-se muito mais. A todos foi

permitido o seu próprio ritmo e tempo de reflexão.

O conjunto de questões abertas foi inicialmente formulado tendo por base estudos

anteriores sobre o contributo da formação inicial na modificação da concepção de

Page 6: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

178

aprendizagem de grupos alunos em situação equivalente à que foi descrita para este

estudo (e.g. Berry & Sahlberg, 1996; Lonka, Joram & Brysom, 1996). Estas questões

foram traduzidas e aplicadas de forma similar a uma pequena amostra de alunos

Psicologia Educacional do Ramo Educacional do Curso de História da Faculdade de

Letras de Lisboa, tendo sido acrescentadas algumas questões específicas quanto ao

conceito de “dificuldade de aprendizagem” (ver Anexo VI).

Uma análise da extensão, redundância e extrema morosidade das respostas

obtidas sugeriu a necessidade de uma redução posterior para um menor conjunto de

questões, que se consideraram mais relevantes para a determinação de concepções

pessoais sobre o conceito de “dificuldade de aprendizagem”2.

A manutenção de outras três questões complementares de conteúdo diferente (“eu

penso que aprender é…”; “porque é que algumas pessoas aprendem melhor do que as

outras?” e “o que é necessário para que um aluno consiga ultrapassar as suas

dificuldades?”) teve como objectivo uma melhor caracterização da perspectiva pessoal

de cada sujeito e uma tentativa de cruzamento de respostas. Verificou-se, além disso,

que ao longo das respostas, apresentadas sempre pela mesma ordem, os alunos iam

desenvolvendo um fio de pensamento único e sem fronteiras estanques. Estas quatro

questões conduzem o aluno num percurso de reflexão, que vai convergindo para

aspectos mais específicos, com efeitos formativos e em consonância com os objectivos

deste estudo.

Posteriormente, numa fase mais adiantada de cada curso, todos alunos e

professores em formação foram convidados a reproduzir estes exercícios de auto-

observação de concepções pessoais junto dos seus próprios alunos. Procederam de

forma isomorfa, replicando as perguntas que lhes tinham sido colocadas em turmas

regulares do Ensino Básico ou Secundário.

Os professores em exercício foram convidados a inseri-los em algumas das suas

turmas, em actividades normalmente desenvolvidas no âmbito da sua própria disciplina.

Os alunos em formação inicial, tiveram oportunidade de os ensaiar em deslocações

pontuais a turmas de outros professores. Em todos os casos, constituíram um exercício

prático de observação, análise e classificação da reacção dos alunos e das respostas por

eles produzidas.

2 “Se tivesse que explicar a alguém o que é uma dificuldade de aprendizagem, o que diria?”

Page 7: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

179

No entanto, de acordo com os princípios da investigação em acção, não houve

nestas aplicações a preocupação de padronizar excessivamente nem os procedimentos

nem o conteúdo específico das questões. Foram ensaiadas formulações ligeiramente

diferentes, nomeadamente em função do nível escolar dos alunos alvo. Além disso, a

todos os formandos foi dada a oportunidade de reflectir sobre a própria estrutura dos

exercícios e de os moldar, em função das características específicas de cada aplicação.

As aplicações em turmas do Ensino Básico e Secundário antecederam

normalmente actividades para o desenvolvimento de hábitos e métodos de estudo mais

eficazes. Desta forma, todos os procedimentos de recolha de dados foram estruturados

de forma a servir não só os objectivos do estudo mas, sobretudo, objectivos pedagógicos

de formação, formação teórica e formação pessoal de todos os participantes, alunos ou

professores (enquanto alunos ou enquanto professores). Em todos os casos, os

procedimentos desenvolvidos incentivaram à tomada de consciência e à mudança

conceptual, condições que favorecem um ensino e uma aprendizagem de qualidade (e.g.

Biggs, 2001)3.

Como se descreveu, todas as questões abertas foram originalmente colocadas por

escrito, solicitando-se a cada aluno ou formando que respondesse de uma forma muito

pessoal, que procurasse reflectir e definir o melhor possível a sua própria opinião sobre

cada tema. Por isso, as respostas nunca foram identificadas a não ser por códigos

aleatórios só reconhecidos pelos próprios alunos, e apenas nos casos em que isso se

revelou necessário para alguns procedimentos de investigação ou de formação. Nalguns

grupos, estas questões foram além disso, integradas em protocolos mais amplos, para

entrevistas individuais que os formandos utilizaram em estudos de caso.

A generalidade dos alunos inquiridos não se recordava de ter encontrado ou

respondido a questões idênticas, o que em si mesmo é um dado interessante. Parece

que é possível frequentar a escola, percorrer quase todo o sistema educativo, e, ano após

ano, nunca ser confrontado com questões que façam apelo a uma reflexão pessoal sobre

o conceito de aprendizagem (“Eu penso que aprender é...”), sobre diferenças

3 “Quality teaching transforms students’ perceptions of their world, and the way they go about

applying their knowledge to real world problems; it also transforms teachers’ conceptions of the role as

teacher, and the culture of the institution itself” (ob. cit. p.222)

Page 8: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

180

individuais na aprendizagem (“Em sua opinião, porque é que algumas pessoas

aprendem melhor do que outras?”), sobre estratégias pessoais de confronto com

dificuldades (“o que é necessário para que um aluno consiga ultrapassar as suas

dificuldades de aprendizagem?”). E no entanto, ajudar os alunos a reflectir sobre as

suas próprias experiências de aprendizagem e a tomar consciência de alguns dos

processos psicológicos nucleares na aprendizagem escolar, pode favorecer o

desenvolvimento da capacidade de auto-regulação e preparar o confronto com

dificuldades (e.g. Gibbs, 1981).

Dada a natureza do trabalho desenvolvido, no espírito da investigação em acção,

no respeito pelas necessidades de cada grupo e indivíduo em formação, os dados que

aqui se analisam não foram recolhidos de forma homogénea, representativa ou

padronizada.

Na totalidade, foram recolhidas para análise exploratória, respostas provenientes

de 200 alunos do Ensino Básico e Secundário, entre o 6º e o 12ºano, de várias turmas e

escolas na área da Grande Lisboa e Santarém; provenientes de 154 estudantes do Ensino

Universitário a concluir as respectivas licenciaturas na Faculdade de Letras e na

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa;

provenientes de 67 recém-licenciados e licenciados a exercer na área da educação a

frequentar cursos de pós-graduação em Psicoterapia e Aconselhamento Educacional e

em Saúde Escolar (mestrado ministrado pela Faculdade de Medicina da Universidade de

Lisboa); e provenientes de 30 professores em formação contínua (Programa Foco,

DUECE de Formação Pessoal e Social da Faculdade de Psicologia e de Ciências da

Educação da Universidade de Lisboa) provenientes de quase todas as disciplinas e

grupos. De entre os estudantes universitários, 60 eram provenientes do Curso de

História e 52 de diferentes variantes do Curso de Línguas e Literaturas Modernas da

Faculdade de Letras; 28 estavam a terminar a Licenciatura em Ciências da Educação e

14, a licenciatura de Psicologia da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação.

Todas estas respostas reflectem diferentes percursos e experiências de formação,

e disso deram testemunho no próprio contexto em que foram obtidas. Serviram e foram

analisadas pelos próprios ou por outros directamente interessados e envolvidos em cada

situação. A inclusão posterior de alguns dos dados recolhidos neste estudo, permite

uma outra leitura, mais distante e impessoal, mais abrangente e abstracta. Traduziu-se

Page 9: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

181

num esforço de selecção, análise e síntese de carácter exploratório, tendo em vista o

desenvolvimento de trabalhos posteriores.

Neste sentido, procedeu-se à transcrição de todas as respostas obtidas para um

programa de processamento de texto (Word) e a diversos procedimentos de análise de

conteúdo em winMax (versão 98pro). Dado tratar-se de um programa especificamente

preparado para a análise qualitativa de questões abertas, os procedimentos de análise

desenvolvidos seguiram as orientações propostas pelo autor (Kuckartz, 1998).

Todas as respostas transcritas foram lidas e relidas, analisadas texto a texto, para

uma primeira extracção de excertos (unidades) e determinação de um conjunto de

categorias que desse conta da diversidade e amplitude de perspectivas observadas nesta

amostra. O programa permite a selecção de unidades de análise com diferentes

dimensões e características. As unidades seleccionadas podem sobrepôr-se parcial ou

totalmente e podem ser integradas em uma ou mais categorias, com total flexibilidade.

As categorias podem ir sendo agrupadas e reagrupadas, apagadas ou movidas, sendo

possível ensaiar sucessivas designações e diferentes esquemas de classificação, paralela

ou hierárquica. Nesta fase preparatória, a autora e um outro juiz independente,

seleccionaram excertos de conteúdo relevante4, que forem sendo integradas em uma ou

mais categorias, consoante o seu grau de especificidade ou complexidade. Esta análise

prévia foi sucessivamente reavaliada e revista até à obtenção de uma maior precisão de

critérios e até à formulação de um esquema hierárquico de categorias que permitisse

sintetizar e descrever de forma clara toda a variedade de respostas analisadas. Para este

efeito, o programa produz listagens de todas as unidades integradas numa mesma

categoria. Este procedimento permite a verificação de critérios e uma análise comparada

de excertos. Podem efectuar-se sucessivas revisões, confrontar excertos e definir de

forma cada vez mais precisa, qual ou quais as categorias que melhor sintetizam cada

testemunho. Além disso, todos os textos podem ser relidos por um mesmo juiz (ou por

diferentes juízes) mantendo ocultas as classificações anteriores (replicação da

classificação como indicador validade e precisão do sistema). As unidades que em cada

revisão se encontrem mal posicionadas, podem ser movidas e reintegradas noutras

categorias sem dificuldade.

4 Consideraram-se relevantes todos os excertos que, respondendo à questão, permitissem

esclarecer o ponto de vista pessoal do próprio sujeito.

Page 10: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

182

Deste modo, todas as unidades foram sucessivamente classificadas e agrupadas

num único esquema de classificação múltipla, repetidamente revisto e reavaliado, até à

determinação de um conjunto de categorias descritivo da diversidade das respostas.

Pretendeu-se neste processo, a construção de um sistema de classificação cada vez mais

representativo, coerente e preciso5 (Mertens, 1998).

Procurou-se uma tipologia de concepções pessoais sobre a noção de “dificuldade

de aprendizagem”, tipologia que permitisse descrever a variedade de perspectivas

observadas, informando sobre as diferenças mais significativas entre elas, organizando-

as depois em categorias mais amplas que facilitassem a compreensão e a preparação de

estudos posteriores. O objectivo foi, em última análise, determinar diferentes modos de

pensar e conceber intuitivamente a noção de “dificuldade de aprendizagem”,

caracterizando cada um desses modos na sua diversidade, organizando-os e integrando-

os depois num único modelo compreensivo.

Uma leitura atenta das centenas de respostas obtidas e de algumas dezenas de

entrevistas permite concluir que se trata efectivamente de um conjunto de questões a

que a generalidade dos sujeitos responde. Referem-se a conceitos familiares, usados no

dia a dia, de forma coloquial, quase banal. Correspondem a experiências pessoais ou

partilhadas com outros colegas de escola. Os exemplos são frequentes e as respostas são

frequentemente ilustradas com casos particulares. A percentagem de sujeitos que não

responde é muito baixa (inferior a 3%), inferior ao que seria de esperar dadas as

múltiplas dificuldades técnicas e científicas que a questão encerra. Mas para os

inquiridos, numa perspectiva de senso comum, estas são questões simultaneamente

familiares e estranhas, acessíveis e inacessíveis, simples e inesperadamente complexas.

Muitas respostas são curtas e directas, específicas e objectivas. Mas muitas outras

parecem desconexas, num emaranhado de ideias interpostas, confusas e sem um fio

condutor, como se em busca de um sentido e de uma forma de explicar melhor.

Nalguns casos, os sujeitos fogem à questão, enunciando tipos de dificuldades ou

sugerindo causas e justificações. Para os que parecem dominar a informação técnica

(psicólogos recém-licenciados, por exemplo) é frequente o recurso a uma linguagem

formal e demasiado académica, que dificulta muito a compreensão do ponto de vista

pessoal dos próprios inquiridos.

5 Na fase final, observou-se um índice de acordo entre juízes de 83% (Gonçalves, 1997).

Page 11: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

183

Embora todas estas respostas tenham sido lidas e cuidadosamente avaliadas, a

análise que se segue procurou especificamente delimitar concepções e identificar

algumas asserções pessoais sobre as dificuldades.

Tal como sucede ao nível da investigação científica neste domínio, também neste

caso foi possível observar uma enorme diversidade de concepções. Ao longo de

centenas de respostas vão sendo definidas as mais variadas posições e perspectivas,

considerando diferentes critérios e múltiplos pontos de vista: momento de ocorrência,

áreas curriculares afectadas, frequência e persistência dos problemas, causas e

responsabilidades. A maioria centra-se apenas num ou noutro destes aspectos,

definindo-o tão especificamente quanto possível. No entanto, alguns sujeitos procuram

uma abordagem mais exaustiva e sistémica. Enumeram hipóteses e exploram

alternativas, procuram tipos e explicações múltiplas. Estão conscientes de que se trata

de um conceito plural e na polissemia muitas vezes perdem unidade e coerência. Nesse

caso, são levados a constatar a complexidade do conceito, mas também o seu próprio

desconhecimento e múltiplas falhas de informação. São respostas de análise e

classificação difíceis, onde a quantidade de informação dificulta o acesso ao significado

pessoal para o próprio sujeito6

Deste modo, uma primeira análise exploratória deu origem a mais de meia

centena de categorias e subcategorias. O que agora se relata é o resultado de múltiplas

análises subsequentes, na procura de um sistema de classificação que reduzisse essa

multiplicidade de perspectivas apenas a alguns denominadores comuns.

6 De forma similar poderíamos imaginar alguém que enunciando os mais variados tipos de

alergia e de causas na origem de sintomas alérgicos, mesmo com rigor, amplitude de vocabulário e bons

conhecimentos sobre a matéria, não chegasse nunca a explicar o modo como concebe o fenómeno

alérgico em si mesmo.

Page 12: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

184

Perspectivas e concepções pessoais identificadas.

Pela análise do conjunto de respostas e testemunhos pessoais foi possível

identificar essencialmente quatro formas de abordar o conceito de “dificuldades de

aprendizagem”. Constituem-se como quatro perspectivas diferentes, quatro diferentes

pontos de vista, em função do foco privilegiado por cada uma.

Numa perspectiva disfuncional, a dificuldade é concebida como uma

característica estrutural do próprio aluno, um problema ou uma limitação de carácter

permanente ou relativamente imutável.

Numa perspectiva processual, o aluno continua a ser o principal foco de

análise. Mas neste caso, a dificuldade não é vista como uma característica pessoal,

antes como algo que se interpõe ou interfere no processo de aprendizagem, impedindo o

aluno de alcançar os resultados que de outro modo poderia obter.

Numa perspectiva interdependente, as dificuldades definem-se já não em

função das características particulares do aluno ou da forma como se processa a sua

aprendizagem, antes como algo que depende da interacção de cada aluno com a sua

situação ou contexto de aprendizagem.

Quadro 1.

Perspectivas conceptuais identificadas

1. Perspectiva disfuncional – centrada no aluno.

2. Perspectiva processual – centrada no processo de aprendizagem.

3. Perspectiva interdependente – centrada na interacção entre o

processo de aprendizagem do aluno e a situação ou contexto de

aprendizagem.

4. Perspectiva funcional – centrada no resultado a que a dificuldade dá

(ou pode dar) origem, no contexto do processo de aprendizagem ou no

contexto da própria vida.

Page 13: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

185

Neste caso, a dificuldade é descrita em função de pelo menos duas ordens de

variáveis (pessoais e situacionais). O processo de aprendizagem do aluno influencia e é

influenciado pelo contexto de aprendizagem. Passa-se de uma perspectiva de

causalidade linear para um determinismo recíproco. A dificuldade caracteriza não tanto

o aluno em si mesmo, antes a forma como ele se integra, interage e se adapta (ou não) a

uma situação de aprendizagem específica.

Numa perspectiva funcional, as dificuldades são concebidas não tanto como

algo que caracteriza algumas interacções aluno-aprendizagem ou aluno-contexto, antes

como uma característica natural do próprio processo de aprendizagem. Nesta

perspectiva considera-se que as dificuldades são comuns, frequentes, normais ou

mesmo necessárias. São a regra e não a excepção. Podem ocorrer em qualquer

circunstância ou a qualquer pessoa. São inerentes à aprendizagem como são inerentes à

vida. Contribuem (ou podem contribuir) para a descoberta, para o desenvolvimento

pessoal, para a realização de novas ou melhores aprendizagens.

Cada uma destas perspectivas pode ainda ser subdividida em diferentes

concepções (Quadro 2.), tal como em seguida se descreve e ilustra.

1.

2. Perspectiva disfuncional – concepção de d.a. c

a. Deficiência

b. Patologia

3. Perspectiva processual – concepção de d.a. como:

a. Bloqueio ou Obstáculo

b. Insuficiência

c. Interferência

4. Perspectiva interdependente – concepção de d.a. como:

a. Desadaptação

b. Diferença ou discrepância

5. Perspectiva funcional – concepção de d.a. como:

a. Inerente à aprendizagem e/ou à vida

b. Desafio ou oportunidade

Quadro 2.

Concepções de dificuldade de aprendizagem associadas a cada perspectiva

1. Perspectiva disfuncional – concepção de D.A. como

a. Deficiência

b. Patologia

2. Perspectiva processual – concepção de D.A. como:

a. Impedimento ou Obstáculo

b. Insuficiência

c. Interferência

3. Perspectiva interdependente – concepção de D.A. como:

a. Desadaptação

b. Diferença ou discrepância

4. Perspectiva funcional – concepção de D.A. como:

a. Inerente à aprendizagem e/ou à vida

b. Desafio ou oportunidade

Page 14: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

186

1. Perspectiva disfuncional

As unidades de resposta7 que se inserem nesta perspectiva referem

explicitamente a existência de uma patologia ou deficiência, física e/ou mental.

Uma dificuldade de aprendizagem pode ser concebida como especificamente

determinada por uma perturbação ou por um atraso de desenvolvimento. Ou pode ser

encarada como uma consequência de todos os problemas e limitações que daí decorrem.

Mas, basicamente, uma dificuldade de aprendizagem surge porque existe uma

doença ou uma deficiência, ou simplesmente porque algo não funciona bem...

“Normalmente, penso que uma dificuldade de aprendizagem, resulta fundamentalmente do desenrolar do desenvolvimento da nossa capacidade intelectual, que tem vários itens fundamentais, tais como a linguagem, raciocínio lógico, concentração e atenção, que podem funcionar mal e provocar dificuldades na aprendizagem”

(TEXT: univ.H1-4)

Além disso, nesta perspectiva, a disfunção é descrita como anterior à actual

situação de aprendizagem. Pode decorrer de problemas vários, de saúde mental ou

física, por razões genéticas ou factores traumáticos.

“...muitas vezes existem factores genéticos, não visíveis, que são causa de dispersão, ou até mesmo, de concentração de alguns, por tal facto devemos alertar as pessoas para consultarem um médico e não chamarem "nomes" a esta falta de concentração.”

(TEXT: univ.L24)

7 Cada unidade corresponde a um excerto de texto de dimensão muito variável, incluindo apenas

um ou dois sintagmas, uma frase completa ou mesmo várias frases. Correspondem a unidades de

significado representativas de cada uma das ideias expostas no texto, de forma a poderem ser lidas per si

sem adulterar o sentido original. Isto é, correspondem a excertos seleccionados e categorizados para a

análise de conteúdo, de acordo com três princípios básicos: parcimónia (sempre que uma ideia surge no

texto original de forma repetida e redundante, selecciona-se o excerto mais claro e conciso),

representatividade (o conjunto de unidades de resposta retiradas de um texto deve constituir uma

amostra representativa da diversidade de ideias ou concepções expostas no texto, mesmo se contraditórias

entre si), e validade de conteúdo (cada excerto deve ser extraído de forma a realçar, sem alterar, o

sentido original do texto).

Page 15: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

187

Considera-se que o problema tem origem muito antes do aparecimento das

primeiras dificuldades e que pode até nunca ser ultrapassado. É estrutural, uma

característica do próprio aluno que tende a resistir mesmo aos melhores esforços de

estimulação ou tratamento.

“...podem também ser de natureza biológica e mental, impedindo que o indivíduo progrida além de um determinado e condicionante estádio de desenvolvimento, ocasionado por deformações psicomotoras.”

(TEXT: univ.H1-24)

Nalguns casos, referem-se casos específicos, histórias reais, que ilustram esta

perspectiva:

“Apenas me consigo lembrar de uma amiga muito querida que tinha de facto dificuldade de aprendizagem. Penso que se trata sobretudo, de um problema a nível físico. Lembro-me do esforço que ela fazia, e de todas as pessoas que a tentavam ajudar, obtendo-se um resultado positivo mas apenas a longo prazo.”

TEXT: univ.L35 Se além disso considerarmos as expectativas quanto à evolução do problema, as

concepções inseridas nesta perspectiva podem ser colocadas ao longo de um contínuo

entre:

• um pólo mais negativo e estático (quando se afirma a impossibilidade de

ultrapassar o problema e se sugere uma aceitação passiva) e...

• um pólo mais positivo e adaptativo (quando se refere a possibilidade, a

necessidade de tentar, mesmo com muito esforço, quando se refere a

necessidade de um confronto pessoal com o problema, no sentido de o

contornar ou minorar).

Em síntese, nesta primeira perspectiva conceptual, as dificuldades de

aprendizagem são definidas ou relacionadas com um “mau funcionamento” intrínseco

ao aluno. Se um aluno “tem” dificuldades de aprendizagem, é porque algo não está bem

com ele. Os testemunhos podem referir tanto a noção de deficiência como a de

distúrbio, patologia ou perturbação. Mas, de uma forma mais específica, é possível

distinguir entre duas concepções: deficiência e patologia.

Page 16: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

188

1. a) Concepção de “dificuldade de aprendizagem” como Deficiência

Numa perspectiva disfuncional, a concepção de dificuldade de aprendizagem

como deficiência pressupõe a existência de défices ou atrasos de desenvolvimento, de

limites ou limitações específicas em competências básicas. A existência dessas

deficiências impede o aluno de realizar um processo de aprendizagem dito “normal”.

No fundo, as dificuldades ocorrem porque os processos envolvidos na compreensão e na

aprendizagem são deficitários. O aluno pode ter nascido já com esses défices, mesmo

quando os sinais de dificuldade se manifestam muito mais tarde, ao longo do

desenvolvimento, no confronto com as exigências escolares. De qualquer modo, se um

aluno revela dificuldades na aprendizagem, algumas pessoas supõem sempre a

existência de elementos deficitários, estruturas ou aptidões limitadas ou em falta.

“Acho que certos alunos não conseguem ultrapassar certas dificuldades por terem problemas (deficiências) inatas de aprendizagem.”

(TEXT: univ.CE12)

Nos testemunhos analisados, a noção de dificuldade de aprendizagem pode

surgir associada tanto a uma noção de deficiência mental como física. Por exemplo,

uma aluna referiu a possibilidade de...

“uma dificuldade de aprendizagem poder advir de limitações/deficiências em termos mentais ou motores”

TEXT: univ.CE26

“Talvez que se trate de um pensamento pouco desenvolvido e limitado.” (TEXT: univ.L3)

... por “incapacidade intelectual de quem aprende.” (TEXT: univ.H1-15)

Em síntese, para algumas pessoas as dificuldades de aprendizagem parecem

decorrer de uma capacidade mental limitada (e limitadora). Nesta perspectiva, o aluno

tem dificuldades e não aprende mais porque não está ao seu alcance, porque não é capaz

ou não desenvolveu os meios necessários...

Page 17: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

189

1. b) Concepção de “dificuldade de aprendizagem” como Patologia

Numa perspectiva disfuncional, as dificuldades de aprendizagem podem também

ser concebidas como perturbações, problemas ou patologias de foro mental ou físico.

Uma concepção de dificuldade de aprendizagem como patologia, pressupõe a

existência de um qualquer distúrbio no aluno.

“...identifico as dificuldades de aprendizagem no campo dos problemas físicos ou quando há de facto perturbações como por exemplo uma criança disléxica.”

(TEXT: univ.CE20)

“Outras vezes, trata-se mesmo de um problema mental de qualquer indivíduo que terá de seguir o seu percurso escolar num determinado ciclo educacional orientado para esse tipo de casos.”

(TEXT: univ.H1-16)

“A dificuldade de aprendizagem talvez seja, como que um "bloqueio" na própria pessoa (o aprendiz) que se pode apresentar de diversas maneiras.”

(TEXT: univ.H98-11)

Em muitos casos, não existe uma distinção clara entre perturbações ao nível da

saúde física, mental ou psíquica.

“Diria que essa pessoa deveria ter alguma dificuldade de saúde, como por exemplo, visual, temperamental (tipo dificuldade de concentração, dispersão, desmotivação).”

(TEXT: univ.L10)

Por vezes, é referida a necessidade de uma intervenção ou tratamento, que

corrija o mau funcionamento na origem da dificuldade.

“Algures, "na caixa negra" determinado processo ou operação não se estava a

desenrolar como era suposto e era necessário avaliar, recorrendo a instrumentos ou a procedimentos, o que, exactamente, não estava bem para se tentar corrigir."

(TEXT: univ.PSA1)

Em síntese, numa perspectiva disfuncional, as dificuldades de aprendizagem

também podem ser concebidas como alterações patológicas, distúrbios ou desvios em

relação a um funcionamento físico e psíquico dito “normal”.

Page 18: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

190

2. Perspectiva processual

As unidades inseridas nesta perspectiva referem de forma mais ou menos

explícita, a existência de interferências, impedimentos ou insuficiências que podem

afectar o decurso “normal” de um processo de aprendizagem.

Nesta perspectiva, uma dificuldade de aprendizagem é concebida como uma

alteração processual. As dificuldades são descritas como situações, mais ou menos

específicas, em que o processo de aprendizagem é interrompido ou perturbado, perde

fluência ou sofre um bloqueio.

Em situação de aprendizagem, confrontado com tarefas curriculares específicas,

o aluno sente que alguma coisa falha ou que algo o impede de progredir. O percurso de

aprendizagem torna-se mais lento, mais difícil e menos eficaz do que seria de esperar.

“Dificuldade de aprendizagem é uma falha num determinado ponto do processo. Isto é, a aprendizagem não é um momento, é todo um processo onde estão integradas as mais variadas condições e onde se existir uma falha, poderá subverter todo o processo.”

(TEXT: univ.CE19)

“A aprendizagem é um processo com muitas variáveis, e por isso, complexo. Se alguma dessas variáveis falha, geralmente, surgem "dificuldades de aprendizagem".”

(TEXT: univ.H98-2)

A generalidade dos testemunhos inseridos nesta perspectiva elabora no

pressuposto de uma “normalidade” ou “naturalidade” processual. Quando se aprende,

parece haver uma expectativa de fluência ou facilidade8.

8 Esta expectativa pode talvez encontrar correspondência na asserção “Os estudantes bem

sucedidos compreendem as coisas rapidamente” (item 10) como em outros itens do Questionário

Epistemológico (nomeadamente os itens inseridos no factor “rapidez e facilidade de aquisição do

conhecimento”, factor 3, na versão em língua portuguesa para estudantes universitários). Numa

perspectiva oposta, é possível pensar que “Para progredir é preciso trabalhar muito” (item 44, mesmo

factor) ou mesmo que “A aprendizagem é um processo lento de construção de conhecimento”(item 61 do

mesmo Questionário, factor 4, “estabilidade e dependência”, por oposição a integração e

construtivismo).

Page 19: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

191

Os testemunhos inseridos nesta perspectiva parecem pressupor que

habitualmente não se esperam dificuldades. Quando as coisas acontecem

“normalmente” o aluno avança sem problemas. Quando as dificuldades de

aprendizagem surgem, são descritas como perturbações (mais ou menos imprevistas)

àquele que é, afinal, o percurso mais comum e esperado9.

“Uma dificuldade de aprendizagem é qualquer perturbação que possa alterar o percurso "natural" do processo de aprendizagem. Tal pode verificar-se sempre que um determinado sujeito, face a um determinado acontecimento, não reaja de forma adequada.”

(TEXT: univ.L11)

“...faz com que um indivíduo não possa aprender algo como, normalmente, os outros indivíduos aprendem.”

(TEXT: univ.CE12)

É de salientar que nesta perspectiva, o conceito de perturbação ou

“anormalidade” surge como característica do percurso de aprendizagem e não do

próprio sujeito. Ao contrário do que sucede na perspectiva disfuncional, neste caso é o

próprio processo de aprendizagem que é descrito como deficiente ou inadequado,

perturbado por múltiplos factores. A dificuldade de aprendizagem não caracteriza o

sujeito de forma intrínseca antes a forma como ele actua ou reage em determinadas

situações, em determinados momentos do processo de aprendizagem.

“Que é um obstáculo à aquisição de mais conhecimentos. Este poderá ser causado por uma deficiente organização do que já se sabe, por ser mal explicado, por cansaço físico e/ou mental, deficiente alimentação, etc.”

(TEXT: univ.L12)

Deste modo, as dificuldades de aprendizagem são definidas como situações mais

ou menos temporárias e específicas, de bloqueio, insuficiência ou intromissão de

factores exteriores.

9 Pode pensar-se como deve ser difícil, para alunos com este tipo de concepção, o conceito de

conflito cognitivo e as decorrentes aplicações no contexto da sala de aula.

Page 20: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

192

“...uma dificuldade de aprendizagem pode ser ilustrada pelo aluno que não

consegue avançar num determinado campo básico da aprendizagem escolar, como seja a leitura, a escrita ou o cálculo.”

(TEXT: univ.CE11)

Podem ser específicas a uma determinada matéria ou domínio curricular ou

podem afectar múltiplas áreas.

“Diria que uma dificuldade de aprendizagem tem a haver com algo que condiciona o ritmo de aprendizagem de uma pessoa, é algo que à primeira vista parece colocar obstáculos ao objectivo proposto, podendo mesmo desmotivar, comprometendo toda a aprendizagem em si.”

(TEXT: univ.H1-6)

Também neste caso, se considerarmos as expectativas quanto à evolução da

dificuldade, os vários testemunhos e as concepções inseridas nesta perspectiva podem

ser colocadas num contínuo entre dois extremos opostos:

• o impedimento ou falha no processo é descrito de forma determinista, como algo

que inevitavelmente vai prejudicar o aluno e os seus resultados.

• o impedimento é descrito de forma relativa, dependente do esforço e da

capacidade de reacção do aluno.

“Uma dificuldade de aprendizagem é algo que impede o aluno de aprender eficazmente.”

(TEXT: univ.L21)

“...dificuldade de aprendizagem é quando no processo de aprendizagem, de progressão cognitiva, se encontram obstáculos, que nos impedem de alcançar os nossos objectivos.”

(TEXT: univ.H1-24)

...ou...

“...talvez possamos dizer que uma dificuldade de aprendizagem seja um obstáculo/problema ao qual não conseguimos dar imediatamente uma resposta e que exija mais esforço para conseguir ultrapassá-lo/resolvê-lo.”

(TEXT: univ.H1-33)

“...uma dificuldade de aprendizagem é querer aprender sobre algo e momentaneamente não o conseguir.”

(TEXT: univ.H1-22)

Page 21: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

193

Ou seja, numa perspectiva processual, a expectativa de resultado perante a

dificuldade pode depender da interacção de três vectores:

• a natureza do impedimento, falha, obstáculo ou interferência

• o tempo requerido para realizar o processo de aprendizagem

• o esforço e o investimento pessoal efectivamente dispendidos

Deste modo, as dificuldades podem ser descritas de forma muito variável, em

função da fluência e da qualidade de aprendizagem, do tempo e do esforço necessários.

Podem surgir como pequenas alterações de ritmo ou falhas temporárias num processo

que o aluno logo recupera. São dificuldades momentâneas, que é possível enfrentar e

ultrapassar. Ou podem ser consideradas como situações mais graves e persistentes, que

impedem o aluno de ir mais longe, de alcançar os seus objectivos. Nesta segunda

acepção um impedimento pode confundir-se com a noção de deficiência ou défice

permanente.

Em síntese, os testemunhos inseridos nesta perspectiva processual, podem

referir simultaneamente a noção de falha ou insuficiência, de obstáculo ou barreira, de

intromissão ou interferência de outros factores. Têm em comum a noção de algo

impede ou “condiciona o processo normal de aquisição de conhecimentos” (TEXT:

univ.CE23)

De uma forma mais específica, é possível distinguir entre três concepções de

“dificuldade de aprendizagem”: a) Impedimento ou obstáculo, quando se descrevem

as dificuldades como interrupções da fluência normal dos processos de aprendizagem;

b) Insuficiência, quando se considera que as dificuldades têm origem em limitações

numa ou noutra área directamente relacionada com o processo de aprendizagem; c)

Interferência, quando se constata que tudo poderia ser diferente se não fosse a

influência nociva de outros factores pessoais ou situacionais.

Page 22: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

194

2. a) Concepção de “dificuldade de aprendizagem” como Impedimento ou

Obstáculo

Numa perspectiva processual, as concepções pessoais sobre dificuldades de

aprendizagem aparecem muitas vezes associadas à noção de obstáculo ou barreira.

Uma concepção de “dificuldade de aprendizagem” como impedimento

pressupõe provavelmente a existência de uma outra metáfora sobre a própria

aprendizagem: aprender é um caminho, um percurso. E, nesse percurso, por vezes, “O

aluno não consegue avançar” (TEXT: univ.CE11). O caminho (ou a caminhada)

interrompe(m)-se quando algo bloqueia10 ou impede a “passagem”. O aluno “pára” ou é

forçado a avançar com maior lentidão e esforço. Nesta concepção, as dificuldades de

aprendizagem são descritas como impedimentos de percurso, obstáculos, barreiras ou

bloqueios.

“Uma dificuldade de aprendizagem é sempre um obstáculo que nos impede de alcançar tal ideia ou tal experiência por que ambicionamos.”

(TEXT: univ.L25)

“Uma dificuldade de aprendizagem é uma “barreira" a que determinados conhecimentos sejam interiorizados por determinado indivíduo.”

(TEXT: univ.H1-8)

A noção de que a dificuldade de aprendizagem não decorre de uma deficiência

ou menor capacidade do aluno surge de forma mais explícita neste excerto:

“Uma dificuldade de aprendizagem não torna o aluno burro, ou menos inteligente que os outros, apenas tem dificuldade em ultrapassar um obstáculo...”

(TEXT: univ.H1-23)

Por isso, nesta perspectiva os alunos podem tentar ultrapassar as suas

dificuldades. São obstáculos, muitas vezes descritos como transponíveis, contornáveis,

10 A noção de bloqueio surge aqui no âmbito de uma perspectiva processual. Corresponde a um

impedimento do processo. O bloqueio não é, neste caso, uma característica do aluno. Se o conceito for

usado para referir situações traumáticas ou estados psíquicos do aluno, então esse testemunho deverá ser

inserido na perspectiva disfuncional.

Page 23: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

195

controláveis. São “entraves” (TEXT: univ.L16) que podem ter um efeito desmotivador,

ou barreiras que cada aluno pode aprender a vencer.

“...poderia ser colmatada com esforço pessoal; que os obstáculos são possíveis de se transpôr e que as dificuldades podem ser vencidas: "querer é poder".”

(TEXT: univ.L46)

Os obstáculos ou impedimentos que podem prejudicar o decurso do processo de

aprendizagem são quase sempre descritos como múltiplos e de vários tipos. Alguns dos

testemunhos analisados procuram enunciá-los de forma quase exaustiva.

“O leque de coisas e de factores quer fisiológicos, quer psicológicos quer sociológicos quer antropológicos quer pessoais que levantam dificuldades em relação à aprendizagem é muito vasto.”

(TEXT: univ.H1-13)

“...depende não só de condicionantes sociais e económicas, como de determinantes pessoais, psicológicas, emocionais, familiares e tantas outras.”

(TEXT: univ.H1-26)

“Diria que podia ser algo que impede o correcto desenvolvimento da aprendizagem, desde uma dificuldade de compreensão de um determinado raciocínio, por não conseguir desenvolver ou aplicar o seu raciocínio lógico, por dificuldade mental (deficiência), ou por não ser devidamente estimulado pelo agente orientador do processo de aprendizagem.”

(TEXT: univ.H1-4 )

Em muitos outros testemunhos, não se indica nem a natureza nem a origem (ou

origens) dos referidos “obstáculos” ou “impedimentos” processuais. Esses obstáculos

podem apenas ser descritos em função dos efeitos que geram, por indicação do tipo de

dificuldades a que dão origem. Por exemplo, são referidas com muita frequência,

dificuldades de compreensão, assimilação ou aquisição de novos conhecimentos. Os

factores que efectivamente impedem o normal desenrolar destes processos, podem não

ser indicados de forma específica.

“Diria que embora não tivesse a certeza, achava que era um obstáculo que impede a aquisição de conhecimentos. Seria necessário avaliar que tipo de obstáculo é, e a que nível se manifesta.”

(TEXT: univ.CE16)

Page 24: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

196

“...um obstáculo sentido por alguém (que não tendo nenhuma deficiência aparente) para "assimilar" o que lhe é exterior.”

(TEXT: univ.CE14)

“...obstáculo que impede a aquisição de conhecimentos.” (TEXT: univ.CE16)

Referem-se com frequência obstáculos à aquisição de conhecimentos, à

assimilação e à compreensão. Normalmente não se indica o tipo ou natureza do

obstáculo. Pode pensar-se que a metáfora de “barreira” ou “obstáculo” (que nos

próprios testemunhos é muitas vezes relativizada pela utilização de aspas) descreve

mais uma sensação experimentada perante as dificuldade do que uma convicção. Algo

impede o aluno e o constrange, muitas vezes sem que ninguém (nem o próprio aluno)

consiga saber porquê...

“É algo que não se compreende imediatamente. É um obstáculo que se atravessa no conhecimento, é qualquer coisa de ininteligível.”

(TEXT: univ.H1-21)

As dificuldades podem surgir sem razão ou sem que se conheçam as razões,

independentemente da vontade de quem aprende. Isto é, a motivação para aprender não

evita o aparecimento de obstáculos.

“Diria que é um impedimento, um obstáculo à aquisição regular de determinada competência e/ou conhecimento, independente da vontade daquele que aprende.”

(TEXT: univ.PSIP1)

Em síntese, numa perspectiva processual, as dificuldades de aprendizagem

podem ser concebidas como “muros”, como barreiras que se erguem inesperadamente

no caminho de um aluno. Quando isso sucede, o processo de aprendizagem é impedido

de prosseguir, momentânea ou indefinidamente

Page 25: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

197

2. b) Concepção de “dificuldade de aprendizagem” como Insuficiência

Ainda no âmbito da perspectiva processual, a concepção de “dificuldade de

aprendizagem” como insuficiência pressupõe que o processo de aprendizagem é

perturbado por um ou vários factores insuficientemente desenvolvidos ou insuficiente

adquiridos. Neste caso, considera-se que o processo pode ser prejudicado na sua

globalidade por falha ou por falta de aspectos muito específicos, por diminuição ou

insuficiência relativa em determinadas áreas, condições ou aptidões.

Essas lacunas ou falhas que vão ocorrendo ao longo do processo são descritas

em muitos testemunhos como insuficiências:

• em processos cognitivos específicos (assimilação, compreensão, atenção,

concentração, memória, motivação)

• ao nível de conhecimentos anteriores (maturidade, bases de conhecimento)

• ao nível das estratégias de aprendizagem (métodos de estudo)

“Dificuldade é: - ter falta de um raciocínio lógico;

- não entender o objectivo principal da matéria; - falta de atenção; - não compreender o que lhe é ensinado”

(TEXT: univ.H98-10)

Dado que a maioria dos sujeitos inquiridos concebe a aprendizagem como um

processo de aquisição e assimilação de conhecimentos, a subcategoria de

aquisição/compreensão é também, entre todas, a mais frequente no conjunto de

testemunhos analisados (Quadro 3). Inseriram-se nesta subcategoria todos os

testemunhos em que as dificuldades de aprendizagem são caracterizadas como situações

de insuficiente compreensão ou aquisição de conhecimentos. Nesta perspectiva, ter

uma dificuldade de aprendizagem pode significar não entender ou não conseguir

adquirir um determinado conteúdo.

“dificuldade em adquirir um determinado saber” (TEXT: univ.L7 ) “dificuldade em assimilar algum conceito.” (TEXT: univ.L13)

Page 26: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

198

Neste caso, optou-se por não distinguir entre aquisição e compreensão dado que

os testemunhos usam de forma indistinta o conceito de “aprender”, “entrar dentro de

um assunto” ou “desenvolver um raciocínio lógico” (ver Quadro 3.)

Ter uma dificuldade de aprendizagem pode significar não apreender totalmente,

não assimilar, não interiorizar, sentir dificuldade em “digerir” uma informação, um

determinado saber.

“Ter "dificuldade de aprendizagem" é não conseguir apreender totalmente as coisas que são dadas a aprender.”

(TEXT: univ.L52)

Pode consistir numa assimilação mais lenta, uma dificuldade momentânea

perante nova informação.

“Uma lenta assimilação de conteúdos por parte do aluno pode consistir numa

dificuldade de aprendizagem.” (TEXT: univ.H98-15)

“...não consegue compreender, num curto espaço de tempo, determinada

informação que lhe é fornecida.” (TEXT: univ.L37)

“...incapacidade de assimilar de forma imediata uma nova informação.”

(TEXT: univ.L8)

Uma dificuldade acontece quando não se consegue captar o que é dito pelo

professor ou mesmo o que se aprende com os outros “que nos rodeiam”. Ou pode

surgir quando não se consegue entender nem o objectivo nem a utilidade do que é

ensinado.

“Dificuldade de aprendizagem é não entender aquilo que se explica, é não entender aquilo que se pretende, para que é que serve mesmo em termos abstractos. Se não entendemos o que se pretende com determinado assunto ou com as matérias que se ensina, temos uma dificuldade de aprendizagem.” (TEXT: univ.H1-2 )

“Se a pessoa sentir que não consegue apreender o sentido do que lhe está a ser ensinado, sente dificuldades de aprendizagem.” (TEXT: univ.H1-11)

Page 27: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

199

Quadro 3.

Concepção de dificuldade de aprendizagem como insuficiência

Sub-categoria de aquisição-compreensão

“Quando o conteúdo do que deve ser aprendido não é devidamente

apreendido existem dificuldades de aprendizagem.” (TEXT: univ.H98-4)

“Sentir uma dificuldade de aprendizagem é não compreender bem a matéria ou a exposição que o/a professor/a faz dela dentro da sala de aula.” (Text: univ.H98-7)

“É uma dúvida sobre a matéria que se aprendeu.” (TEXT: univ.H98-7)

“...algo no decorrer do processo não foi interiorizado, e não permite que o conhecimento passe a aprendizagem.” (TEXT: univ.CE10)

“...dificuldade em "digerir" uma qualquer informação.” (TEXT: univ.H1-13)

“...quando alguém não consegue apreender de forma clara aquilo que lhe é proposto, ou seja, quando alguém por um motivo ou por outro, tem dificuldade de compreender e de aprender o que lhe é ensinado.” (TEXT: univ.H1-1)

“Uma dificuldade de aprendizagem é quando determinado indivíduo tem dificuldade em aprender, a entrar dentro de determinado assunto.”(TEXT: univ.H1-18)

“...é uma dificuldade (e não incapacidade) de assimilar conhecimentos e de evoluir em termos de maturação intelectual.” (TEXT: univ.H1-32)

“...não compreensão de determinado aspecto ou ponto, de uma matéria, ou

mesmo do mundo que nos rodeia” (TEXT: univ.L29)

“Uma dificuldade de aprendizagem é a dificuldade que determinadas pessoas têm em assimilar algo ou em reflectir sobre algo ou por ignorância, ou por inexperiência ou ainda por falta de predisposição para aprender.” (TEXT: univ.L14)

“Ter dificuldades de aprendizagem é ter dificuldade em captar aquilo que o

professor diz ou outras coisas, inclusivamente aquelas que aprendemos com os amigos e com todas as pessoas que nos rodeiam.” (TEXT: univ.L1)

Page 28: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

200

Em muitos testemunhos, as dificuldades de aprendizagem são apenas definidas

como insuficiências de aquisição ou de compreensão de conhecimentos. Mas, nalguns

casos, também são indicados alguns dos factores que podem dar origem a essas

insuficiências.

“...uma dificuldade de aprendizagem equivale a um problema de assimilação de

certos conteúdos veiculados, e que pode ter diversas origens, factores.” (TEXT: univ.H1-29)

“...surge porque o aluno não compreendeu a matéria estudada (não

compreendeu/não quis/não pôde).” (TEXT: univ.L16)

“Uma dificuldade de aprendizagem é quando alguém não consegue perceber e

interiorizar determinado assunto. Isto pode ter a ver com a natureza do próprio assunto, com a pessoa em questão, com a pessoa que ensina ou ainda com as condições sociais e escolares.”

(TEXT: univ.L26)

Alguns testemunhos referem, por exemplo, que uma dificuldade de

aprendizagem pode ser descrita não apenas como uma dificuldade de compreensão, mas

de forma ainda mais específica, como uma insuficiente maturidade e predisposição para

aprender. A aprendizagem é influenciada pela experiência anterior do aluno, não só em

termos do que foi adquirindo e assimilando ao longo do tempo mas também em função

das estruturas cognitivas que essa experiência ajudou a desenvolver.

“Podemos ainda não perceber por não estarmos preparados”

(TEXT: univ.L6) “...as dificuldades podem ser confundidas com os atrasos na aprendizagem que

acontecem quando as crianças ainda não têm as estruturas cognitivas suficientes para adquirir aquele tipo de aprendizagens.”

(TEXT: univ.CE20)

“...atraso no desenvolvimento intelectual do indivíduo. O aluno está num determinado estádio de desenvolvimento que ainda não lhe permite compreender/aprender.”

(TEXT: univ.L5)

No âmbito desta concepção de “insuficiência” é ainda possível identificar outras

sub-categorias, correspondentes à identificação específica de outros aspectos em défice

no processo de aprendizagem (Quadro 4).

Page 29: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

201

Quadro 4.

Concepção de dificuldade de aprendizagem como insuficiência

Outras sub-categorias

• insuficiente atenção e concentração “Uma dificuldade de aprendizagem, pode traduzir-se por uma falta de

atenção e de concentração da criança que impossibilita uma determinada aprendizagem.” (TEXT: univ.CE24)

• insuficiência ao nível dos conhecimentos anteriores

“É não ter bases em determinada área” (TEXT: univ.H98-7)

“...uma dificuldade de aprendizagem pode também ocorrer, quando as bases de formação anteriores, tenham sido exploradas de forma insuficiente não permitindo progredir na evolução cognitiva (que pode ser progressiva) de forma adequada.” (TEXT: univ.H1-24)

“Consiste em sentir uma certa incapacidade na aquisição de conhecimentos novos resultante da falta de saberes.” (TEXT: univ.H1-34)

• insuficiência de memória

“...é quando não se consegue assimilar informação, quando não conseguimos reter nada sobre determinado assunto.” (TEXT: univ.L39)

“Existem dificuldades que poderão advir da própria capacidade individual e dos limites que todos nós temos, como será por exemplo no caso da componente memorização. No entanto parecem existir dificuldades que estão para além desta questão.” (TEXT: univ.H1-7) • insuficiência de métodos de estudo

“Não sei estudar, logo sinto uma dificuldade em aprender.”(TEXT: univ.H1-31) • insuficiente motivação

“Dificuldade muitas vezes significa, falta de gosto pela aprendizagem e por conseguinte, falta de motivação.” (TEXT: univ.H1-16)

“Caso contrário torna-se difícil aprender. Só se aprende o que se quer, e como tal uma coisa que não apresenta resultados imediatos ou aplicabilidade

Page 30: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

202

O conceito de dificuldade de aprendizagem é usado, nesta perspectiva

processual, para descrever falhas, deficiências ou insuficências na forma como o

processo de aprendizagem decorre, em função das capacidades, dos comportamentos,

atitudes e pressupostos do aluno. O leque de insuficiências apontadas inclui: a

capacidade de compreensão e de assimilação, a capacidade de atenção e concentração,

os conhecimentos anteriormente adquiridos, a capacidade de memória, o

desconhecimento ou inadequação dos métodos de estudo utilizados e a motivação. Para

o senso comum, estas são algumas das insuficiências mais frequentes e determinantes

de dificuldades de aprendizagem.

O conjunto de testemunhos analisados ilustram a diversidade de factores

apontados. Numa pequena amostra de cerca de duas centenas de respostas, é possível

encontrar muitas asserções que se aproximam ou quase coincidem. Isso não surpreende.

Mas, por outro lado, não seria de antever uma tão grande diversidade de tópicos, uma

tão clara noção da complexidade do processo de aprendizagem em alunos, que embora

com formação no ensino superior, nunca receberam formação específica neste

domínio11. Por um efeito de desejabilidade social seria de esperar que as respostas

fossem muito mais simplificadoras e convergentes. E no entanto, os participantes (pelo

menos os que intervieram nesta fase do estudo) envolveram-se e aderiram muito

positivamente desde o primeiro momento. As respostas tendem a uma extensão de que

estes pequenos excertos não dão conta. Revelam um esforço de auto-observação e de

reflexão sobre as questões propostas. Revelam atenção e uma análise cuidada.

Por exemplo, pode ser comum (talvez demasiado comum e impensado) dizer-se

que os alunos não aprendem porque não estão motivados. Neste estudo, são muitos os

testemunhos que referem o papel da motivação. Mas é interessante ver como o fazem

das mais variadas maneiras12 e, nalguns casos, revelando uma análise muito cuidada.

11 Não se analisaram nesta primeira fase do estudo os testemunhos dos alunos da licenciatura de

Psicologia nem os de alunos do Ensino Básico e Secundário. 12 Neste sentido, e dada a natureza da amostra em estudo, optou-se por uma análise estritamente

qualitativa das respostas. O número ou a percentagem de testemunhos ou excertos inseridos, por

exemplo, na categoria de “insuficiente motivação” não é representativo. Pode induzir em erro (de análise

ou extrapolação) e, sobretudo, não informa sobre a qualidade, riqueza e diversidade das respostas.

Page 31: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

203

Nenhuma das respostas é melhor do que a outra, nenhuma é suficientemente

exaustiva e completa. Tal como sucede no domínio científico, cada resposta pode ser

mais um contributo. E no entanto, numa leitura sequencial e encadeada, os vários

testemunhos sugerem que já pode estar difundida na comunidade uma consciência da

complexidade dos processos envolvidos na aprendizagem e da multiplicidade de

factores determinantes, do sucesso como do insucesso.

Por exemplo, e ainda no domínio da motivação...

“Se tivesse que explicar a alguém o que é uma dificuldade de aprendizagem, o que diria?”

Poderá relacionar-se com a ausência de motivação. Diria que é falta de motivação sobre o assunto, falta de interesse, sobre o que é exposto pelo professor, ou porque o professor torna a matéria desinteressante, ou porque o assunto não interessa ao aluno. Uma pessoa que tenha dificuldades de aprendizagem, não significa que não esteja apta para aprender, mas significa que não foi aberto, no seu espírito, o desejo de aprender e de saber. É necessário que o aluno esteja motivado para aprender. ...e nunca se consegue ensinar nada a quem não quer (apesar de se dever tentar) Poderá existir um desinteresse por determinada matéria. Há assuntos que por si só já são complexos e pouco motivantes e levam à criação de dificuldades. Isto acontece por motivos vários, tais como falta de estímulo, que provoca desinteresse e que por sua vez provoca dificuldades na aprendizagem (uma pessoa desinteressada por algo não tem estímulos para aprender). O interesse em determinado assunto, para mim, é muito importante pois facilita a compreensão e reflexão.

Esta poderia ser uma das respostas analisadas neste estudo, um dos muitos

testemunhos inicialmente recolhidos. Mas efectivamente não é. Trata-se de um

híbrido, uma resposta híbrida e virtual, obtida a partir de sete excertos provenientes de

outras tantas respostas à questão indicada (Anexo VII). Cada um destes sete pedaços

foi extraído do respectivo texto durante o processo de análise de conteúdo, segundo

regras anteriormente definidas. Aqui, por um processo inverso ao da análise de

Page 32: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

204

conteúdo, os excertos surgem ordenados, justapostos, numa “síntese de conteúdo” da

categoria “insuficiente motivação” (concepção da noção de d.a. como insuficiência,

perspectiva processual). Parece haver um sentido comum, um fio condutor, que

relaciona uma sequência de elementos: a matéria, o professor, o aluno, o interesse, o

desinteresse, a motivação, a necessidade de estar motivado para aprender, a criação de

dificuldades por falta de motivação, falta de estímulo, o que não facilita a compreensão

nem a reflexão. E “se a pessoa não consegue apreender o sentido do que lhe está

a ser ensinado, sente dificuldades de aprendizagem” (excerto inserido na sub-categoria

de aquisição-compreensão). Foram anteriormente referidos outros excertos que referem

o papel determinante da compreensão no processo de aprendizagem. Faltará talvez

encontrar um testemunho que indique essa falta de compreensão como causa de

desmotivação e desinteresse. Ou, quem sabe, como fonte de motivação e de empenho,

no desafio de encontrar uma solução que resolva o problema, que leve mais longe...

Outras respostas são, por si só, reveladoras de uma enorme argúcia e capacidade

de análise da complexidade que rege todos estes processos. Se a (des)motivação pode

ser apontada por alguns como causa das dificuldades, se o desinteresse pode ser gerado

ou favorecido pela forma como a matéria se apresenta, também é possível conceber tudo

isso como um pretexto, para desistir, para não tentar.

“...quando a motivação é inexistente a dificuldade de aprendizagem é apenas um pretexto para o aluno se pôr fora de combate com a desculpa de que além de não gostar até nem consegue aprender.”

(TEXT: univ.H1-22) Se o aluno não tem vontade de aprender13, as dificuldades de aprendizagem que

apresenta podem nem existir realmente. Podem ser concebidas como um “pretexto”,

uma forma de justificar a desistência.

Além disso, muitas respostas foram enriquecidas com testemunhos pessoais, tal

como sucede no exemplo apresentado no quadro da página seguinte.

13 É possível imaginar que outras “razões” pudessem ser aqui apontadas, de forma análoga: se o

aluno não acredita na possibilidade de aprender sem dificuldades, se o aluno acredita que faça o que fizer

não vai conseguir vencer, as dificuldades de aprendizagem podem nem existir realmente...

Page 33: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

205

Em síntese, numa perspectiva processual, as dificuldades podem também ser

concebidas como insuficiências ou défices que prejudicam a concretização das

aprendizagens. Quem assim pensa tende a valorizar um ou outro factor (por exemplo:

aquisição de conhecimentos, compreensão ou motivação) como mais significativo ou

determinante, provavelmente em função da sua própria concepção de aprendizagem.

Mesmo nos casos em que há uma referência a vários factores, são referidos como

alternativas possíveis, sendo cada um deles considerado e analisado isoladamente14.

14Sempre que num testemunho se refere, de forma mais ou menos explícita, a interacção de dois

factores ou de duas ordens de factores, esse testemunho passa a inserir-se na perspectiva interdependente.

A partir de alguns testemunhos inseridos na perspectiva processual pode inferir-se a possibilidade de uma

influência paralela ou simultânea de diferentes factores. Mas, mesmo nesses testemunhos, nunca se refere

uma influência mútua ou recíproca. Todos os casos inseridos nesta perspectiva parecem preservar um

pressuposto de causalidade linear. A partir dos testemunhos inseridos na perspectiva interdependente é

possível inferir um determinismo recíproco.

Quadro 5.

Concepção de dificuldade de aprendizagem como insuficiência

• insuficiência de métodos de estudo (testemunho pessoal)

“Até uma determinada idade, eu pensava que algumas pessoas aprendiam melhor do que eu, por exemplo, porque eram mais inteligentes. Um dia, aconteceu-me uma coisa que me deixou intrigada. Eu tive de ajudar uma colega num exercício de matemática que ela não conseguia resolver, e eu consegui. Ela era sem dúvida muito melhor aluna do que eu, porque tinha notas mais altas.

Então, cheguei à conclusão que, ela não era mais inteligente do que eu, e não aprendia as coisas melhor do que eu, em casos simples ela até se mostrava bastante lenta para os resolver.

Acabei por chegar à conclusão que, ela tinha métodos de estudo diferentes dos meus. Dedicava mais horas ao estudo, comprava muitos livros, fazia bastantes exercícios, etc. Nada tinha a ver se ela era mais ou menos inteligente.

Penso por isso, que algumas pessoas aprendem melhor do que outras porque conseguem encontrar um meio mais eficaz para conseguirem atingir conhecimentos, de modo a que esses conhecimentos fiquem mais consolidados e perdurem mais tempo.”

(TEXT: univ.H98-4)

Page 34: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

206

2. c) Concepção de “dificuldade de aprendizagem” como Interferência

Ainda no âmbito da perspectiva processual, é possível descrever uma terceira

forma de conceber as dificuldades de aprendizagem. Numa concepção de “dificuldade

de aprendizagem” como interferência considera-se que o processo de aprendizagem

pode ser prejudicado por factores que se interpõem e interferem. As dificuldades de

aprendizagem podem surgir por interferência de uma multiplicidade de factores (além

dos já referidos), factores que sendo exteriores ao processo de aprendizagem podem ter

uma acção determinante (e debilitante) sobre os resultados.

“Diria que uma dificuldade de aprendizagem não reflecte uma menor capacidade de inteligência. Penso que esse é o primeiro ponto. A dificuldade de aprendizagem pode indicar vários factores: problemas no relacionamento entre quem ensina e quem aprende; problemas pessoais (problemas específicos e pontuais ou ligados ao ambiente familiar) problemas sociais (de adaptação e integração).”

TEXT: univ.H98-8 (42/50)

Os testemunhos inseridos nesta concepção, referem de forma específica o modo

como o processo de aprendizagem pode ser prejudicado pela interferência de factores

exteriores ou complementares, mas que mesmo assim são vistos como os principais

determinantes de muitas situações de dificuldade de aprendizagem.

“Uma dificuldade de aprendizagem será quando ocorre a intervenção de algum

factor (interior ou exterior ao indivíduo) que interfere com o processo de aprendizagem.”

(TEXT: univ.L20)

“Eu penso que há vários factores que podem interferir na aprendizagem. O senso comum pode achar que é uma questão de mais ou menos inteligência mas na realidade não é bem assim. O factor inteligência é importante mas a vontade, a persistência, o estudo, a atenção são condições imprescindíveis.”

(TEXT: univ.H1-10)

“É distância ou ruídos (interferências, perturbações) na comunicação.” (TEXT: univ.H1-30)

Algumas dessas interferências podem ser geradas pelas próprias dificuldades de

aprendizagem, num ciclo que se repete: a dificuldade podem tornar-se ainda “mais

Page 35: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

207

“problemática” à medida que a frustração e o insucesso aumentam.”(TEXT: univ.CE19).

As dificuldades geram emoções que dificultam o confronto com as dificuldades e que

geram maiores dificuldades.

Nas respostas analisadas foi possível identificar vários tipos de interferências

com o processo de aprendizagem:

• Interferência emocional

• Interferência comportamental

• Interferência de valores

• Interferência situacional

• Interferência instrucional

• Interferência de aspectos socio-económicos e culturais

Como para as concepções anteriores, apenas se inserem nesta perspectiva

processual os testemunhos que descrevam tais interferências como aspectos que actuam

sobre o processo de aprendizagem de forma específica ou unilateral, isto é, sempre que

não haja uma referência clara a aspectos de interacção do aluno com a situação15. O

aluno é aqui descrito de forma basicamente passiva, como vítima do resultado mais ou

menos inesperado da intromissão de um (ou vários) de entre esses factores, factores que

podem exercer uma influência negativa, quase sempre descrita de forma determinista.

• Interferência emocional

Nalguns testemunhos, refere-se o papel que as emoções podem exercer sobre os

processos e resultados da aprendizagem.

“...dificuldades são fruto de pouca auto-estima” (TEXT: univ.CE20)

Referem-se medos, como por exemplo “o medo de errar, o medo de não ser

capaz “(TEXT: univ.CE2). Num dos casos, uma aluna descreve o papel de emoções de

valência positiva, opostas a estas, para ilustrar o papel determinante de factores

emocionais e outros (Quadro 6.).

15 Caso contrário o testemunho deverá ser inserido numa das concepções da perspectiva

interdependente: desadaptação ou discrepância.

Page 36: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

208

Quadro 6.

Concepção de dificuldade de aprendizagem como interferência

• Interferência de factores emocionais (testemunho pessoal)

“No meu percurso escolar fiquei algumas vezes surpreendida com pessoas conhecidas que me diziam estar na faculdade, a fazer este ou aquele curso quando eu as achava completamente desprovidas de capacidade para tal. Houve mesmo uma pessoa que era tão lenta de raciocínio que eu duvidei que conseguisse chegar a algum lado - estava a fazer o magistério primário. Isso serviu-me de exemplo, porque eu não apostava em mim, dizia sempre que não era capaz. E acabei por verificar que a inteligência nalguns casos era relativa e que a perseverança e a confiança em nós próprios conseguiam obter melhores resultados.

Também considero que a cultura, o contacto com um meio mais ou menos erudito, a informação e o interesse pelo que se passa à nossa volta contribuem para uma maior facilidade de apreensão, sobretudo em determinados assuntos. A leitura é muito importante porque nos abre horizontes e nos ajuda a compreendermos melhor o mundo, as emoções, os sentimentos, ... tudo isto pode contribuir como suporte de base para melhor se aprender.”

(TEXT: univ.H1-10) Mas de facto, nos testemunhos analisados, as referências a factores emocionais

são muito pouco frequentes, quase sempre fugazes e muito sintéticas. Raramente

observadas, mesmo nas respostas de estudantes da licenciatura de Psicologia,

porventura com melhores conhecimentos na área afectiva e emocional.

• Interferência comportamental

Nalguns testemunhos, sugere-se uma relação entre o de comportamento do aluno

e a existência de dificuldades de aprendizagem. Mas estas referências são raras e quase

sempre se referem a aspectos relacionados com hiperactividade, reduzida persistência e

concentração nas tarefas escolares16.

“...não conseguem fazer uma determinada tarefa até ao fim, consequência de serem crianças muito irrequietas.”

(TEXT: univ.CE27)

16 Não se observaram quaisquer referências a factores de indisciplina, absentismo, agressividade

ou delinquência no contexto escolar.

Page 37: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

209

• Interferência de valores

A interferência dos valores é o último dos factores aqui referidos. Sobre este

aspecto, surgiu um única referência, salientando um aspecto bastante interessante e

provavelmente poucas vezes considerado pelo senso comum.

“...devido a motivos ideológicos e religiosos que não permitem as pessoas

"abrirem-se" a outros conhecimentos.” (TEXT: univ.L50)

• Interferência situacional

Designa-se desta forma a referência a aspectos da situação familiar ou da

história de vida do próprio aluno que interferem no processo de aprendizagem.

“Uma dificuldade de aprendizagem é uma situação em que o indivíduo se encontra que o impede de estar receptivo a inovações.”

(TEXT: univ.L28)

“O momento primeiro de aprendizagem é o aparecimento do embrião, que já está a receber estímulos da mãe. A dificuldade em aprender é perfeitamente explicável tendo em conta a vida da pessoa, desde a gestação...”

(TEXT: univ.L36)

Nestes testemunhos, considera-se que a situação familiar e a história pessoal do

aluno podem exercer uma influência decisiva sobre a sua aprendizagem. Mas uma vez

mais, estas referências são muito raras e inespecíficas17.

• Interferência instrucional

Muitos testemunhos referem o professor e os métodos de ensino como

interferências significativas, como causa determinante de muitas dificuldades de

aprendizagem.

“...pode resultar muitas vezes de um mau professor e não tanto de um mau aluno.”

(TEXT: univ.H1-29)

17 Não se observaram quaisquer referências específicas a factores socio-familiares que por vezes

se associam às dificuldades de aprendizagem: divórcio, falta de cuidado ou atenção parental,

permissividade ou violência familiar.

Page 38: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

210

“Muitas vezes é o próprio professor que não sabe criar a expectativa e

motivação necessárias ao estudo de determinada matéria e daí surgir a tal dificuldade de aprendizagem por parte dos alunos.”

TEXT: univ.L13 (29/33)

Neste caso, os testemunhos sugerem que as dificuldades de aprendizagem

surgem por “falta de clareza do professor ao expôr a sua matéria” (TEXT: univ.H1-1),

quando o aluno não consegue “...entender o que o professor ensina, pois não

compreende a "forma" como explica” (TEXT: univ.CE9) ou ainda “...por ter tido

anteriormente um/a professor/a ou vários que não se interessaram pelos alunos” (TEXT:

univ.H98-7).

“Um professor que não tem capacidades quer intelectuais, quer humanas para

desempenhar a sua missão pode criar situações que desfavorecem o ciclo de aprendizagem de um aluno. Quero com isto dizer que o termo "dificuldade de aprendizagem" não é algo que recaí somente na figura do aluno, ele pode também ser um agente indirecto da acção e as suas dificuldades de aprendizagem podem resultar de causas que lhe são exteriores.”

(TEXT: univ.H98-15)

“...o problema poderia não residir na pessoa que aprende, mas naquela que tenta orientar essa aprendizagem, bem como na maneira como esta última conduz todo o processo em que se envolveu e tenta envolver o outro.”

(TEXT: univ.L23)

A figura do professor, a sua capacidade enquanto pessoa e enquanto profissional,

são aspectos aqui descritos como influências fundamentais, que podem interferir no

processo de aprendizagem de forma muito significativa, agudizando ou ajudando a

superar muitas situações de dificuldade de aprendizagem.

• Interferência de aspectos socio-económicos e culturais

A interferência mais saliente e mais frequentemente citada é a que se refere a

todos os aspectos sociais, económicos e culturais que envolvem o aluno.

“Penso que todas as pessoas são capazes de fazer uma "boa" aprendizagem, porém umas têm mais possibilidades que outras ou seja: mais recursos (familiar, económico, cultural etc, etc,).

Se uma pessoa, desde pequena, vive num meio intelectualmente desenvolvido, naturalmente que as suas capacidades vão ser desde cedo desenvolvidas o que permitirá uma aprendizagem mais rápida.

Page 39: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

211

Uma criança que não está habituada a saber: ouvir, observar, falar etc, etc, naturalmente que a sua aprendizagem vai ser bem mais difícil do que uma, que, desde cedo foi motivada para isso.”

(TEXT: univ.H1-34)

A “falta de meios” (TEXT: univ.H1-7), a falta de oportunidades, uma estimulação mais reduzida, são alguns dos aspectos mais referidos.

“...falta de recursos monetários para adquirir manuais de estudo, a inexistência

de bibliotecas públicas perto da residência do aluno” (TEXT: univ.H98-15)

“...factores sociais e culturais que podem facilitar ou prejudicar uma

aprendizagem, como sejam o ambiente cultural na casa e no meio social de cada um, a acessibilidade aos "meios da cultura" (como sejam bibliotecas, salas de concertos, etc.) e as obrigações, que cada um tem, de prover à sua subsistência”

(TEXT: univ.H98-2) Estes testemunhos sugerem que o meio, a cultura, a vivência do aluno e todas as

condições que lhe são oferecidas, são aspectos muito importantes. Mas raramente se

descreve um pouco melhor, qual a influência específica de cada um desses factores ou a

forma como interagem entre si. No entanto, mesmo referidos de forma genérica, são

vistos como determinantes, condicionando os processos e as possibilidades de

aprendizagem.

“...as dificuldades de aprendizagem não são só a nível da escola, o meio em que

a criança, ou o adolescente ou o adulto se inserem são muito importantes.” (TEXT: univ.H1-14)

A escola é um espelho não só da vivência de cada aluno, mas também do meio

sócio-económico-cultural em que o mesmo se integra e as linhas que separam o todo que é um indivíduo, são tão ténues que ao menor desequilíbrio o aluno pode apresentar dificuldades em atingir os objectivos propostos.

(TEXT: univ.H98-17)

Em síntese, e ainda numa perspectiva processual, é possível identificar uma

terceira concepção de dificuldade de aprendizagem, apenas observada num pequeno

número de casos e testemunhos. A concepção de dificuldade como interferência

confirma que algumas pessoas desenvolveram intuitivamente a noção de que os

resultados podem ser determinados por uma enorme diversidade de factores e que a

aprendizagem pode ser influenciada por características e condições do contexto em que

ocorre, contexto que é, simultaneamente, emocional, atitudinal, escolar e sociocultural.

Page 40: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

212

3. Perspectiva interdependente

As unidades inseridas nesta perspectiva referem-se sempre, de forma mais ou

menos explícita, à existência de uma interacção entre duas ordens de variáveis ou

factores, a nível pessoal e situacional.

Nesta perspectiva, as dificuldades de aprendizagem surgem de forma

interdependente, isto é, a sua ocorrência depende da forma como cada aluno se integra,

interage e se adapta a cada situação de aprendizagem, como também da forma como

cada contexto de aprendizagem se adapta, integra e interage com cada aluno .

As dificuldades de aprendizagem são concebidas, não como uma característica

pessoal (perspectiva disfuncional) nem como uma característica da forma como se

processa a aprendizagem (perspectiva processual). Antes como o resultado da

interacção entre um aluno e um contexto específicos.

“A dificuldade em aprender algo pode resultar muitas vezes de um mau professor e não tanto de um mau aluno, sendo que aprender é um processo dialéctico em que a interacção entre estes elementos determina o próprio grau de motivação e consequentemente o nível de saber (aprendizagem).”

(TEXT: univ.H1-29)

Um mesmo aluno pode obter diferentes resultados em diferentes matérias, ou

numa mesma matéria se avaliado por diferentes professores ou integrado em turmas

diferentes. Um mesmo método de ensino pode facilitar a aprendizagem de

determinados alunos e prejudicar outros.

“Mentes mais complexas, dificuldades em aprender/apreender coisas simples; mentes simples, dificuldades de aprender coisas complexas.”

(TEXT: univ.H1-30)

No fundo, qualquer dos testemunhos inseridos nesta perspectiva pode referir

qualquer um dos conteúdos já analisados nas perspectivas anteriores: disfuncional ou

processual. Mas, neste caso, esses factores surgem integrados num sistema de relações.

Em contexto, cada elemento interage com os restantes, determina e é determinado

(determinismo recíproco). A influência de um factor específico depende da conjugação

de muitos outros factores.

Page 41: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

213

“Em suma, uma dificuldade de aprendizagem não pode, na maior parte das vezes ser interpretada como um fenómeno de sentido único, unidireccionado. Mas como resultante de uma relação, interacção dos agentes que participam directamente do acto de aprender.”

(TEXT: univ.H1-3)

Testemunhos como estes, reflectem a consciência de que o processo de

aprendizagem é complexo e depende de uma vasta rede de factores que interagem entre

si, de um sistema que se auto-regula em busca de um equilíbrio.

“Na minha opinião esta situação deve-se a vários factores, interiores ou exteriores, que influenciando o indivíduo em si o predispõem mais ou menos para a acção da aprendizagem.

Factores externos como o meio onde vive, a educação que recebe, as influências familiares, o tipo de escola que frequenta e os métodos usados pelos professores.

Factores internos, que resultam em algumas situações de pressões exteriores tais como personalidade, gostos por determinadas disciplinas, etc.

No geral o indivíduo é directa ou indirectamente influenciado por estes três factores e a sua aprendizagem está directamente relacionada com a interacção destas situações que vão resultar - no indivíduo em si - resultado desta situação. Este indivíduo pode ou não adequar-se ao sistema de aprendizagem que infelizmente lhe é imposto, sem muitas vezes se respeitar certas condicionantes.”

(TEXT: univ.H1-12)

Em síntese, os testemunhos inseridos na perspectiva interdependente, concebem

as dificuldades de aprendizagem como o resultado de um processo dinâmico, relativo e

contextualizado, dependente da interacção do aluno com o contexto, mediado por um

conjunto de factores pessoais e situacionais.

De uma forma mais específica, é possível distinguir entre duas concepções de

“dificuldade de aprendizagem”: a) Discrepância, quando as dificuldades são

concebidas como diferenças individuais entre alunos (ritmo de trabalho ou de

aprendizagem, aptidões e interesses) ou como diferenças entre o desempenho de cada

aluno e as normas em vigor (expectativas, objectivos, critérios de avaliação e outros);

b) Desadaptação – concebidas como dificuldades de adaptação pessoal (ao grupo, ao

sistema educativo, às exigências de cada tarefa e aos métodos de ensino) ou como

dificuldades de reorganização de quadros conceptuais anteriores (esquemas e conceitos

prévios, pressupostos e crenças do aluno).

Page 42: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

214

3. a) Concepção de “dificuldade de aprendizagem” como Discrepância

Numa perspectiva interdependente, a concepção de “dificuldade de

aprendizagem” como discrepância pressupõe sempre a existência de uma diferença

entre duas ordens de factores que se comparam entre si.

A dificuldade de aprendizagem é representada por essa diferença. É sempre

relativa e determinada por uma maior ou menor proximidade (e semelhança) entre cada

aluno e o seu contexto de aprendizagem. Quanto maior for o desfazamento entre as

normas em vigor (padrões, objectivos, critérios) e aquilo que o aluno é, aquilo que o

aluno sabe ou aquilo que vai conseguindo aprender, quanto maior for essa diferença,

maior o risco de ocorrerem dificuldades de aprendizagem.

“Dificuldade de aprendizagem é um comportamento inadequado face àquilo que é exigido como norma.”

(TEXT: univ.CE3)

“...o que se aprendeu não chega aos limites dos parâmetros estabelecidos.” (TEXT: univ.CE13)

“...um sujeito tem uma dificuldade de aprendizagem quando não consegue

realizar uma tarefa que era suposto (pela norma) que conseguisse realizar.” (TEXT: univ.CE4)

Nas respostas analisadas foi possível identificar vários tipos de desfazamento,

diferença ou discrepância, nomeadamente:

• Entre o que se aprendeu e o que é exigido.

• Entre capacidade e desempenho.

• Entre o currículo e os interesses de cada aluno.

• Entre o esforço realizado e os resultados obtidos.

• Entre o ritmo de trabalho do aluno e o tempo de aprendizagem médio da

turma ou do grupo a que pertence.

Qualquer que seja a discrepância considerada, esta concepção pressupõe sempre

a existência de um paralelismo entre duas variáveis distintas, comparadas entre si em

função de critérios sociais ou convencionais.

Page 43: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

215

• Discrepância entre o que se aprendeu e o que é exigido.

Nesta acepção, concebe-se uma “dificuldade de aprendizagem como

incapacidade ou dificuldade para atingir os objectivos de determinada situação de

aprendizagem” (TEXT: univ.CE25). Isto é, a dificuldade é representada como uma

diferença, entre aquilo que foi ensinado e o aluno efectivamente aprendeu e aquilo que

deveria ter aprendido, de acordo com os objectivos previamente definidos.

“Se eu tivesse que explicar a alguém o que é uma dificuldade de aprendizagem eu diria que é algo que faz com que uma pessoa não consiga atingir determinados objectivos.”

(TEXT: univ.H1-11)

“É uma lacuna entre aquilo que é ensinado e o que é aprendido. Essa lacuna faz com que não haja uma ligação. A pessoa não consegue apreender o que é suposto ser ensinado, é o mesmo que por exemplo não estar na aula.”

(TEXT: univ.H1-1)

Ensina-se ao aluno aquilo que ele deve ser capaz de aprender, e se assim não

acontecer, se a “pessoa não consegue apreender o que é suposto ser ensinado” (aquilo

que o programa e os objectivos determinam que deve ser ensinado e exigido) pode

dizer-se que existe uma dificuldade de aprendizagem.

Noutros testemunhos, as dificuldades são descritas ainda de forma mais

específica: surgem quando existe uma diferença, considerada como significativa, entre

as respostas que o aluno consegue dar e as “respostas modelo” que lhe são exigidas.

“..."dificuldade de aprendizagem" como uma atitude que não propicia que o

aluno realize essa "resposta modelo" que foi tão trabalhada...” (TEXT: univ.L32)

“Muitas vezes na escola são referidas dificuldades de aprendizagem não porque a matéria em questão não foi assimilada, mas talvez porque não foi exposta da forma que o professor pretendia.”

(TEXT: univ.L13)

Page 44: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

216

• Discrepância entre capacidade e desempenho.

Neste caso, a dificuldade de aprendizagem é concebida como uma diferença

entre aquilo que o aluno aprendeu e aquilo que estaria ao seu alcance em função das

suas capacidades intelectuais. Isto é, nesta perspectiva os défices de desempenho devem

sempre ser confrontados com uma análise das capacidades que o aluno efectivamente

tem. Considera-se que as dificuldades decorrem de uma não actualização ou

concretização dessas capacidades.

“Uma dificuldade de aprendizagem é um modo de actuação aquém das possibilidades intelectuais daquele que a tem, isto é, entre um indivíduo com dificuldades de aprendizagem e outro dito normal a nível intelectual pode não haver nenhuma diferença.”

(TEXT: univ.CE1)

Uma dificuldade de aprendizagem pode ser descrita como uma discrepância

mais ou menos significativa entre um desempenho observável no aluno e aquilo que as

suas aptidões lhe permitiriam como desempenho potencial (diferença entre aquilo que o

aluno faz e demonstra saber e aquilo que ele poderia ser capaz de fazer e de demonstrar,

considerando as suas capacidades).

Foram também inseridos nesta sub-categoria, todos os testemunhos que referem

outros tipos de discrepância entre capacidade e desempenho, nomeadamente, entre um

conhecimento adquirido (competência) e a sua aplicação prática (desempenho).

“Quando aprendemos algo, mais tarde, poderemos ter de aplicar esses

conhecimentos nalguma ocasião. Quando não conseguimos aplicar esses conhecimentos ou fazer uso deles é porque existem dificuldades de aprendizagem.”

(TEXT: univ.H98-4)

“Mas muitas vezes as dificuldades de aprendizagem exprimem-se quando não somos capazes de reproduzir aquilo que nos foi transmitido.”

(TEXT: univ.L1)

Nestes testemunhos o pressuposto é o de que, se não sabemos ou podemos

aplicar ou reproduzir um determinado conhecimento, então alguma coisa continua a ser

difícil, algo não foi realmente aprendido. Neste caso, supõe-se sobretudo um critério de

comparação entre aquilo que julgamos ter aprendido e aquilo que, na prática, podemos

demonstrar.

Page 45: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

217

• Discrepância entre o currículo e os interesses de cada aluno.

Segundo este ponto de vista, as dificuldades podem surgir quando existe uma

discrepância significativa entre os gostos e interesses dos alunos e os conteúdos

curriculares. Inseriram-se nesta subcategoria, todos os testemunhos que, analisando o

papel dos interesses e motivação dos alunos, o fizeram em função de um contexto de

aprendizagem. A desmotivação ou o desinteresse não são, neste caso, características

atribuídas aos alunos em dificuldade18. A desmotivação e as consequentes dificuldades

surgem quando se verifica um desfazamento entre esses mesmos alunos e as propostas

curriculares em vigor.

“Muitas vezes deparamos com dificuldades nesta ou naquela matéria, porque não apreciamos, mas temos interesse em aprender outra matéria da qual nutrimos um certo gosto, isso deve-se à motivação pessoal de cada um, motivação essa que é influenciada por um certo e determinado número de acções sociais.”

(TEXT: univ.H1-16)

De notar que neste testemunho, como noutros, a motivação é ela própria descrita

como influenciável e dependente de outros factores, aqui referidos como “acções

sociais”. A motivação e o interesse dos alunos em relação à aprendizagem é concebido

de uma forma dinâmica e interactiva, num contexto determinado.

• Discrepância entre o esforço realizado e os resultados obtidos.

Neste caso, analisa-se a discrepância entre o esforço dispendido numa

determinada situação de aprendizagem e os resultados efectivamente obtidos.

“...quando alguém tenta aprender sem conseguir.” (TEXT: univ.CE20)

18 Os testemunhos que referiram o papel da falta de motivação de uma forma simples e unívoca,

foram inseridos na concepção de “dificuldade de aprendizagem” como Insuficiência, perspectiva

processual.

Page 46: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

218

“...alguém que embora tente apreender algo não o consegue, ou não o consegue

totalmente. Esta dificuldade é devida às características individuais do sujeito, bem como de todo o ambiente que o rodeia e influencia.”

(TEXT: univ.CE28)

O papel do esforço é referido em muitos testemunhos e das mais variadas

maneiras. Refere-se sobretudo o facto de muitos alunos não se esforçarem, nem o

mínimo nem o necessário. Mas o que aqui se pressupõe é uma outra forma de descrever

uma dificuldade de aprendizagem: pela existência de uma diferença significativa entre

um resultado ou produto de aprendizagem e aquilo que se esperaria obter em função da

qualidade do trabalho efectuado durante o processo.

“Quando não se consegue perceber o objectivo de algo, ou o cerne de uma

questão depois de tentarmos arduamente.” (TEXT: univ.L39)

“O aluno não conseguir atingir os objectivos a que ele próprio se propõe apesar

de motivado e devidamente apoiado pelo professor.” (TEXT: univ.L49)

O empenho e o esforço dispendidos não evitam o aparecimento de dificuldades.

Alguns dos inquiridos neste estudo sugerem mesmo que só existe realmente uma

dificuldade se, apesar do esforço, o aluno não conseguir aprender como se pretende.

Neste caso, a dificuldade é a medida dessa diferença, surpreendente, inesperada,

discrepante.

• Discrepância entre o ritmo de trabalho do aluno e o tempo de

aprendizagem médio da turma ou do grupo a que pertence.

Por último, a mais referida de todas as discrepâncias identificadas no âmbito

desta concepção.

“Uma pessoa ou criança com dificuldades de aprendizagem é quando dentro de um mesmo nível etário, uma criança, numa situação de ensino/aprendizagem não consegue obter os mesmos resultados positivos das outras crianças, havendo uma grande discrepância de resultados.”

(TEXT: univ.CE17)

Page 47: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

219

Neste caso, as dificuldades são concebidas como uma diferença mais ou menos

significativa, entre o desempenho do aluno e o desempenho médio do grupo em que está

inserido. Entre o ritmo de trabalho e de aprendizagem de cada aluno e o ritmo do grupo

a que pertence. Neste sentido, as dificuldades são relativas e dependem do contexto.

Podem exacerbar-se ou diluir-se se o grupo de referência mudar, se forem outros os

critérios de comparação escolhidos, se o aluno mudar ou se mudar o contexto de

aprendizagem. Além de que, como sempre nesta perspectiva interdependente, o aluno

também muda em função do contexto, tal como a sua presença pode contribuir para

mudar o contexto.

“É não ser capaz de aprender ao ritmo considerado normal (é claro que o que é considerado normal é em grande medida convencional, variando no espaço e no tempo).”

(TEXT: univ.L38) Uma dificuldade de aprendizagem pode também ser concebida como uma

discrepância de ritmo de aprendizagem19.

“Não é uma criança deficiente, mas é uma criança que tem um ritmo de aprendizagem mais lento que as outras crianças.”

(TEXT: univ.CE22) Ou pode ser descrita como uma situação em que não se consegue atingir o nível

de aprendizagem ou os objectivos alcançados pelos outros membros do grupo.

“...penso que alguém que tem dificuldade de aprendizagem é alguém que

inserido num determinado grupo não consegue atingir os objectivos de aprendizagem dos outros membros do grupo.”

(TEXT: univ.H98-3)

19 Curiosamente, todos os testemunhos inseridos nesta categoria, referem as dificuldades de

aprendizagem como diferenças negativas, isto é, situações em que a aprendizagem decorre a um ritmo

mais lento do que para os restantes membros do grupo. Mas, de forma similar, também se podem

descrever diferenças positivas, tais como as dificuldades sentidas por alunos precoces ou especialmente

dotados. Estes alunos, possuindo um ritmo mais rápido e exigindo maior estimulação e níveis de

dificuldade mais elevados, sentem dificuldades de inserção na turma e de adesão às tarefas de

aprendizagem, que consideram repetitivas e desmotivantes. São frequentes, nestes casos, as situações de

insucesso escolar, de exclusão ou isolamento social.

Page 48: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

220

Alguns testemunhos centram-se na perspectiva do próprio aluno e nas

consequências emocionais de se sentir diferente, a aprender a um ritmo diferente.

“...sentir que não se entende, não se percebe, não se compreende aquilo que

todos já entenderam antes” (TEXT: univ.H98-3)

“...não conseguir manter o ritmo do resto da turma.”

(TEXT: univ.H98-7)

Em síntese, numa perspectiva interdependente, uma dificuldade de

aprendizagem pode ser concebida como uma discrepância ou uma diferença, observada

por comparação entre duas dimensões paralelas, em função de normas convencionais ou

sociais.

Page 49: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

221

3. b) Concepção de “dificuldade de aprendizagem” como Desadaptação

Numa perspectiva interdependente, a concepção de “dificuldade de

aprendizagem” como desadaptação pressupõe que as dificuldades de aprendizagem

são essencialmente situações de dificuldade de adaptação pessoal a todo o contexto que

envolve a aprendizagem. Para aprender bem, para ter sucesso, na escola como na vida,

cada aluno tem que responder de forma versátil e adequada às características e

exigências de cada tarefa de aprendizagem, ao contexto escolar, às regras e critérios de

avaliação, às expectativas e aos objectivos (pessoais e sociais).

“É um fenómeno de descoordenação entre o que aprende, o que ensina e aquilo que é ensinado. É um fenómeno que pode ter como causas a falta de estabilidade social e/ou pessoal daquele que aprende. Pode também ser causado pela forma como a matéria a aprender é exposta e a compreensão ou preparação daquele que ensina. Pode ainda ser o resultado de uma matéria (programa ou currículo) mal estruturado, não adaptado à idade, mentalidade, necessidades, anseios e exigências daquele que aprende.”

(TEXT: univ.H1-3)

Nesta concepção, as dificuldades são descritas como situações de

descoordenação, de desarticulação, de desorientação. O aluno pode sentir-se perdido,

sem encontrar um sentido, sem compreender ou sem conseguir identificar objectivos.

“...dificuldade de aprendizagem é uma falta de sentido, uma ausência de orientação, um "desnorteamento".”

(TEXT: univ.L17)

O sucesso na aprendizagem depende da forma como o aluno se confronta com as

exigências, problemas e vicissitudes que podem ocorrem em todas as situações de

aprendizagem. Por exemplo, considera-se que uma dificuldade por desadaptação pode

decorrer de uma inadequada selecção de estratégias de aprendizagem e de métodos de

estudo.

“...uma dificuldade de aprendizagem é uma falta de articulação entre o saber e

a falta de método para chegar até esse saber. É como uma desadaptação entre a especificidade de cada indivíduo e a falta de critério nas estratégias de aprendizagem que ele utiliza.”

(TEXT: univ.CE18)

Page 50: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

222

Neste como em outros testemunhos, considera-se a necessidade de, em cada

situação, o aluno conseguir identificar o que quer saber (quais os seus objectivos

pessoais e/ou as exigências da tarefa) para escolher o método mais adequado (em

função das suas próprias características e das características da tarefa) “para chegar até

esse saber”. Nesta concepção, uma desarticulação entre estes vários aspectos pode dar

origem a dificuldades.

Um dos estudantes que participou neste estudo, exemplificou este tipo de

desadaptação de uma forma extremamente simples.

“Não perceber e não dizer que não percebeu, continuando com a dúvida.”

(TEXT: univ.H98-11) Ter uma dificuldade de aprendizagem pode ser o que acontece por não

reconhecer e/ou não reagir perante dúvidas. A desadaptação surge, neste caso, por

passividade e omissão. O aluno não identifica nem toma consciência da dificuldade, ou

pelo contrário, decide ignorar o problema. Ter uma dúvida e não a reconhecer, ou

reconhecendo nada fazer, é provavelmente um comportamento pouco adaptativo. E

neste sentido, pode ser considerado um comportamento de risco, um factor que aumenta

a probabilidade de se verificarem novas e mais graves dificuldades de aprendizagem.

Nas respostas analisadas foi possível identificar vários tipos ou formas de

desadaptação:

• Cultural e comunicacional

• Entre aluno e professor

• Entre ensino e aprendizagem

• De esquemas e quadros conceptuais prévios

Em qualquer destes casos, as dificuldades de aprendizagem são concebidas

como o resultado de dificuldades de adaptação a situações ou a problemas específicos.

Dependem do comportamento do aluno em interacção com as condições que o

envolvem (da forma como age, reage e interage) .

Nesta perspectiva, as dificuldades podem ser consideradas como sinais

indicadores (estímulos discriminativos), que ajudem o aluno e o contexto na

identificação dos problemas e na modificação dos comportamentos.

Page 51: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

223

• Desadaptação Cultural e Comunicacional

Nesta perspectiva, a desadaptação cultural e comunicacional pode ser um factor

com efeitos determinantes em algumas dificuldades de aprendizagem.

“...desadequação entre a cultura original da pessoa e a cultura institucional ou a cultura que procura transmitir algo.

Essa desadequação pode levar não só a que a pessoa não se sinta motivada para a aprendizagem, como pode levar a que o seu ritmo e velocidade da aprendizagem seja mais lento ( devido a não familiaridade), o que já não se espera de uma pessoa cuja cultura original não se encontre muito longe da cultura que lhe está a ser transmitida.”

(TEXT: univ.CE26)

“...a dificuldade de aprendizagem seria vista também como um problema de comunicação entre dois seres e não somente na relação professor/aluno.”

(TEXT: univ.H98-3)

A noção de cultura é aqui referida de forma muito ampla, incluindo os aspectos

linguísticos, os hábitos, as atitudes e as convicções familiares, as tradições e os valores.

Referem-se sobretudo casos de aculturação e a situação das minorias. Mas também

outros casos mais comuns de dificuldade de comunicação, de ausência de “feedback”,

de isolamento ou indiferença, de hostilidade ou confronto, entre pares ou na relação

professor-aluno.

• Desadaptação Aluno – Professor

As dificuldades de comunicação, as diferenças pessoais e culturais, podem

afectar a relação entre professor e aluno (ou alunos) prejudicando o sucesso ou

dificultando a resolução de problemas e desfazamentos.

Os testemunhos analisados referem que, muitas vezes, professor e alunos não

chegam a um entendimento, não partilham nem objectivos nem critérios.

“Talvez tenha sentido mais dificuldades de aprendizagem em disciplinas em que eu tinha alguma dificuldade em relacionar-me com o professor, nomeadamente em perceber o que pretendia dos alunos.”

(TEXT: univ.H98-8)

Page 52: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

224

Mas neste sentido, a noção de desadaptação refere-se também a um outro

aspecto: a concepção de que a aprendizagem é um processo conjunto em que professor

e alunos são cooperantes e co-responsáveis, nos êxitos como nos insucessos. As

dificuldades surgem no contexto dessa relação e interacção e não podem (ou não

devem) ser imputadas a nenhuma das partes, isoladamente.

“Penso que uma dificuldade de aprendizagem não deve dizer respeito só ao aluno. Cabe ao professor enquanto tal, fazer ver ao aluno que a dificuldade é um problema de ambos e que ambos terão que ultrapassar. Então, a desresponsabilização do aluno é uma etapa importante. fazer-lhe ver que talvez a culpa não seja só dele, para que o aluno não se sinta incapaz ou inferiorizado por não conseguir ultrapassar certos problemas de certas disciplinas.”

(TEXT: univ.H98-15)

No entanto, alguns dos testemunhos enfatizam o papel e a responsabilidade do

professor enquanto profissional. Considera-se nalguns casos, que aprender“...se torna

um processo difícil quando quem transmite o conhecimento não é capaz de

compreender as limitações de cada aluno.” (TEXT: univ.H98-5), as limitações e as

características pessoais de cada aluno.

“Refiro-me, por exemplo, à capacidade científica do(s) professor(es) e à capacidade de a tornar transmissível aos alunos, adaptando-a ao estado etário e à personalidade de cada um. Refiro-me igualmente, por outro lado, à predisposição do aluno para receber uma qualquer matéria de conhecimento, que pode variar de área para área, segundo os seus interesses pessoais e segundo o grau de conhecimento que já possui em relação ao grau de conhecimento transmitido pelo professor, numa determinada área.”

(TEXT: univ.H98-2)

• Desadaptação Ensino - Aprendizagem

As dificuldades de aprendizagem ocorrem por vezes no contexto de um

“fenómeno de descoordenação entre o que aprende, o que ensina e aquilo que é

ensinado.” (TEXT: univ.H1-3).

Nesta acepção, não há dificuldades quando os métodos de ensino e de

aprendizagem se adaptam em função das necessidades e características pessoais de cada

aluno.

Page 53: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

225

“...na generalidade das situações (salvaguardando as excepções à regra) os

indivíduos conseguem aprender desde que as actividade e propostas de aprendizagem lhes sejam adequadas.

Neste sentido, quase que me atreveria a dizer, que não há dificuldades de aprendizagem desde que se tenha em conta o sujeito, o indivíduo que se propõe ou é proposto a aprender.”

(TEXT: univ.CE25)

As dificuldades surgem se “o ensino não está adequado ao aluno.” (TEXT:

univ.L5), e quando não se promove a “...adequação de uma dada situação/descoberta ao

nível de desenvolvimento do sujeito.” (TEXT: univ.L9).

“...o modo como o conteúdo do que se quer ensinar é apresentado ou com o próprio método de ensino pouco adaptado ao estilo de aprendizagem do aluno.”

(TEXT: univ.CE16)

“Para a realização de uma determinada aprendizagem podemos seguir muitos caminhos. Se uma pessoa não consegue aprender no método A, é porque, talvez, este não seja o método mais indicado para ela. Temos que tentar, percorrer os vários métodos até encontrarmos o que melhor se adequa às nossas características.”

(TEXT: univ.CE8)

“...ao ser transmitido algo, esse algo pode não ser bem explicado ou/e não ser correctamente apreendido. Essa ligação entre a transmissão de conhecimentos e a apreensão dos mesmos, quando é deficiente constitui uma dificuldade de aprendizagem.”

(TEXT: univ.H1-11)

• Desadaptação de Esquemas e Quadros conceptuais prévios

Alguns testemunhos referem que uma dificuldade de aprendizagem pode ser

descrita não apenas como uma dificuldade de compreensão, mas de forma ainda mais

específica, como uma dificuldade ao nível dos processos de assimilação. Isto é, uma

dificuldade de integração do novo no anteriormente adquirido, a dificuldade de

integração de nova informação nos quadros conceptuais pré-existentes. Esta parece ser

uma forma de conceber particularmente interessante neste contexto, por se referir,

afinal, a uma das questões nucleares que conduziu a este estudo, a saber: como conciliar

a noção de que as dificuldades de aprendizagem são um problema, uma patologia

“digna” de um lugar na DSM, e uma perspectiva construtivista sobre a aprendizagem,

Page 54: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

226

que tem por base a resolução de problemas, de conflitos, de dificuldades e

desequilíbrios cognitivos?

“A maioria das vezes, a dificuldade em aprender ocorre por estarmos a ser

confrontados com algo que nos é de uma qualquer forma completamente novo ou pelo menos com uma grande parcela de novidade. O caracter de completa novidade daquilo que devemos aprender é o principal factor da dificuldade. Falo numa grande novidade porque em princípio para algo que nos é desconhecido não temos um quadro de referência. A necessidade de conceitos, vocabulário, quadros de referência, ... novos é o principal factor de dificuldade já que requer uma construção nova e um maior investimento.”

(TEXT: univ.H1-13)

“...a dificuldade surge pelo caracter novo da matéria a adquirir em relação ao nosso quadro mental.”

(TEXT: univ.H1-13)

A esta questão se associa a noção de que aprendizagem depende também da

experiência anterior do aluno, não só em termos do que foi adquirindo e assimilando ao

longo do tempo mas também em função do que está preparado, predisposto, aberto e

disponível, para aprender.

“É não se conseguir predispôr para a assimilação de algo que em muito pode

abalar (ou, pelo menos, reequacionar) aquilo que durante muito tempo não ousámos pôr em causa...”

(TEXT: univ.L18)

“Uma grande dificuldade de aprendizagem pode ser o afastamento da realidade com que deparamos, daquilo que já conhecemos, isto é, quando as coisas se afastam em muito do nosso domínio de experiência.”

(TEXT: univ.L25)

“...dificuldade em compreender a estrutura duma determinada situação, porque os pressupostos em que ela está envolvida ou me ultrapassam em grande parte ou pura e simplesmente não me dizem respeito, e como tal falta-me capacidade, disponibilidade, disposição ou então sensibilidade para captar os pontos principais desse problema.”

(TEXT: univ.L48)

Em síntese, segundo esta perspectiva interdependente, as dificuldades são quase

sempre situações de desfasamento ou desadaptação pessoal, de deficiente integração no

grupo, na cultura ou no currículo, de descoordenação entre o que é ensinado e o que é

(ou pode ser) aprendido. O foco do problema não se situa nem no aluno nem no

contexto, antes na forma como se encontram e interagem, construindo ou não condições

que favoreçam a aprendizagem.

Page 55: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

227

4. Perspectiva funcional

Nesta perspectiva, considera-se que as dificuldades de aprendizagem são parte

integrante de qualquer processo de aprendizagem. Mais do que isso, as dificuldades são

descritas como parte integrante da própria vida. Constituem uma etapa necessária, com

uma função específica: representam desafios ou oportunidades de aprendizagem, de

descoberta, de crescimento pessoal e intelectual. São analisadas em função do resultado

a que dão (ou podem dar) origem e nunca de forma isolada, estática ou determinista.

Além disso as dificuldades são vistas como comuns, normais e difundidas na população.

“...dificuldades todos temos.” (TEXT: univ.L31)

Os testemunhos inseridos nesta categoria referem-se a dificuldades que podem

ocorrer em qualquer situação e a qualquer pessoa, dentro ou fora do contexto escolar.

“Dificuldades de aprendizagem é também algo normal ao longo do processo de aprendizagem, a que o aluno deve saber gradualmente (ao longo dos vários graus de ensino) auto-superar, servindo-se de todos os recursos que lhe podem ser úteis.

(TEXT: univ.H1-6)

“As dificuldades na aprendizagem estão sempre a surgir, quer devido àquilo que queremos saber quer aos métodos que usamos, quer ainda porque não entendemos quem nos ensina ou vice-versa. Daí o desafio, ainda bem que existem dificuldades para pormos à prova o nosso interesse pelos assuntos e até porque o nosso conhecimento pode ficar melhor estruturado ... enfim, se não existirem problemas de outra ordem, é bom haver uma certa dificuldade.”

(TEXT: univ.H1-10)

“Ter dificuldades é humano e pode ser benéfico. No entanto, depende do modo como as coisas são apresentadas, pois daí deriva o sentimento que vou ter.”

(TEXT: univ.H98-12)

“Diria que são os obstáculos que se têm de ultrapassar para a compreensão de uma matéria ou de uma tarefa...

Na verdade para aprender é preciso errar, só errando se aprende.” (TEXT: univ.H98-16)

Page 56: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

228

Algumas pessoas compreendem intuitivamente uma das maiores dificuldades

neste domínio, nomeadamente a dificuldade de delimitar e definir um conceito tão

relativo como o conceito de dificuldade de aprendizagem. Reconhecem que as

dificuldades tanto podem ser benéficas, como podem gerar sentimentos negativos e

disfuncionais. Que são uma característica da própria vida, podendo afectar todos, em

qualquer momento.

“Sentir dificuldades é algo assustador. É algo que sei por experiência própria que é sofrido e tem-se que ultrapassar ao longo da vida. Isto, porque a vida é feita de dificuldades.”

(TEXT: univ.H1-9)

“Quando penso em dificuldades de aprendizagem associo logo à dislexia, mas penso que todos nós, bons ou maus alunos por vezes passamos por este problema.”

(TEXT: univ.H98-13)

Esta concepção parece associada a um construtivismo intuitivo, na convicção de

que cada aluno interage com as situações de aprendizagem e que as dificuldades

dependem sobretudo da forma como as coisas são apresentadas e se apresentam a cada

pessoa, como são interpretadas e integradas no próprio processo de construção

(produção) das aprendizagens.

“A passagem do "estado natural" para o "estado cultural" obriga o ser humano a ser "produto e produtor de aprendizagem".

(TEXT: univ.L17 )

“O conhecimento é uma área da aprendizagem que envolve participação, dúvida e encantamento.”

(TEXT: univ.H98-5)

Em síntese, os testemunhos inseridos nesta perspectiva funcional podem referir-

-se a duas concepções sobre dificuldades de aprendizagem, que se consideram de forma

complementar: a) algo de inerente à aprendizagem e à vida humana; b) um desafio

e uma oportunidade, a nível pessoal, interpessoal e cultural, na comunidade como na

investigação científica .

Page 57: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

229

4. a) Concepção de “dificuldade de aprendizagem” como algo inerente à

aprendizagem ou à própria vida

Numa perspectiva funcional, a concepção de “dificuldade de aprendizagem”

como algo de inerente à aprendizagem e à vida, pressupõe que em todas as situações

de aprendizagem podem ocorrer dificuldades, e tanto mais quanto se trate ou se

pretenda um maior aprofundamento e qualidade.

“Eu acredito que não existe nenhuma aprendizagem (entenda-se vida) sem nenhuma dificuldade no seu desenrolar enquanto actividade e processo, caso contrário não a consideraria aprendizagem.”

(TEXT: univ.L23)

“...a dificuldade faz parte da aprendizagem, seria provavelmente tudo muito enfadonho se fosse de compreensão instantânea; ou seríamos todos uns geniozinhos, ou aquilo que se aprendia era muito pobre.”

(TEXT: univ.H1-21)

“...dificuldade que uma pessoa pode sentir quando se vê perante algo novo, com o que ainda não está familiarizada. Isto geralmente acontece ao nível das matérias estudadas nas escolas, mas pode também acontecer ao nível do dia-a-dia (nos empregos, novas actividades de tempos livres).”

(TEXT: univ.L50 )

“A dificuldade de aprendizagem pode não existir só na escola, pode existir em qualquer campo da vida onde as pessoas tenham necessidade de comunicar umas com as outras.”

(TEXT: univ.H98-3)

Nesta perspectiva, é o próprio acto de aprender que “não é fácil”, por inerência.

Isto é, para algumas pessoas parece muito claro que não faz sentido procurar entender as

dificuldades fora do contexto da própria aprendizagem. Não faz sentido dicotomizar,

separar o mundo das aprendizagens do mundo das dificuldades. Sem dificuldades não

há aprendizagens. Pelo menos não há aprendizagens de qualidade, aprendizagens em

sentido lato.

Page 58: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

230

“...aprender não é fácil! Para evitar a dificuldade na aprendizagem temos de estar predispostos a tal. É preciso querer aprender. É preciso ter gosto no saber e não colocar obstáculos que impeçam essa dialéctica.”

(TEXT: univ.L45)

Por isso, muitos testemunhos consideram que a verdadeira “terapêutica” está na

mudança de atitudes, de interesses e de métodos. Trata-se de aprender a aprender, de

melhorar e favorecer a forma como se aprende, de aprender a identificar e a resolver

problemas.

“Diria que não existem dificuldades impossíveis de vencer para as pessoas

razoavelmente normais. Quem não aprende mais rápido aprende mais devagar. Com paciência, com métodos apropriados, com gosto, com perseverança. Desistir é a pior forma de resolver os problemas”.

(TEXT: univ.L43)

Constata-se que os testemunhos inseridos nesta categoria (como em qualquer

outra) podem integrar elementos conceptuais já referidos e analisados em perspectivas

anteriores. Todas estas concepções não parecem ser nem exclusivas nem antagónicas.

Podem coexistir, complementam-se ou alternam entre si.

Cada pessoa pode oscilar entre diferentes perspectivas, recorrendo a uma ou a

outra sucessivamente, em função do modo como analisa cada caso e cada contexto.

Nalgumas situações, as dificuldades podem ser concebidas como patologias ou

deficiências, noutros casos, como exemplos de interferência ou desadaptação, noutros

ainda, como parte integrante da própria vida. Além disso, cada pessoa pode recorrer,

simultaneamente, a diferentes concepções, integrando-as e combinando-as das mais

variadas maneiras. Num discurso de senso comum, ao contrário do que ocorre na

abordagem científica, não existe sistematização nem se elabora sobre categorias

exclusivas. Mais do que um esforço de análise e de decomposição de elementos

discretos, observa-se uma tendência para uma visão global, holística, onde os elementos

se sobrepõem e parecem indissociáveis.

“Pode ser bastante negativo ou positivo para uma pessoa. Pode ser negativo, porque a pessoa pode ter vergonha de dizer que tem dificuldades de aprendizagem e nunca as superar, mas também pode não se aperceber que tem dificuldades de aprendizagem e por exemplo não estudar ou não se preocupar com o assunto.

Pode ser positivo porque perante as dificuldades de aprendizagem, a pessoa pode tentar vencê-las.”

(TEXT: univ.H98-4)

Page 59: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

231

4. b) Concepção de “dificuldade de aprendizagem” como Desafio ou

Oportunidade

Ainda numa perspectiva funcional, a concepção de “dificuldade de

aprendizagem” como desafio ou oportunidade, pressupõe que as dificuldades podem

ser ocasiões privilegiadas de descoberta e aprendizagem.

“As dificuldades na aprendizagem estão sempre a surgir, quer devido àquilo que queremos saber quer aos métodos que usamos, quer ainda porque não entendemos quem nos ensina ou vice-versa. Daí o desafio, ainda bem que existem dificuldades para pormos à prova o nosso interesse pelos assuntos e até porque o nosso conhecimento pode ficar melhor estruturado... Enfim, se não existirem problemas de outra ordem, é bom haver uma certa dificuldade.”

(TEXT: univ.H1-10)

A noção de oportunidade pode surgir e ser concebida a vários níveis, desde a

possibilidade de se “desligar da matéria” em que as dificuldades ocorrem “sem

grandes remorsos”, até ao desafio de estruturar e reestruturar saberes, de refazer e

encontrar novos métodos de trabalho, oportunidade de aprender e de crescer.

“...se a disciplina em que essa dificuldade ocorresse não despertasse o meu interesse provavelmente considerava-a como uma oportunidade para me permitir desligar da matéria sem grandes remorsos pois afinal de contas eu até nem conseguia perceber o que se pretendia com tal matéria”.

(TEXT: univ.H1-22)

“Na minha própria aprendizagem sinto uma dificuldade quando não consigo perceber qualquer coisa. O que pode ser vantajoso, porque pode ser uma dificuldade que me leve a procurar soluções para ela e portanto acabar com ela. E isso é evoluir. Mas ao longo do meu percurso escolar nem sempre isso aconteceu, pois há uns anos atrás, uma dificuldade poderia levar-me à desmotivação.”

(TEXT: univ.H1-33)

“Mas também as dificuldades podem ser importantes no sentido de nos obrigar a aplicarmo-nos com mais afinco, mais intensamente e reflexivamente (embora nos possa custar).Impõe-se que nos ultrapassemos a nós próprios constantemente.

As dificuldades de aprendizagem são assim desafios constantes e que fazem parte do nosso crescimento como pessoas.”

(TEXT: univ.H1-9)

Page 60: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

232

“Sentir uma dificuldade de aprendizagem, apesar do primeiro impacto negativo, também tem uma vertente positiva porque nos fará interiorizar um pouco mais, levando a um conhecimento mais profundo da nossa pessoa.”

(TEXT: univ.H98-1)

“Sentir uma dificuldade faz com que uma pessoa reflicta mais acerca do assunto, que o questione mais, e por vezes se conheça melhor.”

(TEXT: univ.H98-12) Quase todos estes testemunhos se referem a uma interacção entre os efeitos

produzidos pelo confronto adaptativo com uma dificuldade de aprendizagem e

elementos energéticos do comportamento: estímulo, coragem, motivação. Num “ciclo

vicioso” com carácter positivo, adaptação tende a gerar maior adaptação.

“Pode ser um estímulo quer para o aluno, quer para o professor (que deve ser

capaz de captar a dificuldade do aluno a exprimir-se sobre algo) para que se ultrapasse essa dificuldade através de um trabalho em que as duas partes se devem comprometer igualmente com vista ao sucesso escolar do aluno que deve ser o objectivo principal a que todos os professores se devem empenhar.”

(TEXT: univ.H98-15)

“Cada "vitória" que se alcança reforça a consciência de que as dificuldades são quase sempre ultrapassáveis.”

(TEXT: univ.H98-2)

“Compreender as nossas limitações e ter coragem para as ultrapassar simplifica as complexidades do fenómeno da aprendizagem.

É um desafio que nos permite ter asas e voar...a humildade suficiente... em face de um conhecimento que é infinito.”

(TEXT: univ.H98-5) Em síntese, numa perspectiva funcional as dificuldades podem estar na origem

de novas (ou renovadas) aprendizagens, mas sobretudo de um novo (ou renovado)

conhecimento de cada um sobre si próprio. Quando não há problemas, quando tudo é

(ou nos é dado como) demasiado simples, há menos oportunidades de descoberta, de

crescimento pessoal e de desenvolvimento. Nesta perspectiva, o essencial não é saber

se o aluno tem ou não tem dificuldades, antes compreender que função e que efeitos

produzem as dificuldades que a todos podem ocorrer quando procuram aprender.

Adaptando uma forma de dizer bem popular, “só não tem dificuldades quem não

aprende”.

“Ultrapassar as dificuldades de aprendizagem é ultrapassarmo-nos sempre.”

(TEXT: univ.L33)

Page 61: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

233

Em síntese, o trabalho desenvolvido ao longo deste segundo estudo permitiu a

identificação de várias concepções de senso comum sobre dificuldades de

aprendizagem, integradas numa estrutura múltipla, hierárquica e não exclusiva.

Na amostra agora observada parecem estar difundidas múltiplas formas de

conceber e de descrever as dificuldades, que correspondem de uma forma muito

aproximada ao leque de concepções científicas desenvolvidas nas últimas décadas

(como se descreveu no capítulo de Introdução e está de acordo com a segunda das

hipóteses formuladas):

• do modelo médico, ao modelo do processamento psicológico, até ao modelo

das estratégias cognitivas (p.18 a 21)20.

• da noção de interferência, presente na definição da DSM-IV (1996), até à

noção de discrepância como critério de diagnóstico (páginas 26 e 33,

respectivamente).

• das concepções mais tradicionais de classificação e separação de vários tipos

de alunos (com e sem distúrbios ou dificuldades) às novas concepções mais

centradas na compreensão dos processos (p. 49), na avaliação dos problemas

em contexto (p.116), na mobilidade, funcionalidade e modificabilidade do

desempenho do aluno (p.28 e seguintes, 71, 81, 117).

De salientar que as concepções de senso comum agora identificadas são uma

tentativa de decomposição e análise do ponto de vista pessoal expresso por cada sujeito.

Cada pequeno excerto, pode ser associado a uma concepção específica, mas não permite

a identificação da perspectiva conceptual de cada pessoa. Na prática, no dia-a-dia, estas

perspectivas e concepções surgem associadas ou aglutinadas. Nada impede que uma

mesma pessoa possa recorrer e utilizar diferentes concepções, mesmo para explicar uma

mesma situação. Tal como se observou no estudo anterior (Quadro 1.15.), um mesmo

problema ou situação de aprendizagem pode ser analisado em diferentes dimensões e

sob diferentes pontos de vista. Por exemplo, numa perspectiva de senso comum como

numa perspectiva científica, uma dificuldade de aprendizagem pode ser concebida como

20 Talvez a perspectiva comportamental seja de todas a menos referida e a mais contra-intuitiva.

Page 62: Estudo 2. Análise exploratória de concepções e crenças ... · Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens

II. MÉTODO: Estudo 2.

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

234

tendo na sua origem uma causa de natureza psiconeurológica21 (neste caso, como um

distúrbio de aprendizagem (Rebelo, Fonseca, Simões & Ferreira, 1995)) e considerar-se

que pode constituir, assim mesmo, uma oportunidade e um desafio pessoal, a que cada

aluno responde (ou pode ser ajudado a responder) com maior ou menor adaptação e

eficácia funcional22.

Ou seja, uma vez mais se reitera a noção de que estas concepções não são

exclusivas nem exaustivas. Podem ser referidas por uma mesma pessoa, simultânea ou

sucessivamente, sem que isso signifique contradição ou inconsistência. Antes uma

consciência sobre a complexidade da natureza e da origem das dificuldades de

aprendizagem. Além disso, outros estudos deverão ser posteriormente desenvolvidos

para uma confirmação e análise posterior das categorias agora identificadas e descritas.

Embora seja enorme, e quase surpreendente, a variedade de perspectivas aqui

observada, é possível que outras perspectivas e concepções possam ainda ser

consideradas no futuro.

21 O que numa perspectiva de senso comum, pode dizer-se que corresponde a uma concepção

pessoal de Dificuldade de Aprendizagem como Patologia, integrada numa Perspectiva Disfuncional. 22 Aspectos que correspondem a uma Perspectiva Funcional.