estatuto das cidades, mais de 10 anos depois

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Texto, sobre o estatuto das cidades.

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  • 213rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013

    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    edsio fernandes*

    ESTATUTO DA CIDADE, MAIS DE 10 ANOS DEPOIS:razo de descrena, ou razo de otimismo?

    resumo A Lei Federal de Poltica Urbana o Estatuto da Cidade, de 2001 tem sido amplamente considerada interna-cionalmente como um esforo pioneiro no sentido da construo de um marco regulatrio mais adequado para oferecer suporte s tentativas governamentais e sociais de promoo da reforma urbana. Contudo, passados mais de 10 anos de sua aprovao, h muitos debates significativos sobre sua eficcia. Mas o que exatamente se pode esperar da nova legislao urbanstica? O que preciso para que a lei possa ser plenamente aplicada e socialmente eficaz? Quais so a natureza, as possibilidades e as restries de uma tal legislao progressista em face do processo sociopoltico mais amplo? Este artigo pretende discutir tais questes por meio de uma avaliao crtica da aplicao especfica do Estatuto da Cidade, visando tambm a fornecer elementos para uma discusso mais geral sobre as expectativas, reais e falsas, existentes em torno das leis urbansticas que tm sido aprovadas em diversos pases para regulao de direitos e gesto fundiria, ordenamento territorial, planejamento urbano e habitao social.

    palavras-chave Legislao urbana. Estatuto da Cidade. Reforma urbana.

    keywords Urban legislation. City Statute. Urban reform.

    * Professor e consultor internacional. Membro da DPU Associates (Inglaterra) e da Teaching Faculty of the Lincoln Institute

    of Land Policy (Estados Unidos da Amrica). E-mail: .

    CITY STATUTE, MORE THAN TEN YEARS LATER:a reason for disbelief, or for optimism?

    abstract Brazils national urban policy law - the 2001 City Statute - has been widely regarded internationally as a groun-dbreaking effort to conceive a regulatory framework more conducive to providing adequate legal support to governmental and social attempts to promote urban reform. However, more than 10 years have passed since its approval, and there are significant debates about its efficacy. But, what exactly can be expected of the new urban law? What is required for it to be fully enforced, and socially effective? What are the nature, possibilities and constraints of such a progressive urban law vis--vis the broader sociopolitical process? This paper aims to discuss such questions through a critical assessment of the enforce-ment of Brazils City Statute, also aiming to provide elements for the more general discussion on the growing, real as well as false, expectations existing around the newly approved urban laws in other countries governing land rights and management, territorial organization, urban planning, and social housing.

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    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    A Lei Federal de Poltica Urbana o Estatuto da Cidade foi aprovada em 2001 depois de doze anos de intensas discusses e negociaes no Congres-so Nacional. Desde ento, a lei tem sido aclamada internacionalmente, a ponto de

    o Brasil ter sido inscrito no Rol de Honra da ONU (UN-HABITAT) em 2006 to

    somente por t-la aprovado. Abertamente invejado por formuladores de polticas

    pblicas e gestores urbanos de diversos pases, o Estatuto da Cidade tem sido repe-

    tidamente promovido pela importante iniciativa internacional Aliana das Cidades/

    Cities Alliance como sendo o marco regulatrio mais adequado para oferecer bases

    jurdicas slidas para as estratgias governamentais e sociopolticas comprometidas

    com a promoo da reforma urbana.

    No entanto, nos ltimos anos tem crescido entre diversos setores no Brasil o

    sentimento de descrena nessa lei-marco que na melhor das hipteses no teria

    pegado, ou que na pior das hipteses teria contribudo para agravar ainda mais o

    processo histrico de segregao socioespacial das cidades brasileiras. Este artigo

    pretende examinar a validade dessa crtica ao Estatuto da Cidade, e para tanto me

    proponho a discutir como os princpios e possibilidades da nova ordem jurdico-

    urbanstica consolidada pela lei federal tm sido efetivamente compreendidos e

    assimilados por juristas, urbanistas, gestores pblicos e pela sociedade brasileira,

    especialmente no contexto dos novos Planos Diretores Municipais que tm sido

    aprovados desde 2001.

    A aprovao da lei federal em 2001 foi em grande medida resultado de um

    amplo processo nacional de mobilizao sociopoltica clamando pela promoo de

    reforma urbana no Brasil. O Estatuto da Cidade regulamentou o captulo original

    sobre poltica urbana que tinha sido aprovado pela Constituio Federal de 1988,

    captulo esse que tambm tinha sido precedido por uma mobilizao sociopoltica

    sem precedentes, e que se manifestou especialmente por meio da Emenda Popular

    pela Reforma Urbana.

  • 215rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013

    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    J discuti o captulo consti-

    tucional e o Estatuto da Cidade

    em detalhe em outros trabalhos;1 para os fins

    deste artigo, basta destacar que a lei fe-

    deral:

    - firmemente substituiu a no-

    o dominante na ordem

    jurdica de propriedade

    privada individual sem maiores

    qualificaes pela noo das

    funes sociais da proprieda-

    de e da cidade, de forma a dar

    suporte s polticas pblicas de incluso socioespacial

    e s estratgias de democratizao do acesso ao solo urbano e moradia nas

    cidades;

    - criou diversos processos sociopolticos, mecanismos jurdico-institucionais, ins-

    trumentos jurdicos e urbansticos, bem como recursos financeiros destinados

    a viabilizar a implementao de uma gesto urbana justa e eficiente, tendo co-

    locado nfase na necessidade de captura pela comunidade de pelo menos parte

    da enorme valorizao imobiliria que tem sido gerada pela comunidade e pela

    ao estatal, mas que tem sido tradicionalmente apropriada quase que exclusi-

    vamente pelos proprietrios de terras e imveis;

    - props um sistema de governana urbana amplamente descentralizado e de-

    mocratizado, no qual diversas dinmicas de articulao intergovernamental e

    parcerias do setor estatal com os setores privado, comunitrio e voluntrio fo-

    ram concebidas juntamente com diversas formas de participao popular nos

    processos decisrios e de elaborao legislativa; e

    - reconheceu os direitos coletivos dos residentes em assentamentos informais

    consolidados segurana jurdica da posse, bem como a regularizao susten-

    tvel de seus assentamentos.

    Juntas, essas dimenses certamente constituram um novo marco de governana

    da terra urbana no Brasil.

    1. Vide, entre outros, Fer-nandes (1995, 2007, 2011); Fernandes e Rolnik (1998).

  • 216 rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013

    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    Dada a natureza altamente descentralizada do federalismo brasileiro

    considerado para muitos analistas como sendo o sistema mais descentralizado

    no mundo hoje , a materializao efetiva desse novo marco jurdico inovador foi

    colocada em grande medida nas mos das administraes municipais, especialmente

    por meio da formulao de Planos Diretores Municipais PDMs. Anteriormente

    aprovao da lei federal, a enorme maioria dos municpios no tinha um

    marco jurdico minimamente adequado para a disciplina dos processos de uso,

    ocupao, parcelamento, desenvolvimento, preservao, conservao, construo, e

    regularizao do solo urbano. A maioria dos municpios no tinha sequer dados e

    informaes bsicas, mapas, fotos areas e outros materiais relevantes sobre seus

    prprios territrios e processos socioespaciais. Dos cerca de 1.700 municpios que

    passaram a ter a obrigao legal de aprovar PDMs de forma a materializar o Estatuto

    da Cidade, cerca de 1.450 j o fizeram de alguma forma fato que em si mesmo

    sem dvida admirvel.

    Contudo, desde a aprovao do Estatuto da Cidade, ao longo desta primeira d-

    cada do novo sculo, as cidades e as realidades urbanas brasileiras tm passado por

    mudanas profundas. As taxas de crescimento urbano no pas certamente caram,

    mas ainda so relativamente altas, agora especialmente nas cidades pequenas e de

    mdio porte, levando formao de um novo sistema de regies metropolitanas,

    com 30 delas j reconhecidas oficialmente. O crescimento econmico do pas e a

    formao de uma nova classe mdia/classe trabalhadora precria tm agravado

    problemas urbanos h muito existentes de transporte pblico e mobilidade, impac-

    to ambiental e violncia urbana. Diversos problemas de infraestrutura urbana e a

    crise energtica nas cidades tambm tm se manifestado e agravado de diversas

    formas. A crise fiscal das administraes pblicas, especialmente no mbito muni-

    cipal, generalizada.

    A profunda crise fundiria e habitacional no Brasil constituda ao longo de

    sculos tem ganhado novos contornos. O dficit habitacional continua enorme

    (calculado entre 6 e 7 milhes de unidades), e, apesar dos nmeros impressionan-

    tes de unidades j construdas e/ou contratadas no contexto do Programa Nacional

    de Habitao Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), esse esforo do governo fede-

    ral ainda no chegou plenamente aos setores mais pobres, sendo que o programa

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    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    tem sido criticado, entre outras razes, por ter reforado processos histricos de

    segregao socioespacial e especulao imobiliria. Os nveis de valorizao de

    terras, construes e aluguis nas reas urbanas tm batido recordes histricos,

    agora no contexto de um mercado imobilirio cada vez mais globalizado. H nas

    cidades brasileiras um enorme estoque de terras urbanas providas com servios

    pblicos mas mantidas vazias por seus proprietrios (correspondendo em alguns

    casos a 20% da malha urbana do municpio/regio metropolitana), bem como de

    construes vazias, abandonadas e/ou subutilizadas (que chega a 5,5 milhes de

    unidades, de acordo com certos clculos). H tambm um enorme estoque, ain-

    da no devidamente calculado, de bens de propriedade pblica da administrao

    direta e indireta, em todos os nveis governamentais, que no tm claramente

    cumprido uma funo social.

    As taxas de crescimento urbano informal seguem altas, agora com a maior den-

    sificao/verticalizao de assentamentos antigos; formao de novos assentamentos

    (favelas e loteamentos irregulares) usualmente em reas perifricas e cada vez mais

    em cidades pequenas e de mdio porte; bem como o surgimento/renovao de ou-

    tras prticas informais como casas de frente e fundo, aluguel informal, cortios

    etc. O desenvolvimento urbano nas novas fronteiras econmicas, especialmente na

    Amaznia Legal, tem se dado amplamente mediante processos informais. H um

    nmero crescente de disputas fundirias e conflitos socioambientais por todo o pas.

    Tambm entre os grupos sociais mais privilegiados tm sido muitas as prticas

    que envolvem alguma forma de violao das leis fundirias, urbansticas, ambien-

    tais e edilcias. A proliferao de condomnios urbansticos prtica que no tem

    base jurdica slida no pas e de loteamentos fechados prtica manifestamente

    ilegal que tem ocorrido nas reas perifricas dos grandes municpios, ou mesmo

    em outros municpios metropolitanos, tem feito com que pela primeira vez ricos e

    pobres estejam disputando o mesmo espao nas cidades.

    Por um lado, ao longo das duas ltimas dcadas, um volume gigantesco de re-

    cursos pblicos imveis, isenes tributrias, crditos de todo tipo, subsdios finan-

    ceiros, incentivos fiscais, direitos de uso e construo tem sido cada vez mais

    transferido pelas administraes pblicas em todos os nveis governamentais

    para o setor privado, promotores urbanos, construtores e agentes imobilirios.

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    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    Esse deslocamento crescente de recursos pblicos tem se dado geralmente no

    contexto de programas de renovao urbana, revitalizao de reas centrais, re-

    qualificao de centros histricos, grandes projetos urbanos, modernizao de

    infraestrutura urbana/portos/aeroportos, bem como de grandes eventos esportivos

    como a Copa do Mundo e os Jogos Olmpicos. Por outro lado, alm dos dados sobre

    os processos de especulao imobiliria e gentrificao de reas, o nmero de des-

    pejos e remoes foradas de comunidades que vivem em assentamentos informais

    consolidados h muitas dcadas, em muitos casos cada vez mais assustador,

    no apenas no Rio de Janeiro e em So Paulo, mas tambm em outros municpios

    anteriormente comprometidos com a promoo de reforma urbana, como Belo Ho-

    rizonte e Porto Alegre. O processo de reforma urbana que tinha sido to eloquente

    nas dcadas de 1980 e 1990 e que foi fundamental para a aprovao do Estatuto da

    Cidade parece ter perdido flego, e a questo fundamental que tem repetidamente

    sido colocada por diversos setores sociais tem sido: de quem e para quem so as

    cidades, e quem tem sido efetivamente beneficiado pelas enormes transferncias de

    recursos pblicos?

    Nesse contexto, o que aconteceu ento com o Estatuto da Cidade e sua agenda de

    reforma urbana? A lei federal teria fracassado, como um grupo crescente de cticos

    parece acreditar? Ao invs de contribuir para a promoo de incluso socioespacial,

    a lei teria perversamente contribudo para o processo crescente de mercantilizao

    das cidades brasileiras e para a maior periferizao dos pobres como muitos tm

    argumentado?

    Passados mais de dez anos da aprovao da lei federal, uma avaliao ampla e

    crtica do j no to novo marco jurdico de governana da terra urbana por ela con-

    solidado e especialmente das iniciativas municipais encarregadas de implemen-

    t-lo se faz urgentemente necessria. Trata-se de um momento de reflexo que

    requer organizar as principais ideias, debates e experincias que esto por trs da

    aprovao do Estatuto da Cidade, assim como recuperar seus princpios e objetivos

    histricos. Fazer a crtica da ao dos principais atores envolvidos fundamental

    para corrigir erros, mudar rumos e fazer avanar a reforma urbana no pas. Uma

    tal avaliao necessria sobretudo para determinar se e como os PDMs tm efeti-

    vamente traduzido os princpios gerais do Estatuto da Cidade em regras e aes,

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    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    identificar e discutir quais tm sido os principais obstculos jurdicos e sociais

    implementao plena da lei federal, bem como para discutir se e como a sociedade

    brasileira tem feito uso efetivo das diversas possibilidades jurdicas e sociopolticas

    criadas pelo Estatuto da Cidade para reconhecimento de uma srie de direitos cole-

    tivos e sociais criados pela nova ordem jurdico-urbanstica.

    Meus comentrios a seguir so baseados em minha experincia pessoal lidando

    diretamente com o tema, bem como em uma srie de estudos de casos, levantamen-

    tos e estudos comparativos que j se encontram disponveis.2

    A descrena no Estatuto da Cidade

    Antes de se fazer qualquer avaliao sobre a lei federal, preciso destacar que o Estatuto da Cidade Lei Federal n 10.257/2001 se insere em amplo processo de reforma jurdica que tem sido promovido no Brasil h pelos

    menos trs dcadas, tendo como principais antecedentes diretos as Leis Federais

    n 6.766/1979 (Parcelamento do Solo Urbano), n 7.347/1985 (Ao Civil Pbli-

    ca) e n 9.790/1999 (OSCIPs); a Constituio Federal de 1988 (especialmente os

    2. Vide, especialmente, Santos Jr. e Montandon (2011); Schult, Silbert e Souza (2010); Cymbalista e Santoro (2009); vide, tam-bm, o Banco de Experin-cias regularmente mantido e atualizado pela Secretaria de Programas Urbanos do Ministrio das Cidades (disponvel em: ).

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    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    arts. 182 e 183, que dispem sobre a Poltica Urbana); e a Emenda Constitucional n

    26/2000 (que incluiu o direito de moradia no rol dos direitos sociais).

    Desde sua aprovao, a lei federal tem sido complementada por uma longa srie

    de outras leis federais: Medida Provisria n 2.220/2001 (Concesso de uso espe-

    cial para fins de moradia); Leis Federais n 11.079/2004 (Parcerias pblico-priva-

    das); n 10.931/2004 (Crdito e registro imobilirio); n 11.107/2005 (Consrcios

    pblicos); n 11.124/2005 (lei de iniciativa popular que criou o Fundo Nacional de

    Habitao de Interesse Social FNHIS); n 11.445/2007 (Poltica de Saneamento);

    n 11.481/2007 (Terras da Unio); n 11.888/2008 (assistncia tcnica para comu-

    nidades); n 11.977/2009 (criou o Programa Minha Casa, Minha Vida PMCMV

    e disps sobre regularizao fundiria); n 11.952/2009 (Amaznia Legal); n

    12.305/2010 (Poltica de Resduos Slidos), a mais recente sendo a Lei Federal n

    12.608/2012 (Poltica Nacional de Defesa e Proteo Civil).

    Todas essas so direta ou indiretamente leis urbansticas aprovadas na esfera

    federal, sem falar das diversas convenes e tratados internacionais que o Brasil tem

    assinado e ratificado (especialmente sobre direitos de moradia); nas incontveis leis

    ambientais e sobre patrimnio cultural, desapropriao e registro imobilirio apro-

    vadas tambm na esfera federal; nos projetos de leis em discusso (especialmente

    o PL n 3.057/2000, que trata do parcelamento do solo urbano e dos condomnios

    urbansticos, e o chamado Estatuto da Metrpole); nos anteprojetos (especialmente

    o que dispe sobre resoluo de conflitos fundirios); bem como nos igualmente

    incontveis Decretos, Resolues do Conselho Nacional das Cidades, Resolues do

    CONAMA e Instrues Normativas da Caixa Econmica Federal.

    A mera listagem dessas leis e outras normas federais em vigor deixa claro que

    uma nova ordem jurdico-urbanstica, articulada e compreensiva, sofisticada mes-

    mo, se constituiu no Brasil nas ltimas trs dcadas, inclusive com o reconhecimen-

    to constitucional do Direito Urbanstico como ramo autnomo de Direito Pblico

    que tem como princpios paradigmticos prprios as funes socioambientais da

    propriedade e da cidade e a gesto democrtica das cidade. Diretamente com-

    prometida com a agenda sociopoltica da reforma urbana e etapa crucial na cons-

    truo nacional e internacional do to clamado direito cidade , a ordem jurdica

    brasileira j mudou significativa e estruturalmente.

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    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    Alm disso, essa ordem jurdico-urbanstica federal tem sido ainda mais am-

    pliada desde 2001 com a aprovao de centenas de leis urbansticas em todas as

    esferas governamentais, e especialmente com a aprovao dos mais de 1.400 Planos

    Diretores Municipais.

    Ao mesmo tempo, tambm uma nova or-

    dem institucional de natureza urbanstica

    se constituiu na esfera federal com a cria-

    o em 2003 do Ministrio das Cidades; a convocao de

    Conferncias Nacionais/Estaduais/Municipais das

    Cidades bienalmente desde ento; a instala-

    o e ao do Conselho Nacional das Cidades;

    a ao da Caixa Econmica Federal considerada

    como o maior banco pblico em ao no mun-

    do; bem como os diversos planos e programas

    federais sobre temas urbanos, especialmente o Plano de

    Acelerao do Crescimento (PAC) e o mencionado PMCMV, que, considerados jun-

    tos, constituem o maior investimento jamais feito na histria das polticas pblicas

    da Amrica Latina.

    A constituio tanto dessa nova ordem jurdico-urbanstica, quanto dessa nova

    ordem institucional sobre poltica urbana, fundamentalmente uma conquista

    social, resultado de um processo histrico de mobilizao social renovada envol-

    vendo milhares de atores: associaes comunitrias, movimentos sociais de todo

    tipo, ONGs, Igrejas, sindicatos, municpios, partidos polticos, e mesmo setores do

    capital imobilirio. Em especial, desde a dcada de 1980 inicialmente com a mo-

    bilizao pela aprovao da Emenda Popular pela Reforma Urbana , o Frum Na-

    cional de Reforma Urbana (FNRU) tem lutado pelo reconhecimento constitucional

    pleno, ainda que tardio, da questo urbana e habitacional; pela descentralizao,

    democratizao e participao popular dos/nos processos decisrios; pela completa

    regulamentao do captulo constitucional sobre poltica urbana; e pela criao de

    um aparato institucional slido na esfera federal sobre a chamada questo urbana.

    Contudo, nos ltimos anos o FNRU, entre outros importantes atores sociopol-

    ticos, tem fortemente denunciado:

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    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    - o crescimento absurdo da especulao imobiliria no pas, com frequncia como

    resultado da utilizao elitista dos novos recursos gerados (venda em leiles de

    Certificados de Potencial Adicional de Construo CEPACs e outros) como

    resultado das novas estratgias de gesto territorial e urbana;

    - a suposta liberao dos valores imobilirios por grandes eventos e projetos,

    levando renovao dos processos de segregao socioespacial;

    - o abuso dos argumentos jurdicos de interesse pblico e de urgncia, que

    tem justificado toda uma srie de desrespeitos sistemticos da ordem jurdico-

    administrativa pelas administraes pblicas;

    - o enorme impacto socioespacial e socioambiental dos programas federais e outros;

    - o aumento alarmante dos conflitos fundirios, dos preos de aluguis, da infor-

    malidade urbana, dos despejos e remoes; e

    - o agravamento dos problemas urbano-ambientais tradicionais, como as crises do

    sistema de transporte pblico e mobilidade e do sistema de saneamento bsico.

  • 223rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013

    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    Acima de tudo, por toda parte muitos setores sociais tm criticado a mercantili-

    zao crescente e abusiva das cidades brasileiras, que, para alm de serem o lugar da

    produo capitalista ps-industrial, so tambm cada vez mais o objeto mesmo dessa

    produo capitalista na escala global. Esse processo de mercantilizao das cidades

    tem demandado o reforo da cultura jurdica individualista e patrimonialista tradi-

    cional, vigente e dominante pr-Estatuto da Cidade, com a propriedade imobiliria

    concebida quase que exclusivamente como mercadoria, seu valor de troca prevale-

    cendo sobre qualquer valor de uso, e a possibilidade de usar/gozar/dispor do bem

    imvel sendo tambm interpretada como a possibilidade livre de no usar/gozar/

    dispor do bem em outra palavras, de especular.

    O que aconteceu, ento, com a reforma urbana? Como explicar a enorme de-

    fasagem entre essa ordem jurdica ampla e sofisticada; essa ordem institucional

    compreensiva e mais do que nunca dotada de enormes recursos financeiros; e as

    alarmantes realidades urbanas e socioambientais do pas?

  • 224 rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013

    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    Por um lado, a nova ordem jurdico-urbanstica em grande parte ainda

    desconhecida por juristas e pela sociedade, sendo tambm em grande parte objeto

    de disputas jurdicas e disputas sociopolticas que colocam enormes desafios

    sua eficcia jurdica e social. Por outro lado, o Ministrio das Cidades tem sido com

    frequncia esvaziado e/ou atropelado financeira e politicamente pela Presidncia

    da Repblica e/ou por outros Ministrios; e o Conselho das Cidades tem sido

    sistematicamente esvaziado e/ou atropelado pelo Ministrio das Cidades e por

    outros Ministrios, tendo tido dificuldades de renovao da mobilizao dos atores

    sociopolticos envolvidos. Quando no faltam projetos, h duplicidade, ineficincia,

    desperdcio, falta de continuidade e muita corrupo na gesto urbana

    fragmentada em todas as esferas governamentais.

    nesse contexto que tm crescido as reaes de descrena em relao ao Estatuto

    da Cidade por parte de urbanistas, gestores pblicos e setores da sociedade. A lei fe-

    deral tem sido mesmo abertamente demonizada por muitos, declarada culpada pelos

    processos recentes de segregao socioespacial e pela apropriao dos instrumentos

    de gesto territorial urbana como os CEPACs por setores conservadores, que es-

    tariam assim gerando novas formas de velhos processos de socializao dos custos

    e privatizao dos ganhos e de reconcentrao de servios e equipamentos pblicos.

    A crtica legtima?

    Mas, o problema mesmo da lei federal? Pessoalmente, acredito que esta a hora de se perguntar: houve mesmo uma compreenso adequada por urbanistas, gestores e juristas e pela sociedade acerca da natureza e das implica-

    es da nova ordem jurdico-urbanstica? Os novos espaos jurdicos e sociopolti-

    cos criados tm sido ocupados? Seus princpios esto sendo traduzidos em polticas

    urbanas? Seus direitos coletivos e sociais esto sendo demandados pela populao?

    Seus princpios paradigmticos esto sendo defendidos pelos tribunais?

    Na base da descrena acerca do Estatuto da Cidade, h diversos fatores culturais

    e sociopolticos de fundo que devem ser considerados com o devido flego, mas que

    para fins deste artigo sero apenas brevemente mencionados:

    - a percepo ainda dominante no Brasil acerca do Direito e da lei, dada a forte

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    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    tradio cultural e sociopoltica de legalismo messinico, com o Direito

    geralmente considerado como sistema objetivo, fechado em si mesmo, neutro e

    a-histrico, levando assim a uma viso meramente instrumental (para resolver)

    e no processual da lei; so poucos os que compreendem que, muito mais

    do que mero instrumento tcnico, o Direito campo aberto de disputas, (mais)

    uma arena sociopoltica para manifestao, confrontao e, em alguns casos,

    resoluo de conflitos;

    - o imediatismo das demandas sociais que certamente compreensvel, se con-

    siderados o volume dos problemas urbanos e socioambientais acumulados e a

    urgncia de seu enfrentamento, mas que ignora a histria secular de abandono

    da questo urbana e a necessidade de mais tempo e especialmente de continui-

    dade de aes para seu efetivo enfrentamento e superao;

    - a percepo ainda dominante do Estado e do aparato estatal, ainda essencial-

    mente assistencialista e clientelista, consequncia da tradio de positivismo e

    formalismo jurdicos que ainda reduz o pblico ao estatal; e

    - a percepo ainda dominante do planejamento territorial urbano como sen-

    do a narrativa espacial exclusiva, dotada de racionalidade tcnica e expres-

    sando valores ideais, e como tal totalmente desvinculada das dinmicas dos

    mercados imobilirios.

    Sobretudo, uma avaliao justa do Estatuto da Cidade requer a devida compre-

    enso de como seus principais contedos tm sido materializados pelas leis urba-

    nsticas especialmente na esfera municipal e pelas polticas urbanas em todas

    as esferas, quais sejam: as funes socioambientais da propriedade e da cidade; os

    princpios de poltica urbana includente; os instrumentos, mecanismos, processos e

    recursos de gesto urbana justa e eficiente; a incorporao da participao popular;

    e a regularizao de assentamentos informais.

    Em termos conceituais, o Estatuto da Cidade consolidou um novo paradigma

    jurdico sobre a questo da propriedade imobiliria, concebida no mais apenas em

    funo do reconhecimento dos direitos individuais, mas tambm e sobretudo em

    funo do reconhecimento das responsabilidades e obrigaes sociais que resultam

    da condio de ser proprietrio de um bem imvel, bem como dos direitos coletivos

    e sociais sobre o solo urbano e seus recursos. A funo social que na nova ordem

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    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    jurdico-urbanstica a condio mesma de reconhecimento do direito privado de

    propriedade deve ser determinada por planos diretores e leis urbansticas e am-

    bientais, especialmente na esfera municipal. Alm de consagrar a separao entre

    direito de construir e direito de propriedade, promovendo uma plena ruptura com

    a tradio de civilismo jurdico e mesmo com o avano do Direito Administrativo

    nesse sentido, o Estatuto da Cidade consolidou a interpretao de que, muito mais

    do que mera limitao administrativa da propriedade, a funo social acarreta o

    poder de obrigar o proprietrio a certos comportamentos. Trata-se assim menos do

    reconhecimento de um direito de propriedade, e mais de direito propriedade:

    um direito sem contedo predeterminado e cujos valores sociais de uso coexistem

    e em muitos casos superam o seu valor econmico de troca.

  • 227rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013

    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    O Estatuto da Cidade bebeu assim na

    fonte do Direito Pblico contemporneo,

    expressando uma ordem pblica

    maior do que a ordem estatal

    tudo o que estatal pblico, mas

    nem tudo o que pblico es-

    tatal , e como tal reconheceu

    um conjunto de direitos coletivos:

    ao ordenamento territorial; preser-

    vao ambiental; regularizao

    fundiria dos assentamentos infor-

    mais consolidados; participao

    em processos descentralizados

    e democratizados, bem como o

    direito social de moradia. A possibili-

    dade de defesa coletiva em juzo desses direitos

    coletivos e interesses difusos em matrias de

    ordem urbanstica mesmo contra o Estado foi reconhecida e aberta para indi-

    vduos, grupos, ONGs e para o Ministrio Pblico. Ainda est para ser devidamente

    enfrentada a discusso acerca do significado e das implicaes jurdicas da noo

    das funes sociais da cidade, bem como sobre a necessidade de reconhecimento

    da responsabilidade territorial do poder pblico para alm das j reconhecidas for-

    mas de responsabilidade poltica, administrativa e fiscal da administrao pblica.

    A ordem jurdica consolidada pelo Estatuto da Cidade requer uma mudana

    significativa tambm quanto compreenso da natureza jurdica do planejamento

    territorial: trata-se de obrigao do poder pblico, direito coletivo da sociedade, e

    como tal no apenas uma poltica discricionria a falta de seu cumprimento

    gera improbidade administrativa, sendo que Prefeitos j perderam seus mandatos

    como consequncia. Alm de regular os processos de uso/ocupao/parcelamento

    do solo urbano, cabe ao poder pblico induzir diretamente os movimentos do mer-

    cado imobilirio, atuando assim sobre os terrenos vazios e propriedades abandona-

    das e/ou subutilizadas. Alm de reconhecer e promover a valorizao da posse, cabe

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    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    tambm ao planejamento territorial determinar as condies de cumprimento da

    funo social da propriedade pblica.

    Uma questo fundamental de poltica urbana, mas que sempre foi negligencia-

    da na tradio do urbanismo brasileiro, foi finalmente enfrentada pelo Estatuto da

    Cidade: quem paga, e como, a conta do financiamento do desenvolvimento urbano.

    Afirmando o princpio da justa distribuio dos nus e benefcios da urbanizao,

    o Estatuto da Cidade estipulou a outorga onerosa de direitos de construo e uso;

    a existncia de diferentes categorias de indeniza-

    o, com a desapropriao sendo exceo no regi-

    me da funo social da propriedade; a captura

    de mais-valias e a gesto social da valorizao

    imobiliria; bem como a noo de que

    mera expectativa de direito no direito,

    sendo que no h direitos adquiridos

    em matria urbanstica.

    A natureza da gesto urbana tam-

    bm foi profundamente alterada: em

    especial, a participao popular foi

    tida como critrio de validade jurdica, e no apenas de legitimidade de sociopol-

    tica das leis e polticas pblicas. Planos Diretores Municipais inclusive o de So

    Paulo j foram anulados por falta de participao adequada. A importncia de se

    criar um projeto sociopoltico de cidade que se traduza em um pacto socioterritorial

    fundamental para a materializao dessa nova ordem jurdico-urbanstica, sendo

    que surgiu da a Campanha pelos Planos Diretores Participativos liderada pela Se-

    cretaria de Programas Urbanos do Ministrio das Cidades.

    Em suma, Direito e planejamento urbano foram colocados pela ordem jurdica

    no lugar onde sempre estiveram, isto , no corao do processo sociopoltico, espe-

    cialmente na esfera municipal processo esse cuja qualidade que vai determinar

    o maior ou menor alcance da noo da funo social da propriedade e as condies

    de gesto democrtica das cidades.

    So certamente muitos os limites dessa nova ordem jurdico-urbanstica con-

    solidada pelo Estatuto da Cidade, muitos so os gargalos que ainda requerem um

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    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    tratamento jurdico e legislativo adequado, mesmo levando em conta toda a srie de

    leis federais aprovadas desde 2001 natureza, dinmicas e custos dos procedimen-

    tos judiciais; falta de funo social e custos do registro imobilirio; falta de apoio

    dos PDMs em um sistema articulado de gesto urbana; municipalismo exagerado

    e mesmo artificial; falta de uma dimenso regional/metropolitana; falta de compre-

    enso das realidades especficas dos pequenos e mdios municpios, especialmente

    no Norte e Nordeste etc.

    Contudo, os avanos promovidos so inegveis.

    Mas o que aconteceu de fato com a nova gerao de PDMs aprovados desde

    ento?

    Os estudos e anlises j existentes demonstram que houve certamente avanos

    importantes na promoo pelos PDMs do discurso da reforma urbana, bem como

    em setores especficos especialmente nas polticas de meio ambiente e patrim-

    nio cultural. Outro avano de enorme importncia foi a criao por toda parte de

    Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) cheias, isto , correspondendo aos as-

    sentamentos informais existentes. O carter participativo de muitos desses PDMs

    inegvel, ainda que a qualidade sociopoltica dos processos participativos tenha

    variado significativamente, expressando assim a diversidade de situaes existentes

    nos diferentes municpios brasileiros. Talvez o avano mais importante tenha sido a

    produo recorde de informaes sobre as cidades brasileiras.

    Contudo, ainda so muitos os problemas de eficcia jurdica que afetam os

    PDMs. Muitos deles tm sido marcados por formalismo jurdico e burocracia ex-

    cessivos, sendo que em muitos casos houve remessa de regulamentao dos PDMs

    para outras leis municipais posteriores (no caso de um municpio importante, para

    16 leis posteriores!). A modificao pontual dos PDMs por leis posteriores mas

    que no tm envolvido participao popular tem com frequncia comprometido

    seus objetivos originais. Linguagem jurdica excludente e tcnica legislativa impre-

    cisa a maioria das leis urbansticas no sendo escrita por juristas somente tm

    ampliado o espao das disputas jurdicas e sociopolticas.

    Alm das questes jurdicas, so tambm muitos os problemas de eficcia social

    que afetam a nova gerao de PDMs. Os novos planos so ainda essencialmen-

    te planos urbansticos tradicionais, meramente tcnicos e regulatrios, e de modo

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    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    geral no houve uma territorializao adequada e firme de suas boas propostas e

    intenes. Poucos promoveram alguma interveno significativa na estrutura fun-

    diria e nas dinmicas dos mercados imobilirios. Os novos instrumentos de gesto

    urbana foram usados sem que existissem projetos de cidade claramente definidos

    e acordados. So pouqussimos os casos de PDMs nos quais se props a captura das

    mais-valias urbansticas, mas, quando h tal previso, no h uma poltica clara de

    redistribuio socioespacial desses novos e generosos recursos financeiros decor-

    rentes do planejamento territorial.

    E mais... poucos PDMs propuseram opes de moradia social nas reas cen-

    trais; a enorme maioria no reservou terras para produo habitacional de interesse

    social (as ZEIS vazias); de modo geral no houve uma distino clara entre zona

    urbana e zona de expanso urbana (especialmente no que toca obrigao de

    implementao de infraestrutura pelos promotores imobilirios); no houve deter-

    minao de funo social da propriedade pblica; e tampouco uma proposta so-

    cioambiental articulada. Os grandes projetos que tm sido aprovados em muitos

    municpios dos quais tantos despejos coletivos tm decorrido com frequncia

    tm atropelado frontalmente os objetivos declarados dos PDMs. De modo geral,

    falta integrao entre polticas fundirias, urbanas, habitacionais, ambientais, fis-

    cais e oramentrias. A regularizao fundiria continua sendo vista como poltica

    setorial isolada, e tm sido enormes as dificuldades tcnicas colocadas pelos PDMs

    legalizao de assentamentos informais.

    A gesto dos novos PDMs fundamentalmente burocrtica, sendo que a falta

    de capacidade de ao na esfera municipal um problema generalizado mesmo

    grandes municpios no tm tido condies apropriadas de fazer uso adequado do

    enorme volume de recursos financeiros que o Governo Federal tem disponibiliza-

    do. Muitos PDMs so meras cpias de modelos, com frequncia como resultado da

    verdadeira indstria de consultores que se constituiu. A linguagem do urbanismo

    tem sido to obsoleta e excludente quanto a linguagem jurdica.

    Como mencionado, na esfera federal, os problemas da gesto institucional ainda

    so muitos e falta integrao plena das polticas setoriais, dentro e fora do Ministrio

    das Cidades, especialmente com a poltica ambiental. No h uma poltica nacional

    urbana/metropolitana e um sistema de cidades claramente definidos. Falta uma pol-

    tica nacional de ordenamento territorial (geral e da Amaznia Legal). Na sua enorme

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    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    maioria, os Estados-membros no tm polticas urbanas. Sobretudo, em todos os n-

    veis governamentais, falta entre os gestores pblicos uma compreenso de que cidade

    essencialmente economia, requerendo polticas prprias, e no apenas polticas

    sociais e/ou polticas de infraestrutura para o crescimento econmico.

    Concluso

    Parece ento que estamos diante de mais um cenrio de plus a change... plus cest la mme chose. A confirmao de processos de segregao socioespacial pelo Estado em todos os nveis governamentais mostra como os urbanistas e ges-

    tores pblicos continuam cada vez mais refns de mercados imobilirios ex-

    cludentes que eles mesmos criaram e fomentam, bem como de polticas pblicas

    segregadoras que eles mesmos implementam.

  • 232 rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013

    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    Romper com essa l-

    gica perversa requer um

    esforo fundamental de

    enfrentar as disputas ju-

    rdicas e polticas renovadas

    acerca do solo urbano e das

    cidades, e em especial

    juristas e urbanistas

    tm que repensar sua

    atuao histrica nesse

    processo. Uma ampla

    compreenso acerca da natureza e das possibili-

    dades da nova ordem jurdico-urbanstica requer de imediato um trabalho intensivo

    de informao e sensibilizao dos operadores do Direito, juzes, promotores e re-

    gistradores, bem como dos planejadores e gestores urbanos. Tambm importante

    reconhecer que tem havido pouca demanda dos direitos coletivos e sociais pelos

    beneficirios da nova ordem jurdica.

    O Direito brasileiro mudou significativamente. Mas ser que os juristas enten-

    deram? Ser que o urbanismo brasileiro mudou? Ser que os gestores pblicos as-

    similaram as novas regras? Ser que a sociedade brasileira acordou para as novas

    realidades jurdicas? Jogar o jogo de acordo com as novas regras imperativo para

    que se possa avanar na promoo da reforma urbana de modo a construir coletiva-

    mente cidades sustentveis para presentes e futuras geraes.

    Proponho, ento, um otimismo muito cauteloso... O futuro do Estatuto da Ci-

    dade requer sobretudo um ampla renovao da mobilizao sociopoltica em torno

    das questes fundirias, urbanas, habitacionais e ambientais. Trata-se de tarefa de

    todos defender o Estatuto da Cidade das muitas propostas essencialmente negati-

    vas de mudanas que se encontram no Congresso Nacional; superar os obstculos

    e aprimorar ordem jurdica; mas acima de tudo lutar pela implementao plena do

    Estatuto da Cidade.

    Se leis ruins podem dificultar e muito o reconhecimento de direitos coleti-

    vos e sociais, bem como a formulao e a implementao plena de polticas pblicas

  • 233rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013

    fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois

    progressistas, boas leis por si ss no mudam as realidades urbanas e sociais, por

    mais que expressem princpios de incluso socioespacial e justia socioambiental,

    ou mesmo, como no raro caso do Estatuto da Cidade, quando fazem com que os

    novos princpios e direitos coletivos e sociais reconhecidos sejam acompanhados

    por uma gama de processos, mecanismos, instrumentos e recursos necessrios

    sua efetiva materializao. Se foram necessrias dcadas de disputas sociopolticas

    para que a reforma da ordem jurdico-urbanstica tenha se dado, uma outra etapa

    histrica se abriu com a aprovao do Estatuto da Cidade, qual seja, a das disputas

    sociopolticas em todas as esferas governamentais, dentro e fora do aparato estatal,

    pelo pleno cumprimento dessa lei.

    A verdade que o Brasil, e os brasileiros, ainda no fizeram por merecer o Es-

    tatuto da Cidade.

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