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Estado e mercado no Brasil contemporâneo: a produção de sentidos, a produção de alianças

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Faculdade de Ciências e Letras, UNESP – Univ Estadual Paulista, Campus AraraquaraReitor: Julio Cezar DuriganVice-reitora: Marilza Vieira Cunha RudgeDiretor: Arnaldo CortinaVice-diretor: Cláudio César de Paiva

SÉRIE TEMAS EM SOCIOLOGIA Nº 6

Programa de Pós-Graduação em Ciências SociaisCoordenadora: Profa. Dra. Ana Lucia de Castro

Conselho Editorial da Pós-graduação em Ciências SociaisJosé Antonio SegattoMaria Ribeiro do ValleMaria Teresa Miceli Kerbauy

Grupo de Pesquisa NESPOM (Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Sociedade, Poder, Organização e Mercado)

Editoração eletrônicaEron Pedroso Januskeivictz

CapaGianfrancesco Afonso Cervelin

NormalizaçãoBiblioteca da Faculdade de Ciências e Letras

N. 6 – 2013

Apoio: Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo

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TEMAS EM SOCIOLOGIA

Maria Chaves Jardim(Org.)

ESTADO E MERCADO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: A PRODUÇÃO DE SENTIDOS, A PRODUÇÃO DE ALIANÇAS

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Copyright © 2013 by Laboratório Editorial da FCLDireitos de publicação reservados a:

Laboratório Editorial da FCL

Rod. Araraquara-Jaú, km 114800-901 – Araraquara – SP

Tel.: (16) 3334-6275E-mail: [email protected]

Site: http://www.fclar.unesp.br/laboratorioeditorial

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SUMÁRIO

Estado e mercado no Brasil contemporâneo: a produção de sentidos, a

produção de alianças e a criação de justificativas

Maria Chaves Jardim ............................................................................7

As concepções de controle em diferentes momentos da indústria

sucroalcooleira: uma análise das transformações recentes a partir de

uma perspectiva histórica

Martin Mundo Neto .............................................................................15

Entre o trabalho degradante e o fim do corte: práticas de responsabilidade

socioambiental no setor sucroalcooleiro

Rosemeire Salata .................................................................................55

Finanças para todos(as)? popularização e democratização da bolsa de

valores de São Paulo e o projeto de inclusão das mulheres

Joyce Anselmo .....................................................................................75

Formação de mercados colaborativos: governo Lula e a economia da

troca e não da escassez

Mariana Tonussi Milano .....................................................................97

Programa Bolsa Família: enquadramento cognitivo dos direitos sociais

Maria Chaves Jardim e Mariana Seno Flores ..................................125

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Ingerência da economia da cultura na cinematografia brasileira: uma

análise a partir da Sociologia Econômica

Talita Vanessa Penariol Natarelli .....................................................153

A construção social do mercado de produtos “pirata”: uma análise das

relações de consumo e venda

Ariella Silva Araujo e Samuel Candido de Souza .............................191

Atores na reprodução do espaço: estudo sobre a dinâmica de atuação da

BNDESPAR no capitalismo brasileiro contemporâneo

Wellington Afonso Desiderio.............................................................219

Teoria crítica e a abolição da categoria de valor

Nathalia Muylaert Locks ...................................................................239

Sociologia Econômica e Migração: realidades opostas?

Géssica Trevizan Pera e Rogério Pereira de Campos ......................263

Sociologia Econômica e empreendedorismo étnico: algumas reflexões

Beatriz Isola Coutinho ......................................................................285

Encontros e desencontros em Pierre Bourdieu

Leandro Silva de Oliveira .................................................................305

Sobre os autores e organizadores......................................................319

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Estado e mercado no Brasil contemporâneo: a produção de sentidos, a produção de

alianças e a criação de justificativas

Maria Chaves JARDIM

O livro que apresento é resultado de trabalhos realizados por alunos da disciplina Sociologia Econômica, ministrada por mim, no segundo semestre de 2011, no programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNESP de Araraquara. A qualidade dos textos, assim como o fio condutor entre os mesmos, inspirou a organização desse livro, que acabou recebendo a contribuição de autores para além da disciplina citada. Um único eixo temático – as relações entre Estado e Mercado – produz duas discussões correlatas nesse livro, a saber: a construção social dos mercados; as novas produções e as novas justificativas do capitalismo.

O eixo temático, que trata das relações entre Estado e Mercado, deve ser entendido nesse livro por meio das interpretações que bus-cam compreender o modelo de desenvolvimento adotado no Brasil nos últimos 10 anos, as quais questionam a natureza do papel do Estado durante o Governo Lula e mais recentemente durante o Governo Dilma.

Nesse contexto, o papel desempenhado pelo Estado Brasileiro nos últimos anos tem possibilitado interpretações que ora aproximam o Estado da proposta que se convencionou chamar de “neoliberalis-mo” (BOITO JUNIOR, 2003; ANTUNES, 2004) e ora o afastam dessa proposta, colocando-o mais próximo da ideia de Keynesismo (BOSCHI, 2010) ou convergência das elites brasileiras (GRUN, 2005).

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Estado e mercado no Brasil contemporâneo: a produção de sentidos, a produção de alianças e a criação de justificativas

Nesse sentido, apesar da forte predominância das finanças e da liberalização financeira, observamos evidências empíricas distintas da política dita neoliberal, apesar de pontos em comum, o que trans-forma o desenvolvimento econômico e social implantado durante o Governo Lula – e também durante o Governo Dilma – em um fenômeno de grande interesse sociológico, motivo que inspira a organização deste livro, cujos textos oferecem elementos teóricos e empíricos para aprofundar o debate.

Assim, os textos presentes nesse livro mostram que, apesar da aparente (e inquestionável) dominação das finanças, o Estado coor-denou os mercados durante o Governo Lula e coordena durante o Governo Dilma, produzindo bens e serviços por meio de empresas estatais, implantando projetos com financiamento oriundo do mer-cado financeiro e coordenando certa regulamentação do mercado financeiro em diálogo com a Bolsa de Valores. As desvantagens, limi-tações e ambiguidades do processo também foram relatadas nos tex-tos aqui presentes. Correlato ao eixo das discussões sobre as alianças entre Estado e Mercado, nos textos aqui expostos, encontramos um fio condutor sobre a construção social dos mercados – nele incluso a “pirataria” – e de políticas públicas para o cinema, para a tecnolo-gia de informação colaborativa ou para a redução das desigualdades sociais via Bolsa Família.

Finalmente, a terceira discussão valorizada é sobre a produção de sentido e de justificativas no capitalismo. Esse debate aparece direta-mente e indiretamente em quase todos os textos, sobretudo naqueles que enfatizam a produção discursiva da responsabilidade socioam-biental. No sentido defendido por Boltanski e Chiapello (1999), a busca de justificativas é uma forma do capitalismo se realimentar, ganhando colaboradores e, assim, evitando crises. O tema da crise do capitalismo foi retratado no texto de Natália Locks. Portanto, é no contexto do capitalismo desenvolvido durante os últimos 10 anos, especialmente durante o governo Lula, que se encaixam os doze trabalhos expostos nesse livro, os quais passarei a apresentar.

Inicialmente, temos o texto de Martin Mundo Neto intitulado As concepções de controle em diferentes momentos da indústria sucro-alcooleira: uma análise das transformações recentes a partir de uma

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Maria Chaves Jardim

perspectiva histórica, o qual aborda discussões como a financeiri-zação do capitalismo e as novas relações entre Estado e Mercado, tratando da passagem da empresa familiar para a empresa acionista, com foco na indústria sucroalcooleira brasileira. Seus dados indicam fusões e aquisições no setor e pontua o papel do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), banco público que tem atuado na difusão de uma nova concepção de controle para a indústria brasi-leira em geral.

O segundo artigo, Entre o trabalho degradante e o fim do corte: prá-ticas de responsabilidade socioambiental no setor sucroalcooleiro, de Rosemeire Salata, está focado no mesmo tema que o artigo anterior, as transformações do setor sucroalcooleiro paulista. A autora ques-tiona os novos papéis sociais assumidos pelas empresas do referido setor, tendo como foco de análise um programa de responsabilidade socioambiental dirigido aos trabalhadores do corte de cana. A autora busca compreender a transformação de questões da agenda social e política em ferramentas gerenciais dos negócios sucroalcooleiros, sugerindo deslocamentos nas formas de encaminhamento dos con-flitos sociais e indicando novas lógicas na construção e sustentação do “mercado do etanol”.

O terceiro texto, Finanças para todos(as)? Popularização e demo-cratização da Bolsa de Valores de São Paulo e o projeto de inclusão das mulheres, de Joyce Anselmo, toca em um tema fio condutor do capi-talismo financeiro contemporâneo: a educação financeira. O seu foco recai sobre a propagação da educação financeira via Bolsa de Valores em um público específico, as mulheres. Para tanto, a autora escolheu como objeto de análise o projeto de popularização da BOVESPA, Mulheres em Ação. Com tema pouco explorado na literatura, a auto-ra demonstra que o objetivo desse programa é mais do que educar financeiramente. Sobretudo, visa atrair esse público para o mercado financeiro, espaço tradicionalmente associado ao masculino. Longe de uma leitura ingênua, a autora deixa pistas para pensarmos que essa política de inclusão financeira, apesar de aparentemente “revolucio-nária”, carrega bases conservadoras, pois é implantada via categoria “família”. As alianças entre Estado e Mercado – eixo do presente livro– permeiam esse texto.

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Estado e mercado no Brasil contemporâneo: a produção de sentidos, a produção de alianças e a criação de justificativas

O objetivo do trabalho Formação de mercados colaborativos: Governo Lula e a economia da troca e não da escassez, de Mariana Tonussi Milano, é analisar o mercado das tecnologias de informa-ção colaborativas a partir do referencial da sociologia econômica. A autora pretende demonstrar que o mercado da informação possui diversas facetas, e estas dependem da configuração das estruturas sociais e do posicionamento dos atores neste mercado. Para tanto, a autora apresenta os conceitos fundamentais que orientam o mercado do software livre e as características desses espaços de sociabilidade, onde as trocas apontam para uma lógica de mercado para além da convencional.

As autoras Maria Chaves Jardim e Mariana Seno Flores argu-mentam no texto Programa Bolsa Família: enquadramento cognitivo dos direitos sociais, que o programa Bolsa Família tem sido utiliza-do como um exemplo que deu certo para a redução da pobreza e das desigualdades sociais por organismos internacionais de renome, como a ONU e o FMI. Entretanto, no Brasil, o Programa é criticado pelo seu caráter assistencialista. A hipótese desenvolvida pelas autoras é que essa forma de olhar os direitos sociais é reflexo de certa repre-sentação social vigente na mentalidade brasileira, que tende a desmo-ralizar os diretos sociais provenientes do Estado, tratando-os como “favor” e assistencialismo. As autoras defendem que existiria uma construção social – mesmo que inconsciente – da desmoralização do Estado – e da coisa pública – e como consequência, dos direitos sociais oriundos desses. Por meio da coleta de discursos na grande imprensa sobre o Programa Bolsa Família – opositores e defensores, as autoras buscam compreender as representações sociais que moti-vam análises negativas sobre o programa.

O artigo A ingerência da economia da cultura na cinematografia brasileira: uma análise a partir da sociologia econômica, de Talita Vanessa Penariol Natarelli, tem como escopo efetuar um estudo da economia envolvida nas práticas cinematográficas brasileiras. O texto discute os mecanismos existentes no Brasil que denotam incentivos e investimentos no setor cultural. Para tanto, faz uso de buscas nos sites oficiais do Banco Nacional do Desenvolvimento, do Ministério da Cultura e, sobretudo, da Agência Nacional do Cinema.

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Maria Chaves Jardim

Por sua vez, os autores Ariella Silva Araujo e Samuel Candido de Souza, responsáveis pelo texto A construção social do mercado de produtos “pirata”: uma análise das relações de consumo e venda, apresentam um interessante texto exploratório sobre o mercado da pirataria. Em direção oposta a uma linha teórica que coloca a pira-taria apenas como resultado de um contexto econômico específico – mercado informal, desemprego, etc – os autores acrescentam uma nova variável para explicar o consumo de produtos piratas, a variável cultural, manifesta na busca de distinção, status, reconhecimento e poder. Dessa maneira, os autores nos convidam a olhar para um fenômeno dito econômico – a pirataria, considerando a dimensão social e cultural envolvida.

No texto Atores na reprodução do espaço: um estudo sobre a dinâ-mica de atuação da BNDESPAR no capitalismo brasileiro contem-porâneo, Wellington Afonso Desidério faz uma análise da dinâmica de atuação do Estado por intermédio da holding BNDESPAR (sub-sidiária do BNDES), no capitalismo brasileiro contemporâneo. O autor defende que tanto nos dois governos Lula, como no governo Dilma (2003-atual), o Estado tem uma orientação interventora que é operacionalizada através de mecanismos do mercado, e nas cadeiras da “elite da BNDESPAR”, constituindo, de forma original, novos desenhos do Estado e do Mercado.

Inspirando-se na discussão sobre o fim do capitalismo de Friedrich Pollock e Franz Neumman, Nathalia Muylaert Locks busca, a partir do texto Teoria crítica e a abolição da categoria de valor, investigar se é possível conter a crise do capitalismo, ou se o capitalismo irá se romper como previu Marx. De acordo com Pollock, o capitalismo adentrou em um processo intensivo de burocratização que resultou em uma economia planificada. Em contrapartida, Neumman, segue uma interpretação mais fiel ao marxismo leninista no qual o capitalismo monopolista seria a última fase do capitalismo, o que significaria que o capitalismo se encontra em uma situação que beira a crise, isto é, apresentando condições de transformação social. Em diálogo com outros textos desse livro, a autora conclui que se trata de uma mudança na natu-reza do conceito capitalismo, cuja transformação permite diálogo

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Estado e mercado no Brasil contemporâneo: a produção de sentidos, a produção de alianças e a criação de justificativas

um tanto harmônico entre capitalismo e democracia (mercado e Estado).

No texto Sociologia econômica e migração: realidades opostas?, os autores Géssica Trevizan Pera e Rogério Pereira de Campos buscam analisar a situação dos trabalhadores imigrantes nos Estados Unidos e a influência gerada por eles na sociedade local, destacando tanto o deslocamento do seu país de origem, quanto a permanência no país de destino. A espoliação do trabalho e a cidadania não reconhecida são enfatizadas pelos autores.

Beatriz Isola Coutinho apresenta o artigo Sociologia econômica e empreendedorismo étnico: algumas reflexões, no qual busca demons-trar que o fenômeno é importante à compreensão da construção social dos mercados e que por isso precisa ser objeto de estudo da sociologia econômica. A autora indica, como dado empírico, o apoio das instituições financeiras e do Estado, em direção a uma educação voltada aos negócios quando do retorno do imigrante ao seu país de origem.

A resenha de Leandro Silva de Oliveira intitulada O Marxismo encontra Pierre Bourdieu, a qual se interessa pela obra de Michael Burawoy, faz muito sentido neste livro. Assim como Michael Burawoy encontrou Bourdieu ao longo de sua carreira, alguns dos autores aqui presentes partiram do marxismo no início do curso de Sociologia Econômica e encontraram Pierre Bourdieu e seus conceitos durante a disciplina. Isso possibilitou ampliar conceitos marxianos e inserir questões simbólicas desenvolvidas por Pierre Bourdieu. Esse interessante exercício pode ser visualizado em alguns dos textos aqui expostos.

Por ser uma iniciativa que valoriza os estudantes de pós-gradu-ação, e por tratar de tema urgente – as fronteiras e as centralidades entre Estado e Mercado no capitalismo contemporâneo – esse livro pode ser uma literatura inicial para aqueles interessados nas cons-truções sociais do mercado de forma científica, ou seja, sem diabo-lizar o mercado e sem condenar o Estado. Afinal, como nos mostra Abramovay (2004), o mercado não é nem Deus, nem o diabo, ape-nas uma instituição social que pode (e deve) dialogar com o Estado, visando construir políticas públicas, bens e serviços que levem à

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Maria Chaves Jardim

inclusão social. O que não retira, obviamente, o interesse do olhar crítico sobre essas construções sociais.

REFERÊNCIAS

ABRAMOVAY, R. Entre Deus e o Diabo: mercados e interação humana nas ciências sociais. Revista Tempo Social, São Paulo, v.16, n.02, p.35-64, 2004.

ANTUNES, R. A desertificação neoliberal no Brasil: Collor, FHC e Lula. Campinas: Autores Associados, 2004.

BOITO JUNIOR, A. A hegemonia neoliberal no governo Lula. Revista Crítica Marxista, Campinas, n.17, p.9-35, nov. 2003.

BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. O novo espírito do Capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

BOSCHI, R. Estado desenvolvimentista no Brasil: continuidades e incertitudes. Revista Ponto de Vista, Rio de Janeiro, v.20, n.2, fev. 2010. Disponível em: < http://neic.iesp.uerj.br/pontodevista/pdf/Ponto_de_vista_01fev2010.pdf >. Acesso em: 02 maio 2012.

GRÜN, R. Convergência das elites e inovações financeiras: a governança corporativa no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.20, n.58, p.67- 90, 2005.

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As concepções de controle em diferentes momentos da indústria sucroalcooleira: uma análise das transformações recentes

a partir de uma perspectiva histórica

Martin MUNDO NETO

Introdução

Este trabalho procura analisar as transformações na indústria sucroalcooleira seguindo uma vertente específica da sociologia econô-mica, sobretudo os estudos relacionados à sociologia dos mercados. Trata-se de um aspecto desenvolvido na pesquisa de doutorado do autor1, mais especificamente, uma análise das concepções de controle que predominaram em diferentes momentos da indústria sucroal-cooleira brasileira. Esta análise foi inspirada nos trabalhos de Neil Fligstein, sobretudo na abordagem político-cultural dos mercados (FLIGSTEIN, 1990, 2001).

Nos últimos anos, o etanol passou a ser apresentado como “nova” tecnologia (energia renovável), tornando a indústria sucroalcooleira alvo de interesse de novos investidores. Esta nova forma de ava-liar a indústria sucroalcooleira compatibilizou-se, sobretudo, com

1 Transformações na indústria sucroalcooleira brasileira no início do século XXI: das famílias aos acionistas. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção) Departamento de Engenharia de Produção, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2012.

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As concepções de controle em diferentes momentos da indústria sucroalcooleira: uma análise das transformações recentes a partir de uma perspectiva histórica

as exigências dos representantes da indústria de capital de risco2 (MUNDO NETO, 2012).

Para explorar as potencialidades do etanol, enquanto alternativa energética global, representantes daqueles que estiveram, historica-mente, à frente da indústria sucroalcooleira brasileira passaram a se organizar em conformidade ao modelo organizacional dominante entre as grandes corporações do capitalismo contemporâneo. O objetivo foi contribuir para o entendimento das transformações que ocorrem na indústria sucroalcooleira, realizando um estudo exploratório sobre as concepções de controle que predominaram em diferentes momentos da indústria sucroalcooleira brasileira, desde o final do século XIX. Fligstein (2001) sugeriu que fossem realizados estudos considerando as instituições que sustentam os mercados em países emergentes, no sentido de indicar em que medida eles estariam em sintonia e estruturados como os mercados das economias centrais. Aqui o foco foi o mercado sucroalcooleiro brasileiro.

2 A versão atual da indústria de capital de risco se desenvolveu, sobretudo, nos Estados Unidos e na Inglaterra. As atividades preferidas pelos investidores desta indústria seriam aquelas ligadas à alta tecnologia. O “mito de origem” desta indústria estaria associado à crença de que a tecnologia é sempre uma potencial fonte de melhorias para as sociedades (FROUD; WILLIAMS, 2007). Contudo, nem todas as iniciativas de inovação tecnológica são bem sucedidas. Operar neste espaço implica assumir riscos elevados o que, por outro lado, auxilia na legitimação dos altos ganhos percebidos pelos participantes desta indústria, nas iniciativas bem sucedidas. A indústria de capital de risco é classificada em duas grandes vertentes: a de venture capital e a de private equity. A modalidade venture capital estaria associada aos negócios que recebem investimentos nas fases iniciais de desenvolvimento e a de private equity seria aquela destinada a negócios já consolidados e que movimentam somas consideráveis de recursos. Uma característica deste tipo de operação é o planejamento do desinvestimento, ou seja, o momento de se retirar dos negócios. A forma preferida seria via abertura de capital da empresa e após a valorização de suas ações. A participação nos negócios é temporária, visa à valorização dos ativos na realização de lucros no desinvestimento.

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Martin Mundo Neto

Instituições que sustentam os mercados

De acordo com Fligstein (1990), nas grandes corporações norte americanas, desde 1880, os dirigentes têm interpretado os ambientes, internos e externos, e procurado desenvolver ambientes favoráveis ao desenvolvimento e estabilização dos diversos mercados. Para serem criados e se desenvolverem, os mercados dependeriam da existência de determinadas instituições.

O ingresso dos países no capitalismo leva seus estados a desen-volverem regras sobre os direitos de propriedade, estrutura de governança, regras das transações econômicas e concepções de controle no sentido de estabilizar os mercados. (FLIGSTEIN, 1990, p.36).

Os direitos de propriedade seriam fundamentais porque “[...] constituem relações sociais que definem quem tem direito aos lucros de uma empresa.”; as estruturas de governança, relacio-nadas às normais gerais, formais e informais, que interferem nas relações entre as empresas e a forma de organizar a própria empre-sa; as concepções de controle “[...] referem-se aos entendimentos que estruturam as percepções de como funciona o mercado e que permitem aos atores uma interpretação do seu mundo e o controlo sobre as situações.”; e as normas de transação que “[...] definem quem pode negociar com quem e estipulam as condições sob as quais se processam as transações.” (FLIGSTEIN, 2003, p.195-197).

Num determinado mercado, grupos empresariais Estabelecidos (Incumbents) atuam no sentido de consolidar sua posição em rela-ção aos demais grupos dominantes e aos Desafiadores (Challengers), levando a uma situação de estabilidade dos mercados. O objetivo central dos gestores seria controlar o ambiente no qual a organiza-ção está inserida. Uma solução bem sucedida em um determinado espaço industrial torna-se uma referência, em termos organizacio-nais, para as demais empresas que nele atuam. De acordo com Fligstein (1990), os campos organizacionais promovem estabili-dade, constituindo-se num importante mecanismo de controle

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As concepções de controle em diferentes momentos da indústria sucroalcooleira: uma análise das transformações recentes a partir de uma perspectiva histórica

do ambiente externo. Os mercados estáveis estariam estruturados como campos organizacionais.

Segundo Fligstein (1990), a existência de campos organizacionais depende do reconhecimento mútuo de atores que atuam em dife-rentes empresas interdependentes e que compartilham concepções de ações legítimas. Nos períodos de intensificação das operações de fusões e aquisições, as instituições que garantem o funcionamento dos mercados sofrem modificações. A reestruturação do campo e as novas estratégias que passam a predominar seriam resultados deste novo quadro institucional.

De acordo com Fligstein (2003), à medida que os mercados se estabilizam mais se assemelham a campos organizacionais. Em gran-de parte dos mercados, os gerentes, executivos e empreendedores estariam atuando mais no sentido de garantir a sobrevivência e o crescimento das grandes corporações do que como maximizadores de lucros. Essas ações derivam da visão de mundo desses atores ou, como indicado por Fligstein, das concepções de controle dos atores econômicos.

Concepção de controle refere-se a uma visão totalizante do mundo dos gerentes ou empreendedores que os levam a filtrar os problemas do mundo num certo sentido [...] Uma estratégia organizacional refere-se aos objetivos atuais da organização e as políticas adotadas para alcançar aqueles objetivos. A concep-ção de controle refere-se a porque gerentes enxergam aquelas estratégias como apropriadas para o que a empresa deve fazer. (FLIGSTEIN, 1990, p.10-11).

As estratégias não seriam as concepções de controle, mas o conjunto de ações que os atores, com determinada concepção de controle, selecionam para um determinado contexto organi-zacional.

Desde o início do capitalismo industrial, cinco concepções de controle predominaram em momentos distintos. No inicio, a con-cepção de controle direto levou à elaboração de estratégias de ata-que aos principais concorrentes. Caso esta tática falhasse ou fosse difícil de ser aplicada, os empreendedores uniam-se. A competição

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Martin Mundo Neto

por preços e a constituição de cartéis eram as estratégias mais utili-zadas neste período.

A segunda concepção de controle – controle baseado na manu-fatura – o objetivo “[...] é produzir um produto sem a interferência dos competidores controlando as entradas e as saídas por meio de integração vertical e horizontal de produção.” (FLIGSTEIN, 1990, p.14). Como estratégias destacam-se a integração vertical das ativida-des produtivas, as operações de aquisições e fusões visando ampliar a participação de mercado e os oligopólios baseados em determinados produtos.

A concepção de controle de vendas e marketing volta o foco para o mercado, ou a manutenção e ampliação das fatias de mercado e, entre as estratégias, está a

[...] diferenciação dos competidores em termos de qualidade do produto e preço; mais propaganda para aumentar a participação de mercado; novos produtos para estimular o crescimento; e expandir os mercados para produtos existentes, particularmente para além do oceano. (FLIGSTEIN, 1990, p.15).

A concepção de controle financeira,

[...] enfatiza controle por meio do uso de ferramentas que medem o desempenho de acordo com taxas de retorno [...] As estratégias chaves são: diversificação através de fusões e desin-vestimentos (em oposição à expansão interna); táticas finan-ceiras para aumentar o preço das ações, dívidas e habilidade para absorver outras empresas; e o uso de controles financei-ros para tomar decisões sobre a alocação interna de capital. (FLIGSTEIN, 1990, p.15).

Fligstein (1990) indicou a forte relação entre os períodos em que o volume de fusões e aquisições (F&As) (Mergers and Aquisitions – M&A) e o surgimento de novas concepções de controle. Quando as F&As se intensificam há maiores chances de ocorrer mudança de concepção de controle num determinado mercado. A concepção financeira aplica-se principalmente às empresas de capital aberto (public enterprise) e que se preocupam com a gestão do valor das suas ações.

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As concepções de controle em diferentes momentos da indústria sucroalcooleira: uma análise das transformações recentes a partir de uma perspectiva histórica

Fligstein (2001) apresenta a concepção de controle dominante no momento atual do capitalismo como uma variante da concepção financeira. Segundo o autor, durante a década de 1980, o ambiente econômico norte americano (as altas taxas de inflação, o baixo cres-cimento econômico, baixo desempenho financeiro das grandes cor-porações, particularmente em termos do valor das ações no mercado de capitais) criou as condições favoráveis a uma nova onda de fusões. A intensificação do mercado de fusões e aquisições e a ampliação da participação de investidores institucionais no mercado de capitais, particularmente os fundos de pensão, bancos de investimentos e companhias de seguro, foram fatores que contribuíram para o sur-gimento da concepção de controle “valor para o acionista” (sha-reholder value conception of control).

A principal diferença entre a nova e a concepção anterior seria o fato de que, na anterior, os administradores não estariam gerencian-do os ativos de modo a maximizar o que veio a ser denominado de “valor para o acionista” (FLIGSTEIN, 2001, p.147). As estratégias resultantes da nova concepção de controle seriam de natureza finan-ceira, mas procuram privilegiar os acionistas e não os gerentes que, na versão anterior, além de muito numerosos, recebiam salários ele-vados. Uma importante construção da concepção de controle “valor para o acionista” é a governança corporativa.

De acordo com Davis (2009), desde o inicio do século XX até a onda de takeover3 dos anos de 1980, a grande corporação era a instituição dominante e símbolo do período que ficou conhecido na literatura como capitalismo gerencial (managerial capitalism),

3 Expressão que, no mundo dos negócios, significa a compra de uma empresa por meio de aquisição de suas ações. A operação pode ser hostil, quando os membros do conselho de administração da empresa que está sendo adquirida não concordam, ou amigável, quando há acordo entre as partes. As operações de takeover são típicas das economias estruturadas em torno de mercados de capitais (EUA e Reino Unido), onde predomina a cultura da empresa de capital aberto (public company). Até a década de 1970, a estrutura acionária das grandes corporações nos EUA tinha como característica o fato das ações estarem pulverizadas entre milhares de acionistas, ou seja, o maior acionista detinha menos que 8% do total de ações da empresa (USEEM, 1993). Esta configuração que contribuiu para a onda de takeover nesses países.

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caracterizado pelo fato de que os gerentes gozavam de grande auto-nomia, inclusive para perseguir prioridades diferentes daquelas dos acionistas.

Ainda no início do século XX, Berle e Means (1984) já indica-vam que, nas grandes corporações, o controle passava a ser regido por uma força centrípeta, acumulando-se nas mãos dos gerentes, enquanto a propriedade era influenciada por uma força centrífuga, tornando-se crescentemente dispersa entre milhares de acionistas anônimos.

Mas a crise financeira da década de 1970 e a intensificação das fusões e aquisições de empresas, fundamentalmente as operações de takeovers e aquisições alavancadas (leveraged buyouts4) da década de 1980, anunciaram uma nova fase do capitalismo (DAVIS, 2009). Como indicado por Useem (1993), os investidores institucionais, notadamente os fundos de pensão, a partir dos anos setenta, passa-ram a desempenhar um papel central no capitalismo norte-ameri-cano. Um número cada vez maior de grandes corporações passou a tê-los entre seus principais acionistas. Os investidores institucionais contrariaram o movimento descrito por Berle e Means, primeiro pelo fato de terem se tornado uma das principais vozes a reivindicar os direitos dos acionistas (shareholders rights), contrapondo-se à alta gerência. Segundo, porque, pelo fato de acumularem fatias significa-tivas de ações, contribuíram para a formação de grupos de controle, ou seja, grupos constituídos por acionistas detentores de um volume de ações que garante a eles ter representante no conselho de adminis-tração da empresa. Assim, os investidores institucionais contribuíram diretamente para o declínio do capitalismo gerencial e ascensão do capitalismo investidor, para utilizar a expressão de Useem (1993).

De acordo com Davis (2009), o trabalho de Henry Manne (1965), publicado ainda na década de 1960, apresentou a idéia cen-tral para a reorganização do capitalismo. Manne teria formulado a idéia de controlar as corporações pelo mercado (market for corporate

4 Uma operação de leveraged buyout é uma operação de aquisição de uma empresa recorrendo-se a financiamento garantido, geralmente, com os ativos da empresa adquirida.

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control). Esta ideia sugeria que toda empresa estaria, potencialmente, à venda. Assim, de acordo com Manne (1965), quanto mais bai-xo o valor das ações de uma empresa, mais ela corria o risco de ser adquirida, contrariando a vontade dos seus administradores do momento (takeover). A queda no valor das ações sinalizaria que a empresa poderia ser administrada de maneira mais eficiente. Assim, a desvalorização das ações tornava a empresa alvo de takeover. Este modo de operar teria se intensificado, sobretudo, entre os gestores de fundo de participações privadas (private equities funds), a partir dos anos 1980. Após a tomada de controle do negócio os gestores de private equity procuravam revitalizar a gestão da empresa, para posteriormente, no desinvestimento5, realizar grandes lucros.

Conforme indicado por Useem (1993), a partir da década de 1970, os investidores institucionais passaram a possuir fatias consi-deráveis de ações de grandes corporações norte americanas e, assim, começaram a pressionar o quadro gerencial para que seus interesses fossem atendidos. Com esta pressão, os gerentes empenharam-se na reestruturação das empresas, reduzindo os níveis hierárquicos, principalmente os postos das gerências intermediárias. Estas ações visavam a resultados imediatos e aumento do lucro no curto prazo, sinalizando a orientação financeira que passava a predominar.

Fligstein (1990) destaca também a relevância da estrutura orga-nizacional que predomina nos campos organizacionais e procura relacioná-la com o papel dos atores e suas ações nos espaços sociais locais. “Estrutura refere-se ao desenho da organização e as linhas de autoridade que liga as divisões da organização e as divisões com o escritório central.” (FLIGSTEIN, 1990, p.16). Nas empresas modernas, predominariam dois tipos de estruturas organizacionais.

5 O desinvestimento é uma estratégia de saída do negócio amplamente utilizada pelos atores da indústria de capital de risco. O desinvestimento pode ocorrer por meio da venda dos ativos a investidores, mas, segundo a ABVCP, a opção preferida é via abertura de capital da empresa e posterior venda das ações após sua valorização. Desta forma, apesar dos negócios da indústria de capital de risco se caracterizarem pela forma pouco transparente (oposta às empresas de capital aberto) eles também compartilham e contribuem para a institucionalização do capitalismo acionário.

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A estrutura funcional, caracterizada pela organização da produção por departamentos que refletem o movimento seqüencial dos pro-dutos através dos estágios da produção e a estrutura multi-divisional (Multi-Divisional Format – MDF) que, segundo Fligstein (1985), possibilitou reorganizar cada divisão (da empresa) como uma ope-ração independente, com departamentos de produção, finanças e marketing. Esta forma de estrutura organizacional se tornou domi-nante entre as corporações norte-americanas na década de 1980. Apesar da relativa autonomia para as unidades de negócios, esse tipo de estrutura potencializa a concentração do controle nas mãos do presidente executivo (Chief Executive Officer – CEO), e mais recentemente, do diretor financeiro (Chief Financial Officer – CFO) (FLIGSTEIN, 2001). Os atores que ocupam posições de poder nas empresas podem possuir concepções de controle distintas. Ocupar cargos de diretoria executiva e de alta gerência na estrutura orga-nizacional significa ter acesso a recursos e continuar delineando as estratégias da organização. As estratégias seriam fruto de como os dirigentes entendem suas empresas e o campo organizacional no qual ela participa (FLIGSTEIN, 1990).

A seguir, a partir do estudo da indústria sucroalcooleira, preten-de-se indicar, sem desconsiderar as especificidades do caso brasilei-ro, que as concepções de controle identificadas por Fligstein (1990, 2001) teriam seu “equivalente”, em diferentes momentos do capita-lismo industrial brasileiro.

Histórico das “concepções de controle” da indústria sucroalcooleira brasileira: engenhos, usinas e grupos sucroenergéticos

As atividades sucroalcooleiras têm ocupado destaque na economia brasileira. Seus representantes, sejam os coronéis da fase do engenho de cana de açúcar, sejam os usineiros da fase industrial, historicamen-te, disputam com outros atores da sociedade brasileira o poder do Estado, resultando em políticas de desenvolvimento e de subsídios para a indústria. A indústria canavieira é uma das pioneiras e mais

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importantes do país. No período colonial, a produção de açúcar foi a que mais contribuiu para o conjunto das exportações brasileiras e o açúcar o principal artigo do comércio marítimo mundial no século XVII (SIMONSEN, 1978).

As instituições que sustentam a indústria canavieira e o mercado do açúcar e do álcool vêm sendo definidas desde os tempos coloniais. A indústria sucroalcooleira está entre as mais institucionalizadas na economia brasileira e sua modernização ocorreu graças à forte inter-venção governamental, desde a transição do sistema de produção pré--industrial, baseado no Engenho de cana de Açúcar, para o sistema industrial, caracterizado pela produção em Usinas. Esta transição, em grande medida, decorreu de transformações mais gerais que impac-taram diretamente no sistema de produção canavieiro que perdurava desde o período colonial. A revolução industrial e a nova organização internacional do trabalho colocaram países como o Brasil na posição de produtor de matéria prima, em particular, gêneros alimentares (SINGER, 1968).

Mas o atraso técnico da indústria açucareira brasileira em relação aos novos centros internacionais de produção, tanto dos concorrentes que utilizavam a cana de açúcar como daqueles que produziam a par-tir da beterraba, fez com que, ainda no período Imperial, o governo brasileiro tomasse iniciativas para reverter o tradicional quadro da produção açucareira no Brasil (MEIRA, 2010). Na época, a solu-ção para o problema da produção açucareira seria a implantação de Engenhos Centrais. Conforme indicado por Meira (2010), apesar deles não terem tido vida longa, foram fundamentais para a indus-trialização da produção açucareira, uma vez que forneceram a base tecnológica para a produção em Usinas.

Os engenhos e a concepção de controle “direto”: herança do período colonial

O sistema de produção baseado no engenho de cana de açúcar foi uma das marcas do Brasil colonial, retratado pelos clássicos da literatura e da história brasileira. O longo período de destaque do açúcar como um dos principais produtos exportados (SIMONSEN,

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1978), não foi isento de crises, ou seja, a “nobreza da terra” ou “elite agrária” brasileira do açúcar passou por dificuldades no plano inter-nacional. De acordo com Mello (2003), o episódio conhecido como “a Guerra dos Mascates” teria sido motivado pelo descontentamen-to de parte dos produtores de açúcar do Estado de Pernambuco (nobreza da terra), sediados em Olinda, em relação ao aumento do poder e do prestígio, econômico e político, dos comerciantes do Recife, propositalmente denominados “mascates”, uma vez que estes comerciantes reinóis6 almejavam a autonomia do Recife em relação à Olinda. Neste momento, os Senhores de Engenho se viam endivi-dados junto aos “mascates”, em decorrência da retirada holandesa e seus investimentos no açúcar brasileiro. As Antilhas passaram a gozar deste privilégio (financiamento holandês) e despontava como grande exportador de açúcar, colocando os “mazombos7” numa situação difícil (MELO, 2003).

As crises na produção açucareira estão, historicamente, relacio-nadas às oscilações dos preços nos mercados internacionais. O lon-go período de escravidão, mesmo quando no plano internacional o capitalismo industrial já havia deitado suas raízes, impôs um atraso tecnológico e organizacional, tornando cada vez mais difícil a sobre-vivência dos produtores brasileiros nos mercados internacionais. A dependência do mercado interno aumentava, mas a demanda inter-na crescia a taxas inferiores àquela que resolveria os problemas dos preços.

Mas a crise pela qual passava o setor açucareiro brasileiro, no final do século 19, derivava de um conjunto de fatores, sobretu-do técnicos, uma vez que o sistema de produção industrial utili-zando maquinário desenvolvido nos países que protagonizavam a Revolução Industrial inviabilizava o sistema de produção colonial, já que o que era obtido com a venda dos produtos deste último não era suficiente para cobrir os custos de produção (CANABRAVA,

6 Naquela época significava aquele nascido em Portugal e estabelecido no Brasil, no caso, no Recife.

7 Denominação dada, pelos escravos, aos descendentes de portugueses nascidos no Brasil.

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1997). Contribui para tornar o cenário ainda mais desfavorável para o açúcar produzido nos moldes tradicionais, os problemas relativos à qualidade do produto tradicional quando comparado com aquela obtida pelos novos métodos de fabricação (MEIRA, 2010).

A constatação da inferioridade tecnológica dos engenhos tradi-cionais, somado a proximidade do fim da escravidão e o patamar de endividamento dos senhores de engenho, foi determinante para que o Governo Imperial cedesse aos apelos daqueles que defendiam a intervenção do governo para reverter o cenário negativo do açú-car. A principal reivindicação era que fossem tomadas medidas no sentido de implantar, no Brasil, os Engenhos Centrais. Em 1875, por meio de um decreto, o Governo Imperial passou a apoiar a implantação das instalações industriais, inclusive para estrangeiros, e definiu também a separação entre a produção agrícola e a produ-ção fabril, com objetivo de proteger os fornecedores de cana. Foi justamente esta separação que seria um dos principais fatores da falência dos Engenhos Centrais. Isto porque os fazendeiros, Senhores de Engenho, não abandonaram a produção tradicional, uma vez que ela era uma forma de se contrapor aos Engenhos Centrais quando estes não remuneravam o fornecedor a contento. Portanto, mesmo que em menores volumes, os senhores de engenho mantiveram a produção de açúcar, inclusive aqueles engenhos mais rústicos – os bangüês (MEIRA, 2010).

Este período de implantação dos Engenhos Centrais e da tran-sição do regime de trabalho escravo para o regime de contrato de trabalho, formal ou informal, marcaria o ingresso da produção açucareira no sistema capitalista industrial. Na fase embrionária da indústria açucareira, o equivalente à concepção de Controle Direto estaria associado ao comportamento dos senhores de engenho, de não abrirem mão de sua autonomia e poder local. Mantiveram-se como produtores de açúcar, não se sujeitavam à posição de forne-cedores de cana. Outro indicador do “Controle Direto”, e que se tornaria uma característica desta indústria, era a capacidade de seus representantes exercerem poder sobre o poder do Estado, ou seja, conseguirem desenvolver políticas que atendessem seus interesses, sobretudo o dos Senhores de Engenho do Nordeste.

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A transição do sistema açucareiro baseado na tecnologia e organi-zação social do Engenho de cana de açúcar para o sistema industrial das usinas teve um passo intermediário, os Engenhos Centrais. Os Engenhos Centrais foram bem sucedidos em diversas colônias de países que estavam em plena revolução industrial. Eles foram uma solução típica da concepção de controle da manufatura, que será desenvolvida no próximo tópico.

Engenhos centrais: a concepção de controle “manufa-tureira”

A adoção de máquinas a vapor, caldeiras e outras maquinarias foi um dos fatores responsáveis pela separação entre a atividade agrícola e atividade industrial, uma vez que a quantidade de cana de açúcar necessária para alimentar as novas instalações não poderia ser suprida apenas pela cana produzida em uma unidade de produção agrope-cuária. A inovação tecnológica rompe com o modelo anterior do Engenho tradicional.

De acordo com Meira (2010, p.48),

Indubitavelmente, o plano do Governo Imperial seguiria os moldes de uma experiência bem sucedida, ou seja, escorar-se-ia na experiência dos engenhos centrais antilhanos. Nesse caso, era praticamente impossível desvinculá-la da implantação dos engenhos centrais no Brasil, a estratégia antilhana de atrair capi-tais para o setor da fabricação do açúcar e separar as atividades agrícolas e industriais do setor.

Ainda de acordo com a autora, nos períodos que antecederam a implantação dos engenhos centrais, os senhores de engenhos eram favoráveis, sobretudo, por vislumbrarem a possibilidade de obterem altos lucros, tanto quanto os balanços publicados pelos gestores dos engenhos centrais antilhanos demonstravam.

Mas, contrariando as expectativas, inclusive dos próprios senhores de engenho, no Brasil, os Engenhos Centrais fracassaram. Os inves-timentos nas instalações dos engenhos centrais eram muitos altos e exigiam que estes trabalhassem em plena capacidade. A separação

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entre a produção agrícola e a produção fabril impôs dificuldades no abastecimento de cana. Trabalhando muito abaixo da capacidade potencial, os engenhos centrais não tinham outro destino senão a falência. Acrescentam-se às dificuldades aquelas ligadas à manuten-ção dos equipamentos importados e também a escassez de técnicos especializados. Na avaliação de um engenheiro, responsável por emi-tir pareceres sobre os Engenhos Centrais para o Governo do Estado de São Paulo, o insucesso dos Engenhos Centrais estaria relaciona-do à importação de um modelo bem sucedido, mas em condições sociais, econômicas e históricas distintas da brasileira. Nas palavras de Frederic H. Sawyer,

Afirmamos que a idéia de cooperação, que motivou o estabeleci-mento de engenhos centrais neste Estado entre 1877 e 1884, era radicalmente errada, tomando-se em consideração a condição social do país, onde cada fazendeiro vivia solitário em sua pro-priedade, num isolamento feroz, absolutamente estranho a todo e qualquer espírito de associação, quando não em discórdia com os seus vizinhos. É sempre perigoso transplantarem-se empresas dando resultado em outros países em condições outras, a um meio novo, sem se ter estudado cuidadosamente as novas condi-ções que estas empresas aí acharam. O fato é que tudo fracassou, e estes Engenhos só começaram a trabalhar seriamente, depois de terem sido comprados terrenos para o cultivo da cana, seja diretamente ou por intermédio de colonos a peso. (SAWYER apud MEIRA, 2010, p.102).

Neste período, apesar de ocorrer o entendimento sobre a neces-sidade de atualização tecnológica, não havia preparação para a sepa-ração entre o plantio e processamento da cana de açúcar, conforme sugeria o modelo importado. Apesar do cultivo da cana de açúcar estar ligado à exportação, prevalecia a lógica da agricultura tradicio-nal, onde as unidades produtivas estavam organizadas de forma a depender o menos possível de insumos externos. Inexistiam os mer-cados de insumos e a produção era rudimentar. A falta de adubação e corretivos para o solo era uma das razões da baixa produtividade dos canaviais até o inicio do século 20. O desenvolvimento da indústria passava, necessariamente, pelo desenvolvimento da lavoura. Outro

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obstáculo que contribuiu para inviabilizar a separação da produção agrícola da fabricação do açúcar eram as enormes dificuldades para as atividades de colheita da cana e seu transporte até as instalações industriais.

Os senhores de engenho perceberam que o melhor sistema era o dos engenhos tradicionais, ou seja, era necessário o domínio das partes fabril e agrícola. Assim, imbricaram-se as novas tec-nologias trazidas com as centrais e o velho amanho dos nossos bangüês: a cultura e a fábrica novamente reunidas. (MEIRA, 2010, p.103).

De acordo com Meira (2010), as empresas francesas foram beneficiadas pela adoção dos engenhos centrais, uma vez que o maquinário era, majoritariamente, de fabricação francesa, e tam-bém pelo fato de que, no estado de São Paulo, após a falência dos engenhos centrais, todos foram a leilão e arrematados por grupos franceses.

Mas, apesar da frustração dos Engenhos Centrais, a sua base tec-nológica foi adotada nas usinas. Com a libertação dos escravos, os engenhos tiveram que passar a operar na lógica capitalista, contra-tando assalariados ou estabelecendo novas formas de organização do trabalho. Na fabricação do açúcar, a possibilidade de substituir a mão de obra por máquinas era uma vantagem, uma vez que o fim da escravidão possibilitou novas configurações para o trabalho, como por exemplo, a “morada”, situação em que o trabalhador rural (ex-escravo) solicitava ao Senhor de Engenho uma aérea para morar e cultivar a roça de subsistência, em troca, oferecia seu trabalho no Engenho. Mas o próprio desenvolvimento das instituições do Estado passou a inibir estas iniciativas, uma vez que ficava caracterizada uma espécie de trabalho escravo (GARCIA JUNIOR, 1988). Porém, os problemas trabalhistas iriam acompanhar a indústria sucroalcooleira até os seus dias atuais.

Do final do século XIX até a extinção do IAA, a concepção de controle manufatureira seria predominante. A engenharia seria desenvolvida tanto nas instalações fabris como também na parte agrícola. As principais ações deste período serão indicadas a seguir.

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O álcool entra em cena: a criação do instituto do açúcar e do álcool (IAA)

A tecnologia dos Engenhos Centrais foi gradativamente sendo adotada pelos senhores de engenho, surgindo usinas e usineiros. Mas a necessidade de operar em grande escala fez com que nem todos os senhores de engenho se tornassem usineiros. Alguns migraram para outras atividades, como a pecuária, por exemplo. Isto ocorria quando não se sujeitavam a fornecer para outro, já convertido a usineiro, melhor posicionado no mercado (HEREDIA, 1989). As avaliações solicitadas pelo Governo Imperial sobre o fracasso dos Engenhos Centrais contribuíram para orientar as ações dos senhores de engenho e, sobretudo, do próprio Estado, que passaria a controlar o mercado do açúcar e do álcool.

Uma constante na história da produção açucareira é a oscilação do preço do açúcar no mercado internacional, com alternância de períodos de alta com de baixa nos preços. Para minimizar os efei-tos destas oscilações, sinalizando qual seria o posicionamento do Estado em relação à indústria para as próximas décadas, em 1931, o governo brasileiro instituiu como obrigatória a mistura de 5% de álcool à gasolina importada e, posteriormente àquela produzida no país. Assim, o Estado interferiu diretamente a favor da indústria, criando um mercado garantido para o álcool produzido. Dois anos depois, em 1933 foi criado o Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA, quando o estado assumiu o papel de controlar o mercado sucroal-cooleiro, interferindo diretamente no planejamento das empresas, fixando preços, estabelecendo cotas, controlando as exportações e as importações brasileiras.

A Concepção de Controle que predominou no IAA estaria pró-xima da Concepção de Controle da Manufatura, uma vez que o Planejamento Centralizado, no formato de uma tecnocracia, foi ado-tado para administrar o Instituto. De acordo com Garcia Jr. (2002), as formas específicas de gestão da plantation, sistema baseado na grande propriedade de terra, monocultora, cuja produção era, fun-damentalmente, voltada para o mercado externo, teriam fornecido o arcabouço institucional em torno do Instituto do Açúcar e do Álcool

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(IAA). Após a criação do IAA, foi marcante a dependência que parte das unidades produtivas tinha em relação aos subsídios do Estado, uma vez que “[...] a diferença de produtividade dos rendimentos agrícolas entre o Centro-Sul e o Nordeste é uma constante de 1930 a1990.” (GARCIA JUNIOR, 2002, p.46).

O IAA administrava os mercados do açúcar e do álcool por meio de dispositivos de gestão de natureza interventora. Szmrecsányi (1979) indica a abrangência da atuação do IAA e o amplo controle sobre os mercados, passando pelo controle e acompanhamento da aérea plantada, controle do volume de produção de cada unidade produtiva, da comercialização, por meio do controle dos preços.

Garcia Jr. (1988) chama atenção para o papel do Estado na pas-sagem do mundo do engenho de cana-de-açúcar, cujas bases estavam nas instituições coloniais, para o da grande escala industrial. Esta transformação,

[...] não ocorreu através de autofinanciamento, através do sim-ples reinvestimento dos lucros dos engenhos mais prósperos, e não resultou assim da ação dos “mecanismos de mercado” capa-zes de explicar a passagem de uma a outra escala de produção industrial. Ela só se tornou possível graças às subvenções públi-cas, obtidas através de lutas políticas, cujo móvel era a legitimi-dade mesma da intervenção dos poderes públicos neste setor da economia e suas implicações. (GARCIA JUNIOR, 1988, p.19).

O IAA teria sido o principal instrumento de gestão dos mercados do açúcar e do álcool durante o período de modernização da indús-tria sucroalcooleira brasileira (LEITE, 2005). Da década de 1930 até sua extinção, em 1990, o IAA controlou o mercado sucroalcooleiro e fomentou o desenvolvimento da indústria. Se, por um lado, o Estado interventor marcou este período, por outro, a natureza do capital desta indústria, fundamentalmente nacional e sob controle de famílias tradicionais, seria outra marca desta indústria, neste período. A experiência dos Engenhos Centrais, descrita por Meira (2010), também deixou clara a importância que as empresas estrangeiras, sobretudo as francesas, tiveram no processo de industrialização da produção sucroalcooleira Paulista.

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As concepções de controle em diferentes momentos da indústria sucroalcooleira: uma análise das transformações recentes a partir de uma perspectiva histórica

Até o inicio dos anos de 1990, graças à forte intervenção gover-namental, o mercado sucroalcooleiro apresentava relativa estabili-dade, sobretudo a favor dos grandes grupos industriais. O controle da indústria esteve com famílias representantes da elite agrária e agroindustrial brasileira. Em depoimento a pesquisadores da FGV/CPDOC, João Ometto, membro da FIESP, um dos principais acio-nistas e conselheiros do grupo SÃO MARTINHO, reconheceu a importância que o IAA teve para indústria sucroalcooleira, sobretu-do seu quadro técnico. Mas frisou também que o IAA operava em sintonia com o Ministério da Indústria e Comércio e não com o Ministério da Agricultura (CPDOC, 2011).

Com o objetivo de promover e operacionalizar a modernização, primeiro da agricultura depois da agroindústria, o Estado também incentivou a criação de cooperativas agropecuárias que, no decorrer do tempo, tornaram-se cooperativas agroindustriais (PANZUTTI, 1997). A mais importante organização de interesses dos usineiros na modernização sucroalcooleira foi a Cooperativa dos Produtores de Cana de Açúcar, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (COPERSUCAR).

Além da centralidade do Estado, no processo de moderniza-ção da indústria canavieira, ocorreu um deslocamento do cen-tro do poder deste campo organizacional. Durante o período de modernização da indústria sucroalcooleira constituiu-se também a polarização entre os industriais da região Nordeste, pólo his-tórico que dominou a indústria até a segunda guerra mundial (SZMRECSÁNYI; MOREIRA, 1991), e os da região Centro–Sul, notadamente o Estado de São Paulo, atualmente, responsável por mais de 60% da cana de açúcar produzida no país (UNICA, 2009, 2010). Durante a segunda guerra mundial, a mistura de álcool na gasolina foi excepcional, uma vez que a importação de petróleo ficou comprometida, contribuindo para reforçar a posição do álcool enquanto combustível alternativo.

Na década de 1970, motivado pela grande crise do petróleo, o Estado criou o Programa do Álcool (PROALCOOL) cujo objeti-vo principal era desenvolver uma fonte de energia alternativa ao petróleo, ou pelo menos à gasolina. Direcionado para ao mercado

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doméstico e operacionalizado pelo IAA, o PROALCOOL teve duas fases bem definidas: de 1975 a 1979, direcionada para a produção de álcool anidro, aquele que é adicionado à gasolina; de 1979 a 1989, voltada para a produção de álcool hidratado, substituto da gasolina, com incentivos a produção como ao consumo, particu-larmente via subsídios à indústria automobilística (PAULILLO; MELLO, 2005).

Tanto o IAA como o PROALCOOL foram iniciativas típicas de Estado intervencionista, predominante neste período, mesmo que com regimes políticos distintos. O enfraquecimento do IAA e sua posterior extinção estariam relacionados a um conjunto de fatores: esgotamento do Fundo Especial para Exportação (FEE), financiadora do Instituto; ampliação das possibilidades para o setor e dos atores envolvidos com o ingresso de grande parte deles no setor de energia; pressões da Cooperativa dos Produtores de Cana-de-açúcar, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (Copersucar), principal represente dos industriais no período; carência de infra-estrutura; perda do controle de coordenação do PROALCOOL para uma comissão interministerial (PAULILLO; MELLO, 2005).

Se por um lado, os desdobramentos do PROALCOOL colabo-ram para a extinção do IAA, consumado pelo fortalecimento das ideias de liberalização dos mercados importadas do hemisfério norte (DEZALAY; GARTH, 2000), por outro, durante a desregulamen-tação dos mercados, a COPERSUCAR, principal organização de representação dos industriais no período, provou do seu próprio “veneno”, sofrendo baixas significativas em seu quadro de associa-dos. Paulillo e Mello (2005) indicam o surgimento das principais organizações de representação dos produtores de cana-de-açúcar e dos industriais, no período do PROALCOOL. Na última fase de intervenção do IAA, a estratégia de diversificação da produção ganha amplitude com o álcool hidratado. De certa forma, esta estratégia estaria relacionada à concepção de controle de marketing que irá se manifestar mais plenamente após a extinção do IAA, conforme será apresentado a seguir.

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As concepções de controle em diferentes momentos da indústria sucroalcooleira: uma análise das transformações recentes a partir de uma perspectiva histórica

Extinção do IAA e criação da UNICA: orientação para o mercado e a concepção de controle “financeira”

Na década de 1990, a sociedade brasileira protagonizou um con-junto de mudanças relacionadas diretamente ao posicionamento do Estado em relação à sociedade como um todo e, em particular, à economia. Dezalay e Garth (2000) indicam como, a partir de 1960, os Estados na América Latina sofreram influências diretas das ideias vinculadas ao modelo de Estado Norte Americano. A configura-ção de um Estado de Bem-Estar Social, influenciado pela tradição Keynesiana, passa a ser criticada, fundamentalmente, quanto a sua eficiência econômica. A orientação concorrente, e que gradativamen-te passa a predominar, é derivada das prescrições da teoria econômica neoclássica: a idéia de Estado mínimo (em harmonia com a ideia de mercado perfeito, “leve”, ágil, auto-regulável), regulador e não--intervencionista, contrapõe-se à estrutura hierárquica tradicional (modelo burocrático, “pesado”, lento), caracterizada pelo excessivo intervencionismo governamental. Nesse processo, tanto as profissões como o conhecimento técnico, fundamentalmente, em economia e direito, são exportados/importados do Norte para o Sul (DEZALAY; GARTH, 2000). De acordo com Grün (1999), no âmbito organiza-cional, a lógica financeira estaria predominando sobre a lógica indus-trial. Nos anos 1990, a reengenharia, enquanto ferramenta de gestão, teve um papel análogo ao que a governança corporativa desempe-nha atualmente: modelo de referência para a “modernização”. Ou é possível considerar também que a reengenharia, uma ferramenta de natureza financeira, teria sido incorporada no conjunto das “boas práticas de Governança Corporativa”.

No espaço organizacional estas mudanças estariam fortemente relacionadas às privatizações e seus desdobramentos, como o forta-lecimento dos fundos de pensão enquanto investidores institucionais e a uma nova fase do mercado de capitais brasileiro. De acordo com Donadone e Sznelwar (2004), na década de 1990, durante o pro-cesso de privatização intensificaram-se as fusões e aquisições envol-vendo empresas brasileiras e investidores institucionais, nacionais e internacionais. Este processo seria típico do capitalismo no qual a

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lógica financeira estaria predominando na economia, orientando as estratégias dos principais grupos econômicos, nos diversos espaços industriais (FLIGSTEIN, 2001).

De acordo com Fligstein (1990), uma mesma estratégia pode-ria ser adotada por grupos industriais controlados por indivíduos com diferentes concepções de controle. Por exemplo, a estratégia de ampliar o portfólio de produtos, pode ser justificada como sendo uma estratégia que contribui para a ampliação da participação da empresa no mercado (market share), ou seja, típica de uma concepção de controle de marketing. Mas esta mesma estratégia pode ser justi-ficada como aquela que contribui para a ampliação do faturamento e para diminuir os riscos do empreendimento, tipicamente fruto de uma concepção de controle financeira. E ainda, a mesma estratégia, poderia ser justificada como sendo para aumentar a eficiência da operação produtiva, um modo de justificar a ação estratégica típica da concepção de controle manufatureira. Portanto, para identifi-car a concepção de controle predominante em determinado espaço industrial é importante considerar o campo no qual a indústria está inserida, sobretudo as orientações do estado em relação à economia.

A orientação do estado (interventor ou regulador) está direta-mente relacionada à dinâmica da economia como um todo e de cada mercado, em particular. Desde o inicio da industrialização, as atividades diretamente ligadas à agricultura têm recebido trata-mento diferenciado, mesmo nos Estados com orientação reguladora (ABRAMOVAY, 2009).

A desregulamentação dos mercados do açúcar e do álcool seria uma importante mudança institucional que interferiu diretamente nas regras de funcionamento do mercado sucroalcooleiro. Os grupos empresariais passaram a desenvolver estratégias em função da nova configuração. Estratégias com ênfase em explorar novos produtos e novos mercados predominaram na década de 1990, demonstrando que tanto a concepção de controle de marketing como a concepção de controle financeira predominou entre os grupos mais importantes da indústria. Na década de 1990, os industriais do setor sucroalco-oleiro passaram a desenvolver estratégias para garantir ou ampliar seus mercados de atuação, lançando mão de estratégias de marketing,

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com destaque para as alianças com as indústrias de alimentos e de bebidas, o lançamento de novos produtos (como o açúcar líquido invertido, matéria prima para indústria de refrigerantes) e a amplia-ção de produtos destinados ao varejo (marcas próprias de açúcar; açúcar orgânico; açúcar ligth, etc.) (BELIK et al., 1998). Mas, a partir da metade da década de 1990, a orientação que passou predo-minar foi a que levou à adoção de estratégias tipicamente financeiras. Um dos principais indicadores seria o inicio das operações de fusão e aquisição de empresas, quesito no qual o grupo COSAN se destacou desde a década de 1980.

Uma das principais mudanças no âmbito da indústria foi o sur-gimento da União da Indústria de Cana de Açúcar (UNICA). A UNICA foi criada, em 1997, como resultado da fusão de diversas organizações de representação de industriais, após a desregulamen-tação dos mercados do açúcar e do álcool, no início da década de 1990. De acordo com Paulillo e Mello (2005) ela nasceu da tentativa de conciliar interesses conflitantes entre as antigas organizações de representação, em especial a Associação das Indústrias de Açúcar e Álcool (AIAA) e a Sociedade dos Produtores de Álcool de São Paulo (SOPRAL). Esta última seria uma das principais organizações ori-ginadas durante a segunda fase do PROALCOOL para representar os interesses das destilarias independentes e que, pouco depois, con-gregou também as usinas que se desligaram da COPERSUCAR. Os conflitos giravam em torno da defesa da continuidade da intervenção estatal e do livre mercado. A posição majoritária na UNICA era a favor da liberalização do mercado. Com a liberalização dos mercados do açúcar e do álcool, a UNICA se fortaleceu.

Uma das principais ações da UNICA, na época da sua criação, foi realizada em parceira com a Organização dos Plantadores de Cana do Estado de São Paulo (ORPLANA): a criação do Conselho de Produtores de Cana-de-Açúcar, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (CONSECANA). O CONSECANA é um conselho paritário formado por representantes dos produtores de cana e dos industriais, responsável pela instituição de um sistema de pagamento para a cana crua independente do Estado e que passou a vigorar, primeiro, no Estado de São Paulo e, posteriormente, no restante do país.

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No final da década de 1990, grupos internacionais ensaiavam investimentos na indústria sucroalcooleira brasileira. Na primeira década do século 21, um conjunto expressivo de investidores, nacio-nais e internacionais, ligados, ou não, ao mercado do açúcar e do álcool, ingressou neste espaço industrial. Ocorreu um significativo crescimento da capacidade produtiva da indústria como um todo. Mudaram também as relações de força entre seus principais parti-cipantes.

Se considerarmos a caracterização dualista do sistema de repre-sentação do empresariado nacional, apresentada por Diniz e Boschi (2003), na transição de Estado intervencionista para Estado regula-dor, na indústria sucroalcooleira as esferas oficiais de representação junto ao Estado se enfraqueceram enquanto as esferas de represen-tação alternativas (“associações extracorporativas”) se ampliaram e se fortaleceram. A UNICA ilustra a força das novas formas de representação do empresariado nacional que caracterizou o período de liberalização da economia da década de 1990, e também a sobre-posição das novas formas de representação com aquelas da tradição corporativa, indicada por Diniz e Boschi (2003), uma vez que, está estruturada no formato prescrito pela governança corporativa, ou seja, um Conselho Deliberativo (análogo ao de Administração) e uma Diretoria Executiva profissionalizada. Seu presidente executivo (designado pela organização como seu CEO) tem ocupado também a presidência tanto do Sindicato da Indústria do Açúcar no Estado de São Paulo (SIAESP) como do Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool no Estado de São Paulo (SIFAESP).

Grün (2003) indica como a idéia de governança corporativa pre-dominou sobre a de câmaras setoriais, enquanto forma de estruturar o desenvolvimento de políticas setoriais para as diferentes indús-trias. A UNICA se tornou um modelo de representação de interes-ses do espaço industrial sucroalcooleiro. Como ocorre no âmbito das empresas dominantes no campo sucroalcooleiro, a constituição dos conselhos e das diretorias executivas, requisitos básicos da “boa” governança corporativa, na UNICA, constituiu-se o conselho deli-berativo e a diretoria executiva para articular a indústria como um todo, para adequá-la às ideias que garantiriam sustentabilidade das

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atividades produtivas, fundamental para a aceitação internacional e reconhecimento do etanol como commodity energética. Desta forma, a UNICA se propõe a realizar a governança da indústria, justificando suas ações junto à sociedade, particularmente junto a investidores, consumidores e o Estado.

Em 2008, a Cartilha de Sustentabilidade para os biocom-bustíveis, elaborada com a participação de grandes corpora-ções (Shell, Petrobrás, British Petroleum, Bünge, Toyota), e de Organizações Não Governamentais (ONGs) (WWF e Amigos da Terra-Amazônia Brasileira) foi criticada pela UNICA. UNICA defendeu, em especial, a dimensão econômica da sustentabilidade, ou seja, que os projetos de produção de biocombustíveis fossem avaliados também em função da viabilidade e eficiência econômica UNICA (2010). A UNICA representa o interesse de grandes gru-pos empresariais que, por sua vez, passaram a operar em mercados de capitais, tendo que apresentar seus resultados financeiros a um enorme número de acionistas e demais agentes que operam neste mercado.

A ÚNICA (2011) encerrou 2010 com 123 associadas, “[...] responsáveis por mais de 50% do etanol e 60% do açúcar pro-duzidos no Brasil.” No Conselho Deliberativo da UNICA pre-dominam representantes dos grupos que dominam o campo. O conselho é composto pelo seu presidente executivo (profissional do mercado) e por vinte e cinco representantes de algumas de suas principais associadas. Grande parte dos conselheiros são executivos dos grupos dominantes no campo, que operam na lógica financeira predominante no capitalismo contemporâneo, seja em mercados de capitais (COSAN/NOVA AMÉRICA, SÃO MARTINHO, GUARANI); por serem executivos de subsidiárias de grandes gru-pos econômicos, dominantes em outros campos, (LDCbioenergia, ETHbioenergia/BRENCO); como executivos envolvidos com ope-rações de fusões e aquisições nas quais participaram grupos inter-nacionais (MOEMA/BÜNGE, EQUIPAV/SHREE RENUKA), ou ainda por estarem ligados à COPERSUCAR (SÃO MANUEL, PIONEIROS, ZILOR, FERRARI, COCAL) (MUNDO NETO, 2009). Os representantes destes grupos industriais seriam os princi-

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pais responsáveis pela difusão da concepção de controle dominante no mercado de capitais, a concepção de controle de empresa “valor para o acionista”.

A composição do conselho deliberativo da UNICA reforça a con-cepção de empresa de acionistas junto à indústria como um todo, na medida em que a governança corporativa torna-se o modelo de gestão virtuoso para os grupos que participam do espaço. Nos últi-mos dois Conselhos Deliberativos da ÚNICA, a participação de representantes dos principais grupos da indústria, assim como da COPERSUCAR e de suas associadas, foi majoritária e recorrente (MUNDO NETO, 2012).

Desde a fundação da UNICA, em 1997, até 2011, a diretoria executiva (CEO) foi ocupada por apenas três executivos diferentes: João Ometto (1997-2000), Eduardo Pereira de Carvalho (2000-2007) e Marcos Jank (2007-2011). A partir de 2007, a Presidência executiva está a cargo de um profissional do mercado, já que os dois primeiros são representantes de grupos específicos. João Ometto é o atual vice-presidente do Conselho e foi CEO do grupo SÃO MARTINHO até 2009, Eduardo Pereira de Carvalho, contribuiu para a constituição do grupo ETH Bioenergia, subsidiária do grupo Odebrecht, criada em 2007.

O conselho de administração da UNICA é composto pelos “acio-nistas” mais importantes e sua diretoria é profissionalizada. Fligstein (2003) sugere a metáfora “o mercado enquanto política” para que se possa compreender melhor a dinâmica dos campos organizacionais. Bourdieu (1989) indica porque a ciência é uma das principais fontes de força de legitimação das ações no campo político.

O campo político é, pois, o lugar de uma concorrência pelo poder que se faz por intermédio de uma concorrência pelos profanos ou, melhor, pelo monopólio do direito de falar e de agir em nome de uma parte ou a totalidade dos profanos. O porta-voz apropria-se não só da palavra do grupo dos profanos, quer dizer, na maioria dos casos, do seu silêncio, mas também da força desse mesmo grupo, para cuja produção ele contribui ao prestar-lhe uma palavra reconhecida como legítima no campo político. A força das idéias que ele propõe mede-se, não como

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no terreno da ciência, pelo valor de verdade (mesmo que elas devam uma parte da sua força à sua capacidade para convencer que ele detém a verdade), mas sim pela força de mobilização que elas encerram, quer dizer, pela força do grupo que as reconhece, nem que seja pelo silêncio ou pela ausência de desmentido, e que ele pode manifestar recolhendo as suas vozes ou reunindo-as no espaço. É o que faz com que o campo da política – onde se procuraria em vão uma instância capaz de legitimar as instân-cias de legitimidade e um fundamento da competência diferente do interesse de classe bem compreendido – oscile sempre entre dois critérios de validação, a ciência e plebiscito8. (BOURDIEU, 1989, p.185).

A UNICA atua diretamente no campo econômico e no campo político, mas conta com significativas contribuições do campo científico. Além da constituição de uma diretoria executiva pro-fissionalizada e com fortes vínculos com o meio acadêmico, a UNICA tem reunido lideranças, defensoras do etanol, que tran-sitam no campo científico, no campo econômico e no campo político, ampliando significativamente o poder da organização em diferentes esferas da sociedade brasileira e do ambiente interna-cional. Entre as suas principais ações para ampliar a legitimidade do etanol de cana de açúcar como fonte de energia sustentável, destaca-se o ETHANOL SUMMIT9: fórum de debates interna-cional sobre o etanol e outras fontes de energias alternativas, reu-nindo pesquisadores, lideranças políticas, investidores e demais interessados.

O ETHANOL SUMMIT foi instituído como um evento bia-nual organizado pela UNICA e patrocinado por empresas, asso-ciações, representantes de governo que compartilham de interes-ses em torno dos negócios da indústria em geral e do etanol em específico. Entre as lideranças políticas e econômicas, celebridades,

8 Não é por acaso que a sondagem de opinião manifesta a contradição entre dois princípios de legitimidade antagonistas, a ciência tecnocrática e a vontade democrática, alternando as questões que convidam ao juízo de perito ou ao desejo de militante.

9 Site: http://www.ethanolsummit.com.br/

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nacionais e internacionais, que participaram das duas edições do SUMMIT, estiveram, em 2007, o mega investidor George Soros, que ingressou na indústria sucroalcooleira nacional com o grupo ADECOAGRO, associada da UNICA, e o ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso. Na edição do SUMMIT de 2009, esteve presente o ex-presidente norte-americano Bill Clinton, que detinha investimentos no grupo BRENCO10, e o presidente Luis Inácio Lula da Silva, defensor do etanol brasileiro e também, dos industriais11.

Entre as celebridades acadêmicas presente no SUMMIT ETHANOL, destaca-se o físico e ex-reitor da Universidade de São Paulo, José Goldemberg, um dos pioneiros na academia a defender o etanol de cana de açúcar e o ex-ministro da agricultura Roberto Rodrigues. Goldemberg, desde a época do PROALCOOL, tem atu-ado em agências governamentais ligadas à energia, defendendo a produção do etanol de cana de açúcar como uma energia alternativa. Sua avaliação está focada na análise da eficiência energética do etanol

10 O grupo BRENCO, um dos principais arranjos de private equity na indústria sucroalcooleira (MUNDO NETO, 2008), é representado no conselho da UNICA pelo Sr. Henri Philippe Reichstul, que é “Conselheiro e Diretor-Presidente Executivo da Brenco, e um de seus sócios-fundadores. Anteriormente, foi Presidente da Petrobras, da Globopar, do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Diretor Vice-Presidente Executivo do Inter American Express Bank S.A. Atuou também como membro do Conselho de Administração da Eletrobras – Centrais Elétricas Brasileiras S.A. BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, do CEF –Caixa Econômica Federal e da Coinbra (Louis Dreyfus – Brasil). É membro do Conselho de Administração da Ashmore Energy International, da Repsol-YPF, da PSA-Peugeot Citroen, do Conselho Consultivo da Lhoist do Brasil.”. Site: www.brenco.com.br.

11 O presidente Lula, na ocasião da visita do presidente norte-americano (George Bush) ao país, declarou: “Os usineiros de cana, que há dez anos eram tidos como se fossem os bandidos do agronegócio neste país, estão virando heróis nacionais e mundiais, porque todo mundo está de olho no álcool. E por quê? Porque têm políticas sérias. E têm políticas sérias porque quando a gente quer ganhar o mercado externo, nós temos que ser mais sérios, porque nós temos que garantir para eles o atendimento ao suprimento.” (FOLHAONLINE, 20/03/2007).

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de cana, ou seja, quantas unidades de bioenergia são geradas para cada unidade de energia fóssil empregada. Ele foi homenageado na segunda edição do ETHANOL SUMMIT 2009 pelas contribuições para o desenvolvimento da indústria sucroenergética. Na ocasião, aproveitou para reforçar que há espaço para a expansão do etanol de primeira geração.

De acordo com Grynszpan (2008), Roberto Rodrigues foi um dos atores centrais no processo de institucionalização da idéia de agronegócio no Brasil, pela atuação direta no campo sucroalcoo-leiro, pela contribuição acadêmica12, seja pela ação política, como liderança cooperativista ou ocupando posições de destaque em órgãos governamentais e privados. Conferencista do ETHANOL SUMMIT 2009, recentemente, ele passou a atuar como gestor de investimentos em negócios sucroalcooleiros, nos moldes da indústria de capital de risco, por meio da empresa AGROERG, da qual é fun-dador (AGROERG, 2009). Esta nova forma de entendimento sobre a indústria sucroalcooleira será desenvolvida a seguir.

12 Para ampliar a legitimidade de sua empresa (a AGROERG), algumas dessas contribuições são reivindicadas: “Entre os sócios fundadores, a empresa conta a participação de Roberto Rodrigues, que foi Ministro da Agricultura (2003-2006) e atualmente é produtor e fornecedor de cana de açúcar no Estado de São Paulo. Hoje, a Fazenda Santa Izabel, de sua propriedade, localizada em Guariba (SP), é referência em mecanização de plantio e colheita de cana. Na área técnica-rural, Rodrigues foi pioneiro na introdução do conceito do sistema de rotação de cultura soja-cana, que posteriormente deu origem ao sistema Coplana (Cooperativa dos Plantadores de Cana da Zona de Guariba) e ao projeto Cana/Alimentos, desenvolvido pelo Planalsucar (Programa Nacional de Melhoramento da Cana-de-Açúcar). A partir de convênios com a Unesp (Universidade Estadual Paulista), introduziu novos produtos, variedades e equipamentos que contribuíram para o aumento de produtividade e redução dos custos na Fazenda Santa Izabel. Aliado a isso, criou o sistema de controle de custos de produção, que serviu de base para modelos atualmente utilizados pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) e IEA (Instituto de Economia Agrícola), vinculado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. Na área social, foi o primeiro produtor da região a assinar a carteira profissional e pagar benefícios sociais para todos os trabalhadores rurais.” (AGROERG, 2009).

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Etanol como nova tecnologia: legitimidade para private equities e a difusão da concepção de controle “valor para o acionista”

Para atrair investidores as empresas precisam demonstrar viabili-dade econômica mas também são cada vez mais questionadas quanto à compatibilidade de suas ações em relação às dimensões ambientais e sociais. A “sustentabilidade” passa a ser um requisito obrigatório para as empresas (SARTORE, 2010). A plasticidade do termo e o embate para definição do conceito de “sustentabilidade” no espaço econômico refletem parte da luta pelo poder no seio da sociedade. Para compreender essa disputa, recorreu-se ao conceito de polisse-mia, apresentado por Bourdieu (1983) e sintetizado por Donadone e Grün (2001), no contexto da teoria das organizações, como sendo

[...] o sentido parcialmente compartilhado para um determinado conceito, sob o qual os entendimentos implícitos em torno de sua definição se fixam. Este compartilhamento apenas parcial garante um mínimo de acordo e evita uma crise na relação entre os contendores, para depois evoluir como conflitos simbólicos, em que cada parte tenta registrar como correta a sua versão específica. (DONADONE; GRÜN, 2001, p.113).

Para os estudos sobre sustentabilidade empresarial, o espaço sucroalcooleiro fornece material ímpar: de atividade agrícola e indus-trial objeto de críticas dos movimentos ambientalistas e de direitos humanos, a produção sucroalcooleira passa a ser apresentada como exemplo de produção de energia “limpa”, “renovável”, “sustentável”.

Os grupos sucroalcooleiros, por meio de estratégias orquestradas pelas organizações de representação dos industriais do setor, particu-larmente a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (UNICA), procu-ram cada vez mais se distanciar da imagem de “vilões” ambientais e do histórico negativo em termos de relações sociais, seja nas relações trabalhistas seja naquelas com as comunidades no seu entorno, para se tornarem exemplo de negócios sustentáveis.

No Brasil, a Responsabilidade Social Empresarial (RSE) e a Gestão Ambiental (GA) foram incorporadas às “boas práticas” de

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Governança Corporativa (GRÜN, 2005). Portanto, passa a ser importante não apenas desenvolver ações sustentáveis, mas, prin-cipalmente, divulgá-las, seja como uma prestação de contas para a sociedade, ou mesmo para reforçar a idéia de transparência organi-zacional. Nos comunicados institucionais da maioria das empresas do espaço industrial sucroalcooleiro, mesmo daquelas que, até o momento da pesquisa, não participavam diretamente do mercado de capitais, é destinado um espaço considerável para a divulgação destas práticas. Porém, há uma diversidade de entendimentos sobre o que pode ser enquadrado como atividades de RSE ou GA. Orientando-se pelas tendências internacionais, a UNICA trabalha no sentido de criar a cultura da RSE e GA, e também modelos com métricas que contribuam para a homogeneização e quantificação destas atividades, sobretudo para torná-las mensuráveis no âmbito do mercado finan-ceiro (MUNDO NETO, 2012).

Atualmente, a UNICA consolidou-se como a principal organiza-ção dos interesses dos industriais13. Ela tem atuado em duas grandes frentes: ambiente internacional e ambiente doméstico. Sua missão é “[...] liderar o processo de transformação do tradicional setor de cana-de-açúcar em uma moderna agroindústria capaz de competir de modo sustentável no Brasil e ao redor do mundo nas áreas de eta-nol, açúcar e bioeletricidade”, e suas prioridades concentram-se em iniciativas para tornar o etanol uma commodity e as empresas associa-das “modelos de sustentabilidade sócio-ambiental.” (ÚNICA, 2009).

Aqueles que estão à frente da UNICA procuram justamente dar um novo significado à indústria sucroalcooleira, dar um “novo espírito” aos negócios sucroalcooleiros, no sentido indicado por

13 Existem outras organizações de representação dos industriais nas regiões produtoras (no estado do Paraná, a ALCOPAR, por exemplo, opera em parceira com a UNICA). Em São Paulo, a ASSOCIAÇÃO PROFISSIONAL DA INDÚSTRIA DA FABRICAÇÃO DE ÁLCOOL, AÇÚCAR, SIMILARES E CONEXOS – UDOP é uma das principais “concorrentes”da UNICA. Apesar de ter surgido para representar os interesses das destilarias independentes do Oeste Paulista, durante a segunda fase do PROALCOOL, com o surgimento da UNICA, ela perde força. Atualmente, a UDOP ampliou sua área de representação para aqueles envolvidos com a produção de Biodiesel.

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Boltanski e Chiapello (2009). Percebe-se este esforço desde a cam-panha para substituição do termo álcool combustível para etanol, ou de sucroalcooleiro para sucroenergético, ou ainda na adoção de novas expressões, como bioenergia e biocombustíveis. A defesa se apoia na diferenciação do etanol de cana de açúcar, muito mais eficiente ener-geticamente, do que aquele produzido a partir de outras matérias--primas, em particular o milho, utilizado pelos Norte Americanos e a beterraba, entre países Europeus (JANK; NAPPO, 2009).

Mas a insistência em querer demonstrar a eficiência energética da produção sucroalcooleira ganhou um aliado inusitado: o mercado de Crédito de Carbono. O mercado de Crédito de Carbono, criado no âmbito do protocolo de Kyoto, seria uma solução “de mercado” para os problemas ambientais, gerados pela sociedade industrial. Sob esta perspectiva, diversas atividades industriais no Brasil, a indústria sucroalcooleira em particular, teriam potencial para se tornarem pro-dutores de Crédito de Carbono, por meio dos projetos denominados Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL). Os projetos MDL na indústria sucroalcooleira estariam relacionados à cogeração de energia elétrica a partir do bagaço da cana de açúcar, ao tratamen-to de resíduos industriais e sua posterior utilização como insumos agrícolas, por exemplo.

Outro importante agente na difusão da lógica financeira no ambiente empresarial brasileiro, em geral, e na indústria sucroalcoo-leira, em particular, tem sido o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Nos últimos anos, o BNDES, por meio da subsidiária BNDES Participações (BNDESPAR), tem investido em empresas de diversos segmentos, tanto na vertente de venture capital como na de private equity. Os arranjos nos moldes da indústria de capital de risco, mas com governança corporativa, foram adotados como alternativa para o Estado participar diretamente dos mercados industriais. Diferentemente da época das grandes estatais do período anterior às privatizações, o Estado vem atuando como acionista minoritário, ou seja, como típico investidor do capitalismo acionário. Na indústria sucroalcooleira, a BNDESPAR, até 2011, teve participação direta em três grandes grupos e num fundo de private equity destinado ao setor (MUNDO NETO, 2012).

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Durante a segunda metade da primeira década do século XXI, um conjunto expressivo de gestores de private equities anunciou ter interesses em investir em biocombustíveis, sobretudo no etanol. Os grupos com maior exposição na imprensa de negócios apareceram no período de negociação da fusão entre os grupos Vale do Rosário e Santa Elisa. Entre os grupos mais cotados na época estavam o Governança & Gestão, liderado pelo ex-ministro Antônio Kandir, e o grupo Gávea, controlado pelo ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga. Outro grupo de private equity que anunciou ter inte-resse em investir na indústria sucroalcooleira é o Grupo Rio Bravo, controlado pelo, também, ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco. De acordo com Franco, “O Brasil tem um charme especial do ponto de vista ambiental [...] Estamos olhando oportunidades neste segmento.” (SCARAMUZZO, 2007).

Conforme indicado por Mundo Neto (2012), nos últimos anos, além dos investimentos da BNDESPAR, um grande número de representantes da indústria de capital de risco passou a investir direta-mente em grupos industriais sucroalcooleiros, a exemplo dos grupos COSAN, LDC-SEV, ETH/BRENCO, INFINITY BIO ENERGY, AGROERG, CLEAN ENERGY BRAZIL e fundo TERRA VIVA.

Considerações finais

Os dados levantados por esta pesquisa exploratória permitiram indicar a presença de elementos do capitalismo das economias cen-trais operando, historicamente, na indústria sucroalcooleira, não apenas na forma direta, comumente por meio dos investimentos dos grandes grupos econômicos internacionais e aquisição de ativos, mas, sobretudo, por meio da incorporação de diferentes concepções de controle por parte dos dirigentes industriais e governamentais.

De acordo com os dados empíricos, também ficou comprovada a participação direta do Estado na indústria sucroalcooleira, mesmo na sua fase “liberal”. Mais recentemente, o Estado tem apoiado o processo de consolidação da indústria de forma convencional, ou seja, financiando as operações de incorporações e aquisições e, de for-ma menos convencional, participando como acionista e, em alguns

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casos, com representante no conselho de administração das empresas nas quais possui participação significativa. Por meio da BNDESPar o Estado não apenas apoia e participa diretamente da indústria sucro-alcooleira mas também contribui para a difusão da lógica financeira e legitimação do predomínio das finanças na sociedade brasileira contemporânea (MUNDO NETO, 2012).

As fusões e aquisições, enquanto estratégias financeiras14, compar-tilhadas tanto pelos empresários tradicionais como pelos investidores institucionais, nacionais e internacionais, indicariam uma possível versão brasileira do “capitalismo investidor”, no sentido indicado por Useem (1993), mais perceptível, sobretudo, na segunda metade da primeira década do século XXI. Apresentada como nova tecnologia energética, se não na técnica, mas pela possibilidade de adoção em grande escala e em âmbito mundial (ethanol commodity) e, sobretu-do, pelas futuras e promissoras gerações de etanol (celulósico, ou de segunda geração e de algas, ou de terceira geração) frutos da incor-poração de biotecnologia (ERENO, 2008), a indústria sucroalcoo-leira passou a ser designada de sucroenergética. Esta seria uma das estratégias para atrair investidores que operam na lógica da indústria de capital de risco. Estes, por sua vez, se sensibilizaram pelas “poten-cialidades” da indústria sucroalcooleira. Investidores institucionais, nacionais e internacionais, passaram a investir na indústria sucro-energética, contribuindo para a difusão da concepção de controle “valor para o acionista”, operacionalizada por meio da adoção das “boas práticas” de governança corporativa.

Mas os investimentos dos representantes do capital de risco na indústria sucroalcooleira, sobretudo na vertente de private equity, se diferenciaram do modelo adotado na década de 1990, durante

14 Fligstein (1990) adverte sobre a importância entre estratégia e concepção de controle. A primeira pode ser fruto de concepções de controle distintas. Neste caso, fusões e aquisições poderiam ter sido concebidos por aqueles em que prevalece a concepção de controle de marketing, visando ampliar market share, ou ampliar portfólio de produtos. Mas a mesma estratégia poderia ser fruto da concepção de controle financeira para a qaul as aquisições seriam uma forma mais rápida de crescimento se confrontada com a opção de construção de novas plantas industriais.

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As concepções de controle em diferentes momentos da indústria sucroalcooleira: uma análise das transformações recentes a partir de uma perspectiva histórica

as privatizações (GRÜN, 2009). Ao mudar a forma de apresentar a indústria sucroalcooleira, explorando a dimensão da inovação tec-nológica e suas dimensões “sustentáveis”, estes negócios tornaram-se atraentes (e legítimos) para os gestores de private equities. Por outro lado, eles ilustram também a reconversão dos gestores dos fundos de private equity à Governança Corporativa, o que, no modelo original anglo saxão, seria um paradoxo. O caso sucroalcooleiro permite con-firmar que as novidades gerenciais são importadas, mas não sem um processo de adaptação às especificidades locais. A “tropicalização” das ferramentas de gestão empresarial, indicada por Grün (2009), pode ser percebida na indústria sucroalcooleira, agora sucroenergética, seja em relação à Governança Corporativa e a crescente preocupação com a Sustentabilidade Empresarial, encampadas pelas famílias tra-dicionais, seja nos principais arranjos de Private Equities, com inves-timentos na indústria, também, preocupados em apresentar “boas práticas de Governança Corporativa”, ou ainda no posicionamento do Estado em relação à indústria: acionista minoritário de grandes grupos industriais por meio da BNDESPAR.

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Entre o trabalho degradante e o fim do corte: práticas de responsabilidade

socioambiental no setor sucroalcooleiro

Rosemeire SALATA

Introdução

Nas atuais discussões acerca das chamadas práticas sustentáveis de produção e consumo, o setor sucroalcooleiro paulista vem incor-porando tais questões às suas estratégias gerenciais, especialmente a partir dos anos 2000, momento em que se inicia uma nova fase de expansão do cultivo de cana-de-açúcar no país, com índices eleva-dos de produtividade e a concomitante intensificação do processo de mecanização da colheita de cana. A introdução do corte meca-nizado vem gradativamente sendo efetivada ao longo do processo de modernização da agroindústria sucroalcooleira, no entanto, seu crescimento hoje está relacionado a novos elementos articulados, que referendam principalmente critérios de sustentabilidade ambiental e social desta produção.

Os novos arranjos que surgem no espaço da produção do etanol fazem parte de um movimento mais amplo que se espalha pelos mercados contemporâneos, no qual cada vez mais organizações criam sistemas de gestão, com vistas a reduzir os impactos ambientais e sociais negativos de suas práticas, promovendo uma gestão ante-cipada de sua contestabilidade (HOMMEL apud ABRAMOVAY, 2009) e redefinindo as instituições que dão estabilidade aos mer-cados. Consideramos pertinente para a análise da dimensão social,

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Entre o trabalho degradante e o fim do corte: práticas de responsabilidade socioambiental no setor sucroalcooleiro

e ambientalmente responsável deste mercado, o enfoque político--cultural proposto por Fligstein (2003), segundo o qual o principal desafio dos atores de um mercado consiste na estabilização de seus vínculos sociais. As organizações, a partir desta leitura, passam a ser compreendidas em termos complexos, necessitando da interação com outros atores sociais para a garantia de sua sustentação e legiti-midade (KIRSCHNER, 2006).

Os produtos advindos da transformação da cana-de-açúcar apre-sentam um grande dinamismo na economia nacional e os investi-mentos nesta cadeia produtiva têm aumentado significativamente, sobretudo, através de processos de fusões e aquisições com a partici-pação de fundos de investimentos, especialmente os privates equities (MUNDO NETO, 2009) e os fundos de pensão (JARDIM, 2010). Esta produção vincula-se historicamente, no país, a uma estrutura agrária concentradora, à degradação ambiental e ao emprego de for-mas de trabalho precárias que, hoje, em certa medida, passam a ser problematizadas.

Neste sentido, identificamos a construção de uma nova ima-gem para esta agroindústria, procurando opor-se à tradicional visão negativa que esta atividade adquiriu. Se considerada a constante interação que os aspectos econômicos guardam com a estrutura social, é possível problematizar as respostas dadas pelas empresas para os problemas ambientais e sociais decorrentes de sua produ-ção, relacionando-as a mudanças institucionais, ou seja, mudanças nas “[...] regras partilhadas, sob a forma de leis ou de entendi-mentos coletivos, mantidas por hábito, acordo explícito ou acordo tácito” (FLIGSTEIN, 2003, p.198). Compreendemos que as estra-tégias e ferramentas gerenciais que predominam no capitalismo contemporâneo, tais como a responsabilidade social e a sustenta-bilidade empresarial, apontam para tais mudanças institucionais que dão sustentação aos mercados.

Para procedermos a esta abordagem, resgatamos, sucinta e ini-cialmente, o debate atual sobre a sustentabilidade social e ambiental desta produção e os arranjos institucionais firmados entre Estado, empresas e sindicatos, a fim de adequá-la às chamadas boas prá-ticas empresariais. Discutimos, em seguida, a questão do fim do

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corte manual de cana de açúcar e as ações empresariais e sindicais em torno da responsabilidade social. Por fim, procuramos expor a responsabilidade social das empresas enquanto uma nova modalida-de de negociação sindical, apontando tensões e contradições desta prática que denotam mudanças significativas em relação às formas tradicionais de representação.

Transformações na agroindústria sucroalcooleira: a atuação da UNICA – União Nacional de Cana de Açúcar

O agronegócio sucroalcooleiro tem passado por importantes transformações, principalmente a partir dos anos 2000, verificadas pelo aumento crescente da introdução de tecnologias produtivas, pelas mudanças na organização empresarial e em suas ferramentas gerenciais e, sobretudo, pelas novas qualificações da mão de obra que passa a empregar em função da introdução da colheita mecanizada. Tais reestruturações em curso impactam sensivelmente o mercado de trabalho, bem como as formas de ação das organizações coletivas dos trabalhadores desta cadeia produtiva.

De uma perspectiva mais ampla, torna-se fundamental relacionar as alterações pelas quais passa o setor sucroalcooleiro às transforma-ções no padrão de acumulação do capital, em seu crescente processo de mundialização. Processo este que se realiza, conforme Chesnais (1996), a partir da emergência da lógica financeira e sua determi-nação sobre a esfera produtiva. O dinamismo que caracteriza esta produção e a crescente introdução de inovações técnicas, sugere uma relação estreita com a entrada de novos grupos investidores nos negó-cios sucroalcooleiros, ocasionando mudanças na estrutura de capital das empresas que tendem a adquirir os traços que predominam em outros setores econômicos. A indústria de capital de risco e os grupos de investimentos estão na base das reestruturações socioeconômicas do capitalismo contemporâneo, impactando também nas configu-rações que assume o mercado do etanol brasileiro, conforme sugere a análise de Mundo Neto (2009).

Através de processos de fusões e aquisições e da inversão de capi-tais de grandes grupos financeiros, nos últimos anos, o controle sobre

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parte significativa da produção do álcool brasileiro tem se transferido para grandes grupos transnacionais. De acordo com levantamento realizado por Silva (2011), do ano 2000 para 2010, a participação estrangeira nas indústrias de cana cresceu 20%. Observe-se:

De acordo com o grupo KPMG Corporate Finance, do ano 2000 para 2009, ocorreram 99 fusões e aquisições de usinas no Brasil. Em outubro de 2009, a empresa francesa Louis Dreyfus Commodities anunciou a compra de cinco usinas da Santelisa Vale de Ribeirão Preto. A fusão criou o grupo LDC-SEV Bionergia, tornando-se o segundo maior produtor mundial de açúcar e álcool, ficando o primeiro lugar ao Grupo Cosan, que recentemente se uniu a Sheel. O grupo LDC-SEV tem participação acionária de grandes famílias de usineiros paulis-tas, Biaggi e Junqueira, além do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e do Banco Sachs. Além da fusão entre os capitais investidos na produção canavieira, há a participação de empresas petroleiras (Petrobrás, Shell, British Petroleum), automotivas,biotecnologia, mineração, infra-estru-tura e fundos de investimento. (SILVA, 2011, p.4).

Nas últimas décadas, as discussões em torno dos impactos ambientais do modelo predominante de produção e consumo ganham destaque substancial nos meios políticos e acadêmicos. Ainda, cresce a busca por fontes de energias alternativas ao petróleo que possam ampliar a produção de energia conforme o crescimento da demanda mundial. Nesse contexto, o álcool combustível passa a figurar como potencial fonte de energia a ser utilizado em escala mundial e, a partir da assinatura do Protocolo de Kyoto, começa a ser visto como importante fonte para a diminuição de emissões dos chamados gases de efeito estufa (GEEs), o que faz com que os inves-timentos no mercado dos chamados biocombustíveis apresentem-se como bastante promissores.

Até a década de 1990, o controle da produção, distribuição e comercialização no setor sucroalcooleiro estavam basicamente cen-tralizados no Estado, principalmente através da atuação do IAA – Instituto do Açúcar e Álcool. A partir desta década, novos padrões de regulação e intervenção estatal se consolidam no país, ocorren-

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do a desregulamentação do setor. O surgimento e consolidação da UNICA – União Nacional de Cana de Açúcar – é representativo deste momento do setor sucroalcooleiro, marcado por sua interna-cionalização e a entrada de novos grupos. Importante ressaltar que a postura das usinas em evidenciar suas ações de responsabilidade socioambiental parece coincidir justamente com este momento de fusões e aquisições, e de uma maior visibilidade das empresas no mercado financeiro, através de sua abertura de capitais.

Conforme podemos verificar em trabalho de campo, a produção de etanol brasileiro tem sido um campo promissor de investimentos para grandes grupos econômicos e a elevação do etanol à commo-dity consolidaria ainda mais os ganhos nesta cadeia produtiva. No entanto, a ampla aceitação do etanol brasileiro passa, no contexto atual, pela necessidade de se atestar aos seus principais compradores e investidores a sua sustentabilidade. Neste campo de representação de interesses, a UNICA tem se destacado com uma nova proposta de gestão dos negócios sucroalcooleiros através de iniciativas de diálogo com a sociedade civil, com entidades governamentais, e no investi-mento em projetos de cunho socioambiental. A nova fase (expansiva e fortemente apoiada pelo atual governo) e a nova face (democrática e moderna) do setor parecem suplantar, neste momento, o imenso histórico negativo acumulado, sobretudo quando a mecanização do corte vem eliminar o trabalho manual, fonte histórica de contesta-ções por parte dos sindicatos e outros movimentos sociais que atuam no campo brasileiro. Ressaltamos que esta mão de obra é marcada pela informalidade na contratação e por condições precárias de tra-balho e reprodução social, seu emprego vem sendo reduzido drasti-camente a partir da introdução de máquinas colheitadeiras no setor.

O domínio técnico da UNICA compreende as áreas de meio--ambiente, energia, tecnologia, comércio exterior, responsabilidade social corporativa, sustentabilidade, legislação, economia e comu-nicação. Tem como principais funções liderar o processo de trans-formação do tradicional setor de cana-de-açúcar em uma moderna agroindústria capaz de competir de modo sustentável no Brasil e ao redor do mundo, nas áreas de etanol, açúcar e bioeletricidade (UNICA, 2012). Estabelecendo parcerias com uma série de enti-

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dades, a Associação atua na uniformização das práticas empresariais de suas 146 associadas e no gerenciamento de iniciativas nas áreas social e ambiental.

Conforme Mundo Neto (2009), a UNICA tornou-se um dos principais atores no processo de adaptação das unidades industriais brasileiras, ao fornecer o modelo de organização que estaria em conformidade tanto com as exigências daqueles que participam das discussões sobre energias alternativas no campo energético interna-cional, como junto aos novos investidores. Nesse sentido, as trans-formações pelas quais passa o setor sucroalcooleiro na atualidade estariam ligadas à abertura de capitais e aquisições das empresas por grandes grupos econômicos e fundos de investimentos, em que pre-dominam as ferramentas de governança corporativa, a utilização de modelos de gestão limpa e os programas de responsabilidade social como forma de gerir os negócios.

Soma-se, então, às vantagens competitivas do etanol brasileiro e seu suposto papel de mitigador do aquecimento global, uma agenda de sustentabilidade social por parte das usinas e do governo brasilei-ro, tendo como principais pontos a regulamentação do fim das quei-madas, representada pelo Protocolo Agro Ambiental1, o diálogo com a sociedade civil na resolução dos problemas trabalhistas, expressa na criação do Grupo de Diálogo para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho no Corte de Cana (DULCI, 2012), e a adoção de progra-mas de responsabilidade social pelas usinas da região. As iniciativas em questão procuram reorganizar a produção canavieira, em torno do que se convencionou chamar de boas práticas empresariais.

Nesse sentido, estabelecendo prazo para o fim da queima da palha da cana no Estado de São Paulo, o referido protocolo impacta e reorganiza o trabalho no setor sucroalcooleiro, haja vista a opção pela mecanização do corte de cana. Enquanto uma prática historicamen-

1 Firmado em 2007 pela UNICA e pelo governo paulista, o referido protocolo dispõe sobre o fim da queima da palha da cana em áreas mecanizáveis (terrenos com declividade de até 12%), para 2014, e, para 2017, em áreas não mecanizáveis (declividade dos terrenos superior a 12%), adiantando para 2010 as metas de 70% e 30% de cana não queimada para os respectivos terrenos.

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te utilizada pelo setor, a inviabilidade da queima da palha de cana aponta para o peso da questão ambiental, que vem sobremaneira influenciando as práticas empresariais nos últimas décadas, não se constituindo apenas, na linguagem dos economistas, enquanto uma “externalidade” do processo produtivo mas como parte das próprias estratégias empresariais e como condição para acesso e inserção nos chamados “mercados verdes”.

No mesmo sentido, a reorientação das relações de trabalho vem sendo discutida a partir da Mesa de Diálogo, formada em 2008. Na abordagem da UNICA, a abertura e o diálogo com a sociedade civil é representada pela participação da Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (FERAESP), pela Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e por uma série de organizações não governamentais de cunho ambiental. A mesa teve o duplo objetivo de debater e propor soluções para tornar mais humano e seguro o cultivo manual da cana de açúcar, e também para promover a reinserção ocupacional dos trabalhadores desempregados pelo avanço da mecanização da colheita (DULCI, 2012).

Conforme é sugerido, as iniciativas em questão estão assentadas na ideia de um amplo diálogo social e de um caráter mais demo-crático no tratamento às questões trabalhistas no setor. O sentido democrático contido neste pacto passa pela questão do acordo não possuir força de lei, ou seja, é compreendido como um avanço, fruto do entendimento entre as partes e do reconhecimento empresarial acerca das responsabilidades e obrigações trabalhistas.

Enquanto produto histórico-cultural, as transformações pelas quais passa o mercado sucroalcooleiro na sua forma de gestão ambiental e nos programas de responsabilidade social que realiza constituem um campo fértil de análises para a compreensão das forças sociais que atuam no interior dos mercados. Ainda que este trabalho não comporte uma análise das instituições que dão sustentação ao mercado do etanol brasileiro, sua dimensão de responsabilidade social e ambiental pode ser aclarada através da análise proposta por Fligstein (2003), que buscamos explorar na sequência.

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O mercado e a noção de campo organizacional: a abordagem da sociologia econômica

A chamada Sociologia Econômica congrega uma diversidade de estudos, que têm como pressuposto fundamental de análise o mer-cado enquanto um produto das relações sociais. Desta perspectiva, contesta firmemente a noção da economia neoclássica, uma vez que mercados não consistem fundamentalmente em pontos de encontro neutros entre oferta e procura (ambos socialmente criados), nem são oriundos de atores cujas relações recíprocas limitam-se às que deri-vam do funcionamento do sistema de preços. Mercados são estrutu-ras sociais, isto é, formas estáveis de interação, que são submetidas a sanções (SWEDBERG, 2004) e que são dependentes de rede sociais (GRANOVETTER, 2003). Assim, por este viés analítico, os merca-dos não são entendidos como formas universais e abstratas, impesso-ais ou autorreguláveis. Neste sentido, compreender as estruturas que lhe dão suporte restitui ao mercado sua dimensão social.

Consideramos importante para esta perspectiva, as contribuições de Pierre Bourdieu sobre o agente econômico, conforme nos indica Raud (2007). A análise acerca das preferências e gostos que estru-turam o mercado pode contribuir em alguma medida para a análise do fenômeno da responsabilidade social empresarial. Se, na análise bourdiesiana, por um lado, o ator econômico não é isolado e não pode tomar suas decisões de forma unilateral, e por outro, no ato da compra não se inscrevem apenas lógicas de redução de custos e maximização de benefícios aos agentes, a entrada em cena da res-ponsabilidade social aponta para uma permanente interlocução entre atores econômicos e instituições sociais, as quais são aqui entendidas enquanto regras partilhadas pela sociedade, conformando o que é ou pode ser aceito como legítimo nas práticas empresariais.

Nesse sentido, o ato de compra dos produtos “socialmente res-ponsáveis”, que dá sustentação aos mercados contemporâneos, refe-renda lógicas outras que não apenas a maximização dos benefícios para os consumidores, criando vínculos que, na análise de Portilho (2009), poderiam ser compreendidos como um consumo politizado, pois visam uma reapropriação do mercado com base em valores pró-

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prios. Neste aspecto, produtos com a qualidade da sustentabilidade ganham o aspecto de “dádiva” e “reciprocidade”, ou seja, a compra e venda destes produtos está carregada de valores simbólicos além do preço comercial. Não se pode, portanto, deduzir o funcionamento do mercado da hipótese de agentes isolados e intercambiáveis, uma vez que “[...] é preciso analisar a realidade empírica e reconhecer a dimensão coletiva de muitos agentes sociais, além de sua posição na estrutura social.” (RAUD, 2007, p.218).

Inspirada na concepção bourdiesiana de mercado enquanto um “campo social”, a abordagem político-cultural dos mercados, desenvolvida por Fligstein (2003), questiona o pressuposto do mer-cado como um sistema de equilíbrio, clássico da ciência econômica. Para este autor, as empresas não teriam apenas como único objetivo maximizar os lucros, mas trabalhariam no sentido de estabilizar-se reduzindo incertezas e criando, assim, “mundos estáveis”. A variável política na análise empreendida pelo autor é relevante ao mostrar que, nas economias capitalistas, são os Estados que criam as con-dições institucionais para a garantia da estabilidade dos mercados. A produção de tais instituições é um projeto cultural- a criação e a estabilização dos mercados dependem de quatro elementos princi-pais que, somente quando definidos, poderão atuar no sentido da redução das incertezas dos agentes. Os direitos de propriedade, as estruturas de governança, as concepções de controle e as normas de transação definem, para este autor, as instituições necessárias para a formação dos mercados (FLIGSTEIN, 2003). Nesse sentido, no caso do setor sucroalcooleiro, evidencia-se a participação estatal na sustentação deste mercado quando observados os arranjos institucio-nais por nós apontados, o Protocolo Agro Ambiental e a “Mesa de Diálogo”, que buscam, respectivamente, reorientações nas práticas ambientais e trabalhistas, fornecendo o arcabouço necessário para a sustentação e estabilidade do mercado do etanol em um momento em que está posta a questão da incidência sobre esta produção de certificações no mercado internacional2.

2 Diversas certificações de caráter nacional (União Europeia, Alemanha, Holanda e Reino Unido), institucional (RTSB – Suíça, BSI – Reino Unido) e

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Nessa perspectiva, interessa-nos, particularmente para o estudo da responsabilidade social empresarial, compreendê-la enquanto uma nova concepção de controle no interior das empresas. Se, conforme o autor, nenhum ator econômico pode determinar de antemão comportamentos que estão na origem de uma maximi-zação dos lucros, de modo que as concepções de controle auxi-liam na criação de mundos estáveis, atuando como uma cultura da empresa, com base na diferenciação de produtos objetivando o controle da competição com base nos preços. Funcionando como “ferramentas culturais”, as concepções de controle referem-se aos entendimentos que estruturam as percepções dos agentes acerca do funcionamento do mercado, permitindo aos atores uma interpre-tação e um controle sobre suas ações.

Ainda, de acordo com Fligstein (2003), as concepções de con-trole podem se tornar acordos políticos que trazem estabilidade de mercado às empresas. Nesse sentido, destacamos o “Selo Empresa Compromissada” (RODRIGUES, 2012), concedido às usinas que aderiram ao Compromisso Nacional, derivado da Mesa de Diálogo.

O papel do Estado como agente mediador e o aval do movi-mento sindical é expressivo de um acordo político para a susten-tação do mercado do etanol brasileiro. Desta maneira, as novas lógicas que orientam os atores no estabelecimento de relações mer-cantis, tendo por base as dimensões da responsabilidade social e ambiental, podem atuar na estabilização de vínculos entre empre-sas, trabalhadores, sindicatos e demais instituições, garantindo assim, sua sobrevivência.

Responsabilidade socioambiental e a mecanização do corte da cana: alguns apontamentos

O setor empresarial brasileiro, a partir da década de 1990, passa a incorporar além de suas atividades tradicionais de produção e distri-buição, ações desenvolvidas a fim de gerar algum “retorno positivo”

certificações privadas (SEKAB e GREENENERGY – Suécia e Reino Unido) incidem sobre a produção do etanol brasileiro.

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para a sociedade3. Antes como práticas focalizadas, atualmente as empresas passam a sistematizar e racionalizar suas chamadas ações sociais, criando departamentos internos de responsabilidade social, utilizando-se de consultorias que direcionam seus investimentos e que promovem, através de suas entidades de representação, uma ampla divulgação dos procedimentos para a adequação das empresas à nova agenda.

O debate sociológico sobre a adoção dessas práticas tem se ampliado a partir dos enfoques da Sociologia Econômica. Os con-tornos que ganham os mercados contemporâneos, através da incor-poração de atributos socioambientais aos negócios, vão ao encontro da perspectiva que propõe uma análise dos mercados a partir de sua construção social. Não sendo o local neutro de encontro da oferta e da procura e de atores isolados e racionais, orientados por meca-nismos de preços, a inclusão de tais preocupações no interior dos próprios mercados são demonstrativos de que estes estão imersos na vida social e são construídos a partir dela.

Em relação ao que se convencionou chamar de Responsabilidade Social Empresarial, circunscreve-se um conjunto amplo de práti-cas e de formas de intervenção das empresas em diversas expressões da “questão social”: desemprego, educação, cultura, preservação ambiental, qualificação profissional, etc. Propõe-se ainda, no âmbito das relações de trabalho, a garantia à liberdade sindical e a negociação coletiva, a promoção de condições de trabalho seguras, o respeito à igualdade de gênero, étnica e a eliminação do trabalho escravo e infantil (IOS, 2004).

Comumente, esta prática das empresas tem indicado uma vin-culação estreita com o tema corrente do desenvolvimento sus-tentável. Conforme a apresenta o setor sucroalcooleiro, a prática da responsabilidade social é uma “[...] forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais compatíveis com desenvolvimento susten-

3 Para Paoli (2002), a Fundação Abrinq foi pioneira no Brasil ao formular um “novo papel” para o empresariado.

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tável da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para gerações futuras, respeitando a diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais.” (UNICA, 2008). A UNICA, conforme pontuamos, é a principal entidade representativa dos grupos industriais, que atua no processo de desenvolvimento da responsabilidade social junto à sua cadeia produtiva através de par-cerias com o WBI (World Bank Institute), Instituto Ethos e BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), e na formulação de relatórios de sustentabilidade.

Conforme constatamos, este processo aponta para uma ressig-nificação do papel das empresas na sociedade, propiciando-lhe uma inserção social diferenciada assentada na ideia de construção de laços sociais, solidariedade e de conduta moral, através da qual a lógica do “lucro pelo lucro” se transforma e modifica o próprio conceito de mercado (JARDIM, 2007). Partindo da perspectiva da sociologia das organizações, Kirschner (2006) aponta como as empresas poderiam ser entendidas enquanto construções sociais, fornecendo caminhos de interpretação sobre o recente fenômeno do ativismo empresarial. A partir de tal abordagem, a empresa passa a ser compreendida em termos complexos, estabelecendo relações múltiplas com a dinâmica da sociedade a fim de fornecer elementos que possam lhe conferir estabilidade. Em sua análise, a autora extrapola a concepção do espa-ço fabril como local do antagonismo de classe e, por este viés, que tem por base o trabalho pioneiro de Renaud Sainsaulieu (1997), “a empresa tem uma função identificadora na sociedade e constitui, portanto, verdadeira instituição social: ela instaura um conjunto de relações sociais e culturais e produz, assim, identidades novas” (KIRSCHNER, 2006, p.09).

A partir da compreensão das empresas, não apenas como orga-nismos comerciais, nos termos propostos por esta autora, obser-vamos que determinadas demandas da sociedade contemporânea, presentes fora dos muros das organizações, parecem ter peso na formulação de suas políticas internas. Para Vinha (2001), tal incor-poração poderia configurar-se enquanto uma nova modalidade de negociação sindical, confluindo para uma forma de relacionamento híbrido e mais democrático entre empresas e demais organizações

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sociais. Apoiando-se nos escritos de Karl Polanyi (2000), a autora em questão compreende a responsabilidade social empresarial como parte dos movimentos contraprotetores da sociedade, frente aos ris-cos iminentes engendrados por economias de mercado “autorregu-ladas”. Esta perspectiva também é trabalhada por Jardim (2010), ao identificar a responsabilidade social enquanto uma “nova bandeira sindical” e um novo mecanismo democrático, difundido via mercado financeiro. Importante considerar, na análise das autoras acima, o peso que é conferido à sociedade civil na transformação do mercado quando este passa a incorporar questões sociais em suas estratégias, ficando-se, contudo, sem esclarecer o que de fato é transformado nas relações sociais a partir de tais intervenções.

Se até a década de 1990, o fenômeno da responsabilidade social era localizado e circunscrito a algumas experiências empresariais, a disseminação de tais práticas amplia-se através da incorporação desta convenção pelos mercados financeiros. Conforme aponta Sartore (2010), a temática passa a fazer parte do funcionamento destes mer-cados, através da noção de sustentabilidade empresarial e da criação do ISE – Índice de Sustentabilidade Empresarial – nas bolsas de valores. Nesse momento, conforme aponta a autora, quem passará a ser porta-voz da temática serão as instituições ligadas ao mercado financeiro orientadas pela crença de que empresas que cuidam e investem em aspectos sociais e ambientais propiciam um melhor retorno financeiro. Dentre tais instituições, Jardim (2010) aponta os fundos de pensão brasileiros, investidores institucionais que movi-mentam vultosas somas, e que, nos anos 2000 passaram a colocar em pauta a responsabilidade social nas empresas em que investem.

Conforme o exposto acima, o setor sucroalcooleiro passa a desen-volver, a partir da atuação da UNICA, iniciativas de responsabilidade social junto às comunidades das áreas de influência das empresas. Há uma gama de ações4 que compreende projetos de cunho socioam-

4 “Dicionário Ambiental”, “Programa Cidade pela Paz – Energia Social”, “Projeto Doce Amanhã”, “Projeto Futuro”, “Projeto Teatral Fábrica do Conhecimento” são alguns exemplos de programas desenvolvidos junto às comunidades das áreas de atuação das usinas associadas à UNICA.

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biental, e que apontam justamente para uma inserção diferenciada da empresa, construindo e disseminando práticas que se assentam na construção de laços entre trabalhadores e a comunidade de referência nos territórios impactados pela dinâmica da produção de açúcar e álcool. A mecanização da colheita da cana de açúcar, acelerada na última década em função do fim da queima da palha da cana, dá ensejo a discussões acerca da necessidade de reinserção dos trabalha-dores que tem seus postos de trabalho substituídos por máquinas colhedoras. A opção das empresas pelo fim da queima da palha e pela mecanização do corte é justificada comumente, com base na eliminação da periculosidade e insalubridade presentes nas frentes de trabalho manuais.

No bojo de tais discussões, destacamos as práticas de responsabi-lidade social voltadas à qualificação profissional dos trabalhadores do corte de cana. Conforme observamos5, tais ações constituem-se em processos pedagógicos que tem por finalidade uma adequação técnica e comportamental da força de trabalho para a ocupação de postos abertos pela mecanização, tais como a operação de colheitadeiras, tratores, e para funções de suporte à nova organização do trabalho no meio rural. Ressaltamos o caráter polivalente do trabalho e as dis-posições individuais mobilizadas, tais como a participação e a coope-ração, preconizando o espírito cooperativo e de equipe. Nota-se que a empregabilidade destes trabalhadores passa a ser pauta tanto das empresas quanto do movimento sindical, uma vez que tal iniciativa é fruto de uma parceria entre os grupos sucroalcooleiros, empresas que compõe a cadeia do agronegócio e a FERAESP – Federação dos Empregados Rurais Assalariados Rurais do Estado de São Paulo. Ao analisar a formação do mercado do biodiesel brasileiro, Abramovay (2009) aponta a importância crescente da inserção do movimento sindical no sistema de governança das empresas, como condição para o acesso aos mercados. Um paralelo pode ser realizado aqui para o

5 As observações contidas neste artigo a respeito da qualificação profissional voltada aos trabalhadores do corte fazem parte da pesquisa de mestrado desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/ FCL – Araraquara.

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caso do mercado do etanol, haja vista as mudanças nas formas de negociação, e na convergência entre empresas do setor e movimento sindical, apontando para um consenso em relação ao fim do traba-lho no corte manual e na qualificação como proposta de reinserção destes trabalhadores, colocando em debate as tradicionais estratégias de ação sindical.

Para além dos conteúdos postos em prática, através de tais inicia-tivas, ressaltamos uma inserção bastante restrita destes trabalhadores tendo em vista o número reduzido de vagas abertas e as especifi-cidades próprias desta categoria profissional, tais como sua condi-ção migrante, a baixa escolarização dos trabalhadores, bem como as conhecidas e exaustivas jornadas da maioria dos trabalhadores que ocupam os postos no corte manual. Além disto, interessa-nos destacar, no âmbito do movimento sindical rural, um cenário em que estratégias de confrontação são substituídas pela participação em fóruns tripartites e grupos de diálogo e os acúmulos de uma luta política, em torno de melhores salários e condições de vida para os trabalhadores, são compensadas por políticas de qualificação pro-fissional. Se por um lado, esta convergência de práticas pode ser considerada legítima, buscando fazer frente ao novo momento de mecanização intensa, e entendida como uma necessidade incontor-nável posta a esta categoria profissional, por outro, tal postura se torna problemática, uma vez que esta modalidade de qualificação profissional aponta para uma adequação deste setor a uma nova pers-pectiva de competitividade, desqualifica o desemprego como ques-tão social em seu sentido mais amplo e recoloca a problemática da tecnologia, que se traduz para estes trabalhadores, na necessidade de uma incessante busca por adequação aos novos arranjos produtivos.

Conforme observado por nós, as iniciativas de qualificação profis-sional com a dimensão da responsabilidade socioambiental assentam--se na construção de legitimação das reestruturações em curso, que tem por base principalmente a introdução acelerada da colheita. Tal contexto torna a responsabilidade social dirigida aos trabalhadores uma intervenção precária para a questão do desemprego.

De acordo com Abramovay (2009), o poder transformador da responsabilidade social dependerá, sobretudo, dos diversos capitais

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que os atores em conflito conseguirão mobilizar, apresentando-se como possibilidade aberta de democratização dos mercados pela sociedade civil. Nesse sentido, cabe ressaltarmos a assimetria de poder e de capitais mobilizados pelos atores em questão. Não obs-tante, compreendemos que as posições ocupadas pelos agentes neste processo acabam por tecer os contornos contemporâneos do “mer-cado do etanol”, conferindo-lhe sustentação.

Considerações finais

Buscamos evidenciar, nos limites deste trabalho, que as empresas na atualidade não se limitam apenas a manter recursos econômicos e operações visando ao lucro, operando segundo a lógica do homo oeco-nomicus. O papel da empresa, conforme salienta Kischner (2006), não se reduz a um mero organismo comercial mas fabrica também emprego, tecnologias, modos de vida e cultura. Destarte, afirmar o enraizamento social dos fatores econômicos, no caso da responsabi-lidade social, é compreender as respostas empresariais dadas às ava-liações sociais que passam pelo crivo das regras partilhadas em torno do que é aceito nas práticas empresariais. Na atualidade, conforme buscamos demonstrar, a “moral subjacente” à responsabilidade social passa pela convenção do desenvolvimento sustentável e tem por base a instituição de um “capitalismo civilizado”, afirmando uma nova cultura empresarial.

Pretendemos expor de forma sucinta, a “ressignificação” da ideia do lucro empresarial e associamos a responsabilidade social a uma concepção de controle que, antes de maximizar os lucros empresa-riais, pretende criar ambientes estáveis de mercado entre empresas, compradores, funcionários e acionistas, tendo por base, e propician-do, a sobrevivência e a estabilidade das organizações. Além disso, buscamos destacar o papel do Estado Brasileiro na estruturação deste mercado, bem como os “acordos políticos” para sua manutenção.

Para Grün (2005), a responsabilidade social empresarial integra a chamada governança corporativa das empresas e indica uma maior transparência e capacidade de direção aos investimentos, compor-tamento que associa à tradicional ideia de mercado características

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próprias da esfera cívica e conjuga, retoricamente, ganhos econô-micos e causas sociais, estas últimas tradicionalmente associadas aos movimentos sociais. O olhar sobre o programa de qualificação que apontamos demonstra claramente que não se trata de ações de filan-tropia ou benevolência empresarial, mas sim de um estágio ulterior de desenvolvimento e racionalização destas práticas, alinhadas à uma nova concepção sobre a política de recursos humanos nas empresas.

A aproximação do mercado às preocupações sociais passa pelo que Jardim (2007) entende como a “sacralização do profano”. O lucro empresarial, através das medidas de responsabilidade social, é transformado em lucro “justo e puro”, em contraposição ao lucro “sujo” de empresas poluidoras e despreocupadas com o “social”. Assim, conforme procuramos evidenciar, a atuação do setor sucro-alcooleiro em ações de responsabilidade social ultrapassa as relações mercantis já que não limita a operações de lucro, passando assentar--se numa inserção social diferenciada na sociedade.

Na análise de Paoli (2002), a afirmação de um poder empresarial sobre as comunidades que são alvos de ações de cunho social indi-ca outra forma de encaminhamento dado aos conflitos sociais na atualidade, passíveis agora, de serem solucionados pela via da atua-ção social das empresas. O olhar que lançamos sobre a qualificação profissional voltada aos trabalhadores do corte mostra que a mesma coaduna-se com tal perspectiva, uma vez que atua na seleção de trabalhadores e reafirma um determinado controle sobre as relações de trabalho no setor. Desta maneira, pretendemos demonstrar como as dimensões sociais e ambientais reorganizam as práticas do setor sucroalcooleiro, apresentando-se como elementos que (re)constroem e sustentam o “mercado do etanol” brasileiro.

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Finanças para todos(as)? popularização e democratização da bolsa de valores de São Paulo e o projeto de inclusão das mulheres

Joyce ANSELMO

Introdução

Autoajuda financeira, programas na TV que enfatizam a impor-tância em administrar bem as finanças pessoais e famílias sendo educadas financeiramente em programas de grande audiência são, entre outros, mecanismos cada vez mais utilizados para divulgar a nova crença imposta pelo contexto atual de dominação das finanças (GRÜN, 2005, 2007).

Este trabalho compreende a educação financeira como uma cren-ça produzida no mundo das finanças em que a financeirização não se refere apenas às mudanças econômicas, mas é um estado, um processo que envolve valores morais, culturais, políticos, simbólicos e sociais, presentes no mercado que se configuram e se (re)configu-ram colaborando assim para a transformação cognitiva da sociedade.

Embora o tema venha sendo a muito discutido em países como Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, no Brasil as iniciativas são bastante recentes, sendo um misto de estratégias de caráter público e privado. Buscando estimular mudan-ças culturais nos indivíduos, concomitantemente, os projetos de edu-cação financeira buscam transformar a cultura das organizações e do capitalismo contemporâneo.

Tal como destaca Jardim, “[...] discursivamente, a preocupação consensual dos atores e das instituições que fazem parte da construção

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social do tema é levar orientação aos novos consumidores das classes C e D.” (JARDIM, 2013, p.1), já que este, desprovido de conheci-mento sobre o tema, encontra-se imerso em um contexto de facilita-ção do acesso ao crédito, do aumento do poder aquisitivo da popu-lação e, consequentemente, do aumento da taxa de inadimplência.

Assim, educar financeiramente a população passou a ser um tema vigente, sobretudo, em organizações de grande prestígio internacio-nal, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Esta veio a tornar-se a grande porta-voz na área, com um discurso sobre a conscientização do câncer financeiro, que estaria adoecendo tanto as empresas quanto os indivíduos.

Para a OCDE (2006), a educação financeira é importante, e não apenas para os investidores, mas, sobretudo, mostra-se essencial para as famílias, para que estas equilibrem seus orçamentos, comprem uma casa, reservem seu dinheiro para a educação dos filhos e para a aposentadoria.

Em documento intitulado A importância da educação financeira1 (OCDE, 2006), a educação e a conscientização financeira seriam importantes uma vez que assegurariam o bem estar financeiro, pois, de acordo com a instituição, as pessoas não podem escolher poupan-ças ou investimentos adequados e evitar o risco de fraude se elas não têm uma sólida compreensão das questões financeiras.

Com esse intuito foi criado, no ano de 2003, o Projeto de Educação Financeira2, no ano de 2005 o relatório intitulado Melhorando a Educação Financeira: análise de questões e políticas3 e, em 2008, foi inaugurado o portal internacional da educação finan-ceira, que busca promover a troca de experiências com diversos países a partir da construção de uma base de dados internacional, a qual busca reunir informações sobre os programas de educação financeira desenvolvidos no mundo.

No Brasil, a nível estatal, a educação financeira aparece pela pri-meira vez durante o Governo Lula, a partir da criação, no ano de

1 Tradução para L’importance de l’éducation financière.2 Tradução para Financial Education Project.3 Tradução para Improving financial literacy: analysis of issues and policies.

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2007, da Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF) e, em 2010, do Comitê Nacional de Educação Financeira (CONEF), aprovado pelo Decreto n°7.397, de 22 de dezembro do mesmo ano.

No âmbito privado, uma importante iniciativa foi a da Bolsa de Valores de São Paulo, hoje BM&FBOVESPA, que, a partir do ano de 2001, sob o comando de Raymundo Magliano Filho, iniciou um projeto de democratização e popularização do mercado de ações por meio do projeto BOVESPA Vai Até Você. Nesse panorama, surge o projeto Educar-Mulheres em Ação como um dos módulos do BOVESPA Vai Até Você.

De maneira resumida, cabe mencionar que a Bolsa de Valores não compreende o Sistema Financeiro Nacional como um todo. No campo financeiro, a BM&FBOVESPA é uma instituição secundária do mercado de capitais, ou seja, “[...] de um conjunto de mercados, instituições e ativos que viabiliza a transferência de recursos finan-ceiros entre tomadores (companhias abertas) e aplicadores (investi-dores) destes recursos4.” Assim, antes das ações das empresas serem negociadas na Bolsa, a abertura ou não do capital dessas empresas é regulada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que fiscaliza todas as operações que ocorrem no mercado de capitais bem como seus participantes.

Busca-se aqui, no entanto, abordar os mecanismos que são utili-zados pelo programa da Bolsa de Valores de São Paulo para a inserção das mulheres no mercado financeiro a partir da análise do material didático entregue no curso. Para tanto, em seguida, serão aponta-dos acontecimentos e características do projeto de democratização e popularização da Bolsa de Valores de São Paulo.

Projeto de popularização do mercado de capitais

Para compreendermos o ambiente em que surge o Mulheres em Ação, é necessário, primeiramente, trazer um panorama sobre o con-texto no qual o projeto se insere no interior da própria instituição Bolsa de Valores de São Paulo. O Educar-Mulheres em Ação é com-

4 Disponível em: <http://www.portaldoinvestidor.gov.br>. Acesso em: jun. 2012.

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preendido aqui como um espaço social5 direcionado exclusivamente ao público feminino.

A importância que atribuímos à construção desse espaço deve-se ao fato do mercado financeiro ser diretamente associado ao público masculino, local de especuladores e investidores milionários. Porém, cabe ressaltar que, além de contar com esse instrumento, a importân-cia das mulheres no mundo das finanças é ressaltada também a partir de inúmeras publicações de autoajuda financeira, tais como: Meninas normais vão ao shopping, meninas iradas investem na bolsa (ASSEF; LUQUETE, 2011); Mulheres boazinhas não enriquecem (FRONKEL, 2006), entre outros (LEITE, 2012).

Como apresentado por Leite (2012), no que concerne aos livros direcionados ao público feminino, estes seguiriam um modelo de guia cultural, porém realçando:

[...] massivamente questões sobre consumo supérfluo e as fases biológicas e sociais (profissão, adolescência, noivado, casamento, filho, divórcio, novo namorado, TPM, gravidez, envelhecimen-to, etc.) da vida da mulher. Essas publicações englobam temas mais relacionados com os aspectos emocionais da mulher, mas muitas vezes, a orientação sobre o dinheiro não é suficiente, tornando necessária a referencia a terapias para a solução e pro-blemas econômicos. (LEITE, 2012, p.107).

No entanto, o caminho trilhado pela campanha de populari-zação, do qual o Mulheres em Ação é fruto, teve como ponto de partida a Operação Congresso, no ano de 2001, que liderada pelo então presidente da Bolsa de Valores de São Paulo, visava à isenção da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) que, desde o ano de 1997, estaria reduzindo a competitividade do mercado acionário brasileiro.

5 De acordo com Bourdieu (1989, 1998) o espaço social é um conjunto de posições distintas e coexistentes umas as outras, definidas umas das outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de fronteira e de distanciamento. A diferença, portanto, fundamentaria a noção de espaço. No entanto, a posição ocupada no espaço social ordena as representações deste espaço e as tomadas de posição nas lutas para conservá-lo ou transformá-lo.

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Batalha exitosa, o mais importante a ser destacado são as alianças que foram conquistadas nessa empreitada, sobretudo com Paulinho da Força, presidente da Força Sindical, que vieram a contribuir de maneira excepcional tanto para a imagem de uma Bolsa de Valores popular como para a concretização do programa Bovespa Vai Até Você.

Como retratado pelo livro A Bolsa na Estrada (PILAGALLO, 2004), o primeiro encontro de Magliano Filho e Paulinho em prol de um objetivo comum ocorre anos antes da batalha pela isenção da CPMF nos negócios com ações, durante a consolidação do proces-so de redemocratização em nosso país. No ano de 1988, Magliano Filho, então vice-presidente da Associação Comercial de São Paulo, e Paulinho, uma liderança sindical emergente, subiram juntos ao palanque reivindicando, juntos, interesses tanto do capital quanto do trabalho (PILAGALLO, 2004).

Então, no ano de 2001, o recém empossado presidente da Bolsa, Magliano Filho convidou Paulinho, já presidente da Força Sindical, para visitar a instituição. Nasce desse encontro a parceria entre a Bolsa de Valores de São Paulo e a Força Sindical. Encontro carregado de simbolismo que mostra-nos, tal como sugere Grün (2007), que estamos diante da dominação das finanças que, como uma guerra cultural, catequiza diversos grupos de acordo com seu evangelho.

Como observado por Leite (2008), é o discurso de Raymundo Magliano Filho, atrelado aos ideários da corrente teórica da Nova Ordem Financeira, corrente que propõe a democratização das finan-ças que marca a nova imagem do mercado financeiro no Brasil. No entanto, para compreendermos a importância dada ao tema da democratização e popularização do mercado financeiro no discurso e na prática de Raymundo Magliano Filho, cabe fazermos uma breve digressão histórica acerca do passado recente dos investidores que caracterizavam o mercado financeiro brasileiro, bem como a influên-cia de grandes pensadores como Immanuel Kant e Norberto Bobbio.

Retomamos os anos de 1990, mais precisamente ao ano de 1994, com a implementação do Plano Real e a eleição de Fernando Henrique Cardoso para Presidente da República. Tal como apon-ta a obra que descreve o programa de popularização da Bovespa,

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o problema da inflação que fora superado com o Plano Real e o comprometimento do Governo Cardoso com a privatização de empresas estatais que poderia impulsionar o mercado de ações no Brasil, a partir da abertura de capitais dessas empresas, não ocorreu da mesma maneira que em países como Grã-Bretanha, Itália, França, entre outros (PILAGALLO, 2004). Diferentemente do que ocor-rera nesses países, em que o objetivo era pulverizar as ações entre a população, no Brasil, ao invés de abrir os papéis emitidos a partir da privatização a qualquer investidor, o governo teria permitido que apenas grandes consórcios de peso viessem a participar do processo. Competindo entre si, os consórcios, “[...] ofereceriam ágios sobre os preços mínimos, gerando recursos para ajudar a fechar as contas públicas.” (PILAGALLO, 2004, p.33).

A primeira estatal a promover a venda pulverizada de ações, ou seja, a toda a população, foi a Petrobrás. Em 2000, 337mil traba-lhadores puderam usar parte de seus recursos depositados no FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) para comprar ações da antiga estatal. Já, no ano de 2002 a Companhia Vale do Rio Doce optou pelo mesmo esquema. No caso da Vale, o número de pessoas que quiseram participar foi de 600mil trabalhadores.

Porém, como nota Pilagallo (2004) nos dois casos, o efeito das vendas das ações tanto da Petrobrás quanto da Vale foram limitados. O problema seria o fato de ter sido colocado à disposição de peque-nos investidores lotes relativamente pequenos de ações. No que se refere aos novos investidores, para decidir comprar os papéis “[...] a alternativa seria manter o dinheiro no FGTS, com juros de 3% ao ano, mais a taxa referencial (TR6).” (PILAGALLO, 2004, p.33).

6 Sigla para Taxa Referencial de Juros. A TR foi criada no Plano Collor II em 1991 com a intenção de ser uma taxa básica referencial dos juros a serem praticados no mês. Atualmente é utilizada no cálculo do rendimento de vários investimentos, tais como títulos públicos, caderneta de poupança. E também em outras operações, tais como empréstimos do SFH, pagamentos a prazo e seguros em geral. A metodologia de cálculo da TR tem como base a taxa média mensal ponderada ajustada dos CDBs prefixados das 30 instituições financeiras selecionadas, sendo eliminadas as duas de menor e as duas de maior taxa média. A base de cálculo da TR é o dia de referência, sendo

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Portanto, como observado, desde a presidência de Alfredo Rizkallah, que antecedeu a de Magliano Filho, a ideia de populari-zação já estava presente em campanhas publicitárias. Com o slogan “Privatização democrática, seja sócio dessa ideia”, era resumido o ponto de vista da Bolsa de Valores de São Paulo. Com conteúdo didático, os anúncios da época traziam mensagens que perpassa-vam a diferença entre a privatização para poucos, modelo que teria sido seguido até o momento, e a privatização democrática, novo modelo proposto pela instituição. No anúncio reproduzido abaixo, exemplifica-se a estratégia adotada pela Bovespa: “Democratizar as privatizações significa repartir o capital das estatais com todo mun-do: pessoas físicas, fundos, investidores nacionais e estrangeiros [...] Nos países onde o capital acionário é democratizado, as empresas pagam bons dividendos, aumentando a renda dos trabalhadores.” (PILAGALLO, 2004, p.33).

Associado a estes acontecimentos, as fortes oscilações cambiais que marcaram a economia brasileira durante os anos de 1990, não levaram investidores de longo prazo à Bolsa, incentivando a entrar no mercado de ações, como acontece em situações de incerteza, ape-nas àqueles que almejam ganhos imediatos. É nesse contexto que Raymundo Magliano Filho assume a presidência da então Bovespa, que mais tarde, no ano de 2007, veio a se tornar BM&FBOVESPA, com a junção da Bolsa de Mercadorias e Futuros e Bolsa de Valores de São Paulo.

No entanto, a estratégia da Bolsa de Valores para atrair novos investidores não poderia depender apenas das conjunturas econômi-cas e políticas. A estabilidade econômica já era uma realidade, faltava atrair esses novos agentes à Bolsa. Para isso, tornou-se necessário mudar a imagem que a população tinha dessa instituição. Com esse intuito, ao tomar posse como presidente da Bovespa, em janeiro de 2001, Magliano Filho discursou diante de 1.300 convidados e lan-çou o desafio de democratizar o mercado de ações, sobretudo com o diálogo com o Governo Lula, a partir de 2003.

calculada no dia útil posterior. Sobre a média apurada das taxas dos CDBs é aplicado um redutor que varia mensalmente. Disponível em:<http://www.igf.com.br>. Acesso em: jul. 2012.

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Como abordam diversas entrevistas dadas por Magliano Filho tanto para as revistas especializadas como ao livro elaborado pela própria Bovespa, a formação intelectual do chamado Revolucionário da Bolsa foi determinante para os rumos seguidos pela instituição. Em entrevista dada à revista Época Negócios, Raymundo Magliano Filho revela que, ao invés de seguir os modismos dos modelos eco-nômicos, que mudam de ano a ano, prefere se debruçar à leitura de clássicos como Kant e Bobbio.

De cada um desses teóricos Magliano Filho teria tirado um ensinamento que foi introduzido para transformar uma instituição elitista em uma instituição com característica popular. Os proje-tos educacionais seriam, no entanto, pautados nos pressupostos enunciados por Kant acerca do esclarecimento como caminho para a emancipação do homem. Já, de Norberto Bobbio, a inspiração teria vindo dos princípios de visibilidade, transparência e acesso. Seguindo esses pressupostos surge o programa de popularização Bovespa Vai Até Você. Como aborda Magliano Filho na entrevista citada:

Bobbio enfatiza duas coisas “[...] transparência e visibilidade”. Foi durante uma aula particular com Cláudia Perrone-Moisés, professora de direito internacional da USP [...], que surgiu a questão. “Pensávamos: transparência a bolsa tem. Basta entrar no nosso site e está tudo lá. Mas, e visibilidade, o que seria?” A solução foi encontrada no próprio Bobbio, para quem visi-bilidade é a “diminuição do espaço físico entre o governan-te e o governado”. “Ai foi simples”, recorda Magliano Filho, “Chegamos à conclusão de que visibilidade era não esperar que o cidadão viesse à bolsa; mas ao contrário, ir de encontro ao cidadão. (MAGLIANO FILHO, 2009, p.3).

É a partir desse contexto, do resultado da formação de alianças, tal como com Paulinho da Força e o Governo Lula, e, sobretudo, da trajetória de vida e formação intelectual de Raymundo Magliano Filho que ganha ênfase o processo de popularização e democratização da Bolsa de Valores de São Paulo.

Como observa Leite (2008), o projeto de uma Bolsa para todos “foi uma iniciativa” de Magliano Filho “[...] sem participação do

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Governo, atrelado apenas à iniciativa privada e inspirado na ideia de transparência do filósofo italiano.” (LEITE, 2008, p.8), porém em diálogo com o Estado.

Inspirado por esse contexto e expressando essas ideias, surge o programa de popularização Bovespa Vai Até Você, o percussor de programas como o Educar-Mulheres em Ação. Porém, na prática, tudo começou com o projeto Bovespa Vai à Fábrica, que mais tarde veio a ser considerado um dos módulos do programa mais abrangen-te. Com o Bovmóvel, base itinerante que leva conhecimento didático sobre o mercado financeiro ao público em geral, consultores da Bolsa de Valores de São Paulo tiveram sua primeira empreitada em empre-sas localizadas na Grande São Paulo e na Região Metropolitana de Campinas. A primeira visita foi realizada na fábrica da Olimpus, na zona sul de São Paulo.

No entanto, já havia sido criada, no final de julho de 2002, em decorrência da parceria com a Força Sindical, no Palácio do Trabalhador, uma sala da BOVESPA, onde promotores do pro-grama de popularização estão à disposição para tirarem dúvidas dos trabalhadores sobre o investimento em renda variável. O resultado dessa parceria, que se iniciou na luta contra a cobrança da CPMF sobre investimentos em ações, teve como primeiro fruto a criação do clube de investimentos Força 1, em setembro de 2002.

Daí em diante, o Bovmóvel iniciou viagens que tinham como intuito divulgar o papel da bolsa para a sociedade e, sobretudo, levar conhecimento e atrair novos investidores ao mercado de ações. A via-gem mais emblemática foi a Bovespa Vai à Vale, em que de janeiro de 2004 a junho do mesmo ano, o posto de autoatendimento percorreu 4.700 km, da cidade do Rio de Janeiro à cidade de Carajás, no Pará, ocasião em que foram visitados trabalhadores da Companhia Vale do Rio Doce.

Em suma, o programa de popularização Bovespa Vai Até Você, criado no ano de 2002 abarca os seguintes módulos:

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Figura 1 – Módulos que compõem o Projeto Bovespa Vai Até Você

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do livro A Bolsa na Estrada (PILAGALLO, 2004).

É nesse contexto que verificamos o avanço das finanças no Brasil. Portanto, para que esse avanço fosse possível, diversas reformulações foram necessárias, sobretudo no imaginário da população brasileira no que concerne ao mercado de ações. Os projetos de popularização visam, primeiramente, educar financeiramente a população, para então desmistificar a imagem, que há muito foi criada sobre o mer-cado de ações, como sendo destinado apenas a um grupo restrito.

Para tanto, foi necessário um processo de ressignificação da pró-pria instituição Bolsa de Valores de São Paulo. O empenho da ins-tituição situou-se em criar novas crenças, sobretudo por meio da Educação Financeira. Tal como ressaltado por Jardim (2013), “[...] as mudanças culturais somente são possíveis como resultados de trans-formações cognitivas dos indivíduos, ou seja, da transformação das categorias de pensamento, no sentido de Durkheim.” (JARDIM, 2013, p.7).

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Tais medidas teriam como objetivo moldar as estruturas men-tais, impondo uma nova forma de pensar. Em suma, por meio da educação, do grande trabalho realizado pela imprensa, tanto dentro da hoje BM&FBOVESPA quanto pelos grandes veículos de comu-nicação, representados por jornais, revistas e emissoras de TV, foram determinantes para a construção da nova imagem do mercado de capitais no Brasil. Livros publicados pela própria Bolsa de Valores, matérias de capa em jornais e revistas de grande circulação, como a matéria do jornal norte americano The New York Times, que trazia o presidente da Bolsa de bermuda e camisa pólo, e a próprio codi-nome atribuído à Magliano Filho de “O Revolucionário da Bolsa” contribuíram enormemente para a desmistificação da bolsa de valores como um cassino para ricos e especuladores.

Diante dessa conjuntura é criado o programa Mulheres em Ação, que hoje compõe um dos módulos do Projeto Educar7. Assim, cria-do no ano de 2002, o Projeto Mulheres em Ação surge, de acordo com os dados disponibilizados pela BM&FBOVESPA, tendo como objetivo divulgar o que denominam de cultura do poupar, sendo um canal entre o mercado de ações e as mulheres, sobretudo a partir de um trabalho de educação financeira. Para atingir tal público foi cria-do um site no qual inúmeras ferramentas estão disponíveis, tais como o Dicionário de Finanças online, planilha de orçamento pessoal, e dicas sobre como investir na Bolsa, vídeos, etc. Já, ao participarem do curso, os agentes presentes recebem a cartilha do curso, tal como será apresentado no item seguinte.

Projeto de inclusão das mulheres no mundo das finanças – educar-mulheres em ação

Uma mulher, com seu computador portátil e uma criança nos braços, assim é a capa do material didático entregue no curso. No

7 O Projeto Educar é um projeto educacional desenvolvido pela BM&FBOVESPA, que tem como intuito educar financeiramente a população e divulgar a crença do poupar. Seus módulos são: Educar Júnior, Educar Teen, Educar Sênior, Educar Master, Educar Mulheres em Ação e Educar Família.

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chamado Guia de Planejamento Financeiro, desde as primeiras pági-nas, as mulheres são apresentadas como transformadoras e como realizadoras não apenas de seus desejos particulares, mas, também dos desejos familiares.

De maneira esquemática, o conteúdo é composto de 5 capítulos, sendo eles:

Tabela 1 – Guia de Planejamento Financeiro: Programa Educar-Mulheres em Ação

CAPÍTULOS

Capitulo 1. Você tem mais dinheiro do que imagina!!

Capítulo 2. Família, a união faz a força

Capítulo 3. O outro lado: a sedução do crédito

Capítulo 4. Discutir a relação

Capítulo 5. Onde você está e aonde quer ir

Fonte: Elaboração própria com base no Guia de Planejamento Financeiro do Programa Educar-Mulheres em ação.

O primeiro capítulo, “Você tem mais dinheiro do que imagi-na”, visa divulgar a importância do hábito de fazer orçamentos. Essa tarefa apresenta-se, de acordo com o conteúdo, como uma mágica, pois a conquista dos objetivos almejados teria início a partir de um orçamento bem feito. Assim é apresentada a plani-lha de orçamento pessoal, que também está disponível no site da BM&FBOVESPA8.

Devem ser incluídos nas planilhas todos os gastos, o objetivo é que as mulheres sejam bastante criteriosas ao organizarem suas finan-ças e se, “[...] ao final descobrir que seu saldo é negativo, ou seja, as despesas superam a receita, refaça as contas.” (BM&FBOVESPA, 2013). Esse processo deve ser repetido quantas vezes for necessário, “[...] reduzindo, a cada etapa, uma fração das despesas, de tal for-

8 Planilha disponível em: http://www.bmfbovespa.com.br/pt-br/educacional/orcamento-pessoal.aspx?idioma=pt-br . Acesso em: maio 2012.

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ma que você consiga não apenas encaixar seu orçamento dentro do salário, mas ter uma sobra para iniciar seu plano de investimento.” (BM&FBOVESPA, 2013).

Estimular o hábito de poupar, pois só assim há a possibilidade de se tornar uma investidora, é o foco central do material educativo. Com a máxima “se o seu salário termina antes do mês e você mal consegue pagar as contas, está na hora de saber o que é planejamento financeiro”, é enfatizada a importância da educação financeira, como instrumento para a criação de uma mudança cultural.

Sendo as mudanças culturais resultados de transformações cog-nitivas dos indivíduos, essas são possíveis somente pela mudança de habitus (JARDIM, 2013). Portanto, tal como aponta Jardim para que tal mudança aconteça, é necessária predisposição, ou seja, “[...] que as crenças produzidas e reproduzidas encontrem eco na cultura vigente, em diálogo com o habitus individual de cada indivíduo.” (JARDIM, 2013, p.7).

Para tanto, é preciso ter claro que, para Bourdieu (1997), uma das funções do conceito de habitus consiste em dar conta da unidade de estilo que une as práticas e os bens de um agente singular, ou de uma classe de agentes. De devedoras, as agentes que optassem pela mudança de atitude em relação às finanças converter-se-iam em cre-doras, assumindo assim a condução de suas vidas e de seus sonhos.

No entanto, os habitus são:

[...] principios generadores de prácticas distintas y distintivas [...] pero también son esquemas clasificatorios, principios de clasificaci-ón, principios de visión y de división, aficiones diferentes. Establecen diferencias entre lo que es bueno y lo que es malo, entre lo que está bien y lo que está mal, entre lo que es distinguido y lo que es vulgar, etc., pero no son las mismas diferencias para unos y otros. (BOURDIEU, 1997, p.20).

O conteúdo da cartilha segue, sempre, com o intuito de difundir essa nova cultura em relação às finanças. Outro ponto importante a ser destacado é o fato de a mulher ser associada ao consumis-mo. Conteúdos que enfatizam como tirar proveito das liquidações, e principalmente o intitulado Compro, logo existo, são reflexos da

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maneira como mesmo em um espaço tido como feminino, as cate-gorias de pensamento empregadas são aqueles que remetem a mulher à visão masculina, fruto da dominação masculina. De acordo com Bourdieu (1999), seriam a estrutura social e os constrangimentos os responsáveis pela perpetuação da dominação, constrangimentos estes resultantes da violência simbólica, ou seja, daquela violência suave que se exerce por vias simbólicas da comunicação e do conhe-cimento9. Para controlar os impulsos tidos como típicos do público feminino, surge uma fórmula, que tem como intuito criar mecanis-mos de defesa contra os impulsos consumistas. Os preceitos a serem seguidos são:

1. Quando encontrar algo que queira comprar, faça a pergunta fundamental: eu realmente preciso disso? É muito importan-te saber diferenciar suas necessidades dos objetos de desejo;

2. Seja seletiva. Se você vai comprar algo a vista que está sendo oferecido de x vezes no cartão, pergunte qual é o desconto para pagar em uma única vez. Se não tiver desconto, saia da loja e procure outra que dê desconto para pagamentos à vista;

3. Pesquise preços. Vale a pena “bater perna” em vez de comprar na primeira loja. Você vai se surpreender com a diferença de preços. Isso vale para supermercados, operadoras de celular e serviços em geral. (Dados da Pesquisa de campo).

9 Os sistemas simbólicos, tal como aponta Bourdieu, são instrumentos de conhecimento e de comunicação que só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. Sendo os símbolos “[...] instrumentos por excelência da integração social: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social.” (BOURDIEU, 1989, p.10). É, no entanto, “[...] como sistemas estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação de uma classe sobre a outra (violência simbólica) dando o reforço de sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a domesticação dos dominados.” (BOURDIEU, 1989, p.11).

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O capítulo seguinte é o que remete à família. A cooperação da família aparece como muito importante na construção, admi-nistração e crescimento da riqueza, cabendo à mulher o papel de intermediadora nesse processo. Para tanto, uma das premissas básicas na hora da mulher planejar o futuro financeiro de sua família seria compreender a postura individual do casal em relação ao dinheiro.

Neste ponto, é importante enfatizarmos as considerações de Zelizer (2011) no que concerne aos usos sociais do dinheiro. Como cada indivíduo passa por um processo educacional diferenciado, não só no que diz respeito à educação formal, mas à trajetória de vida, ao tipo de capital herdado (cultural, econômico, político, simbólico, social), ambos assumem uma postura diferenciada em relação ao dinheiro. O dinheiro, no entanto, não é culturalmente neutro e nem socialmente autônomo; pode, “[...] certamente ‘cor-romper’ valores e transformar em números os laços sociais, mas os valores e as relações sociais, por sua vez transmutam o dinheiro ao modificá-lo com um significado e pautas sociais.”10 (ZELIZER, 2011, p.34).

Dadas as diferentes posturas em relação ao dinheiro, para que haja harmonia no lar em relação aos assuntos financeiros, é necessá-rio aparar as arestas antes de se estabelecer um diálogo com os filhos, que, de acordo com o Guia, também devem participar do planeja-mento. Nesse ponto a recomendação é: “[...] faça uma reunião com a família e explique sua intenção de pôr as finanças em ordem. Peça a colaboração de todos.” (GUIA..., 2013).

Seria, no entanto, importante sensibilizar os membros da família. Todos devem participar na montagem do orçamento e decidirem juntos o quanto é possível economizar no final de cada mês. Caso a mesada dos filhos acabe antes do mês a receita é conversar com eles explicando que devem se organizar melhor no próximo mês.

10 No original: “[...] sin duda ‘corromper’ valores y transformar en números los vínculos sociales, pero los valores y las relaciones sociales a su vez transmutan el dinero al investirlo de un significado y pautas sociales”.

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Uma questão que também merece ser destacada é o conteúdo conservador presente no material. Conteúdo não só presente ao tratarem a mulher como sendo mais suscetível aos impulsos do consumo, como já destacamos anteriormente, mas também na maneira como essas agentes são ligadas à imagem de responsáveis pela educação dos filhos, pelo diálogo e pela manutenção do lar. Outro aspecto pode ser destacado a partir da seguinte passagem do material distribuído: “[...] se você e seu marido são pessoas controladas e organizadas em relação aos seus gastos, os seus filhos vão seguir o exemplo.”

Ao usarem como referência “você e seu marido”, os idealiza-dores do projeto e responsáveis pela elaboração do material distri-buído, não levaram em consideração o número cada vez maior de mulheres solteiras ou divorciadas com filhos que são responsáveis pela educação e prosperidade do lar, e também o caso de relações homoafetivas. A discussão aqui não perpassa em discutir essas particularidades, porém, não podemos deixar de enfatizar a falha nesse tipo de máxima aplicada ao programa Educar-Mulheres em Ação.

Ao considerarmos a família, tal como aponta Bourdieu (1997), como estrutura social objetiva (estrutura estruturante) e como categoria social subjetiva (estrutura estruturada), categoria men-tal que constitui o princípio de milhares de representações e de ações que contribuem a reproduzir uma estrutura social objetiva, a qual funciona no habitus como esquema classificatório a todos os corpos sociais, os diversos tipos de família não podem ser dei-xados de lado.

Já o capítulo 3, que trata da sedução do crédito, apresenta a maneira como o aumento do acesso ao crédito pode ser uma armadi-lha para as pessoas desenformadas. Surge aí a importância da educa-ção financeira que, além de enfatizar a necessidade de poupar, alerta as pessoas que não têm intimidade com os instrumentos de crédito sobre o problema dos juros, sendo o maior vilão o cartão de crédito, tal como apresentada a tabela abaixo.

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Tabela 2 – Comparação entre taxas de juros

Produto de Crédito Média Mensal

Cartão de Crédito 11,20%

Cheque Especial 8,55%

Aquisição de Bens (CDC) 3,77%

Crédito Pessoal 3,24%

Fonte: Banco Central e Associação Nacional dos Usuários de Cartão de Crédito (2009).

O capítulo seguinte, Discutir a relação, aborda a necessidade de dialogar com a instituição financeira ou comercial que con-tratamos. Por fim, o quinto e último capítulo apresenta os dife-rentes perfis de investidora, sobre o tripé Liquidez, Segurança e Rentabilidade. Em seguida, são apresentados os diferentes tipos de investimento, renda fixa e variável e a importância do mercado de ações para a economia.

O caminho até aqui trilhado permite-nos tecer algumas conside-rações breves acerca do espaço social ao qual se refere essa pesquisa. Podemos concluir que o mercado da educação financeira no Brasil é uma construção social, que vêm ocorrendo tanto no setor público quanto no privado, não podendo ser compreendido, portanto, como algo dado, mas sim como resultante das interações sociais e das lutas simbólicas inerentes a este espaço.

Conclusão

Tal como aborda Raud-Mattedi (2005), há uma dimensão socia-lizadora da relação mercantil, sobretudo no que tange aos mecanis-mos utilizados para atrair um novo público, que tem como meta seduzir investidores individuais dos mais diversos ramos de atividade e classes sociais. O importante, no caso apresentado, é analisarmos as condições sociais que tornaram possível a criação do mercado da educação financeira, tais como o maior acesso ao crédito, o sur-gimento de uma nova classe média consumidora e o momento de estabilidade econômica que vivenciamos.

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Assim, o capitalismo das finanças ganha legitimidade e obtêm recursos fora de si mesmo, “[...] em crenças sobre as quais, em deter-minado momento, ele tem poder de persuasão, em ideologias mar-cantes, mesmo nas que lhe são hostis, inseridas no contexto cultural em que o capitalismo evolui.” (JARDIM, 2010, p.69). Tal como aponta Jardim (2013), o capitalismo das finanças busca, por meio da educação financeira, legitimidade em conceitos que têm suas origens e sua valorização no âmbito dos direitos humanos e da sociedade.

Reiterando os argumentos apresentados por Boltanski e Chiapello (1999) se o capitalismo não só sobreviveu, como ampliou seu impé-rio é por ter-se “[...] apoiado em certo número de representações – capazes de guiar a ação – e de justificações compartilhadas, que o apresentam como ordem aceitável e até desejável, a única possível.” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 1999, p.42).

Assim, além de uma nova crença, a educação financeira pode ser considerada um novo espírito do capitalismo. Esse espírito do capitalismo é compreendido aqui como:

[...] um conjunto de crenças associadas à ordem capitalista que contribuem para justificar e sustentar essa ordem, legitimando os modos de ação e as disposições coerentes com ela. Essas justi-ficações, sejam elas gerais ou práticas, locais ou globais, expressas em termos de virtude ou em termos de justiça, dão respaldo ao cumprimento de tarefas mais ou menos penosas e, de modo mais geral, à adesão de um estilo de vida, em sentido favorável à ordem capitalista. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 1999, p.42).

Busca-se, portanto, a partir dos projetos de democratização e popularização da Bolsa de Valores de São Paulo, reiterar a impor-tância do mercado financeiro para o setor produtivo brasileiro. O intuito é divulgar a crença de que, com a expansão do mercado de ações, aumentariam os investimentos das empresas na produção, tendo como consequência a criação de novos empregos.

Com esse discurso, foram conquistadas alianças, tanto com representantes das centrais sindicais, como com Paulinho da Força, como com representantes do Governo, possibilitando assim que a Bolsa se aproximasse dos trabalhadores, a partir de projetos como

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o BOVESPA Vai Até Você. Para tanto, também se criou a imagem de um líder popular, a partir de Raymundo Magliano Filho, o Revolucionário da Bolsa, que se apropriou do discurso de pensado-res como Kant e Bobbio.

Porém, a construção social desse mercado só foi possível por ocorrer em paralelo às ações no âmbito estatal, no qual membros do Governo Lula, “[...] como Ricardo Berzoini, sindicalistas e profissionais do mercado financeiro reclamaram da ausência da educação financeira e enfatizaram importância de projetos com o objetivo de educar financeiramente o povo brasileiro.” (JARDIM, 2013, p.5).

Portanto, para atrair novos investidores para o mercado de ações foi necessário uma operação que revelasse não apenas a importância do mercado de capitais para a economia mas também um amplo projeto de educação financeira. A essa esfera está circunscrito o pro-jeto Mulheres em Ação.

Educar financeiramente passou a ser um Investimento Socialmente Responsável, já que por meio da educação os indivíduos ganhariam autonomia, seriam incluídos socialmente a partir de um projeto democrático e de cidadania. Portanto, o principal objetivo do Mulheres em Ação é o de fomentar uma cultura de poupança e de formação de patrimônio, explicando à população como administrar suas finanças (LEITE, 2008).

Contudo, diante de uma guerra cultural, na qual as “[...] finanças catequizam diversos grupos de atores segundo seu evan-gelho.” (GRÜN, 2007, p.395), é criado esse espaço social exclu-sivo para o público feminino, que tem como intuito desmistificar a visão de Bolsa de Valores como um lugar destinado ao público masculino.

Ao analisarmos o material didático entregue no curso, pode-se concluir que mesmo com o objetivo de promover uma revolução simbólica contra os efeitos da visão que associa às finanças ao domí-nio masculino, essa revolução pode ser considerada conservadora, por associar às mulheres, tal como foi observado a partir da análise do Guia de Planejamento Financeiro às categorias de pensamento circunscritas nos pares homólogos observados por Bourdieu (1999).

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Assim, as mulheres são associadas ao consumo, a estarem mais suscetíveis às variações emocionais e, como podemos notar, como responsáveis pela manutenção da harmonia do lar, o que leva a ver-mos como uma construção social naturalizada.

Em suma, uma interpretação sociológica sobre o tema mostra--se necessária uma vez que grande parte dos estudos direcionados à interpretação do mundo das finanças encontra-se circunscritos no domínio das ciências econômicas, contábeis e administração de empresas.

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Formação de mercados colaborativos: governo Lula e a economia da troca e não da escassez

Mariana TONUSSI MILANO

Introdução

O objetivo deste trabalho é analisar o mercado das tecnologias de informação colaborativas a partir do referencial da sociologia eco-nômica, ou seja, pretende demonstrar que as ações e os interesses econômicos dos agentes envolvidos neste mercado não se processam segundo os cânones da teoria econômica, mas em contextos em que as relações sociais são determinantes na configuração deste mercado. Nesse sentido, a sociologia econômica nos auxilia quando conside-ra que os fatos econômicos são fatos sociais (STEINER, 2006). Ou seja, um fenômeno econômico não pode existir por si mesmo, independentemente ou deslocado da complexidade e da variedade de laços sociais observáveis no mercado. Todo fenômeno econômico carrega em si outras dimensões humanas: política, moral, identidade, emocional, cultural, etc.

Buscamos, assim, através da sociologia econômica, analisar o contexto das ações econômicas no mercado das tecnologias de informação durante o governo Lula (2003-2010), tendo como objeto de análise o caso da adoção software livre em diversos pro-gramas de inclusão digital. Para isso, questionamos as interpreta-ções e as teorias econômicas que tratam este mercado a partir de uma definição idealizadora e que naturaliza a ação do indivíduo

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em puros interesses econômicos. Segundo esta teoria econômica, o direito à propriedade e suas garantias são elementos funda-mentais para qualquer atividade econômica. Sem os mesmos, os atores econômicos não encontrariam estímulos para continuar num dado empreendimentos, podendo, assim, comprometer a existência de qualquer atividade no mercado. Desse modo, deter-minam que os agentes econômicos, quando protegidos por regras e garantias de retorno financeiro no mercado, investem seus esfor-ços na economia.

A organização de um mercado de software livre, no Brasil e mun-dialmente, expande-se através de uma estrutura de mercado organi-zada e de forma bastante particular. Sem se basear nas regras formais do direito de propriedade e nos padrões de funcionamento domi-nantes estabelecidos por grandes empresas do ramo tecnológico, esse mercado segue outras regras e estruturas, que, durante o governo petista, trouxeram novos significados: de popularização, de inclusão social, de ética e de liberdade.

Essa (re)significação do mercado de tecnologia da informa-ção, no país, nos leva a indagar se tais características representam um contraponto no pensamento econômico neoclássico, segundo o qual o mercado seria regido por uma única regra geral, que se define pelo utilitarismo econômico individual. Acreditamos, conforme Swedberg (2004), que este homo oeconomicus guiado somente por interesses econômicos financeiros não existe, e sim, existem atores econômicos concretos que possuem uma idade, um gênero, uma determinada inserção, prioridades, crenças, etc. Na medida em que construímos este trabalho, queremos demonstrar as importantes contribuições da sociologia econômica para uma compreensão consistente da força e da complexidade das relações sociais. Pretende-se demonstrar que a formação do mercado de software livre, pautado na recusa do direito de propriedades inte-lectual formal, é algo que depende da configuração das estruturas sociais deste mercado. Nestes termos, é verdade que a tecnologia da informação compartilhada contribui para criar um novo mer-cado de grande potencial.

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O mercado de tecnologias: uma aproximação com a sociologia econômica

O mercado de software livre não faz parte de nenhuma desregu-lamentação selvagem ou negação de direitos autorais, nem muito menos é um simples protesto de uma comunidade ligada às tecnolo-gias da informação. O software livre é mais uma invenção social que intriga o pensamento sociológico e econômico do que simplesmente o aperfeiçoamento da técnica. Este modelo de produção apresenta duas características fundamentais: o compartilhamento e a econo-mia livre. Mas, é interessante frisar que isto não se refere a nenhuma forma de comunismo e, nem muito menos, de um ideal de “mão invisível” que governa a economia1. Não é possível compreender esse mercado acreditando no utilitarismo econômico e/ou em sua aparência anticapitalista. Não se trata nem de um, nem de outro.

Ocorre que, no entanto, este mercado põe em questionamento diversos elementos de uma economia de mercado. Como se sabe, o mercado de softwares proprietários2 já possui regras e sanções cla-ras que limitam a liberdade do usuário. Nos últimos anos, diversas leis foram elaboradas com base no direito de propriedade intelectu-al, principalmente pelo bloco econômico composto pelos Estados Unidos e pela União Europeia nas áreas farmacêutica e de entrete-nimento. Os termos do Tratado de Propriedade Intelectual – uma série de acordos políticos estabelecidos pela Organização Mundial do Comércio – baseiam-se nos elementos fundamentais da economia neoclássica: de que o direito à propriedade privada é determinante, tanto por permitir, a quem os detém, os retornos de investimento

1 Ver o documentário “Revolution OS” (2002).2 Software proprietário ou não livre é aquele cuja cópia, redistribuição ou

modificação são em alguma medida restritos pelo seu criador ou distribuidor. A expressão foi cunhada em oposição ao software livre. Por sua vez, o software livre, software de código aberto ou software aberto é qualquer programa de computador cujo código-fonte deve ser disponibilizado para permitir o uso, a cópia, os estudos e a redistribuição. A diferença entre os dois tipos de software é o tipo de licença de uso anexada ao código fonte ou ao source code. Esta licença informa os direitos do autor e do usuário.

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em uma determinada atividade como também excluir do acesso e uso dos bens daí advindos, exceto mediante o pagamento. Para essa linha de pensamento, sem tais garantias e incentivos, os atores não teriam mais estímulos para continuar num dado empreendimento, podendo mesmo comprometer a própria existência desta atividade ou mercado. Ou seja, o sistema de proteção da propriedade indus-trial e intelectual incentiva o desenvolvimento e a divulgação de inovações técnicas ou tecnológicas de utilidade industrial mediante a autorização.

Nesse sentido, a ocorrência de um mercado de tecnologias de informação compartilhadas representa um interessante foco de aná-lises econômicas e sociológicas. De um lado, a análise econômica pressupõe que as tecnologias detêm um caráter proposital instru-mental e que suas propriedades podem ser discutidas exaustivamen-te dentro de um quadro de racionalidades de meios (tecnologia) e fins (lucro), com sua atenção voltada para pensamento econômico neoclássico, segundo o qual todo mercado seria regido por uma úni-ca regra, que se define pela busca dos maiores retornos financeiros possíveis a partir de uma unidade de investimento. Por outro lado, e contra as análises que preconizam o homo oeconomicus, a Sociologia Reflexiva de Bourdieu, funda novos conceitos, como os de habitus e campo, que envolvem o peso e a força das estruturas sociais sobre as ações econômicas individuais. Seu conceito de campo é a expressão que envolve uma ramificação de possibilidades para pensarmos as tecnologias de informação fora do pensamento econômico racional guiado pelo interesse de maximização da satisfação e do lucro, dos economistas neoclássicos.

Um artefato técnico é dotado de um poder simbólico sobre as representações coletivas e morais de uma sociedade? Podemos afirmar que as tecnologias e práticas sociotécnicas são fatos sociais infundidos nos sentimentos coletivos? Interpretando a Sociologia de Bourdieu, não seria a finalidade econômica que constrói os meios tecnoló-gicos, mas sim o contrário, é a cultura e a sociedade que criam os campos em disputa. Um exemplo bem ilustrativo dado pelo autor é o mercado das casas próprias na França. O autor constata que o mercado de casas próprias é produto de uma dupla construção social

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sobre a qual, por um lado, o Estado tem uma contribuição decisiva na demanda (leis e regulamentos) e na oferta (linhas de crédito, produção, publicidade, etc) e, por outro, o agente econômico possui disposições econômicas e está intimamente ligada às preferências, gostos, necessidades, aptidões, etc. Portanto, os mercados não pode-riam ser analisados segundo conceitos abstratos e matemáticos sem referência empírica ou, como o próprio autor escreve: “[...] uma ficção matemática remetendo aos mecanismos abstratos dos preços descrito pela teoria das trocas.” (BOURDIEU, 2005, p.20).

Assim, seguindo esta linha de pensamento, para analisarmos o mercado de tecnologias de informação é fundamental entendê-lo enquanto uma construção econômica, social, cultural e simbólica. A construção do mercado compartilhado de softwares passa por diferen-tes formas de capital (tecnológico, econômico, acadêmico, cultural) em consonância com as disposições e lugares que os agentes ocupam no espaço social e dos conflitos que dali emanam. No caso do campo tecnológico, este está intimamente ligado ao campo acadêmico e econômico e ao volume de capitais que os agentes possuem.

Por esta via, nos perguntamos se o pressuposto instrumental seria capaz de explicar um fenômeno sociotécnico. Acreditamos que não. O uso (e significados) dos artefatos técnicos são instrumentalmente indeterminados/relativos – ou seja, não podem ser definidas como ‘porcas e parafusos’ ou somente por suas propriedades funcionais. Acreditamos que toda tecnologia é indeterminada instrumentalmen-te e que, em certa medida, ela detém uma variação em seu espectro, a qual também irá variar ao longo do tempo (historicamente) e espaço (social e culturalmente).

Temos como hipótese o fato de que artefatos técnicos e práticas sociotécnicas não nascem sozinhos, nem muito menos são regidos por um princípio evolucionista/determinista natural do capitalismo. São fenômenos historicamente situados, estruturas sociais constru-ídas no processo histórico humano. Não podem ser tratados como fenômenos abstratos que dominam os seres. Na realidade, o ato da invenção da técnica ou de um artefato técnico não possui uma natureza separada do contexto das relações sociais. E se existe um consenso na Sociologia a respeito das principais características da

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sociedade moderna, este se refere à participação cada vez maior das tecnologias na organização das práticas sociais. A invenção de um artefato técnico possui um forte conteúdo social da mesma forma que os clássicos da Sociologia indicaram que a sociedade moderna possui um conteúdo essencialmente tecnológico.

Um exemplo interessante de estudo a partir de artefatos técnicos é o de Garcia-Parpet (2003), sobre o mercado computadorizado de Fontaines-en-Sologne, na França, que comercializa uma parte da produção de “morangos de mesa” e é caracterizado pela utilização de uma tecnologia de ponta própria3, permitindo assegurar que as transações deste mercado possuam condições de funcionamento próximas daquelas que correspondem à realização do modelo de concorrência pura e perfeita descrita pela teoria econômica. Para a autora, o mercado se constrói constantemente por atores dotados de capitais sociais. Mas, o que chama a atenção, é a tecnologia inserida nesse mercado.

Numa análise instrumental, poderia se dizer que este mercado criou um novo serviço computadorizado, uma nova tecnologia de informação, a partir de interesses puramente econômicos. Mas diz a autora:

[…] Constata-se assim que a criação do mercado de Fontaines-en-Sologne é mais próxima de uma “invenção social” devido ao trabalho de alguns indivíduos interessados, por diferen-

3 Não discordamos da autora sobre os significados da introdução do computador no mercado de morangos, mas gostaríamos de acrescentar que a rede social formada entre produtores e compradores é central para a conformação de uma determinada operação de investimento (o leilão dos morangos), a influência e uso de um software que possibilite a análise deste mercado constituem o que é essencial à cognição prática do indivíduo durante o leilão. Não encontramos na internet informações suficientes sobre que tipo ou qual o software utilizado no leilão dos morangos. Mas, é interessante colocar que, para atender aos requisitos sociais deste mercado, o software inserido não se formou sozinho. Para que um sistema de operações financeiras convença, ele tem que ser programado de acordo com regras deste e, se a autora afirma que a tecnologia inserida é resultado de um esforço político dos agentes envolvidos para convencer os investidores, o software é a representação das relações sociais travadas neste mercado.

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tes razões, em mudanças das correlações de força entre agri-cultores e comerciantes do que à aparição espontânea de um mecanismo liberador de energias econômicas que se imporia graças à racionalidade e à eficácia de seus processos. (GARCIA-PARPET, 2003).

As novas tecnologias implicaram em uma ruptura (revoluções simbólicas) com práticas recorrentes (tradicionais), que não se apresenta aos produtores somente como um custo em investimen-to material e psicológico, é um trabalho político e simbólico para convencer os parceiros econômicos a aderirem. Não foi apenas um simples desenvolvimento das relações mercantis já existentes, pro-duto de um mecanismo que aperfeiçoaria interações entre parceiros comerciais: “as práticas constitutivas desse mercado não são práticas mercantis”. Existe todo um arcabouço de crenças entre os antigos e os novos produtores, de modo que a entrada do computador no circuito de venda pouco tem a ver com cânones econômicos e sim, vem para reforçar e aprimorar relações sociais e crença4.

Outro estudo interessante é o de Bonaldi (2010) sobre pequenos investidores na bolsa de valores. Neste estudo, ele trabalha com o pensamento de Michel Callon, que amplia o argumento sobre o impacto das redes nas ações econômicas para constituir aquilo que ele denomina de ‘redes sociotécnicas’, isso é, redes que articulam não apenas os agentes de mercado entre si mas também articulam os agentes aos artefatos tecnológicos que os equipam e assessoram em suas decisões de mercados. Assim, tanto elementos humanos e tecnológicos compõem, em conjunto, as ‘agências calculativas’, isto é, o quadro de condicionantes, dados e informações que equipam os agentes para suas ações no mercado. Como afirma Callon, portanto, o homo oeconomicus, os indivíduos racionais e maximizadores do paradigma neoclássico, existem, de fato, empiricamente. Contudo, eles não se revelam enquanto realidades naturais e inatas, mas sim

4 Reforço que o que dará visibilidade e aprimoramento das relações e crenças não é o computador em si, mas sim, aquilo que traz a funcionalidade desta tecnologia: o tipo de software desenvolvido. O software foi programado para exercitar as relações deste mercado.

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como construções sociotécnicas – ou melhor, a partir de redes sociais concretas com os demais agentes de mercado e com os artefatos tecnológicos que os equipam.

Para Bonaldi (2010), os artefatos técnicos (computadores e softwares) representam a imagem de todas as transações dispersas no espaço, tornando-a visível e inteligível a todos os participantes no mercado financeiro de modo que estes possam acompanhar a dinâmica e elaborar estratégias. Sem esta representação, as bolsas de valores seriam de fato um amontoado de negócios e uma grita-ria inescrutável. Nesse sentido, os artefatos técnicos têm a função de reunir, gravar, fixar e transmitir dados e informações aos parti-cipantes do mercado sobre o estado de negociação dos mesmos, ou seja, necessitam exercitar as propriedades sociais daquele mercado.

Se hoje não podemos mais pensar nossas transações financeiras escritas e apagadas em um quadro negro conforme o andamen-to dos negócios, onde todos os investidores ocupam o mesmo espaço físico, temos que ter em mente que a evolução das tecno-logias de informação é a condição de evolução deste mercado. O computador e a criação de softwares específicos para este mercado possibilitam a visibilidade de todos, isto é, demonstram como a ação agrega os indivíduos e instituições no movimento dos preços, determinam tendências, diminuem ou aumentam o volume finan-ceiro negociado. Desse modo, o mercado é revelado como uma realidade processual na qual os modos de cognição e tomadas de decisões têm um caráter social e interdependente, na medida em que os agentes tomam as decisões em função do comportamento de outros, isto é, do comportamento agregado dos agentes que compõem o mercado.

Tudo isso evidencia que o compartilhamento de discursos, repre-sentações e práticas no mercado são valores sociais que formam espa-ços de disputas nos quais os agentes são expostos aos mais diversos estímulos do mundo político e econômico. A informatização tornou os mercados algo semelhante ao paradigma neoclássico do merca-do como um agregado de indivíduos e instituições geograficamente isolados que buscam maximizar ganhos? Argumentamos que não necessariamente. O conteúdo das ações econômicas e da ação destas

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instituições e indivíduos em nada se assemelha ao postulado neo-clássico. Pelo contrário, as plataformas eletrônicas de negociação são verdadeiras interações sociais, nas quais cada investidor apresenta seus atributos sociais relevantes – neste caso, sua oferta de compra ou venda – buscando reconhecimento destes atributos por parte do outro investidor.

A configuração tecnológica, via plataformas eletrônicas, possibili-ta rápidas conversas entre si, ao realizarem negócios com seus pares, via computador, nas mais diversas partes do mundo, nas quais se nota a operação de código implícito de conduta (uma moral) face aos demais traders, cuja transgressão pode equivaler a um boicote e/ou à consequente redução dos pares com quem se pode negociar. Ou seja, os indivíduos e suas operações econômicas são dotados de ini-ciativa e capacidade reflexiva, constituídas e exercidas, porém, como referência às dimensões que conectam esses indivíduos aos contextos social, cultural e tecnológico.

A formação do mercado de software

Segundo Abramovay, Favareto e Magalhães (2007), existe uma diferença crucial na maneira de sociólogos e economistas estudam as instituições de mercado. Por um lado, a perspectiva predominante no pensamento econômico reside no equilíbrio entre oferta e demanda, que é alcançado via ações individuais, ou seja, os agentes econômicos agem movidos por interesses próprios e é na ação independente de cada um que se alcança o equilíbrio de mercado. Por sua vez, para a Sociologia Econômica, as relações sociais exercem uma forte influ-ência sobre a formação dos mercados. Os indivíduos estão atrelados um ao outro por laços que não são apenas mercantis, mas históricos, emocionais, racionais, legais, morais, institucionais, culturais, de tra-balho, amizade, etc. Para a Sociologia Econômica, o mercado ou os múltiplos mercados, não são fenômenos independentes de um con-texto histórico, constituídos por relações de produção e comércio, de trabalho, de um sistema monetário e de políticas públicas, todos inter-relacionados com o social.

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É nesse sentido que, de acordo com Steiner (2006, p.3):

A sociologia econômica, que assume uma postura crítica em relação à teoria econômica fundada no comportamento de um agente econômico não socializado, onisciente e movido unica-mente pela busca do ganho máximo (o famoso homo oecono-micus), […] a sociologia econômica comporta uma dimensão cultural e cognitiva. Os fatos econômicos não podem ser com-preendidos independentemente de um conjunto de maneiras de classificar os fatos sociais, que resultam de percepções espe-cíficas, sendo que uma das mais enraizadas nos dias de hoje é a tendência de isolar o fato econômico dos demais fatos sociais. A sociologia econômica assume também o fato de que a eco-nomia não é apenas uma prática, pois ela é uma representação cultural largamente difundida sob a forma de práticas de gestão e é objeto de uma elaboração científica que se desenrola sob a forma de teoria econômica.

No caso do mercado de software, este nasce no mesmo contexto dos defensores de ideias econômicas dominantes como as universi-dades de Chicago, Harvard, Princeton, Yale, MIT, Stanford, Cornell, etc, que adotam ao longo de sua existência estratégias bem tramadas e articuladas com empresas, grandes corporações e sistema finan-ceiro para fortalecer, naturalizar e eternizar os princípios do homo oeconomicus. Nesse sentido, o campo acadêmico e sua força e poder influenciam as estruturas sociais compostas por campos de lutas, nos quais os aspectos simbólicos, profundamente relacionados aos habi-tus incorporados, têm um peso significativo na produção e reprodu-ção das relações sociais.

A formação de um mercado de softwares está intimamente relacionada à luta de diversos programadores ligados à tradição acadêmico/científica, na qual a comunidade de programadores se formavam. As primeiras comunidades de programadores foram formadas no campo da Física e da Engenharia do pós-guerra e se desenvolveram fortemente no período de 1960, nos EUA, perío-do marcado pela luta pelos direitos civis. Esse espaço de luta por liberdade e de intensa colaboração na produção de estudos acadê-micos de softwares será rompido a partir de 1970, com a formação

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de uma elite institucional acadêmica e o início da expansão dos computadores pessoais no mercado que, por sua vez, possibilitou o surgimento de um mercado de software, levando empresas a iniciarem políticas mais agressivas de proteção e distribuição de seus produtos.

O documento paradigmático dessa mudança de atitude das empresas é a carta do jovem fundador da Microsoft aos estudantes de Stanford. Nesta carta, Bill Gates, demonstra sua insatisfação com relação aos estudos e produção de software:

Como a maioria dos amadores deve saber, a maior parte de vocês rouba os seus softwares. O hardware precisa ser com-prado, mas [para vocês] o software deveria ser compartilhado. Quem se importa se as pessoas que trabalharam nele serão pagas? Isso é justo? [...] O que vocês fazem é impedir que software de qualidade seja escrito. Quem pode bancar fazer trabalho profissional por nada? Que amador pode despender três anos-trabalho em programação, encontrar todos os bugs, documentar o trabalho e distribuí-lo de graça? O fato é que ninguém, com a exceção de nós, investiu tanto dinheiro no software para amadores. Nós escrevemos o Basic 6800 e esta-mos escrevendo o APL 8080 e o APL 6800, mas há muito pouco incentivo para tornar esse software disponível para os amadores. Falando francamente, o que vocês estão fazendo é roubo.5 (Dados da pesquisa).

Gates questiona a tradição de compartilhamento e devido ao fato de desenvolverem softwares sem custos ou incentivos financeiros. Chama os desenvolvedores de “amadores” e acusa-os de ladrões de ideias. A carta de Gates à comunidade acadêmica foi um evento simbólico no qual estão inseridas as ideias dicotômicas destas insti-tuições e vai caracterizar o início do enfraquecimento das redes de colaboração nas universidades e diversas empresas passam a travar brigas judiciais contra as universidades para lançar seus produtos no mercado. O evento mais emblemático neste processo foi entre a Universidade da Califórnia, Berkeley, e empresas envolvidas no

5 Fonte: Wikipédia.

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projeto UNIX6 e na criação da licença de uso BSD. A ruptura das relações de colaboração entre Berkeley e a AT&T e o surgimento de versões proprietárias do Unix marcou a transição da produção de software de um regime público/científico – caracterizado pelo compartilhamento de informações – para o regime privado/empresa-rial – no qual a venda e a proteção das informações, via propriedade intelectual, desempenham um papel fundamental.

A reação da comunidade acadêmica

Por sua vez, é também esse ambiente acadêmico dos EUA o locus primordial de contestação e desenvolvimento e de configuração da ideia de software livre. Entre os anos de 1980, um grupo de jovens reunidos no Computer Science and Artificial Intelligence Laboratory, um laboratório de pesquisa no Massachusetts Institute of Technology – MIT iniciaram um movimento de contestação que, logo com a expansão do uso de computadores pessoais e da internet, adquiriu uma orientação em escala global. Nessa universidade, foi formada uma cultura hacker7, uma subcultura muito particular, forjada pelos primeiros programadores do MIT nos anos de 1960, que possuíam

6 Unix é um sistema operacional criado em esforço conjunto entre AT&T (Laboratórios Bell), General Eletric (GE) e MIT, iniciado em 1965. Sua difusão se dará em 1973, quando Ken Thompson e Dennis Ritchie, pesquisadores de Harvard, superaram a linguagem de programação B e criaram a Linguagem C. E, finalmente, durante os anos de 1970 e 1980, foram desenvolvidas as primeiras distribuições. Sua primeira versão comercial foi desenvolvida por Peter Weiner, pesquisador de Yale e fundador da Interactive System Corporation.

7 Em 1950, o verbo hack (talhar, picar em pedaços) era usado universidades do oeste dos EUA para denominar brincadeiras e disputas entre comunidades estudantis. Em 1960, estudantes do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) começaram a usar “to hack” para denominar atividades lúdicas realizadas no computador. Hacker passou a ser aquele que executava tal façanha (VIVEIROS, 2005). Himanen (2002) descreve os hackers como fruto do ambiente da contracultura americana (movimento histórico que se desenrolou durante a década de 1960). Hackers seriam criadores marginais dos anos de 1960 que utilizavam a técnica para expressar rebeldia e criar novas realidades.

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valores como: defesa da democratização do acesso aos computadores, a crença de que a informação deveria circular livremente, a descon-fiança da autoridade baseada em credenciais, a defesa da meritocracia e da descentralização organizacional (LEVY, 1999).

Muito próximos do ethos científico, a cultura hacker, que tam-bém pode ser encontrada em outras instituições universitárias, sofreu impactos com a emergência de um mercado de softwares proprie-tários. A comercialização de softwares e a consequente indisponi-bilidade do código fonte aos usuários limitavam e dificultavam a atuação de pesquisadores, de modo que muitos abandonavam o meio acadêmico para trabalhar em empresas no setor. Este dilema entre a competição comercial e acadêmica levou o pesquisador Richard Stallman a desenvolver seus programas baseados nos valores de cola-boração dos primeiros hackers. Em 1983, este pesquisador lança seu manifesto pedindo colaboração à comunidade hacker e, em 1985, escreve a filosofia do projeto GNU:

Eu considero uma regra sagrada a exigência de que eu compar-tilhe os programas de que gosto com outras pessoas que tam-bém gostem deles. Vendedores de software querem dividir os usuários para conquistá-los, fazendo com que cada usuário não compartilhe com os outros. Eu me recuso a romper a solidarie-dade com os outros usuários desta maneira. Eu não posso, em sã consciência, assinar um contrato com cláusula de sigilo ou uma licença de software. [...] Assim, para continuar a utilizar computadores sem desonra, eu decidi elaborar um conjunto de softwares livres, de forma que eu consiga utilizá-los sem qualquer recurso a software não livre. Eu me demiti do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT para não permitir que o MIT tenha qualquer pretexto legal para impedir que eu distribua o GNU. (STALLMAN, 2000).

O apelo à moral acadêmico científica e, principalmente, ao “ato fundamental de amizade entre os programadores” foi sim-bolicamente o estopim de todo o processo no qual se conciliou o princípio moral da amizade e da colaboração na forma de lei: a General Public License ou GLP. Para Stallman, o software livre é uma questão de liberdade, não de preços. “Livre como a liberdade de

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expressão, não como cerveja grátis” (STALLMAN, 2000). Refere-se à liberdade do usuário em executar, copiar, distribuir, estudar, modificar e aperfeiçoar o software. Ser livre significa (entre outras coisas) que o indivíduo não tem que pedir ou pagar pela permis-são independentemente de como obteve o software (com ou sem custos). Enquanto no mercado de softwares proprietários criavam as regras e as sanções para restringir o direito do usuário, a GLP iniciou um processo de subversão do direito autoral comercial e afirmava o exercício desse direito tornando o autor, o soberano de sua obra, e não os dispositivos de mercado. As produções de softwares sob a licença GLP, pautados nas liberdades fundamen-tais (executar, estudar, redistribuir e modificar) traz a inovação do conceitual do Copyleft – um trocadilho com o Copyright – e passa a proteger os valores morais de uma comunidade hacker.

Ao final dos anos 1980, criar programas livres que substituíssem os programas proprietários não era uma tarefa fácil. Havia a neces-sidade de um Kernel – parte central do sistema operacional encarre-gado da comunicação software e o hardware. E foi Linus Torvalds, um estudante de pós-graduação da Universidade de Helsinki, na Finlândia, que em 1991 lança a primeira versão do Kernel deno-minado de Linux8. Mas, diferentemente de Stallman, Torvalds não licenciou sua obra livremente. Havia um impedimento: “você não pode distribuir exigindo uma taxa, nem mesmo para cobrir custos de ‘envio’”. Torvalds acreditava que não poderia haver distribuição com taxas:

Quando, originalmente, publiquei o Linux, senti que estava seguindo as pegadas de séculos de cientistas e outros aca-dêmicos que construíram seu trabalho sobre as fundações de outros – nos ombros de gigantes, nas palavras de Sir Isaac Newton. [...] Creio que teria abordado a coisa de modo dife-rente se não tivesse sido criado na Finlândia, onde qualquer um exibindo o menor sinal de ganância é visto com suspeita, ou inveja. [...] E sim, eu sem dúvida teria abordado de maneira

8 O projeto foi lançado na Usenet (do inglês Unix User Network) disponibilizando o código-fonte e pedindo colaboração a diversos programadores no mundo.

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diferente a coisa do “sem dinheiro” se não tivesse sido criado sob a influência de um avô resolutamente acadêmico e um pai resolutamente comunista. De qualquer modo, eu não queria vender o Linux. E eu não queria perder o controle, o que significa que eu não queria que ninguém o vendesse tam-bém. Eu deixei isso claro na política de copyright que incluí na cópia da primeira versão que “subi” em setembro. [...] Pense bem. Você coloca seis meses da sua vida nessa coisa e quer torná-la disponível e quer tirar algo dela, mas não quer que as pessoas se aproveitem. [...] Fazia sentido para mim que a melhor maneira do Linux se desenvolver tecnologicamente era mantê-lo puro. Se houvesse dinheiro envolvido, as coisas ficariam obscuras. Se não há dinheiro em jogo, não há pes-soas gananciosas. (TORVALDS; DIAMOND, 2001, p.93-94, grifo nosso).

Mais tarde, na segunda versão do Linux, Trovalds alia o kernel do Linux à GLP e remove a condição de “não poder distribuir por dinheiro” sob a condição de que todos os colaboradores concordem com a venda. Nos anos seguintes, o Linux ganha reputação como um sistema eficiente e estável; por suas virtudes técnicas e desperta o interesse fora da academia e o temor das empresas no ramo.

A indústria de software

A concentração de poder econômico, na produção e comercia-lização de tecnologias da informação, é um dos fenômenos mais marcantes da sociedade contemporânea. Segundo a Associação Brasileira das Empresas de Software (Abes), o mercado mundial de TI em 2006 era da ordem de US$ 1,17 trilhão. Este mer-cado concentra-se em países como EUA, Japão, Reino Unido, Alemanha, França, Canadá. O mercado brasileiro, por sua vez, apresenta uma segmentação que já se assemelha à mundial, indi-cando uma maturidade neste mercado. O mercado brasileiro de software gerou, em 2006, cerca de US$ 16,2 bilhões, o que já representa 1,3% do mercado mundial e correspondia a 43% do mercado latino-americano.

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Tabela 1 – Mercado de Software e serviços em TI – 2006

Posição PaísVolume

(US$ Bilhões)

Participação

(%)

1 EUA 303 42,5

2 Japão 64,4 9,02

3 Reino Unido 56,0 7,84

4 Alemanha 48,2 6,75

5 França 39,3 5,50

6 Canadá 21,1 2,95

7 Itália 18,1 2,53

8 Austrália 13,1 1,83

9 Holanda 12,5 1,76

10 Espanha 10,3 1,45

11 China 9,57 1,34

12 Suécia 9,21 1,29

13 Brasil 9,05 1,27

14 Suíça 8,77 1,23

15 Coreia do sul 7,09 0,99

Outros 84 11,8

Total 713,9 100

Fonte: ABES (2007).

Em 2010, esses números crescem significativamente. O setor de TI mostrou um crescimento da ordem de 21,3%. Especificamente, os setores de software e serviços cresceram quase 24%, um pouco menos que o segmento de hardware. Entretanto, considerando que o mercado mundial de software e serviços apresentou um aumento discreto, da ordem de 0,5% em 2010, o Brasil terminou o ano em uma situação de destaque neste cenário, alcançando a 11ª posição no ranking mundial, tendo movimentado 19,04 bilhões de dólares, equivalente a 1,0% do PIB brasileiro daquele ano. Deste total, foram movimentados 5,51 bilhões de dólares em software, o que represen-tou perto de 2,2% do mercado mundial, e 13,53 bilhões de dólares em serviços relacionados.

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Este mercado é explorado por cerca de 8.520 empresas brasileiras, dedicadas ao desenvolvimento, produção e distribuição de software e de prestação de serviços. Daquelas que atuam no desenvolvimento e produção de software, 94% são classificadas como micro e pequenas empresas. Indústria e finanças representaram praticamente 45% do mercado usuário, seguidos por serviços, comércio, governo e agroin-dústria. Já em termos de crescimento, o governo foi o setor que apre-sentou o maior aumento nos investimentos, com variação positiva de mais de 27% em relação a 2009.

Em 2011, pela primeira vez, surge um estudo sobre a partici-pação do software livre no mercado nacional. Após uma década de apoio ostensivo de muitos representantes da gestão pública no país, em especial do Governo Federal, e bilhões de reais aplicados neste modelo, a participação do software livre no mercado brasileiro em 2010 foi de apenas 2,95%, um montante equivalente a US$ 563 milhões. O que implicou, em 2010, num crescimento nas exporta-ções de software e serviços, atingindo a ordem de US$ 1,74 bilhões, um avanço de 15,7% em relação a 2009.

Tabela 2 – Divisão por mercados no Brasil – US$ milhões

Clientes Volume Participação 2010/2009Governo 375,2 66% +24%Finanças 60,7 11% +16%Indústria 43,0 8% +18%Serviços 21,0 4% +18%Telecom 29,6 5% +16%Outros 32,7 6% +12Total 563,0 100% +20%

Fonte: ABES (2007).

Ainda que haja concorrência entre empresas, não podemos afir-mar que se trate de um mercado que estimule uma diversificação. Esta concentração torna-se inquietante quando se acrescentam os mecanismos econômicos de poder. E para entender esses mecanis-mos, primeiramente, temos que entender que um software nada mais é que um conjunto de rotinas escritas numa linguagem que permita

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a conversão futura para a linguagem de máquina. De forma mais simples, nada mais é do que o conhecimento em sua forma pura. Justamente por este motivo ele é tratado na maioria das legislações como objeto do direito autoral, da mesma maneira que um livro, um CD de música, uma produção cinematográfica, etc. Nesse sentido, quando compramos um software estamos comprando essencialmente uma licença de uso e não um bem tangível. E ainda que haja con-corrência entre empresas ou entre nações na produção de tecnologias de software, é um mercado de difícil penetração. Grandes empresas como a Microsoft, a IBM ou a Apple detêm parcelas consideráveis da venda de produtos e serviços deste tipo. Esta concentração de poder na mão de grandes empresas é resultado de diversas mano-bras fomentadas pela nascente indústria de software ao longo de sua história.

Assim, os mercados de tecnologia da informação lidam funda-mentalmente com bens intangíveis e não-rivais. Isso significa, con-forme Brant (2008), que diferentemente dos bens tangíveis, o fato de uma pessoa consumi-lo não priva os outros também de consumir. Por exemplo, o ato de comprar um livro não me priva de emprestá-lo ao meu vizinho. A informação, portanto, é uma mercadoria de difí-cil controle. Isso significa que não há uma escassez natural, como no caso dos bens tangíveis e que, portanto, o mecanismo de preços não é suficiente para governar o mercado. Seu custo de produção e reprodução tende a zero e, sob a lógica econômica do valor de troca em atividades produtiva é preciso, antes de tudo, criar a escassez artificial. São vários os mecanismos criados para gerar tal escassez, mas, no caso da informação, os principais mecanismos são: proteção do direito autoral, controles de acesso (senhas, bilheterias, controle dos meios de distribuição); obsolência programada e a associação do produto a um valor de troca (marketing).

No caso dos dois primeiros mecanismos, a proteção ao direito e o controle ao acesso, corresponde à natureza jurídica dos merca-dos. Segundo Barone (2009), a natureza jurídica da propriedade industrial foi deflagrada com o advento da Revolução Industrial e, posteriormente, reforçada com a Revolução Francesa. Teve sua ori-gem na França, em 1883, com a Convenção da União de Paris para

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Proteção da Propriedade Industrial – CUP, na qual foi estabelecido o tratamento jurídico para as patentes, marcas, seguranças efetivas contra a concorrência desleal do mercado. Mas, com a expansão dos mercados, necessitava-se de convenções internacionais, que obrigas-sem todos os países a se inserirem nas normas da propriedade indus-trial. Era necessário, assim, criar um direito internacional para que a propriedade industrial unificasse regras de conflito em leis e regras comuns de direito material. A exemplo disso, temos o GATT – Acordo Geral de Tarifas e Trocas – em 1947, que criava regras para o intercambio de mercadorias e mais recentemente, em 1994, a cria-ção da OMC – Organização Mundial do Comércio – que criava as regras para a distribuição de bens, serviços e propriedade intelectual internacionalmente.

Nas últimas três décadas, os avanços científicos vêm cada vez mais dependendo da iniciativa privada, através das patentes e do redire-cionamento de fundos estatais para setores corporativos. As patentes se justificariam por um viés econômico: ao diminuir a difusão do conhecimento tecnológico, haverá mais progresso a ser difundido. Isso fica claro na indústria de processadores de computadores, na indústria farmacêutica, na indústria energética.

No caso da obsolência programada e do valor de troca, as empre-sas de software utilizam-se do chamado “aprisionamento do cliente”. Ao comprarmos uma unidade de hardware, necessariamente esco-lhemos o Sistema Operacional de estação de trabalho. A escolha do usurário envolve muitos aspectos, já que existe um custo para suas escolhas. Um sistema operacional não agrega, por si só, nenhum valor para quem usa. O que de fato é utilizado são os aplicativos que são executados a partir de um determinado sistema. Cada siste-ma operacional possui uma plataforma de desenvolvimento própria e incompatível com os demais. Quando optamos por um sistema operacional optamos por determinados aplicativos que só funcionam naquela plataforma: processadores de texto, planilhas eletrônicas, navegadores, editores de foto, etc. Outra forma de “aprisionamento de clientes” é que, quando compramos um computador, ele natu-ralmente está fadado à obsolência. Mas, não de seu hardware, que pode funcionar por anos e anos sem problemas. A obsolência de um

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computador é criada a partir dos softwares (dispositivos que carregam a informação). Então, empresas como a Apple e, principalmente, a Microsoft criam constantemente softwares que não se adaptam a antigos hardwares, obrigando o consumidor sempre a ter que renovar seu parque tecnológico doméstico.

Formação de um mercado colaborativo durante o governo lula

Durante o primeiro mandato do Governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006) muitas ações mudaram radicalmente as prio-ridades do país para o uso da tecnologia de comunicação e infor-mação. O governo petista passou a realizar um conjunto de ações com o objetivo de mudar o quadro das TIs no Brasil. E para tal feito, buscou diversos interlocutores e agentes do mercado. Exemplo maior desse posicionamento é observado já nos primeiros dois meses de governo, quando foram introduzidas modificações no Governo Eletrônico brasileiro. Coordenadas pelo Ministro Chefe da Casa Civil, José Dirceu, foram criadas duas câmaras técnicas, inexistes até então: A Câmara Técnica de Implementação do Software Livre e a de Inclusão Digital. O Instituto de Informação – ITI9 – ficou subordinado à Casa Civil da Presidência da República e encarregado de coordenar a migração do Governo Federal para Software Livre. Questionamo-nos: o governo poderia influenciar as escolhas no mer-cado? Por outro lado, promover o desenvolvimento de software livre poderia vir a sufocar o mercado nessa área? Existe algum potencial inclusivo na adoção deste tipo de tecnologia?

As principais motivações do governo brasileiro em desenvolver um programa de implantação de software livre não estão ligadas somente às questões da macroeconomia, mas principalmente, na participação das comunidades livres na solução de questões sociais. Todo esse processo de conversão tecnológica pressupõe, antes de tudo, uma ressignificação do mercado de TI no país, dotando-o de

9 Presidido pelo sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, ex-coordenados do programa Telecentros de São Paulo.

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um sentimento de justiça social e igualdade. Esses novos significados inseridos se transformam em objeto de interesse da Sociologia, já que demonstra que as TIs não possuem valor neutro ou somente instrumental. Por trás da escolha de Lula, há uma série de gestores públicos, sociólogos e militantes reunidos para reconfigurar os mode-los tecnológicos de informação.

Os novos programas, automaticamente, viraram alvo de muitas críticas da imprensa brasileira. A revista Veja (2006) declarou que o governo tomou uma posição ideológica de desconfiança com rela-ção às grandes corporações capitalistas, provocando custos muitos altos nos cofres públicos e a possível falência de diversas empresas brasileiras no ramo. Mas, ao contrário das previsões catastróficas da mídia, ao final do segundo mandato do Presidente Lula, subiu dois posicionamentos no ranking mundial de investimentos e TIS, pas-sando da 13° Posição, em 2006, para 11° posição, em 2010.

Os projetos criados desde então, não tem só o caráter social mas de integrar a sociedade brasileira na era da informação, incentivando a classe média baixa à aquisição de um computador conectado à internet, como também: colaborar com pequenas empresas, capacitar a população no uso de computadores, produzir uma rede de supor-te em software livre que gere novos profissionais, levar os serviços públicos eletrônicos a um maior número de brasileiros, expandir o comércio eletrônico, facilitar transações financeiras, dinamizar a cultura e tornar o Brasil o maior usuário de software livre no mundo.

Alguns exemplos de programas de inclusão social/digital via mercado de software livre no governo Lula

1) “Programa João de Barro”: O objetivo principal deste pro-grama era a popularização da segurança na internet através da certificação digital10 e do comércio eletrônico. A plataforma

10 Habilitar as instituições públicas e entidades privadas a atuarem na validação jurídica de documentos produzidos, transmitidos ou obtidos sob a forma eletrônica. A certificação digital garante a segurança e autenticidade das transações.

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atual certifica, por exemplo, todas as operações do sistema de compensação por meio eletrônico das transações do sistema financeiro nacional, na ordem de R$ 75 milhões de reais por dia. Desenvolvido pelo ITI e pela Agência Brasileira de Inteligência, tem como prioridade garantir a independên-cia tecnológica para todo o processo de certificação digital. Foi desenvolvido junto a diversos órgãos de segurança do governo, centros de pesquisa e universidades – estimulando a produção e o compartilhamento do conhecimento nacional nesta área. Paralela aos objetivos nacionais, o projeto João de Barro pretendeu chegar a uma normativa comum que estabeleça o reconhecimento de certificados entre os países membros do MERCOSUL.

2) Projeto “Casa Brasil”: Pretende a articulação e visibilidade de programas sociais e serviços públicos para população em geral, com o objetivo de maior diálogo social. Pretende tam-bém abordar um projeto por adesão com todos os ministé-rios para a formulação de políticas menos pulverizadas. Uma das bases desse projeto é o programa Governo Eletrônico e Serviço de Atendimento ao Cidadão – GSAC – que, até 2004, conectou 3200 pontos de presença de satélite com antenas VSAT e modens, que permitem a conexão de inter-net, em alta velocidade, de comunidades isoladas e carentes como em regiões indígenas, e em regiões pobres, distantes de centros de informação.

3) Topawa Ka’a: Projeto de inclusão digital com Software Livre na Amazônia Brasileira com o objetivo de estabelecer maior contato com populações indígenas isoladas.

4) Programa Maré o Telecentro da pesca: Promovido pela Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da República objetivou quebrar o isolamento de comunidades pesqueiras do Brasil. A introdução de novas tecnologias de informação, nessas comunidades, leva em consideração os problemas da pesca artesanal e dar um novo ritmo econômi-co a essas populações.

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5) Pontos de Cultura: Programa de Inclusão Digital do Ministério da Cultura: O projeto previa investimentos na criação de polos de irradiação cultural em favelas e tri-bos indígenas. Consistia na distribuição, através de editais públicos, de kits completos de computadores, escâner, câmera de vídeo, câmera fotográfica digital e recursos para contratação de monitores para a formação dos agentes mul-tiplicadores. A adoção de ferramentas livres visou romper com as barreiras colocadas pelas tradicionais empresas difu-soras de cultura.

6) Programa Computador para Todos: Promover a inclusão digital com a venda de máquinas baratas à população através de linhas de microcrédito, de financiamento direto de cor-rentistas de bancos públicos através de Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT – e de recursos do BNDS diretamente ao comércio.

7) Programa PC Conectado: teve suas diretrizes incluídas no programa computador para todos. Visa criar uma tarifa dife-renciada por faixa de renda e que todo cidadão com telefone fixo em casa e que não tenha acesso à internet tenha o direito a uma conexão de 15 horas mensais a custos ínfimos

O Brasil em destaque: fórum internacional do software livre

Desde o ano de 2000, é promovido, na cidade de Porto Alegre, o Fórum Internacional de Software Livre. São diversos os parti-cipantes e provêem de universidades, sindicatos, ONGs, empre-sas, governos, grupo de usuários, entusiastas, etc. Em 2004, sob o slogan “A tecnologia que liberta”, o evento entrelaçou um diá-logo político institucional acerca da adoção do software livre pelo Governo Federal e tornou público o confronto entre os agentes brasileiros com grupos da corporação Microsoft. A revista Carta Capital, naquele momento, publicou que: “Na defesa do software livre, Amadeu não poupa críticas à Microsoft, a quem acusa de

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‘prática de traficante’ por oferecer o sistema operacional Windows a alguns governos e prefeituras para a instalação em programas de inclusão digital.” (MARQUES, 2004).

As acusações creditadas a Sérgio Amadeu (sociólogo e Presidente de Instituto Nacional de Tecnologia da Informação) levaram os representantes da Microsoft no Brasil a pedir esclarecimentos em uma ação judicial. Tal atitude resultou no lançamento da campanha online “O Brasil tem o direito de escolher” por parte da comunidade bra-sileira de software livre. O que parecia um simples posicionamento ideológico em um fórum internacional voltado as discussões sobre software livre, transformou-se em um evento carregado de significa-dos simbólicos.

Desde então, a participação do governo petista no fórum é mar-cante. No último ano de Mandato, em 2009, Lula discursou no fórum e declarou: “[...] ou nós íamos para a cozinha preparar o prato que nós queríamos comer, com os temperos que nós queríamos colo-car e dar um gosto brasileiro na comida, ou nós iríamos comer aquilo que a Microsoft queria vender para a gente. Prevaleceu, simplesmente, a ideia da liberdade.” (TRANSCRIPT..., 2009).

O posicionamento do governo petista no Fórum Internacional do Software Livre e no desenvolvimento de tecnologias livres no país traz à tona o argumento de Jardim (2009b) sobre a “domes-ticação e/ou moralização” do capitalismo. Apesar de a autora discutir os significados desses argumentos diante do mercado financeiro, estabelecemos uma ponte para também sugerir uma explicação no mercado de tecnologias de software. A presença de grupos do governo no fórum apresenta claramente uma conver-gência de interesses da agenda da esquerda em seu relacionamento com indústria e com o mercado de tecnologias. A ideia de moral ou de justiça social no mercado de tecnologia da informação é observável nas políticas de adoção do Software Livre em diver-sas políticas governamentais e sociais e, também, na política de microcrédito e financiamentos de computadores para a população de baixa renda.

No caso ligado a pesquisa de Jardim (2009a, p.129), a autora esclarece:

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[…] a possível “domesticação e/ou moralização” do governo Lula não é um fenômeno isolado; encontra-se desenvolvido de formas diversas em todo o mundo. Preocupações com investi-mento ético e responsável, projetos de microcrédito e direitos humanos, entre outros, são retóricas que buscam negar a ideia de “lucro pelo lucro”, (res)significando o conceito de mercado financeiro em âmbito internacional.

Como exemplo ilustrativo, a autora utiliza-se da criação e a gestão dos fundos de pensão pelos sindicatos no Brasil, EUA e Canadá. No caso deste artigo, chamo a atenção para a participação das comuni-dades hackers no Brasil e seu papel na condução de um modelo mais justo de mercado de tecnologia de informação. A “domesticação e/ou moralização” do capitalismo, cuja moral é fundada sobre a concep-ção social da economia, sugere que a participação do governo Lula apontou para uma agenda social em diversos âmbitos dos mercados – financeiro, industrial, agropecuário, tecnologia, informação, etc. A autora ajuda-nos a concluir que tanto o mercado financeiro como o mercado das tecnologias de informação “[...] estão construindo sua legitimidade sobre a negação dos lucros, na medida em que as práticas econômicas servem não somente como mercadorias mas essencialmente como ideário moral e de inclusão social.” (JARDIM, 2009a, p.151-152)

Considerações finais

O diálogo do governo Lula com atores oriundos de comunida-des de hackers no Brasil, em certa medida, é responsável por um processo de “convergência de interesses” que, tem levado essa rede de atores a “agregarem o conceito de ‘mercado’ a seu tradicional discurso social”. Esta interação entre mercados e governo, na jun-ção do social e tecnologias de informação, permite-nos dizer que “houve considerável transformação no conceito de mercado uma vez que” o mercado de tecnologias de informação passa a integrar “as vozes” de hackers e militantes de movimento correlatos, e suas preocupações sociais

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A convergência do mercado de tecnologias de informações e os novos atores e interesses impõem outras lógicas ao cenário capitalista que, principalmente, reveste-se de questões morais. A formação de uma economia de bens intangíveis compartilhados, cujas maiores expressões são: o software livre, as iniciativas wiki11 e os trabalhos em Creative Commons12, são tendências que nascem no terreno tecno-lógico e possuem um forte caráter social. Implicam em mudanças profundas nos modelos tradicionais de negócios.

Todo esse cenário, em 2012, vem contaminando setores empre-sariais e abrindo as possibilidades de “códigos abertos” – ainda que limitados, iniciando um processo de convergências também nesses setores. Empresas como a Microsoft e IBM aproximam-se de comu-nidade de hackers a fim de garantir espaço neste novo contexto de produção material, de desenvolvimento e de distribuição de bens informacionais, que vem desorganizando os velhos modelos de indústria. E, finalmente, o novo cenário é criado a partir de um novo conjunto de representações e de crenças em torno dos merca-dos compartilhados, que podem vir a fazer parte de um conjunto de representações da sociedade; os quais buscam criar uma reconversão de habitus na sociedade, sobretudo no modo como estas se relacio-nam com o mercado de tecnologias de informação.

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11 O universo Wiki é representado pelo Wikipédia, Wikimedia, Wikinologi, Wikibooks, WikiEarth, Wikispecies, Wikileaks, etc. É um software colaborativo que permite a edição coletiva dos documentos.

12 Organização não governamental, sem fins lucrativos, localizada em São Francisco, Califórnia, voltada para expandir a quantidade de obras criativas (músicas, textos, imagem, filmes e outros) disponíveis, através de suas licenças que permitem cópia e compartilhamento com menos restrições que o tradicional copyrigth..

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Programa Bolsa Família: enquadramento cognitivo dos direitos sociais

Maria Chaves JARDIMMariana Seno FLORES

Introdução

As políticas de bem estar social na América Latina, principal-mente no Brasil e na Argentina, foram utilizadas como forma de controle social da classe trabalhadora pelo Estado. O pioneiro dessa estratégia foi o presidente Getúlio Vargas, com políticas protecionis-tas para grupos restritos de trabalhadores formais. Assim, a pobreza se tornou uma questão de Estado (mesmo que de forma bastante limitada) somente durante o Governo Vargas, em 1930, durante a regulamentação do capital e do trabalho, através de um projeto de industrialização. É nessa data que houve a fundação do Sistema Social, através de um projeto Nacional Desenvolvimentista.

Com o fim do período Desenvolvimentista, a questão social não foi identificada/relacionada com o crescimento da pobreza, pois, segundo os discursos da época, o desenvolvimento social viria do desenvolvimento econômico. Esse discurso de mobilidade social ali-cerçou o modelo econômico que durou de 1930 a 1980. Nessa linha argumentativa, Vieira (1997) afirma que a política social brasileira passou por fases distintas no século XX, sendo que, no primeiro perí-odo de controle, recorreu à ditadura de Vargas e seu período populis-ta, e no segundo, à ditadura militar, terminando com a Constituição de 1988. Naquele momento, as políticas sociais eram totalmente

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fragmentadas, sustentadas somente para legitimarem governos que necessitavam de apoio popular. A questão social, de fato, não era colocada em pauta. Para Coutinho (2013), a Constituição Federal de 1988 teria marcado “uma importante inflexão ao enunciar direitos econômicos e sociais e ao estruturar, em linhas gerais, um arcabouço jurídico-institucional para a política social” (2013, p. 7). A nova carta teria criado e definido as linhas da assistência social no Brasil.

O autor argumenta, ainda, que, nas últimas décadas, o pensa-mento econômico excluiu cada vez mais as instituições sociais das análises feitas do capitalismo brasileiro. Em meados dos anos 1970, com a aceleração do capitalismo no Brasil, produziu-se uma escola econômica focada na acumulação do capital, a qual oferecia uma interpretação de que o Brasil teria o mesmo status de desenvolvi-mento de uma sociedade avançada, já que os dados econômicos indicavam crescimento do país. Nesse sentido, o padrão de desen-volvimento adotado pelo Brasil colocava em supremacia as variáveis econômicas em detrimentos das variáveis sociais. Portanto, desde a segunda metade do século XX, o Estado esteve preocupado em gerar crescimento econômico, sem a preocupação devida com as questões sociais, como a saúde e a educação. Os símbolos nacionais eram ligados às “riquezas naturais” (SORJ, 2000) e o pais avançava em seu Produto Interno Bruto (PIB), ignorando as necessidades e os direitos sociais fundamentais para a redução das desigualdades e da concentração de renda que se consolidavam.

Como consequência, a cidadania é um valor historicamente fra-gilizado no Estado brasileiro, já que essa se refere a um sistema de igualdade perante as leis do Estado. A cidadania de um país só pode ser alcançada quando as condições de igualdade social forem cum-pridas. O acesso a bens coletivos, provenientes do Estado, simboliza o acesso democrático aos direitos sociais.

Nesse interim, lembramos que a Carta Magna de 1988 coloca o Estado como responsável por politicas públicas e pela ampliação de diversos direitos sociais, tais como, por exemplo, a aposentadoria. Naquele momento, a pobreza passou a ser considerada como um problema de caráter coletivo. Apesar disso, no início da experiência democrática em 1988, os problemas sociais não foram resolvidos

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imediatamente. De forma breve, as crises econômicas tomaram mais espaço na agenda do presidente Sarney e do presidente Itamar Franco do que os problemas sociais.

As preocupações com a estabilidade da moeda foram o fio condu-tor do governo Fernando Henrique Cardoso. Somando-se a isso, esse último promoveu privatizações de diversas empresas públicas, colo-cando em evidência que a esfera privada gozava de maior prestígio do que a esfera pública. Foram oito anos em que o enquadramento cultural e cognitivo, ou seja, a crença produzida pelo Estado, valori-zava a esfera privada, em detrimento do público. Foi uma época de deslegitimação do servidor, dos serviços oferecidos pelo Estado, dos bancos públicos e da educação pública, dentre outros. Enfim, a clas-sificação mental do momento falava em déficit da previdência pública (JARDIM, 2002) e excesso de privilégios dos servidores privados. O período ficou conhecido pelo “enxugamento da esfera pública” e pela criação de produtos privados (planos de previdência, aumento dos planos de saúde, aumento dos colégios e universidades privadas, etc) para complementar os serviços públicos, considerados ineficientes.

Sobre os anos Cardoso, Vieira (1997) argumentam que, nunca, na história da República Brasileira, houve tantos ataques da classe dirigente ao Estado, como a partir dos anos de 1995. Esses “ataques aos direitos sociais” se deram fundamentalmente a partir do cha-mado neoliberalismo, em cujo modelo de desenvolvimento houve uma negação completa dos direitos sociais. No governo Fernando Henrique Cardoso, os direitos sociais estiveram totalmente fragili-zados.

Nesse texto, consideramos como direitos sociais uma forma de política pública que altera alguns componentes na vida das pessoas marginalizadas, como por exemplo, a fome, transformando, mini-mamente, a posição social desses agentes, implicando em mudanças graduais e qualitativas na sua situação objetiva e na sua situação subjetiva, ou seja, nas estruturas mentais, habitus, no sentido de Pierre Bourdieu (1996).

Nesse processo, acreditamos que a longa ausência de direitos sociais deixou duas marcas na sociedade brasileira, a saber: de forma objetiva, a desigualdade social e a concentração de renda; de forma

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subjetiva, o enquadramento cultural e cognitivo que a sociedade tem sobre direitos sociais. Portanto, argumentamos que politicas sociais são necessárias para que ocorram mudanças objetivas (com-bate à concentração de renda e distribuição do poder) e subjetivas (nas mentes). Afinal, tanto a violência objetiva quanto a violência subjetiva (simbólica) são resultantes de opções politicas e crenças produzidas pelo Estado.

Para Pierre Bourdieu (1996), por meio do sistema de classifi-cação, o Estado molda as estruturas mentais e impõe princípios de visão e de divisão comuns e formas de pensar, contribuindo de maneira determinante na produção e reprodução dos instrumen-tos de construção da realidade social e exercendo permanentemente uma ação formadora de disposições duradouras, através de todos os constrangimentos e disciplinas corporais e mentais que impõe ao conjunto dos agentes. Desse modo, o Estado instaura e insere formas e categorias de percepções e de pensamentos comuns, estru-turas mentais, formas estatais de classificação que, em certa medida, parecem naturalizados. A aparente naturalização faz com que os indi-víduos passem a pensar da mesma forma, já que as concepções de ordem social foram internalizadas. Tais concepções de ordem buscam manter ou transformar a ordem social.

Na perspectiva teórica de Bourdieu (1996), o Estado não tem necessariamente a necessidade de dar ordens, ou de exercer coerção física para produzir um mundo social ordenado, pelo menos enquan-to puder produzir estruturas cognitivas incorporadas que estejam em consonância com as estruturas objetivas, assegurando a submissão à ordem estabelecida. Bourdieu (1996) acrescenta que se o Estado pode exercer na violência simbólica, é porque ele se encarna tanto na objetividade, sob a forma de estruturas e mecanismos específi-cos, quanto na subjetividade, sob a forma de estruturas mentais, de esquemas de percepção e pensamentos. Portanto, com inspiração em Pierre Bourdieu, argumentamos que a forma como o Estado atuou historicamente no Brasil levou a construção de uma crença de desvalorização do público, em detrimento da valorização do privado.

Nesse contexto, o Programa Bolsa Família seria uma das primei-ras iniciativas em larga escala da “mão visível” do Estado. Isso justi-

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ficaria os questionamentos e desconfortos provocados pelo Programa conforme veremos ao longo desse texto. Afinal, o enquadramento cultural e cognitivo dos direitos na sociedade brasileira, relaciona-os a “favor” e “assistencialismo”, ignorando o real papel do Estado, que é fornecer e fiscalizar o cumprimento dos direitos sociais.

O livro Como as instituições pensam, de Mary Douglas (1998), também nos ajuda nessa direção. Nesse livro, a autora aprofunda a questão da influência das instituições sobre os indivíduos e afirma que as instituições em si não têm propósitos, objetivos, pois somente os indivíduos podem elaborar estratégias conscientemente. Contudo, ao analisar o funcionamento das instituições, a autora revela o quan-to o ser humano está sujeitos às convenções sociais e afirma que a independência intelectual, defendida pela filosofia moral, é algo a ser conquistado através da resistência dos indivíduos ao procurar desco-brir como o controle institucional é imposto à mente dos mesmos. Conforme a autora:

As instituições dirigem sistematicamente a memória individual e canalizam nossas percepções para formas compatíveis com as relações que elas autorizam. Elas fixam processos que são essen-cialmente dinâmicos, ocultam a influência que eles exercem e suscitam emoções relativas a questões padronizadas e que alcan-çam um diapasão igualmente padronizado. Acrescenta-se a tudo isso que as instituições revestem-se de correção e agem no sen-tido de que sua mútua corroboração flua por todos os níveis de nosso sistema de informação. (DOUGLAS, 1998, p.98).

Portanto, é com a inspiração em Pierre Bourdieu e Mary Douglas que passamos a analisar o Programa Bolsa Família, buscando enten-der a forma como a sociedade enquadra culturalmente e cognitiva-mente esse Programa de inclusão social.

Bolsa Família

Considerando o exposto acima, argumentamos que, a partir do Governo Lula, os direitos sociais e as políticas públicas ganharam novo enfoque na questão da desigualdade social e da pobreza, prin-cipalmente após a criação do Programa Bolsa Família em 2004. A

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focalização do benefício à família e a unificação de mais cinco pro-gramas federais criados no Governo Fernando Henrique Cardoso deram forma a essa Política Publica que detém reconhecimento internacional como exemplo para a redução da fome e da pobre-za. Cronologicamente, um dos primeiros vestígios encontrados do Programa Bolsa Família data de 1995, quando surgiu, em Campinas e Brasília, como experiências locais, cuja principal exigência era a frequência escolar. Posteriormente, em 2001, o Governo Cardoso instituiu o Bolsa Escola e, mais tarde, o Bolsa Alimentação.

Diante das dificuldades de gerenciamento e focalização, o Governo Lula instituiu a unificação desses programas em somente um, batizando-o de Programa Bolsa Família. Portanto, o Programa Bolsa Família foi criado oficialmente pela Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, em que consta, conforme o artigo primeiro “ações de transferência de renda com condicionalidades”. Sua unificação e criação, na gestão de Luís Inácio Lula da Silva, teve o propósito de redução da pobreza e diminuição de seu ciclo vicioso em famílias com crianças e adolescentes até 17 anos, através da cobrança das condicionalidades.

Como ressaltam Andrade e Silva (2013), o consenso sobre a for-mulação do PBF, que passou pela unificação dos diferentes progra-mas de transferência de renda já existentes, ocorreu após diversas disputas e tensões entre ministérios e dirigentes políticos, princi-palmente ligados ao Ministério Extraordinário de Combate à Fome e a Segurança Alimentar (MESA), ao Ministério da Assistência e Promoção Social (MAPS) e aos ministérios com programas setoriais de transferência de renda (MEC, MS, etc.).

Patrus Ananias, o então ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, coordenou a ação política de substituição do Programa Fome Zero para o Bolsa Família, unificando todos os programas do governo anterior e ampliando o número de famí-lias, atribuindo ao programa um fator muito importante, pois o Programa Fome Zero tinha surgido como uma marca, e não como uma política pública. Após o funcionamento de um ano do pro-grama, os índices estatísticos sociais melhoraram (MOURA, 2007). A partir de 2011, o Bolsa Família atingiu mais de doze milhões

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de famílias beneficiárias, umas das metas colocadas pelo Governo Lula (MOURA, 2007).

Sobre concentração de renda, segundo dados do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – a renda de uma pessoa rica é em média 25 vezes maior do que uma pessoa pobre e os 10% da popu-lação mais rica do Brasil acumulam 75% de todo riqueza nacional. Outro fator relevante para a desigualdade social é o nível educa-cional, na qual quem possui menor grau de escolaridade recebe até quinze vezes menos do que uma pessoa com maior nível de escola-ridade. Mesmo comparado aos índices de países latinos americanos (que é a região com maior desigualdade do mundo), o Brasil possui índices elevados de desigualdade social e baixa distribuição de ren-da (SCHWARTZMAN et al., 2009). Nesse sentido, o Programa Bolsa Família é uma politica pública com forte papel na redução da pobreza.

Com o Programa Bolsa Família, o Estado foi visto como agente central e articulador da pobreza. Passou a “dar conta” dos vários tipos de vulnerabilidades através de políticas de combate à fome e à pobreza e políticas que promovem a cidadania. Ou seja, a lógica da igualdade ou da emancipação, enfrentando uma dupla tradição: o traço assistencialista (que nega os direitos sociais) e o traço cliente-lista (que controlaria os pobres), que faz parte do discurso da grande mídia e das classes mais conservadoras brasileiras.

Nesse interim, o Programa Bolsa Família se tornou, interna-cionalmente, umas das políticas públicas mais reconhecidas, com grande abrangência e prestígio na contemporaneidade. Assim, é respeitado por várias instituições internacionais de renome, como por exemplo, o órgão das Nações Unidas, o PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – um dos formulado-res do Índice de desenvolvimento humano (IDH), instituição que considera o Programa Bolsa Família como um grande contribuinte para o combate à fome e atuando como garantidor de direitos básicos à cidadania e aos direitos sociais, direitos que são essenciais. Nesse contexto de reconhecimento, o Programa foi citado também pela ODM – Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – como “Programa Modelo” para o desenvolvimento social, uma meta

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socioeconômica desenvolvida pela ONU, na qual o Cadastro Único também foi apontado como um dos melhores mecanismos de con-trole e de seleção.

O Banco Mundial é outra instituição internacional que reconhe-ceu o Programa Bolsa Família. O Banco Mundial atua em países que apoiam ações que promovam o desenvolvimento sustentável e equitativo, em parceria com as Nações Unidas no Brasil, buscando o crescimento econômico e social. A maior parceria do Banco Mundial são os programas inovadores que buscam o extermínio da fome e da pobreza, como o Programa Bolsa Família, que é considerado por essa instituição um dos maiores responsáveis pela diminuição da desigualdade social.

Além de ser amplamente divulgado e elogiado, o Programa Bolsa Família também serviu de inspiração para a criação de um programa de renda em Nova York (EUA), chamado de Opportunity NYC. Uma das principais inspirações se deu no critério “desempenho escolar”, que é exigido pelo programa nova-iorquino.

O Programa Bolsa Família também foi citado no G-20 (grupo das vinte maiores economias mundiais), em 2011, que considerou o BF uma politica bem sucedida. Já Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, nesse mesmo encontro (G-20, 2011), observou que o Programa ajudou a superar a crise econômica de 2008, no Brasil. Finalmente, foi citado por Bill Gates, que o considera como um modelo a ser seguido pelo mundo, principalmente referente à assis-tência aos mais pobres. Da mesma forma, o FMI – Fundo Monetário Internacional – foi outro organismo internacional que avaliou a receita do crescimento da economia, que, segundo Dominique Strauss-Kahn, diretor-gerente do FMI, passa por ações voltadas ao combate à pobreza, como no caso do Brasil, com o Programa Bolsa Família.

Os inúmeros elogios ao programa justificam-se porque o Bolsa Família atua como um programa de redistribuição de renda e, através de suas condicionalidades, garante direitos básicos ao cidadão como, por exemplo, o direito à educação, pois crianças devem possuir 85% de freqüência escolar e adolescentes devem ter 75% de freqüência, ocorrendo, assim, uma inversão, na qual a condicionalidade se torna

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um direito, direito esse fundamental para a formação educacional do cidadão.

Contudo, apesar do reconhecimento internacional descrito acima, no Brasil, o Programa Bolsa Família é visto como um pro-grama assistencialista, no qual o beneficiário criaria uma depen-dência ao Estado, e que o Estado não estaria dando soluções ou alternativas a essa população vulnerável. Esse tipo de discurso apa-rece em jornais televisivos de grande repercussão, como o Jornal Nacional da Rede Globo (01/06/2012). Outros discursos, como aquele que enfatiza que o Programa Bolsa Família cria “preguiço-sos”, também é uma constante na imprensa. Ou seja, dentre as cri-ticas, identificamos, no discurso da mídia, que o Programa Bolsa Família traria ao beneficiário um “efeito preguiça”, atrapalhando o desenvolvimento econômico e impedindo-os a ascensão social, ou seja, são tratados meramente como mercadorias. Esse pensamento tem fundamentação teórica em uma “teologia política” ditada por “grandes”, colocando em risco o processo democrático do cidadão (REGO, 2008).

Esses discursos são, em certa medida, produzidos e reproduzidos pela mídia, que por sua vez, é influenciada por pensamentos de uma elite que quer conservar a ordem. A imprensa, que é considerada por Habermas (2003) um novo espaço da esfera pública, espaço que não pertence ao Estado e nem à sociedade, mas sim para a comunicação mútua entre eles, de livre debate e opiniões dos cidadãos, torna-se, em certa medida, um instrumento de interesses privados, perdendo a capacidade de fomentar a ação comunicativa. Ao contrário, ajuda a produzir desigualdade e subcidadãos, no sentido de Souza (2003).

Para Souza (2003), a produção de “subcidadãos” em sociedades periféricas, como é o caso do Brasil, se dá através da naturalização da desigualdade. Assim, a representação social da exclusão social estaria nas principais instituições modernas do mundo capitalista, o Estado e o Mercado, expressando-se nos indivíduos por meio da indiferença.

Segundo Jessé Souza (2003), para que haja igualdade na estrutura social, é necessário que a igualdade esteja internalizada efetivamente na vida cotidiana e isso não ocorre em países periféricos, daí a grande importância de projetos sociais para um desenvolvimento sustentado

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Programa Bolsa Família: enquadramento cognitivo dos direitos sociais

com inclusão social para a consolidação de um sistema de proteção social mais justo.

Para Souza (2003), na literatura das políticas sociais, identifi-camos três vertentes para pensar a inclusão social: o liberal clássico (ou contemporaneamente, o neoliberal), o conservador corporativo e o social democrata. Cada vertente possui como base os mesmos pilares, a saber: Estado, mercado e família. Essas instituições foram citadas por autores como o “triângulo do Bem-Estar social”, já que estão presentes nos três regimes e são diferenciados somente pelo peso que é dado a cada pilar, dependendo da vertente teórica. O Programa Bolsa Família estaria trabalhando com as três instituições, sendo que a família e o Estado possuem peso maior que o mercado.

Considerando o contexto apresentando acima, argumentamos que o Programa Bolsa Família é utilizado como um exemplo que deu certo para a redução da pobreza e das desigualdades sociais por organismos internacionais de renome como a ONU e o FMI. Já, no Brasil, é criticado pelo seu caráter assistencialista. A hipótese que está em desenvolvimento nessa pesquisa, é que essa forma de enquadrar culturalmente e cognitivamente os direitos sociais seria o reflexo de uma representação social vigente na mentalidade brasileira, que ten-de a desmoralizar os diretos sociais provenientes do Estado, tratando--os como “favor” e assistencialismo. Trata-se de um habitus existente nos corpos e nas mentes dos indivíduos (BOURDIEU, 2001), o qual possibilita enxergar nas politicas públicas do Estado, traços de assistencialismo e de favores, negando, assim, os esforços dos estados.

Portanto, nossa hipótese é que existiria (no plano do incons-ciente, como um habitus) uma construção social da desmoralização do Estado (e da coisa pública) e, como consequência, dos direitos sociais oriundos desse. Até o momento, podemos indicar que exis-te um enquadramento cultural de descrença no Estado e nas suas políticas de inclusão social, vistas como assistencialistas. Esse habitus de descrença do Estado (e da coisa pública) é reforçado pela grande imprensa. Portanto, a mídia ajuda na construção social daquilo que Merton (1968) chama de teoria auto-profetizante.

Lembramos que o Brasil, em toda sua história, nunca teve a expe-riência de um “Estado Universal”, como no caso da França, por

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exemplo. É possível que isso seja um dos motivos que leve a socie-dade à não considerar os direitos sociais como um direito, mas sim como uma dádiva. Como o país nunca teve uma experiência univer-salista, a ideia de direitos sociais não está naturalizada no habitus da sociedade brasileira. Assim, inspirados em Bourdieu, diríamos que não basta os direitos estarem institucionalizados nas leis, mas que precisam estar ainda (e sobretudo), inscritos nos corpos e nas mentes dos indivíduos das sociedades.

Ao coletar discursos sobre o Programa Bolsa Família (opositores e defensores) e analisá-los sociologicamente, buscamos compreender as representações sociais que motivam essas análises sobre o programa. Passemos aos discursos.

Bolsa Família como produtora da “preguiça” e do assistencialismo: discursos vigentes

Não existe consenso discursivo sobre o Programa Bolsa Família no Brasil. É o programa social considerado mais polêmico tanto do Governo Lula quanto do Governo Dilma. Assim, tem sofrido criticas e elogios daqueles que estão empenhados na sua construção ou no seu questionamento. Nesse processo, o Bolsa Família tem recebido o adjetivo de “programa emancipatório”, “política compensatória”, “assistencialismo”, “esmola”, “programa eleitoreiro”, etc.

Por exemplo, Patrus Ananias, Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, define o Programa Bolsa Família como O caminho da emancipação social (ANANIAS, 2007). Ainda que considere que “o valor da dignidade humana e do grande projeto nacional” seja o trabalho, o autor afirma que “[...] num país como o nosso, com uma dívida social tão grande, temos de dar resposta às pessoas, famílias e até comunidades inteiras que ficaram à margem do desenvolvimento e hoje não estão adequadamente qualificadas para o mercado de trabalho”, e ainda que “[...] as políticas sociais são compatíveis com o mundo do trabalho e com as políticas de acesso à educação de qualidade e saúde.” (ANANIAS, 2007, p.3). Portanto, o Bolsa Família é visto por Ananias “como política emancipadora”. Para o autor, a dimensão emancipadora do programa vincula-se jus-

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tamente às criticadas condicionalidades. Ananias (2007, p.3) afirma que “[...] as condicionalidades reforçam o caráter emancipador do programa”, contribuindo para garantir que, no plano educacio-nal, crianças e adolescentes retornem à escola e, no da saúde, que as famílias mantenham as consultas e controles em dia. A ênfase nas condicionalidades aponta também para a valorização de outra dimensão do programa: a focalização tanto em termos de seu alcance (população em situação de pobreza) quanto em termos do principal destinatário (a família).

O mesmo argumento de Ananias é reforçado em outro artigo intitulado Bolsa Família: arma contra o eleitoralismo, quando o autor afirma que, ao avaliar o programa, “[...] o Banco Mundial destaca a focalização como um de seus aspectos positivos.” (ANANIAS, 2008, p.3). Assim, em sua concepção, condicionalidades e focalização apa-recem como elementos fundamentais para que o programa alcance seu objetivo final, que é “[...] promover a emancipação de todas as famílias que hoje precisam de ajuda do Estado para superar uma situação de exclusão histórica” (ANANIAS, 2006, p.3). Ainda que sustente que o programa contribua para reduzir a pobreza e a desi-gualdade social, o Ministro argumenta que a emancipação plena só ocorrerá mesmo com a saída das pessoas do programa e sua inserção ou reinserção no mercado de trabalho.

Do lado mais crítico, encontram-se os argumentos de Francisco de Oliveira, para quem o Bolsa-Família é um programa assistencia-lista e que se pode entender a partir da relevância política. Oliveira (2006) esclarece que:

Não adianta dizer que é assistencialista – isso é óbvio [...] pode-ríamos dizer que o Bolsa-Família é uma criação foucaultiana. Um instrumento de controle, em primeiro lugar. Restaura uma espécie de clientelismo que não leva à política [...] é pelas suas carências que você é classificado perante o Estado. É uma anti-política na forma de uma política (Oliveira, 2008, p.2).

Oliveira não vê qualquer vantagem no programa, que segundo ele, foi construído a partir das carências sociais, o que seria uma falha. “[...] é a morte da política. Acabou a história de você depender

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das relações de força, das relações de classe para desenhar as políticas sociais. Elas são desenhadas agora por uma espécie de dispositivo.” (OLIVEIRA, 2006, p.03). A crítica de Francisco de Oliveira tem como base o fato de que, a seu ver, o programa desmobiliza poli-ticamente, pois a política social passou a ser desenhada a partir do critério de exclusão, de carências. Para o autor, o programa representa uma regressão social e política (OLIVEIRA, 2006).

O caráter assistencialista do programa, pontuado enfaticamente por Oliveira, foi também reforçado por Frei Betto. Numa entrevista divulgada pela Folha On Line, em março de 2008, Betto afirma que a passagem do Programa Fome Zero para o Bolsa Família significou um enfraquecimento da dimensão emancipatória do programa Fome Zero, em prol da dimensão assistencialista que caracteriza o Bolsa Família. Nesse sentido, questiona:

Por que o governo federal não comemora cinco anos do Fome Zero e sim do Bolsa Família? É uma pena que um programa muito mais amplo, de perfil emancipatório, formatado pelo pró-prio Governo Lula, e tido como prioritário, tenha sido substi-tuído pelo Bolsa Família, que tem caráter mais assistencialista. (BETTO, 2008, p.1-2).

Apesar das críticas, Frei Betto reforça a defesa das condicionalida-des do programa como algo positivo. Para o autor, o programa deixa-ria de ser assistencialista se o governo estipulasse uma data limite para cada beneficiado sair do programa, de forma a construir a sua cidada-nia. Para Betto (2008, p.3), um “[...] acesso razoavelmente igualitário aos direitos de cidadania.” supõe uma democracia econômica que permita ao povo brasileiro “caminhar com as próprias pernas”, mas, tal democracia econômica, que ainda não temos, exigiria reformas de estrutura. Como podemos ver, Betto defende a implantação do Fome Zero, projeto de caráter mais emancipatório do que o Bolsa Família, esse último visto pelo autor como assistencialista.

Contrariando as perspectiva que abordam a dependência dos beneficiários em relação ao Estado, já que os indivíduos se desinte-ressariam pelo trabalho, dados do IBGE (2008) revelam que a taxa de participação de adultos no mercado de trabalho é maior entre

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os beneficiários do Programa Bolsa Família, do que no restante da população adulta.

Portanto, o caráter “condicionalidade” do programa tem sido vis-to como algo positivo por Ananias e Frei Betto. Segundo os autores, a condicionalidade faz com que a família se interesse pelos estudos dos filhos; que o estimule a realizar as atividades escolares, de forma a reduzir a evasão das crianças da escola; que se preocupe com a saúde e bem-estar dos filhos.

Os autores que se seguem nos apresentam outro olhar sobre a condicionalidade. Em artigo publicado na Folha de São Paulo, em 2005, com o título Bolsa família é embrião da renda universal, Antonio Negri e Giuseppe Cocco defendem a massificação, a demo-cratização e a incondicionalidade do Bolsa Família, considerado por eles como embrião da renda universal. Em suas palavras, “[...] mas-sificando o programa Bolsa-Família, o Governo Lula está fazendo exatamente isso: criando um embrião de salário universal e, pela primeira vez, praticando aquela distribuição de renda que funciona de lastro à retórica vazia de muita gente [...]” (NEGRI; COCCO, 2006).

Como mostram os discursos coletados, dois pontos polêmicos do Bolsa Família são: a condicionalidade e a porta de saída. Por condi-cionalidade, entende-se as contrapartidas exigidas aos beneficiários quanto à vacinação, freqüência escolar pelas crianças e acompanha-mento pré-natal e pós-puerperal. Quando não atendidos, levam à suspensão do beneficio. Têm-se ainda preocupações com a “porta de saída” do programa e da pobreza, já que é difícil sanar a pobre-za em curto prazo. Para Sonia Rocha (2009), a transferência não elimina de imediato a pobreza em função do baixo valor recebido pelos beneficiários, ao mesmo tempo não desestimula ao trabalho, igualmente devido ao valor. Como porta de saída, o Governo Lula criou o Programa Microcrédito (JARDIM, 2010).

A crítica mais forte que sofre o Programa Bolsa Família é que a renda que o Estado transfere aos cidadãos por meio desse programa é provisória, emergencial, podendo ser considerada um favor ou esmo-la. Nesse sentido, se a renda assim transferida adquire o caráter de um favor ou esmola dos que têm aos que não têm, ela pode também

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ser facilmente associada com a figura de quem dá, seja essa figura um grupo social ou uma pessoa. Os dois casos estão representados nas críticas mais comuns aos programas de transferência de renda. No primeiro caso, a crítica tem como pano de fundo uma espécie de ideologia abstrata do trabalho e, no segundo, a crítica refere-se à vinculação do programa ao presidente ou a seu partido político, permitindo que o programa seja considerado eleitoreiro (informação verbal)1.

A relação direta entre o programa e a figura de Lula, levou ao que André Singer chama de Lulismo. Para Singer, os programas de distribuição de renda do Governo Lula, aliados à manutenção da estabilidade política e econômica, fizeram com que um eleitorado que tradicionalmente era avesso ao PT, aderisse em massa à candi-datura de Lula em 2006. Este novo eleitorado que forma o Lulismo seria, na opinião de Singer, constituído por pessoas de baixa renda, que teriam como principais aspirações a manutenção da ordem e uma ação efetiva do Estado no sentido de distribuir renda. Para André Singer, o Lulismo tem características que misturam a esquerda e a direita e representa um desafio para a oposição. Portanto, nessa perspectiva, André Singer reforça que o realinhamento eleitoral foi resultado de políticas públicas que foram executadas no primeiro mandato do presidente Lula. Dentre as políticas publicas, André Singer cita especialmente o Bolsa Família. Além desse programa, cita, ainda, um conjunto de medidas que envolveram o aumento do salário mínimo, o crédito consignado, além de uma série de políti-cas focalizadas, como, por exemplo, o programa Luz para Todos, a construção de cisternas no semi-árido nordestino e a regularização de terras quilombolas.

É o conjunto dessas políticas que produziu uma mudança na qualidade de vida de um setor de muito baixa renda, que o econo-mista Marcelo Néri, da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, costuma chamar de “o Real do Lula” ou a “ralé” de Jessé de Souza (2003). Para Singer, o Lulismo é o resultado da combinação entre

1 Fala feita por André Singer na reunião do Laboratório de Estudos Marxistas da USP – LEMARX, no dia 24 de novembro de 2009.

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esse conjunto de políticas e a manutenção da estabilidade. A popula-ção de baixa renda acolhida pelo Programa Bolsa Família é chamada por André Singer de “subproletariado”, cuja classe tem um aspec-to conservador, teme o conflito político e prefere que as mudanças sejam feitas sem ameaças à ordem estabelecida. Para o analista, o primeiro mandato do presidente Lula acabou por executar esse pro-grama político desejado pelo “subproletariado”.

A relação entre o Bolsa Família e a figura de Lula, foi criticada por Gilberto Dimenstein, conforme material coletado. Dimenstein vê no Programa Bolsa Família um programa emancipador e “um avanço de tecnologia social” (DIMENSTEIN, 2003, p.C10). Nesse sentido, teme pelos riscos que corre o programa, se este ficar vinculado com a figura do presidente Lula. Isso levaria ao risco do Programa ser boicotado. Assim, “Se o Bolsa Família se converter – como está se convertendo – no símbolo de um indivíduo, sua força está em ris-co de ser boicotada por outros governos.” (DIMENSTEIN, 2006, p.C7). Sabemos que esse temor de Dimenstein não teve eco, já que o programa Bolsa Família tem continuidade no governo Dilma.

A perspectiva do Bolsa Família como programa eleitoreiro foi abordada por Marco Antonio Villa, professor de história do curso de ciências sociais da UFSCar: “O Bolsa Família se transformou em um instrumento de petrificação política, de permanência das oligarquias, impedindo a alternância no poder municipal.” (VILLA, 2008, p.A3).

Sobre a critica que o programa seria uma forma de clientelismo, Kerstenetzky (2009) afirma que não há evidência de uso clientelístico das bolsas pelo governo central, o que evidentemente se relaciona ao fato de que a implementação e o monitoramento do programa, além de descentralizados (já que ele é colocado em prática em par-ceria com as prefeituras), incluem muitos pontos de checagem e abundante informação pública. O mesmo argumento é defendido por Sonia Rocha (2009), ou seja, o pagamento via cartão magnético, assim como o uso sistemático do Cadastro Único para fins de acom-panhamento e controle são medidas positivas que criam obstáculos ao uso clientelístico do programa no nível local. O Cadastro Único

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é importante para se utilizar suas informações em outras políticas publicas. É um instrumento de medida “antipobreza”.

Além das questões emancipatórias, assistencialistas ou clientelísti-cas do programa, intelectuais disputam reflexões sobre seus impactos. Assim, em estudos sobre o impacto do Bolsa Família no nordeste, o professor da Universidade Federal de Pernambuco, Marcos Costa Lima fez elogios ao programa, o qual promove comércio local, espe-cialmente no nordeste.

O programa é importantíssimo para garantir que um mínimo de dinheiro alcance municípios pobres do interior, onde, histo-ricamente, a circulação de moeda é rara [...] o Bolsa Família é crucial para entender a melhora econômica da região, uma vez que, ao proporcionar meio de troca a comunidades carentes, promove o incremento da produção de itens básicos, como ali-mentos e vestuário, que sentem o fortalecimento do mercado interno na região. (LIMA, 2009, p.2).

Na mesma perspectiva adotada por Lima, Amélia Cohn, professora da USP, que pertenceu à equipe do Ministério do Desenvolvimento Social no inicio do Programa Bolsa Família, valo-riza o impacto do programa: Na ocasião, a autora falou que em várias regiões do nordeste, o valor mensal do programa é maior do que uma família pobre ganha em doze meses. Isso impulsionou o comércio da região, que estava morto. (COHN, 2005). Provocando os entusiastas do Programa, Francisco de Oliveira questiona: “O Bolsa Família aumenta a compra de que? Arroz, feijão e farinha? Ele é importante, mas não garante o comércio de massa”. O autor aproveita o momento para frisar sua tese que o Bolsa Família é “[...] puro assistencialismo sem maiores repercussões na economia local.” (OLIVEIRA, 2006, p.4).

Em 2009, Marilena Chauí quebrou o silêncio que mantinha com a imprensa desde 2004 para sair em defesa do programa Bolsa Família. A filósofa argumentou que o Bolsa Família é um programa moderno de inclusão social e esclareceu que, no Brasil, todo projeto que opera no sentido da redução da exclusão é consi-derado populista. Num país de privilégios da minoria, os direitos

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de cidadania nunca foram desenvolvidos. Observem o conteúdo de seu discurso.

Acho importantíssimo dizer que tudo aquilo que no Brasil opera no sentido da dimensão da desigualdade econômica e social é considerado populista paternalista, demagógico, atra-sado. Seria interessante perguntar a esse pessoal o que o que é uma política social moderna. Se essas pessoas que criticam explicitassem o que é uma política social moderna e como é que ela se realiza numa política social moderna com pleno emprego e distribuição de renda, calo a boca. Mas, eles não têm como responder, a não ser com malthusianismo social, ou seja, uma parte que tem que desaparecer, tem que acabar, tem que morrer, seleção natural. As políticas voltadas para os direitos sociais, políticos e culturais de todos os cidadãos nunca foram desenvolvidas ou, quando o foram, nunca foram prio-ritárias, em que as carências da maioria da sociedade sempre foram ignoradas em nome dos privilégios da minoria, as ações deste governo instituem práticas de inclusão sem precedentes na história do Brasil e, em grande parte, são responsáveis pela avaliação positiva do governo. (CHAUÍ, 2009).

A essa altura, uma questão a ser esclarecida é a diferença entre assistencialismo e assistência social. Uma política de assistência social seria serviços prestados a membros de uma determinada comunidade através, principalmente, do reconhecimento público e da legitimida-de dos cidadãos, referente à demanda social. Trata-se de uma política pública não contributiva, que é de dever do Estado e direito de todo cidadão que dela necessitar, constando na Constituição Federal de 1988 como um direito, direito esse essencial, principalmente para a subsistência. Por outro lado, o assistencialismo, é uma distorção na prestação da “assistência social”, na qual é exigida uma relação de troca pouco clara (SOARES, 2006), ou seja, pode ser considerada uma política clientelista.

Após análise da bibliografia e contato com beneficiários, não con-cordamos com opositores que caracterizam o Programa Bolsa Família como política de caráter assistencialista, já que o benefício garante aos cidadãos direitos básicos, além de garantir um direito essencial

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a todos, que é o direito à alimentação, universalizando o acesso aos direitos sociais. Entendemos que o esclarecimento do que se entende por política de assistência social e assistencialismo seja fundamental para a transformação dessas visões sobre os conceitos. Essa trans-formação ajudará em novo reenquadramento cultural e cognitivo sobre o tema. A seguir, apresentamos dados empíricos sobre o Bolsa Família, os quais negam os discursos dos opositores.

Questionando informações do senso comum

A realização da pesquisa de campo e a aproximação concreta com os beneficiários do Programa Bolsa Família possibilitaram uma inter-pretação dessa política pública diferente do discurso veiculado pela mídia e até mesmo de parte da bibliografia científica. A pesquisa de campo foi realizada numa cidade do interior do Estado de São Paulo2, com 30 mulheres na faixa de 19 a 40 anos. Utilizando as informações coletadas, dividimos a exposição dos temas que apare-cem nas entrevistas em três eixos: autonomia das mulheres, condi-cionalidade e importância da educação para as famílias beneficiadas.

Autonomia das mulheres

A primeira constatação que a pesquisa de campo aponta é que o benefício é utilizado pelos membros mais vulneráveis da família, as mulheres; a segunda observação, é que o benefício proporciona autonomia às mulheres beneficiárias, sobretudo àquelas separadas dos maridos. Em nossa amostra, havia casos de separação do casal. Nesses, a mulher ficou com a posse das crianças e a responsabilidade pelas compras mensais da casa e pela educação dos filhos. Portanto, a pesquisa aponta como essencial que o benefício esteja no nome das mulheres, para garantir que o beneficio atinja diretamente às

2 A pesquisa de campo foi realizada na cidade de Rincão, interior de São Paulo, localizada na região de Ribeirão Preto. Com aproximadamente 10 mil habitantes, o município foi fundado por proprietários de terra interessados na estrada de ferro da Companhia Paulista, em 1884. Sua base econômica inicial foi fundamentalmente a agricultura, o que persiste atualmente.

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crianças e adolescentes, mesmo em caso de separação do casal. Em certa medida, o benefício Bolsa Família dá alguma autonomia às mães separadas e/ou divorciadas. A forma como está estruturado coloca algum tipo de poder econômico nas mãos das mulheres, e como consequência, poder de negociação e de barganha. As mulhe-res entrevistadas apontaram ter a autoestima melhorada perante o marido (e os ex-maridos), graças à posse do benefício.

Sobre o efeito “preguiça” apontado nos discursos sobre Bolsa Família, o trabalho de campo indica que mulheres beneficiárias exercem atividades extras para complementar a renda, tais como venda de produtos como Avon, Natura e lingerie, assim como faxinas esporádicas. Da mesma forma, os maridos dessas esposas exercem atividades consideradas bicos, sobretudo no ramo da construção, como pedreiros, para complementar o orçamento familiar.

Finalmente, negando o discurso do senso comum que afirma que as beneficiárias compram álcool e cigarro com o benefício, detectamos, em trabalho de campo, que esse dinheiro é essencial no orçamento doméstico e nas compras do mês. As famílias realmente utilizam esse dinheiro para a cesta básica de subsistência. Podemos observar no gráfico I, essa relação, cuja porcentagem de mães bene-ficiárias solteiras ou divorciadas atinge 50%:

Gráfico 1 – Estado civil dos beneficiários do Programa Bolsa Família da cidade de Rincão

Fonte: Flores (2011).

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Condicionalidades

O Programa Bolsa Família atua como um programa de redistri-buição de renda através de suas condicionalidades, sendo que, na sua falta, pode ocorrer o desvinculamento do programa. As condiciona-lidades são referentes à saúde e à educação, em relação às crianças e adolescentes até dezessete anos. Quando as famílias beneficiárias foram questionadas sobre as condicionalidades, quatro disseram que já descumpriram as obrigações e vinte e seis disseram que não.

A pesquisa de campo indica que as condicionalidades mostram a essas famílias a importância dos estudos para o desenvolvimento pessoal de seus filhos, algo que antes era desprezado por elas, porque sua trajetória pessoal tinha como referência o discurso dos pais e dos avôs, que defendiam a idéia de trabalhar desde criança, pois “estudo era coisa para desocupado”. No gráfico II, podemos observar o cum-primento das condicionalidades pelas famílias.

Gráfico 2 – O cumprimento das condicionalidades do Programa Bolsa Família

Fonte: Flores (2011).

Condicionalidade não cumprida

Dentre as condicionalidades burladas, o trabalho de campo mos-trou que a frequência escolar costuma ser a condicionalidade mais

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ignorada, na maioria dos casos, pelos adolescentes, que não respon-dem aos incentivos dos pais. Porém, as entrevistadas afirmaram que, após se tornarem beneficiárias do Programa Bolsa Família, passaram a acompanhar os filhos na escola, evitando que estes “matem aulas”. Nesse sentido, com as condicionalidades, temos o estímulo à educa-ção, não só pela família, que é muito importante, mas também pelo Estado, como podemos observar no gráfico III. Essa constatação reforça a importância das condicionalidades, um dos temas mais polêmicos do Programa Bolsa Família.

Gráfico 3 – Condicionalidades descumpridas no Programa Bolsa Família da cidade de Rincão

Fonte: Flores (2011).

Em nossa pesquisa, somente quatro famílias afirmaram ter des-cumprido as condicionalidades, sendo que três famílias apontaram a freqüência escolar e uma apontou a saúde.

Importância da educação para as famílias beneficiadas

Em nossa amostra, podemos observar que mais de 73% dos bene-ficiários não chegou a completar seus estudos e não encontramos nenhum caso de pessoas que chegou até o ensino superior. A maioria da população atingida pelo Programa Bolsa Família é de pessoas

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analfabetas e semianalfabetas, que geralmente conseguem empre-gos de remuneração inferiores em relação àquelas com maior nível educacional. Dos beneficiários, quatro eram analfabetos, dezoito possuíam o ensino fundamental completo, oito possuíam o ensino médio completo e nenhum deles possuía ensino superior. Os pais dos beneficiários não haviam realizado estudos e tinham ocupações como “trabalhador rural”, “faxineiro”, “doméstico”, “pedreiro”. No gráfico IV, é possível observar a relação do grau de escolaridade das famílias beneficiárias do programa.

Gráfico 4 – Grau de escolaridade dos beneficiários do Programa Bolsa Família da cidade de Rincão

Fonte: Flores (2011).

Como analisou Bourdieu (1996), o sistema escolar contribui para toda a lógica de reprodução do capital cultural e a estrutura de sua distribuição se dá através da educação, por meio da qual também ocorre a reprodução da desigualdade social. Assim, é possível enten-der porque esse programa de redistribuição de renda, que toca na questão escolar, tem sido tão elogiado por instituições internacionais. Da mesma forma, as resistências ao programa são mais resultado do enquadramento cultural da sociedade brasileira e das lutas do campo do poder para manter determinado status quo, do que a não eficácia do programa propriamente dito.

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Programa Bolsa Família: enquadramento cognitivo dos direitos sociais

Conclusão

Essa pesquisa buscou desmistificar o discurso operante no senso comum, que relaciona o programa Bolsa Família com assistencia-lismo e produção do fenômeno “preguiça”. Acreditamos que essa revelação sociológica nos ajuda a compreender as relações que a sociedade brasileira mantém com o Estado no Brasil, bem como com os direitos sociais.

Ao coletar discursos sobre o Programa Bolsa Família e analisá-los sociologicamente, foi possível compreender as representações sociais que motivam as análises negativas feitas sobre o Programa Bolsa Família, sobretudo por determinados setores da imprensa nacional. Nesse sentido, indicamos sobre a possibilidade de um enquadramen-to cultural (representação social e cognitiva) que carrega um olhar de “favor” e de “assistencialismo” para com os direitos sociais. Essa representação social seria produzida e reproduzida pela imprensa brasileira e até por intelectuais que se recusam a admitir os benefícios do programa bolsa família, os quais são demonstrados por nossa pesquisa de campo com as beneficiárias.

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Ingerência da economia da cultura na cinematografia brasileira: uma análise

a partir da Sociologia Econômica

Talita Vanessa Penariol NATARELLI

Introdução

O objetivo primordial deste trabalho consiste em um estudo por-menorizado da relação entre a cultura e a economia através da pers-pectiva da sociologia econômica, mais especificamente, da economia envolvida nas práticas cinematográficas brasileiras.

Tendo sua origem como uma espécie de resposta às teorias eco-nômicas clássicas e neoclássicas, sobretudo no que concerne a pres-supostos como o homo economicus, a sociologia econômica surge em busca de realizar uma discussão acerca das relações sociais que ocorrem no interior da economia. Podemos citar, como sociólogos que passaram a “[...] analisar os fatos econômicos de maneira a for-necer explicações alternativas às teorias econômicas.” (RAUD, 2005, p.127), Émile Durkheim e Max Weber. Estes grandes nomes não apenas da Sociologia Econômica, como da própria Sociologia, reali-zam um estudo do mercado em termos sociológicos, sugerindo que as instituições têm fundamental influência, tanto no ator econômico, quanto na própria regulamentação do mercado.

Cultura e economia costumavam ser tidas como categorias dis-tintas da atividade humana no âmbito das ciências sociais, mas, já na década de 1970, a produção, a circulação e o consumo de bens

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Ingerência da economia da cultura na cinematografia brasileira: uma análise a partir da Sociologia Econômica

e serviços culturais despontaram como um segmento de peso na economia das nações do pós-guerra, e o interesse pelo ramo foi real-mente aprofundado, surgindo a que se convencionou denominar Economia da Cultura.

No mundo globalizado, é inegável a aproximação e diferenciação entre as esferas supracitadas. Para o investidor, por exemplo, patroci-nar um artista, evento ou manifestação cultural significa consolidar uma imagem institucional favorável à sua empresa, o que agrega valor à marca. Isso porque, com o aumento da concorrência e o maior acesso a informações sobre quem presta serviços ou vende produtos, o público passou a querer se identificar cada vez mais com o que consome.

Embasando a análise que se propõe realizar sobre a sociologia econômica e o mercado de bens culturais, estudar-se-ão os posi-cionamentos de Phillippe Steiner, Mary Douglas, Zelizer1 e Pierre Bourdieu, este último pertencente à tradição francesa da sociologia econômica ao mesmo tempo em que compartilha com autores da Nova Sociologia Econômica o exame do mercado em termos de construção social.

Uma das abordagens a ser desenvolvida consiste na intervenção estatal proposta por Bourdieu, buscando-se aplicar o que o sociólogo francês realizou com as regras do mercado da casa própria ao mode-lo de leis de incentivo fiscal que hoje dominam o setor cultural no Brasil. Ainda sobre a intervenção do Estado, propõe-se uma constru-ção dos fundamentos econômicos das políticas públicas de cultura apresentados por Françoise Benhamou, bem como sua ligação com o paradigma do investimento indireto nas obras fílmicas.

O mercado dos bens culturais será estudado a partir da pers-pectiva do campo de produção erudito e do campo de produção da indústria cultural empregado por Bourdieu (2007b), em sua obra A Economia das trocas simbólicas.

Dar-se-á enfoque aos mecanismos existentes no Brasil que denotem incentivos e investimentos no setor cultural. Para tan-

1 Autora contemporânea que critica a adesão ao modelo de mercado ilimitado efetuada por Bourdieu.

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to, faz-se uso de buscas aos sites oficiais do Banco Nacional do Desenvolvimento, do Ministério da Cultura e, sobretudo, da Agência Nacional do Cinema.

Afinal, seria a economia um acessório da sociedade? O mercado, uma agressão à cultura, que deve ser combatido? Temos um merca-do de cinema brasileiro no Brasil? A sociedade civil seria capaz de combater o mercado autorregulável? Ou seria a própria sociedade a responsável por deixar que o mercado se autorregule? Não somos nós que damos condições para que as engrenagens da máquina capitalista funcionem a todo vapor? Desse “moinho satânico, que triturou os homens transformando-os em massa” (POLANYI, 2000), devemos, podemos e queremos realmente, manter distância?

Nova Sociologia Econômica

“A economia é a ciência que explica como os indivíduos fazem esco-lhas, enquanto a sociologia se dedica a mostrar que eles não têm nenhuma escolha a fazer.” Bertrand Russell (apud ABRAMOVAY, 2004, p.37).

O sociólogo de hoje possui o dever de se dedicar e atualizar os ditames de uma ciência tradicionalmente crítica da modernidade. Com a emergência do neoliberalismo, as análises sociais, em geral, passaram a conter marcante presença de parâmetros econômicos, com enfoque no funcionamento do mercado.

De acordo com Richard Swedberg,

[...] existem três tradições principais em Sociologia Econômica: a tradição alemã de Wirtschaftssoziologie (1890-1930), a tra-dição francesa de sociologie économique (1890-1930) e a tra-dição norte-americana de economy and society (anos 1950). (SWEDBERG apud RAUD, 2007, p.203).

Tanto a tradição francesa quanto a alemã dá ênfase ao papel das instituições econômicas e à dimensão cultural e simbólica dos fenô-menos econômicos (RAUD, 2007). Pierre Bourdieu, que segundo Philippe Steiner (1998) seria herdeiro de Émile Durkheim (1858-1917), na pretensão de substituir a teoria econômica, segue uma

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Ingerência da economia da cultura na cinematografia brasileira: uma análise a partir da Sociologia Econômica

“[...] tradição francesa de crítica sociológica à economia política.” (RAUD, 2007, p.203), isso na linha de Comte e Durkheim, sendo considerado o autor que influencia toda a corrente contemporânea da sociologia econômica. Steiner, por sua vez, traz uma postura que considero fundamental para dar início ao propósito deste trabalho: a economia não é suficiente para entender os mercados, pois ela estaria apoiada nas seguintes premissas teóricas equivocadas:

1) os indivíduos agem a partir de uma situação de informação perfeita a respeito somente dos sinais emitidos pelo repertório de preços do mercado; 2) os atores agem sem nenhum grau de incerteza quanto às qualidades e propriedades dos bens de um mercado, ou quanto ao cenário futuro. (STEINER apud AZAMBUJA, 2007, p.342).

Portanto, para Steiner “[...] essas premissas levaram a economia a desconsiderar o papel dos fatores sociais nos fenômenos de merca-do.” (STEINER apud AZAMBUJA, 2007, p.342), e seria somente através da inserção do social que a sociologia econômica estaria apta a contribuir significativamente para a economia na direção de uma melhor compreensão do mercado.

Bourdieu, crenças econômicas e os blockbusters brasileiros

Uma das considerações de Bourdieu suscetíveis à apreciação por-menorizada consiste em sua ponderação acerca das crenças econômi-cas. Para ele, “a conduta econômica supõe um conjunto de valores sociais que a orienta”, sendo que as disposições do agente econômico moderno seriam social e historicamente construídas:

[...] elas são o ‘produto de toda uma história coletiva, que deve ser sempre reproduzida nas histórias individuais’. O universo econômico é, como qualquer outro campo, um ‘universo de crença’, ou seja, os agentes devem acreditar no jogo, eles devem ter a certeza de que vale a pena jogar e devem aprender a legi-timar as regras do jogo. (BOURDIEU apud RAUD, 2007, p.226).

O postulado sociológico básico de Bourdieu

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[...] é o de que os agentes sociais não agem sem razão, ou seja, eles têm motivos para agir como agem. Nesse sentido, são “razo-áveis”, a não confundir com “racionais”, o que significaria que são motivados por razões conscientes e que escolhem com base num cálculo racional de custo e benefício. (BOURDIEU apud RAUD, 2007, p.216).

Dessa forma, “[...] o habitus, ou disposição incorporada, depen-de da posição do agente no espaço social e condiciona, de maneira inconsciente, sua visão de mundo e seu comportamento.” (RAUD, 2007, p.216). Seria, pois, a interiorização da estrutura, interiorização essa que perpassa a trajetória de vida específica de cada um. O habi-tus se diferencia do conceito de hábito, posto que o primeiro orienta nosso comportamento, mas não o determina: o habitus é mutável, embora exista uma espécie de fio condutor imutável que norteia a ação das pessoas (por exemplo: o fato de ser mulher, de exercer uma profissão, de pertencer a uma classe social, etc.). Já o hábito é algo naturalizado, fixo no tempo e no espaço.

As pessoas, de maneira geral, têm interesse por películas produzi-das pela indústria cultural (já que essas películas são feitas justamen-te para atraí-las), estreladas, por exemplo, por artistas famosos que tenham visto na televisão – o que remete ao star system proveniente do cinema hollywoodiano. As bilheterias seriam então garantidas por blockbusters e não pelo cinema de autor:

[...] o grau de diferenciação dos produtos varia em função do segmento de mercado no qual é oferecido: esquematicamente podem-se distinguir segmentos com alto grau de inovação (a literatura geral considerada difícil, o filme de autor, etc.) e seg-mentos menos inovadores (o livro prático, o romance sentimen-tal, o filme popular). A empresa faz uma composição dos lucros entre os produtos destinados aos mercados de massa e aqueles de escoamento lento, vendidos em mercados mais restritos e menos seguros. (BENHAMOU, 2007, p.113).

No documentário Muito Além do Cidadão Kane de Simon Hartog (1993), Dias Gomes, autor de novelas, fornece uma entrevista dizen-do o que se segue: “Eu acho que o povo é que faz a televisão, é a

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cabeça do povo que faz a televisão. A televisão no Brasil é um reflexo do próprio povo, do que o povo pensa e quer, porque é uma televisão comercial, e sendo comercial ela precisa ter, em primeiro lugar, rede, ibope.” (HARTOG, 1993). No universo cinematográfico as coisas não são muito diferentes.

Apesar de no caso do cinema não possuirmos muitas inquiri-ções – ou mesmo pesquisas científicas – acerca da recepção dos fil-mes2, como acontece com o Ibope na TV, o fato é que, no caso do cinema, “[...] os agentes são econômicos, pois os filmes se produzem, em grande medida, para o mercado.” (MELEIRO, 2009, p.9). Isso não quer dizer, é claro, que os agentes deixem de ser sociais e cul-turais:

São sociais porque possuem perspectivas diferenciadas de acordo com a posição que ocupam na cadeia de valor. E são culturais porque a manutenção ou alteração das condições do mercado e das posições sociais apenas se concretizam a partir da esfera política, o que envolve concepções particulares sobre o lugar da cultura no Brasil e, inclusive, sobre o que venha a ser a cultura brasileira. (MELEIRO, 2009, p.9).

Se o popular, ou o mero entretenimento, é o que atrai a atenção do grande público já que provém da maioria, então o erudito não será ofertado de forma avultante pelo mercado por uma simples questão de lógica financeira.

Para finalizar, não podemos deixar de pensar em outra problemá-tica: a que envolve a relação que o Estado mantém com a cultura. Desde os primórdios dessa relação no Brasil, podemos notar que o Estado tanto não se interessou pela formação de um mercado interno para a cultura aqui produzida, como se aliou aos interesses estran-geiros no processo de alienação (COELHO, 1993). É interessante observar, por exemplo, que o próprio público brasileiro não se reco-nhece quando se vê nas telas do cinema:

2 Mascarello (2006, p.129) afirma que “[...] se é verdade que o panorama mundial da investigação da recepção cinematográfica é modesto e marginal, o brasileiro, por seu turno, é virtualmente inexistente.”

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Já naqueles mesmos anos 60 do cinema novo, o público brasi-leiro não aceitava as cores dos cenários usados nos filmes brasi-leiros, não aceitava as caras dos atores brasileiros e ria quando ouvia o português sendo falado nos filmes (exatamente o oposto do público americano, que só quer “ver” seus filmes em inglês). (COELHO, 1993, p.11).

Nesse ponto, podemos nos atentar para a visão que Bourdieu demonstra ter dos consumidores no mercado enquanto campo de lutas, já que “[...] as relações de transação entre produtores e clientes e as relações de concorrência internas ao campo eco-nômico (em particular a existência de empresas dominantes e dominadas) constituem o princípio da dinâmica desse campo.” (RAUD, 2007, p.213). Bourdieu vê o consumidor como mero elemento passivo, “[...] na medida em que as empresas e o Estado desempenham um papel preponderante no processo de mudança.” (RAUD, 2007, p.213). Segundo Raud, Bourdieu “[...] empenha-se em mostrar como os consumidores são manipulados pelas empre-sas, em particular por meio da propaganda.” (BOURDIEU apud RAUD, 2007, p.213-214), o que possivelmente ajudaria a explicar a supremacia que a cinematografia hollywoodiana detém no mer-cado brasileiro, a qual é efetuada de forma a nos deixar reféns da sedução exercida por sua técnica. O Estado nunca priorizou uma aproximação do brasileiro com sua própria identidade no cinema. Consequentemente, o público se considera mais próximo aos “enla-tados” do que à nossa produção.

É importante frisar que quando falamos em mercado para o cinema, não estamos nos referindo a um mercado norte-americano de cinema no Brasil. Estamos nos referindo à necessidade de man-ter um mercado viável para o nosso cinema dentro do nosso país. Algo historicamente limitado. A Índia, um país que possui um claro parentesco social e de imagens com o nosso, “[...] produz 800 filmes por ano e registra doze milhões de espectadores de cinema por dia – o que faz do cinema indiano um meio de cultura ambiental tanto quanto, entre nós, a televisão.” (COELHO, 1993, p.11), o que nos leva a concordar com Coelho quando alega que a omissão dos suces-

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sivos governos pátrios na preparação e formação de um público para a cultura nacional é preocupante. Apesar de o público conseguir se identificar com as novelas exibidas na TV, como o próprio Coelho alerta, isso não invalida o diagnóstico da incapacidade induzida de ver a si mesmo na tela grande, pois no caso da televisão, trata-se de outro processo cultural, com trações específicas e particulares3.

Zelizer e a crítica ao modelo de mercado ilimitado

Conforme afirma Raud, Bourdieu parece, de maneira geral, dia-bolizar a lógica mercantil que “[...] tende a reduzir qualquer coisa ao estado de mercadoria comprável e a destruir todos os valores.” (BOURDIEU apud RAUD, 2007, p.225), utilizando, inclusive, a dicotomia empregada por Durkheim de sagrado e profano: “O mercado é o lugar do cálculo ou da astúcia diabólica, de transgressão diabólica do sagrado.” (BOURDIEU apud RAUD, 2007, p.225).

Seguindo a linha de pensadores que possuíam uma visão pessi-mista do processo de modernização, Bourdieu enxerga o mercado como todo poderoso e destrutivo – mercado “ilimitado” –, no que discorda Zelizer, que traz à tona as limitações estruturais, culturais e sociais do mesmo:

Rejeitando a autonomização e a diabolização do mercado apon-tados por esse modelo, Zelizer recusa a dicotomia entre pro-cessos econômicos e forças socioculturais para afirmar que os

3 Basta voltarmos um pouco no tempo para percebermos o quanto a cinematografia difere do processo de inserção da televisão, quando a Motion Pictures Association, dos Estados Unidos da América, com sua atuação astuta, soube se instalar no Brasil “[...] e garantir as boas graças de distribuidores, exibidores, altas personalidades, figuras da imprensa e da comunicação de massa. Foi essa mesma associação que esteve por trás de uma enxurrada de ações judiciais erguidas contra o extinto Conselho Nacional de Cinema do Brasil e a Embrafilme e suas políticas de amparo ao cinema nacional. Como se vê e como se sabe, livre-mercado é bom para os outros. Se é para termos um mercado regional integrado, o apoio governamental (quer dizer: público) sem receio e sem falsos pudores à produção cultural, primeiro nacional e depois regional, deve ser forte e sem ambiguidades.” (COELHO, 1993, p.13).

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processos econômicos deveriam ser vistos como uma categoria especial de relações sociais, como a religião ou o parentesco. (ZELIZER apud RAUD, 2007, p.225).

Zelizer aponta o modelo de “mercados múltiplos”, demonstrando como a cultura e as relações sociais se apropriam das relações econô-micas, modelando-as:

[...] as relações sociais e os valores não se submetem passiva-mente a um mercado potente e homogeneizador, mas são as diferentes formas de relações sociais que determinam mercados múltiplos ao criar de maneira dinâmica novos modos de troca e repartição. (ZELIZER apud RAUD, 2007, p.226).

Roland Corbisier alega que “[...] o problema da ‘cultura brasilei-ra’ não nos é ‘exterior’, mas, ao contrário, é um problema próprio, pessoal, de cada um de nós.” (CORBISIER, 1960, p.70). Ainda segundo ele,

O fato de nos acharmos imersos no contexto colonial, que é a nossa circunstância, o nosso mundo, nos afeta e qualifica na totalidade de nosso ser, configurando a nossa estrutura e condi-cionando o nosso modo de ser, isto é, o nosso comportamento. O que nos parece importante compreender é que estamos mer-gulhados no contexto ou na situação colonial como os peixes na água, no sentido de que o contexto nos envolve, nos impregna, nos determina, como uma atmosfera que nos penetrasse por todos os poros. (CORBISIER, 1960, p.71).

Nós somos responsáveis por aceitar o que vem de fora como tradução suprema do melhor filme, do melhor tênis, da melhor mar-ca. Se existem potências econômicas, mercados globais dominan-tes, tudo foi construído por pessoas que acreditaram e conseguiram equacionar teorias e produtos capazes de circular pelo mundo como ideal ou padrão. Afinal, a circulação de uma produção artística vol-tada à mera reprodutibilidade rentável precisa de receptores para se perpetuar.

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Ingerência da economia da cultura na cinematografia brasileira: uma análise a partir da Sociologia Econômica

O mercado dos bens culturais e as estratégias para o consumo

Os bens culturais são bens permeados por uma complexidade dúbia: “[...] têm um lado material, gerado dos impactos em termos de emprego e renda, e outra face imaterial, que geralmente é trata-da como valor simbólico ou cultural.” (VALIATI, 2010, p.20). A produção dos bens culturais pode ser determinada a partir de pers-pectivas distintas: a do campo de produção erudita e a do campo da indústria cultural:

O campo de produção propriamente dito deriva sua estrutura específica da oposição [...] que se estabelece entre, de um lado, o campo de produção erudita enquanto sistema que produz bens culturais (e os instrumentos de apropriação destes bens) objetivamente destinados (ao menos a curto prazo) a um público de produtores de bens culturais que também produzem para produtores de bens culturais e, de outro, o campo da indústria cultural especificamente organizado com vistas à produção de bens culturais destinados a não-produtores de bens culturais (“o grande público”) que podem ser recrutados tanto nas frações não-intelectuais das classes dominantes (“o público cultivado”) como nas demais classes sociais. (BOURDIEU, 2007a, p.105).

O mercado das obras produzidas pelo campo de produção erudita acaba se tornando restrito devido, sobretudo, às características intrín-secas que essas obras possuem, quais sejam as qualidades “puras”, “abstratas” e “esotéricas”:

Obras “puras” porque exigem imperativamente do receptor um tipo de disposição adequado aos princípios de sua produção, a saber, uma disposição propriamente estética. Obras “abstratas”, pois exigem enfoques específicos, ao contrário da arte indiferen-ciada das sociedades primitivas, e mobilizam em um espetáculo total e diferentemente acessível todas as formas de expressão, desde a música e a dança, até o teatro e o canto. Por último, trata-se de obras “esotéricas” tanto pelas razões já aludidas como por sua estrutura complexa que exige sempre a referência tácita à história inteira das estruturas anteriores. Por este motivo, são

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acessíveis apenas aos detentores do manejo prático ou teórico de um código refinado e, consequentemente, dos códigos sucessivos e do código destes códigos. (BOURDIEU, 2007a, p.116).

Por outro lado, as obras produzidas pelo campo de produção da indústria cultural, além de serem “[...] mais ou menos independentes do nível de instrução dos receptores (uma vez que tal sistema tende a ajustar-se à demanda).” (BOURDIEU, 2007a, p.117), não exigem de seus espectadores o conhecimento das regras técnicas ou mesmo de princípios estéticos que constituam partes integrantes dos pres-supostos das obras para serem apreciadas.

É como se a economia dos bens simbólicos fosse dividida em duas lógicas: a da subordinação total e cínica à demanda e a inde-pendência absoluta com respeito ao mercado e às suas exigências:

Em um pólo, a economia anti-“econômica” da arte pura que, baseada no reconhecimento indispensável dos valores de desin-teresse e na denegação da “economia” (do “comercial”) e do lucro “econômico” (a curto prazo) [...] está orientada para a acumulação de capital simbólico, como capital “econômico” denegado, reconhecido, portanto legítimo, verdadeiro crédito, capaz de assegurar, sob certas condições e a longo prazo, lucros “econômicos” (BOURDIEU, 1996, p.163).

No outro polo, a lógica “econômica” das indústrias culturais, que fazem do comércio dos bens culturais um comércio como os outros: prioriza-se o sucesso imediato, os números vendidos, os lucros garan-tidos. Essa lógica pretende atender e atrair a demanda. Quando um filme é feito para atender a uma demanda preexistente e em formas preestabelecidas, mais próximo do polo “comercial” ele se encontra.

Para agradar o consumidor, os filmes produzidos apostam em fórmulas com resultado garantido, como continuações (Harry Potter, High School Musical, Crepúsculo, e, no nosso caso, Tropa de Elite) ou refilmagens (Footlose, Dirty Dancing, entre outros). Películas que não inovam nem acrescentam qualidade à história cinematográfica, mas que são fontes confiáveis de retorno financeiro através do alto número de espectadores que já atraíram e podem voltar a atrair.

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Ingerência da economia da cultura na cinematografia brasileira: uma análise a partir da Sociologia Econômica

Concentração da indústria cinematográfica e os complexos hegemônicos

Para compreendermos a concentração da indústria cinematográ-fica devemos, antes de tudo, recorrer brevemente à sua gênese, ou melhor, ao seu aporte no Brasil, país no qual a distribuição inicial de películas se deu através de representantes das majors – Universal (1915) e Fox (1916). Para Laurent Creton, “[...] o mercado é pro-duto da indústria, ele é um sistema formado com a função de cana-lizar a produção. Daí que no caso do cinema as majors buscaram desenvolver o mercado mundial de acordo com os seus interesses.” (CRETON apud SÁ NETO, 2004, p.171).

A distribuição e a exibição estruturaram-se de maneira sólida no Brasil na segunda metade da década de 1910, quando se observa clara separação entre uma e outra atividade, de forma a viabilizar prioritariamente a comercialização do produto norte--americano, este, aliás, aproveitou-se da situação gerada pela I Guerra Mundial superando os concorrentes europeus em vários lugares, inclusive por aqui. (SÁ NETO, 2004, p.171).

Essa situação se justifica, pois “[...] tal como para o país, tam-bém para o cinema a industrialização foi a solução ideologicamente encontrada a partir da qual, uma vez tornada realidade, todos os problemas seriam resolvidos.” (SÁ NETO, 2004, p.171). Eivada de vícios em sua origem, a indústria que aqui se instalou foi inca-paz de constituir um discurso e um caminho coerentes. Para ter-se uma ideia da discrepância entre a circulação do filme nacional e do estrangeiro no mundo hodierno, atente-se para os seguintes dados da Unctad – United Nations Conference on Trade and Development4: “[...] os países industrializados têm quase 90% do mercado mundial de audiovisuais, ao passo que os países em desenvolvimento res-

4 O principal objetivo da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento é aumentar ao máximo as oportunidades de comércio, investimento e progresso dos países em desenvolvimento. Maiores informações disponíveis em: <http://www.unctad.org/>. Acesso em: 22 nov. 2011.

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pondem por apenas 8% das exportações de produtos audiovisuais.” (MELEIRO, 2009, p.46). No caso do audiovisual, em específico, as economias desenvolvidas respondem por 89,2% das exportações, enquanto as em desenvolvimento respondem por apenas 8,2% e as economias em transição por 2,6%.

O domínio do produto importado continua sendo um grande óbice para uma estruturação da produção na busca de sua autossus-tentabilidade, sendo que “[...] além da concorrência com a globali-zada indústria de produção norte-americana, a produção nacional encontra barreiras quase intransponíveis na distribuição e exibição dos seus filmes.” (RIBEIRO, 2007, p.3).

Nos anos 1970, começou a ocorrer uma diminuição considerável no número de salas de cinema, fato que se deve a diversos motivos, entre os quais se destacam o aumento do preço dos ingressos e a profusão em massa da televisão. Assim, “[...] com o fechamento de cinemas de rua nas capitais e de estabelecimentos em outras cidades, o mercado ficou restrito, na sua maior parte, às grandes cidades e seus shoppings centers.” (RIBEIRO, 2007, p.3):

A partir de meados da década de 90, quando o Brasil tinha pouco mais de mil salas – na década de 70 superava as três mil salas –, o setor de exibição começou, lentamente, a dar sinais de recuperação com a entrada dos multiplex por ope-radoras estrangeiras. Esse fator aumentou a concorrência do setor, então praticamente estagnado, e forçou as empresas sobreviventes a buscarem a modernização das salas. Houve uma recuperação do mercado nacional balizado nos processos políticos, mas desta vez inserindo o filme como um produto audiovisual, dadas as necessidades do mercado e a possibili-dade de recuperar seus custos ao longo da cadeia produtiva e de suas diferentes janelas de exibição. Em todo o mundo, de um modo geral, apenas 25% da receita total de um filme vem da sua renda nas salas de exibição. Os outros 75% vêm dos chamados mercados ancilares (que correspondem às inúmeras formas alternativas de difusão que hoje conhecemos), sobretu-do das televisões aberta e a cabo, mas também do homevideo, do laserdisc, do DVD, da crescente utilização da Internet e do futuro digital. (RIBEIRO, 2007, p.3).

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Ingerência da economia da cultura na cinematografia brasileira: uma análise a partir da Sociologia Econômica

Um critério desfavorável comumente citado quanto ao sistema multiplex jaz na incapacidade de formação do espectador fílmico, posto ser um modelo de sala que serve a grande indústria do cinema. O público acaba tornando-se insípido quanto à crítica, deixando-se envolver pela padronização das salas, as quais, seguindo fielmente os modelos norte-americanos, funcionam como um afrodisíaco para ocultar a baixa qualidade das tramas e conflitos exibidos.

Na contramão das apreciações desvantajosas, o aumento das salas de cinema no país, independente de serem ou não construídas no modelo multiplex, representa uma melhora para o setor que carece de uma ampliação do mercado exibidor.

Leis de incentivo fiscal: o estado e a produção da demanda

Pierre Bourdieu, contrariando a abordagem estrutural da Nova Sociologia Econômica que não prima fortemente pela análise do papel do Estado na economia, destaca as relações que se estabele-cem entre o campo econômico e o político, ressaltando a importân-cia gerada pela atuação do Estado na construção social do mercado. Para ele, “[...] dentre todas as características das sociedades nas quais a ordem econômica está ‘imersa’, a mais importante, para as sociedades contemporâneas, é a forma e a força de sua tradição estadista.” (BOURDIEU apud RAUD, 2007, p.214). Os Estados Unidos, país ocidental menos propenso a oferecer politica pública direta à cultura, possui uma indústria cinematográfica autossus-tentável, um status que nós brasileiros ainda não alcançamos: “[...] na França, por exemplo, a percepção é de que o gasto cultural é responsabilidade do Estado, deixando que o sistema eleitoral legitime escolhas feitas em nome do cidadão.” (BENTHAM apud BENHAMOU, 2007, p.160).

No caso do mercado da casa própria na França, o Estado deter-mina as regras de seu funcionamento por meio de todo um aparato de regulamentos que se alia à infraestrutura jurídica. O Estado orientaria a demanda até mesmo pela imposição de normas de qualidade. Se transpusermos essa lógica para o setor cultural bra-

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sileiro, perceberemos que a intervenção estatal no campo econô-mico se exerce também através do direito e suas regulamentações. O Estado, portanto, cria a oferta cultural – por intermédio de incentivos fiscais que serão estudados de maneira pormenorizada um pouco mais adiante –, e também a demanda cultural – através, sobretudo, do marketing, que ajuda a transformar ou a moldar cate-gorias de pensamento. Tudo isso nos leva a pensar na possibilidade de que a mão invisível do mercado esteja arraigada no social/ no Estado, ainda mais em um mercado regulamentado pelo Estado como é o caso brasileiro.

Vale frisar que é provável que o marketing não consiga, por si só, convencer as pessoas do que está propondo quando não há uma predisposição. Mas um bom trabalho de propaganda pode sim con-seguir persuadir considerável contingente populacional brasileiro a assistir ao novo filme da Xuxa.

Voltando à situação da intervenção estatal na economia valendo--se das leis de incentivo fiscal, vamos recapitular e observar o porquê do Estado ser importante para trazer os investimentos da iniciativa privada para a cultura, sobretudo para o cinema:

Antes periférica para a economia, a cultura agora é percebida como central. No caso do cinema, o incentivo é relevante em virtude dos altos custos industriais. No Brasil, até os dias atuais, o setor cinematográfico não consegue se autofinanciar, ficando dependente de recursos externos para garantir a sua produção, seja por patrocínio privado ou patronato público. Neste sentido, é relevante pensar o cinema como um setor da indústria, e não apenas como uma expressão da arte, mas cuja existência somente é possível se vinculada a políticas públicas de incentivo. (MELO, 2008, p.896).

Uma grave diferença entre produção cultural e a produção do aço, é a imprevisibilidade do sucesso, o que é visto com receio pela lógica mercadológica. Assim, o Estado, por meio dos incentivos fiscais, deve ser capaz de atrair investidores para os setores que, dada à sua imprevisibilidade, nem sempre conseguem se manter ou evoluir.

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Em dois de julho de 1986, procurando incentivar a produção cultural no país, foi aprovada a Lei n° 7.505, conhecida por Lei Sarney, que oferecia benefícios fiscais na área do imposto de renda, proporcionando um abatimento da renda bruta ou dedução de des-pesa operacional aos contribuintes que efetivassem doações, patrocí-nios ou investimentos a favor de pessoa jurídica de natureza cultural cadastrada no Ministério da Cultura. Para as pessoas físicas, o aba-timento em questão ocorreria da seguinte forma (Artigo 1° da Lei):

§ 1º Observado o limite máximo de 10% (dez por cento) da renda bruta, a pessoa física poderá abater: I – até 100% (cem por cento) do valor da doação; II – até 80% (oitenta por cento) do valor do patrocínio; III – até 50% (cinqüenta por cento) do valor do investimento.

§ 2º O abatimento previsto no § 1º deste artigo não está sujeito ao limite de 50% (cinqüenta por cento) da renda bruta previsto na legislação do imposto de renda. (BRASIL, 1986).

Quanto às pessoas jurídicas, o procedimento seria basicamente o mesmo (Artigo 1°):

§ 3º A pessoa jurídica poderá deduzir do imposto devido, valor equivalente à aplicação da alíquota cabível do imposto de renda, tendo como base de cálculo: I – até 100% (cem por cento) do valor das doações; II – até 80% (oitenta por cento) do valor do patrocínio; III – até 50% (cinqüenta por cento) do valor do investimento.

§ 4º Na hipótese do parágrafo anterior, observado o limite máxi-mo de 2% (dois por cento) do imposto devido, as deduções previstas não estão sujeitas a outros limites estabelecidos na legis-lação do imposto de renda. (BRASIL, 1986).

Observando o limite de 50% (cinquenta por cento) de dedutibi-lidade do imposto devido, a pessoa jurídica que não se utilizasse, no decorrer de seu período-base, dos benefícios concedidos por esta lei, poderia optar pela dedução de até 5% (cinco por cento) do imposto devido para destinação ao Fundo de Promoção Cultural, gerido pelo Ministério da Cultura.

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Foi com a Lei Sarney que tivemos a ligação entre setor privado e setor cultural, assunto que vem gerando discussões acirradas até hoje, por deixar na mão de empresas o financiamento de políticas culturais, transferindo parte da responsabilidade Estatal para a lógica do mercado. Após o desmanche cultural efetuado na Era Collor, foram criadas duas leis que, para além do bem e do mal, reavivaram a indústria do cinema: Lei n° 8.313/91 (Lei Rouanet) e Lei n° 8685/93 (Lei do Audiovisual). Segundo Almeida & Butcher citado por João Paulo Rodrigues Matta:

Ambas as leis permitem às empresas que o dinheiro investido na produção de filmes brasileiros seja deduzido de seus impostos de renda. A Lei do Audiovisual tem dois dispositivos principais: o artigo 1° determina que as empresas podem deduzir até 3% do total do seu imposto de renda se esse dinheiro for revertido para a produção de obras audiovisuais; o artigo 3°, por sua vez, incentiva as distribuidoras estrangeiras a investir na produção nacional [como coprodutoras], permitindo a dedução de até 70% do imposto sobre a remessa de lucros para o exterior . [...] A política de incentivos fiscais que se estabeleceu obedecia a princípios muito diversos, com o Governo Federal transfe-rindo para agentes privados e empresas públicas a iniciativa de escolha e investimento nos projetos a serem realizados [...] Pela complexidade dos mecanismos, essa política demorou alguns anos para apresentar os primeiros resultados, mas o fato é que conseguiu fazer a máquina da produção voltar a se movimentar. Em um tempo relativamente curto, foi retomado o ritmo de lançamentos, que chegou a 12 títulos por ano (em 1995), depois 20 e, entre 2000 e 2002, estabilizou em cerca de 30 por ano. (ALMEIDA; BUTCHER apud MATTA, 2003, p.25).

Após enfrentar a que se pode denominar de pior crise de sua his-tória – no período do governo Collor, o cinema brasileiro teve uma progressiva melhora de desempenho a partir de 1995:

Entre 1997 e 2003, o público do cinema brasileiro no merca-do interno de salas de exibição subiu progressivamente de 2,4 milhões para 22,1 milhões de espectadores, e a participação de mercado do cinema nacional cresceu de 5% para 21,4% no

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mesmo período. Porém, nos anos subseqüentes, a indústria bra-sileira não conseguiu sustentar tal círculo virtuoso. Houve que-da na participação de mercado do cinema brasileiro de 21,4% para 14% entre 2003 e 2004. Em 2005 e 2006, vieram novas quedas para 12% e 11% e, em 2007, se seguiu uma tendência de estabilidade, com o percentual de participação de mercado do cinema nacional chegando a 11,5% (Matta, 2004; Filme B, 2008). (MELEIRO, 2010, p.47).

Mas existem autores que se posicionam de maneira a declarar que as leis de incentivo não seriam suficientes para reacender a chama de toda uma indústria drasticamente paralisada. Quando da aprovação da Lei do Audiovisual e da concessão de uma verba emergencial, Vladimir Carvalho disse:

Egressos da terra arrasada por Fernando Collor que não precisou mais do que uns poucos vetos e decretos para inviabilizar o nos-so cinema, é preciso convir que os sinais de reação institucional com vistas à moribunda atividade cinematográfica [...] são ainda muito fracos. No que pese todo o inegável potencial cultural, profissional, artístico, técnico e econômico, inalienável patrimô-nio que fez do cinema brasileiro uma espécie de honra e glória nacionais em décadas passadas. (CARVALHO, 1993, p.59).

A crítica mais recorrente aponta que uma empresa que se bene-ficia das leis de incentivo fiscal não está interessada em novas expe-riências artísticas, promovidas por um novo Glauber Rocha5, ou por inventores de linguagens. Afinal, não possui o desejo de que sua imagem seja vinculada a experiências culturais ainda não compre-endidas pelo grande público. Para Marta Porto (2009, p.20) “[...] acepções que consideram a cultura de uma perspectiva de marketing e

5 Cineasta brasileiro foi um dos mais importantes integrantes do movimento do Cinema Novo, iniciado nos anos 1960. Com o princípio de “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, deu uma identidade nova ao cinema brasileiro. Dirigiu os longa-metragens: Barravento (1962), Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), Terra em Transe (1967), O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1968), Cabeças Cortadas (1970), O Leão de Sete Cabeças (1971), Câncer (1972), Claro (1975) e A Idade da Terra (1980).

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comunicação.”, como é o caso das leis de incentivo, “[...] não podem mais ser pagas com dinheiro do contribuinte.” Para ela, uma política de incentivo fiscal traz consigo a emergência de novos agentes, como os departamentos de marketing e comunicação de empresas, e as grandes fundações culturais privadas. Juntamente com esses agentes, surge “[...] a mentalidade distorcida de que o investimento em cul-tura se sustenta como ação preferencial de comunicação e marketing, bem distante da ideia da cultura como via de desenvolvimento ou instrumento para a democracia.” (PORTO, 2009, p.21):

Amparados pelo governo que incentiva essa visão, instituindo oficialmente em 1997 a famosa cartilha “Cultura é um bom negócio”, os diretores de marketing acionam teorias de marke-ting cultural e privatizam os critérios de escolha do que a popu-lação deve ou não produzir, distribuir, fruir, onde e como, a partir de suas preocupações mercadológicas com clientes, for-necedores e consumidores. (PORTO, 2009, p.21)

Ainda de acordo com Porto (2009), contribuir para a formação de agentes capazes de participar da vida pública de forma consciente e ativa é uma das ações mais desafiadoras das políticas culturais.

Nos últimos anos, com o advento das leis de incentivo, podemos perceber um aumento significativo de público nas salas de exibição, e o que é mais importante, um aumento de público que assiste a filmes nacionais. Além disso, conforme a produção aumenta, aumentam também os empregos na área cinematográfica: de 1992 para 2001, tivemos um aumento de 7,89% de empregos formais nessa área, o que representa 795 novos empregos oferecidos em nove anos (IPEA apud RIBEIRO, 2007). O cinema é um meio primordial para difun-dir nossa cultura e promover o desenvolvimento da população, e provou ser, ainda, uma fonte de empregos e de renda. Ou seja, deve-mos primar pelo progresso do setor audiovisual, mas sem deixar de nos atentar para as distorções que podem ocorrer na busca por esse progresso. Uma prova da valia da atividade cinematográfica jaz no lançamento do documentário Trabalho Interno (Inside Job), em 2010. Dirigido por Charles Ferguson, relaciona dinheiro, poder, influência e acadêmicos na tentativa de demonstrar onde e como a crise finan-

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ceira que eclodiu em 2008, começou. A obra se torna proeminente na medida em que suscita a reflexão acerca da ética e da tênue linha que divide a defesa de interesses de um importante setor privado e os políticos/governos que o regulam. O cinema tem a capacidade de concatenar argumentos e dispor sobre questionamentos de difícil compreensão, os quais através de sua interferência parecem ensejar reflexões e tornar mais acessível tópicos como uma crise financeira e a ética cada vez mais remota que permeia os assuntos mercadológicos.

Fundamentos econômicos das políticas públicas de cultura

No trabalho de Benhamou, Economia da Cultura, temos o sus-tentáculo econômico que justifica a intervenção estatal por meio da legislação de incentivo. Por exemplo, ao suscitar a economia política de Pareto, a qual se baseia na ideia de que a livre concorrência nos mercados permite atingir o máximo de bem-estar coletivo, podemos perceber a legitimação da intervenção pública em favor da cultu-ra, posto ser essa intervenção, produto das falhas do mercado, que resultam da natureza dos bens, indivisíveis e coletivos ou mistos (PARETO apud BENHAMOU, 2007).

Pode-se também argumentar com o fato de que os gastos públicos produzem um efeito multiplicador sobre a atividade econômica. Na tradição dos trabalhos de William Baumol são invocados argumentos de economia industrial para conferir legitimidade à ajuda concedida aos setores em decadência ou às indústrias que estão iniciando. (PARETO apud BENHAMOU, 2007, p.148)

Benhamou traz à tona outra fundamental motivação para as polí-ticas públicas de cultura, lembrando que:

As particularidades da demanda podem necessitar da interven-ção pública, quer para reduzir as desigualdades sociais median-te a democratização do acesso à cultura, quer para limitar os fatores de incerteza por meio de regulamentações de proteção, quer ainda para assegurar que as gerações futuras desfrutem de

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um patrimônio conservado e enriquecido. (BENHAMOU, 2007, p.148).

O debate sobre políticas culturais se acirra com o passar dos anos. Benhamou nos traz os três temas que incomodam e dificultam a efetivação das mesmas:

Em primeiro lugar, a ineficiência das instituições ou das regula-mentações em comparação com o jogo do mercado. Em outros termos, não é porque existam diversas falhas de mercado que se deva recorrer à intervenção pública, um mecanismo ainda menos eficiente. Em segundo lugar, a superavaliação dos efeitos externos positivos e, por último, os efeitos antirredistributivos das subvenções concedidas. (BENHAMOU, 2007, p.168).

O paradigma do investimento indireto nas obras fílmicas é indis-sociável da informação de que a busca crescente de subsídios pode levar as instituições a dar prioridade a programações que agradem mais aos que administram os bens tutelados do que ao público.

Banco Nacional do Desenvolvimento e sua atuação na área cultural

Em linhas gerais, o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) atua mediante duas vertentes principais: uma voltada ao fomento social e outra voltada aos investimentos tradicionais. Tendo como metas estimular e contribuir para o desenvolvimento das empresas criativas e dos agentes criadores, bem como ampliar e dar mais eficiência ao mercado de bens e serviços culturais, para alcançar esses objetivos o banco conta com a oferta de diversos ins-trumentos de apoio financeiro, tais como recursos não reembolsáveis, financiamentos e capital de risco.

O BNDES também contribui para a valorização da cultura brasi-leira mediante a oferta de exposições e espetáculos gratuitos e abertos à população em sua sede, localizada no Rio de Janeiro. O Espaço BNDES aproxima o público de manifestações artísticas que expres-sam a cultura nacional, com exposições realizadas na Galeria BNDES

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e com eventos como o já tradicional Quintas no BNDES, que, em 2009, completou 25 anos de existência. 

O BNDES Procult era um mecanismo destinado exclusivamen-te ao setor do audiovisual. Hoje, com um novo nome – Programa BNDES para o Desenvolvimento da Economia da Cultura – funcio-na mediante três subprogramas: BNDES Procult – Financiamento, BNDES Procult  – Renda Variável e BNDES Procult  – Não Reembolsável, para atender não apenas o segmento do audiovisual como também os seguintes: patrimônio cultural, editorial e livrarias, fonográficos e espetáculos ao vivo.

O ministério da cultura e a secretaria de economia criativa

“[...] a hegemonia do consumo sobre a produção coloca as indústrias criativas entre as mais instigantes para o avanço teórico da ciência econômica.” José Carlos Durand (2007, contracapa).

A gênese do conceito economia criativa, apesar de ser um termo ainda em construção, remete ao ano de 2001, quando foi utilizado pela primeira vez na obra de John Howkings intitulada The creative economy: how people make money from ideas. A expressão comporta subjetividade, sendo que uma de suas principais características con-siste na “[...] transversalidade, ou seja, vincula cultura, comércio, tecnologia, turismo e vários outros setores da economia.” (SANTOS-DUISENBERG apud MELEIRO, 2009, p.42). Segundo Santos-Duisenberg, a economia criativa é, ainda, onipresente, já que se inse-re em diversos momentos do nosso dia-a-dia por meio dos inúmeros produtos e serviços criativos que inevitavelmente consumimos, como por exemplo, ir ao cinema.

A maioria dos países em desenvolvimento tem seu potencial criativo subutilizado. São vários os obstáculos que os impedem de ampliar suas economias criativas, e resultam da combinação de defi-ciências tanto em nível de políticas internas, como em razão dos desequilíbrios sistêmicos globais resultantes da estrutura distorcida dos mercados, dominados por grandes grupos multinacionais. Esse é

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o caso do setor audiovisual em geral, e da indústria cinematográfica, em particular (SANTOS-DUISENBERG, 2009).

Apesar da Secretaria da Economia Criativa se encontrar em processo de estruturação no Ministério da Cultura, foi lança-do, em setembro de 2011, o Plano da Secretaria da Economia Criativa para o período de 2011-2014 (BRASIL, 2011b). A Ministra Ana de Hollanda, retomando pensamentos do econo-mista Celso Furtado sobre cultura, desenvolvimento e criativida-de, disse em um discurso propagado em janeiro de 2011, que a criação estará no centro das atenções do Ministério da Cultura em sua gestão. Buscando estimular e fomentar os talentos criativos brasileiros, alguns desafios que serão levados em consideração pelo Minc consistem nas seguintes questões: Como a economia criativa poderá contribuir para a inclusão produtiva dos 40% de jovens brasileiros que hoje se encontram entre os 16.3 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza? Como ampliar e qualificar o consumo cultural no país, levando-se em conta a emergência de 39.5 milhões de brasileiros e brasileiras à classe média? (BRASIL, 2011b).

De acordo com o Relatório das Nações Unidas sobre Economia Criativa 2010, lançado em novembro de 2011 no Rio de Janeiro, a crise financeira internacional de 2008 não abalou o crescimento do setor, que permanece como um dos mais dinâmicos do comércio mundial. Segundo o estudo da ONU, o ritmo de crescimento foi mantido alcançando a cifra de US$ 592 bilhões, equivalentes a mais de R$ 1 trilhão (SISTON, 2011).

Logo, para agir de maneira a se inserir nesse novo contexto cultu-ral de proporções globais, o Brasil precisa estabelecer pesquisas refe-rentes aos impactos dos setores criativos na economia. Em adicional, precisa propor medidas que articulem e estimulem os empreendi-mentos culturais, garantindo formação especializada para os agentes envolvidos na produção, além de condições para que se atenda a demanda cada vez mais iminente por circulação e distribuição dos bens e serviços criativos.

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Ingerência da economia da cultura na cinematografia brasileira: uma análise a partir da Sociologia Econômica

Ancine e a economia do cinema

A ciência econômica, como dizia Keynes, não é um conjunto de normas preestabelecidas e tampouco um somatório de verdades absolutas. É um método e não uma doutrina, um instrumento do espírito, uma técnica de pensamento que ajuda aquele que a domina a tirar conclusões com base em pressupostos assumidos. Corretas ou não, tais conclusões dependem absolutamente de suas implicações práticas e do contexto em que estão inseridas. (VALIATI, 2010, p.19).

A indústria cinematográfica mundial movimenta aproximada-mente “[...] 80 bilhões de dólares anualmente, dos quais cerca de 55 bilhões representam a produção e venda de DVDs.” (SANTOS-DUISENBERG, 2009, p.51). O Brasil representa uma parcela bas-tante tímida nesse cenário, sendo que:

No mercado interno os filmes brasileiros ocupam apenas 10% das projeções anuais dos cinemas no país. De qualquer forma, a produção cinematográfica aumentou consideravelmente nos últimos cinco anos, passando de 30 filmes em 2003 para 82 em 2008, segundo a Ancine. Incentivos governamentais da ordem de US$ 90 milhões por ano muito contribuíram para esta evo-lução. (SANTOS-DUISERNBERG, 2009, p.52).

Ainda assim, é inegável que as produções nacionais sejam hoje mais voltadas para o mercado, obtendo conquistas visíveis nessa sea-ra: Se Eu Fosse Você 2 (Daniel Filho, 2009) se tornou campeão de bilheteria com mais de 5.5 milhões de espectadores; Tropa de Elite 2: o Inimigo Agora é Outro (José Padilha, 2010) foi visto por 1.3 milhão de pessoas nos três primeiros dias de exibição gerando R$ 14 milhões de bilheteria (BUTCHER, 2010); e Bruna Surfistinha (Marcus Baldini, 2011), de acordo com o site Filme B, teve 400.412 ingressos vendidos e arrecadou R$ 4.2 milhões apenas em seu fim de semana de estreia. Os números são animadores para a lógica mer-cantilista, mas na atual conjuntura, esses dados são propulsores de nossa Sétime Arte, e isso, por hora, deve bastar. Afinal, “[...] dentre os quase 140 países em desenvolvimento, apenas 4 possuem uma

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grande indústria cinematográfica (+ 100 filmes por ano) e alguns nunca produziram um único filme.” (SANTOS-DUISENBERG, 2009, p.55).

A Agência Nacional do Cinema, responsável por manter uma postura inteirada no que diz respeito às demandas de uma indús-tria que precisa inserir-se no mercado interno e externo, possui mecanismos para incentivar e fomentar as produções nacionais. Um exemplo desses mecanismos consiste no Programa de Incentivo à Qualidade do Cinema Brasileiro, que, desde 2006, concede apoio financeiro às empresas produtoras em razão da premiação ou indi-cação de longas-metragens brasileiros, de produção independente, em festivais nacionais e internacionais. Para concorrer à premiação, os produtores devem ter recebido prêmios concedidos por júri ofi-cial nas categorias de melhor filme e melhor direção, ou participa-rem com obras cinematográficas na principal mostra competitiva dos festivais. Em 2011, as empresas produtoras classificadas, e seus respectivos projetos, foram: 1ª) Bananeira Filmes Ltda. (RJ), com A Festa da Menina Morta (Matheus Nachtergaele, 2008); 2ª) Zazen Produções Audiovisuais Ltda. (RJ), com Garapa (José Padilha, 2009); 3ª) Plateau Marketing e Produções Culturais Ltda. (SP), com Filmefobia (Kiko Goifman, 2008); 4ª) África Filmes Ltda. (SP), com É Proibido Fumar (Anna Muylaert, 2009); 5ª) República Pureza Filmes Ltda. (RJ), com A Erva do Rato (Julio Bressane, 2009); 6ª) Pontos de Fuga Produções Artísticas Ltda. (RJ), com Simonal – Ninguém Sabe o Duro Que Dei (Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, 2009); 7ª) PlaniFilmes Ltda. (SP), com Hotel Atlantico (Suzana Amaral, 2009).

Percebe-se que o Programa preza pela diversidade, e a concessão de R$ 100.000,00 para cada produtora brasileira estimula, inegavel-mente, a produção. A Ancine também possui o Prêmio Adicional de Renda – PAR (ANCINE, 2005), um mecanismo que se baseia no desempenho de mercado de empresas nacionais produtoras, distri-buidoras e exibidoras de longas-metragens. Os recursos do Prêmio são utilizados no fomento das atividades cinematográficas brasi-leiras, o que culmina por alimentar a cadeia produtiva. Em 2011, o valor total foi de R$ 6.500.000,00 (seis milhões e quinhentos

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mil reais) distribuídos igualmente entre as categorias da premia-ção – quais sejam, empresa produtora, distribuidora e exibidora. As empresas produtoras em 2011, e suas respectivas obras, foram: 1ª) Zanen Produções Audiovisuais Ltda. (RJ), com Tropa de Elite 2; 2ª) Cinética Filmes e Produções Ltda. (RJ), com Nosso Lar; 3ª) Lereby Produções Ltda. (RJ), com Chico Xavier; 4ª) Idéias Ideais Design & Produções Ltda. (RJ), com Muita Calma Nessa Hora; 5ª) Conspiração Filmes S/A (RJ), com Xuxa em O Mistério de Feiurinha; 6ª) Filmes do Equador Ltda. (RJ), com Lula, o Filho do Brasil; 7ª) Natasha Enterprises Ltda. (RJ), com O Bem Amado; 8ª) Total Entertainment Ltda. (RJ), com High School Musical – O Desafio; 9ª) Gullane Entretenimento S/A (SP), com As Melhores Coisas do Mundo; 10ª) Videofilmes Produções Artísticas Ltda. (RJ), com Quincas Berro D´Água; 11ª) Luz Mágica Produções Audiovisuais Ltda. (RJ), com Cinco Vezes Favela 2, Agora Por Nós Mesmos; 12ª) Destiny International Comunicações Ltda. (SP), com 400 Contra 1 – Uma História do Crime Organizado; 13ª) BSB Cinema Produções Ltda. (DF), com Federal; 14ª) Videofilmes Produções Artísticas Ltda. (RJ), com Uma Noite em 67; 15ª) Conspiração Filmes S/A (RJ), com Eu e Meu Guarda-Chuva; 16ª) O2 Cinema Ltda. (SP), com José e Pilar; 17ª) África Filmes Ltda. (SP), com É Proibido Fumar; 18ª) E.H. Filmes Ltda. (RJ), com Como Esquecer.

Podemos perceber a prioridade que a Ancine outorga, mediante o PAR, às películas que atingem grandes bilheterias, e consequente-mente, propulsionam o mercado cinematográfico. Observa-se, ain-da, uma concentração das empresas beneficiadas, cuja maior parte provém do Rio de Janeiro e, em menor número, de São Paulo. As vencedoras no quesito distribuição também apresentam uma inten-sa concentração na região Sudeste. Já no quesito exibição, despon-ta no primeiro lugar a Cinema e Arte Produções Ltda. (complexo Saladearte – Cine XIV) da Bahia, mas a região Sudeste continua dominante: dos 47 complexos de uma sala, 33 são de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.6

6 Informações obtidas no site oficial da Agência Nacional do Cinema.

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A Ancine conta, ainda, com o Programa de Apoio à Participação de Filmes Brasileiros em Festivais Internacionais e com o Ibermedia – Fundo Ibero-americano de apoio, criado em 1997, que estimula a promoção e distribuição de filmes Ibero-americanos.

Fundo setorial do audiovisual

O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) consiste em um fundo destinado ao desenvolvimento articulado de toda a cadeia produtiva da atividade audiovisual no Brasil. Criado mediante a edição da Lei nº 11.437, de 28 de dezembro de 2006, foi regulamentado através do Decreto nº 6.299, de 12 de dezembro de 2007.

O Comitê Gestor do FSA7 é composto por dois representantes do Ministério da Cultura, um da Ancine, um dos agentes finan-ceiros credenciados e por dois membros da indústria audiovisu-al, competindo ao Ministro da Cultura designá-los. A Secretaria Executiva do Fundo é exercida pela Ancine, a qual fica encarregada de oferecer o apoio técnico, administrativo e operacional às suas atividades.

Os recursos que constituem o FSA são provenientes das mais diversas fontes, como por exemplo, da própria atividade econô-mica, de contribuições recolhidas pelos agentes do mercado e da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (CONDECINE).

O CONDECINE foi recentemente alterado através da Medida Provisória 545, que visa, entre outras disposições, proteger a produ-ção brasileira de obras audiovisuais publicitárias.

7 Em 2011, os membros titulares do Comitê são: Ana de Hollanda (Ministra de Estado da Cultura), Ana Paula Santana (Secretária do Audiovisual do Ministério da Cultura), Manoel Rangel (Diretor-Presidente da Agência Nacional do Cinema), Luiz Antônio Coelho Lopes (representante das instituições financeiras credenciadas), Paulo Mendonça (representante da indústria cinematográfica e audiovisual), e André Strum (representante da indústria cinematográfica e audiovisual).

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Medidas provisórias 491/10 e 545/2011: cinema perto de você?

Partindo do conhecimento de que mais da metade das salas de cinema do Brasil se encontram localizadas nas capitais, que Rio de Janeiro e São Paulo concentram quase metade dos cinemas, que no Norte e no Nordeste há, em média, mais de 200 mil habitantes por sala, e que nas grandes cidades os cinemas concentram-se nos bairros com maior renda, o programa Cinema Perto de Você consiste em uma ação coordenada pelo Ministério da Cultura e pela Agência Nacional do Cinema que tem como objetivos ampliar, fortalecer e descentralizar o parque exibidor brasileiro, por meio do apoio a pro-jetos de construção e ampliação de, no mínimo, 3 salas de cinema, localizadas nos municípios e zonas urbanas considerados prioritários pela Ancine.

De acordo com informações disponibilizadas no site oficial da Ancine, as principais metas do Programa (2010-2014) são: a) aber-tura de 600 novas salas de cinema; b) nenhum município com mais de 100 mil habitantes sem sala; c) crescimento de 30% na venda de ingressos; d) média nacional de 60 mil hab./sala (queda de 30% do índice atual); e) digitalização da metade das salas de cinema do país.

Os itens passíveis de financiamento são aqueles necessários à exe-cução dos projetos e planos de negócio, inclusive despesas com juros durante a carência e capital de giro, desde que associados ao proje-to de investimento, enquanto que os itens não financiáveis são: a) aquisição de terrenos e outros bens imóveis; b) despesas relacionadas direta ou indiretamente com o pagamento de luvas para compra ou aluguel de ponto comercial; c) despesas relativas à aquisição de direi-tos reais sobre o imóvel sujeito à intervenção; d) despesas relaciona-das a serviços ou obras de responsabilidade de centros comerciais; e) custeio e gastos com manutenção corrente; f ) transferência de ativos, exceto em casos especiais de projetos de reativação de complexos; g) quaisquer despesas que impliquem remessa de divisas, incluindo taxa de franquia paga no exterior; h) itens isolados que não consti-tuam um projeto de investimento; i) importação de equipamentos e máquinas já internados no país ou equipamentos móveis destinados

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ao transporte de qualquer natureza; j) despesas administrativas; k) despesas gerais da empresa proponente.

As operações de financiamento do Programa Cinema Perto de Você são realizadas, simultaneamente, com recursos do BNDES Procult e do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que corresponde a uma parcela específica do Fundo Nacional de Cultura (FNC) voltada exclusivamente ao setor audiovisual.

Os recursos do FSA podem ser aplicados através de duas moda-lidades: FSA – Financiamento e FSA – Investimento Retornável. Portanto, o financiamento8 no âmbito do Cinema Perto de Você é constituído de três subcréditos: um subcrédito regido pelas con-dições do BNDES Procult – Financiamento; um subcrédito regi-do pelas condições da modalidade FSA – Financiamento, descritas abaixo; um subcrédito regido pelas condições da modalidade FSA – Investimento Retornável.

O valor mínimo do apoio financeiro é de R$ 1 milhão, somados os recursos do FSA e os recursos do BNDES Procult – Financiamento. É interessante observar que a participação do Programa no investimento será de até 90% para exibidoras nacio-nais e de até 60% para empresas estrangeiras ou não exibidoras9, sendo que em ambos os casos, ao menos 20% dos itens financiá-veis deverão ser cobertos pela associação do BNDES Procult com a modalidade FSA – Financiamento. A vigência do Programa é de 48 meses contados de sua data de lançamento, 23/06/2010, ou seja, junho de 2012.

Como enfrentamos uma escassez na quantidade de salas de exibição, essa medida parece ser muito apropriada, ainda mais por

8 Financiamento de longo prazo tradicional, com taxa de juros de 0% a.a., 1% a.a. ou 4% a.a., conforme a classificação de prioridade do projeto, e prazo total do financiamento (incluída a carência de até 10 anos, válido, excepcionalmente, também para o subcrédito referente ao BNDES Procult – Financiamento).

9 O proponente deverá comprovar aporte mínimo, em recursos próprios ou de terceiros, de 10% dos itens financiáveis. No caso de empresas de controle estrangeiro e empresas não exibidoras, o aporte mínimo em recursos próprios ou de terceiros será de 40% (BNDES, 2011).

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se destinar essencialmente a cidades que não contam com nenhum cinema. Mas, se a maior parte do público-alvo deste projeto é a população de baixa renda, não podemos deixar de questionar como essas pessoas conseguirão arcar com o preço dos ingressos – sobretudo se forem equivalentes aos preços cobrados atualmen-te pelas salas comerciais. Será então preciso subsidiar também o preço dos ingressos? Sem isso, o público não terá acesso às salas construídas, e os empresários ou investidores, sem retorno, não terão como manter as salas abertas e a tendência seria a de repeti-ção do fenômeno que marcou a década de 70, com o fechamento de cinemas.

Recentemente, tivemos uma adaptação do Programa através da Medida Provisória 545/2011 (BRASIL, 2011a)10, já que a Medida Provisória antecedente- MP 491/2010- (BRASIL, 2010) perdeu validade pelo decurso do prazo constitucional sem votação pelo Congresso Nacional. A nova Medida dá forma legal ao Programa coordenado pela ANCINE, estabelece os parâmetros para as linhas

10 Essa Medida institui o Regime Especial de Tributação para o Desenvolvimento da Atividade de Exibição Cinematográfica – RECINE. Este novo regime fiscal tem por objetivo fortalecer a sustentabilidade e a viabilidade econômica da atividade, especialmente dos projetos financiados com recursos da União. Contém ações dirigidas à redução de tributos em duas situações: (a) Desoneração dos investimentos: Será suspensa a exigibilidade de todos os tributos federais incidentes sobre a aquisição de máquinas, aparelhos, instrumentos, equipamentos e materiais de construção necessários à construção ou modernização de complexos cinematográficos. Os tributos desonerados são: PIS, COFINS, PIS-importação, COFINS-importação, IPI incidente na importação ou no comércio interno e Imposto de Importação (bens e materiais sem similar nacional). Essa medida facilitará, por exemplo, a digitalização do parque exibidor em operação, além de reduzir os custos dos investimentos em novas salas. Para fruírem esse benefício, empresas exibidoras, construtoras, incorporadoras, locadoras de equipamentos para salas de cinema deverão credenciar previamente seus projetos na ANCINE; (b) Desoneração da operação das salas: As empresas operadoras dos complexos implantados ou ampliados no âmbito do Programa CINEMA PERTO DE VOCÊ poderão contar com alíquota zero da Contribuição para o PIS e da COFINS, aplicável sobre as receitas de bilheteria e de veiculação de publicidade. Esse benefício terá duração máxima de cinco anos.

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financeiras do FSA dirigidas à abertura de salas, cria o RECINE – Regime Especial de Tributação para Desenvolvimento da Atividade de Exibição Cinematográfica- e estabelece as bases do Projeto Cinema da Cidade, destinado à implantação de salas municipais e estaduais.

Imagens da Bahia

Em 2010, a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SeculBA), por meio do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia (IRDEB), firmou um convênio com a Agência Nacional do Cinema (Ancine) visando a execução de um mecanismo especial de fomento, o chama-do Programa Imagens da Bahia. O ato ocorreu em Salvador, duran-te a abertura do Seminário Economia do Audiovisual – Cultura da Convergência, evento que teve o apoio do Instituto Iniciativa Cultural.

De acordo com previsões divulgadas pelo site da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, o programa assegurará a produção de 50 obras audiovisuais e a distribuição de três longas-metragens baianos, ainda inéditos no circuito comercial de exibição. Com custo total de R$ 11 milhões, a iniciativa prevê, ainda, a geração de cerca de 3.800 postos de trabalho diretos e o envolvimento de 152 empresas, sendo 14 produtoras audiovisuais e 138 fornecedoras de serviços (BAHIA, 2010).

Uma das providências de maior destaque consiste no fato do programa estar diretamente ligado à TVE Bahia, o que garantirá a exibição de todos os conteúdos que forem produzidos e distribuídos. Outra proposta interessante jaz na oferta de oficinas de capacitação técnica para qualificação dos projetos em todas as ações do programa.

A rentabilidade dos festivais

O mercado dos bens simbólicos é bem visível no cinema quando pensamos nos festivais. Esses eventos possuem enorme potencial para “[...] alavancar negócios, gerar emprego, renda, impostos e promo-ver um significativo aquecimento da economia de serviços.” (LEAL,

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2010, p.86). No quesito empregos, os festivais são capazes de gerar “[...] quase 6.000 empregos diretos a cada ano, com média de 45,31 contratações por evento, atraindo investimentos de R$ 60 milhões.” (LEAL, 2010, p.86).

Apesar das dificuldades financeiras e estruturais encontradas pelos organizadores, os festivais crescem a cada ano, auxiliando sobrema-neira a promoção do audiovisual no país e no exterior.

De acordo com o Diagnóstico Setorial 2007/ Indicadores 2006, realizado com o apoio do Cima – Centro de Cultura, Informação e Meio Ambiente e do Ibefest-Instituto Brasileiro de Estudos de Festivais Audiovisuais, com financiamento da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, a democratização do aces-so aos filmes é um dos êxitos obtidos com os festivais, posto que 84,85% deles não cobram ingressos para as sessões: “Mesmo aqueles que exercem esse tipo de cobrança em algumas sessões (15,15%), realizam também exibições gratuitas durante o evento” (LEAL, 2010, p.90). Caso o circuito de festivais continue se expandindo da for-ma como foi demonstrado nesse Diagnóstico (média de 19,82% ao ano), “[...] a expectativa é que 2009 conte, com – no mínimo – 190 eventos no país, podendo acontecer um crescimento ainda maior.” (LEAL, 2010, p.91).

Os festivais constituem uma ferramenta facilitadora do acesso e difusão das produções fílmicas. Alguns Estados do Brasil ainda carecem de tal mecanismo, como é o caso do Piauí, que não possui iniciativa específica, mas participa dos festivais que se destinam a todas as cidades do país como o Festival do Minuto, o Festival do Júri Popular e o recém-criado Fluxus 2011 – Festival Internacional de Cinema na Internet.

Considerações finais

Torna-se complexo acreditar essencialmente em uma mão invi-sível do mercado quando nos vemos diante de uma realidade em que poucas empresas são dominantes, o comércio internacional é afetado por barreiras implícitas e explícitas impostas por Estados, e na qual os governos precisam encontrar mecanismos para estipular

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os preços de determinados bens. O mercado não é uma zona livre. É uma zona perspicazmente controlada por bilionários que estampam a Forbes e países detentores das maiores reservas de petróleo, das melhores indústrias, ou das mais avançadas tecnologias desenvolvidas pela genialidade humana.

Seria por demasiado simplista uma visão que reduz a economia a um acessório da sociedade, ou a sociedade a um acessório da eco-nomia. Como bem tentou demonstrar Karl Polanyi, em sua Grande Transformação, a preocupação individual materialista que caracteriza as atitudes das pessoas é um produto cultural do sistema econômico particular que nós mesmos adotamos.

As atividades econômicas desenvolvidas pelas pessoas envol-vem funções sociais e culturais. Os governos não podem se eximir de exercer funções primordiais como a integração social e cultural de suas populações para obedecer cegamente às leis da compe-tição global. A postura adotada por nosso Estado quanto às leis de incentivo fiscal à cultura prova o quão equivocada pode ser a transferência para as mãos do particular do que se deve ou não deve fomentar. Através da criação da oferta cultural e da deman-da cultural – por meio do marketing que ajuda a transformar ou moldar categorias de pensamento –, o dinheiro continua sendo público, mas a decisão passa a ser do mercado. E assim, somos “brindados” por uma arte que contraria o próprio significado do termo. O Estado, por meio dos incentivos fiscais, deve ser capaz de atrair investidores para os setores que, dada à sua imprevisi-bilidade, nem sempre conseguem se manter ou evoluir, como é o caso do setor cultural e, especificamente, do cinema nacional. Mas isso não o emancipa do encargo de prover a população, como um todo, da possibilidade de produzir, escolher ou adquirir, bens culturais.

Falta humanidade na visão de mundo dos jovens capitalistas vir-tuais. Faltam movimentos sociais e organização nas sociedades civis. Tudo isso constitui um panorama que, à primeira vista, pode ser tido como irreversível. Mas o fato é que o poder da ação humana é incomensurável e são os homens – que vivem no eterno embate entre o profano e o sagrado, o bem e o mal, que fazem circular as merca-

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dorias, que constroem essas mercadorias, e que se transformam, eles mesmos, nelas.

REFERÊNCIAS

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A construção social do mercado de produtos “pirata”: uma análise das

relações de consumo e venda

Ariella Silva ARAUJOSamuel Candido de SOUZA

“A infelicidade dos consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha.”

Zygmunt Bauman (2001, p.75).

Introdução

Na contemporaneidade, muitas discussões tem-se produzido acerca do fenômeno da “pirataria”1 e as motivações que levam determinados sujeitos a se inserirem em tal mercado, considerado ilícito e informal, sejam como trabalhadores ou como consumi-dores dessas mercadorias. Na maioria dos casos, são ressaltadas as condições materiais (desemprego e o acesso restrito a determi-nados produtos devido ao alto valor econômico) provocadas pelo

1 Conforme Ribeiro (2010, p.27), apesar da pirataria ser uma atividade milenar, assim como a atividade da cópia não autorizada, “[...] a pirataria é, hoje, uma expressão comumente usada pelos poderosos para se referir à atividade de reprodução e venda de cópias não-autorizadas de mercadorias valorizadas pelos consumidores contemporâneos, especialmente as superlogomarcas, isto é, cópias de grandes marcas mundiais.”

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A construção social do mercado de produtos “pirata”: uma análise das relações de consumo e venda

desenvolvimento do capitalismo e as desigualdades por ele engen-dradas como o fator limitante para a participação desses agentes dentro do processo assinalado. Porém, o nosso objetivo consiste em lançar luz sobre outros fatores que estão para além da dimen-são econômica, enfatizando a dimensão social dos envolvidos no processo: como o caráter subjetivo desses agentes envolvidos no processo de produção, venda e consumo dessas mercadorias. Isso se torna evidente quando percebemos que as chamadas classes A e B foram as que mais aderiram ao consumo desse tipo de mercadorias em 2011, o que, no nosso entendimento, foge às explicações de viés economicista, assunto que exploraremos com o decorrer do texto.

Por trás da subjetividade, podemos dizer que está o próprio processo de mudança no modo de produção capitalista, uma vez que sabemos que, com base em Marx (2013), há uma relação dialética entre infraestrutura e superestrutura. Sendo a estrutura econômica a base de todo o edifício social – o que não significa ser a economia o determinante de toda e qualquer explicação – as mudanças operadas no âmbito da infraestrutura influenciam direta ou indiretamente a superestrutura e vice-versa2. Por últi-mo, a mediação das imagens e mensagens divulgadas pelos meios de comunicação de massa é de extrema importância para que os sujeitos sejam condicionados a viver num mundo de ilusões, no qual todas as instâncias da vida acabam por converterem-se em mercadorias, como salientado por Debord (2003) e Bauman (2001).

A sociedade de consumo (e consumidores?)

No que diz respeito à mudança dos padrões de produção capi-talista, Bauman (2001) discute, no livro Modernidade Liquida, a transição daquilo que ele denomina como “capitalismo pesado” para

2 Segundo Harnecker (1973, p.94) a denominação “marxistas vulgares” proferida por Lênine reside justamente do esforço em “[...] deduzir da economia todos os fenômenos produzidos em nível jurídico-político e ideológico.”

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Ariella Silva Araujo e Samuel Candido de Souza

o “capitalismo leve”, utilizando-se da metáfora da “fluidez”3 para caracterizar o estágio presente da era moderna. Segundo esse autor, não se pode desconsiderar a profunda mudança que o advento dessa “modernidade liquida” produziu na condição humana, afetando as mais diversas esferas da vida social, como o trabalho, as instituições e os próprios relacionamentos humanos.

Sua análise sobre essa transição do capitalismo pesado para o leve parte de duas obras clássicas para exemplificar o processo em questão: Brave New World, de Aldous Huxley; e 1984, de George Orwell. Embora sejam obras distópicas, muito diferentes em entre si – pois enquanto uma prima por “uma terra de opulência”, de abundância e saciedade no primeiro caso, e de miséria, escassez e necessidades no segundo – elas partilham

[...] o pressentimento de um mundo estritamente controlado; da liberdade individual não apenas reduzida a nada ou quase nada, mas agudamente rejeitada por pessoas treinadas a obedecer a ordens e seguir rotinas estabelecidas; de uma pequena elite que manejava todos os cordões – de tal modo que o resto da huma-nidade poderia passar toda sua vida movendo-se como marione-tes; de um mundo divido entre administradores e administrados, projetistas e seguidores de projetos – os primeiros guardando os projetos grudados ao peito e os outros nem querendo nem sendo capazes de espiar os desenhos para captar seu sentido; de um mundo que fazia de qualquer alternativa algo inimaginável. (BAUMAN, 2001, p.64, grifo nosso).

Huxley e Orwell não discordavam sobre o destino do mundo, marcado pela opressão, falta de liberdade e mais controle. Eles viam apenas de forma diferente os caminhos que nos levariam até lá, caso continuássemos ignorantes e indolentes para permitir que se seguisse a rota natural. Nesse sentido, a tragédia do mundo seria, para ambos, justamente o incontrolável processo rumo à separação entre contro-

3 “’Fluidez’ é a qualidade de líquidos e gases. O que os distingue dos sólidos [...] é que eles ‘não podem suportar uma força tangencial ou deformante quando imóveis’ e assim ‘sofrem uma constante mudança de forma quando submetidos a tal tensão’.” (BAUMAN, 2001, p.7).

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A construção social do mercado de produtos “pirata”: uma análise das relações de consumo e venda

ladores e o resto, cada vez mais desapossados de poder e controlados. Uma vida de homens e mulheres que não mais controlam suas vidas. Isso sim para os autores era uma visão assombradora, a ideia de uma sociedade sem administradores, controladores, supervisores (por mais feliz ou infeliz que possa resultar) que escrevam os roteiros para que os outros possam seguir.

Para Bauman (2001), Nigel Thrift (1997) teria classificado as histórias de Orwell e Huxley como “discurso de Joshua” e não como “discurso do Genesis”4. O primeiro estaria marcado pela ordem, organização, controle e delimitação, com o oposto se sucedendo ao segundo, em que a regra é desordem. Ordem aqui adquire o sentido de previsibilidade, repetição, monotonia e regularidade. O mundo que dava credibilidade e sustentação ao discurso de Joshua era o fordista baseado na acumulação, regulação e industrialização. Um modelo de racionalização que separa o aspecto intelectual e manual do trabalho, como forma de forçar o controle da administração sobre os trabalhadores. Contudo, o mundo era muito mais do que isso, pois acabava por servir como “[...] um local epistemológico de cons-trução sobre o qual se erigia toda uma visão de mundo e a partir da qual ele se sobrepunha majestaticamente à totalidade da experiência vivida.” (BAUMAN 2001, p.68). O fordismo tendia a ser o quadro metafórico de orientação para a realidade humana em todos os seus níveis, sendo a maior realização da “engenharia social orientada pela ordem” produzida até hoje. O fordismo era a autoconsciência da sociedade moderna em sua forma “pesada”, “volumosa”, obcecado pelo volume e tamanho, assim como por fronteiras firmes e impene-tráveis. Fase esta em que se “amarravam” de forma conjunta e inevi-tável, o capital, a administração e o trabalho. Era o mundo dos que ditavam leis, de pessoas dirigidas, que possuía líderes, cuja referência em seus discursos era o “nós”. Em suma, um mundo em que a ação era orientada por referência a valores, fossem eles estéticos, religio-sos ou éticos, ou seja, havia um referencial a ser seguido, um fim a ser perseguido, em que a preocupação era quais meios utilizar para

4 “Discursos, diz Thrift, são ‘metalinguagens que ensinam as pessoas a viver como pessoas.” (BAUMAN, 2001, p.66).

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Ariella Silva Araujo e Samuel Candido de Souza

alcançá-los. Essas são as características daquilo que Bauman (2001) considerou a fase pesada do capitalismo, de uma modernidade pesada, da era do hardware, de uma sociedade de produtores, em que tudo o que importava era conquista de territórios. O “tamanho é o poder, o volume é o sucesso”.

Em contraposição, não é o discurso de Joshua que se apresenta na modernidade líquida. O que impera cada vez mais é o discurso do Gênesis na percepção de Bauman (2001). O capitalismo de hoje é leve, do software, e viaja apenas com uma “bagagem de mão”, um celular e um computador portátil. Se antes as fábricas ficavam pre-sas ao solo, agora os caminhos e possibilidades são vários, rápidos, flexíveis. Não importa mais o espaço, e sim o tempo. A ação orien-tada por valores de referência tornou-se dispensável e até mesmo prejudicial à conduta racional. O capitalismo leve desbaratinou os “[...] invisíveis ‘politburos’ capazes de ‘absolutizar’ os valores, das cortes supremas destinadas a pronunciar veredictos sem apelação sobre os objetivos dignos de perseguição (as instituições indispen-sáveis e centrais no discurso de Joshua).” (BAUMAN, 2001, p.72). Na falta de uma “Suprema Repartição”, que cuide das regularidades, mostrando o certo e errado, a questão dos objetivos torna-se motivo de hesitação, ansiedade perpétua, desconfiança e incerteza. Trata-se de não saber mais os fins ao invés do tradicional não saber os meios. A vida humana agora se consome diante das inúmeras possibilidades de escolha de objetivos e não mais na procura de fins. É justamente essa infinidade de possibilidades que preenche o espaço deixado pela “Suprema Repartição”. Tudo agora fica a expensas do indivíduo. A busca do referencial, dos objetivos, dos valores, até mesmo dos fra-cassos e dos sucessos. Não se trata mais de procurar um exemplo a seguir, mas da busca de conselheiros. Não há mais espaço para uma autoridade, mas para diversas autoridades. O “nós” cede espaço ao “eu”, assim como as inúmeras formas de identidades disponíveis para serem “consumidas” ao bel prazer.

Diante de tão farta mesa de “bufê” com inúmeros petiscos a serem degustados, a questão da satisfação se torna problemática, pois ela passa a não durar por muito tempo. Essa é a configuração da sociedade dos consumidores, em que permanecer na corrida do

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A construção social do mercado de produtos “pirata”: uma análise das relações de consumo e venda

consumo é o verdadeiro vício. Comprar, em suas mais diversas for-mas5, surge como meio para alcançar a felicidade, como solução a problemas e fracassos. Até mesmo seus propósitos se modificaram, pois o consumo não se pauta mais na satisfação de uma necessida-de determinada. “A história do consumismo é a história da quebra e descarte de sucessivos obstáculos ‘sólidos’ que limitam o vôo da fantasia e reduzem o ‘princípio do prazer’ ao tamanho ditado pelo ‘princípio da realidade’.” (BAUMAN, 2001, p.89). O que moveu essa sociedade do consumo durante algum tempo foi o desejo como objeto constante, e por isso mesmo, fadado a permanecer insaciável, em que o individuo se expressa a si mesmo através de suas posses. Porém, agora é a vez de descartar o desejo, cedendo espaço ao “que-rer”. Este completa a libertação do princípio do prazer, limpando os resíduos impeditivos do princípio de realidade.

Contudo, não se pode atribuir uma causa única a obsessão de comprar. Qualquer explicação desse tipo, segundo Bauman (2001), está fadada a ser um engano. Dizer que a compulsão do comprar ocorre por conta de uma revolução pós-moderna dos valores, ou por conta de manifestações abertas do instinto materialista e hedo-nista adormecido é uma “incitação artificial”. Para o autor, outra parte da explicação e complementar a todas essas, a “compulsão--transformada-em-vício” é uma luta contra incertezas agudas e inseguranças. O que se busca é a sensação de segurança, confiança e se livrar do medo e da incompetência. Os objetos comprados trazem justamente isso, a promessa da segurança, uma forma de

5 “Não se compra apenas comida, sapatos, automóveis ou itens imobiliários. A busca ávida e sem fim por novos exemplos aperfeiçoados e por receitas de vida é também uma variedade do comprar, e uma variedade da máxima importância, seguramente, à luz das lições gêmeas de que nossa felicidade depende apenas de nossa competência pessoal mas que somos [...] pessoalmente incompetentes, ou não tão competentes como deveríamos, e poderíamos, ser se nos esforçássemos mais. ‘Vamos às compras’ pelas habilidades necessárias a nosso sustento e pelos meios de convencer nossos possíveis empregadores de que as temos; pelo tipo de imagem que gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem que somos o que vestimos [...]” (BAUMAN, 2001, p.87).

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Ariella Silva Araujo e Samuel Candido de Souza

exorcizar os “demônios” que povoam o universo do individualismo exacerbado6.

No entanto, o consumo revela outra faceta mais perversa para além da ilusão da segurança. Para Bauman (2008), a sociedade de consumidores interpela seus membros basicamente na condição de consumidores, esperando ser ouvida, entendida e obedecida. Ela avalia, recompensa e penaliza seus membros segundo a prontidão e adequação da resposta deles. A partir disso, lugares são alocados no eixo da “excelência/inépcia” do desempenho consumista. Esse passa a ser o principal critério de inclusão e exclusão, de estratifica-ção, assim como o orientador da distribuição de apreços e estigmas sociais. Nessa sociedade,“[...] todo mundo precisa ser, deve ser e tem que ser consumidor por vocação [...]. Nessa sociedade, o consumo visto e tratado como vocação é, ao mesmo tempo, um direito e um dever humano universal que não conhece exceção.” (BAUMAN, 2008, p.73, grifo nosso). Nesse tipo de sociedade, não há espaço para distinções de gênero e muito menos de classe, como acontecia na sociedade dos produtores. Seus “valores” estão presentes desde o centro até a periferia, forçando o empobrecido:

[...] a uma situação na qual tem de gastar o pouco dinheiro ou os parcos recursos de que dispõe com objetos de consumo sem sentido, e não com suas necessidades básicas, para evitar a total humilhação social e evitar a perspectiva de ser provocado e ridi-cularizado. (BELK apud BAUMAN, 2008, p.74).

A responsabilização pela incapacidade de consumir acaba por ser também legada ao plano do indivíduo. Esses são vistos como “con-sumidores falhos”, “inválidos” e, portanto, excluídos. Isso porque diferente da sociedade de produtores, que procurava dar assistência aos “anormais”, aos que não se enquadravam nos padrões, são pessoas que não podem ser vistas como necessitadas de cuidados especiais, já que os preceitos da cultura do consumo são universais e acessíveis a todos. “Em função desse pressuposto, toda ‘invalidez social’ seguida

6 O termo individualista comporta vários significados, para mais detalhes ver Martelli (2011).

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de exclusão só pode resultar na sociedade de consumidores, de fal-tas individuais.” (BAUMAN, 2008, p.75). Qualquer suposição de fatores do fracasso extraindividual é eliminada de qualquer suspeita. E não poderia ser visto de forma diferente, já que a sociedade do consumo é entendida como o estágio da “emancipação” dos indi-víduos, que saíram de um mundo de “não-escolha” e depois para “escolha limitada”, finalmente chegando ao universo das possibli-dades infinitas7.

Em se tratando do tema sociedade de consumo não podemos dei-xar de citar uma das obras que, sem dúvida alguma, influenciou os futuros trabalhos sobre o tema. Trata-se de A sociedade do espetáculo, do filósofo e cineasta francês Guy Debord.

Debord (2003), ao utilizar os conceitos marxianos de aliena-ção, fetichismo e reificação, tece uma profunda crítica da sociedade moderna, uma sociedade que prefere a imagem à realidade concreta, a aparência ao ser, e que leva seus integrantes à passividade, à con-templação e à aceitação dos valores preestabelecidos pelo capitalismo. É, segundo o autor, pela mediação das imagens e mensagens divulga-das pelos meios de comunicação de massa que os sujeitos deixam de lado a realidade concreta da vida para viver num mundo de ilusões, no qual todas as instâncias da vida acabam por converterem-se em mercadorias. Conforme observa Arbex Jr. (apud BAHIA, 2005):

O espetáculo – diz Debord – consiste na multiplicação de íco-nes e imagens, principalmente através dos meios de comuni-cação de massa, mas também dos rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo, de tudo aquilo que falta à vida real do homem comum: celebridades, atores, políticos, personalidades, gurus, mensagens publicitárias _ tudo transmite uma sensação de permanente aventura, felicidade, grandiosidade e ousadia. O espetáculo é a aparência que confere integridade e sentido a

7 “Com muita frequência, essa passagem é retratada como o triunfo final do direito ao indivíduo à auto-afirmação, entendido como a soberania indivisível do sujeito livre de responsabilidades – uma soberania que tende, por sua vez, a ser interpretada como o direito do individuo à livre escolha. O membro individual da sociedade de consumidores é definido, em primeiro lugar e acima de tudo, como Homo eligens.” (BAUMAN, 2008, p.81).

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Ariella Silva Araujo e Samuel Candido de Souza

uma sociedade esfacelada e dividida. É a forma mais elaborada de uma sociedade que desenvolveu ao extremo o “fetichismo da mercadoria” (felicidade identifica-se a consumo). Os meios de comunicação de massa – diz Debord – são apenas _ a manifesta-ção superficial mais esmagadora da sociedade do espetáculo, que faz do indivíduo um ser infeliz, anônimo e solitário em meio à massa de consumidores.

A sociedade do espetáculo tem sua origem no processo de sepa-ração entre os produtores e os produtos da produção, fazendo com que os indivíduos percam a dimensão da totalidade da atividade realizada e, consequentemente, a própria comunicação direta com os demais produtores. Em meio a essa realidade fragmentada e difu-sa, a unidade é reconstruída na contemporaneidade como imagem, como representação da realidade, cuja comunicação fica a cargo da direção do sistema. Os indivíduos passam a se relacionar através das imagens representativas da realidade, que se materializam em forma de mercadoria.

A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno exprime a totalida-de desta perda: a abstração de todo o trabalho particular e a abs-tração geral da produção do conjunto traduzem-se perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstração. […] O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível com o próprio centro que mantém o seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado. (DEBORD, 2003, p.18, grifo nosso).

A mercadoria se torna o repositório de toda a experiência humana ao ocupar toda a vida social, na medida em que está é mercantilizada em todas as suas instâncias. A mercadoria é, antes de tudo, o resul-tado das relações sociais existentes nos meios de produção, porém, em vez de revelá-la, a mercadoria esconde tais relações devido ao seu caráter fetichista. Conforme nos lembra Aquino (2007), Marx concebe o caráter fetichista não pela natureza física dos produtos ou pelas relações materiais presentes no intercâmbio entre os indivíduos durante sua produção, e sim pela forma social deste intercâmbio, ou

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A construção social do mercado de produtos “pirata”: uma análise das relações de consumo e venda

seja, pela aparência objetiva das determinações sociais do trabalho. Ao apresentar-se aos homens como uma relação natural, constitutiva das próprias coisas, esta aparência objetiva do intercâmbio mercantil acaba por constituir-se numa objetividade fantasmagórica.

Para Marx, portanto, a natureza fantasmagórica e fetichista da forma-mercadoria, não sendo determinada por sua forma sen-sorial, não se constitui, em consequência, numa ilusão unilate-ral da consciência, mas sim numa ilusão que poderíamos dizer objetiva, na medida em que a experiência cotidiana das trocas monetário-mercantis, enquanto trocas de equivalentes, “vela, em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados e, portan-to, as relações sociais entre os produtores privados. (AQUINO, 2007, p.170).

Debord (2003) trabalha também com a questão dos valores de uso e de troca presentes na mercadoria, sendo que o segundo chega a um determinado nível de autonomia, tanto pelo superacúmulo de capital, quanto pela extensão de sua lógica a todos os níveis da vida social, que pode apresentar-se na imediatidade de todos os valores de uso de tal modo que não apenas torna a sua lógica abstrata imediata-mente visível, como também a única coisa possível de se ver. Assim, as experiências dos indivíduos tornam-se fenômenos aparentes da produção capitalista.

O valor da troca não pode formar-se senão como agente do valor de uso, mas a sua vitória pelas suas próprias armas criou as condições da sua dominação autônoma. Mobilizando todo o uso humano e apoderando-se do monopólio da sua satisfação, ela acabou por dirigir o uso. O processo de troca identificou-se a todo o uso possível e reduziu-o à sua mercê. (DEBORD, 2003, p.26, grifo do autor).

O cerne da crítica que Debord (2003) faz da sociedade do espetá-culo é a sujeição dos indivíduos à condição de meros consumidores de ilusão. “A mercadoria é esta ilusão efetivamente real, e o espetácu-lo a sua manifestação geral.” (DEBORD, 2003, p.27). A sociedade do espetáculo é, antes de mais nada, uma inversão: a aparência se

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apresenta como realidade ao mesmo tempo em que a realidade se tor-na mera aparência. Ou, conforme salienta Aquino (2007), a inversão entre o sensível e o suprasensível ganha forma histórica concreta, no domínio do valor sobre o valor de uso, sendo, em última instância, a inversão entre o produtor e seu produto operada pelo trabalho alienado. Portanto,

[...] nas condições do capitalismo avançado, a lógica supra--sensível do valor tornou-se imediata, imajada, transforman-do o próprio sensível em algo do mesmo modo abstrato (tal como ocorre na quantificação do tempo, no lazer mercantil, na banalização do espaço, no consumo de mercadorias…). É como imagem que se impõe para ser vista e contemplada, que o automovimento do capital se constitui em experiência de passi-vidade contemplativa na imediatidade da totalidade do vivido. (AQUINO, 2007, p.174).

Outro autor que procura compreender o fenômeno do consu-mo, mas não pelo viés econômico/materialista, é Jean Baudrillard. Através de um amplo estudo, resultando em obras como “A socie-dade do consumo” e “Por uma crítica da política econômica do signo”, desenvolve uma reflexão de como se estruturava simbo-licamente a relação entre os agentes sociais e os objetos consu-midos, considerando que estes, além de um valor de uso e um valor de troca, possuem também um valor signo que só pode ser reconhecido em referência à totalidade do sistema no qual está inserido.

Através do valor signo, é possível compreender a estrutura sistê-mica do consumo, pois nos permite integrá-lo dentro do âmbito da cultura, como também nos permite elaborar um código interativo e de hierarquização dentro desse sistema. Por esse motivo, não faz sentido analisar as práticas de consumo de forma isolada, separadas uma da outra, porque justamente se perde a visão de sistema que lhes dá sentido.

Os desejos e as necessidades dos agentes estão imersos dentro de um feixe de relações complexas, preexistindo sempre ao ato de consumir em si termos sociais e econômicos. Baudrillard ela-

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bora uma crítica ao conceito de escolha racional utilizada pelos economistas em suas análises. Em termos gerais, os agentes não efetuam suas escolhas apenas com base nas disposições existentes entre meios e fins, pois de certo modo elas refletem o conjunto de valores e os termos culturais presentes na sociedade. Como nos diz Baudrillard (2009), a escolha dita “racional” dos consumidores é uma escolha pela conformidade, sendo que as necessidades não apontam tanto aos objetos como aos valores, e satisfazê-las têm o sentido de aderir a seus valores. Portanto, a escolha fundamental, inconsciente e automática do consumidor é aceitar o estilo de vida de uma sociedade particular.

O ato de consumir geralmente é explicado pela busca dos indiví-duos em satisfazer suas necessidades e alcançar a felicidade, também como salientado por Bauman (2001; 2008). Porém, o consumidor nunca é um ser satisfeito. A lógica do consumo não é a lógica da abundância e sim da carência, estando ela ligada ao processo de produção e manipulação dos significantes sociais que engendra esta insatisfação crônica. A felicidade é um mito que, nas sociedades modernas, é correlato a outro mito, o da igualdade. Em outras pala-vras, a igualdade real, em termos de capacidades, responsabilidades, oportunidades sociais e de felicidade (no sentido pleno do termo) acaba por ser transferida a uma igualdade perante o objeto e outros signos evidentes de êxito social e de felicidade, de acordo com a seguinte tese: os seres humanos são iguais ante ao valor de uso dos objetos, embora sejam desiguais ante ao valor de troca dos mesmos (BAUDRILLARD, 2009).

Essa lógica só ganha forma a partir do momento em que o objeto é submetido ao signo, com a possibilidade de manipulação deste pela publicidade no sentido não da satisfação das necessidades, e sim de deixar em aberto o desejo permanente. Enquanto signos, os objetos apenas simulam o status, a graça que poucos predestinados recebem no nascimento e que a maioria dos indivíduos nunca poderia alcan-çar. A busca por esse status, por essa condição social de excelência, que no fundo subjaz todas as aspirações, é a geradora desse frenesi no qual se procura adquirir através dos objetos aquilo que não se pode obter pela graça (BAUDRILLARD, 2009). Assim, o consumidor

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está sempre em busca da satisfação de necessidades, não as reais e sim as imaginárias, estimuladas pela publicidade e impelidas pelo sistema de retribuições simbólicas.

O que faz do consumo um fato social, de acordo com o sentido levi-straussiano, não é a aparência que ele conserva da natureza (a satisfação), e sim o procedimento pelo qual se separa dela (o que o define como código, como instituição, como sistema de organiza-ção). De forma análoga ao sistema de parentesco, que não se fun-damenta na consanguinidade e na filiação (que são seus aspectos naturais) e sim num sistema arbitrário de classificação, o sistema de consumo não está fundamentado na satisfação e sim num código de signos e de diferenças/distinção. Ou seja,

[...] se substitui um sistema biofuncional e bioeconômico de bens e produtos (nível biológico da necessidade e da subsis-tência) por um sistema sociológico de signos (nível próprio do consumo). E a função fundamental da circulação organizada de objetos e de bens é a mesma que o das mulheres e o das palavras: assegurar certo tipo de comunicação. (BAUDRILLARD, 2009, p.81, tradução nossa).8

Dessa forma, para Baudrillard, os seres humanos, em função do consumo, vivem numa espécie de “imaginário coletivo”, no qual a realidade dos objetos, da cultura e da sociedade como um todo é captada dentro deste imaginário onipresente, através de seus signos e símbolos. Como os indígenas melanésios, que criavam simulacros de aviões com ramos e lianas em um espaço delimitado que eles iluminavam à noite, na esperança que um avião real fosse ali aterrar, os seres humanos esperam encontrar a felicidade a partir dos objetos que consomem, não pela utilidade presente nesses objetos e sim pelo valor simbólico que ele possui.

8 “[...] se sustituye un sistema biofuncional y bioeconómico de bienes y de productos (nivel biológico de la necesidad y de la subsistencia) por un sistema sociológico de signos (nivel propio del consumo). Y la función fundamental de la circulación organizada de objetos y de bienes es la misma que la de las mujeres o la de las palabras: asegurar cierto tipo de comunicación.”

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O caráter simbólico do produto pirata dentro da estrutura sistêmica do consumo

O mercado de produtos piratas, caracterizado não como elemen-to disfuncional do sistema econômico, e sim como parte integrante dele, tem um papel significante por, em primeiro lugar, oferecer oportunidades de consumo, a princípio, à populações de renda mais modesta e, em segundo lugar, oferecer oportunidades de obtenção de renda por indivíduos marginalizados no mercado de trabalho. No primeiro caso, a oferta de produtos a preços mais baixos possibili-ta aos indivíduos participarem (e dessa forma exercer o seu direito ao consumo) de maneira mais plena no mercado, no sentido de que lhes tornar possível adquirir produtos que “satisfaçam” as suas necessidades (psicológicas e sociais). No segundo caso, ponto mais enfatizado por muitos estudiosos, o comércio de produtos piratas oferece oportunidades de trabalho principalmente para indivíduos que encontram dificuldades de inserção no mercado de trabalho formal, dando-lhes possibilidades de tornarem-se não apenas consu-midores destes tipos de produtos, como também (e principalmente) de bens e serviços ofertados no mercado formal.

Como os produtos piratas procuram imitar ou copiar o produto original, isso faz com que estes objetos, segundo Baudrillard (2009), possuam não apenas os valores de uso e de troca mas também um valor de signo. Este é o ponto mais importante para pensarmos uma das causas que dá sustentação a toda esta estrutura sistêmica do con-sumo. É ele, o valor de signo, que irá conferir uma determinada posição aos seus consumidores dentro dessa estrutura. Nesse sentido, podemos comparar os produtos originais e piratas de acordo com esses valores, com o intuito de estabelecer um paradigma no qual se possa compreender a forma como se insere o produto pirata (e o mercado de produtos piratas) dentro da lógica de consumo geral.

Em termos de valor de troca, é evidente a diferença existente entre ambos. O que torna o produto falsificado/imitado mais visível, portanto mais atraente, em relação ao original é o seu baixo valor econômico. Muitos acreditam ser este a sua razão de existir, pois a “opção” por consumir ou não, seria movida pelo princípio custo/

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benefício9. Contudo, acreditamos que o valor econômico é a con-sequência e não a causa/razão de existir dessas mercadorias. Como veremos logo a seguir.

No que se refere ao valor de uso, este varia de produto para produto. Uma roupa falsificada, por exemplo, possui um mesmo valor de uso de uma roupa original, embora a qualidade do mate-rial e/ou do acabamento seja inferior. Um produto eletrônico, por sua vez, pode ter um valor de uso diferente, pois mesmo possuin-do uma aparência similar ou igual, o produto pirata geralmente não possui todas as funções existentes no produto original, o que limita o seu uso. Por exemplo, um telefone celular pirata não possui o mesmo conjunto de softwares ou um hardware similar, o que resulta num produto limitado em termos de funcionali-dades e com uma experiência de uso mais pobre. Ainda assim, essas questões são levadas em conta pelo consumidor, conforme já ressaltado.

Enquanto os produtos original e pirata se afastam quanto aos valores de troca e de uso, eles se aproximam quanto ao valor simbólico que possuem dentro da estrutura de consumo. Sendo o mercado um meio estruturado de circulação de signos em forma de objetos, o consumidor busca, dentre os diversos objetos exis-tentes, aqueles que possuam o valor simbólico (o signo) que ele pretende adquirir. O ato de consumir, nesse sentido, não remete à satisfação de uma utilidade ou necessidade física, e sim a uma necessidade psicológica existente, cuja satisfação relaciona-se à própria estrutura no qual o ato de consumir está imerso. Essa estrutura envolve um amplo conjunto de signos alocados de for-ma hierarquizada através de princípios de distinção social. Este se reflete tanto no comportamento dos agentes como nos objetos. De acordo com Bourdieu (1989; 2008), os indivíduos se posi-cionam no espaço social conforme a composição e volume dos

9 O consumidor médio de produtos piratas tem consciência que o produto que ele compra é uma falsificação ou imitação de um outro produto, e o faz sabendo de todos os riscos que envolve esse consumo (ou seja, ele não tem as mesmas expectativas que teria caso comprasse o produto original).

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capitais que possuem. A aquisição desses capitais está relacionada com práticas, costumes, formas de agir e pensar interiorizadas pelos indivíduos durante o processo de socialização a que são submetidos desde os primeiros dias de vida. A esse conjunto de disposições Bourdieu dá o nome de habitus. As diferentes condi-ções de existência dão origem a diferentes tipos de habitus que, por sua vez, criam esquemas de percepção, interpretação e classi-ficação utilizados pelos indivíduos em suas relações sociais e em sua apreensão do mundo social. Ou seja, enquanto “[...] estrutura estruturante que organiza as práticas e a percepção das práticas, o habitus é também estrutura estruturada: o princípio de divisão em classes lógicas que organiza a percepção do mundo social é, por sua vez, o produto da incorporação da divisão em classes sociais.” (BOURDIEU, 2008, p.164).

Bourdieu (2008) procura trabalhar em sua obra as formas como se estruturam os processos de dominação simbólica a partir da distri-buição desigual entre os indivíduos dos capitais necessários (sobretu-do o cultural e o simbólico, mais inclusive que o econômico) para a aquisição de práticas sociais consideradas legítimas ou, dito de outro modo, de práticas sociais que legitimam determinadas condições de dominação percebidas como naturais e não como resultante de con-dições socialmente constituídas e delimitadas no tempo e no espaço. Nesse sentido, as práticas de consumo indicam também uma relação de dominação simbólica.

O consumo de determinados objetos e marcas traz no bojo de seu conteúdo simbólico as características que distinguem seus consumidores enquanto integrantes de determinada classe social. O “bom gosto”, o “belo”, o “agradável”, percepções construídas de acordo com a lógica que estrutura os mecanismos de dominação simbólica, no sentido em que as percepções presentes no habitus da classe dominante se tornam o modelo a ser seguido pelas classes dominadas, definem distâncias sociais e hierarquias ocupadas pelos indivíduos dentro do espaço social. E os objetos são a expressão dessas percepções, como uma marca, na acepção de sinal distintivo, que distingue os indivíduos uma das outras, de acordo com sua posição no espaço social.

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Portanto, os indivíduos procuram consumir objetos “de marca”, ou seja, que tragam em seu conteúdo simbólico esse caráter distintivo que marca seu proprietário. Este sinal, por sua vez, funciona como um delimitador no espaço social, nas hierarquias e nas distâncias ocupadas pelos indivíduos e percebidas por eles em suas relações uns com os outros. Mais do que sua característica utilitária, o produto de grife serve como indicativo das qualidades sociais que seu pro-prietário possui, de acordo com os esquemas de percepção presentes no habitus.

Argumentamos nesse texto que o “apelo comercial” dos produ-tos piratas relaciona-se justamente às questões de distinção social. Enquanto busca reproduzir o valor simbólico presente no produto original, o produto pirata reproduz também os signos de distinção percebidos pelos indivíduos. Devemos, entretanto, ressaltar que as formas de percepção dos produtos piratas são diferentes das formas de percepção dos produtos originais, pois, em primeiro lugar, os consumidores de produtos piratas não procuram esconder a origem dos produtos que consomem e, em segundo, suas relações sociais se dão majoritariamente com outros consumidores de produtos piratas (pois esses indivíduos estão posicionados, dentro do espaço social, próximo de outros que também consomem pirataria), estando inse-ridos em ambientes onde não há constrangimentos em se admitir ser consumidor de tais produtos. O produto pirata oferece uma forma de aproximação, em termos de valores simbólicos, daquilo que é socialmente mais valorizado, que é considerado de padrão mais elevado, e que se expressa através dos produtos consumidos. A “satisfação” que o produto pirata traz relaciona-se às possibilidades de participar dessa humanidade “diferenciada” ainda que seja através de imitação ou simulação, ainda que em termos objetivos isso não resulte em qualquer alteração na estrutura de posições do espaço social (pois o consumo desses produtos não produz mudanças signi-ficativas na composição dos diversos capitais que definem a posição dos indivíduos no espaço social). Porém, o consumo de produtos piratas reforça os mecanismos de dominação simbólica ao inculcar nas classes dominadas os esquemas de percepção, interpretação e classificação próprios das classes dominantes.

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A construção do mercado pirata e os agentes envolvidos

Procuramos nos tópicos anteriores ilustrar a problemática que envolve a discussão sobre o mercado de produtos piratas, procuran-do evidenciar a sua complexidade. Geralmente tratado como um elemento disfuncional do sistema econômico, esse mercado com-porta muitos elementos para além da simples transgressão das leis existentes, pois o conjunto das relações estabelecidas entre os agentes ultrapassa a dimensão das relações de troca. Nesse sentido, preten-demos direcionar a reflexão para além da explicação que enfatiza a dimensão puramente econômica, conferindo uma análise sociológica ao caracterizar as motivações, os interesses, os conflitos e os valores ao qual estão submetidos o mercado e não o contrário.

O debate acerca do aparecimento de um mercado paralelo que foge às normas e regulamentações impostas surgiu na década de 1970 no âmbito dos estudos sobre o mercado de trabalho nos paí-ses em desenvolvimento (PORTES; HALLER, 2004). O mercado informal, termo comumente utilizado para designar este mercado paralelo, envolve relações econômicas onde os agentes ignoram o custo do cumprimento das leis e normas administrativas que regem as relações de propriedade, a outorga de licenças para a comercialização, os contratos de trabalho, o crédito financeiro e o sistema de seguridade social, assim como estão excluídas delas (FEIGE, 1990 apud PORTES; HALLER, 2004). O mercado informal não diz respeito à natureza do produto comercializado e sim à maneira como é realizado o comércio, o que o diferencia do mercado formal. A produção e o comércio de produtos piratas, ilegais por definição [i], inserem-se no âmbito do mercado infor-mal, contudo, nem tudo o que é produzido ou comercializado nele seja pirata.

Apesar da discussão que permeou o debate dentro das Ciências Sociais, no que diz respeito à marginalização/integração da economia informal no âmbito do desenvolvimento do capitalismo, ainda é pos-sível encontrar formulações que partilham da visão sobre a informali-dade caracterizada como residual. Pinheiro-Machado (2008) discute muito bem essa questão em seu trabalho, argumentando no sentido

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de como a obra de Francisco de Oliveira10 foi um ponto de inflexão nos anos 1970, principalmente nas análises econômicas produzidas até então, que encaravam desenvolvimento e subdesenvolvimento como polos opostos. Isso porque o autor constatou que a pobreza, a informalidade e, consequentemente, o subdesenvolvimento, não eram fenômenos à parte da modernização. A “marginalidade” é con-sequência do processo de transformação do capitalismo excludente e mais ainda, “[...] a evolução capitalista necessitava do subdesenvol-vimento, numa relação em que a pobreza é um pólo indispensável para a riqueza crescer.” (PINHEIRO-MACHADO, 2008, p.118).

Dessa forma, partilhamos do princípio que o mercado informal é parte integrante, e necessária, do capitalismo. É a partir dele que a economia é retroalimentada, pois faz circular renda entre as camadas populares, como já mencionado. Mais ainda, o mercado informal não é apenas importante para os setores populares pelo motivo já mencionado mas também para o mercado formal, em que se pode verificar o impacto que aquele causa neste. Portes e Haller (2004), por exemplo, destacam a importância do mercado informal nos paí-ses em desenvolvimento, tanto por proporcionar a um segmento importante da população meios de subsistência que de outro modo estariam privados, quanto por diminuir os custos de consumo dos trabalhadores formais e os custos de produção e distribuição das empresas formais, contribuindo para sua viabilidade. Destaca, ainda, a contribuição do mercado informal para a estabilidade política e viabilidade econômica das nações mais pobres, o que faz com que seus governos tolerem tais atividades. Por sua vez, Pinheiro-Machado (2008) demonstra os efeitos economicamente negativos que uma ação fiscalizadora pode causar, notados no setor hoteleiro e de trans-portes urbanos, no caso de Foz do Iguaçu. Contudo, demonstra tam-bém como o formal se alimenta do informal numa espécie relação comensal e parasitária11. Isso porque grandes marcas reconhecem na

10 A obra é Crítica à razão dualista lançada em 1972.11 “[...] gruda-se a determinando ser, beneficia-se dele sugando e compartilhando

propriedades materiais. Entretanto, nem parasita nem hospedeiro ficam fracos.” (PINHEIRO-MACHADO, 2008, p.130).

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pirataria uma forma de difundir o marketing, pois só se copia o que é muito desejado. Visto isso, o valor mais acessível do produto pirata seria uma consequência desse desejo.

Para melhor compreender o fenômeno, devemos ter em mente que o mercado informal envolve tanto a oferta de trabalho informal, quanto a comercialização de bens e serviços fora do âmbito das nor-mas e regulamentações estabelecidas em lei. Em relação ao primeiro ponto, o mercado de trabalho informal funciona como meio para a inserção econômica de agentes que não conseguem se inserir através do mercado formal. O caráter informal do emprego independe da natureza formal ou não do empregador, pois há situações em que a empresa cumpre todos os requisitos legais para seu funcionamento, porém, mantém empregados contratados fora dos parâmetros da legislação trabalhista. Entretanto, a questão do desemprego não pode ser vista como a única mola propulsora do fenômeno da informali-dade, assim como não se nega que ele não seja fruto da desigualdade engendrada pelo capitalismo.

Há outros fatores que devem ser considerados, o que neste caso diz respeito àqueles que procuram trabalhar por conta própria. Dessa forma, Pinheiro-Machado (2008, p.120) traz um novo elemento para compor o quadro explicativo, ao postular que o trabalho informal também possui sua origem na ética capitalis-ta, pois é o “[...] ethos que faz com que os sujeitos legitimem-na socialmente, no momento em que estão imbuídos do desejo de ser patrão, de estar no topo na cadeia, de trabalhar por si próprio e, principalmente de mandar.” Em outros termos, o trabalho informal é fruto tanto das “[...] condições materiais produtoras de desi-gualdade, como da subjetividade dos indivíduos, motivados por um espírito empreendedor.” (PINHEIRO-MACHADO, 2008, p.120). Contudo, a ética que move esses indivíduos, não é a do tipo religiosa (weberiana, portanto), mas sim, uma nova ética do culto ao trabalho, o chamado empreendedorismo, espécie de “con-vencimento ideológico”, cuja característica é a individualização e subjetivação dos modos de organização da vida social, incluindo a material (MACHADO DA SILVA, 1971 apud PINHEIRO-MACHADO, 2008).

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Na visão ainda da autora, o que move o sistema de uma ponta a outra é uma espécie de sentimento de libertação e de poder, já que “se é para trabalhar como ‘escravo (a)’, prefiro ser escravo (a) de mim mesmo (a)”. Essa lógica se manifesta na forma como se organizam os vendedores, em que se verifica um sistema hierar-quizado (ser dono de uma banca de CD é o posto mais baixo) de patrões e empregados, de cunho familiar patriarcal e patrilinear12. O desejo último desses sujeitos é chegar a ser dono de uma banca qualquer. Aquele que possuir o maior número de bancas é o “grande patrão”. Tal desejo não se configura como fenômeno isolado, mas sim relacional. Dessa forma, o poder

[...] só ganha sentido dentro de uma microconfiguração social. É uma questão de honra. Uma vez que o posto de empregado não é legitimado por instâncias regulamentadoras de uma empresa, nem previsto pela CLT, as relações de poder hierárquicas acabam sendo sustentadas única e exclusivamente pela palavra e pela honra, códigos informais que podem ser tão resistentes e eficazes quanto frágeis e quebradiços. A garantia de que uma pessoa vai continuar trabalhando para outra está pautada apenas em um acordo verbal, que pode ser facilmente questionado e rompido. (PINHEIRO-MACHADO, 2008, p.123)

Em suma, o que Pinheiro-Machado (2008) constata em sua pesquisa é como a lógica do “ethos empreender”, narrativa/ideologia capitalista, se internaliza e se reproduz nesse circuito transnacional do mercado de produtos piratas, desde a fabriqueta na China até a banca de camelô no Brasil. Porém, pode-se dizer que a narrativa não se internaliza apenas nos produtores e vendedores mas também nos consumidores. Impelidos pela lógica do consumo, pelo “sou

12 “Por exemplo, Rui (65 anos), um dos vendedores mais antigos do Centro, não teve filhos homens, então quem gerencia o negócio é o seu genro, marido de sua filha consangüínea. Ele tinha também duas filhas adotivas, as quais ganhavam a menor parte dos lucros. O genro, por seu turno, assim que pôde alugou para si uma das bancas do sogro, em virtude de que, conforme suas palavras, não agüentava mais ‘engolir sapo’.” (PINHEIRO-MACHADO, 2008, p.122).

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o que eu tenho”, cabe avaliar o que os motiva a consumirem os produtos piratas.

Algumas discussões levam em consideração apenas o fator eco-nômico e o “desejo” (e o direito) de consumo como essencialmente imbricadas nas classes economicamente menos favorecidas (SALES; MALDONADO, 2012). Porém, há outra variável interessante que tem sido revelada em pesquisas atuais: o aumento do consumo de produtos piratas por parte das classes A e B.

Assim, segundo Pesquisa da Fecomércio-RJ/Ipsos, o aumento da adesão dessa classe subiu em 2011 (52%), quando comparado a 2010 (48%). Os motivos vão desde preços mais atraentes a facili-dades de acesso. Já a pesquisa realizada no período de 2006-2010 revela um dado interessante: o aumento do poder de compra entre as classes C e D/E, e o consequente consumo de produtos piratas, além do recuo do consumo das classes A e B13. A conclusão de pesquisa deste último período (2006/2010) argumenta no sentido de que o aumento da renda proporcionou uma “inclusão” das classes C e D/E, antes excluídas até mesmo do mercado informal, ao passo que pro-porcionou às classes A/B a migração do setor informal para formal.

Visto isso, como explicar o aumento da participação no consumo de produtos piratas por parte das classes A/B em um período con-siderado de grande crescimento econômico (o boom econômico) e aumento de ganhos reais no rendimento dos trabalhos nas últimas décadas (BRASIL, 2010). Por conta desse último aspecto, têm-se falado muito na ascensão de uma “nova classe média”, principal-mente depois da divulgação da pesquisa formulada pela Fundação Getúlio Vargas em 200814. Contudo, alguns autores, como Yaccoub

13 “Houve um aumento do consumo de mercadorias piratas entre as classes C e D/E. Em 2006, 49% dos consumidores da classe C e 32% das classes D/E haviam comprado alguma mercadoria falsificada ao longo do ano, parcela que subiu para 53% e 39%, respectivamente, em 2010. Enquanto isso, nas classes A/B houve um recuo de 53% para 47% dos consumidores de produtos piratas na mesma base de comparação.” (FECOMERCIO, 2010, p.20).

14 Trata-se da pesquisa realizada pelo Centro de Políticas Sociais (CPS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), sob coordenação do economista Marcelo Neri (2008). Para Yaccoub (2011), constitui-se em quebra de paradigmas no

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(2011), têm feito ressalvas com relação a essa nova terminologia. Para a autora, essa nova classificação não passa de uma banalização do termo “classe” proferida por economistas, formadores de opinião e pesquisadores. Baseados em critérios como renda, consumo e expan-são de crédito, essa nova categorização não comporta a complexidade que envolve a dura realidade dos estratos mais populares, considera-dos agora como a classe C, que por conta do aumento do consumo deixou de pertencer às classes D/E. E mais, sabe-se que pertencer a um estrato social implica muito mais que os critérios considerados pela pesquisa e pelos economistas, ou seja, renda e consumo. Acarreta um habitus e um poder simbólico das classes dominantes.

O que concedeu visibilidade a esses novos estratos foi justamente a esfera do consumo de produtos prestigiosos, que conferem status e hierarquia na classificação social. Eram setores da sociedade vistos pelas Ciências Sociais, até os anos 1970, como inseridos na lógica capitalista como produtos e não consumidores, o que faz todo o sentido a partir da análise de Bauman (2008). Porém, para Yaccoub (2011), trata-se de uma visão distorcida e limitada sobre o que se considera consumo, pois este não se reduz à dimensão da “carência material”. São classes que consumiam em outras instâncias (informal talvez?) o que de certa forma contraria as conclusões da pesquisa FECOMÉRCIO (não estavam inseridos nem no âmbito informal). Sobre esse ponto, a conclusão que a autora chega é enfática, pois para ela “[...] todos somos, inexoravelmente, consumidores. De ‘novos’ não temos nada” (FECOMÉRCIO, 2010, p.211).

No nosso entender, se o aumento de renda proporcionou aumen-to de consumo para todas as classes investigadas, tal observação abre brecha para a interpretação da possibilidade de migração das classes C para B/A. Contudo, mesmo que isso seja verdade, tal condição não implica reconfiguração de seus valores, de seus habitus de classe. “Para haver uma classificação social ‘é necessário haver uma transfe-rência de valores imateriais na reprodução das classes sociais’. Ser de uma classe e pertencer a ela está muito além da posse de determina-

setor da economia sobre a representação acerca dos pobres, vistos até então como não consumidores.

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dos bens de consumo.” (SOUZA, 2010, p.23). Se, dentro da lógica do consumo, possuir bens é símbolo de distinção, de posicionamento na estrutura social, que importância tem se ele é original ou falsifi-cado/imitado, uma vez que consumir os últimos os aproximam da aura simbólica que os produtos originais e, sobretudo os de luxo, prometem (STREHLAU, 2005) Essa proposição ganha validade principalmente por conta da alteração ocorrida a partir do século XVIII, com a Revolução Industrial, em que não se possuía mais a preocupação com a qualidade e com a marca, mas sim com a massi-ficação da produção (e não democratização como aventa as autoras). Contudo, a preocupação com o incentivo ao ato de comprar estava presente tanto entre os produtos quanto nos distribuidores. Mas como instilar esse desejo a um produto cujo prestígio não era mais tão aparente? Eis a armadilha.

Por um certo tempo, parecia que realmente seria impossível, para a maioria de nós, distinguir o muito rico do moderadamen-te rico ou do meramente rico pelo que vestiam. Essa terrível pos-sibilidade foi evitada por um ato ousado e engenhoso. Percebeu-se que um traje indicando uma classe alta não precisava exibir uma qualidade melhor ou ser mais difícil de ser confeccionado do que outros; precisava apenas ser reconhecido como mais caro. [...] Isso foi realizado de maneira muito simples: deslocando o nome do fabricante, antes relegado à uma posição modesta no interior da roupa, para um local de proeminência. [...] Houve, por exemplo, um grande aumento na venda de bolsas de plásti-co marrom, muito feias, que por terem impressas, em bastante evidencia, as letras “LV” (Louis Vuitton), sabia-se que custa-vam muito mais que as menos feias de couro marrom. (LURIE, 1997, p.145 apud SALES; MALDONADO, 2012).

Para Sales e Maldonado (2012), a pirataria traz à tona uma sociedade que conhece a produção em massa e que deseja os seus produtos. Mas as motivações de inserção são diferentes. Para a clas-se dominante trata-se de manter, defender e, portanto, exercer seu símbolo de distinção através do consumo de produtos de luxo, que são caros e, na maioria das vezes, raros. Já para as classes não domi-nantes, trata-se de imitar o estilo de consumo dos primeiros e o

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fazem consumindo produtos falsificados/imitados, realizando sua participação e apropriação legítima de um espaço que não pode ser considerada privilégio de alguns.

Algumas considerações

Longe de tentar esgotar uma discussão que tem chamado atenção por parte de diversos especialistas, o que tentamos apresentar foi um panorama do problema que envolve o fenômeno da pirataria, que comporta elementos para além da questão econômica, já que o ator econômico não é movido apenas por objetivos econômicos mas também por objetivos sociais, como busca de sociabilidade, reconhe-cimento, status e poder. Isso fica patente nas motivações que movem os indivíduos dentro desse mercado considerado ilícito e informal pela maioria da produção especializada sobre o assunto. Dentro da sociedade de consumidores, vendedores e consumidores estão imbri-cados dentro de uma lógica em rede, concreta, contínua, de relações sociais, isto é, em redes sociais. Em outros termos trata-se da tese da imbricação estrutural (embeddeness) de Mark Granovetter (1992), que tem como mérito, entre outros, ligar o ator e a estrutura social, isto é, “relacionar o nível micro e o nível macro”. A contribuição de Granovetter reside no fato de levar em consideração as relações sociais como elementos indispensáveis para problematizar o que ocorre dentro dos mercados (RAUD-MATTEDI, 2005). Segundo Giglio & Ryngelblum (2009), o mercado que estamos tratando pode ser classificado como em rede, pois há uma partilha de valores, como interdependência, confiança, comprometimento e expectativas, prin-cipalmente por parte dos consumidores, não vistos como passivos.

Há o nível macro que une os indivíduos de ponta a ponta do fenômeno. Uns, os vendedores, movidos pela lógica empreendedo-ra e não apenas pelo aspecto da informalidade, outros, os consu-midores, que buscam inserção, poder, status, visibilidade dentro da estrutura.

Em relação ao consumidor, não basta apenas consumir deter-minados bens para se situar/posicionar dentro da estrutura social. O habitus é fundamental para elevar sua condição social. Isso

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poderia de certa forma explicar o porquê do aumento do con-sumo entre as classes A/B de produtos piratas. Não seriam os “novos ricos” que ascenderam economicamente, mas não parti-lham das mesmas estruturas cognitivas da chamada elite? Se “ter é o ser”, exibir um produto de marca é o que confere status social, por que não apelar ao mercado de produtos piratas, que em últi-ma instância oferece os mais diversos produtos das mais diversas marcas por preços muito mais acessíveis e que possuem o mesmo valor simbólico do original? Em muitos casos, a acessibilidade aos produtos novos se dá de forma mais rápida neste mercado. Mas são conclusões provisórias que merecem análise mais apurada do assunto e que, portanto, precisam ser retomadas em novas pesqui-sas teóricas e empíricas.

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Atores na reprodução do espaço: estudo sobre a dinâmica de atuação da BNDESPAR

no capitalismo brasileiro contemporâneo

Wellington Afonso DESIDERIO

Introdução

Os papéis desempenhados pelo Estado nos últimos governos brasileiros evidenciaram dois modelos de atuação. Enquanto, nos governos Fernando Henrique Cardoso (1995/2002), existia o predo-mínio da política do livre funcionamento dos mercados, nos gover-nos Lula-Dilma (2003/atual), o Estado se torna um ator central, organizando os mercados, produzindo bens e serviços por meio de empresas estatais “burocracia/hierarquia”.

No governo Cardoso, os movimentos de fusões e privatizações das empresas estatais abriram espaço para as corporações internacio-nais atuarem no mercado brasileiro. Grün (1999) indica que, nesse período, a lógica financeira começou a predominar na sociedade brasileira e no meio organizacional. Assim, os princípios dominan-tes no capitalismo internacional passaram a refletir sobre o Estado brasileiro. Dezalay e Garth (2000) acrescentam que nos países da America Latina, notadamente no Brasil, ocorreu um processo de dolarização do conhecimento norte-americano, ao ponto que o modelo dominante no capitalismo internacional se expandiu para os espaços latino-americanos através de um processo de importação de princípios.

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Atores na reprodução do espaço: estudo sobre a dinâmica de atuação da BNDESPAR no capitalismo brasileiro contemporâneo

Já nos períodos do governo Lula, as empresas nacionais passa-ram então a incorporar os princípios dominantes no capitalismo internacional – abrindo capital em bolsa de valores e adotando a Governança Corporativa1 (GC) como ferramenta de gestão. Nesse período, segundo indica Jardim (2007), houve uma possível “mora-lização e/ou domesticação do capitalismo”, de modo que a ideia de proteção, segurança e insegurança social se atrelou ao mercado. Para Boschi (2010), no governo Lula, haveria um novo tipo de inter-vencionismo estatal que adquire particularidade em relação ao do passado, sendo que agora haveria mais uma modalidade híbrida de coordenação econômica ou de recriação de híbridos existentes do que a um retorno do Estado produtivo.

Portanto, nos governos Lula-Dilma, o Estado apresenta papel central no funcionamento da economia e os princípios de auto-regu-lação do mercado não se tornam unanimidade. Jardim & Mundo Neto (2012) indicam que nesses governos ocorreu uma mudança cognitiva no papel do Estado, visto que ele aparece agora como arti-culador de alianças e produtor de crenças. Argumentamos que uma das ferramentas operacionais para o Estado praticar esse papel é a BNDESPAR, através da qual ele atua de maneira direta no mercado de capitais brasileiro.

A BNDESPAR é uma holding estatal gestora de capital de risco. Ela é subsidiada pelo Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES2). Suas operações se iniciaram na década de seten-ta, quando a instituição se subdividiu em três agências  – EMBRAMEC, IBRASA e FIBASA, as quais visavam, respec-tivamente, aos setores de bens capitais, de insumos básicos e produtivos. Na década de oitenta, as três agências citadas asso-ciaram-se à BNDESPAR. Na contemporaneidade, sua atuação na economia brasileira envolve a compra de participação acionária

1 Governança Corporativa é o conjunto de práticas que tem por finalidade otimizar o desempenho de uma companhia ao proteger todas as partes interessadas – como investidores, credores e empregados – facilitando o acesso ao capital. (CVM, 2012).

2 Banco público cujo objetivo é fomentar o desenvolvimento da economia brasileira.

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das empresas nacionais, ou seja, participa efetivamente no mer-cado de capitais.

Esse trabalho tem como foco o papel desempenhado pela BNDESPAR nos últimos anos. O objetivo é melhor entender a dinâmica de atuação da holding estatal e estudar os atores-chave res-ponsáveis pela reprodução dessa atuação. Assim, será verificado como o Estado atua no mercado de capitais brasileiros.

A metodologia consistiu na quantificação da atuação da BNDESPAR nas empresas brasileiras e quantificação do perfil de Governança Corporativa das empresas investidas; além disso, foram qualificados, através do mapeamento da trajetória social, os atores que compõem a “elite da BNDESPAR”. Consideramos como “elite da BNDESPAR” os atores do Conselho de Administração, Diretoria Executiva3 (DE) e Conselho Fiscal4 (CF), tanto da holding quanto do BNDES, pois esses são responsáveis pela tomada de decisão na BNDESPAR.

Nesta pesquisa foram coletados dados secundários disponíveis nos prospectos anuais disponibilizados pelo BNDES, na base de dados online da BM&FBovespa (Bolsa de Valores de São Paulo) e nas publicações institucionais dos sites das empresas investi-das pela BNDESPAR. Na BMF&Bovespa, foram verificados os segmentos e os índices de GC que cada empresa possui. Nos sites institucionais das empresas, é possível verificar a estrutura acionária, os CA, a DE e os Comitês de cada uma. Os dados sobre os executivos foram levantados nos currículos disponíveis na base de dados da Forbes. Também foi realizada uma entrevista semiestruturada com um conselheiro de uma empresa investida pela BNDESPAR.

3 A Diretoria Executiva é um órgão que tem a competência de traçar e monitorar a execução da orientação estratégica estabelecida pelo Conselho de Administração, administrando e representando a Sociedade. (Fonte: Comissão de Valores Mobiliários – CVM).

4 O conselho fiscal é um órgão que adota um regimento com procedimentos sobre suas atribuições, com foco sobre a fiscalização do relacionamento com o auditor, e que não limite a atuação individual de nenhum conselheiro. (Fonte: Comissão de Valores Mobiliários – CVM).

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Atores na reprodução do espaço: estudo sobre a dinâmica de atuação da BNDESPAR no capitalismo brasileiro contemporâneo

Atores na reprodução do espaço

A partir de conceitos propostos pela análise institucional das organizações e pela sociologia econômica pretende-se contribuir para o entendimento da recente dinâmica de investimento da BNDESPAR no capitalismo brasileiro. O presente trabalho se fun-damenta teoricamente na proposição que indicam os atores sociais como peças essenciais para reprodução de um espaço, notadamente o espaço econômico. Hirsh (2003) utiliza o termo “Mãos Visíveis” para caracterizar que os atores são os responsáveis pela criação e reprodução da economia.

Para Fligstein (2001), os mercados fornecem atores com modelos cognitivos para interpretar as ações das organizações. Para Douglas (1998), a formação cognitiva dos atores está atrelada a sua trajetória social, de modo que os espaços que esses indivíduos convivem/con-viveram e os outros atores com quem interagem/interagiram con-tribuem para formar suas percepções. A mesma autora ainda indica que formação cognitiva dos atores é responsáveis pela reprodução da ordem de um determinado espaço.

Os capitais dos atores – sejam eles econômicos (financeiros), sociais (redes sociais), culturais (qualificações intelectuais), sim-bólicos (honra e reconhecimento) – serão as ferramentas que dife-renciará o poder de cada um no espaço. Bourdieu (1989) sinaliza a existência do poder simbólico, que envolve o poder de conseguir produzir significações e as impor como legítimas, sendo assim, os capitais dos atores seriam fundamentais para a reprodução da ordem estabelecida.

O poder simbólico de cada ator seria proporcional a sua habi-lidade social, que, segundo Fligstein (2009), seria a habilidade de motivar os outros a tomar parte em uma ação coletiva, que se prova crucial para a construção e reprodução de ordens sociais locais. Dessa forma, os atores que compõem as posições de tomadas de decisão na BNDESPAR – que serão analisados adiante – seriam potenciais atores sociais hábeis, sendo que eles seriam as peças--chave para a reprodução da dinâmica de investimento da holding estatal.

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Bourdieu (1989) ainda indica que os capitais dos atores são relevantes para determinar os grupos sociais, de modo que os espaços serão formados por atores que possuem capitais simila-res. Bem como os atores sociais vão se posicionar mais distantes, quanto mais distante (diferente) for o volume e o tipo de seus capitais.

A concepção de empresa acionista no Brasil

Fligstein (1990) indica que a concreta relação social de um dado mercado reflete unicamente sua história e sua dependência frente a outros mercados, e os atores, quando se interagem, determinam concepções de controle em um determinado espaço. A concepção de controle dominante seriam os modelos institucionalizados e legiti-mados no espaço em um determinado período. O autor ainda expõe que, em diversos espaços nacionais, estaria prevalecendo a concep-ção de controle de empresa acionista, predominante nos mercados anglo-saxão.

No Brasil, a concepção de controle de empresa acionista che-gou notadamente a partir da década de 1990. Donadone e Swnelzer (2004) mostram que os movimentos de privatizações, fusões e aqui-sições no Brasil – seguindo roteiro internacional, no decorrer da década de 1990 – ensejaram as primeiras experiências de controle compartilhado nos grupos brasileiros, formalizadas por meio de acor-dos de acionistas. Nessas organizações, os investidores integrantes do bloco de controle passaram a dividir o comando da empresa, estabelecendo contratualmente regras.

Esses fenômenos conduziram a institucionalização do modelo de capitalismo financeiro na conjuntura nacional. Grün (2005) indi-ca que a institucionalização desse novo modelo ocorreu através de atores importantes, que representavam a elite nacional, tais como gestores de fundos de pensão, sindicalistas, governo Lula, e consul-tores organizacionais; esses vivenciaram um processo de convergên-cia aos novos parâmetros das finanças. Esse novo modelo de gestão gerido pelas finanças conduz as empresas adotarem a Governança

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Corporativa – ferramenta de gestão que enfatiza o discurso da trans-parência – e abrir capital em bolsa de valores.

Mas, no Brasil, as ideias ligadas à Responsabilidade Social e à Sustentabilidade, foram incorporadas à GC, sendo assim, ela amplia seu sentido, e contempla, além dos interesses dos acionistas, o de outros segmentos ligados às organizações, os stakeholders. Na Governança Corporativa brasileira, o Conselho de Administração5 (CA) ganha posição de destaque para reger a transparência. Esse é composto por atores estratégicos que estão centrados na tomada decisão. Useem (2011), ao estudar o CA de uma empresa chinesa, apontou que os atores presentes nesses espaços se adaptam à concep-ção de controle dominante.

Todo esse ambiente brasileiro marcado pelo ideário das finanças gera espaço para o desenvolvimento de Private Equity6 (PE). De acor-do com Grün (2009), no Brasil, durante as privatizações, a versão inicial dos PE, capitaneada por Daniel Dantas, estava em sintonia com a “versão americana original”. Mas, gradativamente, por força da ação de investidores institucionais, sobretudo os fundos de pen-são – conforme indica Jardim (2007) – e o próprio Estado, contri-buíram para a versão dos PE com Governança. A versão brasileira se contrapõe à “versão original” uma vez que, a natureza privada (private) garantiria justamente a liberdade da não transparência na condução dos negócios. Neste contexto, ganha ênfase a atuação da BNDESPAR, que cresceu significativamente nos últimos anos. Ela participa diretamente do mercado financeiro comprando ações de empresas nacionais.

5 O conselho de administração é o responsável por fixar a orientação geral dos negócios da companhia e por supervisionar a gestão da sociedade, exercendo com caráter indelegável essas atribuições, protegendo o patrimônio da sociedade e buscando a maximização do valor da empresa e o adequado retorno do investimento. (Fonte: Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC)

6 Fundos que investem em empresas promissoras. (Fonte: Bovespa)

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A dinâmica de atuação da BNDESPAR

A BNDESPAR atua comprando participações acionárias de empresas brasileiras em duas vertentes, empresas de capital fechado e empresas de capital aberto. Até 2011, o portfólio de investimentos era composto por 76 empresas com capital aberto e 73 de capital fechado. Nos investimentos em empresas de capital fechado, a par-ticipação varia muito, desde 0,01 % das ações até 52%, enquanto que nos investimentos nas empresas de capital aberto a holding geral-mente atua como acionista minoritária. Na Figura 1, é demonstrada a participação acionária da BNDESPAR em empresas brasileiras.

Figura 1 – Participação da BNDESPAR em porcentagem nas empresas de Capital Aberto e Capital Fechado –

Amostra composta por 76 empresas.

Fonte: Elaboração própria baseada em dados coletados no banco de dados do BNDES.

O investimento em empresas de pequeno e médio porte, que não possuem capitais aberto em bolsa de valores, tornou-se uma estraté-gia muito aderida pela BNDESPAR nos últimos anos. Pelo menos 14 empresas como essas receberam participação entre 2009 e 2010 (MUNDO NETO et al., 2011). Para Julio Ramundo, que é gerente da área de capital empreendedor do BNDES, através desses investi-mentos a BNDESPAR procura fomentar a Governança Corporativa

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Atores na reprodução do espaço: estudo sobre a dinâmica de atuação da BNDESPAR no capitalismo brasileiro contemporâneo

nas empresas investidas (TEREZA; VALLE, 2011). Fagundes (2012) também afirma que a subsidiária do BNDES se propõe a incentivar e direcionar empresas de capital fechado a listarem nos segmentos da Bovespa.

Nesse texto, será demonstrado um caso de investimento realizado pela holding estatal em empresa de capital fechado. A empresa esco-lhida foi ALTUS S.A., fundada em 1982, e que trabalha na área de produto e integração de sistemas.

Nessa empresa, a BNDESPAR é responsável por 24,9% das ações e sua atuação envolve dois momentos: o primeiro período, de 1992 a 2006, e o segundo, de 2010 aos dias atuais.

Em entrevista7 junto a um representante da ALTUS – Fabiano Favaro, membro do CA e Diretor Financeiro – entendeu-se que a holding estatal atua nessa empresa como um PE. Embora ela não tenha representante no CA, participa em todas as reuniões através de um membro ouvinte (esse geralmente é um gerente da área de capital empreendedor do BNDES). São cobrados da empresa investida também demonstrativos e balanços trimestralmente, e o cumprimento do acordo de acionista. Também há uma cobrança sobre a formação do CA, o qual deve ser composto por executivos profissionais.

No contrato de acionista dessa participação é indicado que a ALTUS deve entrar no Novo Mercado8 da Bovespa em 2018, e doze meses depois a BNDESPAR teria autorização para vender sua parti-cipação. No entanto, devido a alguns atrasos de relatórios da empresa investida, foi realizado um novo acordo entre as duas instituições, o qual indica que, em doze meses, a ALTUS deve entrar no segmento Bovespa Mais do mercado de capitais.

Segundo o entrevistado, esse contrato (2010-Atual) é diferente do primeiro (1992-2006), pois o primeiro tinha mais uma conota-

7 Entrevista semiestruturada realizada no dia 25/04/2012.8 O Novo Mercado é um segmento de listagem da Bolsa de Valores de São

Paulo (BM&F Bovespa) destinado à negociação de ações emitidas por companhias que se comprometam, voluntariamente, com a adoção de práticas de governança corporativa adicionais em relação ao que é exigido pela legislação.

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ção de empréstimo na cláusula de resgate, enquanto que, no segun-do, essa clausula é antecedida pela abertura do capital da empresa. O entrevistado também argumentou que a BNDESPAR atua no monitoramento da “forma” de GC da ALTUS e não diretamente na estratégia do negócio.

Também foram analisadas as empresas abertas, nas quais foram verificadas suas Governanças Corporativas (GC) através dos seus segmentos e índices na Bovespa. Foram considerados sete índices (IBOVESPA, IBRX50, IBRX, ISE, IGC, ITAG, IDIV) e cinco níveis (Bovespa Mais, Tradicional, Nível 1, Nível 2 e Novo Mercado). A Figura 2 posiciona as empresas no espaço conforme a quantidade de índices (eixo vertical) e o segmento que cada empresa se enquadra na bolsa (eixo horizontal).

Vale ressaltar que os níveis de GC da bolsa, em ordem cres-cente, são: Bovespa Mais, Nível 1, Nível 2 e Novo Mercado. É possível verificar que há um grupo, que corresponde a aproxima-damente 33% das empresas, que está nos níveis mais baixos de GC da Bovespa, os segmentos Bovespa Mais e Tradicional. A maioria, 63% da amostra, estão ou no Novo Mercado, principal segmento, ou no Nível 1.

Figura 2 – Níveis e quantidades de índices de Governança Corporativa das empresas investidas pela BNDESPAR.

Fonte: Elaboração própria baseada em dados coletados no banco de dados do BMF&Bovespa e no BNDES.

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Atores na reprodução do espaço: estudo sobre a dinâmica de atuação da BNDESPAR no capitalismo brasileiro contemporâneo

Quanto aos índices de GC, participam do IBOVESPA – prin-cipal índice da Bovespa – 40% das empresas que compõem a amostra. Analisadas em conjunto, representam numericamente 63% do total do IBOVESPA. Das 76 empresas com participação da estatal, 47 delas compõem o IBRX. Também chama atenção a quantidade de empresas que possuem o IBRX50 (para compor esse índice a empresa precisa ser uma das 50 ações com maior índice de negociabilidade apurados nos doze meses anteriores à reavaliação). Formam um grupo de 31 empresas, representam, numericamen-te, 62% do total (50) das que participam do índice. Participam do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), 26 empresas. Se comparado com total geral de empresas que possuem esse índice na Bovespa, 37 empresas, 70% delas recebem investimentos da BNDESPAR.

Em relação ao perfil de monitoramento das empresas que compõe a amostra, em 70% das empresas investidas, há Conselho Fiscal, e em 45% delas existem Comitês. Em apenas 10% das empresas, o presidente do Conselho de Administração ocupa também a posição de Presidência Executiva.

O aumento dos lucros e as críticas a BNDESPAR

Nos últimos anos, a compra de participação acionária pela BNDESPAR tem aumentado significantemente (BNDES, 2011). Isso seria conseqüência da expansão da nova concepção de controle (empresa acionista) que tem se legitimado no Brasil, notadamente a partir da última década, quando foram criados o Novo Mercado na Bovespa e as leis de Sociedade Anônima. Nesse novo modelo, a BNDESPAR encontrou uma forma lucrativa de atuar na economia, que tem gerado recordes de receitas para o BNDES, essencialmente após 2003. Desse momento em diante, os lucros tem crescido anu-almente, exceto nos períodos de crise mundial em 2008 e 2009. A Figura 3 indica esse crescimento, nos eixos são apontados os desem-penhos dos lucros em dinheiro.

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Figura 3 – Lucros do BNDES a partir de 2000

Fonte: BNDES (2011).

Esse modelo de atuação vem recebendo inúmeras críticas ao lon-go dos últimos anos. A BNDESPAR é constrangida por funcionar conforme a lógica de PE, que entra como acionista em determinada empresa, e realiza o desinvestimento assim que suas ações passam a receber valores interessantes no mercado. Em resposta, o atual presi-dente do banco, Luciano Coutinho, afirma que mesmo diante dessa dinâmica de atuação, a BNDESPAR não funciona como um PE, que permanece, em média, dois anos na empresa; ao invés, a holding estatal permanece mais tempo visando alavancar o desenvolvimento do sistema empresarial da empresa investida (ALVES, 2011).

Também recebem críticas os investimentos realizados em empresas que poderiam captar recursos no mercado internacional e o fomento nos movimentos de fusão realizado pela holding esta-tal. Recentemente, no caso Pão de açúcar e Carrefour, que gerou grandes repreensões, a ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, pronunciou-se afirmando que o dinheiro da BNDESPAR não é público, pois ele é resultado dos investimentos em ações de mercado (MARQUES, 2011). Já membros do banco afirmam que o dinheiro da BNDESPAR não é subsidiado, pois ele não utiliza nem recursos do FAT, nem do Tesouro, ou seja, esse dinheiro é resultado da car-teira de valores da holding estatal (MELO; ROCHA, 2011). O fato é que, devido aos lucros dos últimos anos, pode parecer moral dizer que a BNDESPAR é autofinanciável, no entanto, a grande indagação é: se as operações gerarem prejuízos quem pagará a conta?

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Atores na reprodução do espaço: estudo sobre a dinâmica de atuação da BNDESPAR no capitalismo brasileiro contemporâneo

Atores na gestão da participação acionária da BNDESPAR

Essa parte é dedicada para analisar os atores que compõe a elite da BNDESPAR. A atenção está sobre os atores que compõem as cadeiras da DE, do CA e do CF, tanto da BNDESPAR, quanto do BNDES. Esses atores seriam as principais “Mãos Visíveis” res-ponsáveis por reproduzir a dinâmica de atuação da BNDESPAR. Mapeou-se a trajetória social destes indivíduos considerando variá-veis como experiência acadêmica, experiência política e experiência profissional.

Conforme a Figura 4, a experiência política (aproximadamente 60% da amostra possui), a experiência internacional (aproximada-mente 25% da amostra possui) e a experiência acadêmica (aproxi-madamente 45% da amostra possui) são os capitais com maior pre-sença nesse espaço. Em relação à experiência política, esses atores já passaram por ministérios e presidência de organizações como Banco Central e CVM. Quanto à experiência internacional, destaca-se, principalmente, o fato de terem passados por escolas norte-america-nas. Em relação à experiência acadêmica, destaca o fato destes indi-víduos atuarem como professores e pesquisadores em universidades públicas no Brasil.

A formação acadêmica desses atores é notadamente em institui-ções de ensino superior publicas do Brasil, cerca de 80% dos atores; 60% possuem formação em Economia e, em 95% da amostra, pos-suem formação ou especialização nas áreas que envolvem Finanças (Administração, Economia, Finanças). A formação acadêmica desses atores seria uma das justificativas para explicar atual dinâmica de atuação da BNDESPAR, marcada pela lógica financeira.

Em 27 empresas, a BNDESPAR possui representante no CA. Nessa pesquisa, foi possível identificar 11 empresas. Sendo assim, analisou-se com quem os representantes da holding estatal interagem nesses espaços. Para isso, verificaram-se as trajetórias sociais dos ato-res que compõem os CA’s dessas empresas. Na Figura 5, são demons-tradas quais as experiências dos atores presentes nesses espaços.

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Figura 4 – Experiência dos atores que ocupam “cargos de elite” no BNDES e na BNDESPAR.

Fonte: Elaboração própria baseada em dados coletado nas bases de dados da Forbes e BNDES

Figura 5 – Experiências presentes nos Conselhos de Administração que contam com representante da BNDESPAR.

Fonte: Elaboração própria baseada em dados coletados nos sites institucio-nais das respectivas empresas.

A tabela aponta que os capitais sociais existentes nesses espaços são: experiência em mercado de capitais, experiência em direito, experiência política, experiência internacional e experiência acadê-

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Atores na reprodução do espaço: estudo sobre a dinâmica de atuação da BNDESPAR no capitalismo brasileiro contemporâneo

mica. Fligstein (2001) indica que o espaço define as concepções de controle – partindo desse princípio, as concepções controle do espaço analisado seriam marcadas pela lógica das finanças, a presen-ça de atores com experiência em mercado de capitais seria uma das justificativas para esse fenômeno. Além disso, a experiência inter-nacional deixa os atores em contato com a lógica predominante no capitalismo internacional. Percebe-se que, nos CA’s, é dada impor-tância para profissionais com experiência em direito, o que confirma as tendências apontadas por Dezalay e Garth (2000). A experiência política seria uma espécie de capital simbólico que traz legitimidade nas cadeiras dos CA’s.

Verificou-se que, em todos os CA’s dessa amostra, existe pelo menos um membro que atua em outros CA’s. Tal fenômeno gera uma espécie de “interlocking” entre as empresas. Desse modo, os atores exerceriam um papel de circular as informações entre as corpo-rações. Assim, é possível, através dessa circulação entre CA’s, indicar que este espaço estaria propício à existência de um “Isomorfismo Mimético” conforme aponta Dimaggio e Powell (1991). A Figura 6 indica a quantidade de membros que estão em mais de um CA (eixo vertical) e a porcentagem que esse valor representa no total de membros de cada empresa (eixo horizontal).

Figura 6 – Quantidade de conselheiros presentes em mais de um Conselho de Administração.

Fonte: Elaboração própria baseada em dados coletados nos sites institu-cionais das respectivas empresas.

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Conclusões

Este estudo exploratório procurou contribuir para o entendimen-to da atuação da BNDESPAR no período recente. Se até meados da década de noventa predominou a ação do Estado em diferentes mercados como gestor de grandes empresas estatais, após as priva-tizações, ocorreu uma intensificação da participação na posição de acionista, por meio da indústria de capital de risco. Essa lógica de atuar consegue se promover essencialmente devido ao contexto eco-nômico brasileiro, que é marcado pelo ideário das finanças, sendo que GC e PE – ferramentas de origem liberal no Brasil – seriam os instrumentos fundamentais para transitar a reprodução desse modelo de atuação. Logo, entende-se que no governo Lula-Dilma, o Estado, através da BNDESPAR, possui uma orientação interventora, que é articulada via mercado financeiro. Assim, nesse modelo de atuação, o Estado tem viabilizado uma fórmula de fornecer recursos às empresas nacionais e lucrar concomitantemente.

No texto foi mostrado que a BNDESPAR realiza investimentos em duas frentes, empresas de capital fechado e aberto. Nas empresas fechadas ela introduz o espírito de GC, e nas empresas abertas, seus investimentos são orientados para as corporações que ocupam os principais índices e níveis de GC da Bovespa. Assim, a BNDESPAR é um instrumento estatal de difusão da concepção de empresa acio-nista no capitalismo brasileiro. Além disso, conforme indicam Jardim & Mundo Neto (2012), a posição de dominância do Estado na economia brasileira o consagra como produtor e reprodutor de cren-ças. Notadamente nesse artigo, percebeu-se que o Estado, através da BNDESPAR, reproduz a crença que GC é a ferramenta de gestão que alavanca o crescimento da empresa.

Através do estudo de caso da empresa ALTUS, verificou-se que, nas aplicações da subsidiária do BNDES durante a década de 1990, o resgate do investimento tinha uma conotação de empréstimo. Atualmente, ele é precedido pela abertura de capitais da empresa investida. Isso seria uma das explicações para os recordes de lucro, pois o processo seria entrar na empresa quando ela ainda está deses-truturada, preparar para o mercado de capita e, por fim, realizar

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Atores na reprodução do espaço: estudo sobre a dinâmica de atuação da BNDESPAR no capitalismo brasileiro contemporâneo

o “desinvestimento” após a empresa entrar no novo mercado da Bovespa, momento em que as ações terão valor muito maior do que o valor pago na compra.

Através do caso ALTUS, também é possível dizer que ocorreu uma mudança de ênfase9, no sentido de Bourdieu (2001). Isso porque, na década de 1990, a BNDESPAR atuava de maneira discreta, não obstante, no período atual, com o fortalecimento do mercado de capitais, ela tem papel de destaque, tornando-se a principal ferramenta estatal para atuar diretamente nos espaços financeiros.

Num ambiente marcado por constrangimentos, as repostas às críticas são relevantes para que essa dinâmica de atuação continue se reproduzindo (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Os discursos de Coutinho de que a BNDESPAR atua primeiramente para fomentar desenvolvimento da empresa brasileira, preparando-a para o mercado de capitais, e que o sucesso nos lucros gera subsídio próprio ao banco seriam as principais respostas que estariam trazendo um valor moral e sustentando esse modelo de atuação.

Essa pesquisa se amparou na proposição de que a formação cog-nitiva dos atores são as peças chaves na reprodução da dinâmica de atuação da BNDESPAR. Esses atores executam o papel, conforme indica Jardim & Mundo Neto (2012), de “Mãos Articuladoras e Visíveis” do Estado. Assim, tentou-se mostrar que as trajetórias sócias destes indivíduos estariam correlacionadas com os princípios do capitalismo financeiro. Devido à institucionalização do modelo de empresa acionista no Brasil, e a mudança de ênfase na BNDESPAR, mostrou-se empiricamente que os capitais simbólicos e culturais que vigoram nos “cargos de elite” do banco são essencialmente três: expe-riência em mercado financeiro, experiência internacional – ambos por estarem ligados com as bases do modelo financeiro – e experiên-cia política. Por se tratar de um banco estatal, essa última experiência

9 Bourdieu (2001) relata sobre a questão da ênfase, indicando que os mesmos elementos podem estar presentes em diversas construções simbólicas em momentos distintos, assim a ênfase que cada um recebe no dado momento o faz distinto.

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gera um valor simbólico para atuar nesse espaço. Todo esse con-texto gera também aos atores que ocupam as “cadeiras de elite” na BNDESPAR, veredas para a carreira executiva, não apenas na esfera governamental, mas prioritariamente na esfera privada, notadamente nos CA das grandes empresas nacionais.

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Teoria crítica e a abolição da categoria de valor

Nathalia Muylaert LOCKS

Introdução

O objeto da disputa entre Friedrich Pollock e Franz Neumman é claro e bem determinado: trata-se da crítica à estrutura econômica marxista compreendida aqui através do conceito de capitalismo, isto é, na medida em que esse conceito corresponde ao conceito político e econômico de livre-mercado. Ou seja, um conceito que apresenta como sujeito o mercado e como predicado a produção industrial. Contudo, embora a crítica seja dirigida ao modelo marxista de capi-talismo, o capitalismo que de fato é analisado é aquele em que a concorrência, a acumulação, e por fim, o desenvolvimento tecnoló-gico, possibilitaram o surgimento de um tipo de capital planejado e centralizador dos meios de produção. Logo, de um capital regulado, de modo que, o que é propriamente regulado e planejado, é a crise do sistema e não a propriedade privada.

A disputa ao qual me refiro é datada pelo período pré e pós – segunda guerra mundial (1940 – 1950), portanto, para não come-ter anacronismo e nem confusões conceituais, irei nomear por Kapitalismus aquele compreendido por Marx no século XIX e capi-talismo tecnoburocrático (ou capitalismo tardio) [spätkapitalis-mus1], o período ao qual analisamos, [ou seja o contexto histórico

1 O termo em alemão Spätkapitalismus pertence a Horkheimer e é traduzido por capitalismo tardio.

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de Friedrich Pollock e Franz Neumman e da efervescência do pensa-mento frankfurtiano – teoria crítica], de modo que usarei o conceito de capitalismo monopolista para me referir à teoria de Neumman e capitalismo de estado para me referir a teoria de Pollock. Nesse sen-tido, capitalismo puro e simplesmente é para o presente trabalho um termo de múltiplos significados e, portanto, indeterminado. Assim, o objetivo desse trabalho, além de almejar uma crítica da teoria do valor, constitui-se acima de tudo pela compreensão da evolução do conceito capitalismo.

A respeito da evolução do capitalismo, podemos brevemente situar esse conceito em seu contexto histórico. O termo cunha-do por Marx faz referência ao modo de produção de livre merca-do, tendo como motor a tensão entre as classes. Logo, a guinada industrial apropriou-se não só dos meios de produção mas tam-bém de distribuição culminando na era do Kapitalismo industrial [Industriekapitalismus]. A ênfase na distribuição2 concatenou os produtores industriais, de maneira que a produção e a distribuição foram reguladas através do monopólio, podendo ser ou não esta-tal. Assim sendo, o kapitalismo industrial tornou-se capitalismo monopolista. A intensificação do monopólio através da burocracia estatal e cartelizada dos meios de produção e distribuição, somados com a experiência de duas guerras mundiais e uma grande crise do capital em 1929 – queda da bolsa de valores de Nova York – vislum-braram na experiência nascente do Welfarestate [Estado-de-bem-estar-social]. Ou seja, da necessidade do controle3 das crises. Este novo olhar dar-se-ia através do controle estatal dos meios de pro-dução; uma fusão total entre monopolistas, estadistas e elite militar, de modo que o capitalismo atingiria o seu limite. Este capitalismo regulado e limitado é chamado capitalismo de estado, de maneira

2 Distribuição – Faz referencia ao conceito de distribuição de riquezas (logo, a distribuição de produção).

3 Nota-se que o controle estatal experenciado pelo nacional-socialismo durante a segunda guerra mundial, serviu de base para o controle exercido durante a fase do Welfarestate. Desse modo, os conceitos de regulamentação e controle unem-se no mesmo significado. Isso quer dizer que o estado de guerra e o estado de bem estar social, são separados por uma linha extremamente tênue.

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que a gênese econômica do kapitalismus torna-se eminentemente política. Nota-se já nesse pequeno esboço que os conceitos vão se unindo como um átomo em formação. Considere que a política seja o núcleo com cargas (positivas), e que nela vão se agregando partículas (negativas)4 como: controle, regulamentação, distribui-ção, burocracia. Assim, como em um átomo, conforme as partículas aderem ao seu núcleo, as cargas vão se anulando até se tornarem um núcleo neutro, um átomo constituído, seu núcleo e sua quantidade de partículas permanecem iguais. Como na sociedade, a política atrai novos conceitos para que ela possa se constituir tal como um átomo sólido; com muita atividade energética, tensão negativa e positiva, mas firme, sem a possibilidade de quebra. Isto é, sem a possibilidade de uma crise. Mas, a política, assim como um átomo, se determinada quantidade de matéria for superior ao seu núcleo, ocorre uma rea-ção que ocasiona em uma explosão5. Nesse sentido, percebe-se que o estado do welfarestate é aquele em que o núcleo político está em extrema atividade atraindo toda categoria possível para que este evite uma crise. Desse modo, o capitalismo de estado seria um átomo for-mado, enquanto o monopolista seria aquele a espera da quantidade extra de matéria, o suficiente para fazê-lo explodir. Ou seja, o con-ceito de kapitalismus, tal como compreendido por Marx, distanciou de sua origem, de modo que não se pode afirmar, em um primeiro momento, em que espécie de capitalismo estamos atualmente. Por isso, me debruçarei nessas últimas fases do capitalismo – monopo-lista e de estado – para compreender se o sistema econômico ao qual denominamos capitalismo pode ser assim chamado. Ou em uma linguagem crítica, pode o capitalismo alcançar o seu fim?

O fetichismo do fetiche

Ao tomar como ponto de partida uma metodologia teórico--crítica, ou seja, partindo do pressuposto de uma crítica imanente

4 Não tem conotação negativa, o exemplo é apenas para ilustrar uma carga contrária ao núcleo que o atrai.

5 Princípio da bomba atômica.

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em direção a uma dialética negativa, o primeiro ponto de destaque deve ser a mudança de enfoque no Instituto de Pesquisas Sociais [Institut für Sozial Forschung] frente ao advento do fascismo. Isso quer dizer que a metodologia do instituto sofrerá grandes alterações em decorrência do desenvolvimento acelerado político e econômi-co, principalmente no que se refere à situação da Alemanha, dos Estados Unidos e da União Soviética no período do pós-guerra. O resultado disso é o livro escrito conjuntamente por Max Horkheimer e Theodor Adorno, Dialética do Esclarecimento – a situação da teoria e da práxis política no capitalismo tardio (Spätkapitalismus).

A fase dos anos 1940 também é conhecida como fase pessimista da teoria crítica, devido ao modo como “[...] a teoria do capitalismo monopolista e de estado [se tornaram] o pano de fundo de todo o pessimismo da teoria crítica, porque traz a idéia de que o capita-lismo ganhou para sempre a batalha.” (JAPPE, 2003). O artigo de Horkheimer (1978, p.96), The autoritarian state, anunciava o obscu-recimento da razão – nas palavras dele “O capitalismo de estado é o estado autoritário do presente.” Para ele, conta Jappe em uma entre-vista, o kapitalismo conseguiu acabar com as suas contradições, nesse sentido, o Estado tinha o controle direto da produção, garantindo a sobrevivência do capitalismo sem as suas crises. Ou seja, diagnosticar um sistema sem crises é o mesmo que afirmar que é impossível uma mudança6 de sistema. Isto quer dizer que a teoria crítica se abdica de seu potencial transformador para tornar-se um método de diagnose. Seu paciente: a sociedade, sua patologia: sistema capitalista sem cri-ses, diagnóstico: a ser concluído, tratamento: não tem.

“O capitalismo não é outra coisa senão a incessante “valoriza-ção do valor”, aparecendo como fim-em-si-mesmo de transformar

6 Optei por usar mudança de sistema, no lugar de transformação social, porque o capitalismo está em constante mutação, logo em constante transformação. A transformação social deve ser compreendida nos moldes marxistas de abolição da propriedade privada, o qual necessita de uma crise (do sistema, seja ele qual for) para haver transformação. Como ainda não foi possível dizer exatamente em que tipo de sistema estamos analisando, ou que tipo de capitalismo se encontra a sociedade, usarei mudança, para reportar a alteração na ordem dada.

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dinheiro em mais dinheiro.” (KURZ, 2005). Essa citação de Kurz anuncia a intensidade ao qual o rumo do capitalismo tomou. Ou seja, se na era do Kapitalismo industrial o valor já era a medida abs-trata e, portanto, distanciada da medida “real” do trabalho – força de trabalho- hoje, no capitalismo tardio, a medida é a de abstrair a abstração. Desse modo, a produção como objeto catalisador de lucro se esvazia, de maneira que o protagonista, na era do capitalis-mo tardio, passa a ser o lucro sobre o lucro. Isto é, como enriquecer sem produzir? Ou em uma linguagem marxiana, como acumular propriedade privada (mais valia), sendo que a propriedade privada tornou-se uma abstração? Como obter valor sem lastro?7

Tomando como ponto de partida a valorização do valor, com-preender a dimensão conceitual do capitalismo tornou-se uma tarefa árdua e de indeterminação eminente. A causa disso é a aceleração tecnológica mundial, que comparativamente ao seu florescimento – revolução industrial – ultrapassou rapidamente os níveis imperialistas e globais, tornando-se hoje capitalismo galaxial. A escolha do termo galaxial, diz respeito ao limite do conhecimento fenomenológico do universo. Ou seja, no sentido científico do termo, o limite ao qual o homem já conseguiu dominar. Se, na era industrial, a automatização dos objetos sobre rodas era um sonho futurista, hoje, conhecer a Via Láctea, passar uma ‘temporada” na lua e contribuir com o aumento do buraco na camada de ozônio são apenas uma amostra da potência galaxial8 do poder de dominação e de aceleração do aparato tecnoló-

7 Sobre esse aspecto podemos fazer um paralelo com a crise nos EUA em 2008 e entender como uma elite financeira conseguiu produzir lucro sem produção. Ver derivativos e crise. A engenhosidade encontra-se na desregulamentação do mercado financeiro, enquanto o mercado econômico é regulado. Embora Marx já tivesse alertado sobre a relação da propriedade privada e juros, ele não podia imaginar que o mercado se dividiria, criando toda uma inovação em produtos financeiros. Isto é, produtos sem lastro, sem produção, mas com alta lucratividade. Não é a toa que a crise de 2008 é especial, porque a crise não foi na produção, não foi em cima da categoria de trabalho e trabalho explorado, e sim sobre o capital abstrato e inexistente. Como abolir a propriedade privada, se ela se deslocou do sistema de produção?

8 Embora, o conceito aqui utilizado – capitalismo galaxial – possa representar uma distância muito grande entre o nível global – para o espacial (utilizei o

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gico, do homem e conseqüentemente do capitalismo. Mas o que isso significa? Significa que o conceito de Kapitalismo industrial pensado como aquele que “produz” a necessidade da humanidade foi de longe ultrapassado.9. Se para Adorno e Horkheimer a indústria cultural era o resultado da explosão industrial, advinda da necessidade do homem de dominar o mundo, o que diriam eles sobre a conquista do homem sobre o espaço?

Na parca medida em que, num tempo em que o sistema em vigor já parece dispensar qualquer tipo de legitimação, ainda vai havendo quem pense de um modo reflexivo, esse mesmo pensa-mento releva de um caráter estranhamente anacrônico. Tal não só se aplica ao respectivo conteúdo como igualmente às catego-rias em que esse conteúdo se apresenta. Da mesma forma como existem crescentemente novos e gritantes contrastes sociais, os quais, no entanto, já não são passíveis de serem explicados com o recurso a modelos sociológicos claros e inequívocos ou a con-ceitos de classe, da mesma forma podem ser observados novos conflitos econômicos, conflitos culturais e guerras de escala glo-bal que já não podem ser descritos com os conceitos tradicionais das políticas econômica, interna e externa. Embora o assim cha-mado debate da globalização conduzido desde o início dos anos noventa (a coincidir aproximadamente com o colapso da União Soviética) se aperceba de uma série de fenômenos novos, estes continuam a ser passados pelo vetusto crivo categorial, visto não se encontrar à disposição nenhum outro sistema de refe-rência conceptual. Assim constata-se, por um lado, uma perda de significância da política e um desvanecimento da soberania dos estados, se bem que se teime, por outro, em exprimir essas manifestações empíricas recorrendo aos conceitos tradicionais da política e das relações entre estados. (KURZ, 2003, p.11).

Tomando em consideração o seu sentido clássico, em que o sis-tema capitalista é representado sobre a forma progressista de cresci-

termo galaxial para que o mesmo não seja confundido com espaço no sentido de lugar ou de tempo e sim no âmbito macro de espaço intersideral).

9 Para aqueles que acham que uma viagem ao espaço é um sonho ‘futurista”, agora já é possível comprar sua passagem para o espaço e com desconto (SITE..., 2011).

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mento econômico em seu sentido quantitativo e qualitativo de vida, ou seja, um sistema que trilha o poder de dominação universal da natureza das coisas, o termo também acompanha a ideia de Kurz sobre o caráter estranhamente anacrônico, acima citado, que asse-gura a tese sobre a eminente indeterminação do conceito capitalis-mo. Uma das tendências desse tipo de capitalismo galaxial seria a aparente ausência de mercado. A fim de compreender esse problema é preciso remontar à teoria de Friedrich Pollock e Franz Neumman. A partir dela, podemos nos aproximar dessa tendência conceitual que seria o capitalismo galaxial.

Fascismo e capitalismo: as duas faces da mesma moeda

Partindo da dimensão do WelfareState é preciso perguntar como o Estado-de-Bem-Estar-social conseguiu conciliar, de forma aparen-temente pacífica, dois conceitos que são ontologicamente incomuni-cáveis: capitalismo e democracia, isto é, a ideia de uma sociedade regulada pelo Estado, mas que apresenta na realidade efetiva a jun-ção daquilo que teoricamente se apresenta como um abismo entre suas compreensões. Considerando, dessa maneira, que a idéia de capitalismo remete aos moldes de uma economia monopolista e a democracia a uma economia de todos, como pode um conceito que prevê acumulação do capital conviver pacificamente com outro que prevê a sua distribuição?

A ideia de um Demos [povo] governante de sua própria Kratia [realidade social] é conflituosa com a idéia de capitalismo que prevê, dentro de seu arcabouço conceitual, o lucro como essência mante-nedora do sistema. Ou seja, a existência de uma classe dominante é essencial para o funcionamento do modo de produção. Lucro é sinônimo de dominação, de modo que, o conceito de lucro sempre vem acompanhado, em sua essência do conceito de exploração do trabalho. Isso significa que uma sociedade na qual o povo é “dono” dos seus meios de produção é inviável com a idéia de um capitalis-mo dominante. “Não existe um capitalismo governado pelo poder popular no qual o desejo das pessoas seja privilegiado aos dos impe-rativos do ganho e da acumulação e, no qual, os requisitos da maxi-

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mização do benefício não ditem as condições mais básicas de vida.” (MEIKSINS, 2007, p.3).

Ao analisar os conceitos de democracia e de capitalismo, por meio de seus vieses histórico e ontológico, é possível concluir, em primeira estância, que historicamente a democracia nunca, de fato, ocor-reu. Em toda a sociedade, inclusive aquelas ditas socialistas e comu-nistas, a riqueza e o poder sempre estiveram concentrados nas mãos de uma pequena elite; essa elite, ao concentrar a riqueza, acaba tendo acesso privilegiado ao poder. O que significa que o “povo” nunca de fato governou ou governará. Essa conclusão independe da forma de governo, isto é, mesmo que ela seja legalmente democrática. Os governos ditos democráticos são aqueles que elegem os membros que legislarão e executarão a vontade do povo. Ao menos na teoria, já que historicamente os governantes eleitos tendem a se unir com a elite dominante, corrompendo a vontade do povo em benefício do inte-resse próprio e da minoria. Ontologicamente, a democracia é aquela que garante ao cidadão o poder, não obstante, a ideia de cidadão já parece ir contra a noção de democracia. O termo, quando fora for-jado, na Atenas de Platão e Aristóteles, já incluía o privilégio dentro do próprio sentido. Pois só eram considerados cidadãos aqueles que possuíam alguma forma de propriedade privada. Aristóteles definia a democracia como aquela em que “os nascidos livres e pobres contro-lam o governo” (ARISTÓTELES, 2003 apud WOOD, 2007, p.4). Porém os livres e pobres, neste contexto, eram aqueles que embora tivessem uma renda precária eram ao menos donos de sua força de trabalho. Nessa medida, o termo já é ele mesmo contraditório, e talvez seja devido a esta contradição que, historicamente, a demo-cracia nunca de fato ocorreu, pois sua etimologia é incomensurável com a realidade.

Adam Przeworki em seu livro Capitalismo e social-democracia, faz uma análise daquilo que foi considerado o Estado de Bem-Estar social, situado no contexto dos anos após a II guerra mundial – o contexto ao qual chamamos de capitalismo tardio, também chamado de “anos de ouro”. O objetivo do Estado de Bem-Estar social não era nada simples; trava-se de um “programa” de contenção de crise, ou seja, um planejamento de como se evitar os grandes colapsos

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econômicos, como das crises de 1929 e 1932. A política do Estado de Bem-Estar social se encontra sob a base do arranjo econômico keynesiano que conseguiu unir capitalismo e democracia como solução ao desemprego. Para Keynes o desemprego existia devido à insuficiência de demanda.

Dado o estoque de capital existente, o produto real sempre poderia ser acrescido por meio de aumentos salariais, transfe-rências aos pobres e gastos do governo ou com a redução de impostos. Como a elevação da produção implica o aumento da taxa de utilização dos recursos, as mesmas políticas diminuiriam o desemprego. (PRZEWORSKI, 1995, p.246)

Ou seja, cria-se uma sensação de democracia, pois as políticas aparentam estar voltadas para a população. Os pensadores clássicos como Weber e Marx, em suas análises, já conseguiam prever, de cer-ta forma, o espaço ao qual a tecnologia iria assumir nas sociedades contemporâneas10. Mas é com os Frankfurtianos11 que a perspecti-va de uma sociedade tecnológica alcança patamares de um Estado Autoritário. Sob a base de um Capitalismo de Estado, a sociedade se desenvolve sob o paradigma da repressão:

O Capitalismo de Estado seria, por conseguinte, uma forma social que teria superado principalmente a contradição de forças produtivas e relações de produção, mas não por causa do livre acordo dos produtores associados. A coesão de uma tal sociedade é assegurada muito mais através de permanente controle e repressão de uma elite política que resultou da fusão do interesse econômico com o nacional. Nela uniram-se os magnatas da economia com os mais poderosos militares assim como os quadros da política e da burocracia em uma camarilha (Clique) que coloca em xeque o resto da sociedade. (TÜRCKE; BOLTE, p.45).

10 Compreende-se contemporâneo o século XX até os dias atuais. 11 Escola de Frankfurt composta pelos pensadores (Max Horkheimer, Hebert

Marcuse, Theodor Adorno, Walter Benjamim, Friedrich Pollock, Franz Neumman, Eric Fromm, Leo Lowental)

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Como já dito anteriormente, para Max Horkheimer, o que apre-senta o capitalismo é o Estado autoritário do presente. O Estado Autoritário é aquele que ultrapassa as barreiras do liberalismo, um Estado em que a possibilidade da “extreme freedom”, tão defendida na época do iluminismo, é eliminada. Acaba-se assim com qualquer possibilidade de liberdade. Se no capitalismo monopolista a visão liberal de mercado evocava uma não liberdade – sendo que estas esta-vam submetidas às leis de mercado – agora, no capitalismo tardio, a liberdade é totalmente eliminada, pois todas as leis do mercado são liquidadas. Dessa forma, O Estado autoritário intensifica o sistema de massificação da sociedade, que se direciona para uma uniformiza-ção do todo social (SILVA, 2002, p.94). Como afirma Horkheimer no texto Egoísmo e Emancipação:

Nos Estados totalitários do presente, nos quais o conjunto da vida espiritual é definido exclusivamente do ponto his-tórico da condução das massas, os elementos contínuos e humanistas da moral são deliberadamente abandonados e os fins do indivíduo são declarados fúteis frente a tudo aquilo que o governo respectivamente designa como objetivo geral. (HORKHEIMER, 1988, p.14).

O que Horkheimer e Pollock (POLLOCK, 1978; NEUMANN, 1977) mostram nos estudos feitos acerca do Capitalismo Tardio, é a homogeneização de todo o sistema econômico que aniquila todas as possibilidades de concorrência. Nesse sentido, o mercado perde sua função enquanto organismo, uma vez que a circulação do capital é eliminada. Não são mais as leis internas do mercado que operam o sistema, mas sim um grupo de pessoas (Racket – gangues) e/ou o Estado. Dessa maneira, inicia o primado da política em relação à economia. Nas palavras de Horkheimer:

No capitalismo tardio e na impotência dos trabalhadores diante dos aparelhos repressivos dos Estados autoritários, a verdade se abrigou em pequenos grupos dignos de admiração, que dizima-dos pelo terror, muito pouco tempo tem para aprimorar a teoria. Os charlatões lucram com isso e o estado intelectual das massas retrocede rapidamente. (HORKHEIMER, 1988b, p.159).

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Mas é com Keynes que a junção de tecnologia e capitalis-mo toma forma democrática, uma democracia que, para os Frankfurtianos, é autoritária e ideológica, mas que, mesmo assim, é a via de sustentação do Estado de Bem-Estar Social. A tecno-logia passa a ser o motor da circulação do mercado e não mais as leis de livre mercado. Isto significa que a dominação da classe sai de cena abrindo espaço para a relação entre o poder estatal e a elite política. Nesse sentido, a relação entre capitalismo e democracia ocorre no âmbito dos direitos políticos universais que garantem a sociedade sua parcela democrática dentro da via do capitalismo selvagem.

Muitos autores insistem em afirmar que a relação entre capita-lismo e democracia é incompatível se tomar como referência o con-ceito tradicional de democracia como aquela em que o povo gover-na. Mas, com uma olhar mais profundo sob o conceito, podemos dizer que os termos não são tão incompatíveis assim. Esse povo é por excelência dono de sua força de trabalho, embora a dinâmica do modo de produção exija que este trabalho necessariamente ocor-ra, o povo é de alguma forma “dono” de uma parcela da produção. Ele tem algum tipo de propriedade privada, mas é um produto sem mais-valia12. O cidadão para participar da democracia deve pos-suir algum tipo de propriedade privada. Essa propriedade privada revertida em salário, é novamente revertida em contribuições ao sistema. O cidadão torna-se um contribuinte, ele contribui através da lógica do consumo, do qual uma parcela significativa é deduzida na forma de impostos que devem ser utilizados na melhoria do bem-estar. Se todo cidadão é um contribuinte por natureza, logo ele é um facilitador do capitalismo, ele não só impulsiona o siste-ma como usufrui do mesmo. Nesses termos podemos dizer que o conceito de democracia e capitalismo, não são contraditórios, pois ambos impulsionam o lucro, nos dois lados da pirâmide, através da mais-valia e através do consumo, sendo que quando regulado pelo Estado ambos passam a ser contribuintes da mesma causa, o Bem-Estar Social.

12 Ver: mais-valia relativa.

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O capitalismo se encontra em um momento de transição históri-ca que se inicia com a superação do capitalismo liberal do século XIX e assume uma forma nova de capitalismo burocratizado do século XX (POSTONE, 2008). Não se trata somente de uma transição histórica mas de uma mudança na natureza do conceito capitalismo. Essa nova natureza do capitalismo não se restringe as análises do sistema capitalista de mercado mas também analisa a influência sub-jetiva que se objetiva no mercado das relações sociais. Isso quer dizer, de um corpo afirmativo que interfere nas leis do sistema econômico. Essa mudança em sua essência não é visto pelas consequências que a natureza da dominação do mercado traz, mas, por meio de como ela domina. Ou seja, através de uma racionalidade operacional13; que ganha força e destreza devido ao forte desenvolvimento tecnológico consequente da II Guerra Mundial. Essa mudança ocorre devido à barbárie que se instala ocultamente nessa nova fase do capitalismo. Uma barbárie que não é feita de armas. Não diz respeito a uma socie-dade tribal em que o desenvolvimento da História é determinado no “olho por olho, dente por dente”. A barbárie permanece oculta; ela se instaura mediante uma selva de eletrodomésticos que ditam a necessidade do seu uso na autoconservação do indivíduo14. Como diz Horkheimer (1988a, p.275).

13 Razão Instrumental – se trata de uma Razão que tem como finalidade o domínio da natureza, um agir mediante interesse, por isso uma Razão de meio e não de fim; ela é o instrumento pelo qual se alcança a finalidade pretendida.

14 Como alguém pode viver sem pão torrado de manhã, cereal processado, leite batido. O uso de tais produtos se tornaram indispensáveis para a sobrevivência. A selva dos eletrodomésticos diz respeito ao poder estatal frente à economia, como podemos observar, no ano de 2009, no Brasil, em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reduziu o valor dos impostos sobre a mercadoria, na tentativa de conter a crise mundial, estimulando vários setores da economia. Devido a isso, as pessoas correram às lojas comprando compulsivamente, batalhando olho por olho, dente por dente, como bárbaros de uma sociedade operacional. Essa é a verdadeira barbárie, em que o

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A luta concorrencial na época do Estado totalitário não é mera-mente pelo Mercado mundial, mas também se tornou mais inescrupulosa e selvagem no interior dos povos. Os momentos ruins do liberalismo proliferam continuamente e de maneira exuberante no presente, enquanto que os bons se dissolveram em sua crítica.15

A barbárie e a falsa ideia de liberdade eliminam a possibilidade da crítica, levando consigo a possibilidade de exercer a autonomia, consequentemente de uma transformação social. Essa autonomia sem valor se constitui como pano de fundo do capitalismo tardio. Uma economia comandada pela autoridade, por isso chamada de capitalismo de estado. A obra State Capitalism: It possibilities and Limitations (1942), de Friedrich Pollock (1978), diz respeito ao pro-cesso de transformação do capitalismo privado em capitalismo de estado, que culmina nas esferas totalitárias do Nacional Socialismo. A teoria do capitalismo de estado não se refere unicamente a uma forma de totalitarismo, pois o mesmo também se apresenta em uma vertente democrática. A palavra capitalismo de estado, explica Pollock, é usada sob outras formas:

Estado organizado, propriedade privada, sociedade de gestão, capitalismo administrativo, coletivismo burocrático, econo-mia do estado totalitário, capitalismo de status, neomercan-tilismo, economia de força, socialismo de estado, são um conjunto de etiquetas muito usado para identificar o mesmo fenômeno. A palavra Capitalismo de Estado (como argumen-to) é possivelmente enganosa na medida em que poderia ser compreendida como para denotar uma sociedade onde o Estado é o único proprietário de todo o capital, e isso não é necessariamente compreendido por aqueles que a usam. (POLLOCK, 1978, p.72).

Para Pollock, quatro características definem o capitalismo de esta-do em relação ao marxismo tradicional:

indivíduo não se dá conta de que ele foi induzido a consumir tal produto: ele acredita que é livre para fazer tal escolha.

15 Tradução de Rafael Cordeiro Silva.

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Tabela 1 – Diferenças entre Capitalismo de Estado e Marxismo Tradicional

Capitalismo de Estado (POLLOCK, 1978, p.72)

Marxismo Tradicional (POSTONE, 2008, p.220-221)

O Capitalismo de Estado é o sucessor do Capitalismo privado.

Identifica as relações de produção capi-talista com o Mercado e a propriedade privada.

Que o Estado assume importante papel no Capitalismo privado.

Considera a contradição básica do Capitalismo como aquela entre a produ-ção industrial, por um lado, e o Mercado e a propriedade privada, por outro lado.

Que os interesses pelo lucro continu-am a desempenhar um papel signi-ficativo.

A transformação acontece no modo de distribuição e não no modo de produ-ção- isto significa que a escala industrial permanece na sociedade socialista.

Que isto não é uma forma de Socialismo.

O trabalho é compreendido como ativi-dade mediadora entre os seres humanos e a natureza. O processo de transforma-ção da matéria prima em objeto, culmi-nando no processo de fetichização da Mercadoria. Trabalho no sentido onto-lógico no qual se vincula a unidade do Ser social.

Fonte: Elaboração própria.

Tendo como pressuposto a tabela acima, percebe-se que o capi-talismo de estado de Pollock modifica as categorias de mercado. Sua nova visão econômica da sociedade diz respeito a uma mudança ontológica nos modos de produção e distribuição. A produção e a distribuição são controladas diretamente pelo governo, de tal forma que a liberdade de comércio é praticamente abolida. Dessa forma, segundo (POLLOCK, 1978), o mercado autônomo desaparece. A maneira pela qual o estado controla o mercado é concebendo um tipo ideal de “pseudo- mercado”, no qual toda a área da produção e da distribuição é coordenada de acordo com o consumo. Porém, esse consumo é ditado pelo estado. A lei da oferta e da procura perde completamente o seu status enquanto lei econômica. Caso ela ainda tivesse validade, a produção e o uso de recursos só seriam utilizados

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de acordo com a demanda, mas, no capitalismo de estado, o empre-go de todos os recursos se transforma em premissa necessária para o funcionamento do “pseudo Mercado”. Como afirma Pollock (1978, p.73), “[...] o Estado transgride todos os limites estabelecidos para suas atividades nos tempos de paz.”- é como se vivêssemos em uma economia que visa os tempos de guerra o tempo todo. O uso de todo recurso natural é uma consequência da tecnocracia que se instaura. O capitalismo de estado, enquanto regime governamental, é a única forma que se adapta à “era da sociedade tecnológica.” A tecnologia é arma para um pseudo-desenvolvimento social, ao qual, sob o falso slogan de acabar com o desemprego, exerce controle econômico sobre todas as esferas. O que, por sinal, é ideologicamente suficiente para manter as estruturas sociais.

Esse poder estatal ocorre de formas diferentes em suas duas variantes: totalitária e democrática. No capitalismo de estado tota-litário, esse poder é restrito ao alto escalão da burocracia, já no capitalismo de estado democrático, o poder se fixa na burocracia das instituições estatais e por meio delas agem de forma totalitária. Como mostram Türcke e Bolte (apud SILVA, 2002, p.97):

O Capitalismo de Estado seria, por conseguinte, uma forma social que teria superado principalmente a contradição de forças produtivas e relações de produção, mas não por causa do livre acordo dos produtores associados. A coesão de uma tal socie-dade é assegurada muito mais através de permanente controle e repressão de uma elite política que resultou da fusão do interesse econômico com o nacional. Nela uniram-se os magnatas da eco-nomia com os mais poderosos militares assim como os quadros da política e da burocracia em uma camarilha que coloca em xeque o resto da sociedade.

A fraqueza da visão antiga do mercado consiste em focalizar a produção de acordo com as necessidades dos homens. No capi-talismo de estado, a necessidade é ditada pelo estado. Ela não é uma produção dos homens, mas uma imposição. Nesse sentido, os homens perdem o seu papel enquanto sujeitos da História. Diante dessa configuração, o capitalismo de estado exige um novo conjunto

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de leis (POLLOCK, 1978). Esse novo conjunto de regras combina velhas e novas leis, porém com outros significados. Basicamente, as regras são para direcionar o capitalismo de estado rumo a uma eco-nomia planificada. A planificação da economia consiste em destinar a finalidade para os recursos. Contudo, como Pollock alerta, isso não implica, necessariamente, em que todo recurso tenha destino certo. Ou seja, que toda finalidade seja planejada antes de chegar ao consumidor. A planificação é contemplada na esfera das necessida-des. Isso quer dizer que uma sociedade planejada acontece não no nível econômico, mas na esfera política. Assim como Pollock (1978, p.75, tradução nossa) explicita a respeito da interferência política e arbitrária na produção:

Na esfera política, os princípios a serem aplicados para decidir quais as necessidades terão preferência, quanto tempo será gasto para o trabalho, quanto do produto social deve ser consumido e quanto usado para a expansão, etc. Obviamente, essas deci-sões não podem ser completamente arbitrárias, mas são em um amplo grau depende dos recursos disponíveis.

O valor do produto e do trabalho não é consequência dos modos de produção, mas de uma decisão administrativa. Ou seja: o valor perde seu valor. Ele não existe mais enquanto categoria ontológica, nos moldes da economia política de Marx. Esse sistema de “escolha do valor” tem por objetivo eliminar qualquer possibilidade de um mercado autônomo, tal como em sua época liberal. É uma forma de assegurar o monopólio e destruir qualquer indicativo de concor-rência. Em suas formas totalitárias, o interesse pelo lucro tem lugar significativo dentro do plano da economia planificada, mas, ainda assim, em sua forma final o interesse privado é incorporado no plano geral. Independentemente da forma pela qual o lucro é visado, ele é peça chave para a manutenção do sistema, além de ser um incentivo para a sua manutenção (POLLOCK, 1978). Apesar disso, esse lucro dentro da esfera privada não pode ultrapassar os limites a que o Estado se propõe. Novamente, o capitalismo de estado, embora esti-mule os lucros, não é liberal- a lei do laissez-faire não é premissa do arranjo econômico e a “liberdade” de lucro é inteiramente mediada

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pelo estado. Todavia, isso não significa que os estados totalitários ou democráticos nacionalizam todo o tipo de produção. No entanto, sob uma forma totalitária, como a que emergiu na Alemanha nazis-ta, o estado é o instrumento de poder do novo grupo governante. Por essas razões, o capitalismo de estado é a representação de uma sociedade racionalizada, tal como Horkheimer indica em O Eclipse da Razão, The End of Reason e The Authotritarian State, ou seja, a passagem da primazia da economia para a primazia da política.

O capitalismo de estado, ao fazer uso de todo o aparato tecnoló-gico, produz quantidades ilimitadas de produtos, mas não sabe como produzir suas mercadorias no sentido qualitativo. A qualidade dos produtos, como mostra Pollock (1978), seria o enigma capitalismo privado16. São pelos meios de distribuição que a relação entre pro-dutores e consumidores ocorre. Entretanto, essa relação definida nos moldes de uma sociedade planificada é completamente arbitrária já que a decisão de como será distribuída, assim como o valor definido por produto, é uma deliberação do estado e não do mercado. O mercado, afirma Pollock (1978), é tirano. A indústria organizada em cartéis e suas mercadorias sendo distribuídas de acordo com o plano do governo garantem a manutenção do capitalismo de estado, do lucro certo e, consequentemente, do controle da crise. Caso a indús-tria ameace entrar em crise, o governo rapidamente injeta capital público para contê-la. Uma indústria à beira de uma crise significa desemprego. Se a premissa do capitalismo de estado é “full employ-ment”, conter qualquer possibilidade de crise é necessário, afim de que se possa manter a organização de uma sociedade planificada.

Desse modo, deve haver uma harmonia entre desenvolvimen-to tecnológico e trabalho. Todavia, essa economia planificada tem seus limites definidos na escassez de recursos. Por isso, ela é mais bem utilizada em países que estão em guerra ou se preparam para entrar em uma, pois, nesse tipo de situação o capitalismo privado é forçado a seguir o plano do governo. Uma economia voltada para

16 Talvez uma solução do enigma se apresente na relação entre produção com lastro e lucro sem lastro (produtos financeiros), mas ainda se apresenta apenas como uma suposição a ser desvendada.

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a guerra exige que os meios de produção preparem o estado para os tempos difíceis. Desse modo, o uso de todos os recursos é necessário, pois armazena todas as mercadorias possíveis visando os tempos de guerra. Essa é uma estratégia apropriada para os países destruídos financeiramente, como foi o caso da Alemanha de Weimer. Nenhum setor emprega tanto quanto a indústria da guerra. Contudo, o estado de guerra é sempre devastador, economicamente, tanto para quem ganha a guerra, quanto para quem perde. O fato da indústria da guerra ser o maior setor empregatício não deve ser encarado como solução dos problemas econômicos mundiais, pois seria humana-mente inaceitável viver em um estado de exceção.

O controle dos meios de produção e distribuição interfere pro-fundamente na qualidade dos produtos, pois a busca pelo lucro exige do produtor uma baixa na qualidade, fazendo com que os produtos manufaturados alcancem preços abusivos. Dessa forma, os produtos manufaturados são retirados da concorrência. O consumidor, fren-te a essa situação, se vê obrigado devido suas condições materiais, a submeter-se ao cartel. Decorre que uma economia planificada é menos produtiva que uma economia de livre mercado (POLLOCK, 1978). Moishe Postone (2008, p.216, grifo nosso) crítica a prima-zia da política de Pollock ao argumentar que sua “[...] análise do capitalismo de estado era estática: ela apenas descrevia tipos ideais. Nenhuma dinâmica histórica imanente, a partir da qual a possibili-dade de outra transformação social foi apontada.” É preciso discordar com Postone sobre a necessidade de formular uma nova fase sobre a possibilidade de uma transformação social diante do problema da contradição, tal qual prevê a dialética marxista. Ele aponta que o problema da primazia da política consiste em não ter contradição, enquanto que a economia, tal como se posiciona o marxismo tra-dicional, é “contraditória e dinâmica”. Não é contraditória, por-que não é pra ser contraditória. O objetivo da economia planificada consiste justamente em cessar o momento da crise ao interromper o momento da contradição. Se Pollock apresentasse uma possibilidade de transformação ele estaria negando toda a sua tese a respeito do capitalismo de estado; no capitalismo de estado não pode ter contra-dição. A inversão ocorre justamente na dialética marxista, que cessa o

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momento da contradição, encerrando também o momento da crise. O capitalismo de estado tem apenas um lado, o do controle absoluto.

A tese a que se deve ater é que a revolução que Marx previa não ocorreu (SCHMUCKER, 1977 apud NOBRE, 1998). Quando o estado controla a propriedade privada, isso significa que ela foi abolida, contudo, isso não resultou em uma sociedade e/ou estado socialista. O conflito marxista gira em torno do aspecto econômico da estrutura social, que, para Pollock, tende para uma despolitiza-ção. Para Marx, uma despolitização do capitalismo apontaria para o declínio do mesmo, ao passo que uma politização apontaria para um socialismo. “Socialismo como primazia da política sobre a eco-nomia”. O desfecho apresentado por Marx indica uma passagem ou para o socialismo ou para a barbárie, sendo essas as únicas possibi-lidades. Sabendo-se que o socialismo não aconteceu, já que a forma econômica subjacente é uma forma de economia planificada, resta ao capitalismo a imersão em uma forma de barbárie. Nesse sentido, é preciso perguntar o que é barbárie para Marx, visto que a socie-dade não aparente estar em uma civilização que age como Vickings e bábaros, pilhando e devastando as cidades. Nesse sentido, existe na barbárie uma forma de sociedade organizada, ou ela deve ser interpretada como caos?

Considerações finais

A História, como dirá Adorno, é história da violência e da domi-nação, que, por sua vez, seria a forma ao qual se encontra a economia monopolista. O que resta, nesse sentido, é a predominância da domi-nação sobre a troca (SCHMUCKER, 1977 apud NOBRE, 1998). O que, nas palavras de Pollock, seria compreendido pela primazia da política [dominação] sobre a economia [troca]. Na Dialética do Esclarecimento, Horkheimer e Adorno também denunciam o aspecto dominativo da sociedade que parece prevalecer sobre o caráter eco-nômico. A análise de Pollock teve a consequência muito importante, intencionada ou não, de indicar que as categorias marxistas quando pretendidas tradicionalmente, como Postone (2008) defende, não apreendem adequadamente as bases da dominação do capitalismo.

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Marcos Nobre (1998), em seu livro A aialética negativa de Theodor W. Adorno: a ontologia do Estado Falso, discute sobre as limitações da tese Pollockiana a respeito do capitalismo. Ele demonstra que o feedback por trás de todos os estudos sobre o capitalismo apresenta teorias sobre um sistema à beira de um colapso. A crise, enquanto problema central do capitalismo, é estudada devido à grande queda da Bolsa de New York em 1929. Baseadas nos estudos estatísticos, as teorias que assim seguem demonstram um sistema fadado a falhar. O colapso parece inevitável. Assim como as interpretações marxistas, tal como as de Lênin (1986a, 1986b) e a de Rosa de Luxemburgo (1970), ambos apresentam que toda análise pretendida sobre a acu-mulação do capital indica que o capitalismo irá quebrar. A quebra é o momento oportuno para a mudança de um sistema econômico. No entanto, sem a possibilidade de um colapso, já que o mercado e as leis econômicas desaparecem no capitalismo de estado, permanece a pergunta: Se o capitalismo de estado é um sistema sem crises, como pode haver uma transformação social? Ao que consta, até o presente momento, a tese Pollockiana não apresenta problematizações que culminem em um colapso, por isso, o estatuto ontológico do pro-blema muda. Nobre indica essa mudança com precisão. Ele indaga não sobre o colapso do capitalismo de estado, mas quais seriam suas limitações. A resposta de Pollock ao problema, embora não satisfató-ria, resolve ao menos o problema das categorias marxistas; ou seja, o limite ou o colapso, caso exista a possibilidade de ocorrer, não surgirá através de uma lei econômica, tanto no velho como no novo sentido como ele expõe (POLLOCK, 1975 apud NOBRE, 1998, p.28):

Precavidos que estamos não podemos descobrir quaisquer forças econômicas inerentes às coisas quaisquer ‘leis econômicas de velho ou novo tipo que possam ser obstáculo ao funcionamento do Capitalismo de Estado.

Em outras palavras, Pollock anula a crítica da economia polí-tica de Marx, uma vez que não existem problemas econômicos; como dito inúmeras vezes anteriormente. Em relação a esse aspecto, Marcos Nobre (NOBRE, 1998) interpreta o capitalismo de estado de Pollock tendo como referência um “planejamento consciente”.

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Nathalia Muylaert Locks

Nesse sentido, a Razão dominante do capitalismo de estado toma o corpo de uma Razão esclarecedora no sentido kantiano, de uma consciência que compreende e aceita através da Razão essa nova for-ma do sistema burocratizado. A palavra consciente aqui foi mal empregada por Nobre, uma vez que um sistema burocratizado e administrado é meramente operacionado por uma Razão instrumen-tal; enquanto instrumental, ela apenas faz parte da “cadeia de razões” da qual ela não é nem esclarecedora nem consciente. Ela é uma razão da qual não se tem como fugir; ela faz parte do sistema, ela é uma operação, assim como um cálculo matemático ou o preenchimento de um cadastro. Por isso, como Pollock (1978) mesmo afirma, os problemas do sistema estadista do capitalismo são meramente admi-nistrativos. Isso quer dizer que os limites do sistema serão mediados pela burocracia.

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Nathalia Muylaert Locks

SITE de compra coletiva oferece viagem ao espaço por R$ 95 mil. Folha de São Paulo, São Paulo, 18 dez. 2011. Disponível em: < http://f5.folha.uol.com.br/estranho/1022719-site-de-compra-coletiva-oferece-viagem-ao-espaco-por-r-95-mil.shtml>. Acesso em: 10 jul. 2012.

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Mande notíciasDo mundo de lá

Diz quem ficaMe dê um abraçoVenha me apertar

Tô chegando...

Coisa que gosto é poder partirSem ter planos

Melhor ainda é poder voltarQuando quero...

Todos os dias é um vai-e-vemA vida se repete na estação

Tem gente que chega prá ficarTem gente que vaiPrá nunca mais...

Tem gente que vem e quer voltarTem gente que vai, quer ficar

Tem gente que veio só olharTem gente a sorrir e a chorar

E assim chegar e partir...

São só dois ladosDa mesma viagemO trem que chega

É o mesmo tremDa partida...

A hora do encontroÉ também, despedida

A plataforma dessa estaçãoÉ a vida desse meu lugarÉ a vida desse meu lugar

É a vida...

A hora do encontroÉ também, despedida

A plataforma dessa estaçãoÉ a vida desse meu lugarÉ a vida desse meu lugar

É a vida...

Milton Nascimento e Fernando Brant (p1985).

Sociologia Econômica e Migração: realidades opostas?

Géssica Trevizan PERA Rogério Pereira de CAMPOS

Introdução

Em Bourdieu (1983), os “campos” se apresentam à apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições dos agentes nestes espa-

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Sociologia Econômica e Migração: realidades opostas?

ços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinadas por elas). Ainda segundo o autor, as leis gerais dos campos se apresentam enquanto leis de fun-cionamento invariantes, podendo atuar em campos completamente diferentes, como o campo da política, o campo da filosofia ou o campo da religião. São justamente essas leis de funcionamento inva-riantes que validam o projeto de uma teoria geral sem que esta seja tomada enquanto paradoxal. Deste modo, a partir da compreensão do funcionamento específico de determinados campos particulares, passa-se a dialogar e interpretar outros campos, superando assim, a antinomia entre a monografia ideográfica e a teoria formal.

Conforme Bourdieu (1983), uma vez que se estuda um novo campo, seja ele o campo da filologia no século XIX ou da moda nos dias de hoje ou da religião da Idade Média, descobrem-se proprie-dades específicas, próprias a um campo particular, e ao mesmo tem-po, essas propriedades contribuem para o avanço do conhecimento no que tange os mecanismos universais dos campos e também nos mecanismos que se especificam em função de variáveis secundárias.

Essa introdução básica sobre o conceito de campo de Bourdieu justifica-se à medida que este conceito fará parte de nossas reflexões sobre a forma como se dá a relação de imigrantes mexicanos no esta-do da Califórnia, tomando este último como um campo ou espaço social específico.

Imigrantes e “campos”

O aumento da preocupação acerca da relação trabalho/socieda-de nas estruturas contemporâneas é facilmente notado pela própria dinâmica que cada uma dessas equações desempenham nos espaços de socialização dos atores. A influência tanto do trabalho, quanto da sociedade na vida do indivíduo, não só se torna mais importante como também cria parte da concepção cultural, elemento primor-dial para se discutir sobre a construção do habitus dos indivíduos, segundo a noção de Bourdieu (2000). Ou seja, os indivíduos estão em constantes lutas para a busca do poder, da distinção, do reconhe-

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Géssica Trevizan Pera e Rogério Pereira de Campos

cimento e da legitimidade em determinado campo ou espaço social especifico. E não é diferente com os imigrantes, objeto deste texto.

Na nossa argumentação, apesar de não negarmos a existência do habitus, tal qual sugerido por Bourdieu, defendemos que, no objeto empírico aqui estudado, estamos mais próximos da concepção suge-rida por Weber (1991), ou seja, de instituições e modelos burocrá-ticos legais que visam dar sustentação à estrutura social do Estado e que são desfavoráveis para alguns indivíduos. Parece-nos que, no caso da migração, existe uma considerável desvantagem nas relações de poder entre os indivíduos migrantes e os descendentes da região.

Musgrove (1963) foi um dos principais estudiosos na área da migração, sofrendo influência de Weber em seu trabalho. Ele tinha como um dos principais argumentos a maior flexibilidade das eli-tes em termos de residência, no final do século XIX. Ou seja, a influência determinante regional deixou de ser ligada ao tempo de convivência do local e passou a ser das relações que poderiam ser estabelecidas e os benefícios decorrentes.

Levando-se isso em conta e considerando-se o caso da imigração, pode-se dizer que a posição que os indivíduos ocupam nos “cam-pos” pode ser influenciada por atores que possuam origens culturais comuns, que por sua vez, geram influência para todo o grupo. A definição do porta-voz (liderança) é resultado do nível de influência financeira, cultural e social, proporcionando grupos descristalizados territorialmente na sociedade dos Estados Unidos. Por essa perspec-tiva, a determinação geográfica deixa de ser determinante para ser apenas complementar. Além da determinação geográfica, contamos com variáveis sociais, culturais, politicas, etc. Os porta-vozes são possuidores de características singulares, habitus, que os levam a falar e agir em nome dos demais, já que o habitus é aquela singularidade que define cada autor, cuja singularidade seria resultado da sua tra-jetória social.

Considerando a idéia de “porta- voz” de Bourdieu (2000) argumentamos que, dentre os atores sociais de um grupo, sempre haverá em destaque alguns que serão tomados como líderes de influência (cultural, social, econômico, político, simbólico, etc.), cuja liderança tem como base tipos de recursos ou capitais adquiri-

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Sociologia Econômica e Migração: realidades opostas?

dos. Dessa forma, tornam-se os articuladores e porta- vozes dentro desses grupos de atuação.

Ainda sobre o capital – principal recurso de luta dos agentes e conceito importante na conceptualização de “campo”- esse possui valor simbólico que é relativo no campo, ou seja, o capital que tem valor num campo, pode não ter valor em outro campo. Em uma ideia pura sobre os conceitos, o dinheiro não teria valor algum den-tro de um santuário, assim como a oração ou idolatria não possuem importância efetiva em um banco ou na bolsa de valores, porém, nos seus devidos lugares, cumprem com eficiência suas funções.

Sempre é possível a desestruturação desses sistemas, principal-mente ao pensarmos em tipos ideais e puros. Para isso, mudanças conceituais e culturais são necessárias e reformulações internas dentro desses grupos. Junto a isso, faz-se necessário o surgimento de um novo ator (ou atores) social central com enfoque em outro capital diferente do presente para buscar essa alteração, o que Bourdieu chama de revolução simbólica. No nosso caso de estudo, a migração, que transformará a estrutura presente ou criará a condição necessária para a transformação. Essa instabilidade é condição primordial para o surgimento dessas mudanças ou o surgimento de novos atores e campos de poder.

No caso dos imigrantes ilegais estudados neste artigo, acre-ditamos que as condições sóciopolíticas estão distante das ideais propostas por Bourdieu em seu trabalho, quando analisa o campo do poder, já que o imigrante está numa situação de desvantagem não só econômica, mas, sobretudo politica, cultural, simbólica. Tal isolamento dos imigrantes – condicionado e parcial – apresenta condições interessantes para um estudo de caso, tal qual tratado neste trabalho, já que o fenômeno da migração exprime condições de ruptura de poder desses atores e conflitos internos com os outros atores. No ambiente da migração para o trabalho, a ausência de atores sociais centrais cria limitações para a inserção dessa massa de trabalhadores no campo e no espaço social estadunidense, ao qual se inseriram de forma irregular e politicamente passiva, ainda que se tornassem componentes indispensáveis no capital econômico daqueles Pais.

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A ausência de capital político e cultural compatível com os recur-sos dos habitantes onde residem os imigrantes excluem esses traba-lhadores das decisões politicas ou mesmo dos benefícios aos quais os outros atores sociais nativos desfrutam, sendo que estes participam diretamente do capital econômico e simbólico do campo do poder, assim como todos os atores oriundos do pais. Trata-se, pois, de uma extração da mais-valia do trabalho desses atores sociais sem lhes con-ceder os direitos e reconhecimentos simbólicos que os outros atores possuem.

O capital cultural e simbólico dessa população imigrante tem baixo valor de mercado em relação aos nativos da região onde vão habitar. Entretanto, apesar de baixo valor, o capital cultural dos imi-grantes não impede a soma hibrida entre estes e os diferentes aspectos culturais dos diferentes atores (nativos e imigrantes). A influência gerada um ao outro acaba por se tornar indissociável, assim como pode ser notado na sociedade californiana. Os conceitos culturais, o nível de abertura política e social e mesmo a tolerância a grupos minoritários trazem consigo forte influência desses grupos externos ao que costumava ser o capital cultural local no passado.

Esse fator, que seria denominado por Bourdieu como um evento desestruturante, traz a imprecisão da mudança do capital cultural dessa região, em que não podemos afirmar se este será um fator de ruptura ou de inserção dentro do espaço social aos quais tais atores estão atuando. Trata-se de escolhas que todos esses atores sociais deverão tomar adiante, influenciados diretamente pelos mais influen-tes, assim como a importância em se pensar no surgimento de atores centrais desses grupos minoritários no cenário político, cultural e simbólico regional.

Após breve preâmbulo sobre as condições específicas dos imi-grantes ilegais que residem nos Estados Unidos, podemos seguir adiante para a discussão teórica sobre a sociologia econômica e a relação de espoliação da mão-de-obra utilizada na agricultura desta região supracitada. A utilização de referências da sociologia econômica será a base para o estudo de caso dos trabalhadores ilegais, principalmente mexicanos, que caracterizam a maioria dos imigrantes desta região.

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Para Swedberg (2004, p.12), um dos destacados autores da socio-logia econômica:

Bourdieu possui uma abordagem muito mais estrutural e tal-vez também mais realista. Baseado nos quatro conceitos-chave de habitus, campo, interesse e capital (social, cultural etc.), Bourdieu parece menos interessado na maneira como opera a economia oficial do que na maneira como as pessoas vivenciam suas vidas na economia, ao enfrentar e ao mesmo tempo sofrer o impacto das condições econômicas.

O pensamento de Bourdieu coloca claramente os atores centrais como pivôs do mundo atual, condutores das esferas de influência, criativos, ativos e produtores da sociedade moderna. Entretanto, a invasão direta da economia na vida social dos imigrantes traz uma transformação na estrutura, exige uma adaptação dos indivíduos e condiciona as relações pessoais a trâmites cada vez mais interme-diados pelo valor, pelo fetiche dos bens de consumo e a imagem de melhoria da qualidade de vida. A construção desse cenário acaba atraindo os indivíduos para espaços sociais nos quais são marginaliza-dos e, apesar de ser o motor condutor dessa máquina, não usufruem dos melhores benefícios que estão à disposição.

Portanto, analisando dados empíricos e com suporte de teorias relacionado ao tema, vamos buscar demonstrar a exploração e isola-mento dos trabalhadores imigrantes nos Estados Unidos, principal mão de obra da agricultura do sul do país, porém, marginalizados pela sociedade. A elaboração deste tema será feito adiante.

Atores sociais coadjuvantes?

Considerando a massa de trabalhadores de baixa renda, o efeito da inserção em um espaço social correlacionado, mostra-se bem dife-rente em relação aos atores centrais. A necessidade de mão-de-obra barata para a produção de matéria-prima e de alimentos cria espaços dentro de estruturas já definidas, porém, às margens do que seria considerada uma real inclusão dessas pessoas. Não há a possibilidade de se romper esse ciclo e criar uma nova esfera de poder, assim como

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também não há interesse de ambas as partes, em um mutualismo obscuro. Essa deformidade permite o funcionamento de estruturas dinâmicas, como podemos colocar o caso das nações centrais e a alocação de imigrantes ilegais.

O que Marx (1982) definiu no princípio da Revolução Industrial como exército de reserva de mão de obra, na contemporaneidade ganhou uma nova definição e mesmo um novo modelo de participa-ção no sistema capitalista dinâmico. Se, por um lado a mecanização elimina boa parte da necessidade de mão de obra bruta industrial, por outro lado, abre espaço para o uso abusivo de recursos humanos em funções pouco salutares ou de ambição da maioria dos países desenvolvidos. Assim sendo, a migração sazonal, ilegal e massiva de trabalhadores de regiões mais pobres para os grandes centros econô-micos tornou-se regra e visa suprir carências em trabalhos braçais e de baixa remuneração.

Portanto, argumentamos com base nos dados coletados que a inserção dessa massa trabalhadora se faz de forma marginal, nas esfe-ras mais distantes da sociedade de certo país, como por exemplo, os Estados Unidos e os imigrantes mexicanos. A grande demanda desse tipo de mão de obra cria uma resistência no país em incluir tais trabalhadores, que se faz necessário. A aceitação mínima desses trabalhadores é tolerada no inconsciente da nação estadunidense, e tal cultura foi se mesclando. Sendo os Estados Unidos um país de migrantes desde sua origem, não é incomum a formação de diversos grupos culturais inseridos na estrutura central.

Vários fatores que contribuem para a migração podem ser respon-sáveis pelas relações sociais de subordinação e poder que se expres-sam na pobreza, na dificuldade de acesso a terra, educação, saúde, bem-estar, entre outros. É parte de um movimento determinado pela expulsão, seja ela social, econômica, étnico-racial, religiosa ou política, em busca de outros locais e alternativas de sobrevivência. Além disso, a migração inclui, também, avaliações individuais ou familiares que se situam dentro das condições do mercado de traba-lho globalizado. Aspirações, desejos de renda e sustentação de pro-jetos de vida familiares compõem o complexo quadro de decisões de saída do migrante.

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Entre a última década do século XX e os anos 2000, esses fluxos migratórios entre México e EUA têm apresentado algumas mudanças relacionadas ao perfil dos trabalhadores imigrantes. Segundo dados do Censo (PIÑEIRO, 2009)1, o perfil dos imigrantes, até a década de 1990, era majoritariamente de homens jovens, que migravam sozinhos em busca de trabalho. Nos dias atuais (2012), o que se nota é que, estes homens passaram a migrar com amigos ou parceiros (as), esposas e filhos, além de notarmos um crescimento substancial da migração de mulheres solteiras, que buscam encontrar trabalho e constituir família no país de destino.

Tabela 1 – Perfil das famílias imigrantes que vão para os Estados Unidos

Fonte: United States (2009).

1 Entre os anos de 1994 – 1995, o número de mulheres mexicanas que migrava pra os EUA era em torno de 9,8%. Já entre os anos 2000 – 2001, esse número aumentou para 20,5% (PIÑEIRO, 2009).

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Outra questão também necessita ser abordada, de modo a com-preendermos esses fluxos migratórios e, desta forma, traçarmos quem são os migrantes mexicanos que estão trabalhando nos Estados Unidos. Anterior a este fluxo migratório internacional, observamos que o fenômeno migratório interno, no México, também nos apre-senta importantes fontes para essa reflexão.

Assim, as cidades mexicanas que fazem fronteiras com o território estadunidense são polos de atração para imigrantes ilegais, sendo essa considerada a chance mais clara de adentrar no território vizinho. Porém, a construção dessas cidades “exportadoras” de mão de obra possui, em primeira instância, responsabilidade dos Estados Unidos, ao implantar ali suas empresas para valerem-se da baixa remuneração local. O passo seguinte foi o crescimento da economia local, criando polos de atração populacional para além da fronteira e promessa de melhores condições de vida. Como pode ser observada no mapa a seguir, a ligação é clara entre a existência de maquiladoras, trabalha-dores e imigrantes ilegais, sem levar em conta o tráfico de drogas, tema não analisado neste trabalho e que demandaria um grande espaço para discussão.

Até os anos de 1990, a região Norte do México – onde está loca-lizada a fronteira com os EUA – representou ótimas oportunidades de desenvolvimento. No entanto, como resultado de um modelo de desenvolvimento econômico iniciado de forma ineficiente, os processos sociais nesta região aconteceram de forma desordenada e desarmoniosa. Ocorreu que muitos mexicanos das regiões Sul e Centro do país, em busca de melhores condições de vida e trabalho, passaram a migrar para as cidades fronteiriças no Norte. Esta região passou a ser considerada a “terra das oportunidades”, onde se pode-ria, no mínimo, encontrar trabalho nas maquiladoras – que lhes possibilitaria a oportunidade de conquistar um visto ou greencard para entrar nos EUA.

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Mapa 1 – Número de Maquiladoras por Estado Fronteiriço México – Estados Unidos e Número de trabalhadores contratados

Fonte: Ramírez (2009).

Todavia, mesmo em condições adversas, esses migrantes preferem morar na região norte, buscando sempre fugir da vida que tinham nas outras regiões do país. Buscam melhores condições de vida, de trabalho, sonham com a vida no EUA e com a possibilidade de se estabelecerem lá com a família. Para isso, arriscam suas vidas das mais diferentes formas: viajam por dias pelo deserto na tentativa de atravessar a fronteira sem autorização, pagam os conhecidos “coyotes2” para os auxiliarem, aceitam todo e qualquer tipo de trabalho precá-rio que permita sua entrada no país, se submetem aos baixíssimos salários e a altas jornadas de trabalho estipuladas pelos contratantes vizinhos, etc.

2 “Coyotes”: aliciadores (agentes) que cobram para transportar e atravessar os imigrantes na fronteira para os EUA.

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Entre 2006-2010, cerca de 1,2 milhões de imigrantes foram deportados para o México. Os motivos são os mais variados: falta de documentação, infrações, demissão. Muitos destes são das regiões Sul e Centro, no entanto, optam por ficar na região norte do país, na expectativa de conseguirem voltar para os Estados Unidos. Destes, 46% viviam há mais de um ano nos Estados Unidos, segundo estudo do Colégio da Fronteira Norte (Colef ) do México, coordenado pelo pesquisador René Martín Zenteno (1993), que desde setembro de 2010 é o subsecretário de população, migração e assuntos religiosos do México.

Desse modo, outro paradoxo deve ser apontado: Pode-se dizer, baseado nas estatísticas do Censo, que do ponto de vista do migrante, migrar para os Estados Unidos, ainda que sob condições adversas, lhes oferece a possibilidade de construir e conquistar melhores con-dições de vida e trabalho do que as que estavam submetidos no seu país de origem. Um conceito de Weber que pode ser utilizado para avaliar as diferenças ao longo da história é a definição de liderança tradicional e a racional-legal. Enquanto a primeira tinha importância até o início do século XIX, a segunda mostra-se fundamental para entender as relações presentes na sociedade dinâmica atual.

Nesse caso, tem-se a necessidade de um agente mobilizador para articular o grupo de pessoas em torno de sua cultura, crenças, símbo-los e motivações. Esses agentes hábeis farão a organização dessa estru-tura com a função de mobilizar membros com objetivos comuns e intermediar diálogos com outros grupos de influência. Um desses casos que pode ser citado seriam os Worker Centers, comunidades de base, geralmente criadas e lideradas por latinos ou descendentes, que têm como objetivo prestar auxílio aos imigrantes – legais e ilegais – que vão para os Estados Unidos trabalhar (FINE, 2006).

Na construção de um simbolismo em torno dessas comunida-des migrantes, que trazem raízes de sua origem, mas também bus-cam novos referenciais no seu destino final, onde a realidade traz elementos para essa mutação. Sendo a formação da identidade um processo intersubjetivo, cognitivo e autoreflexivo – como dito por autores como Honneth (2003), Mead (1993) e Fraser (2006) – a troca entre o indivíduo e o meio proporciona mudanças em ambos.

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Sociologia Econômica e Migração: realidades opostas?

Alguns autores chama de habilidade social essa interação simbólica intersubjetiva para a criação da identidade passando pela atuação na sociedade.

Adentrando ainda mais no subconsciente formador da persona-lidade de cada indivíduo – e aqui mais na área da intersubjetividade e de questões de formação de individualidade – na busca de pistas para o comportamento padronizado da migração ilegal e do trabalho exploratório, usemos os estudos de Walter Benjamim (1987). Para o autor, a linguagem, ligada à experiência de cada indivíduo, traz o perigo da alienação do mundo contemporâneo. O condicionamento a um cotidiano repetitivo não reflexivo gera um esvaziamento crítico do indivíduo frente à sociedade.

Ou seja, mesmo não estando tratando do tema deste trabalho, Benjamim consegue deixar rastros sobre formação de opiniões inconsistentes com a realidade apresentada. A ilusão construída nesse cenário fetichista de consumo e produção pelos Estados Unidos e seu American Way of Life formam atrativos para países periféricos com problemas graves de abismo social. A narrativa do imigrante ilegal aos seus pátrios não expressa a verdadeira imagem, porém, transmite um cenário melhor do que o vivido em suas raízes. O abismo social não é eliminado, mas um pouco reduzido do panorama inicial.

Para Habermas (1984), Benjamim não quer apreender como a mercadoria sofre um processo de valorização e poder sobre o indi-víduo, mas somente a forma de apreensão do fetiche na consciência coletiva. Em um ajuste cronológico dos estudos de Mauss, Benjamim busca as raízes que os objetos possuem na união social, independente de qual seja ou do período histórico. A mistificação sempre existiu na humanidade, a curiosidade do mundo moderno é a abstração do valor monetário. Nesse caso, a própria individualidade traga o suplemento para a equação, em que cada um pode buscar seu tipo de objeto de adoração por meio do dinheiro. Se assim for, então o mutualismo entre capitalismo e individualidade é incontestável. Somente com o conceito de indivíduo e de sociedade moderna pode-mos entrar na discussão sobre a construção de campos, de atores centrais e de atores compositivos.

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Os atores hábeis possuem uma relevância grande nesse proces-so, pois estes irão formular metas e esferas de interesses nos quais precisará deslocar todo seu grupo de influência para realizar. Cria-se então uma espécie de modelagem da identidade coletiva na busca de um alinhamento da discussão de uma agenda comum e também argumentos para enfrentar oposições. Não é de se surpreender que tais atores privilegiados se utilizem dessas estruturas para reproduzir sua posição ou fundar novos campos de seu interesse. A busca pela estabilidade em um dado campo se faz justamente por essa aceitação coletiva.

Na contramão desse modelo, temos a relutância natural de homogeneização no aspecto cultural, em sua diversificação. Mesmo dentro da estrutura de uma indústria pode-se notar a formação de diversos grupos com identidades diferentes, ligados a um determina-do processo e grupo de pessoas. O mesmo é válido para a estrutura social, seja em um bairro, região ou estado. Modelos produtivos não podem ser simplesmente inseridos fora da região onde foi elaborado, por não levar em conta esses fatores, o que impedirá seu funciona-mento de forma eficiente.

No caso do migrante ilegal, a lógica aqui se mostra invertida. Quem precisa se adaptar ao modelo é o trabalhador, por estar inserido de forma “invasiva” no sistema estabelecido. Porém, como Bourdieu debate em sua definição sobre campos, todo ator dominado busca criar uma doxa, reverter a dominação, assim, um ator externo pode entrar em outro campo, criando ruptura e reformulação estrutural, o que Bourdieu chama de revolução simbólica. Entretanto, em contraponto ao que afirma Bourdieu, na questão do imigrante, ele não se mostra um ator de mudança da estrutura, até por ser o mais marginal (dominado) de todos os membros componentes. Sendo mão de obra necessária ao funcio-namento dessa organização, este se mostra um ator membro desse campo e como tal trabalha para o funcionamento da estrutura. Sua participação, ainda que considerada ilegal, é necessária e ajuda a organizar tal grupo de forma que, sua condição se mostra ilegal na estrutura jurídica presente e essencial na questão social e eco-nômica do grupo.

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Essa distorção de conceitos no estudo sobre organizações, inse-rindo a questão do imigrante ilegal, traz um debate privilegiado e de difícil resolução. As diversas esferas componentes de um campo entram em conflito interno, o que leva a uma desestruturação e possível fragmentação desse grupo. As frentes de resistência a um sistema estabelecido ganham espaço para o combate e a busca de novos centros de influência.

E aqui entram as teorias “neoinstitucionais” das ciências sociais na tentativa de repensar as estruturas e as ações atuais. Essas teorias são construções sociais no sentido de abordarem a criação de instituições como resultado da interação social entre atores que se confrontam entre si; as regras existentes de interação e distribuição como fontes de poder, servindo como base para construção e reprodução das ins-tituições. Nessa perspectiva, se por um lado os atores privilegiados podem utilizar as instituições para reproduzir sua posição ou fundar novas arenas de ação, por outro lado, os atores sem recursos são coa-gidos por essas instituições, via de regra, podem valer-se das regras existentes para criar novos campos.

As teorias neoinstitucionais se interessam pelo modo como os campos de ação surgem, permanecem estáveis e podem ser trans-formados. No caso dos migrantes ilegais, estes se mostram atores que geram conflitos internos em determinado grupo estabelecido. A crise gerada por esses atores pode se tornar um ponto de ruptura do campo, por gerar instabilidade interna, aumentando o risco de desestruturação.

Assim como o termo acima descrito foi confeccionado para o modelo atual de produção, nasceu também o termo “nova econo-mia”, onde se busca uma falsa homogeneização das práticas econô-micas e dos seus significados culturais em escala global. Essa busca de naturalização do trabalhador no ambiente de trabalho, inserção no campo ao qual participa, busca motivacional para melhor produtivi-dade e participação “efetiva” na empresa, são algumas das característi-cas dessa definição. Assim como Durkheim define o funcionamento da sociedade orgânica pela separação e complemento funcional de cada parte do todo, a nova economia busca explicar o funcionamento das estruturas econômicas pós-modernas em um cenário que envolve

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todo um conjunto de eventos não mais limitados pelo ambiente do trabalho.

Giddens (2005) considera que organização e ambiente, duas esferas do mesmo campo participativo de um indivíduo, podem ser consideradas unidas e vinculadas no momento atual e regidas por normas e regras sociais. Dessa forma, teremos a inserção da organi-zação no ambiente. Para o imigrante ilegal, esta realidade não está presente e teremos então um anacronismo existencial na identidade desses indivíduos.

A composição de um cenário que mescla dois momentos dife-rentes das estruturas sociais, econômicas e políticas pode ser definida como uma “aberração organizacional”, na qual a ordem da organi-zação é a mesma existente a todos os outros indivíduos, porém, o ambiente é tangente ao campo e não inserido. A ilegalidade da con-dição do trabalhador mexicano, por exemplo, não permite que este se insira no campo composto pelos atores da região em que este atua. Esse choque das microesferas componentes traz benefícios mútuos, desde que um grau de tolerância seja permitido na condição irregular do trabalhador de acessar sua região de trabalho.

Noventa por cento dos trabalhadores agrícolas da Califórnia são imigrantes mexicanos ou centro-americanos clandestinos e não documentados. Em plena expansão, a agricultura local não pode passar sem eles porque não há quem queira trabalhar a terra nas duras condições de exploração. Poucos são os que têm um parente munido de um título legal ou que se casará com um cidadão norte--americano e poderão obter, ao fim de longas diligências burocrá-ticas, uma licença de trabalho e um endereço, o famoso green card (BOYER, 2006).

De modo geral, os trabalhadores agrícolas na Califórnia incluem agricultores, gestores, consultores e outros prestadores de serviços técnicos, bem como muitos trabalhadores rurais sazonais submetidos a baixos salários. As ocupações mais qualificadas (os atores hábeis) são bem remuneradas, e esse segmento do mercado de trabalho está bem integrado com o resto da economia, o que indica uma demanda de oferta de formação qualificada relevante para as ocupações agrí-colas especializadas.

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As condições do ambiente e os baixos salários para a força de trabalho contratada nas fazendas fazem com que se levantem algu-mas questões. O emprego agrícola contratado na Califórnia implica, frequentemente, em trabalhos fisicamente exigentes. Muitas comu-nidades agrícolas na Califórnia estão classificadas entre os maiores índices de pobreza e desemprego no Estado. Muitos trabalhadores rurais não têm acesso à educação formal, desconhecem a língua do país e poucos possuem documentação legal3. No lado da demanda, as fazendas da Califórnia dependem do acesso a um pronto forne-cimento de mão de obra, tanto para empregos fixos, quanto para o emprego sazonal, isso porque o estado é um dos maiores produtores de frutas e vegetais dos Estados Unidos. Os salários comparativa-mente baixos no setor agrícola não fazem concorrência frente ao trabalho dos setores industriais e de serviços nos centros urbanos na Califórnia. Para tanto, o setor agrícola do estado depende do trabalho dos imigrantes.

A natureza sazonal e de emprego agrícola temporário combinada com os baixos salários apresenta um quadro de trabalhadores muito pobres para os padrões da Califórnia. Mesmo quando os salários estão bem acima do salário mínimo estadual, os trabalhadores com frequência vivem na pobreza4. Além disso, a maioria dos trabalhos realizados por estes migrantes estão isentos de seguro de saúde ade-quado e outros benefícios sociais aos trabalhadores e suas famílias. Assim, elevadas taxas de pobreza em algumas áreas agrícolas acarre-tam custos sociais, tais como, a falta de familiaridade com o local ou o compromisso das comunidades locais para com esses trabalha-dores, bem como a dificuldade de acesso à alimentação adequada e a cuidados de saúde.

Nesse ponto, é notável a participação parcial dos imigrantes ilegais no campo estrangeiro. Participa ativamente da produção,

3 O que lhes proporcionaria a possiblidade de realizarem outras atividades mais especializadas.

4 Muitos destes trabalhadores são obrigados a pagar uma porcentagem de seus salários para os “intermediários”, o que resulta numa renda bruta diminuída para estes trabalhadores.

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contribuindo para a massiva mão de obra da indústria agrícola da Califórnia, contabilizado inclusive pelo próprio estado em suas esta-tísticas – o que poderia lhe inserir como um cidadão reconhecido da região – mas, por outro lado, não possui direito à assistência médica e social. Esse vácuo social cria novos problemas e diferen-tes interposições sociais e aumento da violência da região. Nesse momento, nota-se a ruptura entre o fetiche criado do mundo de consumo perfeito estadunidense e as possibilidades dos trabalhado-res de o alcançarem. A riqueza e o investimento na agricultura não chegam aos trabalhadores rurais, criando esse abismo social entre produtores e trabalhadores. No mapa abaixo se pode notar o nível de investimento na área.

Mapa 2 – Investimento na contratação de mão de obra na agricultura em 2007

Fonte: United States (2007).

O grande sonho de trocar de espaço, não só geograficamente, vira uma ilusão, mas quando o indivíduo percebe que trouxe consigo os

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Sociologia Econômica e Migração: realidades opostas?

condicionantes de seu estrato social anterior e mais, pode-se dizer que um recorte do próprio México foi transmutado para a região na qual estes trabalhadores se instalam. Seus costumes, cultura e idioma não se alteram nessa transição, o que conflita com o próprio termo mudança. A fuga do México, onde estes indivíduos habitam, deverá ocorrer constantemente e só será concretizada quando o imigrante conseguir se inserir concretamente não somente geograficamente mas também politicamente, no campo ou espaço social; ou seja, quando reconhecido como igual e participar democraticamente da esfera econômica e política regional da Califórnia.

Apesar da formação de um mercado de demanda cada vez mais consumidora, das mais diversas faixas econômicas, e em plena crise econômica mundial, os Estados Unidos continuam a desperdiçar esse fator extremamente relevante. Não se fala aqui de alguns traba-lhadores, mas sim de uma mão de obra equivalente a quase 15% da população do Estado da Califórnia que, devidamente inseridos na sociedade, participaria mais efetivamente da economia. Essa asso-ciação poderia ser de ajuda mútua, se devidamente regulamentada. Portanto, o artigo chama a atenção para a ausência do Estado na politica com os imigrantes.

Conclusão

O que argumentamos no decorrer do texto é que a não participa-ção efetiva dos trabalhadores imigrantes no espaço social, no campo, no sentido de Bourdieu, no qual executam trabalho, acaba por minar inconscientemente a esfera econômica do grupo, onde uma evasão de finanças pode ocorrer. Grande parte desses imigrantes tem por objetivo acumular recursos que lhes permitam levar outros mem-bros de sua família para a região onde moram, aumentando assim a oferta de mão de obra e diminuindo o capital de giro internamente ao campo econômico onde interage como imigrante. Se existe um benefício social e cultural pelo acréscimo diversificado da população, o preço a ser cobrado pode representar uma ruptura na estrutura social em longo prazo.

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As redes sociais poderiam ser uma alternativa para o problema, mas o grau de liberdade que esse tipo de organização permite apenas a maleabilidade necessária para nada se alterar na realidade presen-te. As conexões não demandam realmente uma inserção no campo, permitindo relações meramente convenientes e exploradoras, como é utilizado no momento. A maior parte dos autores da economia se utiliza da teoria de redes para definir consumidores e mercado, e a relação destes com a sociedade. Tratando-se, no caso, de indivíduos marginais, como os imigrantes, acreditamos que estes não fazem parte da rede social analisada por esses teóricos.

Essa condição sub-humana deixa claro que a deformidade social que é o imigrante ilegal não tem como se enquadrar no perfil de análise da sociologia econômica, talvez somente como dado esta-tístico ou fator de erro em gráficos de avaliação financeira. Em um estudo centrado no cenário econômico social – deixando claro que, em primeira instância, sempre será o econômico – estes atores que poderiam ser considerados virais não são considerados. Essa anoma-lia movimenta quase totalmente uma economia de cerca de US$ 40 bilhões na agricultura, sem ter custo algum para o Estado.

Não se trata de transformar os trabalhadores em máquinas, ou mesmo de regularizar esse tipo de atuação nos locais de atração de mão de obra braçal, mas sim de identificar o indivíduo imigrante como ser social. Este só poderá ser um ator da revolução simbólica se não for afastado do País, depois de exercer sua função. Essas pes-soas não são estadunidenses e nem mexicanos, são trabalhadores sem pátria e sem direitos, e essa lacuna não será preenchida pela econo-mia, mas por uma politica pública para o imigrante. A ruptura com esse isolamento dar-se-á pelo reconhecimento ou pela demanda, a estratégia que chegar primeiro, dos atores nulos. Logo, em direção aos autores da sociologia econômica, argumentamos a respeito da predominância do tecido social, da cultura e do simbólico para a efetiva inserção dos imigrantes. Em diálogo com Bourdieu, demons-trando que, apesar do interesse dos dominados em exercer poder no campo onde são imigrantes, as regras que prevalecem são as dos dominantes, dos nativos, o que dificulta as transformações.

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Sociologia Econômica e empreendedorismo étnico: algumas reflexões

Beatriz Isola COUTINHO

Introdução

A intensificação dos debates sobre o empreendedorismo e sua importância na economia de mercado, sobretudo a partir dos anos 1980, faz-se presente nas instituições de ensino superior voltadas à formação empresarial, assim como nas pesquisas das Ciências Sociais no Brasil e no mundo. A discussão sociológica a respeito dessa temá-tica tem sido levada a cabo pela Sociologia Econômica sob seu axio-ma de que “[...] todos os fenômenos econômicos são sociais por sua natureza; estão enraizados no conjunto ou em parte da estrutura social.” (SWEDBERG, 2004, p.8). Desta forma, o empreendedo-rismo passou a ser analisado com o instrumental teórico e meto-dológico da Sociologia em diálogo com outras áreas das ciências humanas. O mesmo se aplica ao agente do empreendedorismo. O empreendedor capitalista é entendido enquanto uma figura social e, ao mesmo tempo, um indivíduo essencial à compreensão do mun-do contemporâneo. O empreendedorismo ganhou uma perspectiva sociológica por meio das pesquisas empíricas, sobretudo nos traba-lhos estadunidenses e franceses, nos quais o empreendedor tornou-se um objeto específico, configurando-se como um ator social diverso dos demais (ZALIO, 2009). Isto é, efetua-se a sua transição compre-ensiva de homo oeconomicus para homo sociologicus.

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Sociologia Econômica e empreendedorismo étnico: algumas reflexões

Dentre os inúmeros estudos realizados na Sociologia Econômica acerca dos empreendedores, preponderam aqueles articulados com a temática da migração internacional, comumente reunidos na pro-dução sobre empreendedorismo étnico (LIGHT; BONACICH, 1991; PORTES, 1995; MARTES; RODRIGUEZ, 2004; TRUZZI; SACOMANO NETO, 2009). A relação entre empresas de proprie-dade de imigrantes, nas quais a mão-de-obra não raramente também é estrangeira tem sido alvo de diversas análises sociológicas, sobretu-do nos Estados Unidos, onde o empresariado e a força de trabalho transnacional são realidades pungentes (WALDINGER, 1984, 1986; BONACICH, 1990; LIGHT et al., 1999).

Os estudos sobre empreendedorismo étnico pertencem a uma ampla e intrincada discussão sobre empreendedorismo, a qual per-meia nossa reflexão ao longo de todo o texto. Organizamo-nos de maneira a expor a importância do fenômeno na construção social dos mercados e nos atuais debates acadêmicos, nos quais a temáti-ca ganha apreciações diversas entre as diferentes áreas das ciências humanas. Faz-se necessário que façamos um levantamento de pontos centrais acerca do conceito schumpeteriano de empreendedor, a fim de atentar para a influência exercida pelos autores clássicos e os temas cativos da Sociologia na reflexão de Schumpeter, assim como para as contribuições fundamentais que os sociólogos contemporâneos prestam ao estudo empírico e teórico do empreendedorismo. De acordo com Harvey (2010, p.26), a noção de empreendedorismo construída pelo economista austríaco a fim de compreender o desen-volvimento capitalista valia-se do empreendedor enquanto uma “[...] figura heróica, era o destruidor criativo par excellence porque estava preparado para levar a extremos vitais as consequências da inova-ção técnica e social.” Cabe acrescentar que a representação trazida por Schumpeter foi depositária de uma extensa reflexão humanista, eclodida na modernidade. Parodiando Polanyi, o empreendedorismo está no bojo de uma grande transformação do processo de produ-ção capitalista, de forma que sua expansão explica e é explicada no cenário de tais mudanças. Os anos 70 serviram de palco às profundas alterações que despontavam anteriormente na coxia do pós-guerra. A derrocada do fordismo e de sua rigidez rumo a um novo regime de

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Beatriz Isola Coutinho

regulamentação política e social são inseridos por Harvey (2010) no amplo processo de transformação do capitalismo cujo qual o autor denomina acumulação flexível. Tal conceito designa a flexibilidade da qual os produtos, os padrões de consumo, os processos e mercado de trabalho passam a ser dotados. Para os trabalhadores, traduz-se em “regimes e contratos de trabalho mais flexíveis”, ou seja, o cres-cimento da subcontratação, do trabalho temporário e em tempo parcial. Para o patronato, impõe a incorporação de novas tecnologias e arranjos organizacionais como a subcontratação, possibilitando a emergência de pequenos negócios que figuram essenciais ao sistema produtivo.

O aumento da terceirização e da prestação de serviços realiza-da pelas pequenas empresas no contexto da acumulação flexível faz ampliar-se no cenário a figura do empreendedor, em meio ao acirra-mento da competição empresarial acompanhada da queda dos lucros e da inconstância do mercado. O empreendedorismo enquanto um dispositivo do mercado mostra-se essencial para atender as neces-sidades indispensáveis do sistema de produção flexível, como “[...] na solução de problemas, nas respostas rápidas e, com freqüência, altamente especializadas, e na adaptabilidade de habilidades para propósitos especiais.” (HARVEY, 2010, p.146). O empreendedor é descrito pelos economistas de maneira subjetiva, como um “herói singular” que controla as incertezas, detém a perícia de inovar e enxergar as oportunidades (ZALIO, 2009). O foco da análise dos economistas reside na empresa e a sua atuação no mercado, sendo este entendido “[...] como mecanismo de formação dos preços, e, portanto, de alocação dos recursos a partir dos quais uma sociedade se reproduz e se desenvolve.” (ABRAMOVAY, 2004, p.36). Desta forma, as pesquisas da ciência econômica sobre o empreendedorismo pouco analisam sua relação com as instituições e com o contexto social e cultural em que se localizam, ou ainda, os processos cogni-tivos dos agentes.

Tais apreciações têm sido realizadas pela Sociologia Econômica, uma vez que este ramo “[...] estuda fatos econômicos considerando--os fatos sociais.” (STEINER, 2005, p.3). O empreendedor é visto como um objeto de estudo sociológico quer seja pela sua expressão

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Sociologia Econômica e empreendedorismo étnico: algumas reflexões

quantitativa nas últimas décadas1, quer seja pela sua importância essencial à compreensão da estrutura social das trocas e da formação dos mercados na atualidade. Ao consagrá-lo como um ator social, a Sociologia incide olhar perspicaz na análise do empreendedorismo, e as pesquisas empíricas realizadas no âmbito da Sociologia Econômica possibilitam aclarar o jogo e suas regras. Deve-se aos trabalhos de Joseph Schumpeter a principal matriz teórica das discussões a respei-to do empreendedorismo e de sua importância no desenvolvimen-to econômico, assim como na definição da função empreendedora no capitalismo (MARTINELLI, 2009). Em sua obra A Teoria do Desenvolvimento Econômico (SCHUMPETER, 1985), o autor utili-zou-se do indivíduo empreendedor a fim de demonstrar a insuficiên-cia da teoria econômica neoclássica, considerando-o um tipo social e coletivo (MARTES, 2010). De acordo com Swedberg (2009), o empreendedorismo é primordial para a análise schumpeteriana do capitalismo, expressa no conceito de “destruição criativa”. No limi-te, o empreendedor é um inovador tanto dos fatores de produção, quanto do mercado e o empreendedorismo um fenômeno histórico de liderança, no qual coabitam a racionalidade utilitarista e os valo-res socialmente cognoscíveis. A atenção dedicada por Schumpeter às instituições e ao contexto histórico cultural em suas análises é atribuída em grande parte à influência recebida pelo conjunto da obra weberiana. O mercado pode ser definido das apreciações de Weber, enquanto espaço de trocas que reina sobre a produção sendo dotado da competição entre os agentes, que o constroem e o modi-ficam em um processo relacional de mão dupla com a sociedade

1 A literatura da ciência econômica trata do empreendedor como o indivíduo economicamente ativo que desempenha uma atividade rentável por conta própria, classificando o empreendedorismo por necessidade e por oportunidade. Ele se relaciona majoritariamente com as pequenas empresas e está associado, conforme os economistas, ao crescimento econômico e ao crescimento na geração de empregos. Segundo Zalio (2009), entre os não assalariados na França em 2005, 10% deles encontravam-se ativos, sendo que 6% se declaravam donos de indústria e comércio. De acordo com Barros e Pereira (2008), desde o ano de 1988, a taxa de empreendedores nos Estados Unidos é cerca de 11% e, no Brasil, apresentou o percentual de 22% entre os trabalhadores por conta própria no ano de 2004.

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Beatriz Isola Coutinho

(SWEDBERG, 2009). A ligação entre o capitalismo de mercado, as instituições e a tipologia da ação social contribuíram na construção do empreendedor schumpeteriano para além da racionalidade do utilitarista (MARTES, 2010). O empresário “novo estilo”, a que se refere Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (2004), é característico do moderno capitalismo ocidental. Embora o autor não se utilize do termo empreendedor ou fale de uma teoria do empreendedorismo, trouxe à tona questões fundamentais para pensarmos um novo tipo de indivíduo e sua relação com o contexto sócio-histórico específico (ZALIO, 2009).

Empreendedorismo e imigração no contexto da mundialização

Um mote comum permeia com maior ou menor intensidade as discussões intelectuais das humanidades, sobre o qual surgem ava-liações plurais e nomenclaturas distintas. Trata-se da mundialização ou globalização, ambas fundamentalmente acompanhadas da ideia de internacionalismo. Nosso trabalho segue a regra, e, muito embo-ra não nos atenhamos a tal altercação, torna-se imprescindível sua presença em nossas considerações. Polanyi (1980) situa o enlace das nações ocidentais no período que decorre entre 1879 a 1929, no qual as vicissitudes do mecanismo de mercado, como o protecionismo e a sua subsequente autorregulação imperfeita, ensejaram consequências para as sociedades e importantes combinações institucionais. A polí-tica internacional, a economia internacional e a economia doméstica, de acordo com o autor, são as principais esferas institucionais onde transcorreram as ocorrências comuns a inúmeros países nesse espaço de tempo. Longe de circunscrever-se a essas cinco décadas, o proces-so de interligação mundial, ainda que fundamentalmente desigual, como apontado por Polanyi já nos anos 1940, só fez crescer desde então. O mercado internacionalizado pelo comércio global implica alterações profundas na produção, na distribuição e no consumo, assim como ações políticas em âmbito nacional e internacional e faz emergir para a moeda e para o câmbio, um papel nunca antes designado. De acordo com Chesnais (2001), existem dois grandes

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beneficiários do capitalismo mundializado nos dias de hoje que concentram o capital e comandam o mercado, são eles: o “capital financeiro predominantemente industrial” formado pelos “grupos industriais transnacionais” e o “capital de investimento financeiro ‘puro’”, que compreende bancos e os diversos tipos de investidores institucionais. Embora este último tenha maior influência no atual processo de acumulação, ambos são atores-chaves do capitalismo em sua nova configuração. O fenômeno imigratório e o empreendedoris-mo inserem-se nesse contexto. O empreendedorismo está na agenda de inúmeras instituições financeiras públicas e privadas que oferecem empréstimos e outros incentivos para as pequenas empresas e cursos de qualificação aos empreendedores. No caso do empreendedorismo étnico, sabe-se da atuação da própria comunidade imigrante organi-zada em associações religiosas, comunitárias e financeiras para o pro-vimento de recursos materiais aos empreendedores conterrâneos nos países de destino. Nos países de origem, o pecúlio adquirido pelos trabalhadores no exterior e enviado pelas remessas2 aos familiares, não raramente estão propositados à ação empreendedora no posterior retorno, realidade que tem suscitado programas de educação finan-ceira para os regressos em diversos países – por parte dos Estados e do setor privado – assim como cartilhas instruindo sobre os mecanismos de funcionamento cambial para o despacho das mesmas.

No que tange a formação das grandes empresas industriais e seu transnacionalismo, coabitam com estas e de forma crescente as pequenas empresas, fortemente vinculadas ao empreendedoris-mo e a subcontratação por um ou mais clientes maiores. Essa base

2 O dinheiro enviado pela mão-de-obra residente no exterior para suas pátrias mães, chamado de remessas da migração internacional, ocupa de forma crescente as atenções do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e do Fundo Monetário Internacional. Os citados órgãos apresentam dados numéricos vultosos das remessas de imigrantes contabilizados a partir das empresas de transferência internacionais. Igualmente, os Bancos Centrais dos países latino-americanos evidenciam a importância das remessas para suas economias. Sabe-se, no entanto, que boa parte do dinheiro enviado pelos trabalhadores no exterior para seus familiares circula fora do sistema financeiro formal, por meio de parentes ou amigos viajantes.

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não fordista de contratação, como bem observa Harvey (2010), ampliou-se na acumulação flexível, concomitantemente às grandes transformações organizacionais e gerenciais ocorridas nas grandes empresas e corporações. As inovações em gestão, conforme Boltanski e Chiapello (2009), são instrumentos essenciais à flexibilização das empresas e uma flexibilidade passa a ser exigida também do traba-lhador. Transparece para este a ideia de empregabilidade, da qual ele se torna responsável, representando um meio de segurança no traba-lho e a possibilidade de um desenvolvimento individual, dotado de maior autonomia, rompendo, ao mesmo tempo, com a estabilidade no emprego e impondo uma precarização do trabalho. O conjunto das transformações ocorridas no capitalismo, notadamente marcadas pela desregulamentação comercial e financeira, como a reestrutu-ração produtiva de diversos setores e uma mudança nas exigências feitas ao trabalhador, propiciaram e estimularam um crescimento do empreendedorismo e da participação de pequenas empresas na vida econômica de diversos países. Dois apontamentos são pertinentes: o primeiro deles refere-se ao empreendedorismo enquanto um fenôme-no intrínseco à acumulação flexível, vinculado às estruturas de cus-tos enxutas e a lucratividade; caracterizado pela inovação, traduzida como percepção de oportunidades e avocação de riscos; ditame dos novos padrões de competição e sua necessidade de constante atuali-zação tecnológica. A literatura econômica e administração dedicam--se quase exclusivamente a tais interesses, delimitados pelos arranjos gerenciais, alocação de recursos e formação de preços no mercado. Uma segunda indicação a ser feita reside no fato do empreendedoris-mo ser tomado e veiculado como um valor social. Se, por um lado, ele está associado aos riscos e às incertezas do mercado assim como à transferência de amplas responsabilidades para um único traba-lhador ou um pequeno grupo de trabalhadores, por outro, funciona como um facultativo da polivalência, do aprendizado contínuo e da valorização e desenvolvimento das capacidades individuais. Tais características, como mostraram Boltanski e Chiapello (2009) orien-tam os novos modelos de gestão e trazem novo impulso de adesão ao capitalismo. Desta forma, tomando por empréstimo a reflexão desses autores, o empreendedorismo pode ser introduzido no conjunto das

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crenças que formam o “espírito do capitalismo” e a “natureza” empre-endedora transforma-se em ideologia com forte poder persuasivo e de mobilização dos agentes no capitalismo mundializado. Uma vez mais, o aporte das instituições financeiras e do Estado faz-se presen-te, assim como a mídia e a educação voltada aos negócios têm um papel essencial na veiculação do empreendedorismo como um ideal possível a todos e do empreendedor como um indivíduo admirável, não associado à figura do capitalista voraz e expropriador de outrora.

Versar sobre a representação conceitual do burguês e o distancia-mento dos aspectos que o qualificam diferentemente ou de maneira semelhante ao empreendedor é uma empreitada que foge aos nossos propósitos no presente texto. Limitamo-nos, assim, ao capitalista “novo estilo” cuja citação se faz presente já na transição para o século XX por meio de Durkheim (2007), originalmente publicado em 1895 e, posteriormente, Weber (2004) originalmente publicado em 1904 (MARTES, 2010; ZALIO, 2009). Uma vez esclarecido o con-texto a que se refere nossa apreciação, seguimos para o debate sobre o empreendedorismo e o empreendedor tomados em contraste com a ciência econômica.

Apreciações e debates

Sustentamos aqui, embasados na interpretação da Sociologia Econômica, que o empreendedorismo é uma construção social. A defesa de tal argumento requer, necessariamente, ponderações sobre o efetivo ator social do empreendedorismo, o empreendedor. Cumpre elucidar que seu exame na sociologia tem sido largamente concebido sob orientação da sociologia compreensiva fundamentada por Weber e sustentada na economia pelos trabalhos de Schumpeter, que esta-beleceram referência primordial para análise do empreendedorismo e do empreendedor no século XX. Por meio de uma compilação de diversos estudos sociológicos sobre o empreendedorismo, Thornton (1999) define o fenômeno como a criação de novas organizações em dependência com um contexto e seus processos social e econô-mico. Tal definição assemelha-se a uma tautologia para a Sociologia Econômica, uma vez que os mercados e a ação econômica estão

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imersos nas relações sociais. A mesma percepção é quase exceção na produção dos economistas, talvez um fator apropriado à explicação da dificuldade que estes tenham encontrado no estudo do empre-endedorismo unicamente sob os horizontes da ciência econômica. Essa limitação se expressa na “diferença” a que está sujeita a defini-ção do empreendedor, para a qual explicação os economistas tem recorrido aos comportamentalistas, sobretudo, ao psicólogo David McClelland (FILION, 1999). Em meio à imprecisão prevalente na etimologia da palavra entrepreneur3 e de seu significado na realidade social, Schumpeter estabeleceu um ponto de partida comum para economistas e sociólogos, a inovação. Esta é entendida não somen-te nos termos da produção mas também pelo contexto histórico e cultural do capitalismo, dotando o empreendedor de uma racio-nalidade não exclusivamente guiada pela maximização dos lucros (MARTINELLI, 2009). Schumpeter se opõe, por meio de sua obra, a visão corrente entre os economistas de que o empreendedorismo é factível unicamente pelas leis do mercado, construindo um divisor de águas dentro da ciência econômica. Em um dos seus últimos tex-tos publicados em vida (no ano de 1949), o autor estabeleceu uma análise de seus principais pontos de vista sobre o empreendedorismo e seu agente em diálogo com pensadores clássicos como Richard Cantillon, Jean-Baptiste Say, Adam Smith, Alfred Marshall, Karl Marx e outros para afirmar que “[...] cada ambiente social tem suas próprias maneiras de complementar a função empreendedora [...]” sendo que esta “[...] pode ser e frequentemente é exercida coopera-tivamente.” (SCHUMPETER, 2002, p.11). Deste pequeno excerto, extraímos impressões fundamentais da teorização de Schumpeter sobre o empreendedorismo, apontadas anteriormente no nosso tra-balho e com maior profundidade por autores como Martes (2010). São eles fundamentalmente: a) a dimensão contextual, histórica e

3 Atribuem-se diversas datas e sentidos originais da palavra francesa entrepreneur. De acordo com Martinelli (1994), esta passou a designar atores econômicos no século XVIII, enquanto outros autores situam sua origem em séculos anteriores. Schumpeter atribui a Cantillon, nobre, investidor, viajante e estudioso dos fenômenos econômicos do século XVIII, a primeira concepção aprofundada da função empreendedora (FILION, 1999).

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social do empreendedorismo; b) a inserção do empreendedor em determinada sociedade e a importância das relações sociais em sua agência; c) o olhar sobre os atores sociais – indivíduos e instituições. Por essas considerações, Schumpeter faz-se presente nos estudos sobre empreendedorismo no âmbito da Sociologia Econômica.

Pode-se atribuir a Schumpeter a responsabilidade maior pela difusão da correlação entre empreendedorismo e inovação. É essen-cial, no entanto, ter clareza do sentido desta palavra no pensamento do autor, uma vez que o “[...] empreendedor não inventa algo novo; ele inova, o que significa que ele recombina recursos já existentes.” (SWEDBERG, 2002, p.233). Outro aspecto indispensável é a pos-sibilidade estendida a todos de ser empreendedor, ou seja, de fazer novas combinações4. A maior dificuldade não está em concebê-las, mas sim em realizá-las, tarefa concretizável com a assistência de outras pessoas (SWEDBERG, 2002). A inovação empreendedora é precursora e traz, necessariamente, novas feições. Diante das vicissi-tudes daí decorrentes, como os riscos e as incertezas, a racionalidade instrumental é insuficiente à ação e ao seu entendimento (MARTES, 2010).

O abismo entre o empreendedorismo schumperiano e a ciência econômica acentua-se justamente no empreendedor. Schumpeter inaugura apreensões divergentes para a explicação do funcionamen-to do capitalismo de mercado ao pontuar a atuação dos indivíduos como um determinante econômico e a ação social na construção dos mercados. O empreendedor é figura emblemática da liderança e sua função traduz-se pelo potencial em liderar as inovações, assim como criá-las, tendo que “[...] o empreendedorismo é a forma histórica específica assumida pela liderança no capitalismo.” (MARTINELLI, 2009, p.211).

A atribuição desta qualidade distintiva fundamental ao empre-endedor e sua imersão na sociedade implica em duas inquietações fundamentais: o embate consequente de qualquer inovação com as estruturas já estabelecidas (as instituições legitimadas), assim

4 Ponto sobre o qual se focam as escolas de negócios e os cursos de empreendedorismo, a formação do empreendedor.

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como o poder de convencimento sobre os atores (incluso as vias pelas quais ocorrem) (SCHUMPETER, 2002; SWEDBERG, 2002; MARTINELLI, 2009; MARTES, 2010). Nesse ponto, Schumpeter adentra em uma discussão realizada pela sociologia – dos clássicos aos contemporâneos – a relação entre ação e estrutura. Reconhecendo os limites da ciência econômica para essa questão, o autor situa a envergadura da sociologia econômica para o estudo das instituições nas atividades econômicas (SCHUMPETER, 1982).

Os estudos sobre empreendedorismo/empreendedor realizados atualmente pela Sociologia Econômica, largamente debruçada sobre o empirismo, comumente abarcam duas linhas teóricas principais, uma de tradição francesa que remete, entre tantos, a Bourdieu e outra referente à Nova Sociologia Econômica, para a qual Granovetter é figura central (SWEDBERG, 2004). Ambas diferem e compartilham pontos de vista conceituais, além de retomarem as reflexões de Marx, Durkheim, Weber, Schumpeter e Polanyi em maior ou menor medi-da. A contribuição de Bourdieu para a sociologia econômica, con-forme Swedberg (2004, p.12), se baseia “[...] em quatro conceitos--chave de habitus, campo, interesse e capital (social, cultural, etc.)”, enquanto as análises de Granovetter e da Sociologia Econômica esta-dunidense “[...] predominantemente focaliza o ‘enraizamento’, as redes e a construção social da economia [...]” ou ainda “[...] focaliza as redes de relações pessoais.” (RAUD, 2007, p.206). Para entender a maneira pela qual as relações sociais atingem comportamentos e instituições, Granovetter (2009) opõe-se à herança utilitarista vigen-te na literatura econômica por meio do conceito de embeddedness5. Assim como Bourdieu critica os economistas por não atentarem aos aspectos históricos, social e político (RAUD, 2007). Granovetter (2009, p.39) pontua o afastamento dos mesmos “[...] para com o que pode ser chamado de imersão histórica e estrutural das relações.” A estrutura social de Granovetter e sua aparente limitação às redes formadas pelos contados relacionais interpessoais, assim como a falta

5 Existem três traduções correntes da palavra embeddedness no Brasil e que se referem a uma mesma ideia desenvolvida por Karl Polanyi, são elas: imersão, enraizamento e encrustamento.

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de clareza sobre a significação da rede, figuram entre o leque de crí-ticas realizadas ao trabalho do autor (RAUD-MATTEDI, 2005b).

Apesar da vaga definição desta noção na obra de Granovetter, ela vem sendo largamente utilizada pelos estudiosos do empreendedoris-mo não somente nos Estados Unidos como no restante do mundo. No caso da Sociologia Econômica, o uso das redes para o estudo do empreendedorismo está em conformidade com a proposta de enrai-zamento do comportamento econômico, possibilitando a recíproca entre o fenômeno e seu contexto. Nesse ponto, a colaboração de Bourdieu é essencial para expor com nitidez a complexidade social do fenômeno em ação mútua com o agente assim como para desvelar o ator social e suas ações.

Como argumenta Swedberg (2000), o préstimo das ciências sociais para o estudo do empreendedorismo não reside unicamente em seu entendimento teórico mas também no empreendedoris-mo como uma prática empresarial. O tema ganhou uma “nova legitimidade aos olhos do público” a partir da retomada realizada pelas escolas das ciências econômicas e administrativas, e foi nesses espaços acadêmicos em que sua análise apresentou maior expansão. As conseqüências imediatas desse processo foram sua aplicação em larga escala nas esferas gerenciais e uma pretensa delimitação, por parte desses estudiosos, do papel que as ciências sociais podem assumir no estudo do fenômeno (SWEDBERG, 2000). Talvez a explicação para essa “liderança” nas investigações sobre o empre-endedorismo resida na crença de que estas surgiram nas ciências econômicas (FILION, 1999) ou ainda, da grande divisão do tra-balho entre a Sociologia e a ciência econômica marcante no século passado (RAUD-MATTEDI, 2005a) que, por sua vez, possa ter prejudicado uma leitura atenta da obra schumpeteriana por parte das ciências sociais.

Como ocorre a todos os autores clássicos, via de regra, Schumpeter não é interpretado consensualmente, mas pode-se afir-mar com certa segurança que a produção do economista austríaco tornou-se o baluarte teórico para as definições sobre o empreen-dedorismo e o empreendedor no capitalismo moderno, apesar das diferentes apropriações e usos aos quais estão sujeitas importantes

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obras. Compete dizer que suas elucidações são ainda um funda-mental norteador quando a complexidade do fenômeno revela-se diante da observação metódica do pesquisador. O crescimento dos estudos vinculados à ação empreendedora, a partir dos anos 1980, vem sendo igualmente acompanhado do aumento nas temáticas enfocadas por estudiosos das ciências humanas e gerenciais6, com suas metodologias e interpretações teóricas substancialmente dife-rentes. Dentre estas, a Sociologia Econômica tem cumprido um duplo papel essencial: o de tratar o empreendedorismo em termos de um fenômeno social em meio a um campo onde a ciência eco-nômica ratifica sua legitimidade, e desvendar a formação dos mun-dos sociais em que o fenômeno está submerso, não se limitando em como o empreendedorismo acontece, mas o porquê e quais seus efeitos (SWEDBERG, 2000). Os estudos de empreendedorismo étnico na Sociologia Econômica analisam as relações sociais e a ação social em consonância com a função da etnia no capitalismo. Inúmeros são os estudos de caso que se dedicam a estudar o imi-grante empreendedor, tanto nos fluxos migratórios internacionais históricos, quanto nos contemporâneos. O crescimento das análi-ses com esta temática deve-se fundamentalmente a sua relevância quantitativa e qualitativa no mundo empírico.

6 Filion (1999) apontou vinte e cinco temas dominantes no campo empreendedorismo, com base no conteúdo de duas conferências renomadas- a de Babson, nomeada Fronteiras de Pesquisa em Empreendedorismo (Frontiers of Entrepreneurial Research) e a do Conselho Internacional para Pequenos Negócios (International Council for Small Businnes – ICSB), ambas realizadas anualmente. A primeira é organizada e sediada desde o ano de 1981 pela Escola de Negócios de Babson, vinculada a Universidade Cristã do Texas, nos Estados Unidos. A última teve sua fundação em 1955 e se apresenta como uma organização internacional de membros associados para o desenvolvimento e crescimento de pequenos negócios mundialmente, congregando educadores, pesquisadores, atores políticos e empreendedores de todo o mundo. Enquanto a conferência de Babson é notadamente acadêmica e geograficamente mais restrita, o encontro anual da ICSB é itinerante entre os inúmeros países que possuem membros afiliados e comporta grande quantidade de empresas, além de acadêmicos. As duas são marcadas pelos debates no âmbito da ciência econômica e da administração.

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Empreendedorismo étnico

Um sentido comum dado aos empreendedores étnicos é “[...] aqueles indivíduos que iniciam atividades empresariais no país para o qual imigraram, servindo principalmente à comunidade étnica a que pertencem [...]” (MARTES; RODRIGUEZ, 2004, p.118); ou seja, o empreendedorismo étnico vincula-se à imigra-ção, tanto no que se refere ao estrangeiro empreendedor, quanto aos seus conterrâneos consumidores. Soma-se a isto, a questão de que a comunidade étnica contempla igualmente a disponibilida-de de mão-de-obra, de acesso ao capital econômico e estímulo a novos emigrantes. As pesquisas em empreendedorismo étnico são realizadas em diálogo com as elucidações multidisciplinares dos estudos imigratórios que, por sua vez, encontraram na Sociologia Econômica terreno profícuo de desenvolvimento. A exemplo do que ocorre no tratamento dos temas complexos, muitas especi-ficidades dessa interlocução não serão aqui apresentadas. Não obstante, pontuaremos suas principais asseverações para as quais os conceitos de rede, habitus e capital, sobretudo o social e o cultural, têm sido fundamentais. Uma pergunta relativamente recente surgiu no cenário das grandes cidades, notadamente nos Estados Unidos: a que se deve o sucesso apresentado pelas peque-nas empresas de imigrantes em meio a um ambiente competitivo e de hostilidade ao estrangeiro? A resposta necessitava, sem dúvi-da, de um olhar sobre o empreendedor e, mais ainda, que este fosse lançado pelas ciências sociais7. Um ponto de partida à refle-

7 Cabe elucidar que a preocupação com a questão da migração não se limita ao ambiente urbano e antecede o estudo do empreendedorismo étnico. A migração internacional já constava nas reflexões acadêmicas estadunidenses no início do século XX pela Escola de Chicago. No Brasil, remete ainda às primeiras reflexões de cunho sociológico, antropológico, político e econômico, assumindo caráter menos ensaístico no conjunto da produção historiográfica. Na Europa, a questão imigratória ganha maior visibilidade acadêmica após as independências coloniais contemporâneas, originando um conjunto de pensadores nominados pós-colonialistas, muitos dos quais imigrantes, como Abdelmalek Sayad, Arjun Appadurai, Homi Bhabha e outros.

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xão foi a constatação de que empreendedores estrangeiros con-quistavam por meio de suas pequenas empresas uma mobilidade social ascendente8, estendendo-a para as comunidades imigrantes. O inverso também podia ser observado, ou seja, as comunidades imigrantes promoviam o apoio necessário à criação e manutenção das empresas dos empreendedores imigrantes. As melhorias de sentido empreendedorismo/comunidade atentadas enquadram--se na aquisição de um capital econômico que muitas vezes é revertido em recursos financeiros para o grupo; formação de um nicho laboral destinado aos imigrantes; atendimento da demanda de consumo por produtos com traços culturais diferentes do país de estadia. Na direção oposta, comunidade/empreendedorismo, estudos empíricos apontaram preferência no consumo da produ-ção intragrupo; oferta de mão-de-obra estrangeira a baixo custo; legitimidade à ação empreendedora. Igualmente, a concorrência entre empreendedores imigrantes apresentou-se autorregulada por normas internas que fugiam a racionalidade exclusiva de maximi-zação dos lucros. Vê-se que não apenas os estudos sobre empre-endedorismo étnico, como da mesma forma, os atuais estudos sobre as migrações internacionais baseiam-se largamente nas redes que formam e são formadas pelos deslocamentos populacionais. Uma apreciação do conceito de rede utilizada encontra-se forte-mente atada ao principio da imersão; os “laços fortes” e os “laços fracos”, que na perspectiva de Mark Granovetter estruturam as redes e diminuem os riscos das transações, possibilitando uma origem nem subsocializada nem supersocializada da confiança e da má-fé, uma vez que são construídas nas relações pessoais. Isto possibilitaria entender a relação entre os imigrantes empreende-dores entre si e entre seus funcionários (WALDINGER, 1984; PORTES; SENSENBRENNER, 1993; UZZI, 1997) assim como

8 Por mobilidade social ascendente entendemos a melhoria nas condições de vida comparativamente aos países de origem e/ou de destino, da primeira geração de imigrantes e/ou dos descendentes. Tais melhorias referem-se ao aumento dos ganhos econômicos assim como tipos de inserção na sociedade do país de destino (política, educacional, cultural, etc.).

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a relação entre os imigrantes laborais (RIVERA-BATIZ, 1999; MARRONI, 2006; LIMA, MORILLÓN; VALDOVINOS, 2007). Ainda que os conceitos de capital social e capital cultural como desenvolvidos em Bourdieu apareçam com frequência nos estudos sobre empreendedorismo étnico e imigração, sobretudo interligados a noção de rede, outros como o campo e o habitus são pouco recorrentes. Acreditamos que ambos são de grande préstimo para o aprimoramento de tais estudos, uma vez possibi-litam interpretar a posição dos atores nas estruturas sociais assim como contextualizar com maior precisão a ação e os interesses dos agentes. Seriam igualmente um auxílio para uma leitura do empreendedor Schumpeteriano e seu aprofundamento na relação entre a ação e a estrutura. Porém, como já apontou Swedberg (2004, 2009) muito em Sociologia Econômica ainda esta por fazer. Podemos incluir um segundo apontamento, a necessida-de de estudos sobre o empreendedorismo de retorno, isto é, no outro polo geográfico dos deslocamentos territoriais, os países de origem. Afinal, além de funcionar como uma motivação a emi-gração, um assunto desta envergadura ainda não despertou subs-tancial atenção das ciências sociais, ao passo de já tê-lo feito no ambiente não acadêmico. Por fim, lembrar que os estudos migra-tórios realizados anteriormente ao empreendedorismo étnico e suas metodologias são de imensa valia. É indubitável que a solu-ção encontrada empiricamente para a indagação acima colocada deixou clara a validade do argumento sustentado pela Sociologia Econômica, de que os fenômenos econômicos estão enraizados no mundo social e de que as ações humanas contemplam uma pluralidade de interesses. Desta forma, as pesquisas sobre empre-endedorismo étnico afirmaram a eficácia do instrumental teórico da Sociologia Econômica para a análise da formação do mercado e, concomitantemente, acrescentaram à teoria por meio do mun-do empírico. Tranquilamente, grandes passos para o estudo do empreendedorismo étnico já foram dados.

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Encontros e desencontros em Pierre Bourdieu

Leandro Silva de OLIVEIRA

Introdução

O livro O marxismo encontra Bourdieu (2010) é o resultado de seis aulas ministradas pelo sociólogo britânico Michael Burawoy no Havens Center de Wisconsin. O opúsculo tem por finalidade promover “diálogos imaginários” entre o sociólogo francês Pierre Bourdieu e alguns autores marxistas como Antonio Gramsci, Frantz Fanon e Simone de Beauvoir, além do próprio Karl Marx e, por fim, Wright Mills.

Se, na apresentação da obra, Ruy Braga introduz Burawoy como um dos mais importantes teóricos marxistas de nosso tempo, este, por sua vez, refere-se a Bourdieu como o mais importante e influen-te sociólogo do século XX, podendo ser considerado o pai funda-dor contemporâneo da sociologia, com envergadura comparável a Durkheim, Weber e Marx. Isso, somente, seria suficiente para responder duas perguntas fundamentais da própria razão de exis-tir desta obra: porquê e por quem Bourdieu está sendo analisado? Uma terceira questão, contudo, restaria sem resposta: porque fazê-lo dialogar com estes autores em particular? Para responder esta ques-tão, Burawoy enfatiza que estes são seus autores marxistas favoritos. Mais que isso, Burawoy demonstra como o pensador francês tem, de modo assumido ou não, um diálogo já estabelecido com estes autores ao longo do desenvolvimento de sua arquitetônica intelec-

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tual. A presença de Wright Mills na obra justifica-se pelo fato de ter adotado no cenário estadunidense a mesma postura crítica assumida por Bourdieu na França.

É interessante observar que Burawoy tenta reproduzir em suas réplicas imaginárias o mesmo tom utilizado pelo francês para com cada um destes pensadores, uma vez que aos pensamentos de Gramsci e Marx o sociólogo francês opôs-se respeitosamente, enquanto que aos de Fanon e Beauvoir, ele objetou-se violentamente.

Lidar com Bourdieu não é nada fácil, adverte, logo de início, Burawoy. Seus trabalhos abrangem temas muito variados, indo das artes à ciência, da política aos esportes, da família à educação, da economia à literatura, além das dificuldades criadas pelo estilo, com textos impenetráveis e inacessíveis, frases entrecortadas, autoadjeti-vadas e enigmáticas, com livros parcialmente inacabados e repletos de digressões. Seu próprio encontro com Bourdieu foi relutante e fragmentado e a obra aqui resenhada resulta de uma guinada radical de Burawoy, quando decidiu freqüentar as aulas do maior herdeiro intelectual e propagandista transcontinental da produção intelectu-al de Bourdieu: Loïc Wacquant. É nos fundamentos da sociologia crítica e pública que Burawoy situa os diálogos com Bourdieu, bus-cando uma resposta para um paradoxo que emerge da própria teoria bourdiesiana: a relação entre a teoria e a prática, entre os intelectuais e seus diferentes públicos.

Bourdieu e Karl Marx

O primeiro encontro promovido por Burawoy é entre Bourdieu e Marx, utilizando-se, para tanto, da obra do sociólogo francês que mais o impactou, Meditações pascalinas, “o ápice e consumação de suas conquistas teóricas” (BOURDIEU, 2001, p.16). Essa obra de Bourdieu chama a atenção de Burawoy não somente pelo que repre-senta dentro da produção intelectual do autor mas também por guar-dar certos paralelos com uma obra fundamental de Marx e Engels, A ideologia alemã. Para Burawoy, ambos os escritos foram um acerto de contas com suas respectivas heranças filosóficas. As semelhanças, contudo, terminam aí, uma vez que os caminhos trilhados a partir

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Leandro Silva de Oliveira

destes substratos teóricos mais distanciam do que aproximam os pensadores alemães do sociólogo francês. Se os primeiros partiram para o estudo da história humana como sucessão de sistemas de produção econômica, Bourdieu se dedica não à sucessão, mas à coe-xistência e interconexão de campos de produção científica e cultural relativamente autônomos. A conclusão que Burawoy tira destas pro-ximidades e distanciamentos é no mínimo intrigante:

[...] ele [Bourdieu] elaborou o que Marx deixara sem elaborar, a saber, as chamadas superestruturas sociais, com uma análise mais estrutural e funcional do que somente histórica. Nesse sentido, os trabalhos de Bourdieu constituem tanto uma revisão como um complemento às obras de Marx. (BURAWOY, 2010, p.16).

Marx e Engels, em A ideologia Alemã, denunciam como os jovens hegelianos, julgando superarem Hegel, trazendo-o do céu para a terra, apenas reproduziram-no, opondo punhados de frases a outros punhados de frases sem conexão com a realidade empírica. Os para-lelos com Bourdieu são, diz Burawoy, assombrosos. A distinção entre teoria e prática que aparece em obras anteriores atinge sua culminân-cia nas Meditações pascalinas, na qual Bourdieu denuncia as “ilusões escolásticas” que levam o intelectual a universalizar seu ponto de vista, ignorando as condições privilegiadas de sua existência livre das necessidades materiais imediatas. A análise econômica proposta por Marx – uma teoria do capitalismo como sistema que se reproduz – serve de modelo para a análise de Bourdieu da produção cultural: a distribuição desigual de capital simbólico nos campos de atuação intelectual. “Tanto em Marx quanto em Bourdieu, a ação estratégica torna-se rapidamente uma luta para conservar ou para subverter os poderes dominantes no interior do campo.” (BURAWOY, 2010, p.34). Bourdieu dá indícios em sua obra de que o capital econômico se sobrepõe aos demais tipos de capitais. Há, contudo, neste ponto, um paradoxo inevitável, pois, o poder simbólico de um produto cultural reside na autonomia usufruída por seus campos de produ-ção, autonomia essa que legitima a desigualdade tanto no consumo quanto na produção. Apelando para uma crença utópica do acesso às condições da universalidade, reverenciada em oposição à arte popu-

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lar, tida por ele como arte falsa, Bourdieu parece defender, como projeto político, a mesmíssima autonomia que sustenta a dominação que ele abominava.

Bourdieu, em muitos aspectos, desenvolveu as ideias de Marx, em um aspecto fundamental de sua obra, contudo, desvia-se radi-calmente do marxismo. A categoria de exploração, essencial à análise marxista do capitalismo, desaparece na teorização bourdiesiana, de modo que o capital consiste mais em uma relação entre capitalistas do que entre capitalista e trabalhadores, o que, em Marx, levaria à luta de classes. Para Burawoy, a análise que Bourdieu faz da econo-mia é destinada a sua dimensão cultural, daí a eleição do merca-do imobiliário como objeto de investigação para pensar as relações estruturais da economia: as casas são simultaneamente um objeto material e um objeto cultural.

Bourdieu era um crítico severo dos sociólogos que ele conside-rava servos do poder e dos especialistas que viviam a serviço das elites, no entanto, era favorável àqueles que se dirigiam aos públicos mais amplos para tratar de temas de fundamental importância para a sociedade. Burawoy chama a atenção, contudo, para o fato de que o que está em jogo nesta análise é a própria definição de campo – o científico versus o disciplinar.

A crítica de Burawoy é que a concepção de sociologia defen-dida por Bourdieu estava confinada ao campo cientifico, mas não ao campo disciplinar no interior do qual ela se encontra. Bourdieu sonhava com a sociologia como um campo autônomo, assim como é a matemática. Ele defendeu a idéia de ‘torre de marfim’ como elemento necessário para uma prática cientifica autônoma, poucos anos depois, no entanto, rechaçou-a como uma concepção errônea de objetividade cientifica. Para Burawoy, Bourdieu queria o bônus sem o ônus, uma autonomização intervencionista. Na realidade, a questão do distanciamento versus engajamento é aprofundada por Burawoy no encontro entre Bourdieu e Antonio Gramsci, antes, contudo, cabe a seguinte ressalva: sob risco de cometer anacronis-mo, deve-se ter em conta que Bourdieu escrevia a partir da França e seria temerário transportar sua perspectiva para o contexto estadu-nidense. Sua própria posição no cenário acadêmico francês de seu

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tempo – e ele foi tão alto quanto pôde alcançar – tem implicações no seu posicionamento um tanto elitista. Soma-se a isso o fato de que a sociologia nunca foi tão profissionalizada na França quanto é nos Estados Unidos.

Bourdieu e Antonio Gramsci

Para Burawoy, os paralelos entre Bourdieu e Gramsci são ainda mais evidentes, tendo em vista que este foi o pensador marxista das superestruturas. Mas, assim como no paralelo com Marx, a apro-ximação de Bourdieu com o pensador italiano diz respeito mais ao objeto de estudo do que às conclusões obtidas a partir da análise do objeto estudado. Burawoy observa que a violência simbólica em Bourdieu é muito diferente da hegemonia em Gramsci. A violência simbólica envolve o desconhecimento da dominação como tal, ao passo que o conceito gramsciano de hegemonia implica no consen-timento consciente à dominação.

Ambos os autores focaram o mesmo aspecto social, dando pouca importância à economia para se concentrarem no efeito dela: aquilo que Gramsci chamou de superestruturas do capitalismo, Bourdieu chamou de campos de dominação simbólica. Burawoy explora exaus-tivamente os paralelos biográficos entre Bourdieu e Gramsci. Tanto Gramsci quanto Bourdieu rejeitaram o determinismo histórico do velho Marx, estavam interessados em entender questões ligadas à dominação e sua reprodução. A grande divergência entre Gramsci e Bourdieu diz respeito ao papel dos intelectuais na política, dis-tanciamento versus engajamento: Bourdieu confiava na verdade escolástica produzida na academia ao passo que Gramsci acreditava na experiência dos trabalhadores no processo de produção e nos comitês de fábrica, abrindo espaço para o que chamou de “intelec-tual orgânico”, alguém organicamente ligado à determinada classe social. Para Bourdieu, no entanto, o intelectual orgânico tenderia a manipular ou ser manipulado por aqueles que pretendia representar. Gramsci, por seu turno, era completamente cético em relação aos intelectuais universitários, considerando-os não mais que “intelec-tuais tradicionais”, que, ao final das contas só reproduzem a domi-

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nação. As visões opostas sobre o papel do intelectual jazem, observa Burawoy, sobre visões divergentes acerca da dominação: “[...] de um lado, a dominação simbólica em Bourdieu, na qual o dominado não reconhece sua submissão como tal; de outro lado, a hegemonia em Gramsci, na qual o dominado reconhece e consente sua submissão.” (BURAWOY, 2010, p.52).

Para Burawoy, Bourdieu usa as ressalvas que o próprio Gramsci faz quanto à atuação do intelectual orgânico e sobre os partidos polí-ticos, absolutizando-as de propósito para rejeitá-los. Para Bourdieu, todas as classes padeceriam de uma fundamental incompreensão a respeito de sua própria posição no mundo e o intelectual não poderia representar coerentemente a classe com a qual se sente ligado porque não possui o habitus daquela classe. Aliás, o próprio conceito de classe social é desafiado por Bourdieu. Ele substitui a universalidade da classe trabalhadora, baseada na produção e forjada pelo partido político, pela universalidade de intelectuais encastelados na academia que, segundo Gramsci, era a forma mais pura da hegemonia burgue-sa. Na prática, contudo Bourdieu pode ser visto em piquetes com trabalhadores em greve nos anos 1990. “O que ele estaria fazendo então senão aspirando a ser um intelectual orgânico? Sua prática parecia desmentir sua teoria.” (BURAWOY, 2010, p.64).

Os paralelos entre hegemonia e poder simbólico são impressio-nantes, diz Burawoy, mas as diferenças entre estes conceitos são deci-sivas. Em Bourdieu a dominação é garantida graças a um universo simbólico que redefine e mistifica a realidade social, cujas distinções, baseadas na afirmação da superioridade aceita pelos dominados como atributo intrínseco dos dominantes, são garantidas pelo Estado que possui o monopólio legitimo não apenas da violência física mas tam-bém da violência simbólica. Em Gramsci, as lutas de classe mani-festam-se como lutas entre duas consciências: de um lado o bom senso que vem da transformação coletiva da natureza, de outro o senso comum que tende para a sedimentação e não criticidade, mas que, quando devidamente elaboradas, se tornam duas representações hegemônicas e concorrentes do mundo. Seguindo a trilha da teoria gramsciana, os intelectuais (orgânicos) elaboram o bom senso dos trabalhadores, ao passo que, seguindo Bourdieu, concluímos que

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nenhum bom senso haveria para ser elaborado e o melhor que os intelectuais (tradicionais) poderiam fazer seria desmistificar a domi-nação fundada na classe social, mas não tendo outra audiência obvia senão eles mesmos.

Por fim, à guisa de reconciliação, Burawoy busca aproximar Gramsci e Bourdieu, afirmando que tanto o intelectual orgânico gramsciano quanto o intelectual tradicional defendido por Bourdieu são necessários.

A ciência social precisa ser uma criatura com duas cabeças. De um lado, dirigida contra as ideologias dominantes, desmistifi-cando a naturalização do arbitrário social; de outro, destinada a inventar e elaborar alternativas sociais enraizadas nas experiên-cias vividas das classes subalternas. (BURAWOY, 2010, p.75-76, grifo do autor).

Bourdieu e Burawoy

Burawoy, que concebe sua pesquisa segundo um quadro teórico gramsciano, inseriu neste trabalho um diálogo entre suas próprias concepções teóricas e as de Bourdieu. Influenciado pelo marxismo estruturalista francês dos anos de 1970 e suas apropriações gramscia-nas, Burawoy buscou demonstrar em sua tese de doutorado que as teorias do Estado desenvolvidas por Althusser, Poulantzas e Gramsci podiam ser aplicadas aos operários no interior das fábricas. Burawoy aplica as teorias de Gramsci sobre Estado e sociedade civil para den-tro da fabrica, aplicando-a à microfísica do poder na firma e adicio-nando a idéia da estrutura da sociedade como um jogo como a nova dimensão do consentimento.

Burawoy surpreende-se ao notar que as conclusões de seu tra-balho A fabricação do consentimento (1985) aproximavam-se das concepções bourdiesianas, ainda que não conhecesse profundamen-te o autor no período em que produziu a pesquisa. Vistas mais detidamente, contudo, as convergências entre suas conclusões e as de Bourdieu mostraram-se frágeis. A teoria bourdiesiana caminha para a tautologia funcionalista segundo a qual as pessoas que desde

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cedo foram socializadas no trabalho industrial ou que vieram de condições de opressão acomodam-se a tudo isso, enquanto que aquelas que vieram de uma origem social distinta ou que sofre-ram mobilidade social a partir da classe média estão mais propen-sas a radicalizar seus ataques e reivindicações contra o sistema. A pesquisa de Burawoy, por outro lado, indicava que as disposições adquiridas fazem pouca diferença na forma pela qual as pessoas são inseridas na produção, tampouco alterava seu envolvimento no jogo. O abismo entre a verdade objetiva e a subjetiva era visto por Bourdieu como desconhecimento que provinha de um habi-tus individual profundo, para Burawoy, contudo, este abismo pro-vinha da mistificação derivada das instituições que organizam e gerenciam o trabalho. “A dominação simbólica é marcada a ferro e fogo sobre a psique individual, ao passo que a hegemonia é o efeito das relações sociais nas quais os indivíduos estão inseridos.” (BURAWOY, 2010, p.93).

Burawoy discorre, ainda, sobre sua experiência em fábricas húngaras, em uma sociedade sob a batuta do socialismo real, onde esperar-se-ia que a submissão à dominação fosse ainda mais profun-da, tendo em vista que ali a coordenação do partido estatal cons-pirava para a criação de um habitus totalmente dominado. A tese de Burawoy era que, sendo do interesse de todos a produção do excedente no socialismo real, a exploração era justificada e escanca-rada. A realidade, no entanto, é que o Estado organizava verdadeiros espetáculos no chão de fábrica para celebrar suas eternas virtudes, visivelmente em contradição com a realidade social percebida pelos operários. Ao invés da estrutura social imprimindo-se de modo inde-lével sobre o habitus dos trabalhadores, assegurando a dominação da doxa, o regime socialista produzia mais discordância do que con-sentimento.

As conclusões de Burawoy parecem apontar em duas direções: por um lado, relativizar ou mesmo negar a existência do habitus, como sendo uma noção que em nada ajuda a compreender as trans-formações sociais e o comportamento dos indivíduos na interação com as estruturas organizativas da vida social, e, por outro lado, tenta conciliar a existência do habitus – mas desempenhando um

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papel coadjuvante – com o conceito de hegemonia gramsciano e os resultados de sua própria experiência intelectual nas pesquisas em ambientes fabris primeiramente no sistema capitalista e posterior-mente nos domínios do socialismo real.

Bourdieu e Franz Fanon

Quando Burawoy introduz Franz Fanon, os diálogos até então divergentes, mas passíveis de convergências, assumem um outro tom. Boudieu é profundamente hostil ao pensamento de Fanon, chegando a referir-se aos seus trabalhos como especulativos, irresponsáveis e perigosos.

Fanon e Bourdieu viveram na Argélia no mesmo período – embora não haja indícios de que tenham se encontrado – e escre-veram sobre os efeitos do colonialismo naquelas terras. Burawoy vale-se dos trabalhos mais antigos de Bourdieu, escritos quando ainda estava na Argélia, para contrapô-los aos de Fanon. O pro-jeto de Bourdieu era a reconstrução da teoria da modernização enquanto que a meta de Fanon era a reconstrução do marxismo. Curiosamente, para opor-se ao pensamento de Fanon, Bourdieu defende a ortodoxia marxista segundo a qual a classe trabalhadora é revolucionária contra a visão da FLN (Frente pela Libertação Nacional Argelina) endossada por Fanon, para quem o campesinato é que era a classe social eminentemente revolucionária naquele contexto.

Há, conforme demonstra Burawoy ao apresentar uma seqüên-cia de excertos de obras de Fanon e Bourdieu, convergências no diagnóstico que produziram sobre os efeitos do colonialismo na Argélia, além da convergência conceitual pelo interesse que ambos nutriram pela psicologia unida à pesquisa sociológica. Ainda assim, quando Bourdieu citava Fanon, era “sempre com veneno na língua” (BURAWOY, 2010, p.108). A hostilidade de Bourdieu para com o pensamento de Fanon, adverte Burawoy, deve ser vista não apenas em termos de veracidade científica mas também na perspectiva do contexto político francês.

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Na França, os inimigos de Bourdieu eram os trotskistas, os sta-linistas, os maoístas – enfim, os comunistas que acreditavam em uma classe trabalhadora eminentemente revolucionária; já na Argélia, seus inimigos eram Fanon e a FLN que afirmavam que os camponeses formavam a classe revolucionaria por excelência. (BURAWOY, 2010, p.117).

O real alvo dos ataques de Bourdieu quando se inflama contra Fanon é, afirma Burawoy, Jean Paul Sartre. Sartre usava Fanon para fazer valer sua idéia de uma revolução no Terceiro Mundo, desconsiderando o peso de uma intelligentsia liberal que assumira uma postura mais cautelosa perante a guerra na Argélia. Aqui, além de Sartre, o inimigo é também o conceito gramsciano de intelectual orgânico, direção para a qual caminhavam as formu-lações de Fanon, embora, aparentemente nunca tenha lido a obra do pensador italiano.

Bourdieu descrevia com freqüência os argelinos como indivíduos encurralados entre mundos opostos, o da modernidade e o da tradi-ção, tentando emendar um habitus partido que, levava à confusão e ao desnorteio, irrompendo freqüentemente em explosões de irracio-nalidade magnetizadas por sonhos utópicos. Tais antinomias foram abarcadas pelo que Bourdieu chamou de hysteresis: a situação na qual os comportamentos adquiridos em um certo campo impediriam a adaptação satisfatória em outro campo.

Para Fanon, havia dois projetos rivais competindo pela hegemo-nia dentro das classes colonizadas: aquele da burguesia nacional e levado adiante pelos seus próprios intelectuais com a classe traba-lhadora vindo a reboque, e outro centrado nos camponeses unidos aos seus intelectuais orgânicos. Caso a burguesia nacional vencesse a luta pelo controle do movimento de independência, a elite nativa que sucedesse à estrangeira jamais conseguiria criar uma verdadeira hegemonia, pois não dispunha dos recursos necessários para tanto, tornando-se não mais que uma classe imitadora e parasitária. O pro-cesso de independência degeneraria em uma ditadura e o racismo, o tribalismo e o nacionalismo tacanhos ressurgiriam. A única alter-nativa realmente progressista era, portanto, a da libertação nacional rumo ao socialismo democrático.

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Burawoy finaliza este capitulo salientando que não há nada de especulativo ou infundado na obra de Fanon, mas, ao invés disso, trata-se de uma descrição fiel do cenário argelino e, quiçá africano, que permitiu ao autor imortalizar profeticamente o destino da África.

Bourdieu e Simone de Beauvoir

Para Burawoy, Bourdieu utilizava-se do que chama de estratégias de silenciamento e de reconhecimento, que consistiam em localizar dentro do campo acadêmico aqueles que reconheciam ou admiravam (como Sartre e Foucault), mas tomando o cuidado de reduzir suas contribuições a conjuntos particulares de interesse ou a inconsciente illusio do campo e, em casos mais extremos, silenciar por completo o trabalho de seu antagonista, como é o caso de Beauvoir.

Bourdieu alegava que Beauvoir nutria um comportamento “obe-diente” em relação a Sartre. Para ele, ela não analisou sua própria relação com seu cônjuge. Burawoy, no entanto, destaca que, no capí-tulo sobre o amor e em outro sobre a independência feminina de O Segundo Sexo (1949), era precisamente esse o tema abordado pela escritora francesa, além do seu premiado romance Os mandarins (1954), que trata de seus romances com Sartre e com o poeta esta-dunidense Nelson Algren.

Mas, quando lançado, O segundo sexo foi mal recebido e iniciou--se um processo de banimento da obra, sem que, contudo, isso tenha impedido a apropriação das ideias de Beauvoir por muitos trabalhos feministas subseqüentes. Para Burawoy, Bourdieu, que deu conti-nuidade a esta amnésia coletiva em relação ao trabalho de Beauvoir, foi duplamente condenável, pois, além de comungar do expurgo de Beauvoir do campo intelectual reconhecido, bebeu fartamente da obra beauvoiriana para escrever A dominação masculina (1999) sem sequer citá-la. Pior que isso, a obra de Beauvoir teria antecipado em cinqüenta anos as ideias de Bourdieu, apresentando, contudo, detalhes mais ricos, sutis, complexos e buscando sempre o caminho para a superação da dominação masculina. “Em poucas palavras, o argumento deste capitulo é que A dominação masculina consti-tui uma pálida reprise das ideias já contidas em O segundo sexo.” (BURAWOY, 2010, p.134).

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O interesse de Bourdieu pelo tema da dominação masculina justifica-se por ele considerá-la o exemplo por excelência da relação paradoxal que chamou de dominação simbólica, sendo a dominação masculina o protótipo da dominação social e simbólica. Beauvoir, por outro lado, entendia a dominação masculina como uma moda-lidade especifica de dominação, diferente da dominação fundada na classe social. Em um aspecto, contudo, ambos convergiam, a domi-nação masculina era a forma extrema de dominação.

Depois de demonstrar como o trabalho de Beauvoir trata com maior profundidade e originalidade o tema a que Bourdieu se dedi-caria cinqüenta anos depois, Burawoy afirma que Bourdieu repro-duziu aquilo que pensava estar desafiando. Ao desprezar Beauvoir baseado no argumento de que ela foi simplesmente um penduricalho de Sartre, Bourdieu pratica sexismo no próprio ato de denunciá-lo, de condená-lo.

Bourdieu e Wright Mills

O último diálogo proposto por Burawoy é entre Bourdieu e Wright Mills. As convergências entre os pensamentos destes soci-ólogos são tamanhas que Burawoy refere-se a Wright Mills como o Bourdieu estadunidense. Ambos foram críticos ácidos de seus pares em seus respectivos países, ambos mantiveram um distancia-mento do marxismo, embora tenham tomado emprestadas diversas idéias de Marx. Mantiveram notáveis proximidades com a teori-zação weberiana e foram, ambos, grandes sociólogos e intelectuais públicos.

Ambos estudaram as formas pelas quais as classes dominantes impõem suas vontades à sociedade como um todo. Mills enfati-zou a concentração de recursos e a tomada de decisão pela elite do poder, enquanto que o enfoque de Bourdieu foi a dominação simbólica, ou como a estrutura das classes sociais apresenta um espaço bidimensional definido hierarquicamente pelo volume total do capital que detêm e horizontalmente pela composição relativa de diversos capitais (a combinação do capital-dinheiro e do capital--cultura).

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Leandro Silva de Oliveira

O tema da instabilidade da classe média perpassa as abordagens de Bourdieu e Mills. A educação como forma de capital distintivo da classe média diante da diminuição do abismo em relação à classe operária, bem como o papel da mídia de massa e o mundo ilusório que ela cria são pontos convergentes nas abordagens destes autores. Ambos são profundamente céticos quanto à sociedade de massa. As alternativas políticas, vislumbradas por Mills como contrapartidas frente ao ceticismo, tornaram-se mais e mais utópicas com o pas-sar do tempo, vendo na classe média uma retaguarda sem projeto político.

Mills opunha-se tanto às teorizações altamente abstratas que denominou “a grande teoria”, como ao empirismo alienado. Contra estas formas desvirtuadas de prática sociológica, o sociólogo esta-dunidense propunha a noção de artesanato: o desenvolvimento da teoria sociológica através do envolvimento com os dados empíri-cos sociais. Aliado ao artesanato sociológico está a figura do ‘inte-lectual independente’. A conexão entre o sociólogo como artesão e o intelectual independente seria feita pela noção de imaginação sociológica. Bourdieu, assim como Mills, era comprometido com a ideia de intelectual independente, tendo como antagonistas, de um lado, Jean-Paul Sartre, assim como Beauvoir e Foucault, na figura do “intelectual total”, e, por outro lado, os especialistas, tecnocratas, consultores do Estado-Nação, servos do poder.

Embora tanto Bourdieu quanto Mills estivessem pensando o papel do sociólogo, “[...] enquanto o primeiro travava imensas batalhas para criar uma ciência contra o senso comum, o segun-do vivia sufocado pelo profissionalismo e lutava para conectá-la novamente ao senso comum.” (BURAWOY, 2010, p.168). Desse modo, enquanto Bourdieu buscava dar à sociologia o prestígio do qual gozava a filosofia no campo intelectual francês, distanciando--se, neste processo, do público que pretendia atingir ao usar cons-truções sintáticas inacessíveis em sua extensa obra; Mills sofria do problema inverso, ao tornar seus livros mais acessíveis aos públi-cos e ao resistir aos jargões da ciência e da grande teoria, acabou perdendo credibilidade dentro do universo acadêmico. Apesar das diferenças, ambos viram-se diante do dilema de não encontrar um

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Encontros e desencontros em Pierre Bourdieu

público externo com o qual pudesse dialogar ou se engajar. Mas suas atitudes em relação ao público divergiam: enquanto Mills nunca se aproximou do povo, a quem se referia desdenhosamente como a massa, dirigindo-se a estes sempre de cima, do púlpito, Bourdieu estava sempre disposto a dialogar com qualquer tipo de público e audiência, assinar petições, envolver-se em piquetes de operários e nutria grande simpatia por aqueles que jaziam nas bases das hierarquias da sociedade. Nos últimos três anos de vida de Mills, bem como na última década de vida de Bourdieu, houve uma radicalização no pensamento e ação política destes sociólogos, incluindo uma ida à Cuba e posterior defesa de seu regime como uma alternativa política para além do capitalismo e do socialismo por parte de Mills; e um ataque aberto contra o neoliberalismo e as tiranias do mercado por parte de Bourdieu.

Burawoy finaliza este capitulo fazendo uma crítica ao intelectual coletivo de Mills e de Bourdieu, pois, para o sociólogo coletivo de hoje, a imaginação sociológica seria insuficiente perante a indus-trialização da universidade e da mercantilização do conhecimento, seria necessária, portanto, o que Burawoy chama de imaginação política, algo capaz de levar as ideias para o diálogo com os diversos públicos.

Finalmente, o holofote reflexivo que fora voltado contra Marx, acusando-o de ser incapaz de entender os efeitos da sua pró-pria teoria, poderia ser direcionado igualmente contra Mills e Bourdieu, por terem fracassado em desenvolver teorias acerca da própria contribuição ao debate público. (BURAWOY, 2010, p.174).

REFERÊNCIA

BOURDIEU, P. Meditações pascalinas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BURAWOY, M. O Marxismo encontra Bourdieu. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2010.

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SOBRE OS AUTORES E ORGANIZADORES

ARIELLA SILVA ARAUJOMestre em Ciências Sociais. UNESP – Universidade Estadual

Paulista. Faculdade de Ciências e Letras  – Pós-Graduação em Ciências Sociais. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901. Membro do Grupo de Trabalho do Núcleo Negro da UNESP para pesquisa e extensão (NUPE). Pesquisadora do Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN) e do Laboratório de Estudos Africanos, Afro-brasileiros e da Diversidade (LEAD). Membro do Grupo de Estudos sobre Escravidão e Relações Étnico-Raciais (ERA). Bolsista CAPES – [email protected]

BEATRIZ ISOLA COUTINHOMestre em Sociologia. UNESP – Universidade Estadual Paulista.

Faculdade de Ciências e Letras  – Pós-Graduação em Ciências Sociais. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901. Integrante do grupo de pesquisa Trabalho e Trabalhadores na mesma instituição  – [email protected]

GÉSSICA TREVIZAN PERADoutoranda em Sociologia. UNESP  – Universidade Estadual

Paulista. Faculdade de Ciências e Letras  – Pós-Graduação em Ciências Sociais. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901 – [email protected]

JOYCE ANSELMOMestre em Sociologia. UNESP – Universidade Estadual Paulista.

Faculdade de Ciências e Letras  – Pós-Graduação em Ciências

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Sociais. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Sociedade, Poder Organização, e Mercado (NESPOM). Autora do livro: Inclusão das mulheres como investidoras na Bolsa de Valores de São Paulo: Limites e ambigüidades, UNESP (no prelo) – [email protected]

LEANDRO SILVA DE OLIVEIRAMestre em Sociologia. UNESP – Universidade Estadual Paulista.

Faculdade de Ciências e Letras – Pós-Graduação em Ciências Sociais. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901– [email protected]

MARIA CHAVES JARDIMProfessora do Departamento de Sociologia. UNESP – Universidade

Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901 – Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Sociedade, Poder Organização, e Mercado (NESPOM). Pesquisadora Fapesp e CNPQ. Possui diversos livros e artigos no tema da sociologia econômica e das finanças. [email protected]

MARIANA SENO FLORESBolsista Fapesp. Graduanda em Ciências Sociais. UFSCAR  –

Universidade Federal de São Carlos. São Carlos – SP- Brasil. 13565-905 – [email protected]

MARIANA TONUSSI MILANOMestre em Ciências Sociais. UNESP – Universidade Estadual

Paulista. Faculdade de Ciências e Letras – Pós-Graduação em Ciências Sociais. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901. Bolsista FAPESP – [email protected]

MARTIN MUNDO NETO Professor Doutor. FATEC  – Faculdade de Tecnologia de São

Paulo. Faculdade de Tecnologia de Taquaritinga. Taquaritinga – SP – Brasil. 15900-000 – [email protected]

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NATHALIA MUYLAERT LOCKSDoutoranda em Sociologia. UNESP  – Universidade Estadual

Paulista. Faculdade de Ciências e Letras – Pós-Graduação em Ciências Sociais. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901 – [email protected]

ROGÉRIO PEREIRA DE CAMPOSDoutorando em Sociologia. UNESP  – Universidade Estadual

Paulista. Faculdade de Ciências e Letras – Pós-Graduação em Ciências Sociais. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901 – [email protected]

ROSEMEIRE SALATAMestre em Sociologia. UNESP – Universidade Estadual Paulista.

Faculdade de Ciências e Letras – Pós-Graduação em Ciências Sociais. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901 – [email protected]

SAMUEL CANDIDO DE SOUZADoutorando em Ciência Política. UFSCAR  – Universidade

Federal de São Carlos. Pós-graduação em Ciência Política. São Carlos – SP- Brasil. 13565-905 – [email protected].

TALITA VANESSA PENARIOL NATARELLIMestre em Sociologia. UNESP – Universidade Estadual Paulista.

Faculdade de Ciências e Letras – Pós-Graduação em Ciências Sociais. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901 – [email protected]

WELLINGTON AFONSO DESIDERIOMestre em Engenharia de Produção. UFSCAR – Universidade

Federal de São Carlos. Centro de Ciências Exatas e Tecnologia – Pós-Graduação em Engenharia de Produção. São Carlos – SP – Brasil. 13565-905 – [email protected]

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SOBRE O VOLUME

Série Temas em Sociologia nº 6Formato: 14 x 21 cm

Mancha: 10,4 x 17,4 cmTipologia: Garamond 12/11Polen bold 90 g/m2 (miolo)

Cartão supremo 250 g/m2 (capa)Primeira edição: 2013

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Fone: (16) 3334-6275 ou 3334-6234E-mail: [email protected]

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