estÓrias africanas - texto completo.pdf

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Direção Benjamin Abdala Junior Samira Voussef Campedelli Preparação de texto José Roberto Miney Arte Coordenação e projeto gráfico/miolo Antonio do Amaral Rocha Arte·final René Etiene Ardanuy Joseval Souza Fernandes Capa Ary Normanha CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação Câmara Brasileira do Livro, SP 1 ! t f Sumário 1. Apresentação: uma antologia de africanos para brasileiros 5 As ignoradas 6 2. Três literaturas distintas 7 Velhos tempos: literatura tradicional 7 Outros tempos: literatura colonial 9 Tempos novos: em direção de uma literatura nacional U Entre os angolanos 12 Entre os cabo-verdianos 23 Entre os moçambicanos 28 1985 Todos os direitos reservados Editora Ática S.A. - Rua Barão de Iguape, 110 Tel.: (PABX) 278-9322 - Caixa Postal 8656 End. Telegráfico" Bomlivro" - São Paulo Santil1i, Maria Aparecida. S227e Estórias africanas : história e antologia / Maria Aparecida San- tilli. - São Paulo : Ática, 1985. (Sér.ie fundamentos) l. Ficção angolana (Português) 2. Ficção angolana (Português) - História e crítica 3. Ficção cabo-verdiana (Português) 4. Ficção cabo-verdiana (Português) - História e crítica 5. Ficção moçambicana (Português) 6. Ficção moçambicana (Português) - História e crítica 1. Título. Índices para catálogo sistemático: I. Ficção: Literatura angolana em português 869.3 2. Ficção: Literatura angolana em português : História e crítica 869.309 3. Ficção: Literatura cabo-verdiana em português 869.3 4. Ficção: Literatura cabo-verdiana em português : História e crítica 869.309 5. Ficção: Literatura moçambicana em português 869.3 6. Ficção: Literatura moçambicana em português : História e crítica KhQ.309 4. Estórias de Cabo Verde 1l2 31 Alfredo Troni - Nga Muturi 31 Castro Soromenho - "A morte da chota'_' 48 Agostinho Neto - Náusea 53 Antônio Jacinto - "Vôvô Bartolomeu" . 55 José Luandino Vieira - "O fato completo de Lucas Matesso" " 58 Antônio Cardoso - "O cipaio Mandombe'_' 69 Costa Andrade - "Um conto igual a muitos'_' 78 Arnaldo Santos - "A menina Vitória'_' 82 Uanhenga Xitu - "Mestre Tamoda'_' 87 Boaventura Cardoso - "Nostempo de miúdo" 103 Jofre Rocha - "Estória da confusão que entrou na vida do ajudante Venâncio João e da desgraça de seu cunhado Lucas Manuel 106 Gabriel Mariano - "O rapaz doente'_' 112 Baltasar Lopes - "A seca" 124 3. Estórias de Angola _ CDD-869.3 -869.30\1 85-0403

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Page 1: ESTÓRIAS AFRICANAS - TEXTO COMPLETO.pdf

DireçãoBenjamin Abdala Junior

Samira Voussef CampedelliPreparação de textoJosé Roberto Miney

ArteCoordenação e projeto gráfico/miolo

Antonio do Amaral RochaArte·final

René Etiene ArdanuyJoseval Souza Fernandes

CapaAry Normanha

CIP-Brasil. Catalogação-na-PublicaçãoCâmara Brasileira do Livro, SP

1

!t

f

Sumário1. Apresentação: uma antologia de africanos para

brasileiros 5

As ignoradas 6

2. Três literaturas distintas 7

Velhos tempos: literatura tradicional 7

Outros tempos: literatura colonial 9

Tempos novos: em direção de uma literatura nacional UEntre os angolanos 12

Entre os cabo-verdianos 23

Entre os moçambicanos 28

1985Todos os direitos reservados

Editora Ática S.A. - Rua Barão de Iguape, 110Tel.: (PABX) 278-9322 - Caixa Postal 8656

End. Telegráfico" Bomlivro" - São Paulo

Santil1i, Maria Aparecida.S227e Estórias africanas : história e antologia / Maria Aparecida San-

tilli. - São Paulo : Ática, 1985.(Sér.ie fundamentos)

l. Ficção angolana (Português) 2. Ficção angolana (Português)- História e crítica 3. Ficção cabo-verdiana (Português) 4. Ficçãocabo-verdiana (Português) - História e crítica 5. Ficção moçambicana(Português) 6. Ficção moçambicana (Português) - História e crítica1. Título.

Índices para catálogo sistemático:

I. Ficção: Literatura angolana em português 869.32. Ficção: Literatura angolana em português : História e crítica

869.3093. Ficção: Literatura cabo-verdiana em português 869.34. Ficção: Literatura cabo-verdiana em português : História e crítica

869.3095. Ficção: Literatura moçambicana em português 869.36. Ficção: Literatura moçambicana em português : História e crítica

KhQ.309

4. Estórias de Cabo Verde 1l2

31Alfredo Troni - Nga Muturi 31

Castro Soromenho - "A morte da chota'_' 48

Agostinho Neto - Náusea 53

Antônio Jacinto - "Vôvô Bartolomeu" . 55

José Luandino Vieira - "O fato completo de LucasMatesso" " 58

Antônio Cardoso - "O cipaio Mandombe'_' 69

Costa Andrade - "Um conto igual a muitos'_' 78

Arnaldo Santos - "A menina Vitória'_' 82

Uanhenga Xitu - "Mestre Tamoda'_' 87

Boaventura Cardoso - "Nostempo de miúdo" 103

Jofre Rocha - "Estória da confusão que entrou na vida doajudante Venâncio João e da desgraça de seu cunhadoLucas Manuel 106

Gabriel Mariano - "O rapaz doente'_' 112

Baltasar Lopes - "A seca" 124

3. Estórias de Angola _

CDD-869.3-869.30\185-0403

Page 2: ESTÓRIAS AFRICANAS - TEXTO COMPLETO.pdf

1Apresentação:

uma antologia deafricanos para brasileiros

Manuel Ferreira - "Puchinho" 129Orlanda Amarilis - "Cais-do-Sodré" 135

5. Estórias de Moçambique 143João Dias - "Godido" 143Luís Bernardo Honwana - "Nhinguitimo" 147Orlando Mendes - Portagem 161Carneiro Gonçalves - "MaJidza" 169

6. Cronologia histórico-literária 171Informação histórico-literária 176 Os livros têm seu destií1O.Como

tudo.Quando um llvro é concebido,

assim como um filho, fica nassombras de seu primeiro mistério,o mistério do que virá a ser. Ul-trapassado este, restará o outro,até o fim: o mistério de cada su-cessivo dia desconhecido de suaperegrinação pelo mundo.

Os livros dos escritores africa-nos modernos - cuidamos aquide angolanos, cabo-verdianos emoçambicanos, desde a geraçãode 1930 - já têm hoje seu tra-jeto inaugural descoberto. Todoo mundo acabou por conhecê-lo.

Cerados no espaço ou no tem-po da Africa colonial, quase sem-pre viveram sua primeira infân-cia como os filhos proibidos: àsescondidas, na marginalidade. Ogrosso deles inscreveu seu "gêne-sis" entre memórias do cárcere,do exílio, das guerras coloniais.Os primeiros passos foram difi-cultados. Pouco alcançaram. Atéos anos 60, uma ou outra edição,quando houve, sem os alardes e oalcance de praxe. Não fossem asantologias e muita escrita estaria

sem registro público, ou no aban-dono e esquecimento até 1975, oano primeiro de Angola, CaboVerde e Moçambique, entre os

.outros povos libertados.O destino das literaturas afri-

canas ficou, por isso, definitiva-mente ligado às antologias. Nes-sas duras décadas, e onde calha-ram, as antologias foram a viapossível para o trânsito e a reu-nião dos clãs literários da Africano penoso caminho de firmaremsua identidade e de definirem seulugar no mapa da literatura uni-versal.

Como tantas outras que a pre-cederam, quem sabe esta nova an-tologia de prosadores angolanos,cabo-verdianos e moçambicanos,cuidadosamente preparada paraos brasileiros, estará cumprindomais uma parte do vaticínio quecercou seu nascimento.

Que possa, então, abreviar ocaminho dessas literaturas, paracirculação entre todos nós, que,do lado de cá do Atlântico, pelasteias caprichosas da História, aca-bamos por ter "um pouco" (oumuito?) "de Africa por dentro".

Page 3: ESTÓRIAS AFRICANAS - TEXTO COMPLETO.pdf

2Três literaturas

distintas

As "ignoradas"

I,oi Manuel Ferreira, incansá-1'1'1 divulgador das literaturas afri-IIIIU/'\' de língua portuguesa, quem(/\' chamou de "literaturas ignora-d,H",

li verdade é que entre nós, pa-l('fl/CS tão próximos, os escritoresafricanos também não são menosdesconhecidos e esta antologia, aexemplo de suas antecessoras, tem11 missão de tornar-se uma opor-/unidade de fazê-los conhecidos,flOr um conjunto de textos que,da melhor maneira possível, osapresente, através de sua prosade ficção.

Não é projeto fácil de realizar.A s dificuldades são óbvias: quan-/al' ou quais obras seriam adequa-das a caracterizar essas literatu-ras, especificamente a literatura

angolana, a cabo-verdiana e amoçambicana? Quantas ou quaisas informações, no espaço dispu-tado de uma antologia, seriam su-ficientes para entender essas mes-mas literaturas no contexto histó-rico, cultural, ideológico de quesão parte? Qualquer decisão emtorno dessas questões traz insatis-fação, já que toda escolha, pordefinição, é redutiva. Em todocaso, os dados de ordem geral,ao informarem, anteciparão, emmenor ou maior parte, as razõesde ordem estética ou cultural, his-tórico-literária ou ideológica queorientaram a seleção dos autorese textos. Muitos outros que jáse notabilizaram ainda desta veznão chegarão aos leitores. Porfatalidade de seus limites, esta re-colha não os pôde abranger. Quenão falte, num futuro breve, suahora e vez.

Velhos tempos:literatura tradicional

Quando se quer pegar o fio daprosa de ficção angolana, cabo--verdiana ou moçambicana, ondeé que se vai buscar as pontas doseu princípio?

As nações de Angola, CaboVerde e Moçambique eram origi-nariamente ágrafas, não tinhamescrita, embora houvessem culti-vado uma literatura oral. Comorevelariam pesquisadores dessaliteratura, ela foi praticada emdiversas modalidades. Basta lem-brar que Héli Chatelain, missio-nário suíço que chegou a Angolaem 1885 e que se dedicou a reco-lher e estuMr a literatura oral deoutros povos africanos, chegou adefinir seis categorias nas quais aliteratura oral angolana se apre-sentava.

Propôs Chatelain que a primei-ra seria a das estórias de ficção,denominadas mi-soso em quim-bunda, estórias que pendem parao maravilhoso, o fantástico, o ex-cepcional. As fábulas aí tambémcaheriam.

A segunda classe seria a dasestórias verdadeiras ou tidas comotal. Chamadas maka, tanto eramde finalidade útil, para instruir eprevenir, como também lúdicapara lazer ou prazer. '

Outra classe seria a das ma--lunda (ou mi-sendu), nas quaisos feitos da nação ou tribo eramtransmitidos entre velhos e an-ciãos, de uma geração a outra,na forma de um segredo de Es-tado, só em partes revelado foradesse estrito círculo de compe-tência e autoridade.

Os provérbios, que freqüente-mente são a síntese de uma estó-ria, comporiam a quarta classe.Conhecidos como ji-sabu emquimbundo, representam a filoso-fia da nação ou tribo, no quetoca a seus costumes e tradições.

Mas há, ainda, a quinta e sextaclasses: a da poesia e música, queaparecem juntas, em canções cha-madas mi-embu, com vários esti-los, desde o épico até o dramá-tico; e a das adivinhas, ji-non-gongo, que tanto se destinavam aentreter quanto a incitar a inteli-gência e a memória.

Page 4: ESTÓRIAS AFRICANAS - TEXTO COMPLETO.pdf

M THnS 1.1nmATURAS DISTINTAS OUTROS TEMPOS: LITERATURA COLONIAL 9

/\'IIC/uanlo Chatelain publica,('/1/ /894, cinqüenta contos popu-larcs de Angola, o angolano Os-('(lI' Ribas edita, entre 1961 e./964, três volumes, respectiva-mente: 26 contos, mais quinhen-tos provérbios; a psicologia dosnomes, comidas, bebidas, des-déns, passatempos; finalmente,adivinhas, canções, súplicas, pran-tos por morte e instantâneos davida africana,

Esses dados são indício do ricopalrimônio oral que ainda faltarecuperar, trazendo outros ele-mentos para sua devida avaliação.Quanto a essa questão em CaboVerde, Manuel Ferreira, incansá-vel colecionador, historiador eensaísta no campo das literaturasafricanas de língua portuguesa,referiu-se à sua quantidade e va-riedade, em contraposição à "ma-gra" coleta que desse patrimôniose tem feito, citando a de ElsieClews Parsons, reunida em doisvolumes.

Publicada pela primeira vez nosEstados Unidos, em 1923, a cole-ção da investigadora norte-ameri-cana reúne 133 contos, em duasversões, crioulo e inglês. Os con-los foram recolhidos de imigrantesdo arquipélago de Cabo Verde,nos Estados Unidos, em 1916--1917. A colecionadora observouque a maior parte dos contos temorigem européia e muito prova-velmente narrados como em Por-tURal;outros, ainda que de prove-fll~ncla européia, aclimataram-seao contexto islenho ou africano;finalmente, há os que são inteira-m~nte africanos.

Além dos contos, Parsons jun-tou uma série de provérbios, dita-dos e adivinhas.

Ferreira faz ainda menção àsdezenas de contos da Guiné, reco-lhidos em português, dando rele-vo à contribuição do guineenseMarcelino Marques de Barros paraesse fim.

Da literatura oral moçambicananos dá conta Orlando Mendes,não sem antes lembrar que as re-colhas estiveram a cargo de estran-geiros que nem sempre a have-riam compreendido no tocante à"verdade histórica de que a tradi-ção era veículo e as realizaçõesdramáticas do povo".

Orlando Mendes considera aliteratura africana em suas múlti-plas manifestações, desde históriasde acontecimentos, que interpre-tariam conjunturas específicas ougenéricas, até lendas e fábulas,que testemunham as experiênciasancestrais do conhecimento feitoda prática vivida, "do domínioimperfeito da Natureza com quese estava em permanente luta edas relações mutáveis dos homenscom a Natureza e entre si". Comisso, Mendes assinala o caráterevolutivo dessa literatura, em opo-sição ao conceito equivocado deque ela se repetia e firmava-sesobre formas cristalizadas.

O Escritor refere-se, ainda, auma linha da oralidade constituí-da de contos, fábulas e lenrias,povoados de animais das flores-tas, dos elementos da Natureza,dos "espíritos e símbolos dosobrenatural, da sociedade, dosantepassados, das transformações

vividas e transmitidas". Dessa for-ma, a literatura oral, por si, de-moliria o pensamento hoje descar-tado de que as sociedades africa-nas seriam estáticas, não passíveisde evolução.

No elenco da literatura oral,Orlando Mendes inclui também osprovérbios e as adivinhas, a cujasfinalidades próprias acrescenta ascaracterísticas que tinham em co-mum: um repositório da "filosofiade experiências acumuladas e dia-léticas do quotidiano".

Em quaisquer modalidades, suaimportância no prazer e no conví-vio não excluiria a de suas fun-ções que, antes exercidas sobre asociedade e' estrutura de poderfeudais, deslocaram-se para ascorrespondentes do sistema deocupação colonial.

Se já não existia uma escritaentre esses africanos, o coloniza-dor português também não fezpor dar-lhes logo o código grafa-do de sua língua, da língua quelhes levava de empréstimo.

A história da colonização por-tuguesa revela que do século XVIao século XIX uma fração insig-nificante da população negra che-gara a ler e a escrever. E asestatísticas de Angola, Guiné-Bis-sau, Moçambique, São Tomé ePríncipe mostravam 95% de anal-fabetos entre a população nacio-nal ao tempo da guerra de liber-tação que há poucos anos lhesdeu autonomia política.

A produção literária restringiu--se, então, à literatura de viagens.Eram os próprios portugueses que,

não só na historiografia, nas crô-nicas, como na poésia, nos depoi-mentos científicos e religiosos da-vam seu testemunho ou impres-sões sobre a Africa "bárbara",exótica, a que os levara a expan-são ultramarina. Entre outros es-critores da expansão, citam-se:Gomes Eanes de Zurara, João deBarros, Diogo do Couto, FernãoMendes Pinto, Damião de Góis,Garcia de Orta, Duarte PachecoPereira.

Mas os ecos das descobertasalcançam também a poesia doCancioneiro e chegam até a deCamões, com passagem pelo tea-tro de Gil Vicente.

Outros tempos:literatura colonial

O desenvolvimento cultural nointerior das colônias africanas de-morou para receber os influxosde fora. Basta lembrar que osportugueses iniciaram a rota daAfrica no século XV, mas, apesarde medidas isoladas anteriorespor parte da Metrópole, na áreado ensino, só a partir do séculoXIX é que sua influência se fezsentir ponderavelmente.

Quanto a' Cabo Verde, o mes-mo Manuel Ferreira repassa a in-formação segundo a qual, entre1853 e 1892, fundaram-se naPraia desde 1858 treze associa-ções recreativas e culturais, comoa Sociedade de Gabinete de Lite-ratura (1860) e a AssociaçãoLiterária Grêmio Cabo-verdiano(1880).

Page 5: ESTÓRIAS AFRICANAS - TEXTO COMPLETO.pdf

10 TRI\S LITERATURAS DISTINTAS TEMPOS NOVOS: EM DIREÇÃO DE... 11

A,lwin(lla, ainda, que, por essaaltura, se cria a imprensa de An-gola e Moçambique e que aí se dáum notável surto de jornalismo.Aparecem os primeiros periódi-cos, como A Aurora (1856), ACivilização da África Portuguesa(1866), O Eco de Angola (1881),O Futuro de Angola (1882), OFarol do Povo (1883), O Serão(1886), A Civilização da ÁfricaPortuguesa (1886), O Arauto Afri-cano (1889), Ensaios Literários(1891), Luz e Crença (1902--1903). Colaborou para O Fa-rol do Povo e O Arauto AfricanoJoaquim Dias Cordeiro, que jáentão exortava os filhos do paísa desenvolverem a literatura nas-cente.

Muitos jornais surgem e, em-bora a maior parte tivesse curtaduração, até o final do século jáse enumeravam 46 deles, os quaiscontaram com a participação deeuropeus e de africanos.

A dois jornalistas da épocacabe especial menção: Pedro FélixMachado e Alfredo Troni, porquecultivaram também a prosa deficção. Pedro Machado escreveuum romance, Scenas d'África,cuja primeira edição deu-se emfolhetim na Gazeta de Portugal,sendo reeditado em 1882.

Alfredo Troni, que nasceu emCoimbra mas passou a maior par-te da sua vida em Luanda, ondemorreu em 1904, fundou e dirigiu() Jornal de Luanda (1878), Mu-kuarimi (1888?) e Os Concelhosde Leste (1891). Troni, que foracontemporâneo de Eça de Quei-rál' na Universidade de Coimbra,

além de advogado e "personagempolítica de pouco agrado do go-verno", em Luanda, foi deputadoeleito para representar Angolajunto às cortes portuguesas. Mar-cou presença na literatura comoprecursor da prosa moderna emAngola, com a noveleta Nga Mu-turi (Senhora viúva). Publicadaem folhetins na imprensa de Lis-boa em 1882, só reaparece em1973, ou seja, quase um séculodepois, edição que veio, então,possibilitar o acesso do grandepúblico leitor de hoje.

A noveleta de Troni faz a es-tória de uma menina, negra fula,que, de escrava (buxila) e con-cubina de comerciante branco,passa à condição Nga Muturi,com a morte deste. Depois dosprimeiros acontecimentos, "numasterras muito longe", onde se lo-caliza seu povo, os demais irãoocorrer na cidade de Luanda,para a qual é trazida.

Como num rito de passagem,ela se despede de seus hábitosclânicos, desfazendo-se do pen-teado e das vestes de sua longaviagem de entrega. E, assim, en-volve-se num processo progressi-vo de antropofagia cultural, namedida em que vai sendo cultural-mente tragada pelo homem-civili-zação branca que se atravessa noseu caminho. A estória assinalaos lances da assimilação que aca-bam por levar Nga Muturi a rezarem mbundu, a achar que a terrado rei de Portugal, "Muene Putu",é muito melhor que o mato, apagar seus impostos e viver dejuros ...

Troni explora a desadaptaçãoremanescente no procedimento dapersonagem transplantada, bemcomo os comportamentos coleti-vos onde a colisão de culturasdeixa espaços de desgaste ou ins-taura os do sincretismo. Assimé o rito das missas de "réquiem"mestiçado pelo toque festivo dascerimônias locais nessas ocasiões,assim como as "sembas" (umbiga-das), nas comemorações pelo ani-versário do óbito.

Nga Muturi tem sido conside-rada precursora pela sensibilidadevoltada já para os dados do mun-do africano "nessa época recua-da".

Em Cabo Verde tem-se notíciade uma obra em prosa, O escravo,de José Evaristo de Almeida, daqual haveria um único exemplarconhecido, em mãos de seus des-cendentes, em Cabo Verde. Anarrativa giraria em torno deacontecimentos ocorridos na pri-meira metade do século passado,na ilha de Santiago, com perso-nagens idealizadas ao gosto doRomantismo, movimento literárioainda em voga na época. Comoo nome indica, a estória versasobre o tema da escravidão, res-saltando-se o ponto de vista abo-licionista do narrador e sua pers-pectiva direcionada para a valo-rização do homem africano.

Recentemente localizaram-se ou-tros textos até então esquecidos,demonstrando-se a existência deuma prosa colonial cabo-verdianamais encorpada a ser conhecida.

Os dados referidos vêm mos-trar como na segunda metade do

século XIX, no bojo desse surtode jornalismo, lançaram-se os fun-damentos para as modernas lite-raturas africanas de língua portu-guesa.

Como em Angola e em CaboVerde, a imprensa moçambicanatambém se instala nesse período,mais precisamente em 1854, quan-do se inicia, então, o Boletim Ofi-cial. Em 1869 surge o primeiroperiódico moçambicano, O Pro-gresso, e despontam páginas ouseções literárias e de artes na im-prensa. Precursores de periodici-dade semanal foram O Africano(1877), O Vigilante (1882), Cla-mor Africano (1892).

Tempos novos:em direção de umaliteratura nacional

A virada do século já é mar-cada pelos movimentos da "Ne-gritude" e as questões africanasalcançam o estágio de polêmicaem foros internacionais.

Em 1905, no Manifesto saídodo movimento de Niágara, procla-ma-se a "igualdade absoluta entretodos os cidadãos brancos e ne-gros". Entre suas ressonâncias,surge, em 1910, a NACP (As-sociação Nacional para o Progres-so das Pessoas de Cor), que deubase ao "Black Renaissance", con-gregando intelectuais' e políticosnegros, que se constituíram numapujante geração de lutadores emdefesa dos direitos do homem dtcor.

Page 6: ESTÓRIAS AFRICANAS - TEXTO COMPLETO.pdf

12 TR~S LITERATURAS DISTINTAS

Nessa altura, a revista TheCrisis propõe-se a despertar aconsciência para "o grande pro-blema do século - a questão dacor".

Todo o projeto, que se deno-minou "Pan-africanismo", não seconfinava ao âmbito dos ameri-canos. Estendia-se às reivindica-ções dos negros onde quer quefosse. Seus reflexos chegam aPortugal, onde se funda, em 1912,a "Junta de Defesa dos Direitosde África", que continua maistarde na Liga Africana.

Em 1919 realiza-se o I Con-gresso do "Pan-africanismo", emParis. É quando se dá a Confe-rência da Paz, ocasião oportunapara se reivindicar a decisão dodestino da África para os africa-nos.

Na literatura, ao projeto huma-nista-universalista do "Pan-africa-nismo" correspondeu o da "Afri-can Personality", na busca de de-terminar uma identidade coletivado africano, vítima da dispersãopelo mundo. Obras dessa linhade afirmação da personalidadenegra começam a aparecer, comoo romance Batouala (1921), domartiniquenho René Maron, fun-cionário da administração fran-cesa no hoje império Centro-afri-cano, onde a alma negra se des-vela. Divulga-se a música negra- o jazz, os blues espirituaIs -e os escritores negros norte-ame-ricanos chamam a atenção geralpara a causa que defendem.

Na década de 30 o movimentodll ItNegritude" - de que Ba-tuuala fora um marco - organi-

za-se em Paris, em torno da re-vista estudantil Légitime Défensee, em 1934, ao redor de outra,L'Étudiant Nair, editada por AiméCesaire, Léopold Sédar Senghore Léon Damas.

Mais uma revista, PrésenceAfricaine (1947-1968), e a Antho-logie de La Nouvelle Poésie Negreet Malgache (1948), organizadapor Senghor e prefaciada por Sar-tre, com toda sua polêmica, e es-ses movimentos - do "Pan-afri-canismo" e da "Negritude" -logravam carrear consideráveisproveitos à causa africana.

Entre os angolanos

Embora no século passado co-meçassem a surgir condições paraa criação das modernas literaturasnacionais, os resultados pouco ul-trapassaram o aparecimento depublicações esparsas em jornais erevistas.

Daí a razão da importância his-tórico-literária que teve para An-gola a obra de autoria de Antôniode Assis Júnior, O segredo damorta, romance de costumes an-golanos, publicada em 1929 nosfolhetins do jornal A Vanguarda,de Luanda, e reeditada em livro,em 1935, pela tipografia A Lusi-tana, também em Luanda.

Esse romance tornou-se ummarco notável no encaminhamen-to da literatura angolana para suaidentidade nacional.

Escrito, então, no período quevai de 1910 a 1940, de "quasenão-literatura" em Angola, como

i,

diz Henrique Guerra no prefácioda última edição, O segredo damorta ocupa todo um vazio lite-rário, como ponte entre duas ge-rações de escritores preocupadoscom a revitalização angolana, duasgerações que se representavam an-teriormente por Cordeiro da Matae posteriormente por Castro So-romenho.

Segundo as palavras da "Adver-tência", do próprio Assis Júnior,a obra seria oferecida à leitura detodos aqueles "pretos e brancos"que se "interessam pelo conheci-mento das coisas da terra. " Avida do angolense que a civiliza-ção totalmente não obliterou -aquela civilização que se lhe im-pôs mais por sugestão e medo doque por persuasão e raciocínio -,vivendo ao seu modo e educan-do-se consoante os recursos aoseu alcance ... "

Assis Júnior cria, assim, umaatmosfera de tensa expectativaantes de relatar os fatos, aliciandoo leitor como se fossem verídicose como se o Escritor não tivesseresistido a revelá-los, porque cons-tituiriam "um forte apoio para aformação da história das coisas,ainda mal conhecidas, e das pes-soas que, com poder e mereci-mento, nasceram, passaram e vi-veram" em sua terra.

A crítica enfatizou, nesse livro,sua "forte angolanidade". Defato, essa angolanidade mostra-selogo na concepção do romance.Alguns ou vários mistérios fazemo tecido narrativo. Para desven-dar o maior deles, o segredo damorta, há que decifrar outros(entrelaçados ou subsidiários) até

ENTRE OS ANGOLANOS 13

desemaranhar-se o principal. Tem--se, assim, uma reminiscência dogosto pelas adivinhas a que sereferem os conhecedores dos há-bitos populares de tradição ango-lana. Na pródiga imaginação doAutor, elas permitem criar situa-ções engenhosas, em que cadaenigma funciona como uma espé-cie de adivinha para movimentaruma microestória no conjunto damacroestória. Surpreendentemen-te, o mistério, cifrado num códigosimbólico, começa a rarefazer-sepor tradução para outro códigomais permeável, menos vago. Éo caso dos sonhos, que irão pro-liferar como formas cifradas deoutros tantos mistérios a coloca-rem-se e desvendarem-se progres-sivamente. Dessa forma, as tradu-ções para diferentes códigos nasmicro estórias promovem uma rea-firmação de mensagens que se ilu-minam reciprocamente, deixando,em cada tradução, um saldo reve-lador, de resposta a algum "porquê?", em função do qual as mi-cro e macroestórias se organizam.

As incógnitas das estórias va-lem, pois, como adivinhas que asimpulsionam a abrir alternativaspara um desfecho. A moral quedelas procede vai ter respaldo nosprovérbios. São tantos que, jun-tos, fazem um pano de amostrasdo adagiário local. E, se as adi-vinhas apelam para o lúdico, parao jogo das descobertas, os pro-vérbios solicitam a reflexão, umaavaliação, uma dedução.

Na rede da estória, tecida peloimpulso dos enigmas e sustentadanos pilares ideológicos dos pro-vérbios, a mística e a História se

Page 7: ESTÓRIAS AFRICANAS - TEXTO COMPLETO.pdf

14 TRÊS LITERATURAS DISTINTAS

conjugam para que o romancetotalize um painel. Aí se recuperaa vida colonial ao tempo do flo-rescimento de uma faixa de afri-canos assimilados que constitui-riam, pelos fins do século XIX,uma pequena burguesia ao ladoda burguesia compradora ou in-termediária, localizadas sobretudonas povoações ao longo do rioKuanza. Por aí se dera a pene-tração e colonização portuguesas.

Nesse romance de Assis Júnior,ditos, diálogos ou manifestaçõesespontâneas das personagens jáaparecem em quimbundo. A lín-gua local passa, pois, a ser maisuma senha da identidade nacionalque a obra assinala.

Mas outro escritor apareceriapara fazer a ponte de acesso àmoderna prosa de ficção angola-na. Trata-se de Fernando M on-teiro de Castro Soromenho (1910--1968). Natural de Moçambique,Castro Soromenho fez-se angola-no de vivência. Filho de um altofuncionário da administração co-lonial, transfere-se para Angola,onde mais tarde, em vez de as-pirar a um posto de localizaçãoprivilegiada, opta por instalar-sena Lunda, a nordeste de Angola.Aí trabalhou como funcionário,mas alternava essa tarefa com aperegrinação pelas aldeias negras,nas quais pôde observar costumes,recolher informações. Nesse tratocom os negros que devia recen-sear, entendeu a situação que osangustiava e não tardou que suasimpatia e adesão fosse por eles,então miseráveis e oprimidos, cujacausa não mais abandonou.

Os lundas de quem Soromenhotratou são vistos até a crise queos abalaria, já mal com os deuses,enquanto outra tribo, a dos quio-cos, chegava à supremacia sobreeles, como se vê em A morte dachota.

Dessa convivência e aprendiza-do no sertão angolano, surgem asprimeiras narrações de Sorome-nho, Lendas negras, Nhári; o dra-ma da gente negra, Rajada eoutras histórias e Calenga.

Aos contos e novelas seguem-seos romances, Noite de angústia,Homens sem caminho, Terra mor-ta, Viragem, A chaga. Quem ospercorre atravessa uma terra emtranse, desde a tensão interna doprimeiro, ainda entre lundas. Tra-ta-se de um crime de morte porfeitiçaria e conseqüente punição,que vão dar a medida do rigordos códigos de bravura e honra,de coragem e lealdade, pelos quaiseles mantiveram, outrora, suasforças de coesão.

No segundo romance, a deca-dência dos lundas se acentua emseus confrontos com os quiocos,com o saldo negativo dos temorespelas ameaças que então os cer-cam.

Já em Terra morta se faz aimagem da Angola sujeita ao pro-grama chamado "indigenato", con-vertendo o homem angolano demembro de uma comunidade en-tendida como "primitiva" à con-dição de assimilado pela culturado colonizador, proposta como"civilizada" .

Assiste-se, assim, a um proje-to visando destribalizar, levar o

africano a perder seu sistema deorganização com o auxílio dospróprios angolanos que fazem ojogo do colonizador, atuando co-mo cipaios e capitas.

A força agônica das tribos, jáminadas por dentro e por fora, sereduz à luta isolada do negro pelaterra, in extremis: em seu redutofinal, o último soba, Xá-Macuari,suicida-se para escapar à caçadados brancos, e seus poucos fiéisliderados o sepultam, incendeiamas palhoças da aldeia, para depoispassarem a vau o rio Luita e se-guirem o destiná de nômades.

A partir de então, o conflitoentre brancos e negros, coloniza-dores e colonizados de seus doisúltimos romances aprofunda-se nasondagem dos sofrimentos impos-tos ao povo angolano, e, com Achaga, na luxúria dos brancos, dequem as negras e as mulatas sãovítimas indefesas.

Ao longo da obra de Sorome-nho depara-se, pois, com a ima-gem de inocência do mundo afri-cano que se vai desfigurando, noquadro de uma experiência de ca-tiveiro, como um inferno existen-cial do homem negro.

Por volta dos anos 40 os escri-tores africanos de língua portu-guesa começam a se organizar àvolta de canais de divulgação, es-pecialmente as revistas.

Em Angola, com o impulso do"Movimento dos Jovens Intelec-tuais de Angola" e com a ban-deira de "Vamos Descobrir An-gola" surge a Antologia dos novospoetas de Angola (1950).

ENTRE OS ANGOLANOS 15

À Antologia se segue a revistaMensagem (1951-1952), onde co-laboraram escritores que se torna-ram grandes nomes da literaturaangolana: Agostinho Neto, AldaLara, Antero Abreu, Antônio Car-doso, Antônio Jacinto, Mário An-tônio, Mário de Andrade, ÓscarRibas, Viriato da Cruz e até mo-çambicanos, como o poeta JoséCraveirinha, além de portuguesesradicados em Angola. Os objeti-vos da revista centravam-se nabusca da redefinição e valorizaçãodos dados básicos de caracteriza-ção nacional. Os escritores pro-punham-se à alfabetização e me-lhoria das condições culturais dooperário, a diversificadas ativida-des no setor da cultura nacional.

Cultura (lI) (1957-1961) é ou-tra revista a juntar os escritores,alguns já militantes em Mensagem.Em Cultura (lI) levantava-se aquestão cultural em suas vincula-ções com os problemas sócio-eco-nômicos de Angola, de forma quese considerava a ação cultural"defeituosa" enquanto tais proble-mas não se resolvessem. Aí seagruparam Agostinho Neto, An-tero Abreu, Mário Lopes Guerra(Benúdia), Carlos Ervedosa, CostaAndrade (Angolano Andrade ouAfricano Paiva), Luandino Vieira,Óscar Ribas.

Outras revistas circularam, co-mo a Mensagem (1949), da Casados Estudantes do Império, emLisboa, por onde passaram gran-des escritores africanos que parti-cipavam dos movimentos de liber-tação das colônias portuguesas daÁfrica.

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16 TRÊS LITERATURAS DISTINTAS

As idéias da "Negritude", trans-postas nas vozes de Senghor eCésaire, dos escritores negrosnorte-americanos Richard Wright,Countee Cullen e LangstonHughes, do cubano Nicolas Guil-lén, então ganham terreno e im-pressionam os da África Portu-guesa, envolvendo nomes como odo angolano Mário de Andradee do são-tomense Francisco JoséTenreiro.

A partir dos anos 60 vêm ostempos de mais aguda repressão,e, além dos escritores já citados,ligam-se a essa geração: ErnestoLara Filho, Henrique Guerra (An-diki), Arthur Maurício Pestanados Santos (Pepetela), Jofre Ro-cha, Jorge Macedo, Arnaldo San-tos, Manuel dos Santos Lima,Agostinho Mendes de Carvalho(Uanhenga Xitu), Manuel Paca-vira, Carlos Gouveia, Bobela Mot-ta, Manuel Rui.

Quanto aos prosadores destaAntologia, Agostinho Neto foi so-bretudo um poeta. Com Náusea,conto publicado em 1952 na re-vista Mensagem, Neto faz suaincursão na prosa, com rápidaspinceladas de um retrato ango-lano, e, como em seus poemas, asfiguras humanas preenchem espa-ços de admiração e ternura. Alémdo anônimo individual ou coleti-vo, seus versos povoam-se de ima-gens fraternas, como as de famíliaou do "Mussunda amigo".

Esse exercício na prosa se pro:-cessa com o tema do mar, o marrevisitado. A repetição de umaexperiência - no caso a experiên-cia vivida com o mar - implícita

ou explicitamente remete a umacomparação. É o que Neto vaiexplorar. No confronto do marali/agora, com o mar além/pre-térito, a memória estabelece asrelações conseqüentes do espaço--tempo. O contraste mar versusinterior resulta em paralelos so-ciais: de um lado, a miserabilidadeconhecida dos musseques, semprerecuados; de outro, a prosperida-de dos lugares amenos, do litoral,que os turistas da vida acabampor ocupar. Nesses paralelos so-ciais cruzam-se também os parale-los do tempo. O presente do mar,do mar que se atualiza, remete aopassado de onde emergem as man-chas da História, da diáspora eescravidão africanas, que se pro-jetam no ali e agora da revisita-ção desse nhô João simbólico,por isso mesmo irremediavelmentecomprometida.

Em sua esporádica passagempela prosa, Neto dá-nos uma obracom um enredo sem complicações.Chamado conto, mas quase crô-nica, o texto manifesta menos aintenção de relatar um aconteci-mento do que a necessidade deexteriorizar um estado de ânimo,uma disposição íntima da perso-nagem, tal como se daria na poe-sia, o que confirma, assim, a vo-cação de poeta.

Nas páginas que precedem oprefácio à segunda edição de Náu-sea, outro escritor, também poeta,Antônio Jacinto, refere-se à cor-respondência mantida com Neto:Jacinto remetera-lhe uma cópiade seu conto, Vôvô Bartolomeu- que então se denominava Sorte

de preto - e Neto, em troca, en-viou-lhe uma cópia de Náusea.

Como Neto, Antônio Jacinto(Orlando Távora) faz com VôvôBartolomeu um relato linear, cujoatrativo está na própria singelezade sua concepção, desde as per-sonagens até o conflito em tornodas questões primárias, mas, porisso mesmo, básicas à sobrevivên-Cia.

Sobre o Bartolomeu dessa es-tória, assim como sobre outrosvavôs e vavós tão presentes naliteratura de Angola, recaem a es-tima e o apreço 'das novas gera-ções. O respeito aos velhos, típicoda tradição africana, não impede,entretanto, que no conto de An-tônio Jacinto se delegue à juven-tude o papel de rompimento comum estado de coisas ou de espíritoque tem de ser superado em favorde novas perspectivas de futuro.É a ideologia da resistência quejá se insinua. Ainda que aí setrate de resistência diante das for-ças brutas da Natureza, é precisosobrepô-la à interpretação fatalistada sorte do negro e aos sentimen-tos de inferioridade que compro-metem sua autoconfiança e deli-beração.

E, ao abordar a literatura daresistência, outro prosador tomavulto: é José Mateus Vieira daGraça, que se fez conhecido como pseudônimo de José LuandinoVieira. Sua já extensa produçãoliterária conta com edições tantoem português como em traduçõesnas línguas de vários países.

O tempo histórico recobertopela ficção de Luandino é o da

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guerra de libertação, sobretudo odos momentos da conspiração an-ticolonialista, preâmbulo da lutaarmada que a partir daí se desen-cadearia. São horas de terrores,em que as etapas da resistência seorganizam e nas quais o êxito oumalogro de cada passo dado emsegredo torna-se uma questão devida ou morte; são horas de temo-res, quando a desconfiança gene-ricamente instalada lança confu-sões e dúvidas entre todos; sãohoras de tremores, quando a dela-ção precipita os exílios e torturasde que é exemplar A vida verda-deira de Domingos Xavier e "Ofato completo de Lucas Matesso".

O espaço das estórias de Luan-dino é, por excelência, o dos mus-seques, bairros proletários fora doperímetro urbanizado da cidade.Sem as condições mínimas de sa-lubridade ou conforto, tornam-se,portanto, indicadores da faixa so-cial mais discriminada ou desfa-vorecida, de que é muito típicasua gente, retratada desde os pri-meiros contos, os de A cidade ea infância e de Luuanda, até osúltimos, de Macandumba e deLaurentino Dona Antónia de Sou-za Neto e eu, assim como nas nar-rativas Nós, os do Mukulusu, eJoão Vêncio e seus amores.

Esse é um espaço de amploespectro para a aprendizagem davida - a infância que se recons-titui do nevoeiro da memória epor isso mesmo se traduz meta-foricamente no texto mais ambí-guo, mais opaco, de LuandinoVieira, No antigamente na vida

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18 TRÊS LITERATURAS DISTINTAS

Suas personagens são pessoascomuns do povo. É na prática doquotidiano que elas crescem e sedestacam pela dura conquista dacapacidade de relutância, de opo-sição, de recusa ao sistema domi-nante, razão pela qual podem sersacrificadas.

Luandino dá a imagem da so-ciedade angolana em processo desimbiose ou de influências, ondetraços de diferentes culturas seatritam e disputam primazias. Umdesses traços, a fala, isto é, oquimbundo ou o português diale-tizado, por oposição à língua, oportuguês de Portugal, funcionatambém como um código de iden-tificação no conjunto de fatoresque passam a caracterizar a ango-lanidade.

Pelos denominadores comuns,desde a fala, seus angolanos sereconhecem como tal e estabele-cem entre si os vínculos, fortale-cidos no sentimento de solidarie-dade que oferece sustentação àresistência coletiva, organizada,e viabiliza sua libertação.

A obra de Luandino Vieiraocupa um lugar proeminente namoderna literatura de Angola, pe-las qualidades estéticas, pela im-portância histórico-literária. Comoescrita transgressiva, de rupturatanto com o modelo ideológicoquanto com o padrão lingüísticodo português, é, portanto, umnovo marco na arrancada em di-reção de uma literatura nacional.

Da mesma forma que Agosti-nho Neto, Antônio Jacinto e JoséLuandino Vieira, outro escritorteria sua experiência literária vivi-

da na pnsao ou no exílio. É opoeta Antônio Cardoso, com umacoleção de contos marcados comoos de Luandino pelo espaço co-mum, Baixa e musseques, ondetranscorrem suas estórias.

Para Antônio Cardoso, as va-riantes de situação de vida nocontexto comum dos bairros mise-ráveis são a via de abertura paraos momentos de iluminação daconsciência de sua gente. Fazemver claro o estado de limitaçõesa que está sujeita, desde a explo-ração de sua força de trabalhoaté as demais discriminações queraos homens, quer às mulheres, emseus específicos e típicos proble-mas sociais.

"O cipaio Mandombe" é umaamostra significativa da obra deCardoso, onde se explora uma dasformas de aliciamento para o ser-viço de manutenção do sistemacolonial. O cipaio, figura queaparece com freqüência na litera-tura angolana, como representa-ção de uma das mais embaraçosasfunções, é o angolano recrutadopara servir no quadro policial por-tuguês. Desempenha, assim, o pa-pel de instrumento de ação contraos seus próprios patrícios, nosmais dramáticos constrangimentoscriados pelos esquemas de repres-são.

Nesse conto de Cardoso recons-tituem-se os passos da "carreira"do cipaio, a partir do ritual vio-lento da iniciação, quando é des-pojado do que o caracteriza emsua angolanidade para assumir, dooutro lado, a nova identidade quelhe é outorgada.

Mandombe passa pelos testesque provem sua "fidelidade" nocumprimento da nova missão. Masa estória tenta reabilitar sua ima-gem como a daqueles que, nessaconjuntura e não obstante as apa-rências, representam também, dealguma forma, a resistência ango-lana. É pela solidariedade que, aduras penas, se preserva entre oscidadãos nacionais, jogados assimem posições antagônicas.

Como Antônio Cardoso, outropoeta, Costa Andrade, fará a lite-ratura das injustiças sociais, cen-tradas nas específicas circunstân-cias da época colonial.

O contrato, isto é, o trabalhoforçado é o grande tema de seulivro de contos, por isso mesmodeclaradamente Estórias de con-tratados. Dos anos 1958 e 59,quando a luta armada pela liber-tação não estava ainda declarada,as estórias de Costa A ndrade mos-tram as alterações produzidas noPlanalto Central de Angola pelapenetração portuguesa, como foi,sobretudo, a desagregação das co-munidades angolanas, que perde-ram sua estrutura natural sobpressões de vária ordem, ao longodo tempo. Quando não por isso,a degringolada dessas comunida-des resultaria das migrações, ouda imigração, quer compulsória,quer deliberada, por decorrênciados impactos ecológicos e sociais.

"Um conto igual a muitos" éuma medida da transformação dafisionomia dos grupos interioranos.O contratado de São Tomé aí estácomo protótipo das populaçõesassim dispersadas que, por fim, de

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experiência em experiência vivida,esboçam uma consciência da con-dição a que foram reduzidas euma compreensão, se tanto, aindaestreita do sistema que as absor-veu.

Costa Andrade reproduz essepercurso da sociedade angolananos descaminhos da própria lín-gua, pela expressão popular, ondea infração às normas gramaticaisrevela a apropriação em processodo português.

Dois outros escritores, ArnaldoSantos e Agostinho. Mendes deCarvalho (Uanhenga Xitu), po-dem ilustrar diferentes formas depressão tendentes a descaracteri-zar, por um lado, a cultura ango-lana e a impedir, por outro lado,a descaracterização da culturaportuguesa. Tanto um escritorquanto o outro souberam, cadaqual a seu modo, mostrar não sóa defesa do angolano, mas tam-bém a do português, na preserva-ção de seus respectivos patrimô-nios culturais. É o que dá à luta,assim bifronte, o tom de choquecultural.

Nas Prosas que escreveu o poe-ta Arnaldo Santos, os conflitos deraça e de classe da colonizaçãoenraízam-se também no espaçofísico dos musseques, ou eventual-mente outros, enquanto tecido so-ciocultural representativo da An-gola da maioria, na aventura davida diária em que se peculiariza.

Entre seus contos o centro deinteresses freqüentemente oscilade retratos a casos humanos, ouo inverso, de modo que se tem umconjunto significativo de tipos, de

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20 TRÊS LITERATURAS DISTINTAS

homens e mulheres de uma socie-dade crioulizada.

"A menina Vitória" é bem ilus-trativo de um reconhecimentoafricano que se opera nas Prosas,então pela perspectiva crítica comque Arnaldo Santos apreende oprojeto didático da professora, damenina Vitória. É o projeto queincorpora o objetivo metropolita-no de preservação das normas dalinguagem, leutralizando a ango-lanidade de pronúncia ou da sin-taxe do aluno, ou excluindo do"modelo" o universo angolano,cuja criatividade fica fadada aograu zero de identificação pessoale nacional.

Entre os contos de UanhengaXitu, ao lado dos fortemente mar-cados pela angolanidade dos cos-tumes, das crenças, das tradiçõesretidas, como Vozes na sanzala ouBola com feitiço, há lugar tambémpara aquele que, no processo deaculturação, dá ênfase aos traçosmal incorporados da cultura es-trangeira, aos traços que o auto-didatismo não consegue assimilar.Assim acontece em "Mestre Ta-moda", onde o jogo desproposi-tado com as palavras torna-se opróprio motivo da estória. Nessecaso, o cômico da situação esbar-ra no trágico ou no grotesco, po-dendo provocar tanto o riso, pelononsense do vocabulário distor-cido, quanto a comoção, pela in-sólita figura de Tamoda, o "eti-mologista", "dicionarista", descidona sanzala.

Nessa caricatura da indigestãocultural, Uanhenga Xitu ganhaespaço para as falas locais: proli-

fera o quimbundo, transtorna-seo português, não obstante as for-ças em contrário.

Essa espontaneidade e vivaci-dade da linguagem popular defi-nem, por excelência, a qualidadede escrita de Agostinho Mendesde Carvalho.

Como acontecerá em outraobra, Manana, a perspectiva crí-tica em que vê o assimilado acabapor deixar clara a crise que podetambém surgir da não-resistência,da entrega tácita ou até prazerosado angolano àquilo que degenerao caráter nacional.

No encalço de uma literaturaprópria estão também prosadoresmais recentes, como BoaventuraCardoso e fofre Rocha.

Boaventura Cardoso é prosadorque se posiciona no treinamentode uma redação nacional. Isso ficaclaramente expresso em seu se-gundo livro de contos, O fogo dafala, pelo subtítulo "Exercícios deestilo". O fogo da fala não é tí-tulo de nenhuma das estórias queaí se relatam, mas, no conjunto,título e subtítulo caracterizam aescrita como processo, o textocomo produção verbal.

Desse visível trabalho da maté-ria da ficção com os utensílios dalinguagem resultam já seus primei-ros contos, reunidos em Dizangadia muenhu (A lagoa da vida).f á nesses textos ficam acentuadasas características do uso lingüís-tico, a qualificação angolana dequem fala. Qualquer leitor delíngua portuguesa, não-angolano,como nos outros casos menciona-dos desde Luandino Vieira, sen-

tirá um forte efeito de estranha-mento, o de estar em convivênciacom falantes que não usam o mes-mo português.

Esses usuários da língua, quedela vão fazendo o seu português,são preferencialmente os angola-nos dos últimos tempos coloniais.A atribulação, o infortúnio, oscontratempos parecem estar sem-pre à espera deles, como na fá-bula do lobo e do cordeiro. Porisso mesmo, vivem os estados tí-picos do clima repressivo, deprontidão, de sobreaviso, comoque de pré-mobilização para aluta organizada que os libertaria.

É o clima que se sustenta naprepotência, no menosprezo dadignidade humana, resultante dasdiscriminações sociais, na corres-pondência ou não entre ideologiae ação anticolonialista, na proble-matização do trabalho e até nosdesníveis de compreensão da fasepós-libertadora ou dos espaços deexercício da liberdade.

"Nostempo de miúdo", de Di-zanga dia muenhu, é um contoilustrativo dos grandes motivos edo processo do Escritor.

As crianças, cuja presença émarcante em sua ficção, respiramesses ares pesados que, no limite,invadem o espaço delas e as pri-vam da descontração natural dasua idade.

Por outras palavras, Boaventu-ra, como a maior parte dos pro-sadores angolanos contemporâ-neos, assinala a participação dacriança no processo da libertação,sua grande escola, onde a peda-gogia da luta tem como lição obri-

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gatória a consciência do perigo,que a cada dia é preciso reavivar.

A infração às leis de "seguran-ça" que a criança comete na estó-ria corresponde à infração que aescrita comete contra as leis de"segurança" da norma culta por-tuguesa.

A estória de Boaventura relataa partida de futebol interrompidapela polícia. Como os meninosna estória, o narrador no discursoescapa da repressão, driblando to-dos os códigos de garantia e esta-bilidade que reprimem seu livrejogo que visa à autonomia na-cional.

fofre Rocha também recuperapelas memórias de infância os cos-tumes trai'icionais remanescentesnos bairros pobres de periferia.Em suas Estórias do musseque, acriança contracena com os vavôse vavós. Em visível simpatia poressas faixas etárias, o Escritor fo-caliza as desventuras das famílias,freqüentemente desfalcadas querpelo êxodo de seus membros vá-lidos em busca de sobrevivência,em fuga ou na prisão devido àslutas com o colonizador, quer poroutras decorrências próprias dadiscriminação e miséria.

Como correspondente interiora;'no do musseque, a sanzala tam-bém aparece enquanto cenário dadesorganização dos grupos étni-cos, pela prepotência sobre ossobas, o desafio à sua liderança,pelo trabalho obrigatório, estranhoaos esquemas de preservação doequilíbrio em suas sociedades ena Natureza.

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22 TRÊS LITERATURAS DISTINTAS

"A estória da confusão queentrou na vida do ajudante Ve-nâncio João e a desgraça do seucunhado Lucas Manuel" mostra oagravamento do conflito entreportugueses e angolanos. São jáos tempos de recrudescimento darepressão, em conseqüência dosfoc~s de l~ta armada pela liber-taçao da Africa. Os preconceitosen:ão se somam e se reforçam.Nao serão mais os de raça ou cul-t~~a apenas, mas os de ordem po-lztlca e social que aceleram osdesastres não só das famílias con-sangüíneas, mas da grande famíliados musseques que elas consti-tuem.

No conto de Jofre Rocha jánenhuma neutralidade se faz viá-vel, porque o contexto é de radi-c~:ização de posições. Qualquerdl.alogo ·entre colonizador e colo-n~z~do, mesmo aleatório a prin-CIpIO,vai-se tornando impossívelcom a sobrecarga de guerra decla-rada em que se comprometem ir-reversivelmente.

E, como nos outros contos alinguagem também constitui ~mdivisor de águas, na medida emque põe do mesmo lado as per-sonagens angolanas e o seu cria-dor.

Os dias de alta tensão entrecolonizador e colonizados são osque vivem também os heróis doescritor Arthur Maurício Pestanados Santos, conhecido por seupseudônimo, Pepetela.

Embora tenha passado pela vi-vência de compor textos de tea-tro, com A corda e A revolta dacasa dos ídolos, de escrever en-

saio poético, com Muana PuóPepetela tem-se dedicado mais dprosa de ficção.

!"-s.ave?turas de Ngunga, seupnmelro lzvro publicado, editou-seem plena luta armada, na FrenteLeste de Angola, quando apare-ceram trezentos exemplares mi-meografados.

Com declarado caráter didáticoa estória do menino Ngunga mos~tra o processo de escolarização dopequeno herói, processo em queaprender a ler e escrever integra--se com aprender a defender arevolução.

A r:roposta da alfabetizaçãocomo Instrumento de lutq dá umsentido norteador às aventuras do"pioneiro", palavra sugestiva comqu.e os angolanos designam ascnanças.

Na escola, cujo espaço é o daGuerra de Independência, o co-nhecimento é o meio e a liberta-ção, .0 fim. Um homem "só podeser lzvre se deixar de ser ignoran-te", diz o professor.

Como o objetivo da luta é cole-tivo, Ngunga aprende a pautar seuraciocínio sobre o plural, ou seja,na e pela sociedade de que fazparte. Assim, vai chegando àconsciência mais clara das contra-dições, dos concertos e desacertosdesse .mundo em que vive, atravésdos nscos de vida e de morte deque estão cheios os seus caminhos.

Os dois romances seguintes nãoabandonariam essa perspectiva di-dática. Em Mayoill])e, Pepeteladesenvolve técnicas de ficção' queacentuam a literariedade de seunovo texto, revelam a maturidade

artística do Escritor, mas que nãodeixam de resultar num painel,também didático, das tensões in-ternas nos quadros da luta de li-bertação, quando da guerrilha nasmatas de Mayombe.

As várias vozes que se alter-nam na narrativa, questionando--se umas às outras, convertem otexto num corajoso debate, cujoprincípio está na perspectiva deautocrítica com que a realidadeangolana é, então, apreendida.

No último romance, Yaka, re-centemente publicado, Pepetelaretoma uma linha tradicional deromances, os romances de família.

Vale-se dela para fundir na es-tória de consecutivas gerações dosSemedo, a partir do primeiro emi-grado para a "colônia", um seg-mento da História de Angola, quevai de fins do século passado aosrecentes anos 60, período deci-sivo, portanto, na definição dopresente nacional.

Dessa forma, chega para o lei-tor um grande contingente de in-formações que o ficcionista habil-mente organiza num amplo cená-rio da vida angolana.

Como a máscara de MuanaPuó, a enigmática estátua Yakadesse romance só no último mo-mento revela o segredo que Ale-xandre Semedo sempre dela pro-curara tirar. Nesse momento, to-da a simbologia da odisséia ango-lana se decifra, o final da sagaépica aparece claro através damorte que simboliza a última ge-ração de colonizadores, o princí-pio de Angola livre.

ENTRE OS CABO-VERDIANOS 23

Nessa obra de Pepetela, abre-seespaço para uma revisão dos gru-pos de conflito na sociedade colo-nial e para uma reavaliação dospapéis que cada um nela desem-penhou, ficando assinalada a re-sistência angolana nos vários esubseqüentes focos de luta entreredutos nacionais e grupos de con-trole do colonizador.

Entre os cabo-verdianos

Em Cabo Verde, o caldeamentoétnico ou cultural de europeus eafricanos foi intenso, o que resul-tou numa forte mestiçagem mar-cada desde a língua corrente noArquipélago, o crioulo, instrumen-to de comunicação do cabo-ver-diano nos vários níveis de suasrelações sociais.

Já não é, portanto, o homemeuropeu ou o homem africanoque representa essa sociedade,mas o homem crioulo, em cujamaneira de ser as culturas conver-gentes teceram mais cedo a uni-dade cultural cabo-verdiana.

Estariam aí as razões pelasquais as questões de raça não secolocam ou não assumem o relevoque têm na literatura angolana.

A o analisar-se a prosa modernade Cabo Verde, a partir dos anos30, quando ela decisivamente flo-resce, outros motivos aí se encon-trarão, muito próprios da gentedo Arquipélago.

Agrupados em torno da revistaClaridade, de 1936, prosadorescomo Manuel Lopes e BaltasarLopes propuseram-se partir ao

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24 TRÊS LITERATURAS DISTINTAS

reencontro da identidade culturalde seu país, delinear o perfil psi-cológico de seu povo. São os tem-pos de influência do Modernismobrasileiro que, pela afinidade decausa, empolgaria os escritorescabo-verdianos.

No segundo número de Clari-dade, aparece um excerto do conto"O galo que cantou na baía",considerado o primeiro texto deficção da moderna literatura deCabo Verde, mais tarde republi-cado numa coletânea de contos,que receberia o prêmio FernãoMendes Pinto.

Em torno de um caso de con-trabando de algumas garrafas deaguardente e dos passageiros dobarco que fazia o transporte, Ma-nuel Lopes não escreve apenasuma estória cheia de emoções,que culmina no mau sucesso doscontrabandistas porque um galoinoportuno cantou na baía, mascom os pobres agentes da peri-pécia cria um espaço de ca-tálise para os grandes motivosda literatura cabo-verdiana dessaépoca. Assim é a dialética doir/ficar, permanecer nas ilhas ouemigrar. Dividido, portanto, entreo apelo profundo de suas raízes ea perspectiva de libertar-se daspoucas ou nenhuma alternativa detrabalho, dos problemas da seca,das lestadas, da miséria enfim,vê-se o cabo-verdiano diante desua mais dramática necessidadede opção.

Chegam à prosa cabo-verdianamotivos como a decadência doporlo de São Vicente, substituídop"los de outros países, com inevi-

táveis decorrências economzco--financeiras para Cabo Verde, oude referência cultural e simbólicacomo a morna, típico gênero demúsica popular, ou o farol doIlhéu dos Pássaros, marco espa-cial e temporal na paisagem.

Caberá, depois, a Baltasar Lo-pes rasgar caminho para o roman-ce de Cabo Verde, com Chiqui-nho, publicado em 1947. Trata-seda história de uma típica famíliacabo-verdiana, centrada na perso-nagem que lhe dá nome e a relataretrospectivamente. O pai, emi-grado para os Estados Unidos nagrande seca de 1915, deixa à mãeas funções de condutor da famí-lia, como era então freqüente nasIlhas.

Dessa forma, enquanto a me-mória do contador recupera desdesua vida de menino em Santiagoaté a de mestre-escola que, à ma-neira do pai, acaba também dei-xando Cabo Verde, a prática dodia-a-dia se reconstitui. Dos tem-pos da infância vem a casa mater-na, com o patrimônio de hábitosdomésticos cabo-verdianos, o cam-po com as práticas agrícolas ca-racteristicamente locais, a escola,ainda com a tradição européia dapalmatória.

Com tudo isso, a grande apren-dizagem: do ritmo da vida cabo--verdiana marcado pelos compas-sos da chuva e da seca.

Na adolescência são seus tem-pos de estudante, na ilha de SãoVicente, de contatos mais freqüen-tes com o mundo exterior. É ondese organiza o grupo cultural damocidade das escolas "não-divor-

ciado da vida", em sua participa-ção, portanto, com as associaçõesoperárias que então se formam.

A té que se torne "professor deposto", vive aí a euforia da che-gada dos navios e a disforia dadecadência do porto, as festas tí-picas com a morna, o jazz-blue,a valsa brasileira, ou os ritos dosincretismo religioso.

Os acordes de fim de históriasão os da vida adulta de Chiqui-nho, na bonança das chuvas e nasagruras do estio.

Como na literatura nordestinabrasileira, tem-se o quadro sinis-tro dos retirantes pela perspectivada insolvência, no contexto agra-vado pelas exíguas probabilidadesdas Ilhas. São, pois, os temposde tentação da terra-longe quevem com o cheiro do mundo nosnavios e toma corpo na conjun-tura da crise, e os de Chiquinhoemigrante, na cadeia de exíliosem que se amarram sucessivas ge-rações da família cabo-verdiana.

Inspirado nos versos de batu-que da ilha de Santiago - "OCorpo que é escravo, vai; o cora-ção que é livre, fica ... " -, oromance de Baltasar Lopes é ummarco decisivo no direcionamentoda literatura cabo-verdiana ao seufuturo nacional.

A seca, a fome e a emigração,que massacram minorias desprivi-legiadas do mundo, atravessam aspáginas dos prosadores que se li-garam direta ou indiretamente aogrupo de Claridade, como as dopróprio Manuel Lopes de Os flage-lados do vento leste, ou as de nar-rativas como "O rapaz doente", de

ENTRE OS CABO-VERDIANOS 25

Gabriel Mariano, cujos contos fo-ram reunidos no volume Vida emorte de João Cabafume.

Nas estórias de Gabriel Ma-riano o espaço e o tempo preen-chem-se com personagens que vi-vem as agruras de um quotidianorepassado de problemas velhos, desoluções preteridas, que criam astensões características às quais sefez referência.

No caso de "O rapaz doente",desnuda-se o ângulo do emigradopara São Tomé, tão freqüentetambém na literatura angolana,com as implicações que GabrielMariano aqui explora: as do tra-balho forçado na época coloniale o conseqüente corte precoce devidas, que aproxima seus heróisanônimos de outros da epopéia dotrabalho braçal dos operários domundo.

Esses motivos se retomariampelo grupo de escritores que cola-boram em outro periódico, Certe-za, alguns anos depois, em 1944.É entre eles que se incluem Ma-nuel Ferreira e Orlanda Amarilis.

Era a década de eclosão domovimento neo-realista em Portu-gal, cujos reflexos chegavam aCabo Verde. Assim, embora oprograma em torno da cabo-ver-dianidade se preservasse, tratava--se de um etnocentrismo já menosinclinado a definir a identidadenacional do que os conflitos so-ciais do Arquipélago.

Nesse contexto está ManuelFerreira, português de nacionali-dade, mas também cabo-verdianopor afinidades eletivas. Tendocontribuído para a ficção neo-

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26 TRM LITERATURAS DISTINTAS

-realista portuguesa com Grei eA casa dos Matas, Manuel Fer-reira adere definitivamente à mo-tivação cabo-verdiana com as his-tórias que publica em 1948.

Agruparam-se sob o título deMorna, a dileta forma de compo-sição musical cabo-verdiana queo escultor Luís Romano definiucomo "gerada pela melancolia","adequada" à serenata, à saudade,ao isolamento.

No conto "Puchinho", com quese abre a série de Morna, a per-sonagem que dá o nome à estóriarecebe uma qualificação diferen-cial não tanto pela proeza quepudesse praticar, mas sobretudopela motivação psicológica, pró-pria da genealogia dos cabo-ver-dianos confusos entre ficar e par-tir.

Além dessa imagem identifica-dora da juventude posta em situa-ção característica, nas obras deManuel Ferreira faz-se também odose para os indigentes que emer-gem do cenário devastado dasIlhas, como suas parentas literá-rias de Chiquinho, de BaltasarLopes, de Os, flagelados do ventoleste, de Manuel Lopes, ou deFamintos, de Luís Romano. Assimocorre com seus contos na linhade Quando as chuvas não voltammais, ou com o romance Hora dibai, no qual a dicotomia ficar // partir será dialeticamente resol-vida pela resistência cabo-ver-diana.

Essa resistência - tão bem de-finida também por outros escri-tores, como o poeta Ovídio Mar-tins - no ficar e lutar é que for-

jaria os amotinados de Hora dibai, como nhô Ambrose, conver-tido em herói nacional.

A obra de Manuel Ferreiraprocede, no conjunto, a uma am-plificação temática, explorando avertente do pacato viver nas Ilhas,do fascínio tropical de que se im-pregnam muitas cenas, onde trans-parece a "amorabilidade" própriada psicologia dos ilhéus. Ou, pelocontrário, focalizando a náuseacabo-verdiana, na versão rústicalocal, gerada com a pressão docolonizador, agressiva ao patrimô-nio ético e estético nacional.

Em Morna, morabeza, comoem Hora di bai e Voz de prisão,os quadros significativos da vidade Cabo Verde, delineados pelosescritores de Claridade, são redi-mensionados por propostas esté-ticas cada vez mais eficazes, querepresentam o próprio caminho deconscientização do povo cabo-ver-diano em busca de seu pleno reco-nhecimento no contexto social queo peculiariza.

Em Voz de prisão, na tagarelicedas salas de visita, pelo "papiar"tão do gosto cabo-verdiano, asimbólica matriarca de Cabo Ver-de cairá nas armadilhas da cons-ciência e ouvirá a voz que a ad-verte sobre a insurreição cabo--verdiana em marcha, na qualacabará envolvida.

Como Manuel Ferreira, a cabo--verdiana Orlanda Amarilis tam-bém escreve histórias do quotidia-no, que poderá ser o de seus patrí-cios em Cabo Verde ou o dos dis-persos por outros lugares do mun-

do, embora transportando a cida-dania sempre acordada no peito.

O próprio título da primeiracoleção de contos pode sugeriressa característica de suas narrati-vas, Cais-do-Sodré té Salamansa.São estórias que ligam afetiva ousimbolicamente pelo Cais-do-So-dré, ponto de entrecruzamento oude convergências das gentes devariada procedência em Lisboa,ou por Salamansa, a praia "sabede mundo", de Cabo Verde, avida dos caminhantes de Orlanda.

São, assim, estórias nostálgicas,de homens ou' mulheres perdidosna multidão anônima, que carre-gam consigo a sofrida experiênciacabo- verdiana.

Se ouviram a voz das origens,quase sempre se sujeitam a ficarem Cabo Verde para vegetar, comos riscos mais eminentes de pal-milharem o caminho dos miserá-veis, ou até dos suplicantes daesmola estrangeira.

Se tentados a partir, cabe-lhesatirarem-se à incógnita dos mares,como aspirantes a cidadãos de ou-tras pátrias, marcados pela iden-tidade étnica que conseqüente-mente lhes traria os ônus da dis-criminação social.

"Cais-do-Sodré", o primeiroconto do livro de estréia de Orlan-da Amarilis, uma história de reen-contros de cabo-verdianos emi-grados, pode ser tomado comouma amostra da prosa de ficçãoque ela iria praticar. Atravésde mulheres, como predominante-mente fará nessa coleção de con-tos e em seu segundo livro, Ilhéudos pássaros, Orlanda apreende,

ENTRE os CABO-VERDIANOS 27

então, o mundo pela perspectivafeminina.

Em "Cais-do-Sodré" já se vêcomo ela busca a identidade damulher cabo-verdiana, colocandoem confronto a que ainda se re-vela com espontaneidade e a quejá não a quer revelar, embora aca-be por deixá-la evidente no gestofinal de solidariedade, de "mora-beza", com o qual a estória ter-mina.

Este conto deixa ver, também,um dos recursos literários dosquais iria valer-se mais assidua-mente: o dos processos associati-vos da memória, que carregampara o leito principal de suas nar-rativas algum ou muitos afluentes,que lhes dão a palpitação de atua-lidade.

Com as mulheres de "Cais-do--Sodré", Orlanda Amarilis mani-festa os resíduos da "nostalgia en-tre o exílio e o desenraizamento" ..como uma nuança do terra-Iongis-mo, pela força do qual o universocabo-verdiano se reorganiza nasteimosas e inevitáveis recordações.

As lembranças viabilizam - quese reconstituam com êxito umcorpo de princípios e preconceitos,um sistema de valores próprio dagente das Ilhas.

E como se veria desde ManuelLopes, a literatura começa a in-corporar a fala do povo de CaboVerde.

Nos contos de Orlanda, comsuas aberturas para o crioulo, faz--se um exercício de redação cabo--verdiana. A mestiçagem os dis-tingue lingüisticamente, e no mais,de qualquer contexto não-nacio-nal.

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28 TRM LITERATURAS DISTINTAS

Entre os moçambicanos

Em Moçambique, a penetraçãoda cultura portuguesa teria sidoinsignificante por um largo tempoe, portanto, a população nacional,maciçamente analfabeta, perma-neceu em suas práticas tradicio-nais, no uso da transmissão oral.

De 1908 a 1920 circula o pe-riódico O Africano e em 1918surge O Brado Africano, cujos co-laboradores, entretanto, pratica-ram a crônica e a poesia aindapresos à tradição romântica.

Em 1941 aparece o Itinerário,desenvolvendo uma linha de ma-térias sociais ou culturais varia-das, mas raramente no setor daliteratura.

É só no final da década de 40que a administração portuguesase empenha em colonizar.

Caberia, então, ao periódico OBrado Africano receber a produ-ção dos jovens africanos ou des-cendentes de colonos, onde co-meçam as manifestações naciona-listas, suporte da resistência cul-tural e dos ideais de independên-cia .política que se expandiriamprogressivamente até a luta delibertação nacional.

Entre 1955 e 1958, esse jor-nal, órgão da Associação Africa-na, cobriria, então, uma fase deforte vida cultural que teria sedissipado, entretanto, em virtudedos constrangimentos entre doisesforços opostos. De um lado,estimulava-se a tendência da ati-vidade provocada por uma cons-ciência cultural e política nacio-nais e, de outro, fomentava-se a

assimilação da cultura estran-geira.

Quando se trata da literaturaescrita em prosa, cita-se comopioneiro O livro da dor, de 1925,de crônicas e contos do jornalistaJoão Albasini, enquanto se apon-tam, como primeiros textos depoesia, os Sonetos, de Rui de No-ronha, publicados em 1943, e osda Poesia em Moçambique, de1951, primeira mostra coletiva daCasa dos Estudantes do Império,em Lisboa. Citam-se, ainda, asrevistas Itinerário, de 1941, eMsahü, de 1952, que recolhemuma produção heterogênea, por-tanto incaracterística de determi-nada fase no processo de nacio-nalização da literatura moçambi-cana.

Nesse período de manifestaçãonacionalista, em que se destacampoetas como Noêmia de Souza,Marcelino dos Santos (Kalunga-no), José Craveirinha, Rui Nogar,Orlando Mendes, aparece tam-bém a literatura em prosa, a par-tir de 1949. O Itinerário publicacontos de Sobral de Campos, RuyGuerra, Augusto dos SantosAbranches, Vieira Simões, Ver-gílio de Lemos, Ilídio Rocha.

Por outro lado, a Casa dosEstudantes do Império lançavaem Lisboa, em 1952, Godido eoutros contos, de João Dias, uni-versitário moçambicano prematu-ramente falecido em Portugal.

Em "Godido", João Dias in-troduz direta e incisivamente aoposição de colono e coloniza-dor, como um motivo a ser de-senvolvido pela estória. Por

outras palavras, a estória ilustrao juízo com que se abre o conto,sobre a tomada do espaço afri-cano pelo branco.

A situação descrita é a da pra-xe no sistema colonial e Godido,principal personagem, um frutotípico, que as relações de patrãoportuguês e empregada africanageram. Proposto o esquema ini-cial, os demais incidentes decor-rem como conseqüência pre-visível.

A surpresa da estória está naconsciência que Godido tem daengrenagem social que o condi-ciona e na resistência em manter--se nas grades dela.

Caracteriza-se, pois, como umaobra de transição entre a fase daalvorada nacionalista e a de pro-testo, que ocorreria a partir dosanos 50.

Com Nós matamos o cão ti-nhoso, de Luís Bernardo Honwa-na, publicado em 1964, e outroscontos seus, a ficção moçambica-na dará novos passos em direçãoda maturidade.

Suas estórias apresentam umlastro simbólico e uma motivaçãovariada, desde a aprendizagemdos atos de violência, como nosextremos de vida ou de morte.Poderá ser entre os homens comoutras espécies da Natureza esuas correspondentes implicaçõespsicológicas e éticas, como na-quela que dá o nome à sua cole-ção de contos; ou dar-se entreessas outras espécies com as quaisos homens se envolvem.

Nos textos de Honwana a ima-gem da realidade faz-se, quase

ENTRE os MOÇAMBICANOS 29

sempre, pela perspectiva da crian-ça que aprende a ler a fereza domundo, quer por indução, quercasualmente. Nesse caso, escre-vem-se num tom de ingenuidademenineira, comovente pela distân-cia que implicitamente estabelecemcom a visão deformada da matu-ridade.

Em "Nhinguitimo" se ensina aviolência da sociedade colonial,agudizando as relações entre co-lonos e colonizadores, na linhade "Godido", de João Dias, as deapropriação da terra pelo estran-geiro, com ênfase sobre o senti-mento, de um lado, de posse da-quele que a apropria e, de outro,de perda daquele que com elamanteve a relação ancestral de fe-cundá-la.

Como em outros contos, ao co-locar em confronto personagensem tais situações, Honwana põeem xeque também conceitos opos-tos, como coragem e medo, teme-ridade e timidez.

Portagem, de Orlando Mendes,publicado em 1966, tem sido sau-dado como um romance de pers-pectiva efetivamente moçambi-cana.

A estória gira em torno de ummulato, João Xilim, sob o ângulodos preconceitos que cercam amestiçagem, desde os genéticosaté os políticos e sociais.

Daí o fato de ser uma longa es-tória, alimentada por muitos inci-dentes, movimentada por redo-bradas peripécias.

Mas João Xilim difere fun-damentalmente do herói pícaro:não é um ladino e muito menosum cínico. Em vez de aplicar

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30 TRÊS LITERATURAS DISTINTAS

mais a sagacidade na observaçãodas fraquezas dos poderosos, per-siste em avaliar sobretudo as suas,numa visão pessimista e poucopragmática que lhe agrava todasas dificuldades.

Por isso seu problema não éapenas vencer os obstáculos ex-ternos, mas absorver seus pró-prios componentes étnicos, o "eu"branco e o negro, que ele reite-radamente vê distinto~ e antagô-nicos.

Assim, são necessárias muitasaventuras até que, em sua per-sonalidade, a consciência dura-mente experimentada vislumbre asíntese.

Carneiro Gonçalves, em seusContos e lendas, republicados em1980, apresenta uma versão atua-lizada de transfusão de culturas,de permuta de parâmetros histó-ricos e culturais, que ele dramati-za em seu conto "A guerra doscem anos", ou dos desajustes en-tre atos e conceitos em contextosético-sociais de convenções cul-turais diferentes, como transpare-ce em "A lua do advogado".

Mas essa coleção de contos ca-racteriza-se pela heterogeneidade

dos assuntos, motivos e até pro-cessos de escrita. Há espaço parao tema da guerra, cujo quotidianode previsibilidades e surpresas aívem à baila, assim como para odas aventuras passionais ou atédestas com as do próprio homem--escritor. E ficam sobras para oquestionamento de realidade efantasia, de realidade do sonho esonho da realidade.

"Malidza", por ser uma dasduas lendas que precedem os con-tos, escapa das motivações novas;contudo, já pelo lugar que oAutor lhe destinou no conjunto,formaliza a religação com o pa-trimônio tradicional moçambica-no, o qual, por sua vez, no quetoca a amores contrariados porimpedimentos da ordem social,entra em sintonia com as fontestemáticas universais. Por ora,mais fecunda na poesia que naprosa, a literatura moçambicanade expressão portuguesa, escritanuma língua que já não coincidecom a falada em Angola, no Bra-sil ou em Portugal, começa tam-bém a ensaiar seus passos no sen-tido de definir-se como instru-mento de comunicação de outracultura emergente que é.

3Estórias de Angola

ALFREDO TRONI

Nasceu em Coimbra, em 1845. Viveu grande parte de sua vida emAngola. Faleceu em Luanda. em 1904. Jornalista, colaborou em diversosjornais e publicou em capítulos, no Diário da Manhã, a noveleta Nga Muturt.posteriormente editada em volume. em 1882.

Nga MuturrI

Nga Ndreza (nome que tem na sociedade de Luanda, uma socie-dade onde só avultam os panos, sim, mas que guarda um certo númerode conveniências) afirma que é livre, que foi criada em Novo Redondo,e pertenceu à família de F ... ; e, quando muito, cala-se quando lheperguntam se é buxila.

Também ninguém faz questão disso já. E que a fizesse! Ela, àforça de afirmar que não foi escrava, esqueceu-se de [não] ter sidosempre livre. E contudo quando se senta à porta da casa com a facefincada entre os joelhos apertados pelos braços seguros pelas mãosenclavinhadas, nas noites de luar quentes e sossegadas, e cujo silêncioé só quebrado a espaços pelo seco bater, na areia da rua, dos pésdos gingamba que carregam uma machila, ou pelos gritos estridentesdas molecas da vizinhança que apregoam ruidosas banzo - ni massa

* Reproduzido de TRONI, Alfredo. Nga Mullai. Lisboa, Ed. 70, 1973. p. 31-64.

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32 ESTóRIAS DE ANGOLA

- ia temá, temá, temá; então - ao ver na casa fronteira o vulto dapequena vendedeira, destacando na sombra do corredor pela luz aver-melhada da candeia de azeite de palma -, tem uma vaga recordaçãode outros tempos passados numas terras muito longe, de onde atrouxeram quando era pequena.

Lembra-se de uma mulher a quem chamava mama, enfezada etriste, mas resignada, que a levava pela mão para as sementeiras, eque à noite cantava na cubata, amamentando outro filho mais pequeno,enquanto ela comia massa e fijá cozido.

Lembra-se mais, que um dia se abeirou da mãe um preto queera seu irmão, e, depois de muito falarem, ele foi deitar-se e adorme-ceu; e a mama tomou-a então nos braços silenciosa, deixando cairuma lágrima bem quente sobre o seu rosto. Que ela olhava espantadatudo aquilo, mas que por fim adormecera. Quando saiu o sol, abana-ram-na docemente, e ela deparou com a mama, que tinha uma galinhana mão que acabara de matar. Cozinhou-a no fogo, e com o nfungiapresentou-a ao irmão e a ela. Que todos comeram, mas a mamasoluçava tristemente queixas sentidas, iguais às que ouvira quandoaconteceu a morte do soba. Parecia um tambi.

Que depois disto o irmão da mama a puxara pela mão, arrastan-do-a para fora do cercado da cubata. E ela seguiu-o muda e incons-ciente, mas voltando-se, viu a mama com as mãos na cabeça chorandobem triste.

Andara dois dias, ao fim dos quais chegou a uma libata ondemorava o tio que a levava. Pelas conversas que ouviu no caminho,soube que o tio tinha sido condenado no juramento, e para pagar ocrime a fora buscar à mama, pela lei da terra .que obriga os sobrinhosa pagar os quituxi dos tios.

Depois entregaram-na a um preto grande, falando muito, istodiante do soba, que estava rodeado de homens velhos, debaixo de umagrande árvore no meio do largo da libata.

Recordou-se que lhe tinham amarrado a cinta com uma cordafeita de casca de um pau, que sobe pelas árvores grandes e as cobre,como as cordas que viu no navio em que a levaram mais tarde paraLuanda.

Ainda tem presentes os brutais sofrimentos todas as noites du-rante a jornada; e os grandes dentes brancos que lhe mostrava o seudono quando ela chorava e gemia.

Passados muitos dias chegara a uma libata estranha, onde ascasas, todas brancas, eram muito diferentes das que havia na suaterra, e estavam à borda do mar.

Que entrara numa delas, onde havia muita peça de fazenda, emiçangas penduradas, e fora mostrada a um homem em mangas de

ALFREDO TRONI 33

camisa, e que a esteve a apalpar e tinha o ventre muito inchad? eum olhar igual ao reflexo metálico das chapas de cobre que traZIamos pretos de Luanda, que passavam na sua terra. .

Que este homem falou muito com o tio, e lhe deu mUltas panose um espelho: e que o tio a deixara ali, e voltara para a terra.

Que a mandaram lavar, e desmanchar-lhe o lindo penteado. seguropelo ngunde e tacula que lhe fizera a mam~, tirando-lhe as ml~angase os búzios e todos os enfeites. Que lhe vestiram uns panos bomtos, eque uma preta que estava em casa e servia ao sen.hor à mesa, olhavapara ela, iracunda, e a ameaçava com o olhar, confirmado pelo que lhedizia às escondidas, de lhe fazer feitiço.

Que o muari, inquirindo disto, mandara castigar a pre~a, e lo.goque chegou pelo mar uma canoa muito grande com umas ,COIsasmUltobrancas estendidas nuns paus lembrando as asas de uns passaros enor-mes que vinham ao rio da sua terra quando começavam as chuvas,metera a preta na tal canoa, e ela ficara sendo a mucama do senhor.

II

Passou alguns anos naquela vida. Tinha aprendido um pouco alíngua dos brancos, e já não era desajeitada no vestir dos panos comoquando viera. .

Um dia o muari esteve doente e meteu-se com ela e dOIs mole-ques num navio, que os levou a Luanda. . .

O senhor foi tirado para o escaler e levado do cais numa machrl~,muito doente, para uma casa grande de sobrado. - Que e~a seg~Iaatrás da machila a correr, com trabalho, por causa d~ mu~ta aJ:,ela._ Depois melhorou, passou para outra ~as~, onde abrIU I~Ja. Tmhamuitas chitas, lenços e riscados, que vendia as pretas da qUitanda e aoutra gente. .

, Nga Ndreza conheceu então o que ~ra, e o que ~evla parecer.Esqueceu-se da primeira época da sua vIda,. e respondIa com ~masreticências duvidosas às perguntas que lhe faZIam sobre a sua orIgem.

_ Que não sabia bem - isto com ares maliciosos - quem erao pai mas que se lembrava de um branco quando era pequenita, quea to~ava nos braços e a sentava no colo à mesa. - Exatamente oque vira fazer à filha da mucama de um amigo do muari. E como erafula, todas as comadres que a iam visitar com a idéia ?~lhe bebe~ ovinho e comer o presunto que o patrão comprava, dIZIam que Sim,que ela tinha sangue branco.

E ela gostava muito, e nessas ocasiões levantava importante ecautelosa a tampa cheia de pregos da caixa de vinho do Porto; e,

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34 ESTÓRIAS DE ANGOLA

enquanto O patrão estava na jogatina, gastava muito, fazia ceias ebebia demais.

Quando o patrão vinha de madrugada, e mimoseava o molequeque ficara deitado à porta para lha abrir com uma antiga moeda deprata de seis macutas (ainda então havia deste dinheiro, hoje estátodo no Banco) se ganhava, ou com uma saraivada de pontapés seperdia, encontrava-a a dormir na sua esteira; e ele muito grosso, comodiziam os caixeiros quando o viam assim, acordava-a com umas falasarrastadas para o ajudar a deitar-se, conchegando-Ihe o inchado fígadocom uma travesseira, e dando-lhe uma fomentação no baço mais in-chado ainda, rogando ele muitas pragas com as dores.

A cena de que ela se não quer lembrar, mas, por mais que façanaquelas horas de recolhimento, apresenta-se nítida à sua memória,foi a da surra que o patrão lhe mandou dar.

Como não pode repelir a lembrança, começa no seu pensamentoa atenuar o crime - que ela não tivera culpa, porque enfim eramenina nova, e o patrão não se importava com ela senão de mesesa meses.

Cada vez que se lembrava, sentia os mesmos arrepios que arepassaram quando o patrão deu com ela e o preto da machila, o Ebo,um bonito moço da Ginga, forte e esbelto, com uns olhos que eramos seus pecados, na casa por trás da loja onde arrecadavam cascosvazios e outras coisas, ambos encostados a uma pipa. Ainda lhe tilin-tam aos ouvidos, como os mazuela dos carregadores, as palavras quedisse o patrão:

- Ah, grande ... , eu já andava desconfiado. Deixa estar.Ela pôde fugir pela porta do pátio, e subir pela escada que la

dar à casa de mesa.Daí a pouco apareceu o patrão seguido de dois pretos do Bengo

que tinham vindo com as cargas; e mandando-a amarrar no pátio aomastro que segurava a caixa do macaco, levantaram-lhe os panos elevou cinqüenta chicotadas. Ainda se lhe apertam os músculos daparte açoitada com esta lembrança, mas custa-lhe mais a vergonha quesentiu. Se o patrão lhe desse um tiro ou uma facada, como fez um rapazdas cubatas (ainda então não estavam na Ngombota) a quem acon-tecera o mesmo com a barregã, e então feia como o manipanso de umcabinda que ela era, vá; mas açoitada como os negros, ela a mucama,Nga Muhatu como diziam, era demais.

Enquanto o chicote zunia e o macaco dava saltos na caixa aba-nando o mastro que a segurava, ela pensava em se matar. E é quetambém lhe doía muito.

ALFREDO TRONI 3S

Quando a desamarraram, caiu com o rosto para o chão e fi?giu--se morta. Foi um feliz expediente. O patrão disse: - Oh! dIabo!Matei o raio da preta.

- Disse que a levassem para o quarto, e mandou à moleca que lhetinha dado a ela, a Rebeca, que fosse para lá deitar-lhe água nacabeça. Nga Ndreza não saiu do quarto por muito tempo, e a todo omomento esperava que o patrão a vendesse.

III

O quarto dela ficava ao pé da casa de mesa, a varanda, e sempreque o patrão ia jantar, punha-se a olhar e escutar ao buraco da fecha-dura para ver se falava nela. Tinha. também dito à Rebeca para lhecontar .se o patrão dizia alguma COIsa. .

Não buliu no comer que lhe ia da mesa, mas tasqumha~a umaspostas de peixe, compradas na taberna de um degredado, e qUlcuanga,mas tudo às escondidas.

Um dia o patrão ao jantar, depois de os caixeiros descerem paraa loja, disse para um vizinho muito amigo que jantava com ele:

_ Assim como assim, fica como dantes. Estou doente, ela Jasabe os meus usos. Se há de vir outra que faça o mesmo e não mesirva... . h"

_ É melhor, é - disse o vizinho com compadecImentos, IPO-critas. - Tu és doente, e aquilo não valeu nada. Talvez ate nemchegassem a fazer mal.

_ Isso não, que eu vi muito bem. . . ._ Pois sim, mas no fim de contas nós estamos velhos. E depOls

_ fez com uma fingida resignação canalha - tudo é o mesmo. Olha,a que eu lá tenho, que tem fama de ter muito juízo, e s~~es que esteveem casa da D. Luísa a aprender, quem sabe o que far~. ,

_ Não _ disse o patrão com mágoa - a tua ChIca e boa rapa-riga, todos o dizem. . ., .

_ Pois sim eu também dIsse aqudo so por falar. Que, deIxa-medizer-te coitadinha dela se mo fizesse! Mas, meu amigo, eu não comomiolo de enxergão, não tenho a tua boa fé, a mim ninguém me fazo ninho atrás da orelha.

E Nga Ndreza ao ouvir isto dardejou-lhe u.m olhar pelo buracoda fechadura que, se o vizinho o visse, n~o falana tanto, .

Porque ela mais que uma ve~ pela )anela do bec? t~nha sur~re-endido a Chica na varanda, em bnncadeuas com o c31x.eIro,o SeIra,que o vizinho queria fazer sócio - e quando foi ao Bengo dar balan~oà loja que lá tinha, entregue a um degredado, uma vez o Serra nao

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36 ESTóRIAS DE ANGOLA

lhe estivera a fazer cócegas, e a Chica em corridinhas, com o panoseguro só num ombro, a fingir-se zangada, batendo-lhe com a mão edizendo catucasi - ambul'home - ngamburiami - cambo sonhi -,mas em grandes gargalhadas? Oh! se tinha visto.

E depois a Chica não fugiu para a camarinha e o Serra não foiatrás dela, e fechou-se a porta, e lá estiveram um bom bocado, saindoo Serra primeiro, muito comprometido, e muito corado, olhando des-confiado em volta, e depois ela, como se não tivesse havido nada, nãoveio ralhar com uma severidade digna com a moleca que estava nopátio a brincar com o preto da loja?! Tal e qual.

E nessa rápida lembrança que acompanhou o tal olhar, mur-murou:

- Que burro!Dois dias depois Nga Ndreza já corria pela varanda e à noite

o patrão dormiu muito melhor com a fomentação no baço e o con-chego da travesseira debaixo do fígado.

Mas Nga Ndreza andava triste, não tinha filho. - As amigas,muito invejosas, diga-se a verdade, diziam que talvez fosse dela, masque era mau - que os brancos não se prendiam bem, senão quandotinham filhos, que precisava ter um. Lembraram-lhe promessas a NossaSenhora de Muxima, ou que fizesse feitiços, e fê-los.

Havia uns dias que o muari, quando entrava na camarinha, come-çava a cheirar, a cheirar, fazendo desagradáveis trejeitos - cheirava--lhe mal. Que seria o gato, ou o cão, e corria os cantos da casa, masnada. Nga Ndreza estendia a sua esteira ao pé da cama, e ficava muitoquieta fingindo dormir.

Uma noite o muari disse que havia de saber a causa do maucheiro. Chamou os moleques, o da mesa que era o Muhongo, e o daloja, e fê-los revistar tudo. Estava desesperado, eis que o Muhongocomeçou a desfazer a cama e a mexer no colchão.

Nga Ndreza entrou a resmonear, mas o moleque continuava pro-curando, até que achando um buraco no colchão pela parte de baixo,e metendo a mão, tirou uns pés, uns ossos e uma cabeça de galo coma sua crista e penas.

Nga Ndreza ficou atrapalhada; o patrão olhou para ela, não dissemais nada: foi a um canto, tirou um junco e, zás, zás, zás, nas suascostas roliças e luzidias. - Caíram-lhe os panos de cima, e mesmoassim, com as mãos cruzadas no seio, fugiu para a varanda. O patrãodeixou-a, e nessa noite dormiu numa cama de campanha que estavaao pé da sala onde jogavam às vezes.

Era a cama onde costumava dormir o juiz um grande sono, atévir a canja, quando ia lá à batota, e a limpavam logo ao princípio.

ALFREDO TRONI 37

No dia seguinte veio o mestre Pedro, colchoeiro, e fez novo\.'olchão. Nga Ndreza esteve muito séria; não comeu nesse dia, nem110 outro.

Enfim as coisas compuseram-se. Tinha chegado novo sortimentono patrão, e ele mandou-a chamar uma noite à loja depois de fecha-das as portas da rua e ali lhe fez escolher um pano da costa, umaspeças de chita e um fio de corais, daqueles grandes que custam amacunha tato ni tato ni kipaca - cada bago, bagos muito grandes.Iintão ela contou-lhe tudo, com certas reservas todavia. - Disse-lheele que se não importasse, que se morresse não havia de ficar sem nada.

Pouco tempo depois o patrão entrou numa noite para casa aqueixar-se de uma pontada no lado esquerdo, e pontada foi, que nooutro dia estava. morto.

Nga Ndreza portou-se dignamente.Quando vieram os galfarros da Junta, como dizia o vizinho, que

ficara testamenteiro, o escrivão-deputado (ainda não havia secretáriocomo hoje) viu-a sobre a cama ao lado do cadáver do patrão, queestava coberto com um lençol.

O escrivão-deputado chegara do Reino havia pouco tempo eestranhou o caso; mas o escriturário, filho do país, muito asseado ecom o peitilho da camisa muito lustroso, fez uma cortesia digna edisse: - São os usos da terra, é óbito.

E como o defunto encarregara o testamenteiro de liquidar aherança e entregá-la aos herdeiros diretamente, pouco tiveram a fazer,saindo logo o escrivão-deputado na frente, em seguida o vizinho, commuitas cortesias e dizendo a tudo: - "Sim senhor, sim" -, e maisatrás o escriturário que perdeu uns minutos a cumprimentar muitasraparigas, todas com os seus panos negros a cheirar muito, a tinta,e que faziam companhia à Nga Muturi. O escriturário ao sair à portacruzou com uma sua conhecida que entrava rebolando muito presu-mida as cadeiras monstruosas, mas com o parecer consternadíssimo,e ao cruzar deu-lhe ali um belo apertão, mas conservando sempre agravidade da ocasião.

IV

O enterro foi pomposo. Levou música a pedido de Nga Muturi,animada pelas amigas: - Que não, que não podia deixar de levarmúsica - que diriam depois de Nga Muturi? Quando a Muximinha,a do Soares da quitanda, que tinha morrido o ano passado - e de

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38 ESTóRIAS DE ANGOLA

mais era um taberneiro -, não consentiu que o homem fosse semmúsica, então ela, Nga Muturi, havia de querer tal? Não podia ser;se fossem elas - acrescentavam - ainda que empenhassem os últimospanos e todas as voltas de contas, não consentiam que o enterrofosse sem música.

As cartas de convite indicavam as cinco horas da tarde. A essahora já muitos convidados estavam à espera, uns passeando na varan-da, por ser mais arejada e não se poder parar lá dentro com o cheirodos panos pretos, outros à porta da rua. Falavam sobre várias coisas.

Perguntavam uns quanto seria a fortuna do falecido, outros con-tavam de que ano ele era, e diziam que ELA, a morte, lhes estavarastejando a eles pela porta.

Depois falavam na preta, na Nga Muturi; e diziam que o legadoque o velhote lhe deixara valia os seus dois contos de réis fortes,fora a casa.

- É uma desgraça - acudiu um bastante econômico -, algumdesses filhos da terra amiga-se com ela e dá-lhe cabo de tudo.

- Ela não é má - disse o juiz ao delegado, que tinham chegadoe estavam todos sérios dentro das suas casacas pretas.

- Ora adeus - acudiu o delegado -, é um diabo gordo emais nada.

- Não é tanto assim - fez o juiz.O testamenteiro, que andava a labutar lá por dentro com as coisas

do enterro, mal soube (trazia uma demanda) que estavam o juiz eo delegado, foi logo, apressado, cumprimentá-los com muita afabili-dade e subserviência. O cumprimento, feito em voz baixa e comovida,foi interrompido nas frases mais compassivas pelo Mel}donça, que dissebruscamente que o negócio se demorava, e ele ainda não tinha jantado.

- Nem eu - ajuntou o Guimarães tirando o relógio -, e sãocinco horas e meia, se soubesse tinha jantado primeiro. Para que horasisto deita ... ? - fez, com umas demoras na fala, indicativas domuito que pensava ter de esperar.

- Por que se espera? - perguntou o jui~.- Ora, por que há de ser? Pelo padre - disse outro. - Não

cantam senão quando têm cheia a barriga.Nisto sentiu-se a bulha de passos apressados pela escada, mas

miúdos pelo constrangimento das batinas, e entrava o pároco com aface congestionada pela caminhada sobre o jantar comido à pressa emal mastigado. Vinham dois sacristas, um com o hissope e outrocom a cruz.

Entraram na sala guarnecida de negro nos alizares das portas, eo padre começou a rezar os responsos. Um rapaz mulato com umpaletó muito ruço e com a gola levantada e presa por um alfinete,

ALFREDO TRONI 39

querendo encobrir a falta de camisa, começou a distribuir velas deum tabuleiro aos convidados.

O sacrista, com a batina esfiampada na barra e uma bota todatorta e muito ruça, onde sobressaía a calça toda roída atrás, ofereceuo hissope ao pároco, que depois das rezas aspergiu beatificamente ocaixão com uns sacudimentos graves do braço direito. A um lado dacasa ouviam-se as respirações tristes das amigas de Nga Muturi, pron-tas a desencadear o choro do costume.

Quando o padre com um gesto beato, e os olhos meio cerrados,mostrou ter concluído, o testamenteiro convidou três negociantes e oescriturário da Junta (que se pelava por consideração, e sempre erabom estar bem com eles, pensava o testamenteiro) para as argolas docaixão. O juiz levou a chave. O delegado, que não estava para maçadas,tinha ficado de propósito escondido atrás de um grupo, para nãoser visto.

Quando se deu o primeiro impulso ao caixão e prorrompeu ochoro das mulheres, viu-se Nga Muturi assomar a uma porta emgrandes berros e exclamações, mas duas amigas seguraram-na logo elevaram-na para dentro.

Entretanto o caixão saía, agitado pelos passos, desencontradosa princípio, dos que o levavam. À volta do corredor para a escadaia havendo catástrofe. O escriturário da Junta instintivamente seguroucom as duas mãos a argola, e o parceiro tirou apressado o lençopara estofar a sua argola, que erâ de corda muito fina e magoava-lheos dedos.

Quando saiu à porta da rua sentiu-se o pumpum do bomba damúsica, que começou uma marcha muito sentida e seguiu o saimento.Um dos que levavam o caixão da parte da cabeça disse para o com-panheiro, a meia voz:

- Não há trancas.E logo o diretor do enterro começou a chamar o Cassabalo e o

Burica que levavam as trancas, e eles, do grande mar de machilasque afogava o enterro, surdiram segurando umas tungas forradas denegro, com espirais de galão amarelo, que passaram por baixo docaixão, e com o Feliciano e o Baxi carregaram-no até à igreja doCarmo.

No adro estavam outros convidados, mas já jantados, de palitona boca e fumando.

Houve as encomendações costumadas e saiu o cadáver acom-panhado pelos irmãos da Ordem Terceira, a que o finado pertencia,até ao limite sabido. Alguns dos convidados safaram-se logo pelacalçada do Carmo, outros foram ficando atrás com as machilas eleolho, e quando não lhes pareceu muito escândalo, meteram-se nelas.

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40 ESTóRIAS DE ANGOLA

As mulheres gritando e chorando lágrimas que não as estorvavam deretribuir as olhadelas dos que passavam, foram até ao cemitério, alifoi o caixão descido a uma cova bem funda, com o raque-raque dascordas de mateba, por onde escorregava. Houve trabalho para tiraro chapéu do que tratou do enterro, que caiu na cova quando teveque acudir a um dos pretos, que não podia segurar a corda. Enfimo homem lá ficou, e as mulheres voltaram para ao pé da Nga Muturi,para o óbito.

o choro foi grande, mas interrompeu-se algumas vezes para co-merem. Entretanto, às seis da tarde, ao cantar do galo e às seis damanhã redobrava. Havia uma velha que avisava as outras para cho-rarem. Havia aguardente e uma botija de genebra Focking, marcaescolhida por conselho de um rapaz amanuense da Junta, que tratavacom a tal rapariga dos apalpões do escriturário.

O vizinho, o testamenteiro, disse que sim, que se fizesse a esteira,mas que não fizessem muita bulha e, sobretudo, que não deixassementrar toda a gente - e sublinhava com a voz a palavra.

A Chica veio também, mas demorou-se pouco.Aos oito dias houve a missa mandada dizer pelo testamenteiro,

que convidou todas as pessoas das relações de seu falecido e choradoamigo, dizia o anúncio. Foi publicado no Boletim Oficial, com umagrande tarja preta e um anjo a chorar abraçado a uma cruz. Tudomuito bonito - contou um rapaz que tinha suas vistas na Nga Muturi,e encarecia as pompas do óbito.

Nga Muturi estava na missa, muito grave, com os competentespanos de zuarte azul-escuro, o seu pano preto e um gorro, segundo ocostume; estavam todas as amigas e muita mais gente. Estavam tam-bém muitos brancos, amigos do testamenteiro, e alguns empregados.Não faltou o juiz. Tinha-lhe custado muito a levantar-se, mas era daterra do falecido, e parecia mal se não fosse.

V

Nga Muturi, passado o nojo, foi para a sua casa e tratou devender' a roupa do falecido, que ele lhe tinha deixado e mais a mobília.

Houve uns zunzuns por ocasião da entrega da roupa a Nga Muturifeita pelo testamenteiro, que tinha levado muito tempo, diziam, masfoi peta. - As malditas línguas de Luanda, que tudo envenenam -dizia o testamenteiro ao Lopes, guarda-livros do Sobral, e muito gabadoem escrituração, uma vez que ele lhe contou o que se rosnava. - Que

ALFREDO TRONI 41

era impossível praticar ele uma tal ação, estando ainda quentes ascinzas do seu amigo. - E dizia isto indignado, furioso, passeandorápido na loja fora do balcão. .

Nga Muturi afligiu-se muito quando uma amiga, com assomosde indignação hipócrita, lho referiu, valha a verdade muito acrescen-tando. Esteve muito tempo a falar, dizendo que ela não era negra,nem tinha os costumes das que diziam isto, e repetia isto muitas vezes,fitando a amiga. Esta, que não podia perder as relações de Nga Muturi,atalhou logo - que aquilo tudo era inveja por ela estar rica.

Via-se embaraçada para vender a roupa, mas por conselho dotestamenteiro entregou-a ao Serra que ia para Casengo à colheita, elhe dizia que ali se trocava tudo a café muito bem, que era um negócioda China.

Quem não ficou contente com a incumbência quando a soubefoi a Chica.

Aproximava-se o aniversário do óbito. Já se falava nas missas,e todos diziam que seriam de estrondo. E foram faladas com efeito.

A gaêta era das melhores, e o batuque tinha vindo do Bengo.Havia dois tocadores que se revezavam. Quem tocava o batuque erao Felela, que tinha sido moleque do Ferreira e dele tirara o nomeestropiado. A ricanza de bordão, novinha em folha, era esfregada comtoda a arte por uma velha já sem dentes, mas ainda muito amiga debrincadeira. Fora das melhores para a brincadeira, nos seus tempos.

- Se a vissem - dizia o velho Torres, com umas saudadeslúbricas de outrora.

Dançaram toda a tarde e toda a noite. Houve muita concorrên.cia.O vizinho deu um bezerro, e um garrafão de vinho. Nga Muturi tevemais outros presentes. Ainda gastou muito dinheiro.

Muito nfungi e carne guisada. Houve quitoto, aguardente e gene-bra. Como sabia que iam brancos, tinha duas garrafas de vinho doPorto marca Triumpho de Bacho. O Santana, guarda da alfândega,que era quem lhe escrevia as cartas para Casengo, para o Serra, porcausa da roupa, foi de opinião que comprasse do Maria Claudina, issoé que era vinho, que era a melhor marca. Que o Triumpho de Bachovinha todo falsificado. O primeiro que veio, esse sim. Mas Nga Muturi,como o vizinho do defunto falecido só tinha desta marca, não o quisescandalizar, comprando em outra parte.

Foi um batuque falado. Dançavam no pátio. O João das Lanchasemprestou uma vela que servia de toldo.

Estavam duas velas nos seus castiçais de louça branca com florõesdourados dentro das mangas de vidro no meio do quintal a alumiar.Dançavam em roda.

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42 ESTóRIAS DE ANGOLA

Apareceu tudo quanto havia de bom em raparigas. - As filhasnaturais do tenente-coronel Fontoura, que tinha morrido no GolungoAlto, com as suas exageradas quindumbas, eram as que dançavammelhor, com mais garbo. Todos o diziam. A porta do corredor estavafechada para não deixar entrar todo o fiel patife. O Santana era quemtinha a chave.

O Lobato, claviculário do Cofre dos Órfãos, também lá foi como delegado novo que tinha chegado no último paquete, e estava mortopor ver um batuque. Quem pediu ao Lobato para o apresentar foi oajudante da conservatória.

Na varanda estavam as sobrinhas do Monteval, que não dançavamporque eram de vestidos. Nga Muturi não queria dançar também, pormais que a desafiassem. - Que não parecia bem, que tinha de fazeras honras da casa.

À meia-noite bateram à porta, e entrou o Serra, tinha chegadonaquele momento de Casengo, no Cunga. Nga Muturi ficou muitocontente e correspondeu-Ihe a duas sembas que ele lhe deu. Tinhabebido dois copos de vinho ao jantar, e, a pretexto de incomodadado estômago, tomou um cálice de genebra.

Tinha o olho brilhante, e falava com verbosidade para todos, eespecialmente para o Serra a quem perguntava muita coisa. O Serravinha pálido, mas não descansava no batuque. Apesar de um amigo,que tinha vindo com ele, lhe dizer que não bebesse genebra, nãofazia caso e entornava copinho sobre copinho. - Que estava muitosuado, que não queria que lhe fizesse mal.

Às três horas acabou-se a festa, para continuar no outro dia.O Serra foi o último a sair. Nga Muturi tinha muito que lhe falar

por causa da roupa. Tocava já a alvorada.

VI

As missas continuaram.Haviam de durar oito dias, nada menos, dizia Nga Muturi, e

muito melhor que as do Mártires, pelo irmão que tinha sido capelãocantor, porque as dele, cuja memória inda estava fresca, se haviamdurado oito dias, fora à custa dos convidados, que todas as noitestinham de concorrer com a sua espórtula. As de Nga Muturi - essasnão, seriam a sua custa unicamente, que não precisava de subscrições.

Ao quarto dia, porém, sentiu-se incomodada, um mal-estar esqui-sito, estranho. - As amigas notaram-lhe a face demudada. Ela diziaque era cansaço, mas os oito dias seriam cheios.

ALFREDO TRONI 43

Não foram, porque a tristeza da dona da casa dava um tom som-brio à festa.

Enfim passaram os oito dias e as raparigas começaram a pensare lembrar-se de que missas estavam à bica. Falava-se nas da D. LuÍsapelo marido; nas do José Bento pela mãe, e não faltavam as raparigascom denguices aos homens com quem tratavam para alcançar dinheiropara novos panos.

Ao nono dia depois das missas, Nga Muturi, que não se sentiamelhor, arranjou-se conforme pôde, e foi à botica do Teves. Era demanhã. Chegou mesmo quando ele saía da machila que o trouxeradas caieiras, que tinha ido ver cedo, como costume.

Ngana Teve, como ela o cumprimentou, começou logo com oseu palavreado de costume, perguntando-lhe o que tinha, quando casa-va, dando-lhe muitos conselhos, que tivesse juízo, que se não deixassecomer.

Nga Muturi, coberta com o seu pano preto, e os olhos baixos,começou com meias palavras a queixar-se de um mal, que lhe parecialombriga, porque sentia isto e aquilo, com umas reticências duvidosas,a ponto de Ngana Teve olhar muito fito para ela e dizer:

- Já sei, já sei. - E levou-a para um canto da farmácia ao péda porta que deita para a escada, e ali fez perguntas em voz baixa aNga Muturi, às quais ela respondia com os olhos no chão, por monos-sílabos, espalmando a mão sobre os panos, como querendo acertá-los.

Ngana Teve concluiu em voz alta:- Está bom, está bom. Vai-te embora, rapariga, e manda cá

uma garrafa para te arranjar o gomoso.E quando ela se retirava, envergonhada, ele da porta, com a sua

bengala de gancho a bater pancadinhas na soleira, disse-lhe de longe:- Olha os banhos, hem, com malvas.

Nga Muturi nunca mais pôde ver o Serra. Lembrou-se até de lhefazer feitiço, mas abandonou o projeto com um longo suspiro.

Daí em diante Nga Muturi nunca mais tornou a dançar nosbatuques.

Hoje está uma mulher dos seus trinta e seis anos pouco mais oumenos (nunca pôde tirar certidão de idade) muito séria e portando-sebem. Goza de uma certa consideração nas famílias da terra e quando

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44 ESTóRIAS DE ANGOLA

vai visitá-las fazem-lhe sempre o prato à mesa, a mandam-lho logo.Ela também é sempre pronta em acudir a todos os casos tristes oualegres.

Está muito bem, desconta às vezes os recibos aos amanuensescom um juro que brada aos céus, empresta sobre penhores, não sóàs amigas, mas até a pessoas graúdas. - Que o diga o escrivãoTeixeira, que lhe empenhou lá o relógio e a corrente, uma peça famosa,presente do tutor Brandão, por ter feito uma mangonha no inventáriodo casal, cujos menores ficaram a pedir.

Contudo não gostava de emprestar a brancos desde que o JudaAbimelech lhe empenhara sete varas de grilhão de ouro, que afinalera latão galvanizado. Que o que lhe valeu a ele foi morrer, senãoia parar à cadeia.

É um riso ouvir ainda o Sola ourives contar a história do grilhão.Quando está na loja com amigos e que passa Nga Muturi é certo quea conta: que não é possível imaginar-se uma cara mais pândega quea de Nga Muturi quando ele lhe deu o temível desengano.

- Olhem, rapazes, o caso foi assim. Eu estava aqui onde estou,Nga Muturi ali onde está o Silva, e o Taveira pouco mais ou menosonde está o Torres. Ela deu-me o grilhão para dizer quanto valia.Eu olhei, pesei-o, mas parecia-me história aquela bisarma de ouro."Nada, vamos a experimentá-lo." Nem foi preciso tocá-lo. Com alima, ze ze ze, ze ze ze, ora, apareceu logo o latão. Dobrei-o em partesde palmo e meio cada uma, e voltando-me muito sério para o Taveira:

"- Ó Taveira, por quanto vendes tu uma corrente de papagaio?""- Cinco macutas" - disse ele. - "Por quê? Queres?""- Não." - E pus-me a contar as dobras, eram nove. Depois

levantt~i a cabeça e disse-lhe: "- Vale nove correntes de papagaio.""-- Macunha oana ni joana." A mulher atentou em mim uns

olhos, que olhos, rapazes!"- É latão, mulherzinha" - disse eu. - "Enganaram-na.""- Eh! Eh!" - fez ela com o som gutural, peculiar daquela

exclamação usual nas filhas da terra.E vagarosamente embrulhou o cordão que eu lhe entreguei num

bocado de papel, e guardou-o no seio. E saiu sem dizer nada, mas iamais assanhada que uma víbora. - E daí o Sola começava a rir-se,a rir-se, a rir-se.

- Por que, então, que querem? - dizia ele - quando me lem-bro não posso ter-me que me não ria.

ALFREDO TRONI 45

VII

Com esta e mais lições - principalmente a que levou de umamanuense, que, tendo-lhe descontado um recibo de vinte mil-réis pordoze, é verdade, lho foi pedir na véspera do pagamento para o ircobrar, porque, dizia ele, Nga Muturi não sabia, não podia ir à Junta,que o Chagas, que era quem lhe tratava dos negócios, estava doente,não podia também, por isso que lho confiasse que ele recebia odinheiro e logo lho trazia e ... afinal se abotoou com ele -, NgaMuturi ficou mais cautelosa. Empresta sobre penhores, principalmentede ouro, como volta de conta, brincos, cordões, mas tem o cuidadode saber se é bom ouro, e usa-os conforme o costume da terra. Tema sua quitanda; a Bebeca é muito jeitosa; uma goma que lhe veio doDande, depois de distribuída em cartuchos, rendeu-lhe seis vezes ocapital empregado; pudera! Tinha custado m'ite samanu, fizera setentae dois cartuchos e vendia cada um a nbende. O azeite de palma tam-bém lhe dá bons lucros.

Nga Muturi é invejada. Não quer homem. Surra e Serra são doisfantasmas que se levantam diante da sua imaginação, quando temalguma veleidade amorosa. Nada, não cai. E, assim, como serenamentedesfia as suas rezas em mbundu, vão-lhe correndo os dias da vidasossegados e bens. Está muito gorda. É muito considerada pelas boasfamílias. Faz os seus presentes. Quando vai ao musseque do Spínolaleva sempre um presente à filha Mariquinha - ora é um bocadinhode cola, e gengibre dentro de um lenço dobrado em coração, ora umaslaranjas muito boas do arimo do Dande, cana doce, ovos, enfim, coisasque ela oferece com muita gravidade, tirando-as da quinda em quea Bebeca as trouxe, e lhe são aceites com agradecimento.

Quando há boda ou missas, lá está caída, mas não dança, nãodiz a verdadeira razão, desculpa-se que está velha. Diz que vai àsmissas pela muita amizade; ajuda a pôr a mesa, mas tem sempre artesde prestar os seus serviços depois de estendida a toalha, porque nuncafoi capaz de pôr a toalha direito; ela lembra-se muito bem dos sopaposque levava quando o patrão vinha para a mesa e encontrava a toalhaponta abaixo, ponta acima, como ele dizia - e até q\lando lá foi jantaro juiz, o patrício, que por sinal se abriram tantas latas, e o patrão,quando veio perguntar se o jantar já estava pronto e viu a toalha torta,foi-se a ela, agarrou-a pelo pescoço, e bumba, bumba, umas poucasde vezes com a cara na mesa e com toda a força, por sinal que aooutro dia lhe doía tanto o nariz - lembra-se muito bem. Do mais

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ESTóRIAS DE ANGOLA

CASTRO SOROMENHO

Fernando Monteiro de Castro Soromenho nasceu na Zambézia, mas viveuboa parte de sua vida em Angola, que acabou por ser sua pátria de afeição.Colaborou em vários jornais e revistas e publicou obras de divulgação, alémda produção ficcional: Nhari (contos, 1938); Noite de angústia (romance,1939); Homens sem caminho (romance, 1941); Calenga (contos, 1945); Terramorta (romance, 1949); Viragem (romance, 1957); A chaga (romance, 1972).

A morte da chota*o homem meteu a proa da canoa na boca dum esteiro, costas

voltadas ao rio, e entrou pelo canavial, enterrando a longa vara queserve de remo no fundo lodoso. Com o barquito parado, largou avara, levou as mãos à boca e delas fez porta-voz. Um grito cresceupor cima do canavial e ganhou a senzala, alcandorada numa colina,ao longe. O grito do canoeiro espantou as aves, que atravessaram o rionum vôo ruidoso e se perderam entre as árvores do muxito, altas eesguias, com seus penachos verdes batidos pelo vento.

Um jacaré, quebrada a quietude das margens do rio, onde sequedara em lazeres, pela voz do homem e o bater de asas, chapou-sena água, amedrontando uma lontra que deixara de cabriolar sobre aerva para olhar um bando de borboletas.

Um golpe de vento caíra sobre o rio, cavando-lhe as águas quegalgaram, feitas ondas, as margens. Patos grasnaram ao longe, voandopelo caminho do vento.

O homem olhou para o céu, a carregar-se de negrura, com nuvensplúmbeas a marcharem, acastelando-se, sobre a planície que se des-dobra, farta de capim amarelo, em lonjuras para além da colina, ondeo povoado dos lundas se ergue como única sentinela na estepe.

- Vai ser forte - disse ele de si para si.Firmou-se melhor na canoa e, com a cabeça lançada para trás,

gritou com mais força.Depois do seu chamado se perder no eco, chegou-lhe aos ouvidos

um rumor de voz longínqua. D canoeiro empunhou a vara e, com ummovimento brusco, meteu o barco pelo canal, a caminho de terra.De instante em instante, foi soltando gritos agudos, a indicar ao com-

* Reproduzido de CASTRO SOROMENHO, Fernando Monteiro de. Rajada eol/tras histórias. Lisboa, Portugália, s. d. p. 83-93.

CASTRO SOROMENHO 49

panheiro, que vinha ao seu chamado, o lugar para onde se deviadirigir. Quando ganhou terra nua e firme e viu aproximar-se o compa-nheiro, soltou uma praga.

- Ninguém ouviu. O vento está contrário - justificou-se o ho-mem que chegara, mal-humorado por ter deixado o calor da fogueiraela cubata.

Logo que acabaram de tirar a carga do barco, uns atados depaus de mandioca e um cesto com peixe, uma nuvem rebentou sobreas suas cabeças e o céu abriu-se, riscado por uma faísca, começandoa chover violentamente. Os dois homens entreolharam-se durante umsegundo, e, em silêncio, amarraram o barquito a uma árvore e puseramas~cargas às costas. E quando se meteram, a passo estugado, a caminhoela aldeia, relâmpagos zebravam o céu e o trovão ribombava.

- Vamos, vamos! - gritou o canoeiro Caluige, tomando adianteira.

Mas um minuto depois já o companheiro desaparecia à sua frente,que ele era um homem da terra e, por isso, seus pés conheciam melhoro caminho.

Quando o canoeiro chegou à senzala, vergado sob o fardo, aspernas doridas da marcha forçada, não viu ninguém. Deixou a cargadentro da chata e dirigiu-se para a cubata, onde a mulher o esperava,acocorada junto ao braseiro.

- A mandioca ficou na chata - disse ele, agachando-se emfrente da companheira.

Ela não concordou que ele tivesse deixado a mandioca fora decasa, onde a chuva a estragaria, mas nada lhe disse. Além disso, amulher há muito tempo que deixara de se referir à chata.

- Logo vai buscá-la - recomendou ele, estendendo as mãossobre as chamas.

A mulher baixou os olhos e não disse palavra; mas ficou furiosa,porque ele, por tudo e por nada, se referia, olhando-a insistenteme~tenos olhos, à chata. Fora ali, na "casa do povo", que o canoeIroganhara aquela mulher, tirada ao lar porque o seu companheiro ven-dera o filho do Caluige a uns quiocos que cruzaram aquelas terrasnuma época de fome, aproveitando-se da sua ausência, esperançadoem reaver o rapaz antes do pai regressar do Cuilo, onde fora comlarga demora. Mas a vida não lhe correu bem e, quando o canoeiroregressou, o caso foi levado à chata. O soba deu razão ao Caluige,que o caso era claro como água, e, como o ladrão não lhe pôde resti-tuir o filho e não tinha nenhum parente, não teve outro jeito senãoentregar-lhe a sua própria mulher. Alguns velhos, aferrados às leis daraça, lembraram ao sob a que nunca se fizera tal coisa. Se o ladrão nãotinha parentes para entregar em paga do rapaz, que ficasse ele como

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50 ESTóRIAS DE ANGOLA

escravo - alvitraram os velhos. Mas ter que entregar a sua mulheré que não era justo, porque ela não tinha o mesmo sangue para p~derser obrigada a sofrer, assim, por ele. Mas o soba não lhes deu ouvIdos.

A terra ficou molhada durante três dias. E no céu, em todo essetempo, não se viu uma mancha de luz. Tudo cinzento. De longe emlonge, o trovão ribombava. E a chuva caía de mansinho.

O temporal que nesses três dias sacudira a aldeia deixara aquelesrestos, nada tranqüilizadores para os seus habitantes, que aguardavam,a todo momento, a continuação da borrasca.

Os homens, encurralados nas cubatas, ainda tocados de medo ede espanto, não se afoitavam a pôr pé no terreiro, coberto de árv~resderrubadas pelas faíscas e desgrenhadas pelo vento, porque haVIamavistado a chota, que o vendaval amassara, por terra.. Os lundas, ao verem a chota desfeita, sentiram um baque nocoração. O soba não quis sair da sua cubata, não tinha olhos paraver aquela desgraça. E o canoeiro Caluige ficou de boca aberta e osolhos arregalados de espanto e horror. Só a sua companheira encontrouno ódio que votava à chota uma alegria que lhe iluminou os olhoscom uma luz ardente.

A tristeza não se desprega do povo. Nos homens só há recor-dações. Aquela chota, velha de muitos anos, fora erguida por .mandode um soba, há muito tempo morto, que escreveu com os feItos d~sua vida de guerreiro a legenda daquele povo lunda da este~. AlI,num dia que ficou marcado como o mais belo de toda a sua Vida, elesentenciou à morte um ganga, o feiticeiro assassino, que era seu pró-prio filho, transviado desde moço por mundos de magia, sujeitando opovo, durante um ror de anos, a desgraças sem conta. , .

Foi da fogueira daquela chota que esse soba memoravel tlrou ofogo com que incendiou os madeiros onde seu filho foi queimado vivo,enquanto o povo, ao som dos tambores, dançou um batuque comcanções de ódio e gritos de vingança.

Agora, os lundas relembram, com o coração apertado de angúst.ia,a vida da chota e a vida do povo, que por ela passou com suas alegnase amarguras. Dali saíram os homens para as grandes aventuras dasguerras e das caçadas. Os vencidos, tocados a chicote pelo vencedorque os escravizou, ali depuseram suas vidas nas ~ãos do .soba. Lundasofendidos, ali foram pedir justiça ao chefe da tnbo. AlI se co.n~ena-ram homens de todas as condições sociais, à morte e à escravldao; eos inocentes, feridos de injustiças, encontraram a liberdade. Ao se~calor se acolheram os sobas e os homens velhos, para ditarem a leIdo povo. A volta da sua fogueira, onde o fogo é sempre vivo, oshomens discutiram os trabalhos da terra e a faina dos rios, as viagens

CASTRO SOROMENHO 51

e os negócios, as festas e o amor; contaram todas as histórias do sertão,e escutaram os visitantes, e viveram horas de embalo ao som dosquissanges e das canções magoadas do pampa lunda. Ali, o povo viveutoda a sua vida na evocação das suas alegrias e tristezas e sonhoubelos e quiméricos futuros. No seu aconchego, os lundas confiaram nodestino - porque a chata é o coração da senzala e a luz do povo.

O sol estendeu a sombra das árvores no chão do terreiro. E, nessedia os homens deixaram as cubatas pela primeira vez depois dote~poral. E foram-se dispersando pelo terreiro e à volta da aldeia, averem os estragos que Caçone, o deus das tempestades, lhes mandara.

Ninguém pôs mão na chata. Todos evitavam deter-se à sua beira,como se fosse uma sepultura guardada por Camuari, o deus rl~c

mortos.Mas o fato· de a chata se encontrar por terra prendia os homens

à senzala. Ninguém se lembrou sequer de ir, numa corrida, espi~r aslavras, lá embaixo, à beira do rio, onde o temporal decerto fIzeraestragos. Os homens não arredavam pé do terreiro e das cubatas._Aaldeia estava sem chOla. A tempestade ferira de morte o seu coraçao.E estava extinto o seu fogo - o fogo que sempre iluminou o chãocircular, o "sagrado círculo" da mística gentílica, balizado por est~casque agüentavam o teto cônico, encimado pelo cassongo -- alta pm?adecorada com estilizações de estrelas. A chOla, com a sua base cIr-cular, o formato cônico e o cassongo, representa o sol e o céu. Masa chata, além de ser a "casa do povo" e atender à concepção que ogentio tem do sol e do céu, é também um ser vivo ... ,A chata é,também, o próprio soba. Ela tem uma alma ... A chOla e como quea alma do povo que se abriga à sua sombra. Por isso os lundas lhedão, em certos casos, direito a funerais.

Naquele dia, ao entardecer, os lundas deixaram, no regaço dumcoval, o corpo da chata, e sobre ele construíram uma. caban~ paramoradia da sua alma. E ali ficou, à beirinha de um cammho publIco,que é o chão dado para o descanso eterno dos sobas, a chot~ des~eslundas do descampado. E antes do povo abalar, de regress? a ald~la,para lhe fazer o batuque fúnebre, a festa dos mortos, o canoeIro CalUlgeenterrou em frente da sepultura um pau, onde esculpira a máscara dodeus Camuari.

Caiu a noite ao som dos tambores. Sobem labaredas à volta doterreiro. Soltam-se das bocas crispadas de centenas de lundas cançõesde amargura. Só a mulher do canoeiro Caluige se surpreendeu CO~luma gargalhada a sacudir-lhe os lábios. E fugiu de pavor, ao sentIr

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52 ESTóRIAS DE ANGOLA

um olhar ferir-lhe os olhos. Caluige viu-a desaparecer na cubata, masnão lhe seguiu os passos. Entrou na roda do batuque e bailou ecantou toda a noite. De madrugada, entontecido pelo vinho da pal-meira, que bebera sofregamente, deteve-se no meio do terreiro, enquan-to se calavam os tambores. O povo recolheu aos seus tugúrios. E nosilêncio que tombou sobre a senzala, o canoeiro ouviu a gargalhadada sua mulher. E bebeu mais vinho, mais, e mais, até a embriaguezlhe toldar por completo a razão.

Amanhecia. Os galos cantaram.Nessa madrugada, o canoeiro Caluige parou com um golpe de

catana o coração da sua mulher. Depois, meteu-se à estepe, perdeu-senos seus longes azuis e ganhou os caminhos da aventura.

AGOSTINHO NETO 53

AGOSTINHO NETO

Antônio Agostinho Neto nasceu na região de Icolo e 8engo, em 1922.Foi o guia da luta de libertação de Angola, presidente do MPLA e da Repú-blica Popular de Angola. Durante o periodo da revolução angolana estevevárias vezes preso. Faleceu em 1979. Colaborou em jornais e revistas e emantologias nacionais e estrangeiras. Publicou: Poemas (1961); Sagrada espe-rança (poesia, 1974), traduzido em várias línguas.

Náusea*Da sua cubata de Samba Kimõngua, velho João saiu com a família,

de manhãzinha muito cedo, e desceu a calçada, atravessou a cidade,toda a cidade mesmo, até os confins da baixa, passou pela ponte episou a ilha. Mas não já a mesma ilha dos tempos antigos. Pisou umailha sem areia, asfaltada, com casas bonitas onde não moram pes-cadores.

Velho João ia visitar o irmão que estava doente, mas tambémqueria escapar por algum tempo ao calor da cubata de latas de petróleo.A ilha é fresca quando se repousa à sombra dos coqueiros, contem-plando os pescadores a recolher o peixe.

Depois do almoço, um bom almoço em boa paz familiar, ondetudo se esqueceu, exceto a alegria de viver e a boa pinga, o velhosaiu com o sobrinho, a arrastar os pés pela areia quente da praia,deixando-se mesmo molhar, com uma alegria infantil, por uma ououtra onda mais comprida. Evocava os seus já distantes tempos demiúdo, quando era apenas o filho mais novo dum pescador. Tinham-sepassado anos. Preferira carregar sacos às costas por conta de brancosda baixa a morar na cubata de latas de petróleo de Samba KimõngUa.Mas se fosse agora! Ficaria embora na ilha; a pescar e a sentir o mar.

De repente olhou para longe e disse ao sobrinho, estendendo obraço:

- O mar. Mu'alunga!O sobrinho olhou para ele esperando mais alguma coisa, sem

compreender o significado que o tio queria dar àquela palavra. Porém,ante o silêncio do tio, desviou a atenção.

Velho João já olhava de novo a areia e monologava intimamente:Mu'alunga. O mar. A morte. Esta água! Esta água salgada é perdição.

* Reproduzido de AGOSTfNHONETO. Náusea. Lisboa, Ed. 70, 1980. p. 21-30.

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54 ESTóRIAS DE ANGOLA

o mar vai muito longe, por aí fora. Até tocar o céu. Vai até àAmérica. Por cima, azul, por baixo, muito fundo, negro. Com peixes,monstros que engolem homens, tubarões. O primo Xico tinha morri dosobre o mar quando a canoa se virou ali no mar grande. Morreu aengolir água. Kalunga. Depois vieram os navios, saíram navios. E omacé sempre Kalunga. A morte. O mar tinha levado o avô paraoutros continentes. O trabalho escravo é Kalunga. O inimigo é o mar.

Velho João lembrou-se de que umas vezes o mar estava muitofurioso, mas nunca ninguém se levantou contra ele. Kalunga matavae o povo ia chorar vítimas nos batuques. Kalunga acorrentou gentenos porões e o povo apenas teve medo. Kalunga chicoteou as costase o povo só curou as feridas. Kalunga é a fatalidade. Mas por quefoi que o povo não fugiu do mar?

Kalunga é mesmo a morte. Trouxe o automóvel e o jornal, aestrada e o fecho éclair, ITlas para ficar embora ali ao pé da praia afazer negaças. Ninguém sabe o que está no fundo do mar. Kalungabrilha à superfície, mas no fundo, o que há? Ninguém sabe. As casasde latas de petróleo, lá do Samba Kimôngua, deixam passar a águaquando chove. A civilização ficou embora ao pé da praia, a vivercom Kalunga. E Kalunga não conhece os homens. Não sabe que opovo sofre. Só sabe fazer sofrer.

Os pés do velho João arrastavam-se cada vez mais vagarosossobre a praia. Esquecera-se agora da sua alegria da hora do almoçopara pensar naquelas coisas tristes. Tão tristes como o dia em que aprimeira mulher morreu após o parto, a cheirar mal.

Abaixou-se para apanhar uma concha colorida.Olhou para Kalunga e sentiu-se mal. Uma coisa subia-lhe da

barriga ao peito. O cheiro do mar fazia-lhe mal, agora. Enjoava.Desviou os olhos de Kalunga. Estes encontraram a linda rua asfaltada,verde e negra, e lá adiante a cidade, à beira do mar, Kalunga!

Sentiu náuseas. Não podia mais. Vomitou todo o almoço.O sobrinho amparou-o e enquanto voltavam para casa, em silên-

cio, ia pensando na mania que têm os velhos de beber demais.

ANTôNIO JACINTO 55

ANTÔNIO JACINTO

Antônio Jacinto do Amaral Martins nasceu em Luanda, em 1924. Parti-cipou ativamente da luta de libertação nacional e esteve preso no campode concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Colaborou em vários jornaise em antologias poéticas. Publicou: Poemas (1961); Vôvô Bartolomeu (1979).

vÔVÔ Bartolomeu*Mano Santo iá kifumbeEh! Eh! Eh! Eh!

Vôvô Bartolomeu desde manhãzinha que olhava o pardacentocéu, enrugando a já bem engelhada testa.

- Vôvô, que é que você está ver no céu?- Estou vendo uma coisa que você vai ver só, logo no meio-dia,

e que a estas horas já chegou lá no sô Luca.- Que é que tem lá no sô Luca?- Diga nos homens para trabalhar com pressas, senão você vai

ver só: ninguém que pára com chuva.E vôvô Bartolomeu entrou arrastadamente na cubata, donde saía

um fumo bom de fogueira quente. Ainda o ouvi cantar:

Mano Santo iá kifumbeEh! Eh! Eh! Eh!

- Eh! pessoal! Vamos despachar o serviço. Vôvô Bartolomeudisse que vai vir chuva.

E todo o pessoal começou a trabalhar com força, para acabarde recolher o milho, quase para o meio-dia.

A colheita não tinha sido má, e este ano havia de pagar todasas contas e ainda sobrava dinheiro para dar o alembamento da filhado velho Gonga.

Este ano sô Antonho tinha emprestado a espingarda a troco dacarne e os kiombos e as pacaças não estragaram o meu milho, não.

Ali estava o pessoal a meter na cubata o milho todo, por causada chuva. Homens fortes de verdade! Aquele milho bonito que devia

* Reproduzido de ANTÔNIO JACINTO. Vôvô Bartolomeu. Lisboa, Ed. 70, 1979.p. 17-31.

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56 ESTóRIAS DE ANGOLA

dar pra pagar as contas e o alembamento. Ainda devia chegar proimposto e escapar de ir no contrato. Se o imposto subiu? Não sei,mas parece que este ano o imposto está mais caro! Depois tinha decomprar fiado um sobretudo na loja do sô Magalanji, porque nocacimbo, eh!, o frio era o fim do mundo!

O pessoal cantava:

Trr. .. Trrr... Trrrr ...Tuá. " tuá ...Vai ou não vai?Vaaiii ...

e o Kassul, quando carregava a quinda, respondia:Rimbuim, pim, pim, pim ...

para puxar as forças.No muxito, os pássaros da chuva, contentes, estavam a fazer:

pílulas, pílulas, pílulas ...

e na cubata vôvô Bartolomeu contava na miudagem uma história queele contava sempre todos os dias quando estava para vir chuva:

"Quando a tia Mariquinhas foi em Luanda como lavadeira, veiopara a sanzala com a mania de pessoa fina e a dizer que já não sabiakimbundo.

Uma vez começou de chover e a tia Anica disse:- Eué! Nvula uiza!

e a tia Mariquinhas repreendeu:- Ai, dona! Não fala assim, na língua de pessoa se diz aSSIm:

está chovar!"Primeiramente ouvi as gargalhadas de vôvô Bartolomeu e depois

é que a miudagem começou a rir.Começamos a ouvir barulho no céu. Nzâmbi estava com raiva.

E umas pingas de água caíram.Vôvô Bartolomeu chegou à porta da cubata e, a rir, mostrando

as gengivas sem dentes, perguntou:- Já está chovar?O pessoal tirou a camisa e começou a trabalhar com força. Bom

pessoal. Tudo família da casa e vizinho. Ali não tinha monangamba.As mulheres e a miudagem começaram a correr para enxotar os

pintos e as galinhas. A criação parece que corria bem, mas os garotos- aÍa! - corriam melhor.

A minha cadela Quer-Vir entrou na cubata de vôvô e começoua sacudir a água que tinha no corpo. Vôvô refilou:

- Tunda, Quer-Vir! Não faça chiqueiro aqui. Tundaco!

ANTôNIO JACINTO 57

Quer- Vir estava contente e parece que queria arreliar o vôvô.Veio dar voltas no terreiro, rebolou-se no chão e, quando ficoutoda molhada e toda cheia de terra, foi sacudir tudo em cima do vôvô,que ficou raivoso:

- Estupor do cão! Tunda, ché, tunda! Que te racho!Ficou escuro cedo. O pessoal estava satisfeito, mesmo nunca na

minha vida ficara tão contente. Se vendia o milho ia amigar com afilha do velho Gonga. Eu não sei o que tinha na muxima, mas háum ano que só pensava na filha do velho Gonga.Ela também diziaestar sempre a pensar em mim. Quando foi do óbito do velho Kalungaestive quase mesmo para levar ela no capim. É tão bom pensar estascoisas!

Nisto, do céu caiu um raio e caiu mesmo em cima da cubataque tinha o milho e tudo começou a queimar. Eu, o pessoal, as mulhe-res, a garotada e o vôvô Bartolomeu viemos para fora, sem medoda chuva que chovia, para apagar o fogo. Qual nada! O milho queimoumesmo todo.

As mulheres começaram a gritar e a se lamentar e eu fiquei triste,muito triste ...

Estava a olhar as cinzas e nos olhos veio água, muita água dechorar, que não era chuva, não.

Vôvô Bartolomeu ficou muito grande, rijo, muito grande, pôs-mea mão no ombro e disse:

- Sorte de preto!Olhei o meu arimbo. Meus pés descalços pisaram bem aquele

. chão, aquela terra que cheirava a chuva e era toda minha. No meunariz entrou a força toda que vinha da terra grande. A chuva corriacomo rio lá ao fundo naquela baixa. E os paus de café estavam lava-dos, estavam verdes, estavam bonitos, bonitos e novos como a filhado velho Gonga! Não, eu não ia ficar assim parado a pensar na sortede preto que vôvô falou. Não. Aquela terra tinha força. Eu também.

Amanhã eu ia mesmo, com a minha força toda, limpar a lavrado café.

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58 ESTóRIAS DE ANGOLA

JOSÉ LUANDINO VIEIRA

José Mateus Vieira da Graça nasceu em Portugal. em 1935, e radicou-seem Angola desde a infância. Participou das lutas de emancipação nacionale foi preso em Luanda, sendo depois transferido para o campo de concen-tração do Tarrafal. Colaborou em periódicos e participou de antologias.Publicou: A cidade e a infância (contos, 1960); A vida verdadeira de Domin-gos Xavier (romance, 1961); Vidas novas (contos, 1962); Luuanda (contos,1964); Velhas estórias (1964); Nós, os do Makulusu (contos, 1967); Noantigamente na vid~ (conto, 1969); Macandumba (contos, 1978); João Vêncio:os seus amores (contos, 1979).

o fato completo deLucas Matesso*

I

O guarda prisional veio lhe avisar, um sorriso de mentira coladona cara, com gosma da informação do diretor:

- Chefe Reis, tenho uma boa novidade ...Os anos de serviço que já tinha davam mesmo direito a esse ar

de segredo que adiantava pôr nas palavras. Sentou-se na cadeira, mes-mo sem licença, e segredou:

- Sabe! Fez bem em dar visita ao 16!O chefe fechou os olhinhos, pareciam eram de rato, e um sorriso

mau agarrou-lhe nos lábios descoloridos, sentindo já alguma coisaia passar com esse sacana do Lucas João Matesso.

- Tudo correu às mil maravilhas. Cinco minutos pro gajo vera mulher. Apesar de preta, é muito boa! ...

- Diga lá a novidade, carago! Está-me a fazer água na boca!O velho guarda prisional riu com a confiança desse chefe que

podia mesmo ser ainda filho dele:- Ora, quer saber?! No fim da visita os sacanas abraçaram-se

para se despedirem e julgaram que eu não estava a ouvir. Ah, ah, ah!A mulher do gajo falou-lhe baixinho em mandar o fato completo!

O fato completo? ..- Sim, chefe! Foi isso que a tipa disse!- Pra que raio quer esse gajo o fato completo com este calor?

Ou o sacana pensa que o processo dele vai para tribunal?!

* Reproduzido de VIEIRA, José Luandino. Vidas fiO\'as. Lisboa, Ed. 70/ UEA.1976. p. 113-38.

JOSÉ LUANDINO VIEIRA 59

E riu tremendo os beiços finos e mostrando fila de dentes ama-relos e pequeninos. Quando ria assim toda a cara dele ficava cheiade riscos que prendiam os olhos e lhe faziam parecer era puco docapim.

- Não sei, chefe. Mas ele insistiu e eu não quis deixar de lhecomunicar. Sabe, é o meu dever. Mas aquilo cheira-me a maroscada grossa! Pensei ...

- Diga lá, Artur, diga lá!- Talvez a gaja lhe queira mandar algum bilhete escondido ...O chefe pôs a cara séria e fez um gesto de agradecer, levantan-

do-se e começando a passear com os passinhos curtos das pernascambaias.

Esse preso já lhe estava dar muito trabalho, era uma chatice, como inspetor sempre a xingar-lhe e nada que conseguia. O bufo quetinha-lhe queixado jurava que o rapaz tinha ligação com o Kongo,mas em três meses de ir;terrogatórios, porrada todas as vezes, diassem comer e sem tratamento, nada que conseguira inda saber. Umacoisa por ali e por acolá, conversas sem importância, mas nem umnome. Chamava-lhe para interrogatório pela noite dentro, mandava-lhemolhar o corpo antes de o ajudante lhe arrear uma surra de cavalo--marinho, o homem torcia, gemia, borrava às vezes, pedia perdão,mas, bem espremido como ele sabia fazer, não deitava nada.

Os exames para subinspetor estavam chega·r e agora arrependiadas palavras ao inspetor, falando-lhe desse caso:

- Penso, senhor inspetor, que desta vez agarramos uma ligação!E sentia ainda nas costas a pancada de amigo do superior, esse

gesto que ele só punha com muita consideração. E agora? Os trêsmeses tinham passado, experimentara ainda com esses autos arrancadosde Lucas Matesso, inventara uma história que fingisse certa, mas, sócom uma leitura mesmo, o inspetor tinha lhe virado as costas, zangado:

- Que diabo, Reis! Isto não tem pés nem cabeça! Aperte como gajo. Esta coisa do outro que trabalha na mesma fábrica cheira aesturro. Insista, caramba!

- Senhor inspetor ... - tinha gaguejado, sentindo a cara ficarvermelha de vergonha e raiva - ... o gajo não tem sítio onde se lhepegue. Estou à espera que recupere! ...

Mas o inspetor não quisera mais ouvir-lhe as desculpas que estavaarranjar, a cabeça cheia desse exame que chegava e uma raiva aencher-lhe o peito curto, uma vontade de rebentar à porrada esse cãodo Lucas Matesso, fazer-lhe confessar qualquer coisa, nem que fosscmmentiras não fazia mal. Era preciso apresentar o processo ao inspctor,era a sua fama, a sua carreira que estava ainda em perigo.

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60 ESTóRIAS DE ANGOLA

Por isso ri agora baixinho, satisfeito, esfregando as mãos contentes,engelhando a cara para esconder os olhinhos maus, pensando quesim, era agora que lhe caçava, esse tipo tinha esperado três meses eagora ia talvez receber algum recado. Já sentia o chicote a berrarem cima da pele do homem, os gritos, as desculpas que ele punhasempre, aquele prazer que lhe entrava no corpo quando acendia ocigarro e se encostava na cadeira para começar ditar no ajudante:

- ... declarou que ...Saiu no jardim. As flores coloridas e iguais dos lírios, as flores

pequenas da buganvília branca pareceram-lhe bonitas, ainda molhadasda água que o preso tinha lhes regado, as borboletas a voarem, o sola bater e brilhar nas folhas verdes. O guarda prisional estava tomarconta do preso que trabalhava de jardineiro e assustou-se quandosentiu a voz fingida, nas costas dele:

- Oiça, ó Artur! Daquilo, nem uma palavra a ninguém! Contacomigo, homem, conta comigo! Se der o resultado que eu já estoua ver ...

E afastou-se com o passinho miúdo c aos saltinhos como rato, osolhos outra vez encolhidos de alegria, as mãos fazendo festas no queixo,sonhando com esse dia de manhã em que ele ia mas é fazer um fatocompleto a chicote a esse sacana do Lucas João Matesso, da cela 16.

Na porta teve ainda uma idéia que lhe alegrou mesmo na cabeça.Voltou para trás e gritou para o guarda prisional feito estátua a tomarconta das flores do jardim:

- Ó Artur! Esse gajo da 16, hoje e amanhã nada de comida!.E saiu a assobiar.

II

Deitado de costas, os olhos viajando o teto da sala, Lucas JoãoMatesso, baralhado, pensava ainda nessa conversa do princípio damanhã e nada que conseguia perceber, nem uma palavra, nem umaidéia do que o chefe lhe queria.

Primeiro, o chefe chegou mesmo nas sete e meia, os guardasandavam mandar na limpeza, mata-bicho não tinham distribuído aindae João Matesso ouviu-lhe bem chamar com um riso satisfeito, logo naporta:

- Artur! Traga-me o 16!Ficara tremer, pensava era ainda mais uma daquelas conversas

com o chicote sempre nas costas, o cigarro a lhe queimar na orelhaou ainda chapadas das matubas. Mas também não sentiu o ajudantedo chefe e isso fez-lhe ir mais calmo, na frente do guarda.

JOSÉ LUANDINO VIEIRA 61

o chefe tinha-lhe recebido com esse riso bandido que ele conhe-ci~-lhe de três meses ali, conversa todos os dias, porrada quase sempre.So que, desta vez, o homem deu-lhe mesm~ a cadeira para sentar.

- Então? Como é que vai isso, Matesso?Não tinha respondido, burro com essas palavras, nos outros dias

era ~~ cão, negro e .muitas mais asneiras a insul!ar-lhe, disparatando afamIlIa. Mesmo aSSImfalou os casos da comida de ontem, nada quelhe deram para jantar nem almoçar.

- Oh diabo! Estou farto de avisar o chefe do pessoal. Se calharesqueceram-se. Mas eu vou já tratar disso. Sabes por que é que techamei, desta vez?

Riu baixinho, fingindo amizade na voz. E começou contar odiretor não queria ainda lá inocentes na cadeia e outras conversaspara desviar. Com esses truques todos chegou mesmo no fim, só paralhe convidar:

- Já sabes! Vais logo embora. Não é mal nenhum para ti. Apolícia sabe muito bem que o gajo é que faz as confusões lá naTEXTANG. Assinas o auto e pronto! Vais-te embora! Dou-te a minhapalavra de honra! ...

Tinha-lhe custado a agüentar a história que tinha arranjado.Nessa hora, com aquele fingimento da bondade dele, quase ia esquecero chefe não sabia o nome e deixar mesmo escapar era o DomingosAndré, lá na fábrica. Mas dentro da cabeça alguma coisa avisou-lheo perigo, aqueles olhos pequenos, escondidos, mal se viam nuncaficavan: bons mesmo quando o chefe punha aquelas palavras. '

DIsse que não, sua cara de matumbo, nosso chefe sabe bem, trêsmese.s que eu estou aqui, nosso chefe deu-me com a porrada todosos d:as e. nada que eu fiz, sei mesmo alguém que me queixou e, see~ nao. seIO n?me do rapaz, nosso chefe quer lhe conhecer, é porquenao seI quem e.

Num instante um brilho de zanga e raiva acendeu nos olhos dohomem, mas, depois, com essa bondade que tinha começado mesmode manhã, acompanhou-lhe no guarda prisional para lhe trazerem nacela outra vez. E, sempre com sorriso, segurando-lhe no ombro, faloumuito sério no guarda:

- Ó Artur! Hoje dê dois pães no mata-bicho, aí ao Lucas!Tinha-lhe agradecido, fome era muita, depois o corpo com essas

pancadas de sempre já não estava mais gordo, custava-lhe agüentaresse bicho da falta de comida a roer na barriga.

Mas o que espantava ainda mais, agora que olhava no teto onde~asseava a osga à procura de mosquitos, era essa pergunta que lhetmha deixado baralhado, já mesmo o guarda tinha aberto a porta docorredor. Chefe Reis estava ainda atrás dele a pensar e, assim à toarápido, até custou-lhe a perceber as palavras, perguntou: '

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62 ESTóRIAS DE ANGOLA

- Ouve lá? Mandaste vir hoje o teu fato?Olhou-lhe bem nos olhos, outra vez aquele sorriso mau, de cobra,

e, mesmo sem Lucas Matesso falar nada, virou-lhe as costas e adiantouir embora.

Mas o que ele queria ainda falar com essas conversas do fato?Dava voltas e voltas na cabeça e não podia se lembrar de nada. Erapreciso cuidado, esse homem estava preparar mesmo ratoeira de lheapanhar. Toda a esperteza tinha que estar ainda com atenção, nãopodia deixar agora estragar esse serviço de três meses que agüentara.Domingos não lhe apanhavam, já tinha ido mesmo no Kongo, masno serviço tinha lá mais bons rapazes e ele não podia lhes trazer nesseinferno de porrada, de fome, de insultos e torturas.

Isso de fato, era o que então? A cabeça estava quente pensar,cada vez mesmo era fome, o mata-bicho não tinham-lhe dado, per-cebia bem era mentira do chefe, estava só a querer lhe desanimarnesse dia. O corpo ficou pequeno de frio, o medo lhe correu aindano sangue quando pensou talvez mesmo estava-se preparar para lhedeixar morto com as pancadas. Medroso não era, mas, cada vez quesentia o chicote de cavalo-marinho na pele, cortava-lhe mesmo ládentro. E pensou Maria ia vir hoje com a roupa dele, como era cos-tume, sextas de manhã, e uma alegria lhe agarrou no coração com alembrança da visita desse dia de ontem, pouco tempo era verdade nofim de três meses, mas boa, para ver ainda a companheira que lheesperava lá fora com a coragem dela de trabalhar ainda para os trêsmonandengues que tinha.

E, com esse pensamento, em que se via já regressar na cubata,.alegria dos monas a lhe abraçarem, a pedir talvez para contar essaprisão que mamã tinha lhes falado, os olhos começaram a querer sefechar com a fome, a barriga mesmo a refilar sem comida e sentindojá o barulho das pessoas em monte, lá fora, para entregar a roupa,começou dormir.

Era sexta-feira e os guardas andavam depressa, abrindo e fechandoo portão, fazendo a chamada com voz zangada, recebendo e entregandoas roupas bem revistadas mesmo pelo chefe dos guardas, que gostavaeste serviço.

Chefe Reis já estava ali ao lado do velho, apreciando essa técnicado homem a apalpar com depressa todos os sítios, ele pensava podiair ou vir lá bilhetes ou outras coisas ainda.

Então, Artur?- Nada, chefe! Até agora nada. Calma! Eu passo isto a pente

fino ...Gargalhou ainda essas palavras dele e o chefe acompanhou-lhe.

No chão de cimento o homem tinha espalhado todas as roupas limpasLucas Matesso ia receber nessa manhã e, com devagar, parecia estava

JOSÉ LUANDINO VIEIRA 63

ainda sentado ~a mesa a escolher ou a provar a boa comida, apalpavacom todo o CUIdado a roupa velha e remendada do operário.

Mas não veio o fato?- Não, chefe! Veio comida, dessa comida que esses gajos comem

com aquela porcaria do azeite amarelo, e esta roupa! Claro, aquil~era truque combinado ...

E continuou rir, satisfeito. Os dedos grossos e amarelos do tabacos~guravam as cuecas, procuravam mesmo na braguilha, sem encontraramda na?a, atiravam no monte onde já estavam as peúgas abertase as camIsolas amarrotadas.

Chefe Reis, sentado na borda do passeio, sentia a paciência sairembor~. Se não lhe apanhasse esse bilhete nesse dia, ia ser uma grandeconfusa o para desculpar no inspetor, sempre a xingar-lhe no telefone.~as ele pagava-Ih.e, ai se pagava! E ia sonhando esse bilhete de quetmha ~osm~, que la trazer muitas vezes o nome do outro, do Kongo.

Ja maIs calado, a alegria do riso e do assobio tinha lhe fugidona roupa a se amontoar sem encontrar ainda nada, o chefe dos guardasdesdobrava o lençol, apalpava nas bainhas, mirava, revirava-lhe bemna luz do sol, cada vez podiam ter escrito a lápis, e nada que descobria.

Agarrou, raivoso, no lençol, amachucou-lhe nas mãos, arrumouno .monte e, com dedos já a tremer e o suor a aparecer, pequenocaclmbo na testa careca, segurou o pijama. Era isso, o pijama eramesmo o fato que vinha ali!

Encheu-se com a última coragem que sobrava da dúvida de nãoencontrar e conseguir rir no chefe: .

, ~ Ora, agora, é que vai aparecer! Ê o único fato completo queha aqUI...

. Os dedos procuraram devagar nos bolsos, no colarinho, nas?amh.as, e, cada vez que as mãos não sentiam nada, as rugas da testaram fIcando mais fundas, pareciam eram rios pequenos onde corria aágua do suor. Irritado, começou a rasgar o colarinho e meteu lá osdedo~, tirando para fora o pano que servia de reforço, rasgando-lhetambem.

- O cão aldrabou-nos, Artur!- Não, chefe! Deixe que eu encontro ..._Ma.sbem lá no fundo dele um medo de dúvida estava aparecer e

se nao la encontrar mesmo o bilhete ia ser um grande azar. Nessahora ~m que estava precisar ainda uma boa informação no diretor,tudo la se estragar, não podia ser ...

O suor escorregava, grosso e quente, para dentro da camisalarga, o~ dedos atrapalhados procuravam na calça do pijama, dentrodo cordao de lhe amarrar, na bainha, embrulhando, baralhando já aspernas de calça, sem saber mais onde era uma, onde era outra, e

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então, enquanto na frente dos olhos dele aparecia assim a derrota,essa vergonha, ouviu o riso mau do chefe nas costas dele e a voz quetodos conheciam e tinham medo ali na prisão a gozar-lhe:

- Você foi parvo, Artur! Comeram-no! ...Isso ele não admitia, essas palavras. Mesmo que era um chefe

não fazia mal, podia ainda ser pai dele, um garoto assim a lhe falar.Mas, quando levantou a cabeça para refilar, os olhos pequenos emaus pareciam duas brasas lá no fundo da cara, e os beiços finosestavam arreganhados num sorriso na hora que falou, batendo bemas palavras, cada uma a dizer mesmo o que ele queria para enver-gonhar o velho:

_ Foi burro, Artur. E eu a acreditar! Vá-me buscar esse filhoda mãe!

O chefe dos guardas rasgou, às tiras, o pijama que se embrulhavateimoso nos seus braços velhos e cabeludos, enquanto, com o seuandar curto e cambaio, o chefe afastava na direção do quarto dosinterrogatórios, rindo para dentro dele, satisfeito com o que ia fazer.

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Ainda nem tinha dado um passo no gabinete, estava a olhar ochefe a sorrir bondoso, quando o chicote lhe apanhou num rio defogo do pescoço até nos rins, colando a camisa velha na pele. LucasMatesso, apanhado assim à toa, gritou, cobrindo a cara com as mãos,já sabia o ajudante do chefe ia lhe bater mesmo na cabeça comoera mania dele. O riso de mabeco do homem misturou-se nesse fogode jindungo na pele e, na cara dele, o chefe estava-lhe já a berrar:

- Tudo! Tudo! Quero tudo! Hoje não é como as outras vezes!E o chicote atirava-se para lhe apanhar nas costas, na frente,

torcendo-lhe o corpo que ele queria ainda fazer ficar direito, quieto,e abrindo a boca que ele queria mesmo fechada, calada, sem umapalavra de perdão para esses homens, três meses ali e sempre com apancada no corpo, na cabeça, parecia a vida deles não sabia maisnada, só bater, só arrear. O ajudante ria e levantava o braço gordo bemalto para deixar cair com força o grosso chicote que punha um barulhodiferente nessa manhã bonita. Chamados pelos gritos do preso, oscães correram e adiantaram ladrar-lhe, trazendo mais confusão nospés que arrastavam no cimento, no barulho da cadeira a cair comLucas Matesso batendo com a cabeça no chão, o chicote sempre aarrear-lhe, e então, quando ia mesmo falar, perdão, para ver aindase o chefe parava, a voz rouca e má entrou-lhe nas orelhas:

- Pronto! Ó Adão! Um balde de água!

JosÉ LUANDINO VIEIRA 65

A água estava fria, era boa assim em cima o fogo a doer nascostas, a queimar, e um princípio de calma invadiu-lhe para lhelembrar essa hora agor(l era perigosa, tinha de agüentar bem ...

Levanta-te! Quem é o gajo? Anda, fala depressa!- Não conheço, nosso chefe! Já falei não :onheço ...-- Schcht! Cala-te! Quem é o gajo da fábrica, depressa!O ajudante chegou-se, mansinho, mabeco de olhos a luzir com

aquela carne assim de borla, balançando e fazendo gemer o chicote.Lucas Matesso tinha agüentado esses dias todos dos três meses,

mas, mesmo com essa porrada de todas as vezes, o medo era aindaigual do primeiro dia, nada que ele conseguia para os olhos nãomirarem esse mexer de surucucu que tem o chicote, para não seI)tirainda o cortar da pele, parecia estava sempre a ouvir-lhe nas orelhas,para segurar o cuspo grosso que engolia e parar esse tremer decaniço que lhe enchia no corpo. Mas não tinha também medo, sabiabem o que custa é quando está assim só a ver, logo que o chicotecai e dói e continuam bater, pronto: o resto do medo foge com apancada, só a dor fica a crescer, e essa anulava-lhe bem. Não, nemque lhe matassem ainda, o chefe não ia saber o nome do homem ...

- Quero tudo! Hoje! Senão mato-te, cão, mato-te!A voz entrava na orelha inchada, e nos olhos apareceu essa cara

pequena, cheia de riscos, de olhos de bicho do capim, escondidosno fundo dos buracos, e então a voz dele, nem lhe conheceu mesmofalou só: '

- Juro, nosso chefe! Não lhe conheço ... Isso tudo são men-tiras. Me queixaram, eu sei, nada que eu tenho ...

Nem acabou falar. O chefe cuspiu-lhe mesmo na cara, mas nemteve tempo de limpar o cuspo amarelo. O ajudante já tinha-lhe puxadono braço, o corpo leve bateu na parede, voltou parecia era bola deborracha e uma roda de fogo grande como o sol lá fora encheu-lheembaixo da barriga, trepou-lhe nos olhos que se abriam tanto comoa boca a querer comer o ar, o ar que não entrava, com essa dor deagulha do pontapé tinha-lhe posto nas matubas. Os olhos torcerarn,da garganta o que saiu era mesmo urro, fala de animal ferido namata, e o corpo dele, magro e seco, comido na fome, amachucadocom as pancadas de sempre, não conseguia ficar de pé, mesmo queele queria.

Por cima dele o riso do chefe e do ajudante faziam uma misturamaluca com o ladrar dos cães e o barulho da água no baide que lhemolhou por todos os lados.

Dos beiços inchados, um fio de sangue saía, mexendo-se diantedos olhos abertos, por cima do cimento vermelho do chão. Um vÔmitogrande encolheu-lhe a barriga, mas nada que tinha comido nosses

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dias e só uma água verde saiu a se misturar no sangue, no suor, naágua do balde. ,

Assim estendido, agüentando as dores dos pontapes que as botasdo ajudante lhe punham nas costas, nas perna~, no ~eito mesmo, ?solhos não queriam deixar ainda de olhar essa agua drferente, de trescores, a correr, a correr ...

E era o Lukala que ele via, o rio da terra mijando a água boanas lavras. O Lukala descendo, vagaroso e seguro, sem medo, jádepois do salto do Duque de Bragança, a correr para se.deitar em ~imadas águas do mais-velho Kuanza e, de mão dada, segUIrem os dOISnadireção do mar. .

Essa figura assim, das águas do rio e dos capr~s dos lados adançar no vento, os dendéns pendurados nas palmerras, as. lavr~sverdes de milho e mandioca, deu berrida nas dores, não sentIa marso chicote outra vez a bater e as palavras que o chefe punha, cadavez maiores, parecia ele mesmo é que estava a levar com pancada.

- O bilhete! Quero o bilhete! ...Mas qual bilhete, então? Nunca tinha-lhe falado uma conversa

de bilhete e agora mesmo, desde que começa~a, era só iss,o qu~ elequeria saber ainda, eram essas as palavras, o ajudante tambem gntavacom a sua voz de bode, não percebia nada.

- Não sei, nosso chefe! Não sei! Perdoa!Essas palavras estavam sair já com o hábito, era sempr~ isso ele

dizia desde o princípio quando lhe deram encontro na fabnca e lhetrouxeram ali na prisão. Mas os homens não desistiam, gritavam dentrodas orelhas dele, o ajudante não parava de bater e Lucas Matessoqueria mesmo se lembrar, gostava ainda saber o que era essa conversado bilhete, mas nada que lembrava mesmo, só as palavras do chefe,as chicotadas do ajudante, berros:

- O fato completo! O fato, onde vem o bilhete!Então a dor foi mesmo mais grande, fogo como do pontapé das

matubas, do princípio. Todo o corpo não quis mais ~e d~fende~:,forçapara agüentar os braços e defender ainda a cabeça nao tmha so, olhosinchados já, nada, ninguém que ele via bem naquela hora, nas orelhasum zunir de muitos mosquitos atropelava essas palavras do chefe,mistério também para ele:

- O bilhete! O bilhete do fato! Quero saber!Sentiu outra vez o gosto amargo dessa água verde que saiu no

vomitar as estrelas de todas as noites escuras dançavam na frenteda cara: na cara do ajudante a rir com a boca toda ~berta,e caiucom barulho de saco vazio em cima do cimento do chao.

Lá fora, nos jardins, as borboletas e os pássaros não paravam depassear, pondo beijos nas flores, e o vento da manhã assobiava pequenonas folhas dos mamoeiros que queriam espreitar por cima dos muros.

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O chefe agarrou no balde da água e despejou outra vez na cabeçaensangüentada, no corpo rasgado de Lucas Matesso.

- Filho da mãe! O gajo já não agüenta nada! Fica para logo!Já é quase meio-dia!

O suor corria-lhe no peito curto e adiantou tirar os óculos paralhes limpar. O ajudante arrumou o chicote no canto do quarto, voltou,pôs ainda um pontapé na barriga do preso. Lucas Matesso mexeu,estava mesmo acordar nessa hora, sono pequeno e pesado a pancadatinha-lhe dado, e os olhos não queriam mais se abrir bem, ficaramainda baralhados a ver as biqueiras dos sapatos do ajudante diantedele.

Em todo o corpo o sangue levava jindungo, parecia era umbando de marimbondos estava-lhe comer na carne, e o zunir dessesbichos nas orelhas não deixava-lhe ouvir nada que o chefe falava noguarda. Na cabeça dele, grande e inchada parecia era abóbora, essaspalavras do fato completo, do bilhete, não aceitavam sair, nem mesmoquando o sol carrasco continuou-lhe bater no corpo cheio de sanguee lhe carregaram, sempre com socos e pontapés, na cela dele.

Dentro da cela o silêncio encheu-lhe, grande e grosso, a corsuja de sangue das paredes dançou na sua frente e só teve tempo deestender mesmo as mãos para se agarrar quando lhe atiraram na cama.

Nessa hora, então, as lágrimas que tinha agüentado lá no gabinetecorreram, quentes e salgadas, por cima das feridas da cara, lavandoos olhos tapados, dançando-lhe no corpo com um correr macio esentiu a companheira nessa visita de ontem, com a alegria dela antigaguardada nos olhos que lhe miravam e a voz doce como azeite-palmaque lhe tinha falado, que lhe tinha segregado essa coisa boa ...

Não! Não podia ser mesmo verdade, destino de uma pessoa nãopode arranjar essas histórias assim, tudo era mentira, mentira só.Mas, no chão sujo da cela, o monte de roupa dele, essa roupa Mariatinha lhe lavado e engomado com o gosto de todos os dias, não deixavamais mentir nele mesmo, nem que queria. Tudo amarrotado, torcido,e mesmo o pijama estava ainda em bocados e esses trapos assimdesrespeitados falavam era verdade isso que a lembrança das palavrasda companheira tinha trazido nessa hora mesmo.

Estendeu a mão, devagar, o corpo a tremer com a dor e a pelea rebentar cada vez que mexia, o sangue a se colar na roupa, nadireção das pequenas panelas encostadas na parede, junto com essaroupa estragada. Levantou só, com jeito, a tampa, a gozar ainda essasurpresa boa ele já sabia ia mesmo suceder.

A dor era muita a pisar-lhe em todo o corpo, três meses decastigos e fome, pancadas e conversas, tinham-lhe custado agüentarficar calado com o nome de Domingos. Mas, nessa hora, olhando aluz amarela do azeite-palma no fundo da panelinha, a dor fugiu,

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voou, as lágrimas eram só água sem raiva que tinha bebido no Lukala,o jindungo do doer das feridas era ainda esse jindungo vermelhinhoque lhe mirava das costas do peixe.

O amarelinho doce do azeite-palma estava a rir para ele comesses dentes todos do feijão bem cozido e quase esborrachado pelacolher de pau, Maria sabia fazer tão bem, nessa panela de barroonde lhe cozera. E tinha ainda o peixe para lhe juntar, as bananasmesmo, embrulhadas no papel, tudo como ele gostava, essa boa comidado povo que a companheira cozinhava, sabia ainda arranjar comoninguém. Essa comida de feijão de azeite-palma com peixe de azeite--palma, a banana e tudo, que toda a gente nos musseques tem só amania de chamar de "fato completo".

A gargalhada grande como as chuvas de abril engrossando maisos rios cantou na garganta dele, encheu a cela de alegria, fugiu nopostigo, pelos arames da rede, entrou maluca nos gabinetes onde osirmãos agüentavam as pancadas e torturas, calou os pássaros nojardim e, com um salto, voou por cima dos muros da prisão, correndolivre pelas areias de todos os musseques da nossa terra de Luanda.

(13-7-62)

ANTôNIO CARDOSO 69

ANTONIO CARDOSO

Nasceu em Luanda. em 1933. Participou da luta de libertação e estevepreso no campo de concentração do Tarrafal por muitos anos. Teve obrapublicada em antologias poéticas e colaborou em vários órgãos da imprensa.Publicou: Poemas de circunstância (1961); 21 poemas da cadeia (1979);Economia Po/itica (Poética) (1979?); Panfleto (Poético) (1979?); Baixa &musseques (contos, 1980).

o cipaio Mandombe*Quando no povo apareceram os capitas com as "ordens do

Senhor Chefe" para que o Soba indicasse "mbónga pra ir na tropa,na Luanda", Mandombe, caso raro, exultou. Como sempre, todostentaram tudo para escapar, uns, a monte, por perto ~ os que tinhamlavra, mulher, filhos -, outros, até indo oferecer-se esperançadosnas obras da estrada do Posto, ou da Granja odiada: trabalho escravopara alimentar todo o pessoal da Administração e os presos. Aomenos ficariam junto das famílias. .. Pior, só o Contrato ou mesmoo trabalho voluntário nas fazendas de café. Mas aí, ao fim do tempo,se calhava, era bom regressar e, sem dinheiro que ficava na comidà.pelo caminho de regresso, ter a sorte de encontrar a rapariga falada .. '.Às vezes mesmo, ainda sobrava algum kitari a receber na terra ...

Mas ele achou que seria aquela uma boa oportunidade. Andavadesgostoso. Ainda não conseguira o dinh~iro suficiente para o imposto,quanto mais para· as despesas do alembamento, ela mesmo estavainclinar-se no outro, insofrida de tanta espera, as amigas da mesmaidade, casadas, a fazer pouco, a fazer inveja. . . Mas, sobretudo,aquelas conversas com o mais-velho seu tio que tinha ido na lndi,acomo soldado e trouxera bicicleta, óculos, malas (fora motorista, atél)e dinheiro que bastava para amigar duas mulheres, tiraram-lhe asdúvidas. Com pouco mais, apresentou-se ao Soba a pedir para contarcom ele.

Fez de conta que não percebeu a admiração e os isemu com quereceberam a sua atitude ("até o Soba que o Senhor Chefe escolheu!")

* Reproduzido de CARDOSO, Antônio. Baixa & musseqlles. Lisboa, Ed. 70{UEA,1980. p.' 19-34. (Escrito no Pavilhão Prisional da Polícia Internacional e deDefesa do Estado, em São Paulo (Luanda), em maio de 1962.)

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e, afanosamente, prontificou-se a colaborar na descoberta de todos osque andavam fugidos.

Assim, um dia, Mandombe e os outros apresentaram-se no terreirodo Posto - novos e velhos, a idade pouco contava - e, em breveapareceram os camiões para os transportar. Sentiu pena quando viuas mulheres amontoadas a certa distância, em alta grita, puxando paráa sua beira os monas espantados, os velhos que se vinham despedirdos parentes que os sustentavam e, mais ainda - quase se arrependeu-, quando a viu por detrás dum grupo de raparigas a espreitar,medrosa. Julgou ler tristeza nos seus olhos de seixa quando .seaproxima do rio para beber. É preciso fazer força no coração, pensou,senão um homem, sem vontade, é mulher mesmo. . . Procurou sorrir,conversar alto, mostrar alegria ...

A seu lado, já sentados nas traves de madeira improvisandobancos, encontravam-se alguns mais-velhos: só mesmo o SÔ Chefe nãolhes via já não tinham idade pra soldados. " Também se não eraassim, como cumprir as ordens do Governo? Manda cem, mandaduzentos!, como lhes ia arranjar tantos?! Havia outros eram aindatumbonga ...

A uma ordem berrada pelo Senhor Chefe, os camiões roncarame as mulheres responderam num choro cantado levantando os braçosao alto, batendo cum as mãos nos panos.

A viagem foi demorada e difícil. Em breve, já nada restava dospequenos farnéis embrulhados em folhas de bananeira ou panos queos familiares haviam amorosamente preparado. Os que tinham algumdinheiro ainda se foram governando por uns tempos mas, mais tarde,todos se viram obrigados a recorrer às pequenas lavras de milho,mandioca, batata-doce, quando as havia espalhadas à beira da estrada,aproveitando as sucessivas paragens para o motorista branco urinarou desenferrujar as pernas.

Às vezes, por um pequeno nada, caía-lhes em cima os cassetetesdos cipaios que os guardavam, não fosse algum, mais desesperado,fugir pelo caminho como, aliás, sucedia sempre. E de nada valiamrogos, súplicas, ameaças, e até mesmo algum dinheiro para comprarboas graças. Não, que cipaio tinha as suas vantagens bem à mostra!,pensava Mandombe cabisbaixo e entristecido.

Numa semana estavam em Luanda: chuvas, enterranços, avarias.Passaram pela Administração, onde foram controlados e, como sempre,despojados pelos cipaios das melhores roupas que traziam, dinheirose havia, ou qualquer imbamba preciosa, debaixo da sorna mole ecomplacente dos funcionários. Quando chegaram ao Batalhão, paraa incorporação, já misturados com homens de várias partes de Angola,muitos vinham feridos e espancados, todos vestidos com farrapos sujos,arranjados à última hora, nas pilhas de roupas deixadas por presos

ANTôNIO CARDOSO 71

e mais presos comuns da Administração .. Sucedeu. a~é qu~ naqueleano havia um maluco, "o nosso sargento dIsse ele fmgIa. .. ,e outroque ficou com um olho furado, mas esse mandaram-no logo embora,"sem milongo, nem nada" ...

AÍ começavam a "ser homens", a "amar a Pátria e a bandeira:',como disse "o nosso primeiro" logo no princípio e Mandombe repetlaconvicto.

Primeiro toda a gente formou debaixo de gritos e empurrões ?os"soldados prontos". Mandombe fixou que, de tão as.sustados, quenamfugir, empurravam, não acertavam no lugar. DepOls de pass~das as"confusões" um primeiro cabo preto já com cabelo branco (maIs tardeMandombe repararia que era o único em todo o Batalhão) ma?doutoda a gente ficar nua. Naquele instante todos pensaram era bnnca-deira. Mas, não, o cabo berrou e começou a puxar a roupa a alguns.Rapidamente todos se despiram e ficaram-se espant~dos, com as. mãoscruzadas à frente, sem perceberem como era aqmlo. .. DepOls umcabo branco levou-os para a oficina dos carros, assim nus num arre-medo de marcha, a fim de tomarem banho. Soldados antigos, demangueiras na mão, dirigiam os finos jatos de água sobre grupos desete homens amontoados, a quem previamente se distribuíra "sabãomacaco". Com ordens de lavar bem a "carapinha, os sovacos e asmatubas" todos se esfregavam freneticamente, procurando evitar oaguilhão da água nas partes mais sensíveis do co.rpo. À volta d~l~souviam-se os dichotes dos soldados dos anos antenores, numa especIede inglória vingança, ao lembrarem-se do que lhes tinha tambémacontecido. Por sua vez, os "nossos cabos milicianos", brancos, chaco-teavam gozando as furtadelas dos corpos e, alguns mesmo, mandavamdirigir os jatos finos de água para as partes do corpo que eles tentavamcobrir com os braços cruzados. Mandombe corria de espanto emespanto.

Acabada a barrela, todo o mundo recebeu 2 fardas de cáqui, 2de zuarte azul (para usar na recruta, dentro do quartel), 1 par debotas, 1 cinturão, 2 bivaques, 1 par de polainas, 2 cuecas, 2 lenços,1 escova e 1 barra de sabão. Entretanto, fizera-se um monte de todosos farrapos despidos, deitaram-lhes gasolina e largaram-lhe fogo.Timidamente, os que aguardavam o banho miravam obcecados aslabaredas e os rolos de fumo que subiam no dia quente ...

Pronto. Estava cortado o passado. Outra vida começava.Pregado à roupa nova ia um papel - o número que cada homem

tinha de decorar e se não o conseguia deixava-o agarrado à farda,junto ao bolso. Ao outro dia, cabos e "soldados prontos" rapavam"à escovinha" as cabeças de todos. Os últimos saíam do suplício cheiosde golpes, a escorrer espuma sanguinolenta pelas faces porque as lâmi-nas eram poucas e o cansaço dos barbeiros improvisados já melhor

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não permitia. De nada valeram os resmungos em kimbundu, de Man-dombe, perante a má vontade do seu barbeiro improvisado, aborrecidocom a tarefa, o calor, e os cabelos espalhados pelo corpo.

De longe, os sargentos e cabos milicianos assistiam a todo oritual gritando ou dirigindo-se aos "soldados prontos": lembras-tequando vieste? Eras assim, como um bicho. . . Riam-se todos, contra-feitos. Um que outro resmungava: bicho era a ... que se perdia nomurmúrio das conversas. Tudo isto, é bem de ver, ia arrefecendo emMandombe aquele desejo de ser motorista, de ganhar dinheiro, secalhar mesmo conseguir Bilhete de Identidade como os brancos, aquelesoldado velho, seu tio, e, um dia, regressar no povo a procurá-lasem receio de rivais. Depois. .. haviam de ver ...

No terceiro ou quarto dia, formaram para a revista médica.Limitava-se a uma observação superficial. Todos se despiam nova-mente, as roupas à frente de cada homem, formados de fileiras abertas,e o médico, o enfermeiro e os faxinas da enfermaria sondavam a peledemorando-se mais por altura do sexo à procura de qualquer indíciode doença venérea, só possível nos incorporados "calcinhas", comodizia o senhor tenente médico. Muitos tinham manchas claras pelocorpo, outros feridas feias, alguns sarna, todos emagrecidos pela viagem,as pernas de alguns agitadas por um leve tremor. Uns tantos eramentão separados e medicados: álcool para limpar, mercúrio, sulfa-midas e. .. pronto, estavam todos aptos "para servir a Pátria" comofalara o primeiro sargento.

Mandombe agora quando pensava nos quase quatro anos de"sirviço" que ainda tinha de passar até poder regressar à terra, sentiasempre um aperto no coração: e se ela não esperava?.. Se nãocumpria a palavra dada, naquela noite de luar que parecia dia e lheconvenceu a ir falar debaixo da mulembeira? ... Ah, dessa vez estavamquase mesmo ...

Foram duros e violentos os primeiros tempos. Cada grupo de 40homens evolucionava todo o dia ao sol, sempre a ouvir os berros doscabos milicianos e dos furriéis: sentido!; direita volver!; em frente,marche!; alto! Muitos enganavam-se e então havia "chapada da cara",insultos, e se era o "nosso tenente", saía mesmo chicote pequeno ...Quem sofria mais era aquele a quem os "nossos cabos" chamavamde "Fifi". Ainda que era monandengue. Na sanzala só queria brincarnas corridas, pelo capim, atrás dos kinjongos, ir tomar banho no rio,subir nos paus. Tinha medo de tudo. Quando lhe falavam, ficava atremer e quase chorava. Levava sempre muita chapada na "xipala"como dizia aquele "nosso tenente" de Nova Lisboa, e de cada vezlhe saíam pior os movimentos.

Mandombe, nessas alturas, sentia um bicho a roer-lhe no peitoa "pôr confusões na cabeça ... ". Não gostava que outros homens o

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disparatassem e lhe dessem chapadas. Mas lembrava-se sempre, atempo, que tinha que agüentar o "castigo" para um dia voltar na terrae fazer inveja a todos. .. Fora mesmo ele que quis vir, podia terfugido, ir na estrada, na Granja... No entanto, certa vez, estevequase a "fazer desgraça", a sair da forma com outros para "ensinaraquele nosso capitão", encolerizado, a bater num dos companh~rosdo kimbo - o "Sékulo", como já era conhecido, e que viera em vezdum tio, com nome trocado e tudo - porque fazia os movimentosmuito devagar. Então ele não sabia, não tinha dito já no "nossoprimeiro", ele passava as noites deitado na tarimba de madeira eesteira gemendo, de manhã acordava com as pernas inchadas?! Daquelavez Mandombe ia perdendo mesmo a cabeça: a chibata do capitãofizera um furo numa das têmporas de "Sékulo", donde jorrou umjato fino de sangue, parecia uma torneira aberta. Foi ele que pôs umdedo na ferida· e o arrastou à enfermaria, "Sékulo" todo mijado commedo. Fechou os olhos quando ouviu as gargalhadas do "nosso furrielenfermeiro" ao ver um soldado a mijar pelas pernas abaixo. .. Man-dombe não pôde impedir-se de monologar alto: se fosse ele queriaver se não se mijava também ... Inquieto, mal refeito da ousadia, sómais tarde associaria a frase do furdel enfermeiro: "esse capitão éum cabrão", ao seu tratamento mais respeitoso para todos os homensnecessitados de curativos.

Os homens ficaram admirados. O "nosso capitão" logo no prin-cípio tinha feito uma "conversa" para toda a Companhia dizendo quenão era permitido dar pancada nos recrutas, os civis é que faziamisso e no Posto, mas ali na tropa era diferente, o "nosso major" nãogostava: por que então os sargentos batiam sempre e ele agora tam-bém?! Mandombe adiantara estas razões à medida que avançava paraa enfermaria. Na sua raiva deixava crescer um ódio que se tornavasalutar naquela altura: assim o coração de um homem já não arre-benta ...

Um dia o "nosso major" - aquele homem já velho que contavahistórias de quando estava em Timor e os japoneses lhe prenderam -fez um discurso aos soldados. Tornou a falar que o soldado devesempre respeitar o superior em todas as ocasiões mesmo quando nãotem razão. Que ali ninguém podia bater nos recrutas. .. Outras con-versas da Pátria. No fim do discurso, avançou para um "nosso alferes"que era Chefe de Posto e viera fazer seis meses de comissão, pediu-lhea chibata e partiu-a à frente dos soldados. Nem todos perceberam aligação do discurso com aquela atitude, mas Mandombe foi um dosque fixou e verificou, então, que aquele oficial já não batia mais noshomens. Os sargentos é que não ligavam a "essas cuêsas do velho" ...o que era muito pior porque, ao fim e ao cabo, quem é que lidavacom eles todos os dias na instrução?!

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Havia alguns cabos milicianos que não berravam nem batiam.Mandombe, nuns, percebia falta de coragem, noutros, respeito peloshomens. Havia até dois ou três que nas aulas de "Higiene e Moral"ou "História da Pátria" gostavam mais de ouvir as "conversas" queos "seus" homens contavam. Mandavam cantar as cantigas do povo,pediam para contarem lendas, adivinhas. Mandombe não conheciaessas palavras de português, mas afinal queriam dizer misoso e jinon-gonongo. E quando Mandombe e "Fifi" não sabiam é porque eramesmo difícil. Os dois eram os mais aplicados nas aulas, ler, escrever,contar. Aprendiam depressa e já ajudavam os outros, depois de jantar,antes do toque de recolher. "Fifi" mesmo era o melhor. Quandopegava na ardósia e começava a ensinar as contas, todos se esqueciamdo seu medo de menino em saltar os fossos, trepar as paliçadas,pular do muro alto. Ninguém ria, fazia pouco, recolhidos num silênciorespeitoso. Era por isso que nas aulas para aprender a ler e escrevernunca que faltava ninguém por doença, nem ninguém perdia a ardósia,o lápis, havia um silêncio atencioso, os olhos abertos, pousados noslábios dos cabos milicianos para decifrar as palavras da língua estranha.Os "nossos oficiais" estavam sempre a dizer que ali não se falava"língua de preto" ... Mas aquela ânsia de aprender a ler, escrever econtar, significava mais que o medo aos "nossos tenentes": depoisda tropa podiam arranjar "bom emprego mesmo", já não havia maisContrato, podiam ser motoristas, cobradores, contínuos, mecânicos,muita coisa. .. Ficavam, pois, todos satisfeitos quando aqueles cabosmilicianos "mais bons" lhes ensinavam muitas coisas, Geografia,explicavam por que a terra é redonda, anda à volta do Sol e giracomo uma bola, onde ficavam as terras de Angola, todos tinham umaexclamação ao verem no mapa desenhado na areia a localização dassuas regiões de origem: aqui Bailundo, Caconda cá embaixo, aqui osDembos, Golungo é quase aqui, ao lado Dal atando, mais acima Uíje,ali fica Malanje, à direita. Mais longe, Saurimo. Quem é de Malanje?E então aquele "nosso cabo" perguntava coisas do algodão, como erapara cultivar e colher, mesmo o que comiam, às vezes ficava espan-tado, parecia não acreditar quando os soldados diziam que tinhamaté de "comprar água nos brancos" ...

Havia um "nosso cabo" ("nosso cabo Dias", com uma cicatrizna testa, mau, que ficou depois na tropa, como furriel, não quissair ... ), que não gostava daquelas "conversas". Quando era ele adar instrução, insultava os homens, dava chapadas, todos eram "ma-tumbas", "filhos da mãe". Ao referir-se a Mandombe dizia que "fingianão saber montar e desmontar a metralhadora ... ". Desde essa horadas chapadas, Mandombe nunca mais esqueceria as palavras "percutor","placa de guias" e montava a metralhadora com raiva, com ódio, comvontade de derreter as peças de aço contraídas na sua mão ...

ANTôNIO CARDOSO 7S

Ao fim de alguns meses foram dados como "prontos". Os pelotõesele instrução foram reduzidos, os "mais burros" - os mais velhos ouaqueles ainda mal entrados na adolescência - iam para criados dosnossos oficiais, passavam a faxinas. No outro ano, uns entravam outravez na recruta, outros eram dispensados. Alguns, Mandombe nogrupo, foram escolhidos para futuros "soldados arvorados", depoisseriam segundos-cabos. Começou então a guerra pelas especialidades.Os lugares de motorista e mecânico eram os mais disputados. Masn~da conseguiu: e todo o seu sonho, tudo aquilo que o obrigara aVir, começou a ruir. Afinal "as conversas" do seu tio não saíraml:erto. .. E por quê? O "nosso cabo Dias" tinha-o de ponta, disseranão gostava da sua "prossunalidade" ou quê, empregou urna palavradifícil. Falou com o capitão "ele é muito refilão", lhe mandarampara lhe fazer pouco nos. .. tambores. Tocar caixa. .. era mesmoseu azar ...

Correram-se os dois primeiros anos do "castigo". Mandombehabituou-se à vida de Luanda. Já se ria dos novos que andavam nasruas, em grupo, a marchar "parece andavam na parada", sempre abater no chão com o pé esquerdo levados pela força do hábito.Regressar ao povo já não queria. No musseque arranjara mesmo umacompanheira que dera uma filha. Agora só tinha raiva no peito. Etudo por causa daquela notícia que um dia lhe trouxeram da terradistante: a rapariga amigara com o lavadeira do "Sô Chefe" e era"criada da senhora", parece havia história de um aspirante lhe desca-baçara e "SÔ Chefe" com "porrada" lhe obrigou amigar com o lava-deiro. Foi mesmo só por isso que Mandombe se resolveu por aquelamulher. De há muito que já percebera a insistência com que elaaparecia, quando ia com os amigos passear no MarçaI. Pronto!, nanoite mesmo da má notícia lhe falou e logo-logo ali tudo ficou combi-nado. Montou casa no musseque.

. Um dia deram-lhe a nova de ter sido escolhido para cipaio.ASSIm, de repente, sem contar, desorientou-o semelhante escolha.Depois sentiu repulsa, raiva até por ser alto, bem constituído e porter demonstrado ser ágil e destemido durante todo o tempo da tropa.Pois é, julgavam ele era bom para dar porrada nos outros da sua cor ...

Ximba!, resmoneava depreciativamente para a companheira. Estatambém não gostou, as vizinhas passaram mesmo a olhar para elacOm outra cara. Mandombe durante os dias finais do seu tempo detropa, e primeiros já como cipaio, fechou-se num mutismo feroz,ningUém o compreendia, seus amigos supunham ele "agora estavati arm«r em importante ... ". A companheira ainda ficou mais espantadaquando ele um dia apareceu bêbado, ele que nunca bebia, ele queestava sempre contra aqueles que passavam as noites nas "tabernasdos fubeiros do musseque".

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76 ESTóRIAS DE ANGOLA

Com cerca de um ano, a filha, já gatinhando pelo chão térreo da i

cubata começou a atrair a atenção de Mandombe, agarrando-se-Iheàs per~as e querendo trepar. Estes momentos sua;izavam-no., Embreve, a menina se habituou a cavalgar nos seus Joelhos. Ate que,certa noite a bebida foi mais forte: a criança, como sempre, procurou-oe nessa al~ura, bateu-lhe. Kaxina, a sua companheira sempre submissa,d'essa vez cresceu para ele como nunca o fizera, surpr~en?endo-o. EMandombe só conseguiu ver-se livre dela quando a atmgiU com umsoca mais forte que a prostrou no solo, em altos gritos, "aiuê, vai mematar!", alertando toda a vizinhança. Desde esse dia cresceu a suafama de cipaio cruel. "Caté na filha tão piquinina é capaz de bater ... "

Mandombe julgava que ninguém podia comp~eender os se~s pro:blemas. Se o vissem nas Rusgas. .. Sim, ele sabia, mas de cIpaIO eque não fazia mesmo... Se o vissem... Por isso l?e doÍa comopedradas os dichotes dos miúdos, escondidos pelas esqumas das cuba-tas: "Ximba não usa cueca! ... "

Realmente Mandombe, nas alturas das Rusgas, não se aprovei-tava, como alguns dos seus colegas, do desespero dos h.omens .ap,at.Iha-dos, a quem extorquiam dinheiro a troco de uma fIgura fIctIcIa. ebem barulhenta, improvisada no melhor momento. Se por acaso eraescolhido para castigar um homem, "dar a justiça", tenta~? t~do parao evitar. Se não o conseguia, fechava-se naquele seu SIlenCIOferoz,cada vez mais freqüente, em regra logo interpretado pelo castigadocomo sinal evidente da sua crueldade. Depois das Rusgas era certoe sabido que aparecia bêbado em casa. Agora nem a companheiraganhava o favor dos seus desabafos: - aquelas lembranç~s do povoe do maldito dia em que quisera vir "na Luanda, ser motorIsta, ganhardinheiro ... ". Praticamente não se falavam e a própria Kaxina pro-curava desprezá-lo cuspindo e muxoxando quando passava por ele,nos trabalhos de casa.

Uma noite, mais uma vez teve que se i?tegrar numa Rusga.Nesta tarde Mandombe bebera bastante. Insofndo como nunca, res-mungou e pelas suas mãos esgueiraram-se quantos homens ~assaramna esquina à sua guarda. Foi então que ele VIUaquele seu antIgo com·panheiro da tropa e da sanzala, aquele a qu~m "os br~ncos" chamavamde "Fifi". Estava um homem, não era maIS o menmo alto e magro,um dia separado dos pais e dos seus companheiros de brincadeira.Ficara preso com mais homens, no rescaldo da A Rusga: f.alta deimposto e Cartão do Patrão, quase todos. Quando pode,. aproxImo~-sedele e perguntou-lhe o que havia: falta de imposto e am~a por CImaestava na lista dos foragidos ao Contrato... Faz mUlto, quandoregressei no povo, tive de fugir, me queriam mandar em Ngaje, numafazenda ...

ANTÔNIO CARDOSO 77

Tacitamente, desconheceram-se sem que, no entanto, Mandombeaproveitando outra ocasião favorável, não lhe tivesse dado a entenderque tentaria ajudá-lo. Agora era impossível, já amarrados "nas cordas",amontoados na carrinha.

Ao outro dia, manhã cedo, sóbrio e composto, o que há muitojá não lhe sucedia, foi falar com o "SÔ Aspirante da Secretaria" sobreli situação do amigo. Procurou fazê-lo interessar-se por "Fifi": queera bom rapaz, se lhe arranjava a situação, ele ia já na terra, mesmo--mesmo no Contrato ...

Saiu depois de ter ouvido uma espécie de "vamos ver" que inter-pretou como uma adesão ao seu pedido. Qual não foi o seu espantoquando, manhã adiantada, queimava o sol quase a pino, o chamarampara colaborar na "justiça" dos presos da véspera. Tentou esquivar-sealegando doença, sentindo o olhar assustado do amigo e dos outros"bandidos" e o olhar vigilante e desconfiado do "SÔ Chefe": vá,começa por aquele, disse ele, apontando-lhe precisamente "Fifi".

Mandombe hesitou. Olhava ora para um ora para outro. Pelosseus olhos passou uma nuvem escura e sentiu-se tonto. O suor escor-ria-lhe pela face. Durante segundos fitaram-se, o Chefe surpreso,Mandombe desvai;ado, até que "Fifi" saiu da fila onde estava e seplantou à sua frente, calmo. Aquele movimento desviou os olharesde ambos, que caíram no preso. Com um sorriso estranho nos seuslábios, "Fifi" estendeu uma mão que Mandombe agarrou. Olhara~-sebem fundo. "Fi fi" continuava a sorrir encoberto pelo corpo do amIgo.Este agarrou na palmatória e descarregou a primeira pancada. Força,gritou o Chefe, atento. Mandombe hesitou novamente. Força, dissenum cicio o amigo, que só ele ouviu, e Mandombe vibrou com fúriana outra mão. Força, ciciava sempre "Fifi", nos intervalos dos gritosque largava perdido de dores. Força, diziam seus olhos leais e amigos.

Quando o Chefe se retirou, fustigado pelo calor, Mandombeparou e tornaram a olhar-se: amanhã já está bom, disse "Fifi" como mesmo sorriso bom, enquanto entalava as mãos inchadas e sangren-tas, entre as coxas. Eu vi tu ias fazer desgraça e a gente é amigo ...Ele te matava ....

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78 ESTóRIAS DE ANGOLA

COSTA ANDRADE

Francisco Fernando da Costa Andrade nasceu no Lepi, A~~ola. em 1936.Colaborou em revistas e vários órgãos da imprensa e partlcl~?U ~e an.to-logias. Participou da luta de libertação nacional e est~ve no exillo, In.cluslveno Brasil. Publicou: Terra de acácias rubras (poesia, 1960); .Poe~/a comarmas (1975); Caderno dos heróis (poesia, 1977); No velho nmguem toca(poema dramático. 1978); Estórias de contratados (contos, 1980).

Um conto igual a muitos*Paulino Kambulu regressou de S. Tomé. Seis anos de trabalho

humildemente cumprido, três cobertores de lã, dois pa~es de sap~tos,uma farda de ganga descorada com o número bem leglvel no pelto ealguns angolares na pesada mala de chapa adquirida no mercado de~~. .

A maior fortuna, porém, eram seis anos de histónas do maJ;".edas roças de cacau, para contar à hora do sol-posto, aos n~)Vosemredor da fogueira. Histórias que eram afinal um pouco de SI e dessepassado obrigatoriamente presente.

Paulino voltou. Outros voltaram. Mais velho? Ninguém o sabe,que os anos não deixam marcas no ros,to. dos hO~,et.Is.As rugas e oscabelos brancos são reflexos de lutas mtlmas, vltonas e derrot~s -principalmente derrotas - em que o tempo apenas conta para aJ'ijdara situá-las. Voltou.

Trazia cabelos brancos e rugas, a mesma cor, talvez um poucomais negra, e os olhos cansados de olhar em vão.

Pequeno ainda, habituei-me ao Paulino que trocava o~ passos,gritava e ralhava, toldado pelo vinho, par! ele, o grande mento dosbralloos. A cada palavra, a cada observaçao, ameaçava pouco seguronas pernas:

- É riquimendo! Vai no sô Chefe!Estranho,. aquele seculo com três mulheres traba~han~o p~ra l~e

garantirerp o vinho. Tão diferente de si, q~ando be~la, ,9ue dlJ-~e~l.aoutro corpo, outra vida, outro homem. Gntava entao:. - É nqUl-mendo! Vai no sô Chefe!" E havia na verdade quem o Julgasse capazde fazer realmente o requerimento ao Chefe, queixando-se.

>I<Reproduzi40 de COSTA ANDRADE, Fernando. Estórias de contratados. Lisboa,Ed. -70, 1980. p. 39-46.

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Sempre que era chamado à tarefa de "cidadão português no efter-cício de funções públicas", o seculo Paulino envérgava o velho casacãoverde de fardo, pertencente à farda de qualquer soldado americanodesconhecido. O comprimento, os botões dourados ostentando as armasa que pertencera o defunto, conferiam-lhe a solenidade dos porteiros.No dia do recenseamento, assim vestido. O cofió na cabeça, nos p~ssandálias,de pneu, impava de orgulho à frente da sua gente aguar-dando a autoridade.

Mesuras, salamaleques, cofió na mão direita, respondia ao Chefede Posto:

- Sô eu Paul ino Kambulu, seculo do Salundo, meu Chefe man-da. .. viva Portugale!

Assim todas as vezes. Preliminar decorado e invariável, pronun-ciado de dentro do dólman verde de botões amarelos, de .submissãô epresença.

Submissão e presença. .. Uma noite de angústia calando cadavez mais fundo, traçando desesperos. Ausência sempre maior, naafirmação da fragilidade de um eco:

- Sô eu Paulino Kambulu ...O problema da mão-de-obra começava a avolumar-se. As rusgas

não resolviam coisa nenhuma. Os cipaios deixavam-se corromper. Umaou duas galinhas, um garrafão de vinho, era um homem a menos nagranja à espera de embarque. Surgiram então os angariadores inva-dindo as sanzalas, nas suas carrinhas com toldo d~ lona.

As rusgas ao cair da noite já não venciam os homens nemsur-preendiam os quimoos. Os angariadores que também chegaram aoSalundo levarão a melhor. O quimbo despovoa-se de homens tentadospor mil promessas, oásis que a seu tempo se tomarão miragens. Famí-lias que se destroem. Ficam as mulheres e crianças, que 00 contratoverbal não constava o seu transporte. Partem os homens debaixodos toldos, em camiões de lonas, cujas cargas declaradas são courosou mercadoria vendável no litoral.

Leva-os a esperança de melhor fortuna e a previsão da alegriado regresso com algun~ angolares no bolso.

Felizes os que crêem no regresso! E os batuques soarão de novocom o drapejar de um farrapo branco sobre o camião carregadQ devozes ... As vozes do regre~so, descobertas e momentaneamente esgu.e:cidas das lembranças para contar. '

Antes que tivessem voltado os primeiros, cresceu o pranto dasmulheres e das crianças diante da casa do seculo:

- Paulino, não deixes que levem o meu "homem.

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80 ESTóRIAS DE ANGOLA

Não quero que morra no mar.Não quero que o levem ...E se não volta?

E o Paulino ouvia confiante. Cedo, porém, passou a escutarsem fé, calado e esquecido de si, o grito aflitivo do amor de esposa,coração mais negro que a noite escura da pele.

Fizeram-se filas que vinham e partiam. Corpos movidos pelacrença no poder naquele que falava ao Chefe, fantasmas onde osseios caídos são peles pendentes, ressequidas e sacolejantes; farraposde mamilos colados aos ossos a transparecer. Velhas, jovens, crianças.Corpos apenas.

Já não chegava o quimbombo da velha Nangekenha. Paulinobebia muito mais agora. Afogava no álcool a impossibilidade do poderque não tinha e lhe exigiam.

Visitaram-no também os angariadores. Ofereciam-lhe, em trocade homens, o vinho que quisesse. Negou. Davam-lhe o ordenadoprometido aos contratados. Negou. E a negar os poderes que a cons-ciência lhe não dava, Paulino foi à povoação. Queria falar ao Chefe.Que dizer? Não sabia. Dizer, contudo, alguma coisa. Precisava decoragem. Bebeu. Mas bebeu também o grito amargo das esposas enoivas e filhos. Bebeu e gritou na rua esse soluço negro que centenasde bocas lhe transmitiram.

Mandou-o deter o Chefe, a quem pela primeira vez não respon-deu: "SÔ eu Paulino Kambulu ... ", a sua presença efêmera como asdas coisas. Refletiu- nos olhos uma derrota prevista. A consciênciaexata duma realidade indiscutível. Ele, Paulino Kambulu, nada podiafazer. O homem reduz-se a zero quando atinge a certeza da própriaimpotência. Impossibilidade. Submissão e vazio ...

Do silêncio humilde das suas lágrimas de homem velho chorando,um murmúrio, quase uma súplica:

- É riquimendo, manda governo!Ninguém o ouviu.Um último esforço ainda. Não já do homem. A força da terra

grita pela sua voz. Palavras. O desespero ditou o resto. "Chefe ébandito. Mata todos preto." Foi preso. No primeiro embarque decontratados para S. Tomé, incorporado com o número mil e qualquercoisa.

O mar, a saudade do quimbo e das mulheres, do filho, ajudaram--no a viver. Seis anos longe de tudo que fora a causa da sua prisão.Milhentas horas de fé no regresso. Noites em que ouviu a história dosque tinham tentado fugir e foram tragados pelas ondas, que foramlevados para cumprir penas noutras ilhas distantes. Também a história

COSTA ANDRADE 81

dos que voltaram para junto dos filhos e da terra, onde a cinza osesperava ainda quente.

Seis anos da vida de um homem.Paulino voltou. Um regresso vazio. Substituíram o entusiasmo,

as feridas do salitre. O sol e o tempo cicatrizaram lembranças. Encon-trou poucos homens no quimbo. Tinham fugido para o Bula-Matadi,outros para a Monda, em busca de melhores ordenados, dcsilu,!idosdas quimeras dos angariadores que continuavam a passar nas car-rinhas.

O Silva lá estava com mais alguns rapazes a quem não convenceua derrota dos poucos velhos que voltaram, a quem apenas entusiasma-ram os poucos angolares, fortuna de outros tantos Paulinos tambémvolvidos.

Uma tarde chegou ao quimbo uma carrinha mais. O Paulino,titubeante, ofereceu a pesada mala de chapa, os cobertores de lã quenão utilizara, .os sapatos. Não queria que lhe levassem o filho. Numinstante, os olhos secos e baços refletiram todo um mundo que deixaramarcas inapagáveis de silêncio. Como um rodopio de vento, capime folhas partidas, apareceu o navio, o porão escuro, da negrura doshomens ensimesmados, o mar, as roças, fardas, números, números,numa dança louca. Vertiginosamente louca. Eram mais fortes as mar-cas que a dor deixara. Não! Não queria que lhe levassem o filho. Derepente tudo se esfumou, um rasto frio e cruel.

Não ... O seu filho, não ... Procurou uma catana, um pau, umapedra. Era inútil.

À tardinha, já sol detrás dos montes da Hanha, vi o Paulino atropeçar, agarrado à farda rasgada:

- Riquimendo, não serve! Mata gariator ...Murmúrio de alento, soluçado e perdido na agonia da tarde

calma e indiferente.N8. manhã seguinte, a água da valeta onde caíra continuava a

correr, um pouco mais fria do gelo do Paulino Kambulu.O requerimento jamais será enviado, mas a esperança do grito,

embora frágil, quase morta, persiste ainda.

Abril de 1958

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82 ESTóRIAS DE ANGOLA

ARNALDO SANTOS

Arnaldo Moreira dos Santos nasceu em Luanda, em 1935. Colaborouem jornais e revistas e sua obra foi incluída em antologias poéticas. nacio-nais e estrangeiras. Publicou: Fuga (poemas, 1960); Kinaxixe (contos, 1965);Tempo de munhungo (crônicas, 1968); Poemas no tempo (1976); Prosas (1977).

A menina Vitória'"Transferiram-no no meio do ano letivo para o colégio do Pucha

Beatas, por causa dos piolhos da Escola 8 e da prosódia, em que osprofessores o achavam muito fraco.

O Sr. Sílvio Marques, embora pouco exigente consigo em relaçãoà pronúncia - trocava amiúde os vv pelos bb -, era no entantomuito cuidadoso a fechar as vogais. Ralhava severamente o Gigi sem-pre que lhe ouvisse algum desconchavo, ou então abria-lhe muito osolhos, o que significava o mesmo. Também os amigos dele, aos do-mingos, debaixo da mulembeira e entre uma ou outra jogada desueca, comentavam as incorreções do Gigi. E sibilavam (alguns eramda Beira Alta), lamentando que a pronúncia do garoto se estragava,que era preciso afastá-lo da companhia dos criados e dos colegasdos musseques. Todos concordavam que era pena, porque ele já sepodia considerar como um branco, embora D. Angelina fosse mulata,mas enfim ... era senhora de princípios. O Sr. Sílvio ouvia-os atento,e considerava conscienciosamente a crítica, porque afinal se tratavado futuro do seu secretário, como dizia referindo-se ao filho.

Assim, embora com sacrifício, porque o colégio era caro, atransferência teve que se fazer. Mas valia a pena, anunciara a mãe àsvizinhas. "Aqueles meninos muito arranjadinhos, levados pela mãodos criados, e alguns até de carro ... ! Que diferença!" - exclamava,não escondendo a vaidade, no dia em que o levou ao colégio.

Gigi ganhou roupa nova, uma sacola bordada e muitos conselhosde D. Angelina, que se afligia com a sua aparência. Mas da mudançamesmo o que o Gigi mais gostou foi dos passeios na moto com carrolateral, em que o pai o levava ao colégio. O assento era tão baixo

* Reproduzido de SANTOS, Arnaldo. Kinaxixe e outras prosas. São Paulo.Ática, 1981. p. 32-37·.

ARNALDO SANTOS 83

que, pelo trajeto, ele podia apanhar pequen~s. tufos de capim. ls.50passou a ser a sua única alegria, porque o Glgl estranhou o colégIO.

A professora da 3.a classe, a menina Vitória, era uma mulatinhafresca e muito empoada, que tinha tirado o curso na Metrópole.Renovava o pó-de-arroz nas faces sempre que tivesse um momentolivre, e durante as aulas gostava de mergulhar os dedos nos cabelosalourados e sedosos de uns meninos que se sentavam nas primeirasfilas.

Olhou-o com desconfiança e depois do primeiro exame mandou-opara uma carteira do fundo da aula, junto de um menino com carade puco, a quem chamava cafuzo, por ser muito escuro. Mas o meninocafuzo chamava-se Matoso, o que, de início, pareceu ao Gigi insu-ficiente para justificar o seu mutismo. Vergado na cadeira, não tiravaos olhos do livro, nem mesmo quando a menina Vitória se referia aele, quase sempre com desprezo, ao recriminar outro aluno. "Pareceso Matoso a falar ... ", "Sujas a bata como o Matoso ... ", "Cheirasa Matoso ... " - e ele guardava-se cada vez mais à carteira, transidopor aqueles comentários impiedosos.

Fora também transferido da Escola 8 e, mesmo no dia da apre-sentação, a menina Vitória não escondera a sua má impressão, comalusões veladas à sua bata de brim grosso. Porém o seu azedumecresceu quando, tempos depois, o Matoso lhe respondeu distraidamenteem quimbundo. "O quê, julgas que eu sou da tua laia ... !?" Daí pordiante o seu nome era jogado pela aula com crueza, criando umsímbolo maldito, que o Gigi mais tarde, atemorizado, reconheceufacilmente. Era uma imagem familiar. Estava muito perto de si e dosseus companheiros do 'Kinaxixe. Mas por que ele irritava tanto aprofessora e lhe merecia aquela troça? O Gigi retraiu-se.

Olhava para os colegas de soslaio, inseguro. Eles iriam troçartambém dele, da sua bata modesta de brim, dos seus sapatos puídos,quase rotos? E não respondia quando a menina Vitória o chamavaà lição, receando um despropósito que o identificasse com o Matoso."Vêm para aqui neste estado e depois quetem milagres!" - suspiravaa professora. Era com certeza do método de ensino da Escola 8, ouda sua influência perniciosa. Mas tolerava-o lá no fundo da aula. Eo Gigi diminuía-se ainda mais para não se tornar notado, esforçando--se num mimetismo impotente por imitar os gestos dos meninos dabaixa. Tenho que ser como eles, refletia no recreio, afastando-se dosalunos da 4.a classe, que eram, na maioria, os seus companheiros elevadiação do Kinaxixe. Ficava então a jogar com os estames elosbotões que caíam das acácias, e reprimia a vontade de trepar ao cimodelas, para colher os botões compridos de estames longos e Clll'VOS,

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8~ ESTÓRIAS DE ANGOLA

que venciam todos os outros. Bocejava enquanto brincava com o balan-ceio das anteras e via-as cair sem entusiasmo. Depois submergia denovo na turma e só um ou outro desatino o fazia surgir à tona."Muxixeiro na redação. .. que coisa é esta ... !?" - alarmava-se amenina Vitória, considerando o neologismo inferior. E a meninadada baixa ria e surriava, porque na baixa não tinha muxixeiro. Gigitorcia a cara, engonhava com medo de explicar. Calava-se. Mas fixavaprudentemente o reparo.

Nas suas redações vagueava então tímido sobre as coisas, commedo de pois ar nelas, decorava os nomes das árvores, das aves, dosjogos descritos no seu livro de leitura. Procurava esquecer o coloridovivo das penas dos maracachões, dos gungos, dos rabos-de-junco queele perseguia na floresta e cujo canto escutava trêmulo atrás dosmuxitos, o sabor ácido dos tambarinos que colhia sedento, o suore o cansaço das longas caminhadas pelas barrocas, a emoção dos seusjogos de atreza e cassumbula. Imitava passivamente a prosa certinhado gosto da menina Vitória. Esvaziava-a das pequeninas realidadesinsignificantes que ele vivia, das suas emocionantes experiências demenino livre, agora proibidas e imprestáveis.

Quando o Matoso lia submisso a sua redação, onde pintassilgosgorjeavam e debicavam cerejas amarelas (o Matoso explicara-lhe numrecreio que as cerejas eram as gajajas do puto), intimamente o Gigiperguntava-se onde é que ele tinha descoberto tudo aquilo. "Cada vezpior ... !" - rezingava a menina Vitória, que não se compadeciacom os enganos. E continuava a erguer à volta do Matoso, implacavel-mente, um círculo intransponível de desprezo, onde ele já não sedebatia, nem chorava. Apenas no rosto as suas feições endureciamsob a pressão dos maxilares contraídos. Exasperava-a.

Tenho que andar pouco com ele, pensava preocupado o Gigi. Aprofessora pode virar-se contra mim. E fugia, afastava-se também dasua companhia, deixando-o abatido, solitário, dentro das suas ruínas.Tinha medo de enfrentá-la. Precisava de esconder o segredo ilegítimodo seu passado igual. Precisava de o dissimular para que não fossedestruído. "Mulatona... nem cabrita é ... " - insultava-a furiosoà tardinha quando regressava a casa. E até à noite, descalço, gritavapelo bairro junto dos seus camaradas do \Kinaxixe a sua; juventudeameaçada, correndo, bassulando, assaltando as quitandeiras de quitetas.

"Restos dos maus hábitos ... " - lamentava-se D. Angelina. Agradual sisudez começava a animá-la e por isso não compreendiaaquelas súbitas erupções de revolta. " ... mas o colégio leva-o à ordem!"- confiava. Realmente a menina Vitória, como uma jibóia enlaçadaem cima da árvore, vigiava-lhe os mais pequenos movimentos.

ARNALDO SANTOS 8S

- Higino, a tua redação?O Gigi naquele dia estava contente com o seu trabalho. O tema

era sobre uma figura importante do Governo e ele não esquecera osadjetivos mais expressivos que na véspera a professora tinha proferido.Isso dar-lhe-ia com certeza satisfação. Os meninos da baixa, maislibertos da coação da professora, não tinham sido convincentes,limitando-se a referências distraídas, o que a tinha irritado.

Embora confiante, o Gigi estremeceu ao ouvir o seu nome. Quediria ela, pensava agitado, depois de lhe ter estendido timidamente ocaderno. Enquanto a via ler atreveu-se a tentar decifrar-lhe no rostoalgum indício revelador, mas a menina Vitória parecia de pedra.Reparou-lhe então nos lábios pintados e nas linhas muito definidasdos seus contornos que pareciam emoldurar o bâton. As sobrancelhasaparadas e finas afastavam-se das órbitas por um traço de carvão, eisolavam uns. olhos castanhos-barrentos como a água da lagoa doKinaxixe. Mas subitamente eles abandonaram o caderno e voltaram--se para si, perplexos. Apanhado em flagrante, o Gigi baixou a cabeça.A menina Vitória olhava-o silenciosamente e os alunos da classe, pres-sentindo algo de estranho, apagaram as conversas. Esperavam. Gigiesperou também e as comissuras dos lábios entreabriram-se num sor-riso de confiança.

- Com que então pretendes brincar comigo ... ? - ela falava--lhe friamente ...

Gigi empalideceu. Alguma coisa tinha falhado. Mas o que é quepoderia ter sido? Estavam lá todos os louvores pelas pontes e estradasque ele construíra. Ter-se~ia esquecido de algum fato importante?Olhou o caderno que ela lhe devolvera, aberto nas mãos, mas nãodistinguiu as letras subitamente misturadas. A acusação, porém, veiosem tardar, inexorável, imprevisível. Como é que ele se atrevera atratá-lo por tu! Como é que ele tivera o arrojo de o nomear com umsimples artigo definido!?

- Ouve lá. .. tu julgas que ele anda sujo e roto como tu, ecome funje na sanzala ?

- Não ... não não é ... - gemia o Gigi, desnorteado, ten-tando estancar o fluxo daquelas insinuações que ele temia.

De repente exibia-se aos olhos dos colegas deformado como umacaricatura, o compromisso irrecusável que circulava no seu sangue eque até ali inutilmente escondera. Uma vaga de calor inundou-lhe orosto e invadiu-o levemente uma sensação ~ntorpecente. Os seusombros encurvavam-se. Sentiu-se muito fraco. Já nada tinha que dis-farçar, mas estava triste perante a luta que pressentia. Mas por que,por que que ela, logo ela, o queria humilhar? Ela que tinha carapinha.

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86 ESTóRIAS DE ANGOLA

Ela que era filha de uma negra, pensou com furor. Os seus músculoscrisparam-se e o caderno começou a amarrotar-se-Ihe nas mãos. Depoismal sentiu a violência da palmatória. Só nas faces a queimadura vivada humilhação, só nos ombros a responsabilidade da sua condição,de que ele não tinha culpa, mas que queria aceitar mesmo dolorosacomo as pulsações que lhe ressoavam nas palmas das mãos inchadas.

E na carteira chorou. Chorou de raiva, da dor que lhe nasciada piedade dos colegas e da vergonha de não poder esconder a suaangústia, com os olhos secos, enxutos, e orgulhosamente raiados desangue, como os do Matoso.

UANHENGA XITV 87

UANHENGA XITU

Nasceu Uanhenga Xitu (Agostinho Mendes de Carvalho) em Calomboloca,Angola. Esteve preso de 1959 a 1970 em Tarrafal, Cabo Verde. Publicou:Bola com feitiço (1974); Vozes na sanzala (1976); "Mestre" Tamoda e outroscontos (1974); Manana (romance, 1974); Os sobreviventes da máquina colo-nial depõem (Edições 70, 1979).

"Mestre" Tamoda*À memória do saudoso e malogrado

meu compadre Kamundongo (HiginoAires Alves de Sousa Viana e Almeida),falecido em 11/ 1/1970, num domingo.Morreu o Higino .Aires!!! ...

Tamoda, muito novo, dirigiu-se à cidade de Luanda, onde viveumuitos anos. Nesta, trabalhava e estudava nas horas vagas, com osfilhos dos patrões e com os criados do vizinho do patrão. Assim,conseguiu aprender a fazer um bilhete e uma cartinha que se com-preendia.

No último emprego, na casa de um doutor que vivia solteiro,quando o patrão se ausentava para o serviço passava o tempo a decorare a copiar os vocábulos do dicionário. Aqueles vocábulos que lhesoavam bem.

J á homem e na idade de casar abandonou a cidade e o empregoe voltou à sanzala que o viu nascer.

Quando desembarcou na estação dos Caminhos de Ferro sobra-çava dois volumosos calhamaços e uma pasta de arquivo na mão.Duas maletas e um saco de pano branco que, além de outros volumes,foram levados pelos parentes, que nesse dia iam ao seu encontro.

Em casa, na presença daqueles que o iam saudar, abriu a malaque trazia muitos romances velhos, entre eles um dicionário usadoc já carcomido, algumas folhas soltas de dicionários, cadernos gara-tujados com muito vocabulário, um livro de Como se escrevem cartasde amor, outro de Manual de correspondência familiar e alguns volu-mes de leis.

" Reproduzido de UANHENGA Xnu. "Mestre" Tamoda e Kahitll. São Paulo,Átíca, 1984. p. 6·24.

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88 ESTóRIAS DE ANGOLA

o novo intelectual, no meio de uma sanzala em que quase todosos seus habitantes falavam quimbundo e só em casos especiais usavamo ;>ortuguês, achou-se uma sumidade da língua de Camões. Ao dicio-nário apelidava: o ndunda - aliás, termo também aplicado, em quim-bundo, a qualquer livro volumoso e de consulta.

Nas reuniões em que estivesse com os seus contemporâneos bun-dava 1, sem regra, palavras caras e difíceis de serem compreendidas,mesmo por aqueles que sabiam mais do que ele e que eram portadoresde algumas habilitações literárias.

Quando em conversa com moças analfabetas e que mal pronun-ciavam uma palavra em português, o "literato", de quando em vez,lozava 2 os seus putos. Porém, alguns deles nem constavam nos dicio-nários da época.

Era um "etimologista", um "dicionarista" que tinha descido nasanzala!

Quem o aturou mais, nessa sua maneira de se expressar emputos caros, em público, foi a namorada Mufula, com quem maistarde veio a casar-se.

Como da cidade trazia dinheiro e podia pagar a alguém que lhefizesse o trabalho de obrigação a que certo "morador" estava sujeitoa prestar nas lavras dos sobas e de outras autoridades, o "dicionarista"tinha tempo de exibir os seus fatos, trazidos da cidade.

A exibição era feita pelo período da tarde, quando regressavada lavra dos seus pais, e na altura em que, geralmente, todos oslavradores estão de volta dos campos.

Granjeava bastante simpatia dos jovens estudantes. E é nestaclasse de "moradores" em que os seus putos tiveram terreno propício.

Aguardava pela passagem dos moços quando voltavam da escola.Os garotos ouviam o "mestre" Tamoda com grande interesse. Algunsdeles tomavam notas nas ardósias e nas capas dos cadernos do voca-bulário que o "mestre" ia ditando. Nem sempre havia tempo de tiraro material para tomar nota dos apontamentos, o que os alunos faziamnas suas coxas ou nos antebraços negros como a cor da ardósia. Oditado era rápido.

Nas reuniões juvenis, cada garoto, para mostrar a sua capacidadeintelectual, de vez em quando intercalava um vocábulo na conversa,quer tivesse ou não relação com o assunto. Porém, a confusão eratanta que cada um só sabia o que continha a sua folha. A fama do

1 blindava - intercalava, interpunha (N.A.)~ lozava - intercalava, interpunha (N.A.).

UANHENGA XITU 89

Tamoda, difundida pelos garotos, dominava as povoações, incluindogente feminina, que, geralmente, não freqüentava a escola.

Distribuía folhas soltas de dicionário, para serem decoradas pelosmiúdos e eram encaixadas com mais facilidade que o ditongo, sílabae adjetivo do professor oficial.

O mestre era tão querido pelos seus petizes que quando passava,todo ele janota, vestido de calções e camisas bem brancas, meias altase capacete também da mesma cor do fato, sapatos à praia com lixa,ouvia-se o coro dos rapazes que tributavam ao Tamoda:

- Lungula, Tamoda! ... Lungula, Tamoda! :1

Tamoda, na cadência das vozes e do sapato a chiar, ia marcandoo ritmo com a cabeça e os ombros, muito esticado e sorridente, elungulava como um kingungu-a-xitu 4:

" ... ié-ié, ié-ié, ié-ié (o"Zhiar do sapato) ... ié-ié, ié-ié ... ", queera correspondido com a vozearia dos garotos: "Lungula, Tamoda!Lungula, Tamoda! Lungula, Tamoda!"

O "mestre" volteava-se cerimoniosamente para os seus fãs, como sorriso a relancear-se-Ihe na face, e repetia pausadamente, em suavoz grossa, as palavras gritadas:

"- Lungula, Tamoda!" - ao mesmo tempo que, com o capa-cete entre os dedos e mal pousado na cabeça, fazia com garbo umavênia de diplomata.

Os garotos, radiantes com a saudação, mais gritavam:- Lungula, Tamodal Lungula, Tamoda! ...Às vezes, os garotos acompanhavam o chio dos sapatos com o

estribilho de "uá, uákala-uá! Uá-uá, uákala-uá ngasumbile kiá ja-kuké ... "

Tamoda, com uma mão no kimokoto" e outra no capacete,girava sobre si e encarava a rapaziada, todo radiante, ao mesmo tempoque estremecia o pé e cumbuacumbuava li a cabeça sorrindo.

No lar e na rua os resmungos dos miúdos eram feitos em portu-guês do Tamoda, o que criava dissabores aos "estudantes". Porque ospais e manos que não compreendiam o significado da palavra inter-pretavam-na como asneira, o que se pagava com uns bons açoites.

-- Mano Tamoda, a gente quer saber o feminino de muchacho!- perguntaram dois garotos duvidosos e na altura em que o "mestre"saía da cacimba de banho.

;l Lzlll[?llla - Ginga (N.A.)4 kin[?llngll-a-xitu - grande pássaro do mato, também conhecido por peru-do--mato (kingung/laxitll ou kingllngll) (N .A.)!í kimokoto - ilharga (N.A.).li cumbuacumb/lava - meneava (N.A.)

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90 ESTÓRIAS DE ANGOLA

- O feminino de muchacho é "muchachala"! - respondeu pron-tamente o "mestre", senhor de si e o único a quem se podia consultarnas dúvidas.

Os garotos, Kidi e Kuzela, saíram a correr, satisfeitos, para divul-garem o novo vocábulo, a acrescentar aos outros como:

- "Mucama, embasbacado, cavalgadura, cavaldagem, meque-trefe, caviloso, sundéifulo, carabaixa, bajoujo, gentiga, jocoso, grageu,vasca, zoomorfo, zornar, lamecha, xucro, xeta, caduco, panhonho,pacóvio, larápio, manganar, biltre, basbaque, vagabundo ... "

Porém, o novo vocábulo de "muchachala" não vigorou muitosdias, porque é parecido com uma palavra em quimbundo: muxaxala,que significa sulco nadegueiro ou via retal.

As rapariguinhas que eram trataqas por "muchachalas" com osignificado de moça, jovem, corriam para se queixarem aos pais, quan-do elas não podiam sovar os novos "acadêmicos". Os pais ou manosdaquelas não tardavam a aparecer, para fazer contas com os discípulosdo Tamoda.

- Muxaxala uanhi, inn?! Ja Tamoda-zé!?.. Kiene? .. 7 -

inquiriam os pais das garotas. Em seguida, puxãozinho de orelhas,palmadas e umas chicotadinhas bastavam para fazer esquecer o femi-nino de muchacho.

Os moços estavam tão interessados em decorar o dicionário que,na sanzala, as folhas soltas de jindunda eram procuradas a todo ocusto.

Muitos pais ficaram com os dicionários incompletos, nesta ganade aprender, porque os filhos arrancavam as folhas para as trocar, por50 a 100 castanhas de caju cada folha, aos outros que andavam àprocura.

Uma noite, Kidi e Kuzela foram ao sungi 8 onde o Tamoda,afastado um pouco do grupo dos outros pernoitadores, conversavacom a namorada, a Mufula.

Meia hora antes, já tinha corrido com alguns miúdos que nãolhe deixavam conversar à vontade.

- Ó Tamoda, boa noite. Como vai a vida? - saudou o Bento,seu contemporâneo.

Olá, Bento, eu sempre na excelência com a minha cachopa.- Mano Tamoda, cachopa é quê? - perguntou Kuzela.

7 Muxaxala uanlzi, in ... - Muxaxala de quê, hem?! São 08 put08 do Tamoda,não é?! (NA).8 sungi - lugar de serão (N .A.).

UANHENGA XITU 9t

Cachopa é donzela.Donzela é quê? - interrogou Kidi.Donzela é ninfa.Ninfa é quê?Ninfa é muchacha ou "muchachala" ...Xé, miúdos de merda, seus sacanas! Está a chatear mais

velho por quê? Pessoa pergunta-pergunta mais e não engula cuspe,tundam \) daqui!!! - disse o Bento muito aborrecido com Kidi e seuscompanheiros.

- Não, Bento, deixa os muchachos perguntarem. .. eles queremdesnublar a ebiótica e etogenia.

- Está bem, perguntar também tem hora. Não deixa mais vocêcom o coração sossegado! E não deixa também você falar com von-tade com Mufula!

- Não faz mal, Mufula não tem cachonda - disse o "mestre",sorrindo abertamente como era seu hábito. - Vamos, meus mucha-charia, perguntem à vontade. A cabeça do Tamoda é um ndunda (ah!,'Ih!, ah!, ah!) ... - o mestre dava gargalhadas.

- Perguntem sempre, não é assim, Mufula! Responde, ou estáscom entojo de domingo? (ah!, ah!, ah! ... )

Kuzela e companheiros desejavam fazer mais perguntas mastinham medo do Bento, que conversava agora com Mufula. Estasorria com as pilhérias do namorado e sentia-se feliz por ser noiva do"homem de ndunda", como às vezes era alcunhado o Tamoda.

Alguns rapazes, para se não esquecerem do novo vocabulárioacabado de ouvir, monologavam baixinho: cachonda-cachondear ...cachonda, cachonda cachonda, cachopa cachopa, donzela, ninfa, ca-chonda cachondear, ebiótica, etogenia ...

- Mano Tamoda, a gente só queria dizer que português de"muchachala" está a dar porrada, então. Estão a dizer que é dispa-ratar e mesmo no dicionário não tem ...

- Quem é que disse elevíssima patranhosa? - exclamou Tamo-da, muito indignado e ofendido. - Vejam lá que muchacharia nãoestá no dicionário?! Estes dicionários que andam por aí com essesbasbaques são infíssima folhagem do ndunda do Doutor onde Tamodase evidenciara! ... Que descoco, que descoco? É chufa! É chufa! Estoumetido no vulto de cavalgaduras, cambadas de cameliformes!!!

- Vuua 10, que puto, Tamoda, é chufa, é chufa, grande putode Tamoda, já Tamoda da Kiá 11 ndunda de Tamoda saiu! Kuene o

\) tundam - saiam (N.A.).10 Vuua - Viva! (N.A.).11 já Tamoda da Kiá - os putos do Tamoda em ação, ei-los! (N.A.).

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92 ESTóRIAS DE ANGOLA

puto: é chufa, é chufa - imitavam e gritavam os garotos numa alga-zarra de júbilo, por ouvirem a fluência do "dicionarista".

- ... que discoco, é chufa, é chufa - agora era uma cantigados alunos.

Kidi e o amigo deixaram Tamoda, que também já ia despedir-seda noiva, e dirigiram-se a uma fogueira onde moças assavam castanhasde caju, numa chapa larga de zinco.

A resina que deitavam as castanhas alteava de tal forma o fogo, .como se o lume fosse alimentado de gasolina; vum-vum, vum. .. -estalavam as castanhas. De vez em quando algumas saltavam da assa-deira e vinham ter à rapaziada de volta.

Foi nessa altura que algumas castanhas vieram morrer aos pésde Kuzela. Este pisou-as. Mas não agüentou a quentadura e com jeitode pé chutou algumas para longe - apanhá-Ias-ia mais tarde. Daassadeira continuavam a pular castanhas. Kidi vergou o tronco, des-pistando a vigilância das donas, apanhou algumas e meteu-as no bolso,mas a coxa aqueceu e atirou-as longe com sutileza.

- Kuzela, dá castanha que escondeu aí nas pernas! - pediua Sabalo, uma das três raparigas que as assavam.

- Não tem castanhas.- Tem, eu vi bem ...- Também esse Kidi pôs castanhas na gibeira, dá castanha!

disse a Kinoka, uma das donas.- É mentira, não tenho castanha, veja só, veja só - Kidi

revolvia o forro dos bolsos. - Você pega só ladrão sem nada, grageude merda! ...

Grageu, eie muene 12.

Cala, mazé, seu panhanha.Panhá eie muene, mequetrefe ié, pacovi ié! - respondeu

Kinoka, toda ela afinada no português de Tamoda.- Não te admito que mim me chama mequetrefe, pacóvio. Não

admito, mucama de merda, sundéifula.- Sundéifili eie muene, nguetu kié jiputu já Tamoda ben 'aba 13,

a gente quer só castanha no chão agora mesmo - replicou Kamanhi,uma das companheiras. A Kamanhi era rabanca e já empurrava Kuzela.Alguns garotos pulavam, incitando a luta.

- Ó Kuzela, vamos embora, deixa lá estes janotas, cavídias,berzundas - gritou Kidi muito vaidoso.

12 eie muene - é você; és tu (N.A.).13 nguetu kié jiputu. " - tenha paciência, por enquanto não queremos portu-guês do Tamoda cá (N.A.).

UANHENGA XITU 93

De repente surgiu o irmão mais velho da Sabalo, que fora cha-mado para enfrentar os discípulos do Tamoda que procuravam de-monstrar a cultura.

- Que raio é esta? ..- Sim, mano João, é estes, andam viri aqui com puto de Tamoda

e roubar castanhas. Quando a gente fala começa a disparatar ...- Ai é? Final venha aqui com puto de roubar!? Este puto de

caviia, caviia bersundo, bersundo é português que falou como?- Eu falou cavídia e berzundas - respondeu Kidi, preparan-

do-se para fugir.- Está bem, caviia, cavidi é mesmo coisa. Mas é puto que

disse como, é puto de qué, zuela iambe kié?!... E este puto debersundo, bersundo final é puto de dispara ta r de verdade! A gentecostuma só ouvir que veio puto de Tamoda, final é puto de disparatarmesmo!!! ...

Os dois moços abriram caminho na aglomeração de gente e deramàs de vila-diogo.

- Agarra, agarra! - eram seguidos com gritaria e arremesso depedras e de achas incandescentes.

No outro dia, na escola, e na hora da leitura, três alunos e duasalunas estavam sentados diante da professora, num banco comprido.

Enquanto Kuzela lia de pé, a sua colega Júlia cabeceava.Júlia está a cachondear. .. - cochichou Kidi no ouvido de

Helena. Esta sorriu.- Que estás a rir, Helena? É hora da lição ou de brincadeira?

- perguntou a professora.- É o Kidi que disse que a Júlia está a cachondear, e eu ri ...- E isso dá alguma graça para rir? E tu, Kidi, quem deu auto-

rização para falar?Perdão, sô-psora ...

- E o que quer dizer cachondear?- Cachondear é cabecear.A professora virou-se, reparou que alguma coisa não estava sobre

a secretária encostada à parede. Pensavam os alunos que a professoraandava à procura da vara ou da palmatória.

A professora saiu para a sua residência, que ficava a uns passos.Aula interrompida.

Na ausência da mestra, alguns alunos passaram a falar alto,comentando. Outros apontavam para Kidi, Helena e Júlia como sendoas vítimas da sova do dia. Kidi andava sobressaltado com a interpre-tação de "cachondear", pois não se achava bem seguro com o signi-

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94 ESTÓRIAS DE ANGOLA

ficado. Acrescia ainda a agravante de que os colegas Oxai, Mbelen-genze, João, Pedro, não tinham vindo nesse dia. E eram es~es quetinham as folhas do dicionário respeitantes à letra C, e de C ate CAT.

Quando a professora entrou sobraçando um volumoso di~ionário •ilustrado o silêncio voltou a reinar na aula. A professora fazIa a vezdo marido, que se encontrava em Luanda, para poucos dias.

_ Então, ó Kidi, o que quer dizer cachondear?_ Ê cabecear, sô-psora - disse o garoto muito apreensivo.

Quem te ensinou este português?Nós ouvimos ontem no sungi, sô-psora.De quem?Do mano Tamoda, sô-psora ...Então, para se esquecer dele, vais levar uma lição.

E o rapaz foi cruelmente palma toado e varado. ..,_ Fiquem já avisados - dizia a prof:ssora, dlflgmdo~se para

os alunos. - Não quero palavras do portugues do Tamoda ca .dentroe nem lá fora. E todo o aluno que for denunciado que contmua. ~usá-lo será castigado. E como exemplo está aí o vosso ;olega. - Kldlainda choramingava e torcia-se. - Nada do portugues do Tamoda.Em vez de estudarem a matéria da escola passam o tempo a decoraremdisparates! . . . .

A seguir a esta preleção, a professora,. com a ajuda dos ~lunosmais crescidos fez uma busca geral nos lIvros, pastas, carteIras ebolsos dos alu~os. Conseguiu caçar folhas soltas de dicionários" a~émde cadernos completamente cheios de putos do Tamoda. A ultImaparte da aula limitou-se a isso. .

Da escola a casa, pelo caminho, os fãs do Tamoda vmham acomentar a estupidez da professora e do ódio que o "povo-cavalga-dagem", nos dizeres do Tamoda, mostrava contra o "homem dendunda".

Nos cadernos que os pais compravam para exercícios, o professor,depois de regressar, encontrou muitos vocáb~los q~e não constavamem nenhum dicionário português. Eram de lllvençao de Tamoda, emuitos deles de significação pornográfica.

O Curso do Tamoda encerrado.Uma ocasião o "mestre do português novo" foi chamado pela

autoridade para se identificar. Tinha sido denunciado como ~m. man-drião e sem documentos. Também o fato de alcunhar os .clpaIO.s deverdugos ou fintilhos, e aos quimbares de panaças, de pacaIOs, cnara--lhe antipatia junto das autoridades. .'

Independentemente disso, os frisos de cabelos que llltr~duzlrana gente nova, para ter o cabelo igual ao seu, provocaram queImadu-ras na cabeça.

UANHENGA XITU 9S

A afamada Kikema - processo de fazer frisos - estava tãopropagada que os pais, educadores e autoridades sanitárias viram-seem apuros para impedi-la. O culpado disso era o indesejável "professorde português".

Eram sete horas da manhã quando o Tamoda chegou ao edifíciode Administração do Concelho.

Na varanda do Posto Sede de Catete o "mestre" passeava deum lado para outro, sobraçando dois volumes de leis: código civilc código penal, já velhos. Estavam forrados de pergaminho e timbradosem letras douradas. Os livros traziam o carimbo do leilão onde tinham~ido adquiridos, quando trabalhava na cidade.

Negro como era e passear assim com sapatos a chiarem e decapacete na cabeça! Não ... este não era um gajo qualquer. Ou éengenheiro ou· é doutor ou é estrangeiro - murmuravam os outrospretos que aguardavam pela hora da entrada dos funcionários.

Mona ngan'ô, bom dia - cumprimentou uma velha.- Bom dia - respondeu Tamoda sem olhar para quem o

saudou, e continuou nos seus passeios: "ié-ié, ié-ié" - faziam osseus sapatos.

A velha não gOstou do Tamoda e pôs-se a murmurar com asoutras.

- Vamos-lhe perguntar ainda, cada veji é nosso filho que andamlá nas terras de longe e já não nos conhece mais.

- Para que perguntar? Ele mesmo quando passa na gente parecejá é branco ...

- Ah! Vou perguntar. São filho da gente e saber um outro nãoé mal. Se é pessoa de respeito não vai disparatar um velho que podeficar como pai dele.

Tamoda sempre que passava pelo grupo ouvia os comentáriosque faziam à volta de si, mas não queria nada com eles.

"Pessoa que vai falar com o Senhor Administrador, não vai darconversa com estes cavalgaduras, aqueles verdugos, fintilhos. Mesmoaquele velho que está a falar parece-me um 'panaça' e querem con-fiança comigo. Bom dia e já chega. Veja lá se chegar agora o Admi-nistrador ou Secretário e encontra Tamoda em 'croniquizamento' comesta 'gentalha'! ... Vai pensar o Administrador que Tamoda é da'igualhagem' dos mucamas; e ainda vai pensar que Tamoda é pessoade lupanar, carambas!!! Eu não tenho empáfia, mas aqui a confiançaé pouca. Porque se um cair tem de levantar o outro, agora se todosnós cairmos na mesma corda, por sermos da 'igualhagem', ninguém sesalva. Por isso Tamoda tem de ficar longe dos 'analfabeteiros'. Lá na

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r'

96 ESTóRIAS DE ANGOLA

sanzala está bem: mano aqui, tio aqui, primo lá e todos os cavalga-duras podem comer, dormir, dançar com Tamoda ... ", de si para siTamoda comentava.

Do regresso de um dos extremos da comprida e vasta varanda,passou pelo banco dos cipaios, onde estavam três deles sentados. Aochegar em direção de um grupo de homens que vinham tratar dosseus assuntos, alguém para ele se dirigiu. Tamoda parou.

- Senhor desculpa. A gente está a ver só pessoa-que-passa,pessoa-vai, pessoa-que-passa, pessoa-que-vai, mas cada veji pode sernosso filho que não conhece mais a gente. O senhor favor dizer só,se você é de onde é?

- Sou cidadão Tamoda que veio atender petição de ExcelênciaAdministrador e Juiz Instrutor, por causa das "facultagem" imponenteda craveira sapiencial do Tamoda ...

O velho que perguntara ficara na mesma. Apenas abanava acabeça, admirado pela fluência com que o homem falava o português.Os cipaios e outra gente que estavam enchendo a varanda aproxima-ram-se do homem culto. Mas Tamoda mal respondeu, deu costas evoltou ao seu passeio, cheio de importâncias.

- Estes rapazes, quando saem na cidade, pensa já não é pessoada terra - cochichou um dos cipaios para os outros.

- Mas o gajo põe puto tudo de dicionário. Deve ser funcionário.- Quem?! Aka mukuá tuhaa maié! . .. kingilé, o jiboto ojo nhi

capacet'oko tuondo musumbe eko mu makoka ... H

- Não diga assim, como o rapaz está a falar não é pessoa quevai ficar na enxada ou na estrada!

Quando o Secretário e os Aspirantes atravessavam a varandapara o gabinete,; Tamoda descobriu a cabeça e com o capacete namão disse alto: .

- Salvé Vpssa Excelência Secretário do Império.Este parou um pouco, correspondeu ao cumprimento com uma

vênia e, virando-se para os Aspirantes, sorriu discretamente. O mesmofizeram aqueles.

Está a ver, este não dá para lhe dar uma bengala li,.

- Não dá por quê, mas já lhe bateste a bengala?- Ó nosso cabo, eu queria lhe dar mesmo o kitukulu, mas tem

língua muito depressa, puto menha lll. Quando o nosso cabo vê umpreto falar muito português na Administração não dá para lhe pedir

14 Aka mukuá tuhaa maié'... - Alguns são pelintras, uns zés-ninguéns! ...espere, não tarda muito que fique sem esses sapatos e o capacete a troca demandioca (N.A.).Jõ dar bengala - pedir gorjeta (N.A.).]i; puto menha - português como água (fala fluentemente o português) (N.A.).

UANHENGA XITU 97

mata-bicho, pode-te queixar na Administração, é perigoso. Vale maispedir um branco. O nosso cabo não lembra mais que passou comnosso Kambengala?

A secretaria estava em movimento. As máquinas de escreverestalavam ritmo de batuque e o pessoal que esperava na varandacomeçou a ser atendido. Tamoda continuava a dar as suas voltas,aguardando a vez. Não tardou muito.

- Ó senhor, o siâ-secretário manda perguntar se quer algumacoisa - anunciou o cabo dos cipaios para o Tamoda.

- Trago ofício-trânsito remetido à Sua Excelência o Adminis-trador de Circunscrição e Concelho de !colo. e Bengo, em Catete ...

O cabo voltou, mas segundos depois veio novamente para pediro ofício-trânsito.

O Secretário leu a guia passada pelo Chefe do Posto. Viu onúmero das notas nela referenciadas. Consultou a correspondênciatrocada entre o Delegado de Saúde e o Administrador, e este com oChefe de Posto, por fim sorriu. .. Estava diante de um finório -disse o Secretário consigo.

O cabo dos cipaios voltou para a varanda onde o "mestre", decalças brancas, camisa de boa popelina, casaco de seda-da-china, faziachiar os sapatos à praia, bem branqueadO\\) e engraxados.

O cabo não ligava à conversa dos colegas. Matutava como dara bengala ao homem dos sapatos de lixa, antes de chegar o Adminis-trador. Criou coragem e interpelou Tamoda:

- Ó senhor, o Dimixi lí demora... mas se precisar voltardepressa é só falar com a gente. A gente aqui com esta farda (picavao dedo na sua farda de cáqui) já costuma ajudar até brancos quevenha aqui. .. Bem, aqui em Catete é quente, mutu uatokala u-di--fikidila 18.

- Está bem, não há urgentíssima, desejo falar é com o JuizInstrutor - respondeu Tamoda e ia meter costas, quando o caboatirou outra bengala.

- O senhor não fuma? Queria um cigarro, favor só ...- Fumar nicotina que "ensambleia" o juízo e as vias aéreas e

bocágicas, não, Tamoda não admite isso!O cabo ficou aborrecido com o malogro dos seus planos. Afas-

tou-se, resmungou e, dirigindo-se para os colegas, disse:- Deixa estar, a gente vai-lhe garrar, só se o sacana volta já

hoje para Luanda. Mesmo quando o senhor Secretário estava a lera guia dele todos estavam a rir. Ê um bandido, kahála.

1í Dimixi - administrador (N .A.).18 mutuuatokala u-di-fikidila - a pessoa deve arranjar um apoio, cunha, pro-teção (N.A.).

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98 ESTóRIAS DE ANGOLA

- Este nosso cabo também, então pessoa que leva bengala, nãolhe vê nas costas dele? Este rapaz desde que chegou aqui putu muputu, muene u di-ta-né? 19

Eram nove horas e meia quando o Administrador desceu dacarrinha, em frente da Administração. O cipaio correu para tomar apasta das mãos do Administrador. Antes levou a mão à pala, fazendocontinência. O chefe do Concelho subiu a escada que dava para aampla e arejada varanda do edifício.

Tamoda tirou os livros da axila e aprumou-se para saudar aautoridade que ele aguardava desde pela manhã. Quando o Mixiapassava os cipaios alinharam para a continência. Outra gente sentadae distraída foi mandada levantar. E o Tamoda, que se aprumarapróximo da porta de entrada, saudou:

- Seja bem-vindo Vossa Senhoria Excelência do Concelho.Com um aceno de mão e sem olhar para o Tamoda, o Dimixi

correspondeu.No fim de duas horas tocou a campainha do gabinete do Dimixi

- trirrri-immmmm - . . . O cabo correu, passado um instante voltouà varanda:

O senhor é o senhor Domingos João Adão?- É o sumo Tamoda, criado de você ...- Você não, não admito. Eu está a chamar o senhor como é

senhor, por que está me dizer você!? - disse o cabo, muito ofendido.- Espera, você não é disparatar, quer dizer Vossa Excelência.

Ouvi dizer muitas vezes, nas casas dos Doutores que trabalhei, você,vossemecê, vossa senhoria, portanto ...

- Aqui em Catete é quente, o português tem de ficar ainda natrás, vamos o senhor Administrador chamou; mas esses livros nãopode entrar com ele.

- Por quê? Desejo desassombrar, croniquizar, elucidar e esclare-cer o senhor Administrador nestes livros (batia neles com os dedos,ao de leve).

- Não pode, lá no Luanda está bem, aqui em Catete a gentecostuma ficar os livros aqui no banco. Aqui não tem roubador.

Tamoda (este nome é alcunha e gostava muito dele, foi-lhe dadopela rapaziada quando garoto, sete anos, e poucos o não conheciampor outro nome) não conseguiu levar o cabo. Pousou o capacete eos livros no banco. Na pequ~tI;<,lsala de espera o cabo abriu a portado gabinete e disse para o Tamoda entrar.

- Ilustre e Excelência, autoriza o cidadão avançar no seu"gabinéfilo"?

1 H PlItu mu putu, muene li di-ta-né? - só fala português e com uma rapidezextraordinária, é com este que te queres meter? (N.A.).

UANHENGA XITU 99

- Entra só, aqui dentro o português pára, e o português ficaainda fora, vamos! - respondeu o cipaio no lugar do Mixia queassinava um montão de papéis que se levantava da secretária.

Desde que entrara o Administrador não ligara ao homem, conti-nuava a ler e a assinar notas e ofícios. O cabo com Tank ia matabor-rando as assinaturas e as observações de despachos. Silêncio.

- Você está na frente do siô Administrador e começa fazerdançar a pena? - acusou o cabo, cortando o mutismo que reinavano gabinete, onde só o farfalhar dos papéis e os sons tênues deixadospela caneta davam sinais de vida.

O Dimixi olhou seriamente o acusado, enquanto estremecia amão que segurava a caneta para mais umas assinaturas. . . Reconheceuque era uma calúnia do cipaio, e continuou o seu labor. Mas Tamodaolhava ameaçadoramente o cabo. Muita coisa lhe passava pela cabeça.Conteve-se.

- Estes "carcinhas" quando sai no Luanda não fica mais comrespeito de autoridade. .. Hum!... então você no gabinete e com Osiô Administrador fica com as mãos no kimokoto? - mais umainsinuação do cipaio.

Dimixi olhou para o homem e depois para o cabo, mas umolhar inquiridor, e voltou a assinar os papéis. Tamoda mudou daposição de mãos cruzadas atrás (e não nas ilhargas, como lhe acusarao cipaio) para cruzá-Ias à frente. Não estava a gostar da interferênciélmalévola do cipaio e, mais, a querer ensinar-lhe regras de boa edu-cação.

"Eu já trabalhei como criado do Doutor Desembargador, degenerais e coronéis, de médicos de grande fama no Hospital Centralde Luanda, contínuo de 'eminêncio', advogados, este fintilho, meque-trefe, basbaque, cavalgadura do cipaio, ximba de merda, kabujanganga,sundéifulo a pensar que sou da igualhagem, por quê? . .. Se o senhorAdministrador ainda não me atendeu é porque está a trabalhar Inão porque não me reconheceu o valor. Porque mesmo no gabinetido Doutor Juiz Desembargador e do Advogado onde trabalhei gua~dava silêncio até que o superior nos perguntasse. Este verdugo.raio está muito enganado" - ruminava o Tamoda. ili

- Ó home, você deve ficar sossegado, as mãos não ficapeito quando está com siô Administrador, as mãos fica aquicava). Você nunca andou na tropa, não é?

Tamoda pigarreou atrevidamente. O Mixia abandonou odirigiu-se ao WC, abriu a porta, fechou-a sobre si e }lli sorriu-vontade das impertinências do cabo e da reação denunciada do Tda. Na ausência, o cipaio chegou-se ao Tamoda e falou-lhe no ou

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100 ESTóRIAS DE ANGOLA

- Aqui em Catete é quente, nunca ouviu falar? Vocês quandovenham aqui precisa trazer cigarros para a gente que não ganhanada ...

O "mestre", com vontade de esganá-lo, deu costas e olhava pelajanela de cortinas coloridas. Despertou quando regressou o Admi-nistrador.

- Bem, bem, vamos ver o assunto deste excelência. Mostra-meos teus documentos, identifica-te ...

- V. Ex.a, V. s.a, Sumo e Ilustre, exige a coaptidão de umrecipiendário?

- Identifica-te e deixa-te de coaptidão. Foste acusado de vadio,sem documentos e além disso esteve cá o Sr. Dr. a queixar-se de queestás a provocar queimaduras nos garotos com quiquema - aquelacasca de mubanga e o fixador de mutamba, além de outros ingredientese o ferro de engomar que andas a meter na cabeça das crianças.Também o professor se veio queixar de que andas a ensinar portuguêsde disparate na sua escola. Como vês, quero saber de quem se trata.Lá da cidade trazem vícios e querem passá-los à juventude da área ...

- Eu, V. Ex.a, V. s.a ...- Apenas quero os documentos e o resto fica para mais tarde,

já disse ...- Mas V. Ex.a Ilustre ...- Documentos, rapaz! - bradou o Mixia, que estava a perder

a paciência. Deixou de assinar e olhava ameaçadoramente para o"mestre" de português. Abandonou de novo a sala para o gabinete doSecretário.

- Ó senhor, eu não disse que aqui em Catete é quente? Aquio senhor Administrador só quer os documentos, jiputu pal'anhi, uondotemexe ngó o mundele! 20 - interveio o cabo na ausência da auto-ridade.

- Mas eu quero explicar.'- Mas explicar mais quê? Você está pensar que está na Mbanza21

do soba ó quê? O branco disse que é documento, é documento epronto, para que mais explicar? Vocês rapazes quando fica já nacidade parece já Administrador também! - disse o cabo palmeandonuma atitude de admiração.

Voltou o Administrador.- Vá, explica lá, mas depois quero os documentos.- Sumo, Excelência, aquele professor preto é difamoso e o

senhor chefe do Posto não inquiriu bem com a averiguação penicial

20 jiputu pal'anhi... - muito português para quê? Só vais irritar o branco!(NA).21 Mbanza - tribunal ou palácio do soba (N.A.).

UANHENGA XITU 101

a consequencia do kikema para instalar os autos ao Sr. Dr. Tudo échufa, é chufa. Eles têm raiva de mim porque ensino português osmiúdos me gostam. E pessoa como interlocutor, nos termos do CódigoCivil, do Código Penal, do Código Comercial, Tamoda não é mucama,não é mequetrefe, não é grageu, não é basbaque, não é panhonhopara andar fazer trabalho de igualha cavalgadagem, sem soldo ...

A autoridade depois de tanto olhar para ele ... fez sinal ao cipaioe o "catedrático" foi enxovalhado. Como documento o "interlocutor"apenas tinha o de há dois anos. A caderneta do ano em curso em-prestara a um amigo, em Luanda, para se livrar das rusgas (naquelet.empo as fotos nas cadernetas não eram obrigatórias), até que arran-jasse dinheiro e pagasse o seu.

- Vais para a tua sanzala e dentro de um mês quero o impostopago. E deixa-te de te meteres com as crianças e seus pais. Se voltara ouvir que continuas com "queimaduras" e com as aulas de portu-guês pornográfíco desterrar-te-ei para muito longe daqui.

Para a varanda Tamoda ia com as mãos cruzadas e bem aquecidasperante a satisfação do público e sobretudo dos cipaios.

- Ndandu iami, quando venham aqui precisa ficar um bocadoobediente. .. português de ndunda é lá na cidade, está ouvir, manoDomingos? - dizia um cipaio em tom da chacota.

- Está bem, mas eu não falei mal.- Pronto já, ouviu? Pega já nos livros (mal ele procurava

levantar os códigos) e vai fazer como o Dimixi disse. Mesmo o manotem sorte, disparatar o Dimixi e não ficar no castigo.

- Mas eu não prevariquei, só "verbesiei" eloqüentemente ...- Éh!! pronto já, puto mais para quê, puto menha, puto menha

ma'kuene dijimu! 22 Quando venham aqui primeiro é ainda falar coma gente que conhec~ as coisas não é só viri safuá 23. Mesmo o senhorse nos molhasse só as mãos quando chegou a gente trabalhava tudo- aconselhou e rematou o cabo que se juntara ao grupo dos colegasque motejavam o mestre e procuravam dar-lhe o "kitukulu" de mise-ricórdia.

Era noite quando Tamoda chegou à sanzala. Porém a notícia doenxovalhamento chegara mais cedo. Os seus amigos o aguardavampara o saudar. Estive lá.

- Oh! o gajo bateu-me porque lhe disse quatro portugueses"furacadas" que lhe deixaram embasbacado. .. Ah, uakumbu naju 24

durante muito tempo, e, como não entendia do puto que lhe mandava,

22 puto menha ... - muito português mas sem documentos (N.A.).2;: viri safuá - surgir de repente (sem cunha, sem ser protegido) (N.A.).24 uakumbll naju - ficou estupefato (N.A.).

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102 ESTóRIAS DE ANGOLA

bateu-me por vingança, bateu-me mesmo só por raiva. Eles são assimmesmo, não querem que a gente sabe mais do que eles ...

Tamoda, em volta de velhos e dos seus fãs, continuou a justi-ficar-se:

- Na primeira pergunta, ele não sabia que quer dizer coaptidão.Depois falei os livros das leis (Vuua Tamoda! - ouviu-se esta expres-são no meio da multidão). Quando lhe falei nos códigos é que eleficou "empavidamente sorumbático!" ... Então ele viu que eu nãofalava português qualquer, mas português dos Doutores Desembarga-dores e de Advogados meritÍssimos. Então foi quando lhe mandeiquatro putos mais fundos que saíam como fogo de nzaji: tratà-tàtàtà-tàtà ... , e o madÍpora ficou estonteado. Ah, a resposta só era mesmoporrada. Mas o culpado é o professor, cavalgadura em sundéifulo.

Faleceu anos depois, mas já sem camisa, sem os sapatos, nemo capacete, nem o ndunda, tal como profetizara o cabo dos cipaios:kingilé, ~ jibot'ojo, o capacet'oko tuondo musumbe-ko mu makoka.

BOAVENTURA CARDOSO 103

BOAVENTURA CARDOSO

Nasceu em Luanda, em 1944. Colaborou em jornais de Luanda e narevista Angola. órgão da Liga Nacional Angolana. Publicou: Dizanga diamuenhu (A lagoa da vida, contos, 1977); O fogo da fala (1980).

Nostempo de miúdo*Manecas na baliza imobilizou o avanço. Bola marchando, Pedrito

puxa para Lito, este corre já em direção à linha divisória, entretanto,o sete recebe-lhe o esférico, finta brasadamente, tenta distribuir ojogo, corta agora Néné Gordo, miá, Cachaça dono do esférico, vaiagora! remata rasteiro para Zeca em progressão, estica para o ladodireito e a bola lateralmente fugindo. Pontapé no canto. Zero zero,tabuada em branco. Pernas velozes pisávamos espaço retangular,suarentas catingas transpirávamos, nós camisolados, eles costas relu-zentes. Na corrida outra vez, jogada agora no campo de lá, avançaTotoxe (tem Xaxa - do nome dele outro), corta, miá, miá, mialálá,Paulo aparecendo leva faiscadamente o esférico, atenção!, jogada lixa-da, defensiva formada na baliza azarenta, e remata por cima da trave!Jogo renhido no campo da Companhia Indígena. Trumuno com altosc baixos, ninguém que tinha tempo para descansar só. Bola que andavajá, jogo ainda em campo metade, o cinco, dominando a situação, tentapassar para o oito, surge Paulo, não consegue, jogo então veio nonosso campo. Bucho se defende, Quinzé secunda, faz uma revienga,miá, dá para Rataças. É pontapé de baliza. Maxinde contra Quinzede Agosto. Defensiva preparada, Zeca capitão da turma na voz decomando. Suor banhando corpos movimentados. Rasteiradamente abola corre a nos trazer azar, mas surge Manecas. .. BOA DEFESA!

Jogávamos esquecidos de tudo, até dos exames que estavam vizi-nhos. Traquinice nostempo de miúdo. Parámos e olhamos. Respiraçãobatucante ainda. Manecas traz a bola! - vozeamos. Guardião nafuga rápida com o esférico de borracha. A interrogação prendia nossospensamentos. Ó Manecas traz a bola! - vozeámos juntamente. Olharesde pergunta nos outros. Rataças, corpo mosquito, dá também decorrer. Corre! Lhe agarra mesmo! - dissemos no Íntimo de cada um.

'" Reproduzido de CARDOSO, Boaventura. Dizanga dia Muenhu. São Paulo.Atica, 1982. p. 57-62.

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104 ESTóRIAS DE ANGOLA

Nos enganamos. Pedrito, Lito, Totoxe, que que há?, também noensaio do passo corrido. Companhia Indígena toda, cinturões desa-pertados, eué!, no cerco do retângulo. Vão nos agarrar!

Manecas foi o primeiro quem lhes topou na preparação do cerco.Desafio suspenso no campo dá desafio fora do jogo, sem penalidade.A velocidade nos pés era grande, nem mesmo que compreendíamossó como é que estávamos a correr então. Néné Gordo, empalitavamaravilhosamente na berrida. Muros altos eram terraplana em nossaspernas correndo. Soldados disparados natrás de nós, cavalgandometros.

Que que foi meninos? - Tia Cristina pegou susto. A respostaninguém que dava. Nem já só fala para falar. Nada. Cada um nabusca de lugar seguro. Ouvimos então as vozes e os passos soldades-cos. Aí o coração que se ia lixando. No entendimento da nossa aflição,Tia Cristina lhes esperou mesmo lá fora. Aqui? Não senhor, não vimeninos entrar.

Traquinice nos tempo das férias? Eh! Se vos conto, me pagasque então? Bem. Era uma vez ... , não me lembro mais. Ih! Não fazmais truques pá. Conta lá pá. GENTE DE PAZ, é a história que voupôr. Aconteceu nostempo das confusões um dia, palavra d'honra.Ninguém se ri.

Já nos tinham avisado. Seis horas recolher. Patrulha atirar só.Sessenta e um quente. Cuidado! Pimentel barbudo sanguinário, olhosna mira fúnebre. SÔRocha nacionalista fogoso já lhe mataram então.Cuidado! Seis horas recolher. Patrulha atirar só. Sessenta e um quente.

Vínhamos andando assustados. Nove horas da noite, a cornetatocara fazia tempo. Maxinde-Katepa parecia tinha distância. Na portad'armas ainda que passamos bem. Sentinela só nos olhou mau. Fomosandando, andando. Silêncio, ninguém que passava só. Capim alto erasurpresa escondida no caminho da noite.

Zeca (pai dele lhe chamavam Canhoto) me deu coragem: "senos perguntarem quem vem aí, vamos falar é gente de paz. Em Luandauma vez me safei assim". Nem lhe ouvi mais. Podia? O medo semprecomigo.

Caminho andado com a vizinhança do perigo. Vontade de falarperdemos. Ouvíamos só nossos passos e o vento cortante nas árvoresnos punha susto. Segurei na mão de Zeca. Cuidado! Sessenta e umquente. Seis horas recolher. Vamos morrer! QUEM VEM Aí? - apergunta sinistra que esperávamos. Paramos. Quietos. Nem mais umpasso. Zeca falou baixo: "vamos falar é gente de paz. Anda!". Falaestá onde então? Minhas pernas desmaiando. QUEM VEM AÍ? Armafogando já quase. Coração frio, sangue glacial. Encontro com a mortecerta. GENTE DE PAZ!!! - Zeca gritou com toda a força. Não queria

BOAVENTURA CARDOSO lOS

morrer. ~ópilas a vida é só uma! Em sentido. Ali. Estávamos. Quietos.Nem maIS um passo. Vamos morrer! Minha mão na mão de Zeca.Selagem frat~rna. "Nossa mãe está doente, fomos na farmácia" _ oguarda 9~ena. saber adonde vínhamos. Foi Zeca que conseguiu res-ponder. Menmos tenham cuidado, não são horas de andar. Podempas:,ar." Chu~ aind~ tinha coração dele bom. Nossa sorte. Começámosentao a sen.tu a Vida renovada. Andamos só um bocado e a morteoutra vez ali perto. Paramos. Nem mais um passo. NOSSO GUARDAATIRA? - bala na câmara, ximba perguntou. NOSSO GUARDAATIRA?! O guarda não estava ouvir. Vamos morrer desta vez. NOSSOGUARDA ATIRA? ~ala na câmara faltava pouco para sair a nosmatar. A mor~e e a Vida em luta. Já nos tinham avisado. Sessenta eum quente. SeIShoras recolher. "Não, deixa passar!" Estávamos safosCOrrIda louca co~eçámos já. Mas. '. no escuro da noite ameaçand~furar .nossas barngas, u~a baioneta. Zeca bravou: "Nosso guarda jános dISS~para passar, xImba dum raio mé". "Eu ximba? Eu ximba?"- a mao da morte fazia-nos recuar. De repente alguém gritou ao~dem de passagem. Nem já as poças d'água chuvosa se víamos. Eraso correr. Sempre em frente.

Já nos tinham avisa~o. Seis horas recolher. Patrulha atirar só.Sessen,ta e ~m quent~. CUIdado! Pimentel barbudo sanguinário, olhosna. mIra, fu~ebre. So Rocha nacionalista fogoso já lhe mataram.CUIdado. SeIS horas recolher. Sessenta e um quente.

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106 ESTóRIAS DE ANGOLA

JOFRE ROCHA

Nasceu Jofre Rocha (Roberto Antônio Victor Francisco de Almeida] emIcolo e Bengo, em 1941. Colaborou em jornais e revistas. Participou doprocesso de emancipação nacional. Publicou: Tempo de cicio (poesia, 1973];Estórias do musseque (contos, 1976]; Assim se fez madrugada (poesia, 1977].

Estória da confusãoque entrou na vida do

ajudante Venâncio Joãoe da desgraça de seucunhado Lucas Manuel*

No meio do capim seco que muito tempo já não estava maisver chuva, a estrada está sempre seguir, comprida, comprida comoé o corpo desenrolado duma cobra a atravessar as baixas e os rios,com curvas, subidas, descidas, que o carro está mesmo andar lá commedo. O capim, os paus pequenos, as casas de perto da estrada, tudotinha ficado vestido com aquela poeira amarela que os carros andavamlevantar todos os dias.

Em cima da carga, Venâncio João está ver tudo passar a correrpra trás, a camioneta sempre na mesma cantiga que traz vontade decochilar. Mas Venâncio João é antigo naquela vida de ajudante, aconversa do motor não lhe faz mais sentir vontade de cochilar. Elejá andou com muitos patrões, sabe muitas terras mesmo. "Mas, deixa!Vida de monangamba não presta nada. Pessoa às vezes nem só secome bem, patrão sai no hotel - vamos embora! -, outra vez nocaminho. Mesmo Venâncio já tinha ficado sozinho no meio da matacom o carro estragado, patrão foi ainda buscar peça nova em Luanda.Ah! não, a vida de ajudante é maçada ... Tempo de chuva então, nãose diz mais. No barro mole, rodas a rodar, a rodar, mas nada ...carro no mesmo lugar. Eh! com mosquito e tudo, toca a descarregar

* Reproduzido de ROCHA, Jofre. Estórias do mllsseque. Lisboa, Ed. 70, 1976.p. 55-69.

JOFRE ROCHA 107

camioneta en~erra~a. P~trã? manda a gente pôr corrente nos pneus,mas parece amda e mars pIOr. Hum! deixa, é castigo mesmo.

"Também é .a última viagem que Venâncio está fazer como aju-dante. Lembra alllda aquela vez quando ficou cinco dias no meioda mata, nen: um c~rro só se passava. Já tinha tirado água no radiador,se~e era mUlta, fOi procurar no capim, encontrou cacimba de águasUJa. Teve de lhe beber mesmo, não sabe ainda como é que não ficoudoente. Lembra também outra vez, ele escapou de morrer na jangadado Panguila. Uma corda lhe enrolou nas pernas, lhe arrastou dentroda lagoa, em cima cheio de capim bonito, não parece mesmo temaquela água escura lá embaixo. Mas pior foi aquela noite que elesencontraram "Mercedes" dum comerciante da Damba virada na estra-da dos Dembos. Era numa subida lixada, chofer atrasou pôr a mudan-ça, travão não aceitou travar; camioneta começou recuar, recuar atémesmo foi cair na valeta, roda no ar, peso da carga fez-lhe ~irar.Também era azar, não estava tempo de chuva nem nada. Todas cordasarrebentaram, a carga saltou, tambores, caixas de peixe seco, desabão, tudo no chão. O ajudante, coitado, quando a luz da lâmpadado ..patrão lhe encon~rou, boca aberta, olhos abertos, o sangue a pôr~~Jldad~ dele .n? capim, n.ing~ém estava poder dizer mesmo que tinhaJa morndo. Viajem no meiO, tmha acabado a viagem pra ele. Venâncionão conhecia aquele ajudante mas chorou muito ali na escuridão. Lhetapou com um cobertor e chorou com raiva de todas as estradascom raiva dos carros que podiam mandar assim na vida duma pessoa:Tinha passado já muito tempo, mas ele nunca esqueceu, parece estáainda mesmo a ver o outro, sangue a lhe correr na cabeça, boca comoa _querer g:itar, como a querer avisar todos outros ajudantes que aquelanao era Vida. Verdade, aquela não é vida, não. Por isso, VenâncioJoão vai lhe deixar, é a última viagem que ele está fazer. Em Luanda,cunhado dele Lucas Manuel falou já no dono duma oficina Venânciovai começar trabalhar lá. Não vai custar nada, ele já s~be bem aferramenta e as peças do carro."

O dia est~ chegar no fim. Sol não tem mais quentura, sol de pertoda hora da nOite, sol fraco que está quase já morrer embaixo da terra.O carro agora está correr no alcatrão, motor está pôr conversa maisdescansada, ali está poder andar à vontade, sem medo. Lama não tem,as sanzalas que estão aparecer na beira da estrada não têm poeiraI~a cara delas. Quando a camioneta passa, os monandengues nusficam a fazer barulho deles, a fazer adeus, a fazer corrida atrás docarr? Outra~ vezes é os muzangalas que ficam ainda a fazer caçoada,a por assobIOS deles de "monangambééé". Venâncio João, os olhosdele bocado fechados por causa do vento, não tem mais paciência de

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108 ESTóRIAS DE ANGOLA

responder. O carro parece voar, Catete está perto, não vai faltar maismuito estão chegar em Luanda.

Mas Venâncio não sabia, o azar estava também andar com elenaquele dia de última viagem. Catete ficou atrás, o ca.rro ~empre .~correr na estrada que ninguém estava poder lhe ver o fIm, tInham Jamesmo passado no Vinte-e-Um, quando ele .viu os carr~s da tro~aparados no lado da estrada. Quando ~ camIOneta a~roxImou maIS,um tropa alto saltou no meio do CamIn~lO,fez-lhe sInal p~a parar;Patrão começou andar mais devagar, maiS devagar, devagannho, .~teo carro parar perto do homem. Venâncio João viu que era. um JIpee duas camionetas grandes os carros da tropa que estavam alI:..Apare-ceram mais três tropas, cada um com uma metralhadora na mao. Lhesmandaram descer, patrão -desceu, Venâncio desceu também.

- Os vossos papéis?O patrão puxou dos documentos, Venâncio tirou também os dele

e entregou ao militar. Lhe olhou ainda bem"parece ~le estava zangado,a cara tinha riscos na testa, os olhos atras dos oculos escuros. ?soutros tropas tinham subido no camião, tiraram a lona, estavam reVIS-tar a carga toda.

- Donde vem?Patrão respondeu:- De Camabatela.O homem olhou mais bem no Venâncio e cuspiu com força na

beira da estrada._ Sabe o que se passou no Quitexe? - perguntou mais o homem

da tropa.- Não, senhor ..._ Pois a negralhada matou os comerciantes, roubou, incendiou,

pintou o diabo. . . .Venâncio João estava ainda admirado com as COIsasque estava

ouvir, t'stava inda pensar como é que os pretos podiam fazer aquilo,mas o tropa perguntou outra vez:

Onde é a tua terra, rapaz?- É Lucala, patrão ..._ Patrão, não ... Meu tenente, meu tenente é que é! E também

não sabias de nada?_ Nada mesmo, só tenente. Eu anda sempre com patrão._ Hum. .. Pois é, de dia vocês são todos uns anjinhos; mal

o sol se põe surgem-vos catanas nas mãos. _Venâncio, nada à vontade, não tinha palavras. Patrao começa

falar ainda:_ Por acaso, este tem sido bom rapaz! Vai agora ficar em

Luanda, onde arranjou outro emprego.

JOFRE ROCHA 109

O tenente virou para o patrão os óculos que lhe escondiam osolhos e a cara quase toda e respondeu meio zangado:

- Meu caro, o preto é o que há de mais traiçoeiro. Nunca lhepassou pela cabeça perguntar por que ele só agora quer mudar deemprego? Quer saber? Pois oiça: é para escapar à fogueira que ajudoua atear.

O patrão agora parece que está também a desconfiar, está olharbem nos olhos do ajudante, como a querer lhe entrar lá dentro praver o que ele estava a pensar nessa hora. Venâncio João estava falar,estava negar, mas sabia que o tropa não estava só lhe acreditar. Oajudante não está mais se sentir bem, parece uma mão grande estálhe apertar no peito com força, não está lhe deixar respirar, nãoestá deixar entrar ar lá dentro. Sabe que estão ali três metralhadoras,não está poder se mexer à vontade, como passarinho que lhe agarra-ram no laço com jinguna. O tenente devolveu os documentos aopatrão, mas ficou com os de Venâncio na mão.

- O senhor pode seguir, mas o seu rapaz tem de vir conosco.Na mesma hora, os tropas com as metralhadoras chegaram mais

perto, amarraram as mãos do coitado Venâncio, lhe mandaram subirna camioneta deles. Patrão ficou só a olhar, depois foi acabar deamarrar bem as cordas da carga que os tropas tinham desatado, subiuno carro, nem só se despediu no ajudante. Só quando o carro dopatrão começou a andar é que Venâncio João lembrou que tinhaesquecido o casaco em cima da carga. Falou ainda no tropa, mas nãolhe fez caso. A camioneta do patrão agora está ir já bocado longe,está lhe ver ficar mais pequeno, mais pequeno, piquininho como écarro de brincadeira de monandengue, falta só pouco não vai poderlhe ver mais. Venâncio João começou a pensar ainda como é queo azar entra na vida duma pessoa: ele queria deixar o carro, aban-donar aquela vida de monangamba, agora no meio do caminho carroé que lhe deixou ... Agora está outra vez à sua frente os olhos abertosdo ajudante da "Mercedes", a boca dele agora está mesmo gritar,gritar com barulho, está avisar todos ajudantes que aquela não é vida.Venâncio João não agüenta mais, estão lhe cair lágrimas nos olhos.Os tropas estão a rir, um deles zombou:

- Ainda é cedo para chorares, a festa mal começou. .. Maislogo é que isto vai aquecer! ...

Naquela hora Lucas Manuel estava no serviço dele na Baixa,estava se preparar já pra ir em casa na Calemba, quando lembrouainda por que cunhado Venâncio João não tinha chegado até naqueledia. Já tinha falado no dono da oficina, estava lhe esperar já muito

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110 ESTÓRIAS DE ANGOLA

tempo, se demorava mais muito talvez ia pôr lá outra pessoa. Trabalhoagora está a custar, outros brancos mesmo não estão mais aceitar dartrabalho nos pretos por causa das confusões que estavam passar.Lucas Manuel ouviu que no Quitexe tinha passado lá confusão nasemana passada, mas não sabia ainda bem como é que tinham pas-sado as makas. Mas ele estava a ver nas ruas, na Baixa, no musseque,as pessoas parece estão andar com medo, com desconfiança nasoutras pessoas. Os jipes agora estão sempre andar no musseque, desdeaquele dia que os comerciantes mataram lá três pretos. Os brancosdisseram que eles queriam roubar as lojas deles, queriam ficar comas senhoras brancas. Vida agora está mal mesmo, a pessoa não podemais olhar duas vezes na cara duma senhora branca ...

Lucas Manuel era homem sossegado, sai só no serviço dele gos-tava 'mbora ir já em casa. Mas, sem saber que o azar estava lheseguir naquele dia, lembrou ir ainda na oficina de "sô" Ramos, obranco que ia dar trabalho no cunhado dele. Lucas Manuel já tinhatrabalhado junto com "sô" Ramos noutro patrão, quando ele tinhachegado ainda pouco tempo do Puto. Depois "sô" Ramos arranjou di-nheiro, montou também já oficina dele, agora é grande mesmo. Foi-lheencontrar na porta da oficina a conversar com outros brancos, parecetinham saído no mato, tinham barba de muitos dias na cara, os carroscarregados estavam ainda com poeira deles. Quando Lucas Manuelacabou cumprimentar, viu que "sô" Ramos estava já virado. Nem sólhe responder ainda, nada, lhe deu já berro:

- Que queres?Lucas estava pensar "parece é melhor não dizer mais nada, vir

amanhã, branco hoje não está bom", mas puxou coragem e falou:- "SÔ" Ramos, meu cunhado parece só vai vir semana que

vem ...Nem só se tinha lhe deixado ainda acabar, o dono da oficina

estava já responder com raiva dele:- Nem semana que vem, nem mês que vem! Escusa de cá

aparecer que não há aqui serviço para ele! Vocês querem assim .Agora é pedir emprego ao Lumumba e ao diabo que vos pariu! .

Lucas Manuel ficou bouamado, nem uma palavra mais conseguiudizer, voltou as costas nos homens, "sô" Ramos ficou a lhe xingar,a xingar com nomes feios todos os negros que ele estava dizer queestavam querer enxotar os brancos. Lucas Manuel está ver parecetudo agora está ficar pior, os pretos e os brancos zangados, está ficarcustoso arranjar trabalho. Talvez é por isso que está sair muita genteno Puto, estão vir receber serviços nos pretos, até vender loteria, atéengraxar sapato, até vender baleizão. Falta mesmo pouco, preto não

JOFRE ROCHA 111

vai poder ficar nem bagageiro no porto ou no caminho de ferro, sócavar buraco na rua, verdade mesmo.

Sempre a andar e a pensar estas coisas, Lucas Manuel deixou jáas luzes da Baixa atrás, e~t,áentrar agora no musseque escuro, naqueleescuro que os olhos dele Ja conhecem bem. Longe, muito longe, estãoa trem~r poucas estrelas, a dar luz fraquinha, agradece já luz decandeeIro. Nos caminhos onde está passar, Lucas está sentir que omusseque está também virado como "sô" Ramos, tudo calado, semquase pessoas na rua, até os monandengues não estão mais pôr kizombadel~s dos outros tempos. ~ucas Manuel está sentir que as pessoas aliestao, com medo, como. galinha que se esconde na capoeira sem saberque e mesmo na capoeIra o lugar onde o cozinheiro vai lhe procurar.

Lucas M~nuel ia dar curva num beco, faltava pouco pra casadele. chegar, quan~o o coração lhe saltou e na mesma hora começouse?tIr como uma arvore grande a lhe crescer lá dentro, com muitasraIzes f?ndas que estã~ lhe deitar veneno de medo no corpo. Eleparou ainda mesmo, ,adIantou sossegar bocado, parece aquelas coisasque estava a pensar e que estavam a lhe fazer assim. Não ligou mais,começou outra vez a andar. Nessa hora então ouviu uma voz sair daescuridão:

- Pára aí, bandido!. ~stá já bocado noite, _ele mesmo não é a primeira vez que passa

alI, n~o sabe por que estao lhe chamar bandido. Está ouvir passosaproXImar, Lucas Manuel está ficar com mais medo, começa a recuardevagar, qu~r ficar mais escuro que a noite pra ninguém lhe encontrar.Mas el~s.adIantaram acender a luz forte do carro que fez fugir a luzpequemmnha das estrelas e meio dar berrida na noite do beco. Lucas~anuel: os ?lhos do .carro em cima dele, não está mais poder recuar,nao ~sta ~aIS lhe deIxar se mexer. Está sentir que no ar que respiratambem ha medo, aquele mesmo medo que ele sente ali no beco eque está esp~lhado nas cubatas de todo musseque. Lembrou os trêsho~ens que tmham matado, começou mais querer fugir, mas as pernases~ao lhe pesar, parece que a noite. do beco que luz lhe deu berridafOI se enrolar toda lá.

O musseque estava calado,. ouviu bem o barulho dos tiros e ogrito que Lucas adiantou pôr, antes de cair. Os brancos montaramno carro, foram embora, ficou só o cheiro de pólvora no ar. A noiteengoliu o barulho, veio tomar conta do corpo caído no fundo do becoTudo ficou como dantes, só o vento começou a chorar no meio d~todas cubatas e as estrelas longe começaram brilhar mais, com força,com força, parece vontade delas era mostrar a toda gente aquele becoda Calemba, onde tinham matado Lucas Manuel.

Setembro/65

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4Estórias de Cabo Verde

GABRIEL MARIANO

José Gabriel Lopes da Silva Mariano nasceu em ~ão Nicolau, C~bo Verd~,em 1928. Poeta, contista e ensaísta, tem colaboraçao em antologias. Publl·cou: Vida e morte de João Cabafume (contos, 1977).

o rapaz doente*D. Maninha leu por duas vezes a carta do marido. Uma hora

antes tinha chegado da Igreja, onde fora dar uma olhadela no altar.oe nossa Senhora de Conceição, de cujo arranjo era encarregada, ecombinar com o Sr. Padre uma comida-de-anjo aos meninos de S.Vicente. D. Maninha tinha os seus pobres escolhidos a quem davaesmola todos os sábados, das duas às quatro da tarde.

De pé o rapaz segurava, com os dedos secos e descorados, aboina velha. Tinha um ar apatetado e, quando falava, a sua voz eramuito branda e muito tímida. Os olhos sobressaltados corriam a salatoda, como se um acontecimento imprevisto os tivesse de súbito sur-preendido e, sempre que se dirigia a D. Maninha, sentia-se-Ihe nosgestos o jeito humilde de quem se habituara a pedir desculpas. D.Maninha ergueu a cabeça:

Como foi a viagem?- Assim-assim ...

* Reproduzido de MARIANO, Gabriel. In: Boletim Cabo Verde. n. 94, jul.1957. p. 235-53.

GABRIEL MARIANO 113

Era visível que D. Maninha perguntava uma coisa e pensavaoutra. O rapaz, enfraquecido e amarelo, impressionava qualquer um ...E o medo transpareceu no olhar inquieto de D. Maninha. Bem queela se esforçou por não o dar a perceber, mas a sensação de repulsacolou-se-lhe ao espírito. Era evidente o seu esforço em falar com orapaz.

Dobrou a carta e meteu-a na algibeira do vestido. Os seus olhoscaíram sobre o envelope amarrotado e sujo de gordura. Fora o própriorapaz o portador da carta. E afastou o envelope com a ponta do dedomindinho.

- Senta-te ...O rapaz sentou-se. A boina caiu-lhe das mãos. Apanhou-a e

tornou a sentar-se.Enjoaste?Sim, senhora ...Quantos' dias?Todos os dias. : .Não ... de viagem ...Ah. .. gente demorou três dias ...

- Viagem comprida, não é?D. Maninha abanou a cabeça com pesar. Depois sorriu-lhe,

procurando ser agradável. No que ela queria falar era no assunto dacarta, mas fria sensação de receio retinha-lhe as palavras na boca. Oar sobressaltado do rapaz desaparecera, só ficando o seu jeito demenino.

- Há quanto tempo estás doente?Dias-há ...

- E o que é que tu sentes?- Não sei ...D. Maninha ficou calada.Voltou-lhe outra vez aquela sensação de medo e repulsa. No

fundo revoltou-se contra o marido. Ele bem devia saber o perigo dese meter em casa de crianças pessoas com certas doenças. Súbito, tevedesejos de sair e procurar alguém com quem se aconselhar. O pensa-mento correu-lhe para o Sr. Pinto, enfermeiro amigo e homem de bomconselho. Mas não era seguro sair e deixar o rapaz em casa. Tantomais que daí a pouco chegariam os filhos do Liceu.

O rapaz tinha agora as pernas cruzadas e deixava pender paraa frente a cabeça pequena e redonda. D. Maninha notou-lhe as orelhasgrandes e sem cor.

- Teu nome é Júlio, não é?- Sim senhora. .. - Mexeu-se na cadeira. A boina caiu-lhe

novamente. Inclinou-se mesmo sentado e apanhou-a.

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114 ESTóRIAS DE CABO VERDE

- Que é que te disse o doutor?Júlio não percebeu:- Senhora?_ Quando foste consultar que é te disse o senhor doutor?Júlio descruzou as pernas e encolheu os ombros. D. Maninha

pensou que podia sair com ele e irem os dois à casa do Sr. P~ntoenfermeiro. Sempre era uma opinião ... Júlio mexeu-se na cadeIra:

_ Senhora, pode dar-me uma pinguinha de água?D. Maninha assustou-se e, por momentos odiou o rapaz doente:

ele é que devia ter compreensão para ver que não era direito procederdaquela maneira. .. e odiou também o marido por ele ter mandadopara dentro de casa um homem naquela condição. Mas foi só ummomento. O medo era mais forte. E gritou para a cozinha que trou-xessem uma caneca de água. Logo a seguir emendou:

- Caneca não. .. copo.Júlio tossiu. Depois levantou-se em direção à janela. D. Maninha

ficou espiando o seu jeito desmanchado de andar. Cuspiu para a ruae veio sentar-se. Enterrou a boina na algibeira do casaco de cotimmilitar e sorriu para a Bia que vinha entrando com o copo de água.Bebeu vagarosamente. De vez em quando parava para tomar fôlego.D. Maninha, de olhos concentrados. Bia, aérea, fitava o teto. Limpoua boca com o lenço de riscado vermelho. Dobrou-o ao meio, verificouse as pontas estavam unidas e meteu-o no bolso traseiro das calças.Quando Bia estendeu a mão para tomar o copo D. Maninha disseque não era preciso; que fosse para a cozinha porque ela depois irialá levar. Júlio tinha os olhos lapados nas coxas da criada.

D. Maninha falou:_ Mas o doutor não te disse o que é que tu tens?O rapazito franziu as sobrancelhas (estava ainda a pensar na

criada) :_ Doutor disse que na Praia não tem remédio. .. Só aqui em

S. Vicente. Seu marido tirou passagem e eu vim.D. Maninha fez uma pausa. Certo: Júlio ignorava o seu mal.

Tentou uma nova pergunta:- Que é que tu sentes?Com o seu ar de menino, o rapaz respondeu:_ Umas vezes febre, outras vezes dor no peito... Começou

em S. Tomé ...E o rapaz doente contou. Tinha sido na roça Zé Maria. Trabalho

duro. Enterrado na lama. Uma vez foi preso por largar trabalho antesdo tempo.

- Uma coisinha de nada ...

GABRIEL MARIANO 115

O chicote de cavalo marinho queimava que nem lume. Cortaram--lhe o cabelo. A cabeça ficou cheia de regos ...

- Eu chorei, senhora ... Você não acredita?Durante uma semana sapou capim nas ruas da cidade. Febre

pegou-o para nunca mais. Dia sim, dia não. .. Quando terminou ocontrato regressou a Praia.

- Nós eramos muitos, senhora ...Na Praia conheceu o senhor Armando, marido de D. Maninha.

Costumava fazer recados aos funcionários. Comprar cigarros e outrosmandados. .. Quando começou a piorar o Sr. Armando passou-lheatestado pra ir ao médico. Depois deu-lhe uma carta de recomendaçãopara o senhor doutor Nogueira, em S. Vicente.

D. Maninha ia pensando enquanto o rapaz falava. Talvez nãoestivesse tão doente como dizia a carta do marido. .. Talvez mesmonão fosse doença' que pegasse. . . Ao certo não podia afirmar, eviden-temente. .. Só médico. D. Maninha sentiu-se mais calma. O rapazpoderia passar lá em casa até dar entrada no hospital. Falaria aodoutor Nogueira ...

Bia apontou a cabeça anunciando, no seu gritinho de meninahistérica, a hora do almoço. D. Maninha, rápida, cortou a conversaao rapaz. Era conveniente não dar a perceber aos outros o que seestava passando. Disse à criada que levasse o rapaz para a cozinha.

Ficou só no meio da sala. Sobre a mesa, o copo e o envelopeengordurado. O pensamento virou confuso outra vez. Apavorada,espiou por cima da janela. Lá embaixo na calçada um escarro amarelo.Devia ser do rapaz doente. .. Sentiu-se irritada: contra o marido econtra o rapaz doente. Agora ela que se desvencilhasse sozinha ...Era correr um risco desnecessário deixá-lo lá em casa e, para mais,na convivência dos filhos. Como única saída só via a possibilidadede o meter no hospital. Os olhos caíram sobre o envelope sujo.Apanhou-o com a ponta dos dedos e atirou-o para dentro do copo.Depois embrulhou tudo num guardanapo e fechou na gaveta do guarda-.Iouças.

- Os meninos já chegaram. .. - Bia aproximava-se para pôr() almoço.

- Onde é que o Júlio está?A criada não entendeu logo. D. Maninha explicou:- Aquele rapaz que veio cá para casa ...- Ah ... Foi para a cozinha ... - E Bia, com o seu ar dispa·

rntento e conhecedora dos rigores de D. Maninha, acrescentou errvoz sumida:

- Adá, mulher, você pensa que a gente vai comê-lo?! ...

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GABRIEL MARIANO 117

por.ta. O rapaz d~ente debruçou-se do patamar da escada e espreitou,cur~oso, para o res-do-chão. Conversou com Norberto. Que sofria hámUlto tempo .mas que não sabia o que era. Acocorou-se num degrauda escada e frcou por momentos silencioso. Norberto veio e sentou-seao lado dele.

- Tu não conhecias S. Vicente?Não ...

- É a primeira vez?- Sim ...O rapaz doente segurava a cabeça entre as mãos e falava sem

levantar os olhos.- Qual é mais sabe: Praia ou S. Vicente?O rapaz doente sorriu-se:- Dizem que S. Vicente é sabe. .. Mas eu estou é sentindo

saudade da Praia ...- Adê, moço. .. tu chegaste hoje ...

E tu não sabes que todo o boi tem seu curral?Norberto largou uma gargalhada.Ouviram passos na escada. Era D. Maninha a saber por que se

demoravam. Norberto explicou. Depois ela desceu. Ficaria à esperado outro lado da rua.

- Todo o boi tem seu quê, moço?- ... tem seu curral, sim senhor ... Júlio agora olha de frente

para .N~rb~rto. Riu-se também. Norberto pensou um bocadinho.DepOIS msmuou:

Tem curral de toda a espécie. .. Grande, pequeno ...Eu 'já sei ... Mas cada boi tem seu curral. ..Tu pensas que a Praia é curral?

- Não, moço. .. Isto é só comparação de conversa .... Norberto simpatizou com o rapaz doente e teve pena dele. Dese-Jando .do fundo .da alma que Dr. Nogueira os atendesse direito.Aproxlmou-~e. maIs. Acocorou-se a seu lado. Mas no mesmo instantee~g~eu-se. JulIo olhou para ele como quem receia perder o que desubIto encontrou:

- Tu vais sair?. Tinha ouvido passos dentro da casa. Devia ser o Dr. Nogueira. Jú-

lIo erg~eu-se tambem. Correu as mãos pelos cabelos crespos e abotooua caml~a no pescoço. Abriram a porta. O Dr. Nogueira trazia aindao roupao de banho. Era alto e forte. Vinha fumando. A testa estreita~ch.~tava-se ao meio para se .alongar, como uma prancha lisa, na',CgIaOdas s~brancelhas. EmbaIXO os olhos muito pequenos, morriamsem expressa0, no fundo fora das órbitas. Perguntou se queria alguma

D. Maninha ia para falar mas parou hesitante. Talvez fosse con-veniente dar uma conversa a Bia e contar-lhe o sucedido. Mas Bia,com aquela cabeça de vento, estragava tudo. Preferiu a Conceição.Chamou-a. Que fosse ter com ela no seu quarto ...

O quarto de cama de D. Maninha era espaçoso. Ao fundo e dolado oposto à janela que dá para a rua, tinha armado o seu oratório.A lamparina de azeite dava um tom de intimidade e de recolhimentoà penumbra do quarto. E uma sensação de peso, também. As imagens,rompiam a sombra, amareladas e misteriosas. Ao alto e a meio daparede, um quadro grande de S. Sebastião ensangüentado e furadode setas. Um cheiro pesado a incenso parecia escapar do oratório.

A criada entrou._ Conceição. .. este rapaz que está cá, está doente. . Tu

pões a sua comida naquela tigelinha de barro... Estás a ouvir?Aquela tigela de barro que serve pra torrar milho ...

D. Maninha falava em voz baixa, quase em surdina._ Toma cuidado pra não misturar com os outros pratos ...

Garfo pode ser um qualquer ... Mas depois separa ... Estás a Juvir?- Sim senhora ..._ Não é para misturar... Quando ele acabar de comer tu

pões a tigela e o garfo de parte. .. Separado das outras coisas ...- Sim, senhora ..._ Não é para misturar. Tu pões tudo num cantinho. .. Depois

a gente resolve ...- Sim senhora ..._ Já entendeste, não é? Tigelinha de barro que serve para

torrar milho. .. Põe tudo de parte quando ele acabar de comer.- Está bem ._ Podes ir Não ... espera: garfo pode ser aquele (1.;; cabo

preto .. , Nem Bia, nem ninguém precisa saber. Ah ... Diz ao Nor-berto para vir aqui.

Norberto era um mocinho que D. Maninha criava desde rnenino.- Sim senhora ...E D. Maninha suspirou aliviada. Agora só faltava ir falar ao

Sr. Pinto enfermeiro. Mas isso ficaria para depois de almoço.Quando o Norberto apareceu explicou-lhe o que tinha a fazer.Andaram toda a tarde. O Sr. Pinto não estava em casa: tinha

ido ao cinema.Agora o único remédio era ir diretamente à casa do Dr. Nogueira.

D. Maninha não quis subir ao primeiro andar. Ficou na rua e mandouNorberto acompanhar o rapaz doente. Quem abriu a porta foi o filho'do Dr. Nogueira. Norberto perguntou se o pai estava. Respondeu.que sim, mas teriam de esperar até ele sair do banho. E fechou a

116 ESTóRIAS DE CABO VERDE

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118 ESTóRIAS DE CABO VERDE

coisa. Os rapazes olharam um para o outro. Depois Norberto entregoua carta. O Doutor gritou para dentro pedindo o corta-papéis. Masreparou que o envelope não vinha fechado. Tornou a gritar que nãoera preciso. A sua voz era rouca e mole. Quando acabou de ler coçouo cocuruto da cabeça. Chamou que lhe trouxessem um cinzeiro.Afogou o cigarro, ainda grande, e falou para Norberto:

- Isto não é comigo ...Norberto olhou duas vezes para o rapaz doente e para o Dr.

Nogueira. Com voz tímida de quem não compreende:_ A carta tinha o nome do Sr. Doutor. . . - E dirigindo-se ao

rapaz doente: - Não é?Júlio diretamente ao Doutor:_ É sim. .. Foi o sr. Armando, da Praia, que me deu esta

carta para o Sr. Doutor ...Dr. Nogueira explicou que não era isso o que ele queria dizer.

Que na realidade a carta lhe era dirigida mas o que ele não podiaera tratar daquele assunto. Que só o diretor do hospital autorizava aentrada de doentes. Para mais. .. (aqui acendeu outro cigarro, atiroupelo canto da boca uma baforada de fumo e fitou Norberto).

_ ... para mais o hospital não o deve receber. .. - E como polegar curto e grosso apontou na direção de Júlio.

Na rua, do outro lado do passeio, encontraram D. Maninha.Estava impaciente. Já não podia mais. .. Norberto contou-lhe osucesso. Ficou estarrecida. Sentiu-se aflita e agoniada. Júlio tornava-seum fardo de que era necessário ver-se livre. Pediu a Deus que aajudasse no transe.

A noite principiava a cair. Daí a pouco acender-se-iam as luzesna cidade. D. Maninha pensou que o diretor do hospital era pessoadas suas relações. Encontravam-se todos os domingos na segundamissa. Mas não queria falar com ele diretamente .. , Sentia-se deso-rientada. O diretor morava para as bandas da Fonte Filipe, mesmo aopé do hospital. Mas naquela hora devia estar no Grêmio a jogar bilhar.Vinham calados. D. Maninha à frente. Júlio com a boina descaídasobre a testa, espiava as ruas por onde passavam. Desceram a rua deLisboa. No café Royal um grupo de marinheiros bebia e cantava. Oconjunto Bali com Mochinho do Monte à rabeca, tocava um swingamericano. Júlio parou a ver. D. Maninha tentou não dar nas vistasmas não pôde: teve de cumprimentar o dono do Café. Dobraramdepois a esquina do Central e subiram a rua do Telégrafo. No botequimde nhô Mochim Americano mais marinheiros bebiam. Uma chusmade meninos e de raparigas de vida rodeava os estrangeiros.

- Eh, moço! Paga-me o meu dinheirinho ...

GABRIEL MARIANO 119

Norberto virou a cabeça: era Filipa. Chateado, afastou-se semresponder. D. Maninha distanciara-se para evitar o agrupamento. Júlio,no seu andar bamboleante, veio atrás de Norberto ...

Quando desembocaram no largo da Praça Nova, D. Maninhaparou. Ao fundo, o Grêmio todo iluminado. Talvez fosse convenienteela não se aproximar mais... Mas também parecia mal ficar alisozinha, encostada à esquina como uma mulher qualquer ... Resolveumandar os rapazes à frente e seguir pelo passeio do cinema, paraleloà Praça. Norberto iria depois até ao Grêmio ver se descobria o diretor.

Norberto foi e voltou a correr. Que "o Sr. diretor estava ... "Sentado fora, no bar ...

- Só?Que não. O "Sr. diretor" conversava com a mulher do Sr. enge-

nheiro Viriato, mais a filha de nhô Leia Pinto ...De nenhuma forma D. Maninha quis tratar pessoalmente do

assunto. Sem saber por que sentia relutância em falar ao diretor. Jáo mesmo lhe acontecera com o Dr. Nogueira. Mas agora o problemaintrincava-se.

Júlio, de pernas afastadas, olhava os cartazes afixados à porta doEden Park. Tinha os braços cruzados atrás das costas e não se cansavade mirar a fotografia seminua da atriz. O alto-falante do cinema espa-lhava música brasileira. As pessoas iam e vinham. Uma vendedeiraaproximou-se de Júlio. O rapaz doente comprou duas bolachas e cincoaçucrinhas. Misturados no meio da multidão, os meninos da pontada praia vendiam às escondidas, cigarros americanos. Um engraxadorapegou-se a D. Maninha:

- Dê-me cinco'stões para ajuntar o bilhete ... Não obteve res-posta. Insistiu, de mão estendida. D. Maninha não tinha dinheiro tro-cado. .. Afastou-se assobiando ...

A campainha do cinema anunciava que o filme ia começar. Oalto-falante parou de dar música. Norberto, calado, esperava.

No Grêmio o diretor bebia com um grupo de senhoras. D. Mani-nha viu-o levantar-se e sair. Mandou Norberto saber. - Que todosos dias, àquela mesma hora, o Sr. diretor costumava ir ao hospital ...

Chegaram antes do Sr. diretor. D. Maninha aproveitou para falarcom o enfermeiro de piquete. Explicou o caso tintim por tintim, semtirar nem pôr. No fim pediu-lhe a sua opinião. O enfermeiro, já sevê, nada podia resolver assim de pé para mão. .. Que a única pessoaque podia autorizar a entrada era o diretor. Mas que a ele lhe pareciaimpossível, pois era proibida a entrada de pessoas com a doença doJúlio. O enfermeiro falava em jeito pomposo de quem tem rei nabarriga, pondo, na voz clara e forte, um falso ar consternado. Levan-tava as sobrancelhas em arco, revirava os olhos para cima, batia amão direita na coxa e exclamava:

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110 ESTóRIAS DE CABO VERDE

- Sabe, minha senhora, a culpa não é nossa ... São ordens ....E ia acrescentando pesaroso, que todos os dias apareciam casos comoaquele: tudo quanto se fazia era dar consulta e receitar. Se o doentepudesse tratava-se, se fosse pobre. .. paciência.

Nos olhos de D. Maninha surgiu uma grande interrogação. Dequalquer maneira era a ela que competia resolver. Sentiu o espíritoesfrangalhar-se e teve medo.

Uma lufada de vento arranhou a copa das acácias e arremeteu,desabrido, pelo corredor deserto. D. Maninha nem se lembrou desegurar a saia. " O enfermeiro desviou a cara e pediu-lhe, cerimo-niosamente que entrasse para o seu gabinete.

- Aqui dentro é mais abrigado ...O enfermeiro coxeava do pé esquerdo e, ao falar, dava a impres-

são de rolar a língua no céu da boca. A cara era gorda e redonda e,apesar da idade, não tinha barba. A pele do rosto lisa e macia, franjavalevemente nos cantos exteriores dos olhos. O seu gabinete não erapropriamente um gabinete ... - explicou a D. Maninha. Era o quartoreservado aos enfermeiros de piquete. Encostada à parede, uma camae duas cadeiras de ferro. Sobre a mesinha de cabeceira, também deferro, uma concha marinha servia de cinzeiro. No chão, entre a camae a banca, uma garrafa de grogue com cascas de laranja e um raminhode alecrim.

O enfermeiro pediu licença "para acender um cigarrinho". D.Maninha, murmurando um "tenha a bondade", sentou-se e cruzou asmãos sobre o estômago.

Lá fora, no corr~dor, Norberto e o rapaz doente esperavam.- Pois é. .. - começou o enfermeiro - nem o diretor pode

autorizar a entrada.E explicou as razões. Que o hospital não possuía um isolamento

para aquelas doenças e que a proibição "visava unicamente" impedirque os doentes nas condições do "sobredito" contagiassem os inter-nados. E se a D. Maninha quisesse mostrava-lhe o "texto legislativo":

- Não custa nada. " tenho aqui na minha secretária ...D. Maninha, delicadamente, recusou:

Não é preciso. .. Tod~ maneira .- É a sua vontade, minha senhora .- '" toda maneira ... Não ... assim é pior ...O enfermeiro abanou a cabeça como quem· nem acha bem nem

acha mal. D. Maninha era toda ela sobressalto e medo.- Assim é pior, sim... (D. Maninha falava para si mesma).

Depois ficam a andar pelas ruas e qualquer um pode contagiar-se ...(E pensou nos filhos).

O enfermeiro fez apenas um leve trejeito com a boca. Depois,sentando-se também, e arqueando as sobrancelhas:

GABRIEL MARIANO lU

A senhora tem toda a razão ...E agora?Agora que, minha senhora?!Este rapaz doente? ..

- Acho que não vale a pena ... Não vale a pena: o diretornão autoriza ...

- Acha?- Seria água em balaio.Um momento de silêncio. D. Maninha:- Mas o senhor está- a ver: não o posso levar ... Minha casa

é casa de família. .. Não é por soberba, Deus me perdoe. .. Mastenho filhos, o senhor sabe ...

- Eu sei. ..D. Maninha com a voz molhada:- Que é que eu vou fazer?O enfermeiro:- Eu acho que a única solução é ele voltar para donde veio.

Mas e hoje? Eu não vou levá-lo para a minha casa. .. Deusme perdoe, não é soberba ... Doença é coisa que qualquer um podeter ..Mas, o s~nhor s~be, eu tenho três filhos ... Ele não podia dormir,aqUI no hospItal? So esta noite?

O enfermeiro respondeu que não: que era precisa "autorizaçãosuperior". D. Maninha levantou-se para sair. Abriu a porta: no cor-redor Norberto e o rapaz doente conversavam sentados num banco'de madeira. O enfermeiro falou então pra D. Maninha:

- Dormir. .. só se for aqui no corredor. " à banco é com-prido e ele acomoda-se bem ...

D. Maninha respirou. Naquela conjuntura a idéia do enfermeirosurgia como uma tábua de salvação. E olhou para ele com os olhosreconhecidos:

- Então está bem ... Só esta noite ... Amanhã trato de tudo ...- Só que ele tem de sair e de voltar daqui a um bocado. Uma

hora ~ais ou meno~... - Explicou o enfermeiro - que era àsescond~das ~o Sr. dueto r e, como ele devia estar a chegar, seriaconvemente Irem-se embora e voltar depois da visita do Sr. diretor ...

D. Maninha achou bem. Explicou tudo ao rapaz doente e saíram.A ~eio caminho D. Maninha despediu-se do rapaz doente: tinhade u depressa por causa do jantar. Que não havia novidade poisNorberto ficava. '

Agora os dois estavam sentados na "pracinha Dr. Regala" a fazertempo. Norberto tinha ido comprar para o rapaz doente, bolachas ebolos de mel, conversavam. Norberto mandou-lhe pôr a boina por

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122 ESTóRIAS DE CABO VERDE

causa da geada. O rapaz doente pôs a boina e deu-lhe um toquebrejeiro para o lado. Norberto perguntou se tinha frio. Respondeuque não. Que ele estava a pensar naquela criada de D. Maninha ...

Bia? .. - desconfiou Norberto.Bia é a mais nova, não é?Sim ... É um bom peixe, an?Ela é boa. .. Boa de-vagar ...

Norberto riu-se.Na Praia tem gajas boas, não tem?Tem sim. .. E aqui?C'ma chuva, rapaz ...Eu sei ... S. Vicente é sabe ... Aquelas mulheres que estavam

paradas naquele botequim ...São raparigas de vida .. , - cortou o Norberto.Eu já queria desconfiar .. , Houve uma que te chamou.Tu ouviste?Ouvi .. , Tiveste coisa com ela?Tive ...Não pagaste?Não. Foi por amizade.Tu conheces mais?Conheço todas, moço ...

O olhar do rapaz doente brilhou:_ Tu queres para a gente ir dar uma voltinha? Eu tenho di·

nheiro ... Na Praia são cinco escudos ... E aqui?Norberto não se interessou. Que deixasse para outro dia._ Hoje não tenho vontade ...O rapaz doente galhofou:_ Então não és homem ...Norberto sorrindo:

Homem sou, sim .. , Mas hoje não tenho vontade ...E amanhã?Amanhã, sim. . . Mesmo hoje tem estrangeiro na terra ...Estrangeiro paga mais?Estás a ver que sim ...Quanto?Cinqüenta, quarenta... Conforme ...

Júlio, de cabeça, contou o dinheiro que trazia no bolso: nãochegava.

Norberto percebeu:_ Ó homem, tu estás enfrontado? Mundo não acaba hoje ...E Júlio, tentou disfarçar:_ Não. .. Era outra coisa ...

GABRIEL MARIANO 123

- ... quem não tiver paciência não tem filho branco ...Um polícia veio passando trazendo um estrangeiro e um cice-

rone. O marinheiro estava bêbado e o cicerone sangrava pela cabeça.Norberto perguntou que horas eram. Quase nove. Estava na alturado regresso. O diretor já devia ter saído. Ergueram-se. O hospital eraali mesmo. Podiam ir devagar.

Norberto; subitamente, começou a ficar triste. Olhava o corpomagro e esgUio do rapaz doente, o seu jeito desmanchado de andar~ a ~oina desc~í?a so?re os olhos. Aquela magreza de Júlio trazia-lhea cha da memona a fIgura de LeIa, seu companheiro de menino. LeIa~orre~a e o rapaz também tinha os dias contados. Daquela doençanmguem escapa. Norberto sabia.

O vento era forte e sacudia de tempos a tempos as acácias secasque ladeavam o ca~i?h~ .. Ao fundo, o casarão escuro do hospitale o corr~dor on~e ~uho u~a passar a noite. Só aquela noite. Depoisembarcana no pnmeuo navIO.Era quase certo nunca mais se vissem .... Norberto aproximou-se do rapaz doente e passou-lhe a mão por

CIma do .ombro. Amou-o com ternura de um velho amigo. Quis falarmas sentm a garganta presa. Júlio notou:

- Que é que tu tens?Norberto não respondeu logo. Parou:- Esta vida é uma chatice, não é?Júlio, desinteressado, encolheu os ombros.O vento continuava abanando as acácias.No hospital mal iluminado, o enfermeiro ia e vinha no corredor

deserto. NO,rberto não quis entrar. Despediram-se à porta.Ate amanhã ...

- Até amanhã. .. Tu vens amanhã cedo?- Venho sim ...Júlio subiu as escadinhas e tímido no seu andar bamboleante,

cumprimentou o enfermeiro. 'Norberto, já afastado, ainda o viu tirar a boina velha e guardá-la

no bolso do casaco ...

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114 ESTóRIASDECABOVERDE BALTASARLOPES 125

SALrASAR LOPES

* Reproduzido de LoPES, Baltasar. Chiquinho. Lisboa, Prelo, 1970. p. 265-72.

Nasceu Baltasar Lopes (pseudônimo: Osvaldo Alcâ.ntara) e~ São Nicolau,C b Verde em 1907. Foi um dos fundadores da revIsta C/~fldade. ~ol~bo·ro~ °em outras revistas e em órgãos da imprensa. Publicou: ChIqUinho(romance, 1947) e ensaios.

lancinante. Os meninos, com as barrigas inchadas sobre as pernas ma-gras. E vinha tudo: o pote de barro, a cama de finca-pé, as esteiras. Avaquinha magra e as cabras do pé de porta cão abandonavam os donosem tal provação. Os cachorros de língua de fora, farejando restos deosso para enganarem a fome. Muitas vezes, os animais miúdos eramtransportados no ceirão dos burros ou em balaios à cabeça das mulhe-res. Homens e bichos não conheciam distâncias naquela irmanação pe-rante o destino comum. Como representante da autoridade administrati-va, cargo que acumulava com as minhas funções de professor de postode ensino, não tive comunicação nenhuma de desrespeito da proprie-dade do próximo. Era de uma rigidez de pedra a concepção da honradaqueles homens que batiam para a Estância, acossados pela fome.Ao longo dos caminhos, as canhotas ficavam pairando, à espera demomento oportuno para se abaterem sobre a carcaça dos animais quecaíam, desistindo da viagem.

Com a morte de Emílio, tratei de eleger um novo decurião.Apresentaram-se vários na classe. Tive de castigar um aluno do 2.0grau, das Casinhas, que esteve subornando os condiscípulos comtalisca de mandioca para o elegerem. Foi escolhido um mocinho dosCastelhanos. Respeitei dentro de mim a capacidade de sacrifício dessemenino de doze anos, que tinha de andar dez quilômetros todos osdias e levantar-se de madrugadinha para ser o primeiro a chegar àescola, e às oito horas, quando eu entrasse, ter tudo arrumado parao regular funcionamento da aula. O posto não agüentava o luxo deter uma servente. Professor e alunos tínhamos de nos devotar natarefa comum, sem contarmos com estranhos à nossa pequena cidade.

Conservo uma doce saudade dessa minha tão chegada camara-dagem com os meus alunos. Tratavam-me como a um irmão maisvelho. Mal sabiam eles que amargores de velho a minha mocidadeencobria. Mesmo o mocinho das Casinhas não me ficou querendomal. Passado o amuo, foi-me trazendo pedaços finos de talisca demandioca para substituírem nos exercícios do quadro preto o giz quefaltava na previsão orçamental das verbas do expediente escolar.

Mas o meu novo decurião não agüentou por muito tempo. Umdia ele teve de prestar também o seu preito de obediência à seca,quando a família fugia do Norte. Era muito longe. Não pude ir, comos seus camaradas, fincar uma cruz no lugar onde Carrinho da Silvatombou.

Destino aziago, o dos meus chefes de classe.De cada vez que ia ao Caleijão, era como se fosse uma terra

estranha que eu visitava. A seca tinha modificado tudo. Desaparecidasas reuniões na Água do Canal, mortas as conversas alegres no desam-

*secaAEra seca, nva, devastadora como nas c~ises mais terríveis de que

rezava a crônica da minha ilha. DesaparecIdas ~od~s as esp~r.anças,enganadas as promessas de chuva: De tod!s as n?elraS a notI~~a ~uevinha era a mesma. Não se colhena um grao de mIlho, e dos feI]OeIrOSnem falar, que a lestada de novembro crestara tudo. ,.

No meu degredo do Morro Brás eu ia tomando o pulso a c~~sepela diminuição progressiva da freq~ência do p~sto. O meu decunao,Emílio, foi o primeiro a desertar. Vmha de mUIto longe, de um lu~~rperto da Jalunga. Os condi~cípulos inforI?a~am-me de qu~ a famI1Iade Emílio batera, fugindo a seca, em dIreItur~ da Pregu~ça. Soubetempos depois que ele não pôde agüentar a ]or?ad~ e fICOUnumamoita de purgueira no Canal de Carambola. La fUI com os meusalunos plantar uma cruz no lugar onde Emílio morreu.

Todas as manhãs era com a apreensão de chefe de patrul?a deregresso do combate que eu fazia a chamada. E raro era o dIa emque não faltava um dos meus soldados.

Manuel João!- Não está ...

Cândido Almeida!Não veio ...

- José Joaquim!_ Está muito mal, professor. . . .Constantemente passava pela minha porta gente que ~ugIa dos

povoados de Norte-a-Baixo, em direção à vil~. E~a um ~or:e]o la~en-tável de homens, mulheres, crianças. Os ammaIs domestIcos fazIamtambém parte do êxodo para outras regiões ~ai~ habitad~s. Nelas, aomenos, havia a consolança de um olhar dt. cnstao no melO do drama

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116 ESTóRIAS DE CABO VERDE

paro do crepúsculo. Só Nhô Roberto Tomásia não faltava nunca,mas tinha fugido, acossado por todos os ventos da desgraça, o risolargo que lhe descascava os dentes plantados em gengivas vermelhascomo goiaba madura. E o crepúsculo se desdobrava num mantotenuíssimo que envolvia tudo, homens e coisas, no mesmo abraçosereno de paz. A natureza desconhecia os dramas que remordiam ocoração da criatura. LeIa Bento morto no caminho da Caldeira, quan-do ia à procura de batata conteira para enganar a fome dos meninos.Uma doida, que tinha um filho, deu do sangue do seu peito, em queo leite estancou, ao mocinho morto. Depois atirou-o do Alto da Com-bota, sobre o empedrado da fonte, e ali ficou por noites com a suacantiga aziaga, ninando o sono do filho. As hortas, vermelhas, semvestígio de planta. Foi com uma melancolia de general vencido quevisitei o meu pedacinho em frente da casa, que papai me distribuíra,tamanhinho, para adquirir experiência agrícola à custa do meu braço.Só o mané-gatinho se obstinava a viver naquele deserto preparadopelas chuvas escassas dos anos anteriores. Nhô Chic'Ana esteve algunsdias doente. Mamãe velha, sentindo a sua falta, mandou-lhe caldo detapioca.

Eu nunca tinha visto aquilo. Era novo para mim esse espetáculoda vida que foge imperceptivelmente dos homens e das coisas. Os luna-ristas explicavam a fatalidade cíclica da seca. De vinte em vinte anosera aquela falsia completa da chuva, desamparando as ilhas para outrasparagens no meio do mar. Eu estava habituado à face serena da vidarotineira da minha ilha. Até agora, tudo me parecia impregnado deimobilidade. Veria até ao fim da vida as mesmas caras, a mesmamediania, a mesma resignação perante o destino que Deus governoulá do alto. A insuficiência de outros anos não me tinha preparadopara aquela batalha cruel e total. Por muito tempo que eu vivesse,mamãe velha havia de acompanhar Chiquinho com as suas descom-posturas e a sua solicitude grulhenta.

Os meses iam passando, e com eles todas as esperanças da po-breza. Agora era a doença que minava as alimárias. Das nossas vintecabeças de vaca nem uma se salvou. Bem Pitra cuidara delas nonosso tapado de pastagens do Campo, ainda forrado de soca-velha.Uma a uma, todas foram caindo. Eram imagens da minha infância,ora familiares, ora heróicas, que fugiam. Bismarck, Napoleão, Esper-tinho, tudo nomes que eu havia posto aos bezerros novos, ao sabordas minhas admirações de menino. Mundo em que a vida real e aminha vaga divagação sentimental de mocinho crioulo se entrelaçaramde forma indissolúvel. Não sabia a quem devotar maior admiração,se ao filho da Estrela, nervoso de frêmitos juvenis, se ao novilho daSenegal, manso e calculador, que não tinha pressa em se levantar

BALTASAR LOPES 127

do. seu repouso ~e criatura c~lma para acudir ao desafio dos vizinhosleVIanos. !'1apoleao contra Blsmarck, eis aula prática em que eu apli-cava a mInha nascente compreensão da história moderna.. Para cúmulo, apareceram os gafanhotos. Os restos de palha verdeI,a~ sendo. devorados pelas suas mandíbulas implacáveis. E uma corUlllca dom~nava tudo. - o cinzento. O Sol peneirava uma claridadebaça atraves da cortIna encinzeirada da mormaça.

Procu~ei aprovei~ar os .~eus ócios no Morro Brás para escrevero meu ensaIO. Cheg~eI a ~edIgIr os primeiros períodos. Mas logo aquilopareceu-me uma COIsa tao estranha, tão fora de propósito que pusde parte a caneta. Para que essas pretensões de história e 'sociologianuma. terr~ que estava bradando por milho para a cachupa? A reali-dade ImedIata absorvia tudo.

?r~anizo~-se na vila um serviço de alimentação aos famintosdas nbeIras dIstan-te~. Na Irma~dade um grande caldeirão cozinhavacachupa perto do pe de tamanndo. Tio Joca veio da Praia Brancaprestar o seu concurso. Preo~upava-o principalmente a sorte dos meni-nos e dos doentes: que preCIsavam de alimento mais adequado que acachupa bruta de agua e sal. E não descansou enquanto não conseguiuorgamzar uma dieta de tapioca, que uma comissão de senhoras see~carregou .de fa::er chegar às casas dos necessitados. Titio subiu namInha consIderaçao com esse seu dinamismo encharcado de piedadehumana.

Das ilhas chegavam notícias alarmantes. Por toda a parte a seca~stendera as suas garras .insaciá~eis. Em Santiago, a praia enchera-seter.almente de. gente fugIda do Interior. E por onde se andasse eramamIntos dormIndo ao relento, no Monte Tagarro, na Praça dos Go-

vernadores, na ponte da Alfândega.

A ~ndrezinho mandou ao Ministro das Colônias, em nome doG~emlO, u~ "telegrama pedindo socorros urgentes. E lançou em S.VIcente a Idem do que ele chamou "imposto sobre o cocktail" C dl' . a aqua p,us~sse em caIxas, que se colocariam pela cidade, nos postes de!uz ele:nca, ~ valor do cocktail que tomaria e de que era deverImpe~atIvo pnvar-se em tal conjuntura, para auxílio dos famintosd.a~ Ilhas. Era. bem de Andrezinho esse teste das possibilidades deCIVIsmodos MIndelenses.

A minha escola no Morro Brás morreu de inanição. Os alunosfor~~ des~parecendo um a um. O pão do espírito cedeu à necessidade~aI~ ImedIata e abso~e?te, da cachupa do corpo. Conheci uma époc~InteIra de absoluta OCIOSIdadeno Caleijão. A minha vida era um naviodes~mparado, sem velas e sem norte, no meio da tormenta que batiaa mInha terra. Era para Andrezinho, e não para mim, pobre pena ao

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118 ESTóRIAS DE CABO VERDE

vento, introduzir um pouco de ação e de beleza na tragédia da minhagente. E para tio Jaca também, que superava a sua vida de gro~uenuma atividade de assistência aos seus semelhantes. Eu era ser passIvoque se abandona à influição do destino. Faltava-se ~ energ.ia de amare de viver de Nuninha, que chegou a propor-me fugIrmos Juntos paraDacar ou para o Brasil. E ela ia ficando uma imagem sempre presenteno meu coração, mas cada vez mais distante da minha mão. Eu nãotinha, afinal, o espírito de aventura do rapaz da ponta de praia quetira passagem clandestina para o mundo a bordo de todos os vaporesque tocam em S. Vicente.

MANUEL FERREIRA 129

MANUEL FERREIRA

Nasceu em Gândara dos Olivais, em 1917. Residiu em Cabo Verde,onde permaneceu estreitamehte ligado à causa cabo-verdiana. Participou dogrupo de Certeza. Tem farta colaboração em jornais e revistas. Publicou:Grei (contos, 1944); Morna (contos, 1948); A casa dos Motas (romance,1956); Morabeza (contos, 1958); Hora di bai (romance, 1962); Voz de prisão(romance, 1971); A aventura crioula (ensaio, 1967); Literaturas africanas deexpressão portuguesa (2 volumes, história e crítica literária, 1977); No reinode Caliban (2 volumes, antologia, 1975-1976).

Puchinho*Como os anos passaram. Como o tempo rolou nesse ritmo que se

escapa aos projetos aos sonhos aos anseios - e ficam os esforçosfalhados.

O vapor grego apita e sulca as águas do Porto Grande de SãoVicente riscando uma estrada de escuma. Mário e Puchinho, debru-çados no muro do cais, olham-no e refletem.

O vapor vai-se afastando lentamente. E neles cresce a melan-colia ou a saudade de certa aspiração que jamais se realizou. Umasensação de malogro. De coisa suspensa e perdida. Quando o vaporchega lá ao fundo, à ponta de João Ribeiro, ainda os dois rapazesdivagam por divagar.

"E aquela do Dr. Joãozinho Martins?""É verdade, moço. Que malta danada."Velhos tempos. Então, sim, malta fixe. Há quantos anos?, caram-

ba, cinco. Ou seis, se tanto. Ou uma eternidade? Isso não, porque deMário veio este desabafo:

"Como o tempo passa."O que sonhamos, moço. A realidade é tão diferente da nossa

imaginação, não é? Idealizamos, mentalmente construímos, ao sonhonos vamos afeiçoando, de momento parece até que a batalha vai serganha, o desânimo, porém, insinua-se-nos e o duro combate está per-dido. O balão rompe-se esvai-se.

Nas águas remexidas da baía um rapazito, brincando, aparecedesaparece. Nem dão por ele.

"E por aqui me vou enterrando."

* Reproduzido de FERREIRA, Manuel. Morna. Braga, Início, 1966. p. 17-28.

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130 ESTóRIAS DE CABO VERDE

Esta a percepção dolorosa de quem vinha conhecendo o fra-casso. O balão roto esvaziado caído flácido, incapaz de subir.

Nesta altura o barco grego mal se via. Mas eles tentavam retera imagem distante. Fruí-Ia inteira concreta dentro dos seus olhos.Como se tudo neles ainda não estivesse perdido. A aventura ainda setornasse possível. Desaparecida aquela presença lá ao longe, queficava? A distância irrecuperável. Então a ilha outra coisa não seriado que fonte de solidão. Deter a imagem do barco que se esbatia nalinha do horizonte era um apelo de sobrevivência.

"Sumiu-se.""Ainda não. Ainda se vê um nadinha.""Nadinha onde? Sumiu-se.""Não. Agora, sim, agora sumiu-se. Mas ainda se via um nadinha.""Então era da minha vista.""É possível."Mário disse isto e viu as horas."Eh pá, tenho de ir."Puchinho ali entretido a olhar as coisas. As ondas vinham junto

dele derramar-se nas areias negras ou esmagar-se, mais adiante, deencontro à parede do cais. Gostava de ouvir-lhes o marulho, aquelatoada monótona remota. Sugeria-lhe vivências distantes, talvez apenaspressentidas, envoltas numa pátina de saudade. Os botes amarradosa esmo sacolejavam molemente. Os batelões da Company Oil rumo-rejavam ao balanceio das ondas. Um desses batelões é que levouCarlos até bordo quando o seu batalhão foi rendido. Preso, dizem.Da alfândega para os armazéns, a correnteza de mulheres no trans-porte da sacaria de arroz e milho, olha aquela faz um buraco e chocaalguns bagos, mas que artes. Ao largo, quatro vapores baloiçam osmastros. Muito raro, o pasmo ferido por um claxon. Às vezes, oroncar de um jeep. Ou a mota de um estafeta da tropa. Toda aperturbação, breve como um fogo-fátuo.

Dia de mala. E tão grande o sossego que um pouco adiante seouvia o bater dos carimbos dos correios. Homens sujos e rotoscurtidos de grogue farras sexo privações desenganados batidos mon-dongados dormiam ao sol. Mulheres sentadas no chão inexpressiva-mente olhando, uma ou outra fumando canhoto. Chusma de miúdossem vida e sem destino. Soldados macambúzios e relaxados, toda estasoldadesca aqui para quê? Uma preguiça velha se coava da beira docais e tolhia os gestos os modos. Até as palavras. Puchinho imbuídodesta moleza como se de antemão aceitasse a renúncia. E se agoraum cataclismo devorasse a ilha? Oh, estarei a tresloucar? Deixa-meir andando.

MANUEL FERREIRA 131

Era em momentos assim de abandono que ele se dava a meditarsobre si próprio e então sentia-se apoderado de um sentimento defrustração. Seis anos em projetos. Seis anos a dizer amanhã, no outrodia. Que dia? Amigos seus haviam partido a seguirem os seus cursosa fazerem pela vida. Alguns formaram-se. Houve os que se deixaramficar por ali, é certo. Os mais decididos, porém, empregaram-se traba-lhavam ganhavam conforme podiam. Tiveram um gesto tomaram umadecisão. E ele? Ele, um inútil, acabado o liceu. Perdera então aoportunidade de abalar. Nesse tempo o pai podia e tanto desejava.Imperdoável. Outro meio outra vida. Maiores possibilidades. Jornaisdiários cafés conferências acontecimentos internacionais vividos e dis-cutidos. Comparado com esta vida do Mindelo! As idéias os anseiosmorrendo no mar. E tanta miséria. Miséria consentida. Romper atéonde sonhara - que batalha. "És homem de teus planos." Bem vistasas coisas, era. Ele que não perdoava a indiferença de alguns, quedefendia a necessidade de um abanão em tudo, ao cabo, que tinhafeito de concreto? Que fazia? Mário, tens razão. Foi justa a punha-lada. Tão justa. Todos acreditavam em mim. Até os professores.Puchinho, se você estudar, poderá fazer figura em qualquer parte.Afinal.

A seus pés a amplidão estimulante da baía que ele contorna aolongo da estrada da Pontinha. E dela vem a fresquidão numa alturaem que o sol de setembro queima e devasta a terra desnudada. Ailha onde o verde se volatilizou sob o fogo de um sol violento.

Um rapaz de tronco nu, o sexo a sair-lhe do calção esfarrapado,está ali. Mergulha por segundos surge ao de cima da água descansaum momento, um momento apenas e o seu corpo magro escoa-secomo uma enguia. Puchinho não o reconheceu. Ágil como uma trutareaparece de lagosta na mão. Menino desafonado. Olha, tem o diaganho, o safadinho. Uma lagosta vale um dinheirinho. Enfiou as calçase desandou molhado e satisfeito com a lagosta vermelha e rija aespernear na mão direita. Quando passou junto de Puchinho sorriucontente da vida. Quanto queres por ela? Não percebeu ou fingiu'não perceber. Afinal quem não conhece este menino-de-Salina. É ofilho mais novo de Tomazinho e de nha Dada Ramos mareada decabeça dias-há.

Velas enfunadas mancha branca em fundo azul atravessando ocanal dos lados de Santo Antão, um falucho rumava ao Mindelo. Ovaporinho da água, espertinho como menino, apitava e corria aoporto. Sobre a tardinha a temperatura tornava-se amena. A esta horaa mãe estaria à fresca na varanda de nha Olinda Monteiro na sessãodo mah-jong. Os homens no Grêmio ao engodo da conversinhamansa. Ou de uma partida de bilhar. A praça enche-se de gente que

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132 ESTóRIAS DE CABO VERDE

passeia que se mostra que mata o tempo que se pavoneia que namo-risca furtivamente. As raparigas, metem-se em casa das amigas e aínamoram, dissolvendo a vigilância dos pais impacientes por vê-lascasadas, sim, mas deixá-las namorar isso é outro negócio. Puchinhoprefere deixar cair a noite e então esgueirar-se para a pracinha doLiceu. Aí poderá, na cúmplice escuridão dos arbustos do jardim,cingir a moça e dizer-lhe tontices. Rente ao quiosque da Praça Novaou do Mercado ou da farmácia Teixeira ou nalgum recanto de acasofala-se de futebol ou do próximo baile de Bia Mascarenhas. Do vaporque entrou. Das duas moças de olhos grandes, peitos como mamão,vindas de São Nicolau. Do veleiro que zarpou. Do sol quente dessesdias. Do vento desabalado e da poeira impossível da terra. Fala-sepor desfastio. De quê, mais? Pode ser, por exemplo, da escassez daschuvas. E à baila vem, sem pasmo nem estranheza, a fome. A fomeimpiedosa que mata que ceifa o Arquipélago inteiro. Um pesadelopermitido. Tão velho como o passado. É da vida. Não molesta nin-guém. A carta de um amigo em São Tiago farto do vazio da cidadeda Praia. Habituado à convivência do Mindelo recorda o ambientedado à arte e à literatura. E lá para a Ribeira Bota, Monte Sossego,Chão de Alecrim, que se passa? Canta-se a morna. Para esquecer,diria Carlos num dos seus momentos de azedume. E lucidez. E istose repetirá amanhã, no outro dia, daqui a meses, anos, sabe-se lá.Todos integrados aceitando a pequenez. Ele, Puchinho, no jogo, nocentro do jogo, dia a dia hora a hora. O balão roto esvaziado inerte.Carlos, sim. De ti vinha uma força, um calor nas palavras, umarevolta. Semente sazonada em terreno mal arroteado, demoraria avingar.

Sobre a cidade o silên'cio desce como um segredo impreciso etriste. De caminho, a neblina enrolou os barcos os rochedos o casarioo mar a cidadezinha inteira. Disforme, o Monte Cara, lá adiante, naponta da baía, é um monstro. E tudo fica mais triste. Puchinholembra-se de Jorge Barbosa.

- Destroços de que continente,de que cataclismos,de que cismas,de que mistérios? ..

Ilhas perdidasno meio do mar,esquecidasnum canto do mundo

MANUEL FERREIRA 133

Esquecidas num canto do mundo. É a nós que cumpre lembrá-las.Se não forem vocês a impor a vossa cidadania, quem o fará? Carlossabia o que dizia.

Tocam-lhe nas costas."Por aqui?"O outro, galhofeiro, sorriu."A miúda. Que tens feito?""Nada. "Inseguro como se pisasse, a medo, o arame de um equilibrista.

Carecia de chão firme, movimentos precisos."Vou-me empregar no Telégrafo. E nas horas vagas trabalhar

na literatura a sério. Dar uma volta à minha vida."Recomeçar por que não?"Depois talvez uma saltada a Lisboa e então um curso. Mas

para voltar. Aqui é o lugar de todos nós."A rocha viva subindo de um lado, o mar liso espraiando-se do

outro. A separá-los, a faixa estreita da estrada da Pontinha. E nelaagora apenas estes dois rapazes. Mas num instante o sol débil abre-se,a luz amacia as coisas e lá adiante na curva recortam-se duas manchasfrescas, vestidos colados ao corpo cabelos desfloridos ao vento. Umadelas, a namorada do amigo.

"Bem, bye bye."Que emprego no telégrafo que nada. Como é que lhe saiu? O

remorso de tanto pregar e nada fazer. A acusação íntima de tambémele participar da alquimia do veneno. No fundo, só a dor do insucessoconsentido o deprime o torna desonesto. Seis anos por ali nem elesabe à espera de quê. Isto a que levava'? À derrota. Agora ele nãoia aceitar a derrota. Não. Um homem não pode ser assim destruídopor tão baixo preço. Como é que ele dizia? Não há derrota, se oânimo vive dentro de nós. Batalha perdida, vamos. Derrota só quandoo ânimo e a coragem nos abandonam, de vez. Pois bem. Essa noiteficaria assinalada na sua vida. O pai não ia fora disso. Só precisavade dinheiro para a viagem. O resto era com ele. Em Lisboa trabalhariae tiraria um curso. Quando regressasse, então, sim, dedicar-se-ia àliteratura. Um romance a partir do cerne da vida crioula onde osrapazes da Certeza mal tinham tocado.

Nisto, um chamo."Puchinho!"O Brito. O Brito dos sambas no seu giro."Moço, ainda bem que te encontro. Hoje temos farra sabe de-

-mundo. Coisa boa de verdade. Três violas dois cavaquinhos doisviolinos. Uma serenata às moças de São Nicolau. Conhecê-Ias? Chicovai, Tóino vai, Semedo vai, Tomás vai, Zé Fonseca vai, Augusto vai.

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134 ESTóRIAS DE CABO VERDE

Vai também aquele moço da Praia que chegou dias-há. Canta mornassabe de verdade. Tu vais?"

Pois não havia de ir."Dez horas, moço.""Fixe. Dez horas."Partiram da pracinha do Liceu. Pranimar, grogue no botequim

de Nininha. Saíram e logo romperam as arcadas dos violinos.AÍ vão à conquista da cidade detida pelo mar. Por detrás das

persianas, inquietas, espreitam as moças ensonadas. Eles agradecemcom tiradas de amor. Canta o Jô. O Tata. O Luisinho. Por fim, cantouo rapaz de modos lentos, chegado da Praia, dentes tão brancos olhosinchados grandes esquisitos bigodinho ralo um jeito amoroso na voz.Um caso sério este badio de-pé-rachado. Outro botequim. E de novoabalavam. E neste botequim nesta esquina nesta rua nesta janela nesterecanto dedilhavam e entoavam. Algazarrearam pintaram o demônio.Bem dentro da noite, a cidade morta, polícias nem um, iam à derivadonos dessa terra prisioneira do mar. Como epílogo queriam Manchê.A morna do amanhecer, o anúncio da madrugada. Mas o moço daPraia, em ~xtase, e num sabor de crioulo fundo, atirou para a noite,~rad.a-M~na. C?rpos deslaçados ânimos rendidos uma não sei quemsatIsfaçao trazIda pela melancolia da morna mais antiga de CaboVerde.

Deram fé das horas tardias.Então o grupo foi-se desfazendo aqui e ali.Puchinho entrou em casa. Subiu ao primeiro andar e meteu-se

~o quarto. <;omeçou a despir-se como se medisse os gestos. Abriu aJanela parecia a medo. Demorou o olhar na vastidão. A noite, detodo deserta, abatia-se sobre a cidade. E metia tal impressão o pesoda noite sobre a cidade que Puchinho teve um arrepio. Não se lem-brou da sua asma nem ela o incomodou.

Atentou no tremeluzir do porto. Reviveu os beijos da sua moçana pracinha do Liceu. E pensando na sua figurinha de olhos da cordo céu na sua respiraçãozinha tensa, um estranho tremor o percorreu.

Deitou-se. E logo lhe surgiu, perturbante, a imagem do moçobadio cheio de mansura. Que sabia cantar mornas de Eugenio. DeBeléza. Melhor que Jô. Melhor que Mochinho de Monte. Até queo sono, mansinho como a morna, o foi envolvendo. E o reconduziuao desfrute da boêmia noturna. Moço, vidinha sabe esta de Soncente.

ORLANDA AMARILIS 135

ORLANDA AMARILlS

Nasceu em Santiago, Cabo Verde. Publicou: Cais-do-Sodré-té-Salamansa(contos, 1974); Ilhéu dos pássaros (contos, 1983); revista cabo-verdianaCerteza e O Eraldo, de Goa.

Cais-do-Sodré *

"É devera, não estava a reconhecê-la."Andresa rl?busca na memória a família da cara parada na sua

frente. Parece daquela gente de nhô Teofe, um de S. Nicolau a quemos estudantes tinham alcunhado de Benjamim Franklin. Ou será pa-rente de nhô Antônio Pitra irmão do Faia há muito embarcado paraa Argentina?

Oh gente, se encontra pessoas, como ela, vindas daquelas terrasde espreguiçamento e lazeira, associa-as quase sempre a uma ou outrafamília. Se não as conhece, bom, de certeza conheceu o pai ou oprimo ou o irmão, ou ainda uma tia velha, doceira de fama, atétalvez uma das criadas lá da casa. E a conversa, por esse elo, esten-de-se, alarga-se, num desfolhar calmo, arrastado, saboroso quasesempre'.

. "Sabe, ,~u est~va a olhar para si porque vi logo ser gente dammha terra , contmuou Andresa, olhando e sorrindo para a figuraseca de carnes sentada a seu lado.

Esta sorriu também. Um sorriso tímido e descansado.Encorajada, Andresa ainda arriscou:"Está cá há muito tempo?""Sim, já vai para dois meses. Não é muito tempo, mas já é

alguma coisa."Andresa ajeita a mala sobre os joelhos, acaricia o fecho de tar-

taruga, num gesto vago, sem atinar por que dera conversa à senhora.Conchêl, por .quê? Dondê? Só se for do tempo de chá de fedagosa.Sou mesmo dIsparatenta. Se eu era Andresa Silva, Andresa filha denhô Toi Silva de Casa Madeira? Sim senhora, sou Andresa, sobrinhad~ nh'An~, filha de nhô Toi. É sim. Mais conversa pâ mode quê?Amda heI-de perder essas manias. Manias de dar trela a todo o

* Reproduzido de AMARILIS, Orlanda. Cais-do-Sodré-té-Salamansa. Coimbra,Centelha, 1971. p. 9-21.

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136 ESTóRIAS DE CABO VERDE

biscareta da minha terra. Apareça-me pela frente seja quem for, nãoconheço, acabou-se.

Suas unhas delineam o fecho de tartaruga e o olhar perde-se nobrilho negro da mala de verniz.

"Bem, se não fosse a doença do Papá, eu estava agora aqui? Ahmô, não. Fazer o quê."

Andresa pisca os olhos e surpreende-se a responder. És tu mesma,Andresa, és tu a dar seqüência a esta conversa insípida. Poderias tê-laevitado, mas as conversas são assim. Têm um fio, um caminho apercorrer. Não te admires pois por te teres arriscado.

"Ah! Seu pai está doente?""Papá morreu."A voz morreu também num sopro."Desculpe, eu não sabia", lastimou Andresa.A senhora procurou um lenço na carteira e assoou-se. Guardou-o,

fechou a carteira e pôs-se a olhar para a biqueira dos sapatos."Ele não queria embarcar nem dado de pau na cabeça. Quando

Dr. Santos aconselhou-o a ser visto por um especialista e alvitrou paraapanharmos o primeiro barco, ele fez um escarcéu, nhor Deus! Nãovinha, não vinha! Por fim, tomou um ar arregaçado e fez uma guerralá em casa. Falou, falou. Bateu com o punho fechado em cima damesa e avisou-nos a todos: Ninguém mandava nele, era ainda homemda sua cabeça. Foi um caso sério convencê-lo. Disse mais coisas.Brigou, brigou, até ficar a nhongor na cadeira de lona. Estou mesmoa vê-lo, cabeça descaída sobre a queixada, mãos abandonàdas noregaço. De vez em quando despertava, levantava a cabeça e abria osolhos para os fechar logo e continuar a nhongor. Para continuar napesca da moréia. Coitado! Estava a adivinhar." Respirou pausada-mente. "Costumava dizer: Se eu der uma saltada até Lisboa, vou àEstufa Fria, vou ao Coliseu, e depois, vou de longada até ao Minho."

Esta pequena história já vem sendo repetida inúmeras vezes. Asenhora sente necessidade de a recontar, por desabafo, para se aliviar:

Andresa repara no luto carregado da patrícia."Ele não resistiu à viagem. Dois dias depois de chegarmos,

morreu no hospital do ultramar.""Coitado", disse Andresa por dizer, como se a conversa não

devesse ficar por aÍ."É verdade. Pouca sorte."Tira o lenço da mala e chega-o outra vez ao nariz."É verdade." Era ainda a senhora a desabafar. "Toda a vida a

pensar em vir até Lisboa, toda a vida a pensar nesta viagem para,afinal."

ORLANDA AMARILIS 137

De olhos descidos, Andresa arranja a saia. Tinha subido, deixan-do-lhe a descoberto os joelhos ossudos.

"Não se lembra de meu pai, pois não?""Não", confessa Andresa. "Na verdade não me lembro muito

bem dele. Sabe, já lá vão quinze anos eu vim da nossa terra.""Pois é, pois é."E compondo outro tom."Meu pai era Simão Filili do Alto de Celarine.""Ah! O seu pai era nhô Simão Filili? Eu julgava (estava a men-

tir) que a senhora fosse sobrinha dele.""Éramos eu e a minha irmã Zinha que Deus-haja. Eu sou a

Tanha. Raparigas éramos só as duas.""Recordo-me muito bem da Zinha. Estava toda certa vocês eram

primas (outra mentirinha para acabar de compor o ramo). Era boni-tinha."

"Era, coitada."Agora sim, Andresa conseguiu mais ou menos os cordéis e sen-

te-se à vontade. Quem poderia esquecer o homem pequenino e chu-pado daquela casa vermelha ali no Alto de Celarine? Só quem nuncativesse ouvido contar histórias de gongon, histórias de correntes arras-tadas na estrada de Pontinha, em noites de ventania, por artes dexuxo, ou das trupidas de cavalos a atravessarem a morada por voltada madrugada. O povo só se lhes referia ao barulho fragoroso das patasraspando o empedrado. Andavam a pregar a tumba de nhô Rei Ven-dido dizia-se. Nha Xenxa, viúva do nhô João Sena, contava, e a vozvelava-se-Ihe de medo, ter ouvido certa ocasião uma voz de entre ogalopear troador. Ela bem a tinha reconhecido. Era nhô Simão Fililia .mandar: Aperta a brida da alimária de meu pai. Minhas esporas,mrnhas esponnhas, minha cilha, minha cilhinha! Eram más horas enha Xenxa foi tomada de um pesadelo, senhores! Só se acalmouporque a filha, acordada pelos gemidos da mãe, lhe aplicara um bompar de bofetadas.

Andresa analisa a patrícia a seu lado. Tem um aspecto tão apa-gado. P?ssará por esta vida sem se dar por ela. Olha, curiosa, paraa face lrsa da Tanha, ensombrada por olheiras escuras, mais escurasque o amulatado da sua face e lhe emprestam aos olhos uma melan-colia saudosa. Que idade terá a Tanha? Uns trinta? Disparate, deveser uma quarentona bem entrada. Com certeza. Andava ela no liceue lembra-se da Tanha, já rapariga feita, a namorar da janela do sobradoonde morava, com um moço de Santo Antão, filho de nhô Pedro denha Mari Barba. Por sinal, era um bêbedo incorrigível. Apanhavacada fusca de se lhe tirar o chapéu. Fuscas de descompor toda a gente.Começava a covar, mãe deste é tal e tal, e pai daquele é assim e

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138 ESTóRIAS DE CABO VERDE

assado, bô é filha de solteira, aquele não casou com tua mãe. Oh nhamãe! Quem passasse por ele nesses momentos apanhava o seu chá.Bô também é trivide de pé-descalço. Sentá num cabo, sentá. As pes-soas riam mas fugiam daquele moço de Santo Antão. Moço desafo-rado devera! Bô sabê, Santo Antão tem muito grogue e esses moçoshabituam-se a tomar e depois é essa pouca-vergonha de covar cadacristão sossegado no seu caminho.

Movida não sabe por que curiosidade indagou:"A senhora está cá sozinha?"Tanha levantou os olhos, virou a cara para Andresa e teve um

sorriso de convívio, um sorriso das pessoas daquelas terras se encon-tram pessoas conhecidas, patrícios, amigos antigos.

"Bem, eu tenho cá o meu irmã Júlio. Júlio já é médico, masestá casado. Casou com uma rapariga daqui. Com uma mondronga."

Andresa estranhou:"O seu irmão já está formado? Não sabia.""Oh, sim," e Tanha sorriu satisfeita. "Acabou o curso há uns

quatro anos. Eu podia ter ficado em casa de meu irmão, mas preferificar com as minhas primas em Oeiras."

Baixando a voz, confidenciou:"As mondrongas são atrevidas e em casa das minhas primas

estou mais à vontade."Andresa sorriu. Continuou a sorrir e a olhar a gare vazia. Era

a uma dessas horas mortas da tarde quando os comboios levam meiadúzia de passageiros. Espalham-se pelas carruagens, e aguardam, pa-cientes, o momento da partida.

Um comboio entrou na gare e veio parar junto delas. Tanhalevantou-se e passou a mão pela saia. Segurava com ar desajeitadoas luvas e a mala.

"Deve ser este.""Deve ser", confirmou Andresa. "Mas não deve partir antes de

dez minutos.""Sim, mas vou andando. Fico mais descansada."Sorria outra vez. Os cabelos negros, bem puxados e seguros com

molas, emprestavam-lhe um ar esfíngico.Andresa acompanhou-a por momentos."Sabe, eu podia ir consigo. Moro em Caxias. Mas estou à espera

do meu marido."Calou-se. No fundo, irritada consigo mesma. Lá estive eu com

explicações. Levo a vida nisso. Ora, não vou com ela, porque nãoestou mesmo nada interessada. Para conversa já chega.

Em passo calmo entrou no bar e pediu um café. Teria de esperarmeia hora por novo comboio. Sorveu o líquido quente. Soube-lhe bem.

ORLANDA AMARILIS 139

Outra vez na gare, acendeu um cigarro e ocupou no banco olugar de há pouco.

Estava-se na primavera, mas as tardes continuavam cinzentas ecom ar ensonado .. A gare vazia de comboios parecia mais clara, noentanto.

Não chega a compreender por que se constrangia a acompanhara Tanha. Estar à espera do marido estava, mas não havia problema.Podia ir com a Tanha pela linha adiante a matar saudades, a ouvira fala descansada e sabe de Soncente, fala de conversa de novidades.

. O cigarro esquecido entre os dedos ganha um morrão compridoe CInzento.

De há algum tempo para cá acontece-lhe isto. Vê um patrício,sente necessidade de lhe falar, de estabelecer uma ponte para lherecordar a sua gente, a sua terra. Entretanto, feito o contato, o desen-canto começa a apoderar-se dela. Qualquer coisa bem no íntimo lhofaz sentir. Não têm afinidades nenhumas com as pessoas de há quinzeanos para trás. Nem são as mesmas. Topa-os aqui e ali, no Rossio,na Estrela, espalhados por Lisboa, no Camões aos domingos de ma-nhã, no Conde Barão, no Cais do Sodré.

,~hô Simão Filili viv?, por certo continuaria a ser a mesma figuralendana e de meter respeIto. Era de uma raça! Toda a gente conheciaNhô Simão Filili. Nhô Simão Escochóde, segredavam os meninos.

Uma inglesa r.uiva, de bengala, senta-se a seu lado.Andresa atira para longe o cigarro e cruza as pernas.Conhecera Nhô Simão num dia de mormaço.Tinha ido na tarde calorenta entregar um volume de As farpas

emprestado pelo pai e encontrara-o sentado num banco, à porta decasa, com um manduco a escavar e a fazer riscos no chão.

Mirrado, possivelmente devido à muita nhongra e fominha, pos-suía contudo um falar alterado. Assarapantava quem nunca o tivesseouvido. As palavras enrolavam-se-Ihe na boca como cascalhos arras-tados até à praia por ondas bravias. Saíam, ao cabo, soltas, descon-sertadas, e sempre intencionais. Falava assim por ser maçônico, dizia--se. Era da maçonaria, confirmava o povo, fazia artes como as feiti-ceiras. Só lhe faltava o rabo escondido por baixo das saias compridasdas bruxas de Tchada Além, o rabo como o dos sanchos da Travessad? Monte. Nha Chica Maçaroca a bruxa da Achada, quase se lheVIa a ponta do rabo a arrastar pelo pó da estrada. E as criadas emba-lavam os meninos: Nha Chica Maçaroca ta buli ta bai, ta buli ta bem.

Bia Antônia, a velha criada da casa, era quem contava estas eoutras patranhas à Andresa. Depois do jantar, Bia Antônia sentava-senum caixote, perto da escada, na varanda sobranceira ao quintal.Entre duas fumaças do canhoto sempre dependurado no canto da

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140 ESTóRIAS DE CABO VERDE

boca, a serva desfiava um ror de histórias. Andresa, debruçada àvaranda, ouvia-a distraída.

Bia Antônia discorria, convicta."A primeira prova para um ~omem s.er maç?nc? ~ atr~~~ssar

descalço um mar de alfinetes. DezIde, memna, nho Slmao Frl~h fezesta prova como nenhum outro. Ia a atravessar ~ mar de alfmetes,ouviu uma trupida. Pareciam cavalos de gente-gentio, catrapau, catra-pau. Dente cerrado, não voltou a cara para trás, e os cavalos catrapau,catrapau. Nhô Simão, desorientado, roup~ r,~chada, baba a escorrer,mãos picadas, nunca voltou a cara para tras.

Bia Antônia chupava mão-fechado a arder lento no canhoto es-quecido ao canto da boca.

"E depois?", perguntava Andresa.A velha serva levantava os olhos papudos para Andresa e res-

pondia:"Agora, falado ele comanda todas as noites um vapor de guerra

ali na Pontinha.""Que casta de conversa é esta, Bia Antônia?""Sim senhora, é devera. Por artes de maçonaria ~le cost~ma ~~zer

aparecer um vapor de guerra ao bater da meia-norte. Gentes J~ otêm visto todo fardado de branco. Nha Xenxa mora mesmo por CImada Ponti~ha e sente-o toda a santa noite. É um arrastar de ferros eé nhô Simão a gritar a noite inteira para a marinhagem."

"Mas nha Xenxa viu-o?", tornava Andresa incrédula."Não senhora, nha Xenxa é mulher cristã. Ela benze-se e reza

responsos, uái, maçoncos têm pacto com o xuxo."Andresa gostava de ouvir estas histórias espalhadas

Ape~a ~oca. ~~

povo. E o povo acreditava tanto nelas a ponto de ~ho Slmao FIhhtornar-se temido e respeitado de ponta a ponta da Ilha.

O maior brado fora no dia da morte da Zinha. Ninguém oesqueceu. O aconteciment? pre~nchera ~ardes e ~erões das casa~ damorada por muitos e mUltos dIas e daI todos frcarem conv:nc~d<:s.Ele era mação de verdade. E o círculo de lendas à volta de nho SImaoFilili mais se avolumou ainda.

Zinha andava doente há longos meses de uma doença esq~isita.A pele virara-se-lhe baça e de cor suja. O noivo lá para. a Gumé _eo povo murmurava. Doença assim nã~ podia te: ou~ra or~ge~ senaomal-feitiço feito pela amante preta de BIssau. Voces nao sa~lam. _Genteda Guiné fazia mal-feitiço por tudo e por nada .. Tambem nao ~ranovidade: Qualquer rapaz solteiro costumava arranjar a sua rapangae, muitas vezes, um ou dois filhos antes de casar com outra. Qu~t;Itoà Zinha mal-feitiço ou não, a verdade era ela estar doente. Mal-feItiçoou não: muita gente nova em Soncente morria tuberculosa e, se

ORLANDA AMARILIS 141

crianças ainda, morriam de febre tifóide, e se meninos de mama,morriam com disenteria. Então, pá mode quê tanta tolice de bocapara fora?

Murmurava-se à boca pequena, e um dia a notícia correu asruas de cima a baixo não se sabe como. Zinha enviara um telegramaao noivo a romper o compromisso. Ninguém comentou o caso, todavia,a cidade aprovou. Sim, senhora. Era a única saída para acabar como mal-feitiço sobre a doente. Isso não obstou, no entanto, de a Zinhavir a falecer pouco tempo depois, numa madrugada, ainda o galo nãohavia cantado duas vezes.

Tanha andara aflita com ataques de espuma na boca e gritospara a vizinhança ouvir, o pai não consentira na vinda de nhô padrepara dar à irmã os últimos sacramentos e, entretanto, já se falava namorada. O enterro ia ser religioso.

Andresa relembra estes sucedimentos e afigura-se-lhe nunca teremacontecido, tanto mais, mal assistira a eles. Ainda uma vez, BiaAntônia, à noite, sentada como de costume, no caixote ao pé daescada de acesso ao quintal, desfia o resto desta história de gongom.

"Oiça menina," - e a criada chupa duas vezes pelo pipo doseu canhoto meio apagado - "oiça, quando nhô Padre chegou àportá de nhô Simão Filili não foi capaz de entrar."

Andresa haveria de continuar a olhar os ramos da tamareira, lon-gos, caídos, varrendo, com o ventinho tépido da noite, a roldanapresa com cordas de carrapato a três toros entrançados sobre a bocado poço.

"Aquela casa está assombrada, menina."Bia Antônia coça a cabeça por debaixo do lenço para depois

continuar no mesmo tom:"Nhô Simão Filili mandou forrar a sala onde estava o caixão e

também a porta da entrada, tudo com folhas de palmeira e esperounhô Padre. Ah, também pôs um ramo grande sobre o peito e cruzouos braços bem cruzados sobre ele."

O vento assobiava mais rijo e Bia Antônia aconchega-se melhorno mandrião de riscado. Andresa deixara escorrer um cuspinho agua-do sobre as pedras do quintal.

"Quando nhô Padre lá chegou viu tamanho aparato de maçonaria,voltou as costas e não passou da entrada da porta. Casa excomungada!Dezide menina Tanha está farta de chorar. Sabe, o enterro passoupor detrás da igreja. Oh, mas na sua companha, foram dois violõese um violino a tocarem mornas até ao cemitério.

Poisa as mãos sobre os joelhos e, com esforço, levanta-se docaixote onde se tinha sentado. Levou as mãos à ilharga onde as des-

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142 ESTÓRIAS DE CABO VERDE

cansou num laivo de espreguiçar, levantando-se nos bicos dos pésdescalços. Momentos depois, acrescentou:

"Toda a gente na sua companha chorou bem chorado. Foi muitochorada ela,"

Andresa relembra tudo isto com tanta minúcia como se tivessempassado dias atrás. Como se nunca se tiv~ss~ d~speg.a~? da Mã~-Te~rae tivesse continuado as pegadas de nho Slmao Flhh, de nho Faia,de Antoninho Ligório, do Pitra.

A seu lado, a inglesa ruiva continua sua companheira de banco.Na gare vazia, descobre o comboio.Levanta-se e começa a andar. Junto à segunda carruagem es-

preita. Tanha, olhar descansado, a face serena, num c~nto do assentocomo se devessem caber aí mais umas cinco pessoas amda no mesmobanco, sorri para Andresa.

Coitada de Tanha! Vou com ela até Caxias.

5Estórias de Moçambique

JOAO DIAS

Nasceu em Maputo, em 1926, e morreu em Lisboa, em 1949. Colaborouem vários jornais e revistas. Deixou dois inéditos: "Cadernos de juventudee outros escritos" e "Correspondência diversa". Publicação póstuma: Godidoe outros contos (1952).

Godido*"Era um vêgi um dia. Barranco chigou no nosso terra. Parota,

tinha degi. E patrrão ficou falar assi": - "Agora machamba não éde prreto."

"Brranco ficou no terra."O senhor Manuel Costa veio à povoação e assentou seus projetos

ao lado dos negros. Trazia máquinas, autoridade, réguas. Espalhoudinheiro e panos de fantasia pelas gentes, trazendo à sua quinta osbraços do setor. Trabalhar para o senhor Costa era mais seguro por-que se abrigavam dos maus tempos que destroem os cultivos. Os bran-cos até lutam vantajosamente contra a Natureza.

Os pretos dividiam-se em dois grupos: os das pequenas macham-bas independentes e os empregados da quinta. Os primeiros, sentindoo peso dos impostos, vendiam seus produtos ao caseiro. De modo

* Reproduzido de DIAS, João. Godido e outros contos. Lisboa, Secção deMoçambique da Casa dos Estudantes do Império, 1952. p. 185-7.

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144 ESTóRIAS DE MOÇAMBIQUE

que uns subordinados diretamente e outros conscientes d.e ~~a liber-dade que não tinham, todos viviam para o grande propnetano.

Quatro meses andados, no lugar o senhor Costa se tornou umverdadeiro soba. Até fazia de juiz entre os indígenas.

Grandes camiões paravam ali. Os armazéns falava~ de t~do quese produzia e os carros afastavam-se de pneus em baIxo, pmgandoamendoins ou feijões que sacos rotos não seguravam. Aquela cargadescongestionava os armazéns e ia espalhar libras no senhor Costa.

Os produtos seguiam para grandes cidades.Na aldeia, a fome."Di modo qui os prreto trabaia, trabaia e, às vêzi, fica fome no

barriga dele. Não te comida para o gente."Um feiticeiro disse uma vez que a fome que começava nascendo

era uma praga dos antepassados. Que andava um anjo mau na po-voação. "Dá mim 20 cábêça ha-di matar este chatice qui te no t~~ra."Mas os negros supersticiosos desconfiaram do que se lhe diZia eseguraram suas cabeças de gado.

O branco, raivando riso, empurrou para longe o negro ladrão.Os indígenas viram depois uma sombra e quiseram bater no feiti-

ceiro que deitava pesos em seus pensamentos.De manhã, ainda a claridade rasgava farrapos de escuridão, um

sino chamava às charruas e colheitas. Carlota trabalhou enquantose lhe enchia o ventre. Certo dia sentiu náuseas, voltou à palhota.Descontaram-lhe horas de trabalho.

A barriga rompeu e vazou. O senhor Costa espiou.- Azar! Se fosse mulher, a mão-de-obra ...Mas não havia dúvidas. Nem a barba lhe faltaria ao crescer.

Homem com todas as características. Na idade, havia de distrair astombazanas da faina diária, rebolar por elas na mata. E as horas desexo quem as perdia em trabalho era ele, caseiro, que não tinha olhosem todos os cantos simultaneamente.

Carlota continuou entre o quarto do senhor Costa e os negrosda palhota. Entre eles, Godido germinou sem ~inismos a roer até aosdedos a mandioca que a mãe lhe dava pelo dia.

A vida fazia-se fábrica de descasque: os homens entravam, des-cascavam-se e saíam farelo para a estrumeira. Na máquina ficava suor.Amadureciam os campos, desfazia-se a vida em adubo. Não se pint~-vam novas cores no cenário; era aquele o método único, com maisou menos pormenores.

"Escola pra preto num tinha. Branco estava a falar cos preto ésó pra cavari, cavari ni chão."

JOÃO DIAS 145

Mamana Carlota lembrou que tinham passado tantos anos quantosos dedos das mãos e de um pé, depois que Godido nascera. Cercavam--no olhos brancos de cobiça do senhor Costa, guIavam-lhe charruas esementeiras no campo. Mãe negra desgastara-se naquilo; sabia os tra-balhos dos que nem corpo haviam para a sexualidade do senhor Costa.

Godido precisava outros rumos.A vida realiza-se sempre certa onde quer que seja, mas nós não

somos suficientemente fortes para o compreender e executar.O negro olhou-se entre campos e montes, a alma sangrando

lágrimas aos cantos dos olhos. "Patarrão não esconfiou eu estavafugir." A mãe ficara a mentir um inesperado desaparecimento comose esquecesse aquelas últimas palavras ditas ao filho, que a vida estavaum bocado além da mandioca e do chicote. Mas havia de dizer aosenhor Costa: - "Minha Godido ficou maluco; fugiu ... fugiu dosoroviço. Dêxou patrão, dêxou mãe. Maluco!"

Godido mediu a falta de uma voz de mãe onde apoiar as ações,uma voz de mãe a cansar-lhe os ouvidos: "Num fagi isso!, Godidovênha qui."

A estrada parecia doida nO seu andar, atirando-se da colina aovale quantas vezes com brusquidão. Morava embaixo uma respiraçãode grades. Vazio de casas e homens. A falar-nos da vida humana sóa estrada. Despropositadamente, raríssimos quase-pastores irmanadosa suas ovelhas. Profundamente irmanados a elas. Ninguém acreditaque sejam homens. Mantém-se que ali só estiveram os construtores daestrada, e viajantes.

Godido deu um passo menos seguro e pestanejou. Lembrara-seque podia passar alguém por ele. Com mil diabos!

- "Mim vai no cidade viver co brancos", diria a seus patrícios.Complicavam-se as coisas se passasse por um branco. E neste

pensamento falhou-lhe o coração e sentiu frio nos pés. Que ia emserviço, havia de dizer.

A cidade agora começou a assustá-lo. Tinha medo. Era terra dosbrancos. Os brancos eram como o senhor Costa. A cidade era muitossenhores Costas. A paisagem à volta despiu-se e o caminho entroude oscilar num "Vou? Não vou?" Os negros lá deviam ficar sufocados.O seu caminho era para trás, na senzala. Que se não metesse em cava-larias altas.

Mas a quinta dava-lhe náuseas e um caminho novo pedia serpisado. "Os branco di cidade não fagi mal. Ni mato já mi chatiacatinga de mamana, e paiota do gente co chuva no cama."

Vertigens de novo, esperavam-no. Os pretos não estariam maispuxando carroças, como na quinta. O chão e o céu perderiam areiae azul e tudo seria oiro como o Sol. Ná! Aquele cheiro a suor damãe e a senhor Costa enjoavam.

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146 ESTóRIAS DE MOÇAMBIQUE

A imagem do burgo deu-lhe sonho e medo alternados. A estradaora escorregava gulosa, ora oscilava em vontades de palhota.

Ao longe pinceladas amarelo-avermelhadas davam cidade. Eracomo que o limiar de outra existência mais real para Godido. - "Hih!Tão bom! Olhá o cidade." O ambiente ter-se-ia rido do seu estadode alma se o soubesse.

Como se não fosse humano um negro pensar que a "vida donegro há-de acabar".

LUíS BERNARDO HONWANA 147

LUIS BERNARDO HONWANA

Luís Augusto Bernardo Manuel (Luís Bernardo Honwana) nasceu emMaputo, em 1942. Foi militante da luta de libertação, na FRELlMO. Colaborouem jornais e revistas e tem obra traduzida em outras línguas. Publicou:Nós matamos o cão tinhoso (contos, 1964).

Nhinguitimo *

As rolas

Pouco antes do início das colheitas, as rolas reúnem-se nas matasque dividem as machambas do vale. Durante duas ou três semanas,em bandos numerosos, sobrevoam os campos em largos círculos. Devez em quando duas, três rolas, seis no máximo, destacam-se datrajetória do resto do bando e pousam nas machambas para provaros grãos.

Vários dias decorrem neste período de reconhecimento, mas, emcompensação, na manhã em que soa a ordem de atacar, o Bando édirigido pelos guias para as machambas onde o bago de milho é maispequeno e mais redondo, onde o pé da planta não teve tempo decrescer para além de um metro do chão.

Por uma que~tão de segurança, o bando procura cobrir áreasnão muito sulcadas pelos caminhos' dos homens e dos tratores.

Com o seu colarinho negro, recortado no tom palha-arroxeadodas penas, a rola é uma das aves mais antipáticas da criação. Pelomenos assim parece estar estabelecido entre as populações das pequenasvilas que disputam às machambas e às. matas de micaias os terrenosdo vale do Incomáti.

Essencialmente prática, a rola sacrifica no seu vôo a graça deuma pirueta e a amplitude de uma curva à necessidade de chegarmais depressa. Ninguém se lembra de ter visto uma rola a deixar-seembriagar pela carícia do vento, como freqüentemente acontece àandorinha; por certo também ninguém ouviu dizer que uma rola tenha

* Reproduzido de HONWANA, Luís Bernardo. Nós matamos o cão tinhoso.São Paulo, Ática, 1980. p. 78·96.

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148 ESTóRIAS DE MOÇAMBIQUE

passado uma manhã inteira a catar piolhos no ventre e a alisar a penu-gem, como faz a preguiçosa sécua 1.

Com OS olhitos negros sempre vigilantes, a rola viaja na esteirados grãos e volta pontualmente todos os anos, semanas antes do iníciodas colheitas. Reproduz-se enquanto vai e volta e engorda calmamentecom o tempo.

O seu cantar, que não tem tempo de ser musical, é imediata-mente triste; é uma espécie de refilanço 2 rouco e agreste. Às vezes,sendo monótono, é descritivo e nostálgico. Nunca, porém, poético oudivagante: é sempre horrivelmente direto.

Cantando, a rola não lamenta, como fazem muitos outros pás-saros, acusa. Entristece o vale.

Quando o visgo adocicado do bago de milho seca e a espigaendurece, o vento levanta do chão das machambas e do seio dasmatas a poeira adormecida desde as últimas chuvas. O céu torna-separdo e descai por sobre as machambas. Animado, o vento sobe edurante dias redemoinha espirais de folhas secas, roubadas ao chãodas matas, assustando as rolas, que fogem dos campos.

Depois as machambas cobrem-se de amarelo e, maduros, osgrãos se desprendem das espigas. O vento já está farto de se esfiaparpelos espinhos vibrantes das micaias e já entonteceu de tanto rede-moinhar. As rolas voltam ao ataque, refeitas do susto e habituadas aozunir contínuo e inofensivo. Então chega ao nhinguitimo a.

Nuvens apressadas escapam-se dos montes Libombos, e descendoa encosta, atravessam o vale. O ar pára; os bichos buscam as tocase as micaias nuas retalham firmemente o céu cinzento.

O nhinguitimo irrompe pelo vale e varre instantaneamente apoeira que enche o ar. Célere, vasculha as matas, derruba os pés demilho e dobra as micaias, que gemem de aflição.

As rolas procuram refúgio no mais recôndito da folhagem espessadas figueiras que seguram o rio no seu leito. Enquanto as mais novasse apertam umas às outras, tremendo de medo, as mais idosas co-mentam o tempo com o seu arrulhar soturno.

Duas ou três rolas, seis no máximo, perfuram nervosamente oespaço, por sobre as machambas, avisando dos perigos da tempestadee conduzindo a retirada.

1sécua - ganso bravo.2 refilanço - ato de recalcitrar.a nhinguitimo - vento sul, vento de tempestade.

LUíS BERNARDO HONWANA 149

Como seria possível esquecer aquela noite, caramba?!

Em noites extremamente úmidas como aquela, por um acordotacitamente firmado entre nós e os nossos pais, permitíamo-nos retar-dar anormalmente a hora de recolher em mais duas dúzias de partidasde sete-e-meio. De resto, os hábitos quase sempre rígidos da vilaescangalham-se com o excesso de umidade que todos os anos se faziasentir pouco antes das grandes chuvadas: o administrador, o médico,o chefe dos correios, o veterinário e o chefe da estação, iam beberpara o balcão da cantina do Rodrigues, sítio geralmente tido comoimpróprio para a gente grada da vila; os trabalhadores das macham-bas do vale abandonavam os acampamentos e iam abancar no salãoda frente da cantina do Rodrigues, sítio onde só eram admitidas pes-soas "da nossa melhor sociedade", no dizer do próprio Rodrigues;as prostitutas da vila, normalmente tímidas e obscuras, circulavamalegremente por entre as mesas, deixando que os rapazes e os traba-lhadores das machambas lhes beliscassem as coxas e que os membrosda tal melhor sociedade da vila lhes acariciassem sub-repticiamenteos traseiros.

Por detrás do balcão-frigorífico recentemente comprado, o Ro-drigues, todo boa-disposição, animava as investidas medrosas dossenhores da vila aos rabos das prostitutas e dava palmadinhas nascostas dos trabalhadores das machambas, fazendo-os tomar mais umapinguinha. O tipo ficava terrivelmente satisfeito com o fato de a tascadele se transformar de repente em centro de reunião da vila. Àsvezes desaparecia pela porta dos fundos, ia acordar a mulher e fazia-aespreitar a sala para que ela visse com os próprios olhos a excelenteidéia que fora a compra do balcão-frigorífico, já que toda a vila sematava pelas suas bebidas sempre geladas.

Por entre aquela confusão toda, eu e os outros rapazes inteiráva-mo-nos das idéias dos senhores..importantes lá da vila, confraternizá-vamos abertamente com as prostitutas, sem que isso merecesse qual-quer reprovação e <;>ferecíamoscigarros aos trabalhadores; matávamosa sede com coca-colas e o tempo com aldrabices.

De uma maneira geral, as conversas versavam sobre assuntosrelacionados com a agricultura do vale: os senhores "da sociedade"discutiam o preço que o milho poderia atingir; os trabalhadores aca-riciavam velhos sonhos possíveis de realizar com a abundância quese previa para aquele ano agrícola; nós anunciávamos solenementenúmeros correspondentes ao dobro e ao triplo da quantidade de sacosde milho que os nossos pais esperavam colher. Não se excetuando,as prostitutas perguntavam umas às outras o que deviam fazer como dinheiro ganho durante a fartura das colheitas.

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150 ESTóRIAS DE MOÇAMBIQUE

Eu não era amigo do Vírgula Oito. Aparentando ser muito novo,o tipo' era magro, desengonçado. Embora trabalhasse na machambado Rodrigues, tinha a sua própria machamba do outro lado do rio,no Goana, um sítio onde o administrador ainda não tinha ordenadoo levantamento da reserva indígena.

Naquela noite, quente, terrivelmente úmida, em que parecíamosmergulhados num líquido morno, pegajoso, estava eu a olhar paraa escuridão da rua, sinceramente chateado com tudo o que ouviadizer à minha volta quando o Vírgula Oito apareceu à porta do bar.Vestia uma camisola interior muito branca e umas calças de cáqui,cheias de bolsos e de remendos coloridos, como as dos magaíças.Parou um pedaço, pestanejou para habituar a vista à luz intensadas lâmpadas da loja e dirigiu-se para uma mesa próxima onde esta-vam Maguiguana e o Matchumbutana, também trabalhadores da ma-chamba do Rodrigues da loja. Lembro-me ainda do seu andar desa-jeitado e bamboleante, os seus ombros secos e estreitos e dos seusolhos brilhantes.

Boa noite... - disse o tipo para os outros. Falava emswazi 4.

Boa noite, Massinga - responderam os outros em changane 5.

Caramba, ainda hoje parece-me sentir no ombro o rude impactodo encontrão que o tipo me deu quando, com o seu andar desen-gonçado, passou pela mesa da malta!

Como não podia deixar de ser, a conversa que se desenvolveuna mesa às minhas costas era sobre as colheitas que se avizinhavam.Para fazer inveja aos outros, o Vírgula Oito desatou a falar do seumilho, do seu feijão, do seu amendoim, das suas couves, da suabatata. .. Também se fartou de falar da N'teasse, uma rapariga ládo Goana, filha do Sigolohla.

A voz do Vírgula Oito lembrou-me o arrulhar das rolas que,para exercitar a pontaria, nós "abatíamos" todas as tardes nas ma-chambas próximas à curva do rio.

Chiça?! Mas que calor fazia naquele dia, caramba! Suava, horro-rosamente e sentia um torpor, uma espécie de sonolência febril.

Perdi 4 maços de cigarros ao sete-e-meio. Depois, definitivamenteenjoado, fui-me embora. A Marta mostrou desejos de vir comigo.Nem me opus nem a animei. Ela veio.

Muito depois de abandonar a Marta, já em casa, enquanto espe-rava pelo golpe seco e fulminante do sono, o tom bíblico da últimafrase que ouvira do Vírgula Oito veio-me à memória:

4 swazi - língua do grupo banto.5 changane - língua banto.

LUíS B'ERNARDO HONW ANA 151

- Quando chegar o "nhinguitimo" tudo vai mudar - disseraele. - As machambas grandes que eles fazem vão ficar destruídaspela fúria do vento. As nossas machambas continuarão a amarelecercalmamente porque as grandes árvores do outro lado do rio prote-gem-nas dos ventos. O preço do milho vai subir e nós vamos ter algumdinheiro. Deus tem de querer que seja assim ...

Pôça, aquilo era um calor de matar! Umidade como sei lá oquê e o céu todo cheio de estrelas. Chateava pensar que as grandeschuvadas ainda tardariam. Estive quase para ir tomar outro banhode chuveiro, mas entretanto adormeci.

o Rodrigues da loja fartou-se de esfregar o tampo do balcão

Vírgula Oito bateu com o copo vazio no tampo da mesa e limpouos beiços às costas da mão. Com um rápido olhar, certificou-se dointeresse dos seus companheiros no que acabava de revelar e pigarreoupara aclarar a voz, antes de continuar.

- Se eu chegar fogo à mata e não apagar as chamas durantetrês dias seguidos, fico com uma machamba duas vezes maior - asua voz tinha um tom de confidência. - O dobro - murmurou.

- Mas nessa altura ficas com tanto dinheiro como o Lodricae os outros brancos. .. - admirou-se o Maguiguana. - Até podescomprar trator ...

- Nessa altura pago o imposto, compro sapatos, um fato, umchapéu, uns óculos, uma bengala e um sobretudo. .. e caso-me coma N'teasse. .. - esclareceu o Vírgula Oito. - Se o milho chegaraos duzentos escudos o saco, para o ano aumento a machamba. Jáfalei com o régulo e ele disse que sim ... Arranjo uns homens 'parame ajudarem porque a minha mãe está velha e a minha irmã casa-seum dia destes na igreja do Padre. Arranjo uns homens para trabalharsó para mim, como moleques, e eu mesmo é que lhes pago quandochegar o fim do mês, porque nessa altura sou eu o patrão ...

- Mas. .. - suspirou Matchumbutana.Rápido, Vírgula Oito percebeu um esboço de dúvida.- Não acreditas? .. - atalhou.- Bem, eu acredito ...Vírgula Oito virou-se interrogativamente para Maguiguana.- Bem, eu também acredito - apressou-se este a esclarecer.

Repetindo a rodada de uísque, Rodrigues insinuou:- Por que é que o senhor administrador não vai ver a terra

com os seus próprios olhos?

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152 ESTóRIAS DE MOÇAMBIQUE

- Porque tenho mais que fazer, homem!... - respondeu oadministrador, desapertando mais um botão da camisa.

Enquanto deitava uma medida de água gelada nos copos, Rodri-gues murmurou para si: merda. .. Logo depois voltou ao ataque:

- Senhor administrador, as infra-estruturas desta província ...- .. ,E as médias e as superestruturas... - acrescentou o

administrador, imitando a voz do Rodrigues. Todo o grupo se riuperdidamente. Satisfeito com o aparte que fizera, o administradorrepisou-o quando as gargalhadas começavam a diminuir de intensi-dade. O grupo voltou a dobrar-se sobre o ventre, espremendo outraexplosão de gargalhadas.

Envergonhado, o Rodrigues afastou-se, polindo afanosamente otampo do balcão-frigorífico.

- ... e as médias e as superestruturas. .. - voltou a declamaro administrador.

- Merda. .. - murmurou o Rodrigues, quando, tendo atin-gido a ponta do tampo teve de descer o pano por uma das paredeslaterais do frigorífico para poder continuar a esfregar. "Merda" ...- repetiu quando chegou ao chão. Arregaçando o beiço, ergueu-see aproximou-se do grupo.

- ... e as médias e as superestruturas ...Obediente, o grupo soltou outra gargalhada. O Rodrigues, den-

tro do ritmo, muito desportivamente contribuiu também com a suagargalhadazinha.

- Massinga. .. Ouve, eu acredito nisso tudo que tu dizes quevais fazer ... - afirmou Matchumbutana - Na verdade acredito,mas ...

Mas o quê? - a voz de Vírgula Oito tornou-se impaciente.Maguiguana justificou-se:

- Sabes. .. Eu não sei se eles não ficarão zangados por tuteres tanto dinheiro. .. Eles são capazes de não gostar disso. .. Elesnão vão permitir que tenhas tanto dinheiro ...

- Eles são capazes de não gostar, Massinga... - acudiuMaguiguana. - Eles são capazes de não gostar. . . É que tu és capazde ter mais dinheiro do que o enfermeiro e o intérprete, os assimi-lados ...

- Mas por que é que vocês pensam que eles se hão de zangar?- Vírgula Oito adotou um tom de voz extremamente paciente. -Eu não mato nem roubo; como o que ganho no trabalho; gasto odinheiro com a minha família; pago o imposto... Pago aos meustrabalhadores. .. Como é que eles se podem zangar?

LUíS BERNARDO HONWANA 153

- Bem. .. assim não se zangam. .. Assim não se podem zan-gar ... - o Maguiguana tentava desculpar-se.

- Não se zangam. .. Acho que não se zangam. " - o Mat-chumbutana também retirou a sua dúvida.

- Amanhã vou lá para casa - Vírgula Oito reiniciou o fioda narração, desconhecendo os restos de incredulidade que os outrosainda mostravam. - O Lodrica deixa-me ir porque eu disse-lhe· queprecisava de ir para casa para consertar as palhotas. Chego lá e douuma ajuda à minha mãe e à minha irmã na colheita. Se colhermosdepressa, podemos vender o milho antes de o preço começar a baixar,quando os brancos'" também fizerem as suas colheitas... E vejo aN'teasse ...

- Senhor administrador, se eu insisti nisto é só porque mecusta ver uma terra tão rica a ser desperdiçada pelos pretos - oRodrigues tinha conseguido deter a palavra depois das três rodadas deuísque que durou a festejar o aparte do administrador -, e semprelhe digo que esta vila podia ter melhor sorte se se desse um poucomais de atenção às pretensões das suas gentes. .. (o Rodrigues davaa sua mordidela vingativa ... ). Senhor administrador, eu sempre con-fiei na clarividência com que Vossa Excelência dirige superiormenteos interesses das populações neste momento conturbado... - oRodrigues retificava a canelada -, mélS isto lá do baixio do Goanaé tão importante ...

- Vírgula Oito! - chamou o Rodrigues. - Vírgula Oito! Andacá! . .. o senhor administrador quer perguntar-te umas coisas lá doteu sítio ...

Vírgula Oito aproximou-se do grupo. Erguendo as mãos até àaltura da cabeça, numa espécie de continência, saudou o adminis-trador:

- Bayeti n'kossi! (l •••

- O senhor administrador pode interrogar este indígena e intei-rar-se da veracidade das minhas afirmações. . . - o Rodrigues esfre-gou o pano ao tampo do balcão-frigorífico, em pequenos e rápidosmovimentos circulares - ... e inteirar-se da veracidade das minhasafirmações. .. - repetiu a frase para si próprio, satisfeito com aressonância solene da sua voz ao proferi-la.

- Como é que tu te chamas, ó rapaz? - perguntou o admi-nistrador.

6 Bayeti n'kossi! ... - Salve, senhor ... (em língua swazi).

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154 ESTóRIAS DE MOÇAMBIQUE

- Eu chama Alexandre Vírgula Oito Massinga, sinhoro Mixa-doro!

O Rodrigues voltou da ponta do balcão numa corridinha e de-bruçou-se para a conversa, todo interessado:

- Interrogue-o, interrogue-o senhor administrador! ...- Onde é que tu trabalhas? - interrompeu brutalmente o admi-

nistrador. - Onde é que tu trabalhas, rapaz?Vírgula Oito atrapalhou-se com a ira do administrador. Quando

se dominou, respondeu:- Eu trabalha machamba patrão Lodrica. Trabalha muito tem-

po mesmo ...- Alexandre Vírgula Oito Massinga. .. Raio de nome. .. De

onde é que tu és?- Eu sou do induna 7, Goana ~, senhora Mixadoro ...O barulho que enchia a sala cessara instantaneamente. Toda a

gente se pôs à escuta. Maguiguana segredou a Matchumbutana, encos-tando-lhe os lábios ao ouvido:

- E'iI não disse que eles não haviam de gostar?Movendo a cabeça num largo assentimento, Matchumbutana de-

volveu a pergunta intata:Eu não disse que eles não haviam de gostar?Eu não disse? - insistiu Maguiguana.Eu não disse? - repetiu Matchumbutana.Tu tens machamba lá no Goana?Eu tem machamba lá mesmo na Goana sinhoro Mixadoro ...Tem muito machamba lá?Tem muito machamba lá sinhoro Mixadoro ...Machamba lá no Goana é produtiva? Raios... Produtiva

não! . .. É bom? .. Machamba lá no Goana é bom? .. Jesus, istosó com o intérprete, lá na administração ...

Alarmado, o Rodrigues ofereceu-se:- Eu posso servir de intérprete, senhor administrador ...- Não! ...O pano arrancou do tampo do balcão-frigorífico um chiar afli-

tivo. "Merda". .. - ganiu o Rodrigues.Ouve cá, tu tiras muito milho lá na tua machamba?Cada vez tira, cada vez não tira, sinhoro Mixadoro ...O que é que estás para aí a dizer, homem?Eu diz eu tira, sinhoro Comandante ...

O administrador conteve o riso que lhe provocara o novo trata-mento.

7 induna - chefe de regedoria (circunscrição administrativa).~ Goana - nome de uma localidade.

LUíS BERNARDO HONWANA 155

- A terra é boa?Vírgula Oito percebera a rápida sombra que perpassou pelo olhar

do administrador quando o tratara por comandante:- Terra é bom, sinhoro Mixadoro ...- A terra é boa? - berrou novamente o administrador, irri-

tado com a perspicácia do trabalhador.Vírgula Oito demorou a resposta, indeciso:- Terra é bom, sinhoro Comandante. " - todo o corpo de

Vírgula Oito oscilou, sublinhando a afirmação.Perante o silêncio do interlocutor, Vírgula Oito optou:- Terra é bom... - e aguardou o efeito da nova fórmula,

apertando as mãos ao peito.Depois de olhar para Vírgula Oito de cenho franzido, o admi-

nistrador explodiu numa gargalhada. Rápido, o Rodrigues introduziuo acompanhamento à terceira quebra do riso do administrador. Maismoroso, o grupo que rodeava o administrador começou o coro jácom bastante atraso.

Algumas raparigas desataram a rir sem que tivessem percebido oque se passava.

Menos tenso, Vírgula Oito disfarçou um sorriso, baixando acabeça.

- Está bem, rapaz, vai-te embora... Depois falamos, meuvivaço ...

Novamente, Vírgula Oito ergueu os braços numa saudação.- Nós não dissemos? ... Nós não dissemos que eles não haviam

de gostar, Massinga. .. - o Maguiguana estava todo excitado.Dissemos ou não dissemos?

Vírgula Oito fitou longamente as palmas das mãos antes deresponder:

- Nós dissemos. .. - Matchumbutana parecia satisfeito coma atrapalhação de Vírgula Oito.

- Vocês sabem... Eu não sei falar como o intérprete oucomo o enfermeiro, eu não sei falar bem a língua deles ...

A terra do Goana era boa que se fartava

Embora na última estação as chuvas tivessem sido abundantes,o lodo do vale já secara havia alguns meses.

Causticada por um sol intenso, a terra endurecida fendera emsulcos sinuosos e profundos. Livres da sujeição das raízes do capim,àquela altura do ano já duras e quebradiças, as terras da encostasoltavam-se e rolavam ao mínimo solavanco do vento, exalando uma

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156 ESTóRIAS DE MOÇAMBIQUE LUíS BERNARDO HONWANA 157

gotículas do véu azulado e desfazia-se lá em cima, no ar já intensa-mente dourado pelo sol nascente.

Com as narinas frementes Vírgula Oito sorveu longos haustosdo vapor fresco da manhã, antes de enveredar pelo caminho estreito.A cada passo sentia a carícia leve da franja de capim que pendia paraa pequena concavidade do caminho, uma cócega agradável nos torno-zelos e nos calcanhares.

Vírgula Oito atravessou a machamba, pondo em debandada umanuvem de insetos que, pendurados nas plantas, esperavam a chegadado sol.

Descuidado, deixou que os espinhos de uma pequena micaia quese disfarçava no capim lhe dilacerassem o braço. O sangue brotouimediatamente do rasgão, mas Vírgula Oito não se preocupou.

O trabalhador dearnbulou pelos regos da macharnba, e, por fim,ébrio do cheiro forte da terra, deixou-se cair sobre um tufo de ervas.

Bocejando restos do sono, N'teasse, filha de Sigolohla, avançoulentamente até transpor o limite da povoação. Desinteressada, ajeitoua capulana e espreguiçou-se com um gemido. O mato acolheu-a comuma carícia gélida. Estremeceu.

A nuvem de vapor perturbou-se ligeiramente, encrespou e divi-diu-se. Depois uniu-se, envolvendo-a.

A terra do Goana ainda dormia; os campos, de um amareloazulado, estavam desertos. Aqui e ali, enormes pirâmides de espigasde milho elevavam-se do seio das machambas.

Com uma lentidão caprichosa, Vírgula Oito levantou-se do chão.N'teasse ria-se nervosamente, com os dentes a faiscar por entre oslábios. O seu corpo estremecia sacudido pelas gargalhadas.

De pé, Vírgula Oito fez menção de se atirar sobre a raparigaque, assustada, fugiu com um grito. Poucos passos volvidos parou evoltou a rir-se, numa provocação. Vírgula Oito avançou. Ela recuou.

Espera aí ...Para quê? ..Espera .Não .

Vírgula Oito correu, mas tropeçou e caIU. Com raiva, ouviu oriso excitante da rapariga.

- N'teassê!. " - suplicou.

poeira densa que caía sobre o vale, asfixiando a folhagem das árvorese turvando as águas vagarosas do rio.

A todo o comprimento do vale, o lençol de machambas ondulavarigidamente, percorrido pelas rajadas breves de um vento volúvel.

Maduras, as espigas pendiam para o chão, gordas e inteiriçadas.Do outro lado do rio, a colheita já tinha sido iniciada. As

pequenas machambas mergulhadas na espessura da floresta enchiam--se de gente que afanosamente partia as espigas de milho das hastes.Era um matraquear entusiasmado, uma corrida contra a baixa depreço que surgiria quando os armazéns da vila se enchessem com omilho dos grandes agrÍlmltores.

Em volta das povoações os celeiros intumesciam rapidamentedurante as manhãs para, durante a tarde, vomitarem as espigas paraa debulha. Durante a noite, comboios de pequenas jangadas ajoujadasde sacos atravessavam o rio.

Encravadas entre grandes propriedades, tituladas e demarcadascom cercados de arame farpado, as "reservas indígenas" cresciamem profundidade, dando para o rio uma frente estreitíssima. Contraa regra, a reserva da região do Goana dava ao rio uma d~s faces doseu comprimento. Todas as suas pequenas machambas tmham porisso acesso às águas do Incomáti.

Situada a 12 quilômetros da vila, na outra margem, era a maispróspera de toda a circunscrição. C:0~preendendo terrenos ~aixos,alagadiços, era manchada por uma sene de lagos que se mantmhammesmo durante a estação da cacimba li.

Nos terrenos mais secos do Goana apareciam belos milheirais,regados por valas abertas pelos agricultores. Nas zonas pantanosasverdejava o arroz, o tabaco e, em pequenas áreas recuperadas à águapelos aluviões, cavava-se batata.

Um extenso véu de vapor cobria as terras do induna Goana. Demalha finíssima, a nuvem rodeava as árvores, as casas e os animaisnum halo azulado, sem contudo depositar nas superfícies indícios deumidade.

Saudando o dia, os sons do mato, ainda vagos bocejos roucos e,por vezes estridentes, ziguezagueavam preguiçosos, saltitando de folhaem folha e ecoando surdamente até se perderem na profundidade dovéu de vapor.

Um forte cheiro a barro subia da terra, misturava-se aos vaporesacres do pântano e às fragrâncias da floresta; depois agarrava-se às

Il cacimba - nevoeiro denso que se forma ao cair da tarde.

De gatas, Vírgula Oitopassagem entre as micaias.espreitava-o, sorridente.

arrastou-se cuidadosamente pela estreitaDo outro lado dos arbustos N'teasse

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158 ESTóRIAS DE MOÇAMBIQUE

Quando Vírgula Oito transpôs a passagem, N'teasse esperou queele se levantasse e voltou a correr, rindo-se em grandes gargalhadas.

Segura entre os braços do homem, N'teasse sorria envergonhada.À intensidade do olhar de Vírgula Oito, baixou os olhos. Embaraçado,o homem afrouxou o braço; e a rapariga desprendeu-se com umsafanão e fugiu.

Deitado no capim, Vírgula Oito deslizou com a ajuda dos pés,aproximou-se de N'teasse. Brandindo um pau, a rapariga mantinha-oà distância, sorrindo satisfeita.

- N'teasse. o. - ameaçou Vírgula Oito, atirando-se para afrente.

O pau caiu pesadamente sobre o ombro do homem. A raparigasoltou uma breve gargalhada. Vírgula Oito tentou segurar o pau, masN'teasse magoou-lhe os dedos.

- N'teasse ...A rapariga arrastou-se pelo capim, fugindo devagarinho.Por fim, Vírgula Oito conseguiu segurar o pau. A rapariga puxou.

Com o braço livre o homem alcançou-lhe o tornozelo.Placidamente, a rapariga lutou para se libertar. Depois cobriu

os olhos com as mãos e gemeu baixinho.

Nhinguitimo

- Massinga, nós não podemos fazer nada .. , Eles levam-nosas terras e nós temos de não dizer nada .. o

Vírgula Oito não respondeu. Sentado num caixote, mantinha-sede cabeça baixa. Matchum]:mtana insistiu:

- Tu não te podes zangar, Massinga ... Não te deves zangar ...- Matchumbutana .. o - Vírgula Oito falava lentamente, titu-

beante - Matchumbutana .. o Eu nasci naquela terra. .. O meu paitambém nasceu lá. Toda a minha família é do Goana. .. Os meusavós todos estão lá enterrados. o' Maguiguana, o Lodrica tem lojas,tem tratores, tem machambas grandes o.. Por que é que ele quero nosso sítio? Por quê? ..

Em volta, o Zedequiel, o Munanga, o Alifaz, e os outros traba-lhadores da machamba do Rodrigues seguiam a conversa, acocorados.

- Eu trabaUío aqui, na machamba dele - continuou VírgulaOito -, eu compro o que preciso na loja dele... A minha mãe,quando vem cá à vila vai para a loja dele ...

1

LUíS BERNARDO HONWANA 159

- Massinga, deixa lá isso, o Mixadoro é capaz de não mandarsair ninguém. .. Se o Padre disse que ia falar com ele tu não deviaspensar assim. . . - assustado com o tom da própria voz, o Matchum-butana calou-se de repente.

O condutor meteu a primeira e acelerou. Relutante, o camlaoavanç~~, rugi?do. No pino da subida o condutor meteu a segunda eo camlao hesitou vagamente, antes de rolar, mais dócil, pela picada.

Evitando um monte de sacos, o carro resvalou do trilho, derrapoumas logo se recompôs. Cem metros à frente, já na machamba, paroucom um estremecimento.

- Ei rapazes! - gritou o capataz, saltando para o chão. -Carregar num instante! Tenho pressa!. " Vá! ...

Zedequiel deixou cair uma espiga e chamou os companheirosc?~ ~m gesto. Vírgula Oito continuou acocorado, por detrás de umapuamlde de milho.

- Onde é que está o Vírgula Oito? - perguntou o capataz.- Esse Vírgula parece que anda a querer brincar ...

Vírgula Oito aproximou-se:- Eu está doente, patrão. o. Dói cabeça. .. Dói muito ...- Está bem, quando largares podes ficar doente à vontade,

mas agora vai ajudar os outros a carregar o camião ...

Todo abatido sobre as molas, o camião inverteu o sentido numamanobra trabalhosa e meteu pela picada, gemendo e bufando.

- Zedequiel! Matchumbutana!. o' Maguiguana! Munanga! ...Vocês todos! ...

Todos os trabalhadores se aproximaram de Vírgula Oito.- Vocês digam-me uma coisa: acham que isso do Lodrica

está certo? ..Ninguém respondeu. Vírgula Oito dobrou-se sobre o ventre e riu

mansamente.Intrigados, os trabalhadores entreolharam-se.

. ---:- Os outoros também se encheram de medo .. o - disse porfim Vlrgula OitO, todo sufocado pelo riso. - Estão todos commedo ...

Surgindo do sul, as nuvens avançavam rapidamente, tingindo océu de negro.

- Estão todos com medo. . . Nós vamos ficar sem nada e todoscontinuam com medo. o .

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160 ESTóRIAS DE MoÇAMBIQUE

o estrondo enorme do primeiro trovão esmagou.o riso de VírgulaOito. Rugindo, o vento trouxe uma nuvem de. poeIra que envol~euos homens. Vírgula Oito ergueu o olhar e abrIu os braços patetica-mente.

_ É o nhinguitimo!. . . - gritou alguém.De braços erguidos, Vírgula Oito explicava ao céu pensamentos

que o vento desfazia.. . A ,

_ Massinga! .. , Massmga! ... Vlfgulo ...._ Nhinguitimo!. .. - gargalhou Vírgula Oito, cambaleando.Perfurando nervosamente a poeirada, duas ou três rolas, t~lvez

seis sobrevoaram os trabalhadores em círculos apertados. DepOIS doavi;o frenético, as rolas rumaram para as grandes florestas do outrolado do rio, fugindo do nhinguitimo.

Nessa noite juro que senti raiva

Lá fora a chuva caía miudinha. Não fazia propriamente frio,mas o tempo estava bastante mais fresco.

_ Sete-e-meio real! - gritou alguém a meu lado. Baixei ascartas e procurei mais umas moedas no fundo do bolso.

O Maguiguana entrou antes de eu pousar as moedas na banc~.Todo coberto de lodo, espumava e berrava estupidamente. Ao melOda sala, arquejante, anunciou: .

_ Vírgula Oito ficou maluco patrão. . . Matou ZedeqUlel. Ta~-bém queria matar eu, mas eu fugiu, correr muito mesmo!. .. A nosquereu agarrar ele e ele começou ma~ar nós!. .. Esta~a f~l~r comcéu. . . A nós queria levar ele para fugir de vento de nhl~gUlt!~O ...

Todo debruçado por sobre o tampo do balcão-fngor!fIco, oRodrigues abriu a boca, sem poder emitir qualquer som. DepOISfalou.

_ Homens! Peguem em armas e vamos abater esse negro antesque ele mate mais gente! Vamos depressa antes que aconteça qual-quer coisa de muito mau nest~ vila! . .. M:u Deus! .. , .

Pouco depois de eles Salrem, levant~l-me da ~esa,'_ Vão todos "'à merda mais a estupidez deste Jogo.Ninguém se preocupou c.omigo. S~í. Pouc~s passos tinha dado

quando senti a Marta a chapmh~r, atras de. mim.Caramba, como é que é posslvel ha~er tipos c~mo eu? Enquanto

eu matava rolas e jogava ao sete-e-melO aconteCiam uma d~ta decoisas e eu nem me impressionava! Nada, ficava na mesma, faZia quenão era comigo ...

_ Marta! - chamei. A rapariga veio a correr.Pôça, aquilo tinha que mudar! ...

ORLANDO MENDES 161

ORLANDO MENDES

Orlando Marques de Almeida Mendes nasceu em 1916, na ilha de Mo-çambique. Tem colaboração literária dispersa em várias revistas e jornais.Publicou: Traietárias (poesia, 1940); Clima (poesia, 1959); Depois do 7.° dia(poesia, 1963); Portanto eu vos escrevo (poesia, 1964); Pais emerso /I (poe-sia, 1976); Portagem (romance, 1966); Um minuto de sílêncio (prosa, 1970);Pais emerso I (prosa e poesia, 1975); Produção com que aprendo (prosa epoesia, 1978); Sobre Iíteratura moçambicana (antologia e estudo crítico, 1982).

Portagem*Houve tempo em que lhe desejara a maior miséria, que não se

libertasse mais da vida desgraçada das mulheres que são de todosos homens, negros e brancos, que as pretendem. E jurara a si mesmoque nunca lhe perdoaria tê-lo trocado por um branco. E levara oseu ódio e o seu desgosto a tentar assassiná-la. No tribunal o Dr.Ramires dissera que ele a esfaqueara num momento de desespero,que não o fizera por vingança. Mas realmente tinha-lhe então umaraiva tão grande que seria capaz de a matar mil vezes. Ela escaparapor pouco. E ele estivera degredado na fortaleza.

Naquela noite, porém, chegando, encontrou-a caída à porta dabarraca de Mamane Angelina. O seu primeiro impulso foi deixá-laficar ali abandonada, à chuva, presa de uma sorte com que ele já nadatinha. Entrou, deitou-se, fechou os olhos e esforçou-se por adormecer.Mas a imagem de Luísa prostrada fora da porta, não o deixava. E,minuto a minuto, a tristeza da chuva, moendo o silêncio na imensi-dade da noite do seu coração, foi diluindo nódoas do passado e elepôs-se a pensar:

- Até um cão tinhoso a gente não deve deixar morrer semabrigo ...

Sorrateiramente, abriu a porta, pegou na mulata ao colo, esten-deu-a na sua enxerga e acordou Marcelino.

- Onde tu pescou ela, João?- Aí fora. Tava caída no chão. Eu não quero saber, mas a tua

mãe havia de ter pena ...

~,Reproduzido de MEND,ES, Orlando. Portagem. São Paulo, Ática, 1981. p.114-25.

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162 ESTóRIAS DE MOÇAMBIQUE

Mamane Angelina curou-a. O mal de LuÍsa era fome e arrepen-dimento. Depois, ela quis ir-se embora. Mas a velha negra insistiupara ficar:

- Não vai embora nada! Tu tá na minha casa. Quem manda/ ,e eu ....

Foi ficando. Vendo João Xilim todos os dias. Ele não lhe dizuma palavra, procedendo como se não vivessem na mesma casa.LuÍsa não se queixa. Sabe que não merece a piedade de ninguém emuito menos do marido. Se alguma coisa ela ainda merece é pancada.Por isso, ela tenciona abalar de uma vez para sempre, sem se des-pedir, ir andando sem parar até chegar ao mato dos bichos e morreraí, para que nenhuma pessoa possa procurá-la e ter pena.

Desde que LuÍsa vive na mesma casa que ele, João Xilim temoutro aspecto. Cabisbaixo, nem para Marcelino ele adianta mais doque bom-dia e boa-noite. Sente que na sua cabeça se batem doisgigantes, um a querer impor o perdão e o esquecimento e o segundo,ora mais forte ora mais fraco, a exigir desprezo e afastamento defi-nitivo. Talvez o remédio fosse deixar a palhota dos amigos, semdizer adeus às pessoas e às recordações. Mas vai adiando qualquerresolução porque ele tem medo de estar só no mundo.

Uma noite, ao chegar a casa, não encontra Mamane Angelinanem Marcelino. Foram fazer companhia a D. Francisca a quem morreuo homem de repente. LuÍsa está sozinha. João Xilim ainda pensouem sair logo. Mas isso seria dar importância à mulher. Instintivamentesenta-se à mesa. LuÍsa traz-lhe um prato de sopa. Sopa como elegostava quando eles viviam juntos. Nas refeições de Mamane Angelinanunca aparecia. Luísa faz aquilo para lhe agradar. João Xilim arredao prato. Não precisa das atenções dela. A mulher fica de pé na frentedele, com as mãos a enrolarem-se na blusa preta por fora da saia.João Xilim, mesmo sem olhar, percebe o seu embaraço. Custa-lheaquele silêncio. Levanta-se da mesa e dirige-se para a porta.

João .- Ahn?! .- João .A sua voz é mordida de soluços. Deixou de ser a voz rouca da

mulata debochada que ele encontrara à saída da barraca das adivinhasno campo de futebol do Invencível naquela maldita tarde em quea esfaqueara. Lembra a voz meiga da mulher virgem que um dia lhejurara amor. Em que tempo foi isso?

- João ...- Se quer falar, fala depressa! E meu nome eu já sei de cor! ...Olha de soslaio. LuÍsa está toda a tremer, os olhos baixos, as

mãos espalmadas sobre a barriga.

ORLANDO MENDES 163

João, eu não quer viver mais. Para quê? Mas só tu pode matara mim. Foi pena naquele dia não ter acabado tudo.

- Você nem merece nem isso! ...LuÍsa treme mais. E ele gostaria de a amparar de qualquer ma-

neira, mas sem ter que se mexer. Sem a intervenção da sua vontade.Que a sua mão se estendesse até onde ela está e a obrigasse a con-tinuar de pé para não cair, não morrer ali diante dele.

- Tá bem, João, eu vou embora. .. Desculpa ...Não queria falar, mas foi dizendo:- Não vai hoje, não. .. Precisa despedir de Mamane Angelina.

Você deve muito a ela.Luísa ia cair desmaiada mas ele agarrou-a pela cintura. Deitou-a

na sua cama.Mamane Angelina ficou contente por eles se juntarem e disse a

Luísa que tivessf<um filho. Os filhos prendem os homens, dizia. MasLuísa agora não queria mais do que ganhar o perdão definitivo domarido. E sentiu-se muito contente quando ele decidiu arranjar umabarraca só para os dois. Apesar disso, felicidade dos dois, ela pensaque será impossível.

Um dia chegaram àquele bairro das palhotas do subúrbio, umautomóvel e um camião. Os negros que vinham neste, carregaram osinstrumentos e seguiram atrás dos brancos. As mulheres apareceramcuriosas às portas das casas. Os brancos fizeram medições, tiraramapontamentos, conferenciaram largamente. Um negro reuniu a popu-lação do bairro e explicou que os brancos donos do grande terreno iamconstruir muitas casas para brancos. Os habitantes do bairro teriamque deixar o sítio no prazo de três meses. As negras e os mufanasouvem e mal entendem o que se passa. O empregado afixou papéiscomo os dos jornais nas paredes de algumas das barracas maiores.

João Xilim regressa ao fim da tarde e encontra tudo em alvoroço.Ouve o que têm para lhe contar. Todos os homens protestam emmurmúrios ou em voz alta. Um mulato claro que andou no liceu e éempregado numa repartição diz aos negros na língua deles:

- Eu falei com os brancos que são os donos deste terreno. Elestêm razão. Este bairro das nossas palhotas, é uma vergonha. A gentevai mudar as nossas coisas para o terreno que vão dar e um dia eleshão de fazer também casas boas para a gente morar.

E fala de progresso e civilização. Mas os negros e mulatos sópensam que têm de desmanchar as barracas e transportar o materialpara outro sítio e reconstruir de qualquer maneira. E muito do materialjá é tão velho que não agüentará. Alguns vivem em casas arrendadase onde vão encontrar outras por aquele preço? Eles sentem que uma

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164 ESTóRIAS DE MOÇAMBIQUE

hora má está batendo. São, quase todos, carregadores do cais, ser-ventes de operários, empregados modestos. Com a crise, o movimentoda construção civil diminuiu imenso, muitas obras pararam. Algunsdesempregados partiram para o interior mas outros também vêm delá juntamente com os que não conseguiram empregar-se.

O mulato que fez o discurso é corrido. Marcelino diz num grupo.- Voz dele é de mulher: não presta para nada! - e cospe,

enojado.Os homens esperam qualquer coisa, andam de um lado para outro,

incapazes de se meterem dentro das casas. Precisam de uma atitude decompreensão e do auxílio moral de alguém que esteja de acordo comeles. Então, João Xilim fala para eles, de igual para igual:

- Vocês não acredita neste mulato gingado! Vida dele é debranco! Vida da gente é de negro! A gente não precisa desta conversa!A gente fez aqui as nossas casas há muito tempo, não é? Para quêvão mandar a gente embora? Onde está dinheiro? Pais de vocês epais de pais de vocês não morava já aqui? Não é os pés da gente quepisa este terreno? Tem muito lugar para os brancos ir fazer as suascasas! Para quê vão correr a gente daqui?

Os homens não dizem nada mas baixam as cabeças. João Xilimprepara-se para continuar. Mas, nesse momento, chega o encarregadodas medições. Informa-se do que se passa. Dirige-se a João Xilim:

- Sai já daqui para fora! Vocês estão todos aqui por favor eainda refilam! Sai, filho da ... ! Mulato duma figa!

Passa uma névoa pelos olhos de João Xilim. Sempre a mesmaacusação à sua condição de filho ilegítimo de duas raças. Uma afrontapermanente como se ele tivesse que carregar até à morte a culpabi-lidade do abraço da mãe Kati e de patrão Campos. O passado exige--lhe uma resposta. Articula uma palavra. Então o branco levanta amão e esbofeteia-o. João Xilim reage. Agarram-no e um negro quevinha com o branco fala-lhe na polícia. João Xilim esbraceja, massubitamente, acalma-se. Morde os lábios e, afastando-se, promete paraum dos companheiros mais próximos:

- Eu hei de ir na cadeia outra vez, mas este gajo não duraum ano!

Os homens moradores no bairro condenado juntaram-se todos eforam pedir um prolongamento do prazo para abandonarem aquelesítio. Pediram também que lhes fosse emprestado dinheiro para pode-rem comprar algum material em segunda mão para substituir o queestivesse mais velho e não agüentasse a transferência. O chefe queos recebeu, concedeu-lhes mais um mês mas informou que não lhes

ORLANDO MENDES 165

poderia ser emprestado dinheiro. E prometeu que depois de construídoo bairro para os brancos, se construiria um bairro de alvenaria paraeles. Os homens saíram dali desanimados, de cabeças baixas, comuma palavra de desgosto amortecida nos lábios. Um outro branco dabrigada sentiu e interiorizou esse desgosto. E continuou a trabalhar,meditando sobre os aspectos dolorosos das renovações prioritárias.

Os macubares * dos coqueiros tremulam levemente, um ventomedroso começa a correr na tarde abrasada. Um trovão soa longe.Mas o céu permanece claro e o sol tem um brilho intenso. A aragemé sussurro que mal se apercebe.

O capataz e os trabalhadores negros das primeiras obras andamlá embaixo, onde o aglomerado das palhotas acaba. Uma negra partepara a estrada com um cesto de castanha de caju à cabeça. Ummufana acompanha-a, pedinchando. E, vendo um branco a desenhar,mira de largo" curioso. Um pássaro chega, empoleira-se no vértice dumcoqueiro, pia tristemente e vai-se embora, prosseguindo a sua viagem,descontente com o sítio. Mais longe, na planura imensa de capimseco, o sol deixa uma larga mancha de despedida, violentamentevermelha.

O branco, terminado o seu trabalho, contempla a paisagem. Nãohá ali beleza, mas apenas o roçar misterioso de apelos ocultos quesaem da terra virgem, da quietude dentro das palhotas, das vidas quelá dentro estão com um prazo marcado para se mudarem. Aquelelugar tão diferente é um subúrbio da cidade moderna. Mas, nestahora, é como se fosse um país estranho e as gentes que habitam paracá da estrada estivessem esquecidas da civilização, sem ouvir as suasordens, sem conhecerem os seus horários, sem sentirem o seu bafo.

Um golpe de vento irônico sacode as folhas ressequidas do co-queiro e faz ondular o capim ainda não completamente seco. Umafrescura breve toca as coisas mansamente e o negrito que tinha estadoa espreitar o desenho levanta o narizito para as alturas e parte a correrpelos campos fora como se o tivessem nomeado mensageiro de umaboa nova. O céu recebe o sinal do vento e começa a escurecer. Masos homens já não acreditam que possa tornar a chover. E 'os quevieram do mato, fugidos às conseqüências das secas nos pastos e nasplantações, talvez olhassem agora a chuva com rancor. .

O céu escurece mais. O vento sopra em rajadas e faz gemer apobre vegetação. A trovoada está quase em cima da planície. Osrelâmpagos riscam a escuridão prematura. As palhotas, o silêncio doshomens e das mulheres e a inquietude medrosa das crianças e o solmoribundo coberto por uma nuvem, têm beleza bárbara expulsa do

* macubares - folhas de coqueiro.

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166 ESTóRIAS DE MOÇAMBIQUE

mundo. E o branco medita. Há mais qualquer coisa naquela pontepênsil do mato para a cidade que a necessidade de progresso. Há aprofecia indecisa duma manhã que todos saúdem com a mesma alegriadepois de sofrerem os pasmos e as dores das suas origens.

O vento deixou de correr. As nuvens deslizaram suavemente elimpou-se o céu. O sol ressurge, mais baixo ainda, mancha luminosade cobre dourado que esbarra no sopé da montanha que fecha aplanície. Os homens emprestados ao subúrbio terminaram as suastarefas e preparam-se para regressar à cidade. Para o dia todo acabarcom o sono do corpo, faltam ainda duas ou três horas, findas asquais os moradores do bairro suburbano estarão mais próxÍmos dessaoutra hora em que terão que desmanchar as suas casas e transportá-laspara as reconstruir mais além.

E, finalmente, chegou o último dia do prazo marcado para osnegros e mulatos largarem o local onde habitavam e eles não forampara os seus empregos. Logo de manhã começaram a acarretar osmateriais das casas desmanchadas desde as primeiras horas da madru-gada. E, em marcha penosa, mais triste que fatigante, seguiram peloatalho, tomaram a estrada e cortaram à esquerda em direção ao sítiodesignado para se instalarem provisoriamente. Esta noite, os homensdormirão à cacimba, com o céu estrelado bem por cima deles. Paraas mulheres e crianças arranjarão alpendres, abrigos de emergênciaaté que as modestas casas estejam reconstruídas.

Vieram também os homens que fugiram das povoações acossadospela seca e os que tinham ido para o interior à procura de empregoe voltaram desiludidos. Os desempregados estão pagando a sua comida.Os braços enrijaram e agora ajudam a transportar a madeira velha eo zinco remendado das casas de mulheres viúvas e sem filhos homenspara ajudar. Os trabalhadores do bairro europeu que já começou aconstruir-se, pararam, por momentos, as suas tarefas, para contem-plarem o início da debandada, a verem os exilados caminhando, semolharem para os lados, levando as suas casas desmontadas e os trastes.As mulheres pisam o mesmo caminho, com as coisas de casa à cabeça,objetos que só têm serventia para gente pobre.

João Xilim não quer que Luísa ande no carrego. Mas, apesardisso, ela esforça-se por ajudar, silenciosa, levando à cabeça a est~iracheia de pequenos tarecos. Ele admira o bom senso da companheIra,dispondo as coisas em ordem, fazendo projetos, escolhendo o melhorlugar para eles reconstruírem a barraca que fora de D. Maria.

Antigamente, quando a mulher andava na má vida, João Xilim.supunha que o corpo dela estaria definitivamente murcho para empre-

ORLANDO MENDES 167

nhar. E, por isso, se espantou quando lhe ouviu dizer, muito tímida,que ficara grávida. Julgou, a princípio, que ela se tivesse enganado,mas depressa se convenceu, vendo a barriga da mulher crescer dia adia, escondendo um rebento, um pedaço dos dois. Mamane Angelinaconfirmou logo, deu um prazo, insistiu para que a chamassem nomomento do parto. E João Xilim não consente que Luísa faça esforço,ela deve descansar o mais possível para o menino nascer são.

Ao fim da tarde, a mudança está quase concluída. Apenas algu-mas mulheres transportam ainda bugigangas dos quintais. E os futu-ros lares aparecem definidos pelos pequenos alpendres, os materiaisamontoados e os tarecos. E há cansaço e tristeza em todas as feições.

Luísa sente-se, de súbito, muito alquebrada e com náuseas.Procura com a vista Mamane Angelina para lhe contar a impressãoangustiosa que lhe sobe da barriga e desce e sobe de novo. DescobreJoão Xilim que se está aproximando, levanta-se para ir ter com ele,mas cai exausta. E ali mesmo, dá à luz um pedaço de gente comcerca de um palmo. Ele fica desvairado, não ouvindo nada, não per-cebendo nada senão que a esperança de um filho acabava de desapa-recer. Algumas mulheres deixam de arrumar e aproximam-se. JoãoXilim não as vê. Os homens continuam a passar, indiferentes.

O mulato volta a si e olha em redor. Anoitece e o movimentode grupo para grupo diminuiu. Fogueiras dispersas pelo campo indicamos lugares escolhidos para montar o novo bairro e são como as pedrasdos novos lares. Só no sítio onde se levantou o alpendre para Luísapassar a noite, ainda não há uma fogueira. Luísa d~rmita na esteirae Mamane Angelina está sentada no chão, de mãos pousadas sobre ocolo, silenciosa. De pé, João Xilim olha para a mulher, enrodilhada,sem dar acordo. Parece-lhe morta, um pavor abala-o e não consegueesconder por mais tempo a sua aflição. Mamane Angelina tranqüiliza-o.O choque foi grande, ela precisa de descansar e a velha ficará alitoda a noite, a fazer-lhe companhia.

- Olha, é melhor você acender uma fogueira. Estar triste agoranão adianta nada. Amanhã ela já há de estar quase boa ...

João Xilim, envergonhado com a observação de Mamane Ange-lina, apressa-se a ir buscar lenha e acender o fogo. E pensa quedeveria não aceitar a decisão da mãe de Marcelino e levá-lo para oseu alpendre, onde o filho a estará esperando. Mas tem medo de s~encontrar a sós com Luísa, inexperiente e desgostoso. E se ela vaImorrer esta noite? O coração aperta-se-lhe, sente a garganta seca eos olhos a arderem. Revolta-se contra o destino que faz nascer ofilho antes do tempo, morto antes de viver. Olha, porém, de novopara a mulher dormindo com uma respiração apressada e o desesperomuda-se em piedade.

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168 ESTóRIAS DE MOÇAMBIQUE

A noite está escura e das fogueiras que marcam o futuro bairrorestam agora apenas uns lumaréus rasteiros como se estrelas tivessemcaído aqui e acolá. Faz-se silêncio por toda a parte, protegendo asfamílias desabrigadas.

LuÍsa continua a respirar com dificuldade. Mamane Angelinacochila. Marcelino chegou, informou-se do que se passava, apertouamigavelmente a mão de João Xilim e disse:

- Se precisar de alguma coisa, tu chama logo a mim. Ouviste?LuÍsa abre os olhos, suspira. Admirada de se ver ali, quer falar,

mas as palavras empastam-se-Ihe na boca. Olha para Mamane Ange-lina e detém-se depois no marido. Recorda vagamente o que acon-teceu. Duas lágrimas toldam-Ihe a vista, um soluço prende-se-Ihe nopeito. Estende o braço dormente e agarra a mão do marido. JoãoXilim acaricia-lhe a cabeça. E ela fecha novamente os olhos e ficaassim por muito tempo, acordada e pensando em mais este bocadinhode esperança perdido.

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CARNEIRO GONÇALVES 169

CARNEIRO GONÇALVES

Antônio Carneiro Gonçalves nasceu em Braga, em 1941. Viveu largosanos em Moçambique. Colaborou na imprensa moçambicana. Faleceu em1974. Publicação póstuma: Contos e lendas (1980).

Malidza*Caminhai célere, ó jovens do povo de Quiteve, e vinde ouvir a

história de Malidza, que morreu de amor. Uma grande ternura agasa-lhava-lhe o corpo de ébano (que ela protegia para Kilomko, o guer-reiro) e punha nos seus olhos cintilações habitadas pelos gênios anti-gos das florestas. O colo guardava a macia tepidez das sombras e eratão silenciosamente como a luz que Malidza percorria as veredas, assavadas. Requestavam-na os mais expeditos: transformou em temeri-dade a audácia dos mais valentes. Caíram alguns no calor das refregas,peito trespassado pela lança dos guerreiros de Maruça. Havia nas suasgargalhadas duas coisas: a alegria da brisa das alvoradas que des-penteia as árvores e, também das árvores, a frescura da seiva.

Um dia apareceu na aldeia o nhamessoro para invocar Zúzu, oespírito das águas. Todas as moças acabadas de donzela r na últimalua, espantadas ainda pelo prodígio grandioso de um pouco de sangueentre as coxas, dançavam então o seu espanto. Dois embondeirossoberanos, tão cheios de rumores eucarísticos como dois altares, cru-zavam as ramagens por cima do terreiro lançando sobre as moçasuma bênção de sombra. Malidza, como as outras, dançava. Dançava eria. Kilomko, de longe, espreitava-lhe o corpo a requebrar-se nosespasmos da dança. Os seus feitos de guerra enchiam de espanto asaringas. Pela noite adiante, quando as famílias se acocoravam em tornodas fogueiras, os mais velhos evocavam Kilomko e os mais novos tre-miam de uma admiração sagrada.

Caminhai célere, ó jovens do povo de Quiteve, e vinde ouvir ahistória de Malidza que a certa hora de uma madrugada sem referênciaencontrou Kilomko. O guerreiro voltava dos seus combates, cabeçaemplumada, nos dedos firmes a lança em riste. Malidza estremeceu,nos olhos fundos a mesma grande timidez das gazelas que um pranto

* Reproduzido de CARNEIRO GONÇALVES, Antônio. Contos e lendas. Lisboa,Ed. 70, 1980. p. 18-20.

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6Cronologia

histórico-literária

1415 - Expedições portuguesas à África. Conquista de Ceuta (florescentecentro comercial, base naval muçulmana, testa de ponte atravésdo estreito de Gibraltar).

1419 Começo das viagens portuguesas de descoberta (descoberta ouredescoberta) - da Madeira; os primeiros batizados, de "Adão "e "Eva".Infante D. Henrique determina a expedição que ultrapassa o caboBojador (quebra da barreira física e psicológica do chamado"Mar das Brumas").

1439 - Descoberta dos Açores.1442 Navegantes portugueses obtêm ouro em pó, primeiramente através

da troca de gêneros com os nativos (Tuaregues).Estabelecida a primeira feitoria portuguesa em Arguim (ao suldo Cabo Branco).

1446 - Os portugueses Nuno Tristão, Diogo Gomes, João GonçalvesRibeiro e Nuno Fernandes de Baya chegam à Guiné.

1450 - Entre 1450 e 1500, cerca de 150 mil escravos negros foram,provavelmente, capturados.Descoberta e colonização de Cabo Verde.O infante D. Henrique é concessionário de todo o comércio, nacosta ocidental africana.- Os portugueses chegam a Cabo Verde.- Morre D. Henrique.O povoamento das ilhas de Cabo Verde inicia-se na ilha deSantiago.

1482 - Os portugueses chegam à foz do Zaire.1485 - D. João 11 incumbe Diogo Cão de implantar três padrões junto

ao Zaire (descobre toda a costa de Angola).Os contatos dos navegadores e guerreiros portugueses com ospovos angolares, que irão durar por quase um século e meio,levam aos entendimentos da Coroa portuguesa com o vasto impé-rio do Manicongo.

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sem razão liquefazia. Kilomko não pôde desviar o olhar e a lançacaiu-lhe pela primeira vez da mão invenCÍvel. Ficaram assim eterni-dades, silhuetas legendárias de uma aproximação cuja idade remontaà primeira caverna que o homem habitou.

Sabei, jovens do povo de Quiteve, que Kilomko esperava daguerra, para desposar Malidza, o fragor do último combate. Odiavaas guerras, mas queria pior aos bárbaros que a impunham à sua gente.Nunca se habituou às amputações da glória, àquele jeito suave comque o sangue dos mais moços embebia a terra, aos gemidos das gran-des agonias que despertavam os numes das florestas.

Mas um dia apareceu na aldeia o nhamessoro para invocar Zúzu,o espírito das águas. O tambor anunciou-o surdamente. Cessou adança das donzelas e um pedaço de lua tornou mais negro o perfildistante da montanha que assinalava o prinCÍpio do reino de Maruça.À primeira batida do tambor imobilizaram-se na posição em que foramsurpreendidas as ancas das dançarinas. Veio para o terreiro todo opovo da aldeia.

Seguiu-se a cerimônia do nhamessoro, o batuque, o estrépito dasvozes. Tódos viram aparecer do fundo das águas, recoberto de raízes,o novo oficiante. Malidza tentou esconder-se atrás das outras, evitarao olhar rapace do nhamessoro, as curvas adolescentes do seu corpo.Tinha chegado o momento da dádiva e o mago poderia escolher, àsua vontade, a jovem que mais o impressionasse. Malidza viu a febrenos olhos de Kilomko. Viu depois que o corpo lhe tremeu de dorenquanto o dedo do nhamessoro apontava para si.

Gritaram as mulheres saudando a escolha. Mas Malidza recuou,recuou sempre, levou consigo o sofrimento de Kilbmko e o espantodas outras mulheres que não compreendiam a fuga sacrílega.

Diz-se que a floresta matou Malidza.Mas notai, ó jovens do povo de Quiteve, que Kilomko sabe onde

repousa o corpo de Malidza, que foi encontrar no sítio onde a viupela primeria vez. Dois abutres debicavam-lhe os olhos. Levantarampara o céu quando Kilomko se aproximou. E o antigo guerreiro tam-bém sabe que o espaço agora é mais azul porque o encheram' de luzmais duas estrelas.

170 ESTóRIAS DE MOÇAMBIQUE

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172 CRONOLOGIA HISTóRICO-LITERÁRIA CRONOLOGIA HISTóRICO-LITERÁRIA 173

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1788

1818

18071814

1831 - O tráfico escravo é proibido no Brasil.1836 - Visconde de Sá da Bandeira decreta a abolição da escravatura,

nas possessões africanas portuguesas.1845 - Publicação do Boletim Oficial, em Angola.1849 - O angolano (possivelmente mestiço) José Maria da Maia Ferreira

publica Espontaneidades da minha alma.1853 a 1892 - A organização cultural cabo-verdiana (13 associações cul-

turais no período) assinala o pioneirismo de Cabo Verde, rela-tivamente às demais ex-colônias portuguesas, no desenvolvimentoda cultura.

1856 - Publica-se O escravo (ficção cabo-verdiana), de José Evaristode Almeida.

1863 - Emancipação dos escravos, nos Estados Unidos.1882 - Publica-se Ngá Muturi, de Alfredo Troni, jornalista português

em Angola.1884 a 1885 - Durante a conferência de Berlim: Inglaterra, França, Ale-

manha e outros países põem-se de acordo para ocupar determi-nadas regiões do território africano (França, Inglaterra e Alema-nha têm importantes estabelecimentos).

1891 Joaquim Cordeiro da Mata (negro, angolano) publica Filosofiapopular em provérbios angolenses. Autor de 114 contos angolanosmanuscritos e de poemas de temática africana.

1892 Republica-se O filho adulterino (prosa) do angolano Pedro FélixMachado.

1894 a 1899 - Publica-se o Almanach Luso-Africano, 2 volumes, comoo Almanach de lembranças (1851-1932), onde se divulgam pre-cursores das modernas literaturas africanas de expressão portu-guesa.

1896 William Burghardt Du Bois publica The supression of the Africanslave trade (Du Bois, Great Barrington, Massachusetts, 1868--1963, autor de The souls of black folk, edit. e fundo da rev.Crisis) .

1900 - Com o advogado das Antilhas Bri~âni€as, Sylvester Wil.liams,teria aparecido o termo "Pan-africalllsmo", quando defendIa suaposição respeitante a propriedades dos indígenas, em Londres,no Westminster Hall.

1902 a 1903 - Aparece a revista Luz e Crença, que reflete a vida jorna-lística e intelectual angolana da época.

1910 - Organiza-se a NAACP que teria servido de suporte a~ mov~ment?da "Black Renaissance" com Langston Hughes (Joplm, MIssoun,1902-1967, autor do poema "The negro speaks of rivers", publi-cado em Crisis, em 1921, e, entre outras obras, de Shakespearein Barlem e da antologia The poetry of the Negro and newNegro poets) e Countee Cullen [New York, 1903-1946, A., entreoutras obras, de The black Christ (1929), além de outras impor-tantes figuras.]

1487, 1488 - Respectivamente, partida de Bartolomeu Dias de Lisboae dobrar Ido cabo da Boa Esperança ..

1490 - Pero da Covilhã chega ao Cairo (recebido pelo imperador e im-pedido de lá sair, aí morrendo, por volta de 1520).

1497 a 1499 - Viagem de Vasco da Gama às Índias.1498 Os portugueses chegam a Moçambique.1499 Carta de D. Manuel ao Cardeal-protetor de Portugal em Roma

pede confirmação das Bulas e Breves pontifícios, onde se de~la:ainter alia, "Senhor da Guiné e da conquista, navegação e comercIOda Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia".Chegada do capitão Paulo Dias Novais ao reinado de Ngola.Início das lutas de ocupação colonial (A incumbência de D.Sebastião a Paulo Dias Novais para ocupar Angola precede-se deuma expedição do mesmo Novais, determinada por D. Catarina,viúva de D. João m, em 1559).

1587 - Duarte Lobo tem carta de capitão de todas as ilhas de CaboVerde (Início da Capitania Geral).

1626 - Movimento de resistência da rainha Ginga aos colonizadores emAngola.

1713 - Tratado de Utrecht, entre a Inglaterra e a Espanha, faculta aintroduzir escravos nas possessões espanholas da América, emnúmero de 4 800 por ano.

1770 a 1776 - Período das grandes fomes, no arquipélago de Cabo Verde.1787 - Regressará das colônias britânicas das Antilhas a Serra Leoa, u:n

primeiro grupo de libertos que fundou Freetown, a nova patnanegra. Em virtude de um célebre processo do escrav~ maltra-tado, James Somersett, a escravidão fora declarada Ilegal naGrã-Bretanha, em 1772.Criada em Londres a "African Association", destinada a promo-ver a exploração do continente negro, a incrementar o comércio ea autoridade política -da Grã-Bretanha.A Inglaterra extingue o tráfico em suas colônias.Tratado de Paris indica a necessidade de um acordo internacionalpara proibir o tráfico dos negros que o Congresso de Vienacondenou.Dá-se o primeiro grande movimento de retorno à África, quese chamou "American Society for Colonizing the free People ofColor", apoiado no juiz Bushrod Washington. A origem i~eoló-gica do movimento estaria na tese do Rev.do Robert Fmley,impressionado com a situação do negro americano, segundo aqual os negros poderiam melhorar, mas na África, pois Deusos tinha criado lá.

1820 - Organiza-se a "American Colonization Society", para coor?e~~rembarques e controlar contingentes de libertos para a LIbena(entre 1824 e 1847, quando a Libéria se emancipa), que setornaria, assim, uma espécie de colônia americana.

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174 CRONOLOGIA HISTóRICO-LITERÁRIA

1911 Publicam-se "Amores de uma creoula", de Antônio Arteaga, emnúmeros consecutivos de A Voz de Cabo Verde (Praia).

1912 Organiza-se a "Junta da Defesa dos Direitos de África", emPortugal, de onde sairia seis anos depois a "Liga Africana" (ramodo movimento "pan-africano").

1919 - Após o término da Primeira Grande Guerra, fica assim estabe-lecida .a situação: as colônias alemãs convertem-se em mandatosda Sociedade das Nações. O Camerun ficou dividido em duaszonas, a ocidental governada pela Inglaterr.a, e a oriental, pelaFrança. Tanganica, sob uma administração inglesa; Ruanda eBurundi, belga. A África Sul-Ocidental, sob o governo da UniãoSul-Africana. Desde 1908, a Bélgica ocupava o Congo, assimcomo Portugal, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé,Príncipe, Cabo Verde. À Espanha eram dependentes, afora seuprotetorado marroquino, a Guiné equatorial, o território de Ifni,o Saara ocidental, as praças de Ceuta e Melila.

- No congresso onde estava reunida a "Conferência da Paz", emParis, já começa a defender-se a tese de que a África deveriaser entregue aos africanos.

1920 a 1925 - Ergue-se o "Back to Africa Movement", como símbolode libertação e da morte, de todo o sofrimento social; MarcusAurelius Garvey funda um imaginário "Império Negro", intitula--se o "Presidente dos Estados Unidos de África", mobiliza maisde seis milhões de negros em associações.

1925 - Aparece o Livro da dor, contos de Moçambique.1928 - Aparece Ainsi paria ['onele, do médico haitiano Jean-Price Mars,

que oferece elementos para uma teoria da negritude, com umestudo etnográfico onde se revalorizam todos os ângulos dacultura africana, por cujos acentos "pan-africanistas", ou de"african-personality" prestam-se aos movimentos dos estudantesnegros, em Paris (o da "negritude"). Por essa altura, já apare-cera o romance Batouala, de René Maran, funcionário martini-quenho da administração colonial francesa no Oubangui-Chari,hoje Império Centro Africano, o provável precursor mais diretoda "negritude" (Senghor a ela se refere como a primeira obraque teria definido, em estilo negro, a alma negra).

1929 Antônio Pedro, precursor da literatura cabo-verdiana visita San-tiago e "redes cobre" Cabo Verde, para a poesia da modernidade(Antônio Pedro: Praia, 1909 - Moledo, Minho, 1966). Apareceo romance O segredo da morta, do angolano Assis Júnior.

1930 - Nos anos 30, estudantes negros reúnem-se em torno de revistascomo Légitime D'éjense, L'Étudiant Noir e Présence Ajricaine,onde, sem distinções de classe e de tribos, intencionam unir-sepela afirmação da cultura negra, para a conscientização do negroacerca de sua própria condição. É de notar-se que esta está nacorrente de iniciativas de reabilitação de valores negros, antece-dida pela publicação da Anthologie negre, de Blaise Cendra.rs

CRONOLOGIA HISTóRICO-LITERÁRIA. fff

(publicada em 1921), onde a produção literária do negro cornosujeito poético aparece com a informação sobre os traçol daicu!t~ras negras, p~eced~da da divulgação do jazz (iniciada pelo:n~~IC? negro I:0UlS MItchell) na Europa e, enfim, por todaa 11InICIatIvas congeneres que se alastraram pelos Estados UnldOI •a que Langston Hughes chamara de "Renascimento negro" (anolde 1920 a 1930).Légitime Déjense, 1932; L'Étudiant Noir, 1934; antecessora. d.Présence Ajricaine (1947-1968).

1932 Tomás Vieira da Cruz publica Quissange - Saudade negra.1935 O poeta cabo-verdiano Jorge Barbosa publica Arquipélago.1936 - Surge a revista Claridade (Mindelo, São Vicente, 1936-1960),

através da qual se estimula o moderno movimento cultural cabo--verdiano, pela redescoberta das raízes crioulas. Época de influên-cia da literatura brasileira. Elementos destacados são BaltasarLopes, Jorge Barbosa, Manuel Lopes.

1937 Geraldo' Bessa Victor publica Ecos dispersos.1938 Castro Soromenho publica Nhari.1943 - Publicam-se os Sonetos, do moçambicano Rui de Noronha.1944 - Surge a revista cabo-verdiana Certeza. Época de influência do

neo-realismo, caracteriza-se pelos traços reivindicatórios, sobroas bases da cabo-verdianidade. Principais elementos são NunoMiranda, José Spencer, Arnaldo França.Aimé Césaire publica Cahier d'un retour au pays natal (Pul.,Présence Africaine) integralmente. Tendo já aparecido em 1939,emprega a palavra "negritude".O cabo-verdiano Baltasar Lopes publica Chiquinho.Apar~ce a Anthologie de la nouvelle poésie negre et rnalRClch"orgamzada por Léopold Sédar Senghor (Paris, Presses Unlverll-taires), com prefácio de J.-P. Sartre, "Orphée noir", com amploquestionamento da negritude.Movimentos dos jovens intelectuais de Angola, com o lema do"Vamos descobrir Angola" que é ponto de articulação da modernaliteratura angolana.Surge Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império, em LI.bol.Publica-se a Antologia dos novos poetas de Angola, do Departl10mento Cultural da "Associação dos Naturais de Angola", 011111tarde fechado.

1951 a 1952 - Surge a revista Mensagem, a voz dos naturais de Anaolll,na fase chamada de "resistência solidária", contando, entre outrolcom Mário Antônio, Agostinho Neto, Mário de Andrade. '

1955 - Aparece o Itinerário, em Moçambique.1957 - Surge, em Angola, Cultura lI, que reúne os escritores Aioltlnha

Neto, Antero Abreu, Mário Lopes Guerra, Carlos Brvedolll.Luandino Vieira, Óscar Ribas e outros.

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176 INFORMAÇÁOHISTóRICO-LITERÁRIA

1958 - Surge o Suplemento Cultural, de Cabo Verde, onde se reflete aintensa fase de· protesto.

1960 - Aparece Força Nova (antologia de pré-universitários de Luanda),na época repressiva das lutas de emancipação.

1961 - Ataque às prisões de Luanda. Início da luta armada.Situação de Angola é debatida na ONU.

1962 - Surge Selá. Página dos Novíssimos - de Cabo Verde -, comdois números, tendo, como principais figuras, Rolando Vera -Cruz Martins, Jorge Miranda Alfama, Osvaldo Osório e para aíconvergem "o compromisso telúrico de Claridade, a ideologiade Certeza e a determinação de certos poetas do Suplemento".Surge "Artes e Letras", d'A Província de Angola, com CarlosErvedosa, que reuniu quase todos os escritores então militantes.

Anos 60-70 - Começam os movimentos de descolonização portuguesa.Tais movimentos chegam ao desfecho favorável, com a liberta-ção dos países da África portuguesa, na seguinte seqüência: Mo-çambique, 25-06-75; Cabo Verde, 05-06-75; Angola, 11-11-75.

Informação histórico-literária

CHATELAIN, Héli. Contos populares de Angola. Apres. de A. A. Men-des Corre a, pref. de Fernando de Castro Pires de Lima, trad. deM. Garcia da Silva. Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1964.

ERVEDOSA,Carlos. Itinerário da literatura angolana. Luanda, Culturang,1972.

FERREIRA, Manuel. A aventura crioula. 2. ed. Lisboa, Plátano, 1973 .. Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa, Institutode Cultura Portuguesa, 1977. 2 v .. No reino de Caliban. Lisboa, Seara Nova, 1975-1976. 2 v.

MENDES, Orlando. Sobre literatura moçambicana. Maputo, InstitutoNacional do Livro e do Disco, 1982.

PARSONS, Elsie Clews. Folclore do arquipélago de Cabo Verde. Intro-dução de Fernando de Castro Pires de Lima. Trad. de JorgeSampaio. Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1968.

RIBAS, Óscar. Misoso. IN/UEE, 1979. v. 1.