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1 ALEX GONZALEZ CUSTÓDIO ESTADO DE DIREITO, PODER JUDICIÁRIO E CIDADANIA Ijuí (RS) 2006

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ALEX GONZALEZ CUSTÓDIO

ESTADO DE DIREITO, PODER JUDICIÁRIO E CIDADANIA

Ijuí (RS)

2006

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ALEX GONZALEZ CUSTÓDIO

ESTADO DE DIREITO, PODER JUDICIÁRIO E CIDADANIA

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em Desenvolvimento,

Mestrado, Área de Concentração: Direito, Cidadania e Desenvolvimento, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul

UNIJUÍ, para obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento.

Orientador: Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin

Ijuí (RS)

2006

3

3

Aos meus pais, pela oportunidade de estar

neste mundo com vida, saúde e educação.

Ao meu filho João Pedro pelo simples fato de

existir em minha vida, fonte de meu viver.

À Luísa Bagatini, pelo amor, renovação de

esperança, confiança, inspiração e incentivo ao

estudo e pela compreensão dos obstáculos e

superação das dificuldades desta vida.

4

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Universidade do Noroeste do

Estado do Rio Grande do Sul pela oportunidade de

realizar este estudo.

Ao Prof. Gilmar Antonio Bedin pela atenção

e paciência.

Ao Prof. Idemir Luiz Bagatini, pelas

conversas sinceras, contribuições e orientações,

grande amigo e parceiro.

A D. Vania Julia Bagatini pelo apoio em

momentos precisos e valiosos em minha vida e na do

meu filho João Pedro.

À Júlia Bagatini, por privar de sua amizade,

alegria e sinceridade.

À Deus agradeço todos os dias pela

oportunidade de chegar até onde estou e por aqueles

que estão comigo.

5

A Jurisdição, que pretende ser instrumento de promoção do direito, da realização do projeto constitucional emancipatório, precisa ser uma Jurisdição forte, capaz de intervir e de mediar, sem olvidar os ditames democráticos que devem orientar as atividades estatais. A Jurisdição necessita perceber e considerar o humano que reside nos conflitos sociais, para poder construir soluções que aproximem as respostas jurisdicionais do conjunto de expectativas que a sociedade tem em relação ao direito. É preciso que a Jurisdição tradicional sofra os riscos de um encontro verdadeiro e definitivo com a democracia substancial, encontro que é pressuposto para se pensar de modo sério sobre os papéis jurisdicionais na complexa sociedade contemporânea. (Doglas Cesar Lucas)

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RESUMO

O Estado, na sua evolução, chegou a conformação de Estado de Direito. Por não ser suficiente, dentre todos os seus vieses, chegou ao Estado Constitucional Democrático de Direito, em que os direitos fundamentais estão estampados no texto Constitucional. O exercício da cidadania na realização destes direitos tornou-se essencial para que Poder Judiciário possa se converter em um instrumento de realização e efetivação daqueles direitos sociais constitucionalizados. Nesse novo contorno das funções do Poder Judiciário no Estado de Direito, ele passa a exercer um papel ativo como Poder de Estado na efetivação dos direitos fundamentais constitucionais e na solução dos conflitos sociais, mesmo contra o próprio Estado. Na busca da conciliação dos conflitos, o Juiz Constitucional pode oportunizar a todos cidadãos desfrutar dos benefícios sociais de um Estado desenvolvido não somente no aspecto do capital, mas também de inclusão social.

Palavras-chave: Estado de Direito. Direitos Sociais Constitucionais. Estado Constitucional Democrático de Bem-Estar. Cidadania. Novas Funções do Poder Judiciário. Juiz Constitucional. Efetividade dos Direitos Sociais Constitucionais. Inclusão Social.

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ABSTRACT

The Law State was the natural evolution of the State. But this was not enough and we reached the Constitutional Democratic Law State, in which the fundamental rights are written in the Constitution. The exercise of citizenship, so that these constitutional and social rights could be reached, has been essential for the Judiciary System to convert itself in an instrument of realization and effectiveness of them. In this new scenario of attributions of the Judiciary System in the Law State, it is its roll to be real active as a Power of the State in order to enforce the fundamental constitutional rights and to solve the social conflicts, even if it has to go against the own State. In the search to resume the conflicts, the Constitutional Judge has the task to offer to all citizens the ways to enjoy the social benefits of a developed State, not only in the financial aspect, but also regarding social inclusion.

Keywords: Law State. Social Constitutional Rights. Constitutional Democratic Welfare State. Citizenship. New Attributes of the Judiciary System. Constitutional Judge. Effectiveness of Social Constitutional Rights. Social Inclusion.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................9

1 ESTADO MODERNO: ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS.............................13 1.1 Aspectos históricos do Estado Moderno.............................................................................13 1.2 Aspectos conceituais do Estado Moderno ..........................................................................16 1.3 O Estado Moderno e seu fundamento.................................................................................32 1.4 O Estado Moderno e sua democratização...........................................................................40 1.5 Considerações finais ...........................................................................................................50

2 ESTADO DE DIREITO E SUA TRANSFORMAÇÃO .......................................................52 2.1 Estado de Direito e Constituição ........................................................................................52 2.3 A transformação do Estado de Direito................................................................................74 2.4 Considerações finais ...........................................................................................................80

3 ESTADO DE DIREITO, PODER JUDICIÁRIO E MAGISTRATURA CONSTITU-CIONAL ...................................................................................................................................81 3.1 Estado de Direito e Poder Judiciário...................................................................................82 3.2 A superação do Princípio da Não-Intervenção ...................................................................87 3.3 Poder judiciário, magistratura constitucional e cidadania ..................................................94 3.4 Considerações finais .........................................................................................................101

CONCLUSÃO ........................................................................................................................103

REFERÊNCIAS......................................................................................................................108

OBRAS CONSULTADAS.....................................................................................................110

9

INTRODUÇÃO

A evolução do Estado de Direito e o constante dinamismo da sociedade determinam

que continuamente o Estado e seus componentes precisem se renovar e readaptar suas

funções, (re) construindo suas estruturas para responder às demandas e conflitos sociais

ocorrentes na sociedade.

A questão do trabalho proposto será verificar a compreensão evolutiva do Estado de

Direito, sua transformação no século XX, assim como sua relação com o Poder Judiciário

nesta evolução histórica, chegando a um momento em que pelo exercício da cidadania, por

meio da educação e dos direitos sociais fundamentais constitucionalizados, se pode chegar a

efetividade desses direitos, constituindo-se o Poder Judiciário, por previsão constitucional,

num instrumento na realização da cidadania e do desenvolvimento do Estado Constitucional

Social.

O trabalho foi estruturado em três capítulos: o Estado Moderno e seus aspectos

históricos e conceituais, o Estado de Direito e sua Transformação e finalizando com o Estado

de Direito, Poder Judiciário e a Magistratura Constitucional.

Num primeiro momento examinar-se-á o próprio aparecimento do Estado Moderno. A

seguir procurar-se-á o surgimento do Estado de Direito, com a limitação jurídica do Estado, o

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Estado Constitucional de Direito, a Teoria da Tripartição dos Poderes, o papel do Poder

Judiciário nesse contexto e a democratização do Estado Moderno. Verificar-se-á que o que se

entende por Estado como desorganização, passando por centralizações, descentralizações,

primado da lei e da constituição, da evolução do objeto do Estado limitado ao monarca,

transitando pelo individualismo, depois pelas liberdades e igualdades, chegar a prevalência

dos direitos sociais como forma de garantia de qualidade de vida e de justiça social.

Numa segunda etapa examinar-se-á o Estado de Direito, a relação entre ele e um texto

escrito que limita suas ações, na sua submissão ao direito. Perguntar-se se o surgimento de

Declaração dos Direitos do Homem determina o início da civilização dos Estados-nação,

trazendo o viés Constitucional. Se a agregação do elemento democrático do Estado de Direito

inserido desde as duas primeiras constituições surgidas no mundo moderno origina o Estado

Democrático de Direito. Far-se-á um breve cotejo entre a Democracia Estatal com o Estado

Totalitário, que não deixa de ser um Estado subordinado a um ordenamento jurídico, mas sem

os componentes de liberdade e igualdade. Ver se o Estado Democrático de Direito se basta em

si mesmo, ou se ele somente será democrático para aqueles que possam gozar da democracia,

e se houve uma maior preocupação com a questão social, com ele se aparelhando para

garantir os direitos do homem. Ver se diante da sua omissão em realizar esses direitos, vem a

necessidade de efetivá-los. Com sua inserção no Texto Constitucional, verificar-se-á nova

transmudação do Estado de Direito, que passa a ser um Estado Constitucional Social de

Direito.

No terceiro capítulo do trabalho analisar-se-á a relação entre o Estado de Direito e o

Poder Judiciário, procurando constatar que não adianta apenas constitucionalizar direitos, mas

é preciso efetivá-los. Nesse sentido examinar-se-á qual a necessidade e como se dará esta

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intervenção frente a norma constitucional, se pode dar e garantir essa materialidade dessa

norma, que determina que a lei não exclui da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão

ou risco de lesão a um direito definido. Analisar-se-á como o Judiciário pode ter uma atuação

jurídico-político-econômica e como chegar ao conceito de Magistratura Constitucional.

Realizar-se-á um cotejo do Juiz como personificação de um Poder, ponderando se terá como

superar princípios que limitam suas funções, preceitos que foram herdados do Estado Liberal,

em que o Poder Judiciário tinha função de aplicador da lei para manutenção da segurança

jurídica, garantia da ordem pública e harmonia social. Além disso, buscar precisar se este Juiz

Constitucional terá condições de humanizar suas funções, se poderá deixar de decidir de

forma racionalizada e padronizada e enfrentar situações que retratam a realidade material da

sociedade, se há elementos que determinem o abandono de tecnicismos e formalismos, que

são bengalas de insegurança.

Nestes termos procurar-se-á determinar como a Magistratura Convencional do Estado

Liberal pode transformar-se em Magistratura Constitucional, se o Juiz não apenas só um

aplicador da lei, e se pode converter-se em um aplicador do direito e essencialmente dos

princípios e preceitos constitucionais, principalmente na efetividade e concretude dos direitos

sociais constitucionalizados. Ver se por isso a Magistratura pode converter-se em instrumento

efetivo da cidadania e do Estado de Direito, valorizando a capacidade mobilizatória da

cidadania ativa e da efetividade da cidadania.

Procurar concluir se o Poder Judiciário está limitado a enquadrar condutas nos textos

legais e legitimar situações do próprio Estado, ou se tem capacidade de construir soluções que

valorizem e traduzam os direitos e preceitos constitucionais, tendo o Texto Constitucional

como linha de fundamento na solução dos conflitos sociais, e se está pronto para assumir seus

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novos contornos no Estado Democrático Constitucional Social de Direito, para poder erigir-se

em uma Jurisdição garantidora da efetivação dos direitos sociais, promovendo, com isso, a

solidez da Democracia Constitucional Social Participativa.

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1 ESTADO MODERNO: ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS

O Estado Moderno possui uma longa trajetória histórica. Nesta trajetória passou pelas

fases de constituição, estruturação, de personalização, para depois despersonalizar-se,

envolvendo seus objetivos e finalidades, modificando seu foco de atuação desde a associação

mais primitiva até a noção de coletividade e prevalência da questão social. É essa evolução

gradual que se estabelece de acordo com as características históricas e conceituais de cada

período do desenvolvimento do Estado Moderno.

1.1 Aspectos históricos do Estado Moderno

O fenômeno que se denomina de Estado Moderno na atualidade passou por diversas

fases de existência até adotar-se essa denominação. Para se chegar ao que hoje se chama

Estado Moderno há que se verificar como se formou o próprio Estado, pelos seus elementos

históricos a respeito das diversas formas governativas da sociedade ocidental. Por isso, afirma

Bonavides (2004, p. 27) que a locução Estado Moderno só se faz inteligível na sua

realidade contemporânea se houver primeiro remissão a elementos históricos que ilustram a

natureza governativa da sociedade ocidental já na Antiguidade, já na Idade Média.

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Apesar desta conexão histórica, o Estado Moderno possui elementos que lhe são

próprios. É que o Estado Moderno se coloca como uma nova representação de poder,

completamente distinta daquela que prevaleceu quer em um tempo passado distante, ou

mesmo em um tempo passado mais próximo.

Conforme preconiza Bedin (2001, p. 94), o movimento de idéias que conduziram ao

surgimento do Estado Moderno teve sua emergência junto com o Renascimento, num

movimento de artistas e filósofos que, impulsionados pelo desenvolvimento econômico e

pelo florescimento das cidades, tinham como objetivo recuperar e socializar a antiga erudição

e modelos da Grécia e de Roma . Este movimento de idéias deu origem a uma nova forma de

organização social-pública.

Dessa forma, durante certo período, coexistiram duas formas de organização sócio-

política, ou seja, de um lado o feudalismo, e de outro o capitalismo, representado pela

burguesia, que, na realidade, eram comerciantes, que passaram a acumular capital e financiar

os nobres feudais.

Morais e Streck fazem referência a este período de transição:

Durante algum tempo coexistiram dois tipos de relações em realidade pouco compatíveis: uma ordem de relações feudais fixas, em que as pessoas tinham distintos estatutos segundo sua posição de classe, e uma ordem de capitalismo mercantil, em que as pessoas valiam em função do que podiam comprar, independentemente de sua origem social. (2004, p. 23).

Não se sabe exatamente quando houve o surgimento do que se entende por Estado

Moderno em seus elementos mais incipientes, com o capitalismo da burguesia, estabelecendo-

se na sua versão absolutista. Por isso coexistiu durante séculos o feudalismo, na iminência de

seu término, e capitalismo, que apenas estava surgindo para o mundo. Com o fim do

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feudalismo e o surgimento do incipiente Estado Moderno, na forma absolutista, houve uma

transformação da relação social, passando de uma relação pessoal, entre o vassalo e seu

Suserano, para uma relação de subordinação legal-racional, ou seja, com o fim dos feudos,

com a formação de unidades políticas mais estáveis, a relação deixou de ser pessoal para ser

de subordinação e respeito ao Rei, chefe da nação ou reino.

Morais e Streck ilustram esse conceito com precisão:

Tem-se, assim, utilizando a linguagem dos tipos ideais weberianos, que na forma estatal medieval vigorou o tipo de dominação carismática, caracterizada por Max Weber como decorrente de uma relação social especificamente extracotidiana e puramente pessoal. O lócus apropriado para estudar a dominação carismática é o medievo (Idade Média). Freqüente-mente o carisma repousa no direito hereditário de primogenitura do senhor feudal. Dito de outro modo, é a dominação que decorre da relação ex parte príncipe, porque pessoalizada. Afinal de contas, o servo da gleba tinha relação direta face a face

com o senhor feudal que, inclusive, detinha o direito de possuir plebéias na primeira noite de casadas. Os servos não conheciam a autoridade que não a do seu senhor. Não era o rei que submetia o plebeu

o vassalo

e, sim, o conde ou barão, proprietário do feudo. Por outro lado, tal situação refletia uma multiplicidade de ordens e poderes, tantas quantas fossem os feudos e seus senhores, as quais concorriam entre si, bem como com o monarca. Com a passagem da forma estatal medieval para o Estado Moderno

na sua versão inicial absolutista

tem-se o início de um modelo de dominação legal-racional. Ou seja, do ex parte príncipe passa ao ex parte principio. O vassalo do Suserano passa a ser súdito do rei, o que, a evidência, não deixa de ser uma novidade (e um avanço), da mesma forma que os diversos poderes dispersos pelos feudos são substituídos e unificados no poder soberano da monarquia absoluta. (2004, p. 23-24).

As monarquias absolutistas exerciam poder sobre tudo que existia em seu reino, desde

a propriedade, em que cedia terra ao trabalhador, que a cultivava em nome do soberano, bem

como era o dono do próprio vassalo. Nesse sentido Morais e Streck (2004, p. 44-45) afirmam

[...] que os reis constituíram-se como senhores dos Estados, tal qual o faziam os senhores

feudais do medievo, titularizando individualmente a propriedade do Estado.

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Por conta desta titularização de tudo e de todos como objetos do soberano, decorreram

inúmeros conflitos entre os nobres, com guerras de religião, desmembramentos, competições

econômicas que dificultavam a política de equilíbrio europeu. As Dinastias reinantes ficavam

entre a paz e a guerra, diplomacia e armas, segurança e instabilidade, traições e lealdades, por

conta de sucessões e ambições cada vez mais individualistas e centralizadoras do poder.

Não se pode esquecer que nesse período dominava o entendimento de que o poder do

Rei tinha origem divina, [...] o rei seria o representante de Deus na Terra, o que lhe permitia

desvincular-se de qualquer vínculo limitativo de sua autoridade. (MORAIS; STRECK, 2004,

p. 45).

Na realidade o rei supervalorizou suas próprias limitações e privilégios com o

monopólio do poder, extrapolando o que já no regime feudal era perverso, mantendo a mesma

ordem feudal, mas mais despótica. Moreira (2002, p. 27) afirmou [...] o capitalismo floresceu

com mais força e mais cedo onde era mais fraco, ou mesmo inexistente, o poder central.

O absolutismo monárquico é o ápice do poder do príncipe, que não encontrava mais

limites para o exercício de seu poder, nem dentro, nem fora do seu Estado Absolutista. Esta é

a primeira forma de aparição do Estado moderno: um Estado centralizado e absoluto.

1.2 Aspectos conceituais do Estado Moderno

A palavra Stato surgiu na Itália, mas com uma significação muito vaga e superficial,

espalhando-se pela Inglaterra, séc. XV, depois França e Alemanha, séc. XVI. Foi Maquiavel

que introduziu a expressão de forma definitiva na literatura científica.

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Nesse aspecto, Bester vem nos trazer seu estudo a respeito do assunto, nesses termos:

Lembramos que foi o Florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527) o primeiro pensador a registrar o termo Estado (lo Stato), em sua obra O Príncipe, de 1513, sendo por isso mesmo considerado o pai da Ciência Política e, com efeito, o Estado Moderno corporificou-se nas grandes nações unificadas (Estado-Nação = Monarquias Absolutas), a partir do século XV, exatamente como apregoado por Maquiavel. Trazemos, no entanto, um conceito de Estado dado pelo sociólogo Max Weber, para quem o Estado é detentor do monopólio da força legítima para manutenção da ordem vigente, isto é, do monopólio da Justiça (punição), da cobrança de tributos fiscais, de cunhar moedas, etc. verdadeiramente, um dos mais antigos preceitos da Filosófica Política diz que o Estado tem o monopólio do uso da força, isto é, apenas o poder público pode usar da violência (e mesmo assim, na medida necessária) para garantir o cumprimento da lei e evitar que surja a guerra de todos contra todos. Logo, o Estado é a Instituição com poderes para organizar a sociedade em um dado território, coercitivamente, isto é, para disciplinar o convício social humano por meio do Direito, por meio de normas jurídicas obrigatórias, acompanhadas de sanções. (2005, p. 10, grifo da autora).

A partir disso Bedin afirma ser o Estado Moderno

uma unidade política autônoma à qual os súditos devem taxas e obrigações. O pré-requisito essencial do conceito ocidental de Estado, tal como se configurou nos primórdios do período moderno, era a idéia de soberania. Por isso, dentro de suas fronteiras, o Estado era absoluto; todas as outras instituições, tanto seculares quanto religiosas, tinham de reconhecer sua autoridade. A arte de governar implicava em canalizar as ambições e a energia dos ricos e poderosos, de modo a colocá-los a serviço do Estado. Ampliando o seu poder mediante guerra e tributos, o Estado se tornara unidade básica da autoridade política do Ocidente. (2001, p. 110).

Efetivamente este Estado descrito é unitário, concentrando e centralizando, ocorrente

na metade do século XV.

Bonavides assim descreve o Estado nesse período:

Eis aí a que se reduzia, pois, o Estado Antigo: numa extremidade, a força bruta das tiranias imperiais típicas do Oriente; noutra, a onipotência consuetudinária do Direito ao fazer suprema, em certa maneira, a vontade do corpo social, qualitativamente cifrado na ética teológica da pólis grega ou no zelo sagrado da coisa pública, a res da civitas romana. (2004, p. 28).

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No período da chamada Idade Média, houve o domínio da Igreja, em que ela e o

Estado eram indissociáveis e com interesses conjuntos. Não havia unidade política, cada

feudo, sob poder de seu nobre, era senhor de tudo que nele estava inserido. O poder era

descentralizado, exercido pelos nobres. Não havia indivíduo, mas estruturas coletivas, em que

o homem não objetivava o direito. O Rei era ungido pelo próprio Deus. Daí a união com a

Igreja. Até este momento o Rei apenas governava se tivesse o apoio de seus nobres. Morais e

Streck (2004, p. 25) descrevem o Estado Feudal como sendo aquele em que O Estado

Medieval é propriedade do senhor, é um Estado patrimonial. O senhor é dono do território e

de tudo o que nele se encontra (homens e bens).

Contudo, a partir do momento o rei passa a ser o soberano e representar o Estado

como instituição autônoma e independente, centralizando o poder e sendo sua vontade a lei a

ser cumprida, os nobres perdem poder e passam a ser súditos, assim como seus vassalos,

passando o poder do Rei a ser absoluto.

Morais e Streck (2004) colocam em dúvida a existência ou não de uma continuidade

ou uma descontinuidade do que era considerado Estado, a partir de Maquiavel, na obra o

Príncipe, porque naquele período, considerando-se que todos os Estados que existiam e

existem sobre os homens foram e são repúblicas ou principados.

O Estado Medieval era uma espécie de Estado Antigo atenuado, em que os senhores

feudais tentavam o restabelecimento do que fora o Império Romano, mas não tinham a noção

de Estado na concepção que atualmente se reconhece, porque todo senhor, ao exercer sua

autoridade dentro dos limites de seu feudo, determinava um enfraquecimento do que significa

Estado como instituição representativa da união de um povo sobre um território, sob um

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governo único e soberano (MORAIS; STRECK, 2004).

Bonavides assim leciona a respeito:

A Idade Média cristã, após o colapso do Império Romano, testificou de certo modo a decadência

se não o fim

ou o acaso de uma idéia, modelo e fórmula de governo conhecida dos antigos, e que nós, os modernos, tendo em vista a versão que nos é familiar, designamos debaixo do nome de Estado; nome que eles, todavia, desconheceram, por encobrir uma realidade e dimensão que lhes era, por inteiro, estranha. Em verdade, toda Idade Média, com sua organização feudal levantada sobre as ruínas do Império Romano, vira em certa maneira arrefecer a concepção de Estado. Pelo menos do Estado no sentido de instituição materialmente concentradora de coerção, apta a estampar a unidade de um sistema de plenitude normativa e eficácia absoluta. (2004, p. 28).

A conotação teológica ainda se manifestava forte no Estado Medievo, onde se

concentravam duas autoridades concomitantemente, uma do próprio senhor e a outra

religiosa, assim retratada por Bonavides:

De uma parte, a autoridade temporal ressuscitada na imagem do Santo Império Romano-Germânico; doutra, a autoridade espiritual dos Papas, em toda sua majestade, rodeada da aura divina com porfiar por uma supremacia jamais lograda nem consumada ao longo de tantos séculos de rivalidades do Sumo Pontífice com os Imperadores da Coroa Romano-Germânica. (2004, p. 28-29).

Nestes termos, o início da noção do Estado Moderno teve por fundamento a soberania,

em que os monarcas simbolizavam a figura do governo, como assim nos ensina Bonavides:

Ao término da Idade Média e começo da primeira revolução iluminista que foi a Renascença, brilhante precursora da segunda revolução, a revolução da razão, ocorrida no século XVIII, o Estado Moderno já manifestava traços inconfundíveis de sua aparição cristalizada naquele conceito sumo e unificador

o de soberania, que ainda hoje é seu traço mais característico, sem embargo das relutâncias globalizadoras e neoliberais convergentes no sentido de expurgá-lo das teorias contemporâneas de poder. [...]. Mas nunca cabe deslembrar que foi a soberania, por sem dúvida, o grande princípio que inaugurou o Estado Moderno, impossível de constituir-se se lhe falecesse a sólida doutrina de um poder inabalável e inexpugnável, teorizado e concretizado na qualidade superlativa de autoridade central, unitária, monopolizadora de coerção. (2004, p. 29).

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Com isso o Estado deixa de ser uma instituição ligada a autoridade divina e passa a se

constituir a partir de um entendimento de que o governante é o próprio Estado, é quem detém

o poder absoluto. Essa característica deste Estado, ainda Medieval, mas já com elementos do

Estado Moderno como instituição, vem assim retratada por Morais e Streck:

Nessa linha, é importante registrar que, naquilo que se passou a denominar Estado Moderno, o Poder se torna instituição (uma empresa a serviço de uma idéia, com potência superior à dos indivíduos). É a idéia de uma dissociação da autoridade e do indivíduo que a exerce. O poder despersonalizado precisa de um titular: o Estado. Assim, o Estado procede da institucionalização do poder, sendo que suas condições de existência são território, a nação, mas potência e autoridade. Esses elementos dão origem à idéia de Estado. Ou seja, o Estado Moderno deixa de ser patrimonial. Ao contrário da forma estatal medieval, em que os monarcas, marqueses, condes e barões eram donos do território e de tudo o que neles se encontrava (homens e bens), no Estado Moderno passa a haver a identificação absoluta entre Estado e monarca, nos termos de soberania estatal. L etat c est moi. (2004, p. 27).

Assim o Estado deixa de ser patrimonial, em que o senhor é proprietário e passa a ser

poder institucional, em que o monarca é o poder, é o Estado personificado.

Foi nesse contexto de revolução e do pensamento iluminista que surge a idéia de

codificação e sistematização de normas jurídicas, como produto de todos e aplicável a todos,

tanto ao cidadão como ao legislador, que tem poder delegado dos cidadãos. É nesse período

que surge o Código Napoleônico de 1.804, somada a codificação justiniana, como elementos

formadores do pensamento jurídico ocidental (LEAL, 2001).

Leal assim nos descreve esse pensamento surgido no inicio do Estado Moderno:

Junto com a positivação formal de direitos, surge a escola exegética de hermenêutica, que se preocupa em expor tão-somente a matéria dos códigos, artigo por artigo, buscando identificar assim a vontade do legislador, enclausurando a potencialidade sígnica da Lei nos estreitos limites de uma mens legens, conhecida exclusivamente por poucos iluminados. (2001, p. 115).

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O autor reporta-se ao aspecto de submissão da sociedade aos ditames do ordenamento

jurídico, o qual deve ser cumprido por essa mesma sociedade justamente para dar um sentido

de ordem e harmonia de convivência, sem dúvidas de sua aplicação, sob pena de sanções

legais, assim definindo: Estes aspectos revelam uma sociedade regida pelo binômio lei-

ordem, que dará sustentáculo meramente discursivo a um modelo de Estado fundado em

normas de caráter público e natureza coercitiva, sem permitir quaisquer perquirições sobre o

poder em si e sua justificação. (LEAL, 2001, p. 117).

O autor afirma que foi a legalidade do Estado de Direito o mediador entre o Estado-

Político, o Estado-Econômico e o Estado-Sociedade, na seguinte lição:

Como princípio norteador das sociedade democráticas modernas, a legalidade, conforme José Eduardo Faria, age como instância de mediação entre o político e o econômico junto às formações sociais capitalistas, tentando velar os níveis da latência e explosão das contradições que são sempre desiguais, e a pacificação global das tensões, até agora inatingível. Ao regular as relações e os conflitos sociais, num plano de elevada abstração conceitual, sob a forma de um sistema normativo coerentemente articulado sob o ponto de vista lógico-formal, a lei nada mais é do que uma ficção a cumprir uma função pragmática precisa: fixar os limites das reações sociais, programando comportamentos, calibrando expectativas e induzindo à obediência no sentido de uma vigorosa prontidão generalizada de todos os cidadãos à aceitação passiva das normas gerais e impessoais. (LEAL, 2001, p. 119).

Na realidade o homem inventou o direito no sentido de proteção do próprio homem,

para exercer seus deveres e exigir seus direitos. O homem era elemento integrante do direito

natural, em que tinha liberdade na natureza, mas sempre deveria estar preocupado com o que

estava a sua volta, fosse com animais, ou mesmo com outros homens. Vigia a era da força

bruta em que se vencia e se limitava a liberdade pela imposição bruta e violenta. O direito de

ir e vir constante dos ordenamentos estabelecidos nos incipientes Estados Modernos

significava que anteriormente não havia esta liberdade. Dessa forma, foi pelo ordenamento

legal que o homem veio a gozar de liberdade. Decorreu também a liberdade da estrutura

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coletiva.

Veja-se na narrativa de Bonavides:

Começa o capítulo da limitação do poder; do homem-povo, do Homem-cidadão, do Homem-político, do Homem que faz lei, que governa, ou se deixa governar, que cria a representação, que toma consciência da legitimidade, que é poder constituinte e poder constituído. Este primeiro Estado constitucional cristaliza-se ao redor de uma noção fundamental nascida dos escombros e ruínas da sociedade feudal: a noção de povo, a idéia que há cerca de três séculos ilumina o caminho para a criação definitiva de um sistema democrático de poder, e que ao mesmo passo inspira a concretização dos direitos fundamentais de todas as dimensões. Em verdade, o povo-símbolo, se não foi criação do Idealismo burguês do século XVIII, foi, com certeza, herança do Jusnaturalismo. Grandiosa herança, em vários sentidos! Mormente por fazer-se ele mola e impulso de ações revolucionárias que alteraram profundamente a substância e o caráter do Estado Moderno, tendo por epílogo a passagem do Absolutismo ao Constitucionalismo, conforme já se assinalou. (2004, p. 34-35).

Bonavides expressa, dessa forma, o nascimento do Estado Moderno com suas

características fundamentais, iniciando pela definição de povo, inserido em um território, que

se dá conta de sua legitimidade e surge como o Homem-cidadão. Assim estabelece o autor:

Quando o povo incorpora a alma da Nação, toma consciência do destino, proclama os elementos espirituais da identidade ou se revela nas qualidades morais e nas virtudes associativas da cidadania,esse povo é imortal. O tempo, inimigo dos Impérios e das Civilizações, passa; mas o povo, criador da nacionalidade formada com tecido da fé, o poder das idéias, o cimento da tradição, a presença dos valores, a memória e o sangue dos antepassados, esse povo jamais passará. Ele é esperança, abnegação, constância, sacrifício e fraternidade. Vivendo na oscilação das alegrias e das dores, dos triunfos e dos reveses, dos avanços e dos recuos e, acima de tudo, presente na comunhão de princípios e aspirações, o povo, sintetiza a Nação em seu teor vocacional de perpetuidade. (2004, p. 35).

Isto veio determinar o surgimento do Estado Constitucional, construído para assegurar

a liberdade do homem e seus direitos, inclusive contra o próprio Estado. Corrêa (2000, p.77)

preceituou que a forma de limitação da atuação deste Estado-Rei, consistia em colocar o

homem acima do Estado, anterior a ele, através de uma combinação teórica entre o

contratualismo e direitos naturais do homem. Para formalizar tal inversão surgem as

23

Constituições.

A existência deste ordenamento jurídico a exercer uma limitação ao exercício dos

direitos do homem e garantia deles e proteção pelo Estado, fez surgir o Estado de Direito, em

que as características e elementos organizacionais foram resultado de processos

revolucionários, surgindo o Estado com as seguintes exigências básicas, como descreve

Bester:

[...] o império da lei como expressão da vontade geral, a divisão de poderes: legislativo, executivo e judiciário, a legalidade da administração: atuação segundo a lei e com suficiente controle judicial e os direitos e as liberdades fundamentais: não só a garantia jurídico-formal mas também a efetiva realização material. (2005, p. 11).

Assim, Estado e Nação são expressões diferenciadas e, como disse Maluf (1999,

p. 16), são duas realidades distintas e inconfundíveis . Nação seria uma sociedade natural de

homens, em unidade de território, com mesma origem, costumes e língua, com consciência de

vida e sociedade (MALUF, 1999). O autor continua definindo que nação é uma entidade de

direito natural e histórico. Conceituando-se como um conjunto homogêneo de pessoas ligadas

entre si por vínculos permanentes de sangue, idioma, religião, cultura e ideais. (1999, p. 16).

O conceito de Estado varia de acordo com cada doutrina, cada autor, cada

jurisconsulto, não se chegando a uma unanimidade. Maluf preleciona:

Em muitos de nossos programas teremos que examinar o conceito de Estado em face de determinadas doutrinas. Assim teremos ocasião de verificar o conceito hegeliano de Estado como suprema encarnação da idéia; os conceitos totalitários de todas as teorias que sorveram a seiva do Leviatã de Hobbes; a concepção do Estado como ser coletivo etc; bem como a teoria fascista, segundo a qual a Nação não faz o Estado, mas este é que faz a Nação. Esta teoria, por exemplo, serviu aos objetivos de conquista do fascismo, que ao anexar a Abissínia considerou o povo etíope como integrante da nação italiana. Nem a concepção anarquista deixará de ser examinada no programa desta disciplina. (1999, p. 22).

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Todavia, Clóvis Beviláqua (apud MALUF, 1999, p. 21) definiu assim o Estado: O

Estado é um agrupamento humano, estabelecido em determinado território e submetido a um

poder soberano que lhe dá unidade orgânica . Verifica-se que nasceu o Estado propriamente

dito como expressão de uma territorialidade, de um povo e de um ordenamento jurídico. O

conceito básico trazido do Direito Constitucional, em que Accioly assim nos traz:

O Estado como uma instituição constituída de uma população, um agrupamento humano permanente, um território fixo, sobre o qual habitualmente se exerce a autoridade dos órgãos de Estado e um governo ou organização política, a qual incumbe a realização do bem comum da coletividade e a manutenção das relações com os demais membros da comunidade internacional. (1982, p. 12).

O Estado então surgiu como um limite territorial de um povo, regido por um

ordenamento jurídico, o qual serve de regimento legal mínimo do povo e uma limitação á

ação do próprio Estado como organização administrativa, a qual é conhecida como soberania,

em que Accioly (1982) expressa ser a autoridade que o Estado possui para decidir em última

alçada as questões da sua competência.

Doutrinariamente Estado nada mais é do que uma instituição nacional, um

instrumento, um meio destinado a realização dos fins da comunidade nacional, ou seja, o

Estado é um órgão executor da soberania nacional. (MALUF, 1999, p. 22).

Como se verifica, este o Estado Moderno Constitucional é composto por três

elementos constitutivos: governo, povo e território, pressupondo a presença concomitante

destes três conceitos. Faltante um deles, deixa de ser um Estado perfeito, como é o caso do

Canadá, que tem território, população, mas está subordinado ao Governo Britânico

(MORAIS; STRECK, 2004).

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Território se entende como sendo aquele sobre o qual o povo está fixado e exerce o

poder por meio de sua soberania. Morais e Streck assim definem:

Locus sobre o qual será fixado o elemento humano e terá lugar o exercício do poder e aplicação do ordenamento jurídico-positivo estatal. Para Ivo Dantas, o território é a parte do globo em que certo governo pode exercer o seu poder de constrangimento, organizar e fazer funcionar os diversos serviços públicos, por isso, ao elemento território agrega-se a noção de soberania, pois é nos seus limites que ela poderá ser exercida na plenitude, inclusive como limitação à ação externa. (2004, p. 152).

A noção de território determina que tudo e todos que estão no seu interior estão

sujeitos a sua autoridade, limitando o espaço físico sobre o qual o Estado exerce seu poder

soberano. O território é composto pelo solo, subsolo, espaço aéreo, plataforma submarina e

mar territorial (MORAIS; STRECK, 2004).

O Povo, ou população, especificando que povo tem um sentido menos amplo que

população, mas referindo-se às gentes que estão inseridas no território, já mencionado antes

que da união de povo e território é que surgiu o conceito de Nação. Morais e Streck assim

estabelecem a distinção do que seja povo/população:

Como elemento pessoal constitutivo do Estado, há que se ter presente a distinção entre população, que diz respeito a todos os que habitam o território, ou seja, engloba todas as pessoas, mesmo que temporariamente permaneçam em um território, sem nada dizer a respeitio dos vínculos com o Estado, pois se apresenta como um conceito demográfico-matemático, e povo, que realça o aspecto jurídico do grupo vinculado a uma determinada ordem normativa, mostrando-se como um conceito jurídico-constitucional. (2004, p. 153-154).

Morais e Streck (2004) estabelecem o conceito de nação nestes termos: Ainda pode-se

falar em nação, a qual possui caracteres de identidade referentes a origem, interesses, credos e

aspirações, aparecendo como um conceito psicossocioantropológico.

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Os autores complementam sua narrativa a respeito do elemento povo, vinculando-o ao

território, criando o sentido de cidadania e população, nestes termos:

Para alguns doutrinadores, povo equivale ao conjunto restrito da população capaz de observar deveres políticos, assimilando o caráter de cidadania. Para o conjunto genérico de indivíduos presentes em um determinado território, deve-se preferir a noção de população. Para José Afonso da Silva, povo é o vínculo jurídico-político de direito público interno, que faz da pessoa um dos elementos componentes da dimensão pessoal. Logo, povo brasileiro é o conjunto formado pelos brasileiros natos e naturalizados. Nesta perspectiva, pode-se estabelecer a seguinte equivalência: população = brasileiros e estrangeiros (em território nacional; povo = natos e naturalizados = nacional; cidadão = nacional + direitos políticos). (MORAIS; STRECK, 2004, p. 154).

Feitas estas distinções, passemos ao último elemento do Estado, que é a Soberania, na

sua acepção clássica, ou seja, aquela que determina que o povo que está inserido no território

há de haver um ordenamento jurídico que deve ser obedecido, assim como ter alguém

exercendo o poder em nome do povo, que se caracteriza como governo de um território e de

um povo.

Accyoly assim define os elementos do Estado:

O Estado, na larga acepção do termo, existe desde que se achem reunidos os seguintes elementos: a) uma população, isto é, um agrupamento humano permanente; b) um território fixo, sobre o qual habitualmente se exerce a autoridade dos órgãos do Estado; c) um governo ou uma organização política, à qual incumbe a realização do bem comum da coletividade e a manutenção de relações com os demais membros da comunidade internacional. (1982, p. 16).

Complementa o autor fazendo referência ao elemento soberania como a autoridade do

Estado sobre as questões de seu território:

A essa capacidade de dirigir a vida do ente social correspondente se dá, geralmente, o nos de soberania, termo que, aliás, se presta a confusões. A soberania é também definida como sendo a autoridade que possui o Estado para decidir, em última alçada, sobre as questões da sua competência. Não é, porém, um poder absoluto. Nas relações internacionais, ela se acha subordinada ao direito das gentes. Como essa autoridade se exerce na direção dos negócios internos e externos do Estado, diz-se, usualmente, que

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a soberania é interna ou externa, sendo a primeira também chamada autonomia e a segunda independência. (ACCYOLY, 1982, p. 16).

Morais e Streck assim se referem ao surgimento, evolução e significado da expressão

soberania no passar dos tempos:

O conceito de soberania foi firmado no século XVI, servindo de base da idéia de Estado Moderno, uma vez que até o fim do império romano não há conceito correlato. A noção de soberania emerge quando há consciência da oposição entre o poder do Estado e outros poderes. Até o século XII não havia definição, pois ocorria uma concomitância entre um poder senhorial e outro real. Já no século XIII passa a ocorrer uma ampliação dos poderes exclusivos do monarca sobre todo o reino. De relativo o poder soberano adquire o caráter de absoluto até tornar-se poder supremo seja frente aos senhores feudais e outros poderes menores, seja frente ao Papa. A primeira obra teórica a respeito desta versão moderna do poder estatal apareceu em 1576, intitulada Les Six Livres de la République, de Jean Bodin. Em 1762, o contrato social de Rousseau irá enfatizar tal conceito, estabelecendo-o como representação do povo, percebida, então, como soberania popular

inalienável, nas mãos de todos diretamente e indivisível o que se repete até os dias atuais, como se observa do texto constitucional brasileiro de 1988, em seu art. 14. no século XIX, a soberania emerge como expressão do poder político no interesse das conquistas territoriais das grandes potências, tendo, ao final deste período, como titular o Estado. estando sempre ligada a uma noção de poder aparece como uma qualidade do poder estatal ou como expressão da unidade de uma ordem como referido por Hans Kelsen. Em termos políticos, refere a plena eficácia do poder, não se preocupando com a questão da legitimidade, devendo ser absoluto. Em termos jurídicos se identifica com o poder de decidir sobre a eficácia do direito, dizer qual a regra aplicável em cada caso. Para Miguel Reale, a soberania é o ... poder que tem uma nação de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência. (2004, p. 155, grifo do autor).

Com isso pode-se afirmar que o elemento Governo que compõe o Estado, juntamente

com o povo/população e o território em que este povo/população se insere, constitui-se de

elementos referentes ao Poder Executivo, no que diz respeito ao aspecto político de decidir

sem pensar em legitimidade, seja a respeito do próprio Governo ou a respeito do povo que o

compõe; refere-se também ao Poder Legislativo, que se responsabiliza pela formação do

direito que fundamenta a organização do Estado Moderno; mas também refere-se ao Poder

Judiciário, que irá decidir sobre a eficácia desse direito (MORAIS; STRECK, 2004).

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A soberania tem características que possibilitam afirmar que somente há governo se

houver soberania, assim definidas por Morais e Streck:

Características tradicionais: UNA

é sempre poder superior sobre todos os

demais; INDIVISÍVEL: aplica-se a todos os fatos ocorridos no interior do Estado, apesar de, como veremos na seqüência, pode coexistir com o mecanismo de separação de funções

legislativa, executiva e jurisprudencial

nada mais é que a distribuição de atribuições; - INALIENÁVEL:quem a detém desaparece se ficar sem ela; IMPRESCRITÍVEL: não tem prazo de duração. (2004, p. 156).

Como o Estado Moderno, constituído como Estado de Direito e, na expressão de

Bester (2005), Estado Constitucional de Direito, constata-se que é uma instituição limitada

pelo Direito, que tem suas ações e atividades ordenadas pela lei, cujo poder está

fundamentado no respeito a uma Constituição.

Formando-se o Estado de Direito como Estado Constitucional de Direito, dentro do

liberalismo inicial, adotou-se o sistema de repartição de poderes, assim definido por Maluf:

A divisão do poder de Estado em três órgãos distintos (Legislativo, Executivo e Judiciário) independentes e harmônicos entre si, representa a essência do sistema constitucional. Uma Constituição que não contenha esse princípio não é uma Constituição, como afirmaram os teóricos do liberalismo. Diga-se, inicialmente, por conveniente dizê-lo, que não se trata aqui da divisão material do poder de governo em vários departamentos (Ministérios da Justiça, da Fazenda, da Agricultura, etc...), pois tal divisão é de natureza burocrática e pertinente ao direito administrativo. O objeto deste ponto é o princípio da divisão funcional do poder de soberania em três órgãos pelos quais ela se manifesta na sua plenitude: um que elabora a lei (Poder Legislativo) outro que se encarrega da sua execução (Poder Executivo) e o terceiro (Poder Judiciário) que soluciona os conflitos, pronuncia o direito e assegura a realização da justiça. (1999, p. 219).

Morais e Streck (2004) ponderam que na repartição de poderes no Estado

Constitucional de Direito âmbito do Estado Federal surge como um caso de distribuição do

conjunto de competências, sendo, todavia, harmonizável com a unidade do poder estadual.

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Os autores, com relação a mais esta característica fundamental do Estado Constitu-

cional de Direito:

A Federação, como estratégia de descentralização do poder político, implica uma repartição rígida de competências entre o órgão central, denominado União, e as expressões das organizações regionais, mais freqüentemente conhecidas por Estados-Membros, sendo no caso brasileiro

de um terceiro nível de competências: o município. Pode-se caracterizar a experiência federativa a partir da criação de um Estado único, a partir da União, cuja base jurídica é uma Constituição

de regra escrita e rígida, não havendo o direito de secessão, ou seja, o vínculo associativo é indissolúvel. Ainda, a soberania pertence e é desempenhada pelo Estado Federal

a União, apesar de uma distribuição de competências feita por via constitucional com poderes próprios a cada um dos entes federados, que dispõem, ainda, de rendas próprias de cada esfera para poder fazer face aos encargos de que são titulares. O poder político é partilhado entre governos federal e estaduais e, se for o caso, as demais unidades federativas tais como os municípios

e uma repartição bicameral no legislativo, onde é necessária a participação dos componentes da estrutura federal para a definição de seus comportamentos. Deve-se ressaltar, ainda, que a cidadania é atribuída pelo Estado Federal

pela União. (MORAIS; STRECK, 2004, p. 159).

A característica da repartição de funções do Estado Constitucional de Direito, na

forma federada, vem de Montesquieu, com a obra O Espírito das Leis, de 1748, assim descrita

por Maluf:

Somente no século XVIII porém, Montesquieu, autor da obra famosa O Espírito das Leis (1748) que alcançou 22 edições em 18 meses, sistematizou o princípio com profunda intuição. Coube-lhe a glória de erigir as divagações filosóficas dos seus predecessores em uma doutrina sólida que foi desde logo acolhida como dogma dos Estados Liberais e que permanece até hoje sem alterações substanciais. Antes mesmo dos Estados europeus, a América do Norte acolheu com entusiasmo a fórmula do genial escritor. A primeira Constituição escrita que adotou integralmente a doutrina de Montesquieu foi a de Virgínia, em 1776, seguida pelas Constituições de Massachussets, Maryland, New Hampshire e pela própria Constituição Federal de 1787. reafirmaram os constitucionalistas norte-americanos, de modo categórico, que a concentração dos três poderes num só órgão de governo, representa a verdadeira definição de tirania: quando na mesma pessoa ou corporação, o poder legislativo se confunde com o executivo, não há mais liberdade. Os três poderes devem ser independentes entre si, para que se fiscalizem mutuamente, coíbam os próprios excessos e impeçam a usurpação dos direitos naturais inerentes aos governados. O Parlamento faz as leis, cumpre-as o executivo e julga as infrações delas o tribunal. Em última análise, os três poderes são serventuários da norma jurídica emanada da soberania nacional. Assim, o princípio de Montesquieu, ratificado e adaptado por Hamilton, Madison e Jay, foi a essência da doutrina exposta no Federalist, de contenção do poder pelo poder, os norte-americanos chamaram de sistema de freios e contrapesos. (1999, p. 220, grifo do autor).

30

Dessa forma, outra característica do Estado Moderno é a tripartição dos poderes, que

funcionam de forma independente, mas harmônicos entre si, com base na obra de

Montesquieu, que tem por elemento fundamental a própria Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, assim retratado por Bonavides:

Com a separação dos poderes, já não ocorre o mesmo. Sua influência é muito mais vasta e capital. Tanto serve de técnica ao liberalismo como se converte num postulado primário da liberdade política. Associou-a Montesquieu tão intimamente ao conceito de liberdade que os primeiros juristas da Revolução Francesa impressionados com o seu alcance, a inscreveram no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Reza esse artigo que toda sociedade, onde a garantia dos direitos não esteja assegurada nem a separação de poderes determinada, não possui constituição. Da obra de Montesquieu os teoristas do liberalismo transladaram com entusiasmo aquele princípio para as suas Constituições. (2004, p. 262).

Ao estabelecer os dogmas da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão nas

Constituições dos Países, nada mais fez do que constitucionalizar e codificar o Estado de

Direito, limitando o poder do Estado, que era representado somente pela figura do Soberano,

que passa a ser composto por três poderes independentes e autônomos entre si, mas que

funcionam de forma harmônica, um fiscalizando os outros e vice-versa, determinando a

característica fundamental do Estado Democrático de Direito, que é a Tripartição dos Poderes

do Estado e o sistema dos freios e contrapesos.

Bonavides assim leciona:

Assim se qualifica por Estado Constitucional da Separação de Poderes aquele que surgiu imediatamente após as duas revoluções da segunda metade do século XVIII: a Revolução da Independência Americana e a Revolução Francesa. Da primeira resultou a união política das 13 colônias emancipadas do domínio colonial inglês, que formavam os Estados Unidos da América. E também, por influxo das mesmas idéias e valores, o movimento libertado das Colônias Espanholas, o qual, irradiando-se pela maior parte do Continente, fez nascer considerável número de Repúblicas emancipadas.

31

Da segunda, a Revolução Francesa, promanara a Europa das nacionalidades, da consciência constitucional, da legitimidade constituinte, das Monarquias constitucionais. O Estado constitucional, artefato político, social, moral e jurídico de uma rebelião de idéias, foi obra de filósofos contratualistas inclinados a transformar o mundo e a refazer instituições. (2004, p. 37-38).

Bonavides afirma, em palavras claras e objetivas, que a Declaração dos Direitos do

Homem é o elemento fundante do Estado Democrático de Direito e a base institucional para o

Sistema da Tripartição dos Poderes e dos freios e contrapesos, expressando-se em texto que

bem ilustra este entendimento, finalizando o item do conceito de Estado Moderno (Estado

Democrático de Direito) e suas características fundamentais:

Foi, sobretudo, o breviário do novo credo, a cartilha por onde rezaram os constituintes de 1791 e 1793, depois de escreverem, iluminados das lições de tão sábios preceptores, a célebre Declaração dos Direitos do Homem. Ali, em o nº 16 do texto imortal, o gênio dos teoristas da liberdade elaborou a fórmula da divisão de Poderes, decretando em todas as Constituições que consagravam o termo dos regimes absolutos de competências ilimitadas. O Direito Constitucional mais influente da idade Moderna emerge daquele documento. A teoria constitucional abstrata e programática de salvaguarda e garantia superlativa dos direitos humanos como direitos fundamentais da primeira dimensão se acha gravada, por inteiro, no espírito daquele monumento verbal e conceitual. O Princípio da Separação dos Poderes traçava, por indução, raias ao arbítrio do governante, em ordem a prevenir a concentração de poderes num só ramo da autoridade pública. A solene Declaração fundava o Estado de Direito. Não importa a qualificação ou adjetivo que lhe acrescente

Liberal, Democrático ou Social. Se não garantir nem concretizar a liberdade, se não limitar o poder dos governantes, se não fizer da moralidade administrativa artigo de fé e fé pública, ou princípio de governo, se não elevar os direitos fundamentais ao patamar de conquista inviolável da cidadania, não será Estado de Direito. (2004, p. 38-39).

A Declaração dos Direitos do Homem vem determinar uma mudança de enfoque do

indivíduo para a coletividade, do individual para o comunitário, do material para o humano,

valorizando a realização de direitos humanitários em termos plurais, em sentido amplo, não

somente no que diz respeito aos próprios direitos sociais da humanidade, mas também no que

diz respeito a sua efetivação por todos os povos que compõe a Humanidade.

32

1.3 O Estado Moderno e seu fundamento

Muitas são as teorias sobre o fundamento do Estado moderno. A que mais foi

difundida foi a que se denominou de teorias racionalistas ou contratualistas. Estas teorias

entendem que a origem do Estado tem é um produto da natureza humana, num sentido de

criação do homem num consenso contratualista. Tem por origem as primitivas comunidades,

em estado de natureza, numa concepção metafísica do direito natural, concluindo que o

Estado Organizado nasceu de um acordo utilitário e consciente entre os indivíduos (MALUF,

1999).

Referindo-se esta teoria que o Estado é o resultado de um acordo entre os homens em

comunidade natural, ela está umbilicalmente vinculada com o direito natural. Diversos

doutrinadores racionalistas, entre eles Hugo Grotius (apud MORAIS; STRECK, 2004),

precursor da doutrina do direito natural, conceituam o Estado como uma sociedade perfeita de

homens livres que têm por finalidade a regulamentação do direito e a consecução do bem-

estar coletivo. Ao ler o preâmbulo da Constituição Federal Brasileira de 1988, ainda vamos

encontrar expressões que se assemelham ao conceito de Hugo Grotius, como p. ex.: [...] Nós,

representantes do povo brasileiro [...], reunidos [...] para instituir um Estado Democrático,

destinado a assegurar o exercício dos direitos [...], a liberdade, [...] bem-estar, [...] como

valores supremos de uma sociedade [...].

A ideologia teve como seu ícone máximo Immanuel Kant, que preconizava que no

momento em que o homem deixou de viver no estado de natureza para viver em comunidade,

submeteram-se a uma limitação externa, livre e publicamente acordada, surgindo, assim, a

autoridade civil, o Estado (MALUF, 1999).

33

Já Thomas Hobbes foi o sistematizador do contratualismo como teoria justificativa do

Estado. Preconizava o poder absoluto, em que o homem não é um ser naturalmente sociável

como definia Aristóteles, mas no seu estado de natureza o homem era inimigo feroz do

próprio homem, em que cada um deveria se defender da violência do outro

homo homini

lupus

cada homem era um lobo para outros homens (MALUF, 1999).

Nesse sentido entende-se que o homem busca obter poder sobre outro homem,

decorrente de sua ambição natural de sobrepor-se ao seu adversário, situação que pode chegar

até a morte, resultado supremo na busca de poder. O fim desse estado caótico se dá com a

cessão dos direitos de sobrepor-se a outros homens a um só homem ou um conjunto de

homens, personificando a comunidade, o qual assume o encargo de conter o estado de

beligerância entre os homens.

Bonavides (2004, p. 32) descreveu: [...] o contratualismo social que introduz com

Hobbes uma nova fundamentação do poder, que já não promana da divindade, mas do

Homem e de sua prática [...].

Assevera o autor:

Com efeito, Hobbes entra em cena e escreve O Leviatã, a obra clássica do Absolutismo, o mais engenhoso tratado de justificação dos poderes extremos, servidos de uma lógica perversa, em que a segurança sacrifica a liberdade e a lei aliena a justiça, contanto que a conservação social de que é fiador o monarca seja mantida a qualquer preço. (BONAVIDES, 2004, p. 32).

Ao associar-se a outros homens, há autorização e transferência a este homem ou

conjunto de homens do direito de governar o próprio homem, reconhecendo a conveniência

de se armar um forte poder, com capacidade de manter a fúria dos inimigos.

34

Hobbes admitia a existência de um Deus, mas atribuía ao Estado a regulamentação,

referindo que a força infinita de quem governa e mantém a ordem é paradoxalmente

legitimada com base no contrato social. a filosófica política está centrada na dualidade

contrastante de um estado de natureza que antecede o estado de sociedade (BONAVIDES,

2004).

Os autores dessa escola entendem o surgimento do Estado civil como produto racional

do homem para resolver suas pendências e deficiências decorrentes do estado da natureza,

sendo o Estado nada mais do que um fato histórico produzido pelo homem civilizado

(MORAIS; STRECK, 2004).

Estabelecem ainda Morais e Streck a respeito do assunto:

A visão instrumental do Estado na tradição contratualista aponta para a instituição estatal como criação artificial dos homens. Como diz César Luis Pasold, a condição instrumental do Estado é conseqüência de dupla causa: ele nasce da sociedade e existe para atender demandas que, permanente ou conjunturalmente, esta mesma sociedade deseja sejam atendidas . (2004, p. 30-31).

Os autores resumem a doutrina contratualista tecendo as seguintes considerações:

Para os contratualistas, a figuração do mesmo não é uniforme. Uns, como Thomas Hobbes e Spinoza, vêem-no como estado de guerra, ambiente onde dominam paixões, situação de total insegurança e incerteza, domínio do(s) mais forte(s), expressando-o com adágios, tais como: guerra de todos contra todos; o homem lobo do homem; etc. Outros, como Rousseau, definem-no como estado histórico de felicidade

o estado primitivo da humanidade -, onde a satisfação seria plena e comum (mito do bom selvagem, sendo significativas a frase de abertura do Contrato Social: os homens nascem livres e iguais e, em todos os lugares encontram-se a ferros) e o estabelecimento da propriedade privada joga papel fundamental. O estado civil seria um corretivo do próprio desenvolvimento humano, que teria, assim, uma estrutura tríadica: estado de natureza, sociedade civil como momento negativo e estado civil como república. (MORAIS; STRECK, 2004, p. 32).

35

Entretanto, foi com John Locke que a doutrina contratualista tomou contornos

definitivos, quando ele estabelece os pressupostos do liberalismo, como um estágio pré-social

e político dos homens, preconizando que a sociedade se apresentava com uma paz relativa

entre os homens na vida em natureza, porque havia um domínio racional das paixões, dos

sentimentos individualistas e particulares em prol da comunidade e da paz social (MORAIS;

STRECK, 2004).

No estado de natureza o homem se apresentava sem limitações, com pensamento

individual. Mas isso veio a ser restringido pela própria percepção dos limites da própria ação

humana, conforme um quadro de garantias deferidas aos homens que deveriam ser seguidas

por todos e desfrutados pela comunidade, gozando da propriedade (vida, liberdade e bens).

Locke e Rousseau estabelecem sua filosofia política na dualidade sempre em

confronto entre um estado de natureza e o estado de sociedade (MORAIS; STRECK, 2004).

Embora as garantias do estado de sociedade viessem a traduzir a equalização dos

litígios individuais, tornando os direitos comuns a todos os que conviviam em sociedade, a

transferência da defesa destas garantias para o Estado incipiente era um preço alto a pagar

pelos homens. Com efeito, ao transferir os direito as liberdades ao Estado, deferindo-lhe o

poder de defesa destes direitos, passou o homem a não dispor mais não somente de seus

direitos individuais e coletivos, mas também a defesa destes direitos não mais lhe pertencia,

sendo, então, atribuição do próprio Estado. Como preceituou Bonavides (2004, p. 33), O

homem perdia a liberdade, mas ganhava, em troca, a certeza da conservação.

36

Morais e Streck assim se referem com relação à idéia de Hobbes e Locke:

Para o primeiro, o contrato social, à maneira de um pacto em favor de terceiro; é firmado entre os indivíduos que, com o intuito de preservação de suas vidas, transferem a outrem não-partícipe (homem ou assembléia) todos os poderes

não há, aqui, ainda, em se falar em direitos, pois estes só

aparecem com o Estado

em troca de segurança. Ou seja: para pôr fim à guerra de todos contra todos, própria do estado de natureza, os homens despojam-se do que possuem de direitos e possibilidades em trocas de receberem a segurança do Leviatã. O Estado é caracterizado como Leviatã na obra de Hobbes, que o designa como deus mortal , porque a ele

por debaixo do Deus mortal

devemos a paz e a defesa de nossa vida. Esta dupla denominação resulta fortemente significativa: o Estado absolutista que Hobbes edificou é em realidade, metade monstro e metade deus mortal. (2004. p. 33).

Se em Hobbes havia uma unidade real de todos os homens em um só e a mesma

pessoa, realizada mediante um pacto de cada homem com tidos os demais (MORAIS;

STRECK, 2004), em Locke há uma alteração substancial no enfoque de entendimento a

respeito da relação entre os homens, entre eles e o soberano e entre soberano e seu poder,

mesmo admitindo o caráter histórico do contrato, mesmo permanecendo ele como legitimador

do poder do soberano, passando a existência-permanência dos direitos naturais circunscreve

os limites da convenção (MORAIS; STRECK, 2004).

Bonavides assim preleciona a respeito de um estado de natureza que antecede o estado

de sociedade:

No Primeiro o ser humano desfruta liberdade extrema, absoluta, total, mas essa liberdade ser-lhe-á letal se não se desfizer, porquanto o estado de natureza não sendo de paz e amor, concórdia e fraternidade, mas de guerra, violência e terror, pode conduzi-lo a extinção. Palco de uma guerra civil do gênero humano, o estado de natureza aparelhava, por conseguinte, o extermínio e mútuo aniquilamento de todos. Era um estado de sangue, desconfiança e ferócia contumaz, em que o medo, institucionalizado no instinto de sobrevivência, não deixava ainda antever o advento da consciência agregativa, suscetível de instituir um sistema de relações fundado no estabelecimento da ordem e da segurança. Estado de natureza fadado a perpetuar-se se não houvesse logo, por necessidade já inelutável, a passagem ao estado de sociedade. Mas havia um preço a pagar pelas garantias que seriam auferidas. Consistia ele na alienação de todas as liberdades, transladadas ao Estado, senhor absoluto da vida e dos comportamentos humanos, pelo menos segundo a

37

tese implícita nessa singular doutrina com que a razão buscou edificar o Estado Moderno. (2004, p. 33).

Com efeito, estabelecida a convenção, apesar de dar legitimação ao poder do

soberano, serve, ao mesmo tempo, como elemento limitador do próprio poder do soberano,

que não pode ir de encontro ao que estabelece a convenção. Assim, resguardando a emersão e

generalização do conflito, mas os indivíduos dão seu consentimento para ingresso na condição

de estado civil e, posteriormente, na formação do próprio governo, quando se dá a condição

de Estado Sociedade de haver consenso pela maioria (MORAIS; STRECK, 2004).

Pondera Bonavides (2004, p. 33): Daqui talvez se possa inferir, em abono da boa-fé

dessa doutrina, que nem a razão nem a vontade, porém o instinto fora o móvel do pacto que

fez o homem livre do estado da natureza ser, doravante, num sacrifício inaudito, o súdito do

estado de sociedade.

Conforme preconiza Leal (2001), só o Estado positivo e mundano estabelecido por

Nicollo Machiavelli, em sua obra O Príncipe, tem condições de frear as paixões entregues a si

mesmo, podem levar a comunidade a um colapso.

Complementa ainda o autor:

Essa positividade só pode se dar pela jurisdicização do cotidiano do cidadão, tendo regulada e controlada sua conduta e comportamento, nesse momento para preservar as diferenças sociais gritantes entre o popolo grasso

os grandes burgueses italianos

e o popolo minuto

os pobres e assalariados, e para consolidar um romântico discurso de unificação nacional. O próprio cidadão da Idade Moderna tem uma formação e uma moral diferenciada do medievo, uma moral mundana, que se constitui nas relações sociais e econômicas de um mercado e de uma classe em ascensão. (LEAL, 2001, p. 61).

38

Hebeche conclui dessa forma:

Numa sociedade dilacerada por poderosos conflitos, o controle que o Príncipe possa ter sobre ela depende de seu conhecimento, das relações das forças que atravessam impedindo seu crescimento exagerado num grupo ou acentuando maior poder àqueles que, por não terem nenhum, possam revoltar-se de modo catastrófico. Há limites para o sofrimento e a miséria do povo, um Príncipe que os desconhece, estará abrindo espaço para sua própria desestabilização. (apud LEAL, 2001, p. 61).

É o surgimento do que se chama de Estado Civil , resultado da passagem do estado

de natureza, em que imperava a liberdade total. Neste sentido afirma Bonavides que

[...] começa o capítulo da história do Estado Moderno que há limitação do poder, o surgimento do homem-povo, do homem cidadão, do homem-político, do homem que faz a lei, que governa ou que se deixa governar, que cria a representação, que toma consciência da legitimidade, que é poder constituinte e poder constituído. (2004, p. 34).

Há, dessa forma, uma duplicidade de contratos, um no sentido de que o povo passa a

unido sob uma mesma nacionalidade, em que se baseia a sociedade civil, e de outro lado, há o

contrato de submissão do cidadão ao poder político originado do Estado.

Morais e Streck concluem nestes termos:

Assim, o estado civil nasce duplamente limitado. Por um lado, não se pode atuar em contradição com aqueles direitos; por outro lado, não se deve oportunizar, o mais completamente possível, a usufruição dos mesmos. Nasce, assim, como poder circunscrito àquela esfera de interesses pré-sociais do indivíduo natural. O estabelecimento da lei civil, do juízo imparcial e da força comum tem um papel de reforço dos direitos naturais não alienados através do contrato social. os indivíduos, ao contrário do que ocorreu com Hobbes, abandonam um único direito: o de fazer justiça com as próprias mãos. (2005, p. 36).

Um terceiro grande contratualista (racionalista) foi Jean-Jacques Rosseau, que

determinou um deslocamento da noção de soberania, entendendo que para chegar ao que

chamou de contrato social era fundamental que se compreendesse o significado do estado

39

de natureza e a inserção do homem em comunidade. Para Rosseau (apud MORAIS; STRECK,

2004), o Estado de natureza é apenas de caráter histórico, para facilitar como se chegou ao

contrato social.

Morais e Streck (2004, p. 38) descrevem que para Rosseau o verdadeiro fundador da

sociedade civil foi o primeiro que, depois de haver delimitado um terreno, pensou em dizer

isto é meu , e falou aos outros, tão ingênuos para nele acreditarem.

Morais e Streck esclarecem a questão nesses termos:

a desigualdade nasceu, pois, junto com a propriedade, e, com a propriedade, nasce a hostilidade entre os homens. Com isso se percebe a visão pessimista de Rosseau sobre a história, a ponto de Voltaire ter classificado o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens como sendo o libelo contra o gênero humano . (2004, p. 38).

No seu Contato Social, Rosseau (apud MORAIS; STRECK, 2004) afirma que o

homem nasceu livre, mas paradoxalmente encontra-se aprisionado. No contrato social ele

pretende devolver a liberdade ao homem, mas isso tem que ser aberto a toda comunidade.

Assim, o princípio que dá legitimidade ao poder é a vontade geral, representada no Estado,

que, de acordo com sua finalidade, deve buscar o bem comum. Para a civilização das

sociedades foi preciso um choque entre os interesses particulares, possibilitando o

cumprimento do acordo entre os particulares.

Em Morais e Streck encontra-se entendimento:

O vínculo social é a conseqüência do que existe em comum entre os interesses particulares divergentes, e se não houvesse nenhum elemento no qual coincidissem os interesses, a sociedade não poderia existir. Isto posto, porquanto que a vontade sempre se dirige para o bem do ser que quer e a vontade particular sempre tem por objetivo o bem privado, enquanto que a

40

vontade geral se dirige ao interesse comum, disso se deduz que somente esta ultime, ou deve ser, o verdadeiro motor do corpo social. (2004, p. 39).

Assim o homem inserido na sociedade para Rosseau deve obedecer á consciência

pública representada pelo Estado. Morais e Streck assim lecionam a matéria:

A vontade de que fala Rosseau não advém da submissão a um terceiro, através de um pacto: ela se origina de uma união entre iguais. Cada um renuncia a seus próprios interesses em favor da coletividade. Nada é privado; tudo é público no Rosseau do Contrato Social. A soberania sai das mãos do monarca, e sua titularidade é consubstanciada no povo, tendo como limitação, apesar de seu caráter absoluto, o conteúdo do contrato originário do Estado. É esta convenção que estabelece o aspecto racional do poder soberano. A vontade geral incorpora um conteúdo de moralidade ao mesmo, permitindo que se entenda a obediência como exercício de liberdade e a soberania como a ação do povo que dita a vontade geral, cuja expressão é a própria lei. (2004, p. 40).

Com essas formas definidas sobre as versões da origem do Estado, concluindo que ele

teve seu berço inicial por meio de um contrato, pelo consenso dos indivíduos, ou seja, o

Estado é criado, é uma pessoa artificial criada pela vontade humana (BEDIN, 1998).

1.4 O Estado Moderno e sua democratização

As idéias de Rosseau influíram diretamente nos revolucionários franceses, que

culminou com a Queda da Bastilha como marco inicial do Estado Moderno, com sua nova

identidade institucional, em que o símbolo de uma era representa o evento da falência de um

sistema, assim descrito nas palavras de Bonavides:

A queda da Bastilha simbolizava, por conseguinte, o fim imediato de uma era, o colapso da velha moral e social erguida sobre a injustiça, a desigualdade e o privilégio, debaixo da égide do Absolutismo; simbolizava também o começo da redenção das classes sociais em termos de emancipação política e civil, bem como o momento em que a Burguesia, sentindo-se oprimida, desfaz os laços de submissão passiva ao monarca absoluto e se inclina ao elemento popular numa aliança selada com armas e o pensamento da revolução; simboliza, por derradeiro, a ocasião única em que nasce o poder do povo e da Nação em sua legitimidade incontrastável. (2004, p. 36).

41

Moreira (2002, p. 28) afirma: Sem dúvida a Constituição da Federação Americana

(1787) e a Revolução Francesa, a partir de 1789, podem ser tomadas como marco onde se

afirma o Estado Liberal como primeira forma de Estado Constitucional.

A existência de um Estado então tem como justificativa a imposição de um contrato,

que ao mesmo tempo estabelece as regras que os seus integrantes devem seguir, para o

criador, e, ao mesmo tempo, se apresenta como elemento limitador da própria criação, ou seja,

limitador do poder do próprio Estado. Por isso se diz Estado de Direito , isto é, um Estado

subordinado aos regramentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico vigente no seu

território, ao qual estão sujeitos o povo, sendo que esse conjunto determina a formação da

nação.

Morais e Streck assim expressam:

Várias teorias tentam explicar e justificar a origem do Estado, com efeito, além da perspectiva contratualista

mais em voga

poderiam ser mencionadas outras vertentes de explicação da origem do Estado e do poder político que não esse consenso contratualista, tais como a de Augusto Comte (a origem estaria na força do número ou da riqueza), a de algumas correntes psicanalíticas (a origem do Estado estaria na morte, por homicídio, do irmão ou no complexo de Édipo), a de Gumpliwicz (o Estado teria surgido do domínio de hordas nômades violentas sobre populações orientadas para a agricultura). (2004, p. 30).

O poder de governo, que exurge do próprio sentido de Estado como instituição, sob o

ponto de vista social, político ou jurídico sempre precisou de crenças ou doutrinas que

justificassem sua origem, para dar legitimação a obediência (MALUF, 1999).

Morais e Streck (2004, p. 32) ratificam este entendimento ao afirmar que a idéia de

estado da natureza aparece correntemente, como dito acima, como mera hipótese lógica

negativa, ou seja, sem ocorrência real. É uma abstração que serve para justificar/legitimar a

42

existência da sociedade política organizada.

Maluf complementa:

Como bem observou o Prof. Pedro Calmon, as teorias que procuram justificar o Estado têm o mesmo valor especulativo daquelas que explicam o direito na sua gênese. Refletem elas o pensamento político dominante nas diversas fases da evolução da humanidade e procuram explicar a derivação do Estado: a) do sobrenatural (Estado Divino); b) da lei ou da razão (Estado Humano); e c) da história ou da evolução (Estado Social). (1999, p. 59).

Remonta aos mais antigos históricos da vida humana procurar justificar o Estado,

determinar sua origem, sendo as mais antigas teorias aquelas que dizem respeito a contextura

mística do Estado, uma origem sagrada, que predominou no mundo inteiro por milênios, até a

Idade Moderna.

Foi necessária uma transformação, uma conversão para se chegar a existência e

efetividade do Estado como entidade autônoma e independente, que atuasse em nome de

seus cidadãos, em sua defesa, patrocinando os direitos inerentes a eles e garantindo o

exercício dos deveres de cada um deles.

E assim se chega a segunda versão do Estado Moderno, com o modelo liberal, sob os

auspícios da ascensão da burguesia, que deixa de lado o financiamento do Estado Absolutista,

deixando de exercer o poder econômico, e passa a conspirar com o poder político, então

privilégio da aristocracia. Bonavides preleciona que:

a burguesia jamais esteve politicamente no poder, jamais foi a monarquia absolutista, que efetivamente exercia o poder político. A monarquia, na realidade, favoreceu a burguesia, no que diz respeito ao aspecto econômico, mas não lhe concedeu o poder político. Entretanto, não poderia represar a ascensão da burguesia ao poder político. (apud MORAIS; STRECK, 2004, p. 47).

43

A Revolução Francesa foi o marco determinante da nova fase do Estado Moderno, em

que a burguesia inaugura seu poder político como classe. Contudo, concomitantemente a esta

ascensão ao poder político da burguesia era estabelecida pela Convenção a Constituição

inaplicada de 1793, com a ocorrência de uma contra-revolução, de uma pequena parcela do

Terceiro Estado emergente, uma camada socialmente privilegiada, a burguesia proprietária,

que nada mais fez do que apresentar uma formulação em que garantia os seus privilégios,

constituindo o contrato social, que encontra sua explicitação na Constituição, dando origem

ao Estado de Direito.

Chega-se então ao Estado Moderno como Estado de Direito, regido por uma

Constituição e, por isso, Constitucional, que na evolução se apresenta em três versões: o

Estado Constitucional da Separação de Poderes (Estado Liberal), o Estado Constitucional dos

Direitos Fundamentais (Estado Social) e o Estado Constitucional da Democracia Participativa

(Estado Democrático Participativo) (BONAVIDES, 2004).

Este Estado Moderno, na concepção contratualista, no modelo Liberal-burguês, nada

mais determinou que a limitação da autoridade e uma divisão de poderes (MORAIS;

STRECK, 2004).

Bonavides estabelece:

Verifica-se, portanto, que a premissa capital do Estado Moderno é a conversão do Estado Absoluto em Estado Constitucional; o poder já não é de pessoas, mas de leis. São as leis, e não as personalidades, que governam o ordenamento social e político. A legalidade é a máxima de valor supremo e se traduz com toda energia n o texto dos Códigos e das Constituições. (2004, p. 37).

44

A Declaração dos Direitos do Homem foi o elemento gestor do Estado Constitucional

da Separação dos Poderes, o Estado Liberal, em que foram estabelecidas as salvaguardas e

garantias dos direitos humanos, erigidos como direitos fundamentais. Dessa forma, a

separação dos poderes determinava limitação aos poderes do governante, prevenindo a

concentração de poderes em uma só pessoa ou instituição, elemento este preconizado por

Montesquieu, na célebre obra O Espírito das Leis.

Bonavides assevera:

O axioma de Montesquieu teve profundo influxo no âmbito dos redatores da Declaração, os quais incorporaram ao seu texto e depois o transladaram para a Constituição de 03.09.1791. do seguinte teor essa fórmula imperecível, que é o alicerce jurídico de todas as Constituições já promulgadas, porquanto não há Direito nem Justiça onde não se estabelecem limites à autoridade de quem governa: Toda sociedade, em que não se assegura a garantia dos direitos nem determina a separação de Poderes, não tem Constituição (Toute société, dans laquelle la garantie des droits n est pás assurése, ni la séparacion des Pouvoirs detreminée, n a point de Constitution). (2004, p. 39).

Bonavides (2004) complementa afirmando que não se pode prescindir do clássico

princípio da separação dos poderes sem correr o risco de recair nos regimes de exceção e

arbítrio.

Leal assim examina a questão da tripartição dos poderes do Estado Constitucional de

Direito:

Os teóricos do Estado Liberal afirmam, a partir dos pressupostos traçados por Montesquieu, que todo o poder estatal tem que ser limitado. Dessa forma, a tão festejada soberania popular é inscrita na Constituição como um princípio legal a ser observado no contexto sistemático de todo o ordenamento jurídico vigente, transformando-se em uma soberania da razão jurisdicista dos poderes instituídos, em lugar de uma soberania política concreta identificada com a simbologia prefalada da vontade geral. (2001, p. 143).

45

O mesmo autor refere:

Importa saber se a tripartição dos poderes, tão amplamente adotada pela tradição constitucional do Ocidente, atendeu á busca de reais condições para o asseguramento dos direitos fundamentais do homem, ou, como parece, veio apenas para proteger as liberdades burguesas de uma classe social em ascensão: a liberdade pessoal, a propriedade privada, a liberdade de contratar, e assim por diante. (LEAL, 2001, p. 144).

A primeira modalidade de Estado Constitucional de Direito, com comprometimentos

com a liberdade individual, direitos políticos e civis, formadores da camada de direitos

fundamentais de primeira grandeza, foi o Estado Liberal.

Bonavides assim qualifica o Estado Liberal:

O centro de gravidade desse Estado constitucional, sob a figura de Estado Liberal, fora positivamente a lei, o código, a segurança jurídica, a autonomia da vontade, a organização jurídica dos ramos da soberania, a separação dos poderes, a harmonia e equilíbrio funcional, do Legislativo, do Executivo e Judiciário, a distribuição de competências, a fixação de limites á autoridade governante; mas fora por igual, abstratamente, o dogma constitucional, a declaração dos direitos, a promessa programática, a conjugação do verbo emancipar sempre no futuro, o lema liberdade, igualdade e fraternidade-

enfim, aqueles valores superiores do bem comum e da coisa pública, a res publica, que impetrariam debalde durante a vigência das primeiras cartas Constitucionais a sua concretização, invariavelmente negligenciada ou procrastinada em se tratando de favorecer e proteger as camadas mais humildes da sociedade. (2004, p. 40).

Na visão de Morais e Streck (2004) o Estado Liberal se caracteriza como um (Não)

Estado Liberal, em que o papel do Estado é negativo. Continua o autor afirmando que o

Estado Liberal, também chamado de Estado Constitucional da Separação dos Poderes, tem

um espectro reduzido e previamente reconhecido, circunscrevendo-se suas tarefas na

manutenção da ordem e segurança, zelando que as disputas porventura ocorrentes sejam

resolvidas pelo juízo imparcial sem recurso a força privada, além de proteger as liberdades

individuais civis e a liberdade pessoal e assegurar a liberdade econômica dos indivíduos

exercida no âmbito do mercado capitalista.

46

Estas são as características do que é chamado o antigo e clássico Estado de Direito da

primeira época do Constitucionalismo (BONAVIDES, 2004).

Na seqüência evolutiva do Estado Moderno, chega-se ao Estado Constitucional dos

Direitos Fundamentais, com a transformação do perfil moderno adotado pelo liberalismo

clássico, onde à autoridade pública se obrigava tão-somente a manter a paz e a segurança,

com as limitações impostas pelo próprio texto constitucional.

A partir da metade do séc. XIX o então Estado Liberal passa a incorporarem sua rotina

tarefas de prestação pública, assegurando ao cidadão direitos até então suprimidos,

convertendo o cidadão em ator principal de sua atividade de gestão administrativa.

Morais e Streck assim definem esta interferência do Estado nos direitos do cidadão,

nestes termos:

A passagem da fórmula liberal do Estado Mínimo para o Estado Social, em sentido amplo, importou na transformação do perfil do modelo adotado pelo liberalismo clássico, onde, como visto acima, à autoridade pública incumbia-se apenas, e tão somente, a manutenção da paz e da segurança limitada que estava pelos impedimentos próprios às liberdades negativas da época. A partir de meados do séc. XIX percebe-se uma mudança de rumos e de conteúdos no Estado Liberal, quando este passa a assumir tarefas positivas, prestações públicas, a serem asseguradas ao cidadão como direitos peculiares à cidadania, ou a agir como ator privilegiado do jogo sócio-econômico. (2004, p. 58).

E os autores complementam seus pensamentos com relação a esta intervenção positiva

do Estado na atividade individual do cidadão, numa ampliação dessa atividade estatal, na

garantia dos seus direitos fundamentais:

Na ampliação da atuação positiva do Estado, temos a diminuição no âmbito da atividade livre do indivíduo, ou seja, com o crescimento da intervenção, desaparece o modelo de Estado mínimo e abre-se o debate acerca de até que momento se permanece liberal diante de tal situação. Novos liberais e

47

neoliberais se debatem sobre até onde o intervencionismo não altera a transformação completa o perfil que seria peculiar ás estratégias próprias do liberalismo. (MORAIS; STRECK, 2004, p. 58).

Bonavides traz seu entendimento a respeito de elementos marcantes dessa nova fase

do Estado Moderno, em que modifica-se o objetivo do Estado, deixando as liberdades e

individualidades para a justiça social:

Já o novo Estado constitucional, sucessor daquele, é conspicuadamente marcado de preocupações distintas, volvidas, agora, menos para a liberdade do que para a justiça, porque a liberdade se tinha por adquirida e positivada nos ordenamentos constitucionais, ao passo que a justiça, como anseio e valor social superior, estava ainda longe de alcançar o mesmo grau de inserção, positividade e concreção. (2004, p. 42).

Nessa nova evolução do Estado Moderno, essa justiça desejada se refere aos direitos

sociais e o direito ao desenvolvimento, determinando que no período do Estado constitucional

dos direitos fundamentais prevalecesse o binômio JUSTIÇA/LIBERDADE (BONAVIDES,

2004).

O autor referido descreve dessa forma a transformação que determinou a passagem do

Estado constitucional da separação dos poderes para o Estado constitucional dos direitos

fundamentais, assim como examinando a mudança de enfoque durante os dois períodos de

evolução do Estado Moderno:

Quando prevaleciam por única constante na caracterização do Estado Moderno os direitos da primeira geração, a lei era tudo. Quando se inaugurou, porém, a nova idade constitucional dos direitos sociais, com direitos de segunda geração, a legitimidade

e não a lei

se fez paradigma dos Estatutos Fundamentais. No Constitucionalismo contemporâneo a Teoria da Norma Constitucional passou a ter, a nosso ver, a legitimidade opor fundamento. A legitimidade é o direito fundamental, o direito fundamental é o princípio, e o princípio é a Constituição na essência; sobretudo sua normatividade. Ou, colocado em outros termos, a legalidade é a observância das leis e das regras; a legitimidade, a observância dos valores e dos princípios,. Ambas integram na juridicidade e eficácia dos sistema, fazendo-o normativo; sendo, tocante a essa normatividade, os princípios o gênero, e as leis e regras a

48

espécie. A regra define o comportamento, a conduta, a competência. O princípio define a justiça, a legitimidade, a constitucionalidade. (2004, p. 44-45).

Assim, o Estado Constitucional de Separação dos Poderes, chamado de Estado

Liberal, na evolução do Estado Moderno converteu-se em Estado Constitucional dos Direitos

Fundamentais, o denominado Estado Social, ou Walfare State. Essa conversão determinou a

substituição do objetivo do Estado, definindo o ator principal de sua atividade, que no Estado

Liberal a lei, e no Estado Social passa a ser o cidadão.

Morais e Streck assim se expressam a respeito:

No fim do século, um fator novo foi injetado na filosofia liberal. Era a justiça social, vista como necessidade de apoiar os indivíduos de uma ou outra forma quando sua autoconfiança e iniciativa não podiam mais dar-lhes proteção, ou quando o mercado não mostrava satisfação de suas necessidades básicas. Um novo espírito de ajuda, cooperação e serviços mútuos começou a se desenvolver que se tornou mais forte com o advento do século XX. (2004, p. 60).

O Estado Moderno, na fase Liberal, baseado no absenteísmo, passa a ser

intervencionista, assumindo responsabilidades organizativas e diretivas não somente com a

vida econômica do País, mas também com a garantia dos direitos fundamentais do cidadão,

voltando sua atividade para proporcionar esses direitos, deixando de exercer simplesmente

poderes gerais de legislação e polícia, próprias do Estado Mínimo preconizado pela doutrina

liberal.

No Welfare State (Estado Social), a lei passa a ter eficácia em função dos direitos

fundamentais, que durante o período do Estado Liberal não tinham qualquer influencia no

ordenamento jurídico, não tinham eficácia em função da lei. Foi a transformação no enfoque

do Estado Moderno, que buscou a perfeição de seus fins, se estes pudessem ser concretizados,

49

inserindo aqueles direitos fundamentais no ordenamento positivo das Constituições.

(BONAVIDES, 2004).

Contudo, adverte Bonavides, que não chegamos ainda ao final da evolução do Estado

Moderno, no sentido de que os direitos fundamentais que se converteram em princípios

fundamentais esculpidos nos textos constitucionais, ainda precisam ser democraticamente

distribuídos, evoluindo o Estado Moderno para uma Democracia Participativa, senão

vejamos:

O Estado constitucional dos direitos fundamentais, com a rede de implicações derivadas das complexidades sociais de nosso tempo, é uma praça de guerra onde porfiam interesses, valores, pretensões, reivindicações, em contextura de luta que fez da estabilidade do sistema utopia dos governos. Mas nem por isso a conquista daqueles direitos em progressão alentadora, há cessado, em meio à refrega e dinamismo da sociedade. Enumera-se, de último, no campo de batalha da concretização constitucional, três gerações de direitos fundamentais. A quarta já se divida no horizonte; com ela subiremos ao patamar da terceira modalidade de Estado constitucional: o Estado constitucional da Democracia participativa. (2004, p. 47).

O mesmo autor assim define o Estado Constitucional da Democracia Participativa:

O Estado Constitucional da Democracia Participativa é o Estado onde se busca levar a cabo, em proveito da cidadania/povo e da cidadania/Nação, concretamente dimensionados, os direitos da justiça, mediante um Constitucionalismo de normas indistintamente designadas como principiais, principais, principiológicas, ou de princípios. (2004, p. 47-48).

Os direitos ao que o autor se refere são os mesmos direitos fundamentais preconizados

no Estado Social, ou no Welfare State, e que foram consignados nos textos constitucionais,

passando a princípios do próprio Estado de Direito, passando a ser considerados como direitos

fundamentais do gênero humano (BONAVIDES, 2004).

50

A dificuldade enfrentada, após a consolidação desses direitos fundamentais, como

direitos individuais, coletivos e sociais do homem, aos quais se somam o direito ao meio

ambiente, ao desenvolvimento, ao patrimônio da humanidade, é verificar a sua concretude.

Bonavides faz uma reflexão:

O Estado constitucional assim teorizado tem um traço de extrema universalidade; nele se inserem todos os direitos fundamentais conhecidos, que se concentram no binômio liberdade e justiça. É óbvio, com respeito à Democracia enquanto direito fundamental de Quarta dimensão, que muitas resistências ainda se lhe opõem, e sua caracterização jurídica em termos de normatividade tem um longo caminho a percorrer. O Estado que o define a saber, o Estado constitucional da Democracia participativa

esbarra em dificuldades de concretização, que não são, todavia, inarredáveis, qual o cuidam os publicistas do retrocesso e das situações conservadoras. Dificuldades semelhantes continuam a ser enfrentadas na contemporaneidade pelos direitos sociais e pelos direitos das Nações ao desenvolvimento, à paz e à preservação ambiental, designadamente com respeito à concretude e normatividade. (2004, p. 48).

Com toda a evolução do que se chama de Estado Moderno, ainda encontramos em

aperfeiçoamento dessa instituição, caracterizada pelo constitucionalismo e pelos fundamentos

que determinam a formação do Estado de Direito, baseado nos direitos fundamentais

constitucionais. É com base neles que o Estado Moderno busca chegar a uma forma mais

participativa, mais democratizada de uso e gozo dos direitos fundamentais do homem,

incluindo o espaço ambiental em que está inserido, o direito a nacionalidade, mas

principalmente na democratização desses direitos.

1.5 Considerações finais

Nessa trajetória histórica do Estado Moderno chega-se a um modelo de Estado

subordinado ao direito, que rege-se pelo ordenamento jurídico, nos limites desses preceitos

legais, numa alteração do objetivo do Estado, que passou a valorizar a individualidades e as

51

liberdades preconizadas pelo Estado Liberal, mas sempre tendo como limite a própria lei.

Nesse sentido as instituições estavam fadadas a exercerem suas atividades dentro

destes limites e, quando na ocorrência de litígios e conflitos, eles deveriam ser resolvidos

também com base no texto legal. Isso determinou um engessamento da sociedade, que,

mesmo diante de seu dinamismo, diversidade e complexidade, estava limitada aos preceitos

do ordenamento jurídico.

52

2 ESTADO DE DIREITO E SUA TRANSFORMAÇÃO

O Estado Moderno constituiu-se como instituição, como um ente caracterizador de um

território, integrado por um povo, submetido a um ordenamento jurídico vigente sobre este

território, passando de uma forma irregular, ilegal e ilegítima de agrupamento de pessoas,

para um instituto provido de personalidade própria que se define como nação independente,

autônoma e soberana. Esta é a transformação do que se chamava de povo ou agrupamento de

pessoas em determinado lugar para Estado de Direito, onde até mesmo o próprio Estado

despersonalizado está submetido ao ordenamento jurídico que se aplica no território deste

Estado.

2.1 Estado de Direito e Constituição

O que se entende por Estado Moderno surgiu com a despersonalização do poder,

passando o Estado a exercer este poder, que se converte em poder institucionalizado em um

território delimitado, integrado por um povo, dando origem a uma nação, aos quais se somam

potência e autoridade (MORAIS; STRECK, 2004).

Bester (2005, p. 58) se refere à Constituição como [...] documento político-jurídico

por excelência de um Estado . Esclarece, ainda, que o conceito de Constituição é construído

53

a partir da noção de hierarquia existente entre as normas jurídicas, sendo ela a norma básica, a

norma principal dentro da pirâmide de um ordenamento jurídico, que confere o fundamento e

validade a todas as demais normas que dela derivam.

No somatório dos dois conceitos chega-se ao Estado de Direito, em face da relação de

dependência entre um e outro, assim definida por Bester:

É por isso que a dupla condição da Constituição como norma jurídica e como norma suprema a configura não somente como fonte de Direito, mas também como norma reguladora e delimitadora do próprio sistema de fontes do Direito. aí está a sua supremacia, e daí ser também chamada de Lei Fundamental, Lei Magna, Carta magna, Norma Ápice ou Norma Normarum (norma das normas). Com efeito, não se trata de uma norma qualquer, pois se assim fosse, ninguém se importaria se fossem editadas mais ou menos Constituições. A Constituição tem sim toda uma dignidade especial, sendo feita para durar, embora não para ser eterna. Por isso mesmo, como afirma o constitucionalista português Jorge Miranda, não basta que a Constituição outorgue garantias; tem, por seu turno, de ser garantida . Reforçamos: o dogma de que uma norma não possa ter validade se não estiver de acordo com a Constituição levou a que esta não somente seja considerada fonte de Direito, mas que também regule o próprio sistema de fontes e seja o parâmetro de aplicação e de interpretação do Direito. (2005, p. 59-60).

A mesma autora aborda o surgimento do Estado de Direito Moderno e a relação entre

um texto escrito e o Estado, nos descrevendo a limitação que este texto determina nas ações

do Estado, estabelecendo a submissão do Estado ao Direito, configurando, dessa forma, o

Estado de Direito (Estado limitado pelo Direito) nestes termos:

Na verdade, o primeiro Estado de Direito Moderno pode ser considerado o Estado Inglês a partir de 1689, quando o documento Bil of Rights marcou a afirmação da soberania do parlamento na Inglaterra, implicando pois na separação dos poderes (ainda que apenas Executivo e Legislativo, já que as funções judiciárias faziam parte de parcela do Legislativo) e, consequentemente, uma limitação do Estado pelo Direito. O documento de 1689 foi um pacto entre o rei Guilherme de Orange e o povo inglês representado pelo Parlamento, superando as cartas ou decretos medievais que emanavam unilateralmente dos monarcas, mas carecendo ainda de garantias suficientes e juridicamente institucionalizadas para o pactado, o que só iniciaria nos textos constitucionais dos séculos posteriores. Mesmo assim podemos dizer que foi uma Monarquia Constitucional, isto é, limitada por um documento que lá fez e ainda faz

justamente com os outros textos escritos

às vezes de Constituição, isto pelas peculiaridades do sistema

54

constitucional inglês. Em termos teóricos, a primeira vez que a expressão Estado de Direito aparece na literatura sobre Estado e Direito foi na segunda metade do século XVIII (em 1798, na Alemanha, como tradução literal da palavra RechtStaat (BESTER, 2005, p. 12-13, grifo da autora).

Na realidade o Estado de Direito nada mais é do que o Estado subordinado a um

ordenamento jurídico fundamental, ao qual chamamos de Estado Constitucional de Direito,

em que um povo fica adstrito a um território, formando a nação, que fica submetida a um

ordenamento jurídico regulador de seus comportamentos e da organização de seus governo.

Bester assim nos conceitua esse Estado de Direito como um Estado Constitucional de Direito,

justamente porque se trata de um Estado subordinado a um ordenamento jurídico fundante

que é a Constituição de um Estado, nestes termos:

E Estado Constitucional de Direito, o que é? É o Estado limitado pelo Direito, cujo poder se baseia no respeito a uma Constituição, que o autolimita. Este Estado é, em essência, o próprio Estado Liberal de Direito, marcado pela preocupação com a limitação do poder soberano, significando o reconhecimento, ao indivíduo, de uma esfera de liberdade intangível pelo próprio Estado, cuja proteção se dá, em última instância, pelo princípio da legalidade, que é acolhido pelas Constituições. Assim, quando estas dizem que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei , no fundo significa o reconhecimento da liberdade de ação dos indivíduos, que só poderá ser restringida em virtude de lei. Mas quando Kelsen identificou Estado com Direito, isto significou que qualquer Estado, desde que organizado pelo Direito, seria um Estado de Direito, não importando que fossem ditaduras. Então um passo adiante foi dado nas teorizações, para exigir que o Direito a reger o Estado tivesse origem democrática, assim como democrática deveria ser a composição dos poderes nele instituídos. Esta é a fase do Estado Constitucional e Democrático de Direito, sendo que o qualificativo democrático , na verdade, já estava presente desde a primeira versão do Estado Constitucional (Liberal) de Direito, isto pelo elemento da separação dos poderes, sendo cada um deles considerado típico para o exercício de uma função distinta. (2005, p. 13).

Verifica-se que a Declaração Universal dos Direitos do Homem dá início a civilização

dos Estados-Nação no plano externo, em decorrência dos princípios constantes de um

documento que era direcionado para todas as nações do mundo civilizado, informando que se

tratava de um Estado organizado em torno de um ordenamento jurídico básico, dando origem

ao Estado de Direito, ou seja um Estado que se qualifica como Estado Constitucional. Já se

55

tinha uma noção de Estado de Direito e a partir da Declaração Universal dos Direitos do

Homem a servir de fundamento às Constituições dos diversos Estados que se tornavam

independentes, passou-se a ter uma noção de Estado Constitucional, que responde a outras

exigências não satisfeitas na concepção liberal-formal do Estado de Direito (CANOTILHO,

1999).

Este Estado Constitucional seria um primeiro degrau a partir do que se conhecia e se

chamava apenas de Estado Moderno, convertendo-se em Estado de Direito, justamente em

decorrência da Constituição que servia de elo de conjunção entre seus elementos de formação,

ou seja, unindo povo, território e soberania desse povo sobre este território. Mais adiante

convertendo-se em Estado Democrático de Direito, em que um Estado subordinado ao

direito, um Estado Democrático de Direito, estabelece uma conexão interna entre Estado de

Direito e Estado Democrático, em que o primeiro é o ordenamento legal vigente no âmbito do

território do Estado e o segundo seria a possibilidade de livre exercício dos direitos dos

homens, livre possibilidade de ação, inclusive contra o próprio Estado.

O Estado de Direito incipiente, também chamado de Estado Constitucional,

agregando-se esta expressão como sinonímia de Direito, tem seu fundamento em dois textos

básicos, conforme ensina Bester:

Embora o elemento democrático esteja embutido nas Constituições desde as duas primeiras Constituições que marcaram o início do Estado Constitucional de Direito (a norte-americana de 1787 e a francesa de 1791), as constantes recaídas autoritárias na história do Estado ocidental desde então fazem da democracia uma esperança perene e uma prática efêmera. É por isso que alguns países reforçam o princípio democrático em seus textos constitucionais, como fez a Alemanha no segundo pós-guerra do século XX. O art. 146 da Lei Fundamental de Bonn, de 1949, amarra expressamente a exigência de que a próxima Constituição seja de origem democrática: A presente Lei Fundamental perderá sua vigência no dia em que entrar em vigor uma Constituição que tenha sido adotada em livre decisão por todo povo alemão. (2005, p. 14).

56

A mesma autora, a respeito dessa vinculação entre a Constituição e o Estado, afirma

que:

A Constituição retrata a forma de ser de um Estado e confere direitos e garantias fundamentais, tanto para os indivíduos isoladamente considerados quanto à coletividade. É a obra fundamental de um Estado. Neste contexto, a Constituição indica os poderes do Estado, por meio dos quais a nação há de ser governada e ainda marca e delimita, no regime administrativo brasileiro, por exemplo, as competências dos três Poderes Constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário), as atribuições da União e de cada Estado-membro da Federação, bem como dos Municípios e do Distrito Federal. (BESTER, 2005, p. 60).

Houve várias dimensões do que se entende como forma de exteriorização do Estado

Constitucional, mas todas elas tendo o mesmo fim, ou seja, um ordenamento legal vigente

dentro do território do Estado e o livre exercício dos direitos pelo homem, denominando-se de

constitucionalismo a relação entre o Estado, sua Constituição e os direitos de seus cidadãos.

A dimensão Inglesa, em que se deu a supremacia do legislativo sobre o executivo, com

instituição de um primeiro-ministro, que fica sujeito ao voto de desconfiança do parlamento.

Há igualdade de acesso à justiça, com o devido processo legal. A dimensão americana

instituiu os direitos do povo, direitos e liberdades dos cidadãos, em uma constituição escrita,

em que o governo fica subordinado às leis, obedecendo a princípios e regras de direito

explicitadas na constituição. Os tribunais exercem a justiça em nome do povo (juízes eleitos).

Na dimensão francesa o Estado de Direito se instituiu com uma ordem jurídica

hierarquizada, codificando direitos, com limitação do poder pelo direito, com leis gerais e

igualdade perante a lei

primado da lei. O sistema alemão, em que houve um

constitucionalismo de restauração e por isso o estado liberal de direito

o Estado Guardião,

em defesa da ordem e da segurança

com subordinação a lei. O Estado se torna órgão do

próprio Estado submetido ao império da lei.

57

Novamente é Bester que esclarece a respeito:

Há autores que consideram o constitucionalismo somente como um momento datado, justamente o do surgimento das primeiras constituições escritas, no século XVIII. Outros o entendem como um processo. Canotilho fala em movimento , ciclos , momentos constitucionais , dizendo que em termos rigorosos não há um constitucionalismo, mas vários constitucionalismos (o constitucionalismo inglês, o constitucionalismo americano, o constitucionalismo francês), alertando ser mais rigoroso falar de vários movimentos constitucionais do que vários constitucionalismos . Para ele isso permite recortar uma noção básica a respeito dessa categoria: o constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturalmente da organização político-social de uma comunidade (grifos originais). O conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro juízo de valor, sendo o constitucionalismo moderno entendido como uma . técnica de limitação do poder com fins de garantismo. A partir disso, sempre que em um Estado divisarmos essa limitação do poder para assegurar garantias às pessoas estaremos diante de manifestações do fenômeno constitucionalismo. (2005, p. 28-29).

O que se retira das modalidades de constituição nas variantes dos países referidos é

que todas elas convergem à idéia central de submissão do poder ao direito, limitação do poder

para dar garantias aos cidadãos do pleno exercício de seus direitos. Por isso, é possível

afirmar que se o Estado se configura como instituição, o poder de mando em dado território

não prescinde do Direito para fazer com que os demais elementos que compõem a ossatura do

Estado sejam implementados. Estado e Direito, pois, passam a ser complementares e

interdependentes (MORAIS; STRECK, 2004, p. 86). E é esta relação que dá origem ao

Estado de Direito.

2.2 O Estado de Direito

Constatado que a relação de interdependência e complementaridade entre Estado e

Direito é fundamental para a compreensão do Estado atual, que o direito surge como um

limitador do poder, com uma dimensão muito mais ampla, em que ha uma articulação do

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direito e do poder no Estado Constitucional, o Estado se organiza juridicamente e possibilita o

exercício do direito em termos democráticos, resultando, daí, a legitimação do poder.

Em relação ao tema, afirmam Morais e Streck que:

o Estado de Direito surge desde logo como o Estado que, nas suas relações com os indivíduos, se submete a um regime de direito quando, então, a atividade estatal apenas pode desenvolver-se utilizando um instrumental regulado e autorizado pela ordem jurídica, assim como, os indivíduos - cidadãos têm as seu dispor mecanismos jurídicos aptos a salvaguardar-lhes de uma ação abusiva do Estado. A idéia de Estado de Direito carrega em si a prescrição da supremacia da lei sobre a administração. Na sua origem germânica, está embasada na autolimitação do Estado pelo Direito, pois é o Estado a única fonte deste, atribuindo-lhes força coercitiva e é o Direito criação daquele. (2004, p. 86-87).

Leal assim define a força normativa da Constituição no Estado de Direito:

Esta força normativa da Constituição diz respeito a uma competência motivadora e ordenadora da norma, não apenas à forma de organização e funcionamento do Estado, mas, fundamentalmente, no que tange à organização da vida social, estabelecendo a ela as possibilidades de seu desenvolvimento. De qualquer sorte, a condição de eficácia social da Constituição, isto é, a coincidência entre realidade e norma, tem de levar em conta que, entre a norma fundamentalmente estática e racional e a realidade fluida e irracional existe uma tensão necessária e imanente que não se deixa eliminar. (2000, p. 138-139).

Há a conivência do poder com o exercício democrático dos direitos, em decorrência da

limitação do ordenamento jurídico, que funciona como uma garantia do exercício desses

direitos frente ao Estado. Origina as liberdades negativas, em que o Estado não pode agir

sobre o homem, e as liberdades positivas, em que o Estado oportuniza que o homem exerça

seus direitos. Nos dizeres de Morais e Streck (2004), tendo a sua disposição mecanismos

jurídicos aptos a salvaguardar-lhes de uma ação abusiva do próprio Estado.

59

Este chamado Estado Constitucional Democrático é mais do que o Estado de Direito,

no sentido de não somente haver a limitação do poder, mas legitimá-lo, com legitimidade dos

direitos, ordem do domínio e exercício do poder político, tradições divergentes convergindo

para um mesmo fim

o Estado Democrático

submetendo-o ao direito e ao exercício dos

direitos pelo homem. Dessa forma, a expressão Estado de Direito tornou-se lugar comum

na sociedade, como sendo o Estado subordinado ao direito, mas que os direitos e deveres dos

cidadãos são assegurados em decorrência da obediência ao texto constitucional. .

Morais e Streck vêm novamente clarear a questão:

Este Estado que se juridiciza/legaliza é, todavia, mais e não apenas um Estado jurídico/legal. Não basta, para ele, assumir-se e apresentar-se sob uma roupagem institucional normativa. Para além da legalidade estatal, o Estado de Direito representa e referenda um algo mais que irá explicitar em seu conteúdo. Ou, sobretudo, a ela agregam-se conteúdos. O século XX irá demonstrar claramente esta assertiva. A dimensão de conteúdo do Estado de Direito aproxima os modelos alemão e francês de seu vizinho insular, o modelo britânico do rule of law. Assim, o Estado de Direito não se apresenta apenas sob uma forma jurídica calcada na hierarquia das leis, ou seja, ele não está limitado apenas a uma concepção de ordem jurídica mas, também, a um conjunto de direitos fundamentais próprios de uma determinada tradição. (2004, p 87, grifo dos autores).

Este Estado é fundado no direito, daí Estado de Direito, tendo como fim o direito, atua

em nome do direito, utilizando técnicas formais de limitação do Estado ou os direitos

individuais que se procuram garantir ou os direitos contra o Estado. Nesse sentido cabe a

ressalva quanto a concepção idealizadora do Estado de Direito, legitimadora da autoridade

estatal, em que se produz um valor mítico para a ordem jurídica através do fetichismo da

regra, em que a norma jurídica tende a estar formatada pela realidade mesma, capaz de fazer

surgir aquilo mesmo que anuncia, determinando a passagem para a forma jurídica, a qual se

constitui numa a garantia suprema (MORAIS; STRECK, 2004).

60

O Estado de Direito é o estado laico, em que se separam o próprio Estado, como

instituição, e a estrutura do Estado, que serve de instrumento da execução de suas obrigações

institucionais. Esclareça-se que este Estado tem dever em favor do cidadão, que compõe sua

estrutura social, estabelecidas no próprio texto constitucional, na forma de objetivos,

fundamentos e direitos sociais dos indivíduos e coletividade. Dessa forma, o Estado, como

instituição, assume o dever de cumprir estes direitos e deveres dos cidadãos, bem como

cumprir com os objetivos e fundamentos do Estado Democrático de Direito, ou seja, viabilizar

a efetividade dos direito constantes de sua própria Carta Constitucional.

Assim, o Estado, além de ser o garante institucional e constitucional das efetividades

dos direitos constantes de sua constituição, deve realizar uma estrutura institucional suficiente

para servir ao Estado como instituição. Não havendo instrumentalidade, não haverá Estado de

Direito e o Estado será omisso em suas obrigações. Haverá o Estado instituição, mas

inexistirá o Estado como cumpridor de suas obrigações. Dessa forma, outros acabam por

assumir os encargos que eram devidos ao Estado, como Organizações Não Governamentais e

instituições privadas, numa privatização das obrigações do Estado.

Disso resulta que o Estado de Direito não se restringe apenas a ter como fundamento a

limitação do Estado pelo Direito, mas é uma concepção a ser alcançada no sentido de

efetivação das liberdades, da democracia, elevando o Estado a condição de realizador dos

direitos, assim preceituando Morais e Streck

[...], o Estado de Direito não é mais considerado somente como um dispositivo técnico de limitação do poder, resultante do enquadramento do processo de produção de normas jurídicas; e também uma concepção que funda liberdades públicas, de democracia, e o Estado de Direito não é mais considerado apenas como dispositivo técnico de limitação do poder resultante do enquadramento do processo de produção de normas jurídicas. O estado de Direito é, também, uma concepção de fundo acerca das

61

liberdades públicas, da democracia e do papel do Estado, o que constitui o fundamento subjacente da ordem jurídica. Assim, o Estado de Direito irá se apresentar ora como liberal em sentido estrito, ora como social e, por fim, como democrático. Cada um deles molda o Direito como seu conteúdo, sem que, no entanto, haja uma ruptura radical nestas transformações. (2004, p. 88-89).

Contrapondo-se ao Estado de Direito, mas sem deixar de ser um Estado, porque

também submetido a um ordenamento jurídico, o Estado totalitário não é o poder que se

submete a lei, mas o direito que se submete ao poder

fascismo, em que há direito e poder,

mas o direito está subordinado ao poder e não o contrário, muito embora em um Estado de

Direito. Confunde-se totalidade com totalitarismo, em termos de organicidade da sociedade.

Democracia no séc. XX

Estado nacional socialista

socialismo real - em que o guia, o

chefe, em que o poder emana da comunidade e o direito é criado por essa comunidade, mas é

aprovado pelo Chefe. Concentração de Poder e centralização política.

Morais e Streck expõem sua impressão sobre a matéria:

A experiência do totalitarismo, pode-se dizer, faz parte da história contemporânea do Estado. Sua concretização vai se dar sob as experiências stalinistas (URSS), nacional-socialista (Alemanha) e fascista (Itália), não podendo ser confundida com algumas expressões próximas, porém diferenciadas, como muito bem destacou Hannah Arendt, embora se posa ter um paradigma primeiro no Estado-polícia absolutista (séc. XVIII)

com o qual se identifica pela concentração de poder político, concentração da direção da economia, concentração das diretivas ideológicas e manipulação da opinião pública via meios técnicos e psicológicos

e na Prússia sob Frederico Guilherme I. No Estado Totalitário, há uma tendência do poder político para se dilatar e se apoderar de tantos domínios da vida quanto possível, numa perspectiva de amoldamento total da vida da comunidade e dos indivíduos. No Estado Totalitário moderno devem ser invadidas pelas finalidades do Estado e postas a serviço destas últimas, não se a economia, o mercado de trabalho, a atividade profissional, mas também a vida social, os ócios, a família, as opiniões e os costumes do povo. [...] Na forma totalitária há uma concentração de poder nas mãos do Estado, sendo este detentor da verdade única, do direcionamento da vida dos cidadãos, não se dando, tão-só, via opressão manifesta, direta, estritamente violenta, mas também via introjeção de uma subjetividade que cria um (o) modelo de ser-estar no mundo

cria um modelo obrigatório de felicidade como sugere Umberto Eco

onde mais do que reprimir,produz a realidade e a verdade. O diferente passa a ser ilícito. (2004, p. 125-126).

62

Embora se estabeleça que o Estado Constitucional de Direito tenha em sua idéia

central a limitação do poder pelo direito, verifica-se, em concreto, a incapacidade de

estabelecer procedimentos e instrumentos para lhes dar operatividade prática. Há, em tese,

uma limitação potencial, chamada por Morais e Streck (2004) de obstáculos à democracia,

representada pela falta de oportunidade de o homem vir a exercer seus direitos, enquanto uma

limitação efetiva, que significaria o pleno ou mesmo parcial exercício destes direitos em favor

do homem e mesmo contra o Estado, devido a ausência daqueles instrumentos para esse

exercício.

Citando Bobbio, assim manifestaram-se Morais e Streck a respeito desses obstáculos

ao pleno exercício da cidadania e, via de conseqüência, da implementação da democracia no

Estado de Direito, nestes termos:

Para Bobbio, o que condicionou tais contradições foi o que chamou de obstáculos à democracia, ou seja, circunstâncias fáticas que impuseram transformações profundas naquilo pressuposto para aquilo ocorrido, na medida em que não estavam previstos ou surgiram em decorrência das transformações da sociedade civil. Dentre tais obstáculos elenca, em primeiro lugar, a complexificação da sociedade quando a passagem de uma economia familiar para uma economia de mercado e desta para uma economia protegida produziu a necessidade de constituição de um quadro profissional habilitado tecnicamente a lidar com a complexidade social crescente, o que veio a colocar o problema da legitimação para a tomada de decisões, posto que o projeto democrático é antiético ao projeto tecnocrático. Enquanto aquele assenta-se em um poder diluído/disperso, onde todos podem decidir a respeito de tudo, neste apenas aqueles iniciados nos conhecimentos técnicos envolvidos podem tomar decisões. Surge, aqui, o dilema que contrapõe a decisão política à decisão técnica, o poder diluído, próprio da democracia, ao poder concentrado, característico da decisão tecnocrática. De outro lado, um segundo obstáculo surge em conseqüência do próprio processo de democratização da sociedade quer, na medida em que alargava as possibilidades de participação social, permitia que novas demandas fossem propostas ao Estado. Assim, a organização estatal viu-se na contingência de moldar-se estrutural e funcionalmente parra tentar dar conta do crescente e diversificado número de demandas. A fórmula adotada foi a da constituição de um aparato burocrático responsável por responder às pretensões sociais cuja característica é a de ser um poder que se organiza verticalmente do alto para baixo, contrapondo-se, assim, ao modelo democrático de um poder que se eleva da base para o topo. Dessa forma, as respostas às demandas democráticas vieram organizadas burocraticamente, como se experimentou

63

com o Estado do Bem-Estar impondo-se um aspecto de suas crises

onde,

muitas vezes, chocam-se a pretensão política com a resposta tecnoburocrática. (2004, p. 107).

Assim, embora haja a previsão legal ou constitucional, encontra-se ausente a real

possibilidade de exercício dessa oportunidade. O Estado Democrático de Direito é

democrático somente para aqueles que podem gozar dessa democracia, ou seja, o Estado

democrático de Direito só o é para poucos que podem alcançá-lo. Complementa Morais e

Streck a respeito, citando um terceiro obstáculo:

Por fim, consectário mesmo deste alargamento participativo e do acúmulo de demandas experimentado, passou-se a experimentar um processo de fragilização da democracia diante da frustração constante provocada seja pela lentidão das respostas, suas insuficiências ou, ainda, pela ineficiência. Ou seja, à sobrecarga de demandas, viabilizada pela facilitação democrática, seguiu-se a defasagem quantitativa e/ou qualitativa das soluções propostas pelos métodos adotados para tal finalidade. Como diz Bobbio, a facilitação das demandas própria à democracia agrega-se a dificuldade das respostas também em razão da elevação significativa de seu próprio número, gerando, muitas vezes, frustrações sociais e desgastes para o próprio modelo seguido. (2004, p. 107-108).

A partir desse momento, em que o Estado se aparelha para servir de instrumento e

garantidor dos deveres e direitos do homem, ele deixa de lado o aspecto de ser o homem o fim

do Estado, que passa a priorizar o mercado, omitindo-se no seu encargo de conceder bem

estar social aos seus cidadãos, determina o aumento da demanda e ausência de soluções,

gerando o que Bobbio chamou de frustrações sociais (MORAIS; STRECK, 2004).

Morais e Streck, citando Bobbio, continuam:

Apesar disso, Bobbio concluiu que as promessas não cumpridas e os obstáculos não previstos [...] não foram suficientes para transformar os regimes democráticos em regimes autocráticos. Para o autor, a diferença entre uns e outros permaneceu. O conteúdo mínimo do Estado Democrático não encolheu; garantias dos principais direitos de liberdade, existência de vários partidos em concorrência entre si, eleições periódicas a sufrágio universal, decisões coletivas ou concordadas [...] ou tomadas com base no princípio da maioria, e de qualquer modelo sempre após um livre debate

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entre as partes ou entre os aliados de uma coalizão de governo. (2004, p. 108).

Assim, o Estado é formado por território, nação e cidadão e em não atuando em favor

deste cidadão, passou-se a identificar exercício de cidadania a situação de um cidadão ter

desrespeitado seus direitos e tenha que, agora, exercê-los, torná-los concretos, mesmo contra

o próprio Estado. Temos Estado, temos cidadão, temos cidadania. Contudo ainda não temos a

efetiva realização desses direitos no atual Estado de Direito. E o cidadão e a sociedade

somente implementarão esta realização por meio do conhecimento de seus direitos, educação,

capacitá-lo e, assim, deixá-lo em condições de exigir seus direitos.

Bedin afirma ser aparente a facilidade de definição do Estado de Direito, assim

reportando-se:

Esta aparente facilidade, no entanto, não se configura quando concretamente busca-se aprofundar a análise do tema. É que na verdade, a expressão possui, além de seu conteúdo jurídico-político mais específico, uma carga retórico-política muito forte, o que, muitas vezes, impede a sua compreensão mais analítica, sendo usada de forma bastante diferenciada. Por esse duplo sentido, o temam que aparentemente é muito simples, torna-se altamente complexo. Portanto, é necessário indagar: a que estamos nos referindo quando falamos de Estado de Direito? Para haver entendimento, isso precisa ser detalhado. (2002, p. 174).

Todavia, há consenso a respeito da institucionalização do Estado de Direito, em que o

Estado passa a ser regido e subordinado ao Direito, a uma Constituição, a Lei Fundamental,

Lei Magna, Carta magna, Norma Ápice ou Norma Normarum (norma das normas), como

descreve Bester (2005). Assim expressando Bedin a respeito:

[...] é importante explicitar que a análise parte do princípio de que o reconhecimento e a institucionalização do Estado de Direito tende a produzir, de forma geral, a eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos, a submissão do poder ao império do direito e o reconhecimento de direitos e garantias fundamentais, que são, em última análise, a materialização de uma idéia de justiça presente na constituição de um Estado. (2002, p. 174).

65

De acordo com este aspecto geral, tem-se uma noção do que o Estado de Direito não é,

nas palavras do mesmo autor:

Partindo desse princípio básico, pode-se dizer, de forma genérica, que o Estado de Direito não é: a) não é um Estado que decreta leis arbitrárias, cruéis de desumanas; b) não é um Estado em que o direito se identifica com as razões de Estado, impostas e estabelecidas pelos detentores do poder; c) não é um Estado pautado por radical injustiça na formulação e aplicação do direito e por acentuada desigualdade nas relações da vida material. (BEDIN, 2002, p. 174-175).

O referido autor ainda detalhando o que significa Estado de Direito no aspecto

político-jurídico, expressa também no viés do ângulo jurídico-político. Neste detalhamento

esclarece que o Estado de Direito inverte a ordem de prioridade no entendimento do que seja

Estado subordinado ao Direito e não o Direito a serviço do Estado, em que explicita dez

dimensões essenciais que devem estar presentes no Estado de Direito, nestes termos:

A primeira dimensão essencial é que o Estado de Direito é um Estado subordinado ao direito, isso significa, mas concretamente, tr~es coisas: a) o Estado está sujeito ao direito, em especial a uma Constituição (por isso, que constituição é, segundo Canotilho, o estatuto jurídico do político); b) o Estado atua através do direito; c) o Estado está sujeito a uma idéia de justiça. [...] A segunda dimensão essencial é que o Estado de Direito é um Estado de direitos fundamentais. Isto é, um Estado que reconhece e, como regra, constitucionaliza um conjunto de direitos que constituem a base de sua fundamentação e de sua legitimação político-jurídica. Por isso, os direitos fundamentais são uma dimensão essencial do Estado de Direito e uma referência essencial de legitimidade de uma ordem jurídica específica. Por isso, os direitos fundamentais são um conjunto de normas constitucionais superiores, que obrigam o legislador a respeitá-las, observando o seu núcleo fundamental, sob pena de nulidade das próprias leis e da declaração de sua inconstitucionalidade. [...] A terceira dimensão essencial é que o Estado de Direito é um Estado que observa o princípio da razoabilidade, ou seja, é um Estado de justa medida porque se estrutura em torno do princípio material normalmente chamado de princípio da proibição de excesso. Esse princípio acentua as dimensões das garantias individuais e da proteção dos direitos adquiridos contra medidas excessivamente agressivas, restritivas e coativas dos poderes públicos na esfera jurídico-pessoal e jurídico-patrimonial dos indivíduos. A quarta dimensão essencial é que o Estado de Direito é um Estado que estabelece o princípio da legalidade da administração pública, isto é, é um Estado que estabelece a idéia de subordinação à lei dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes. [...].

66

A quinta dimensão essencial é que o Estado de Direito é um Estado que responde pelos seus atos, ou seja, é um Estado que civilmente é responsável por danos incidentes na esfera jurídica dos particulares. [...] A sexta dimensão essencial é que o Estado de Direito é um Estado que garante a via jurídica, ou seja, o acesso ao poder judiciário no caso de ameaça ou lesão de direito. [...] A sétima dimensão essencial é que o Estado de Direito é um Estado de segurança e de confiança das pessoas, isto é, um Estado de certeza da aplicação da lei, de clareza e racionalidade do trabalho legislativo e de transparência no exercício do poder. [...]. A oitava dimensão essencial é que o Estado de Direito é um Estado estruturado a partir da divisão dos poderes, isto, é, do fracionamento do Poder do Estado e da independência de seus três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário (divisão horizontal de poder). [...]. A nona dimensão essencial é que o Estado de Direito é um Estado de liberdade e de igualdade, isto, é, um Estado que respeita e incentiva os processos de autonomia dos cidadãos, em sua esfera privada e pública, e um Estado que exige um status legal e material iminentemente isonômico, de igualdade (é, nesse sentido, também, um Estado Social). [...]. A décima dimensão essencial é que o Estado de Direito é um Estado Democrático e Republicano, isto é, um Estado alicerçado na soberania popular e na defesa e no cuidado com o bem público.[...]. (BEDIN, 2002, p. 175-179).

Todavia, dentro do próprio Estado Democrático de Direito no Estado do Bem-Estar,

do Estado de Direito, evidenciando o constante dinamismo da sociedade e do próprio Estado

de Direito como instituição, está ocorrendo a constitucionalização dos direitos sociais

fundamentais, em que o exercício da cidadania, na exigência da efetivação e concretização

desses direitos, determina a transformação do chamado Estado Democrático de Direito,

conferindo a qualificação de Constitucional a este Estado. Não bastasse isso, acresce também

a qualificação de Estado Social.

Assim, no atual estágio do chamado Estado de Direito, sucedendo o Estado

Democrático de Direito, surge o chamado de Estado Democrático Constitucional Social de

Direito, em que os direitos fundamentais estão inseridos no Texto Constitucional, como

elementos fundantes do próprio Estado, somando-se a busca não somente pela distribuição

democrática desses direitos, mas na sua efetivas realização, em que houve necessidade de

intervenção na atividade do Estado-Administração, que ficara como responsável pela

67

consecução dos direitos da humanidade, os individuais, coletivos, sociais, ambientais e de

nação. Bonavides assim retrata o surgimento deste Estado de Direito:

A solene Declaração fundava o Estado de Direito. Não importa a qualificação ou adjetivo que lhe acrescente

Liberal, Democrático ou

Social. Se não garantir nem concretizar a liberdade, se não limitar o poder dos governantes, se não fizer da moralidade administrativa artigo de fé e fé pública, ou princípio de governo, se não elevar os direitos fundamentais ao patamar de conquista inviolável da cidadania, não será Estado de Direito. (2004, p. 38-39).

Bester assim se refere ao que entende por Estado (Democrático) de Direito:

Já dizia o estadista inglês Winston Churchill que a democracia é o pior de todos os regimes, exceto todos os demais é dizer: de tudo que se conhece, embora tenha as deficiências, a democracia ainda é o que de melhor temos para o convívio e a regência da humanidade. E o Estado Democrático de Direito é o regime jurídico que autolimita o poder do governo ao cumprimento das leis que a todos subordinam, inclusive a si próprio. Mais do que isso: não basta a submissão ao Direito, mas que esse Direito seja criado democraticamente, o que leva, em última instância, à origem democrática tanto na composição do Poder Legislativo quanto do Poder Executivo, que sã dois poderes que podem criar normas, o primeiro na função típica, o segundo como exceção. Logo, este princípio permite ao povo (governados) uma efetiva participação no processo de formação da vontade pública (governantes e legisladores), sendo a marca principal deste tipo de Estado a origem democrática do poder e das normas. (2005, p. 283).

Este Estado de Direito nasce, então, claramente vinculado a idéia de que é um Estado

ou uma forma de organização político-estadual cuja atividade é determinada e limitada pelo

direito (CANOTILHO, 1999). Mas mais do que isto, nasce para ser garantia e concretização

da liberdade, instituindo a moralidade administrativa como fé pública e elevando os direitos

fundamentais ao patamar de conquista da sociedade e, portanto, de irreversível efetivação.

Assim, como preceitua Bester (2005), o Estado de Direito funda-se no princípio da

proteção dos direitos fundamentais, compreendendo direitos individuais, coletivos, políticos e

sociais, buscando realizar a justiça social.

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Morais e Streck lecionam que o Estado de Direito surgiu pela necessidade de

conceber-se hierarquia de regras jurídicas para enquadramento e limitação do próprio Estado

pelo Direito, embora Estado seja a instituição e Direito seja o ordenamento jurídico, atuando

juntos de forma complementar e interdependente, nestes termos:

Se o Estado se configura como instituição, o poder de mando em dado território não prescinde do Direito para fazer com que os demais elementos que compõem a ossatura do Estado sejam implementados. Estado e Direito, pois, passam a ser complementares e interdependentes. Com efeito, no plano teórico, o Estado de Direito emerge como uma construção própria à segunda metade do século XIX, nascendo na Alemanha

como Rechtstaat

e, posteriormente, sendo incorporado à doutrina francesa, em ambos como um debate apropriado pelos juristas e vinculado a uma percepção de hierarquia das regras jurídicas, com o objetivo de enquadrar e limitar o poder do Estado pelo Direito. (2004, p. 86, grifo dos autores).

Morais e Streck (2004, p. 87) estabelecem que o Estado de Direito surge desde logo

como o Estado que se submete a um regime de direito, em que a atividade estatal se

desenvolve utilizando como instrumento o ordenamento jurídico, determinando que sua

atividade seja autorizada por lei. Complementam os autores: A idéia de Estado de Direito

carrega em si a prescrição da supremacia da lei sobre a administração.

O Estado de Direito não se limita a esta concepção de ser um Estado sob a supremacia

da lei, adquirindo ele formas diferenciadas de acordo com a tradição de cada povo, assim

tendo o Estado de Direito alemão, o francês e o britânico. Morais e Streck assim preceituam:

Este Estado que se juridiciza/legaliza é, todavia, mais e não apenas um Estado jurídico/legal. Não basta, para ele, assumir-se e apresentar-se sob uma roupagem institucional normativa. Para além da legalidade estatal, o Estado de Direito representa e referenda um algo mais que irá se explicitar em seu conteúdo. Ou seja: não é apenas a forma jurídica que caracteriza o Estado, mas e, sobretudo, a ela agregam-se conteúdos. O século XX irá demonstrar claramente esta assertiva. A dimensão de conteúdo do Estado de Direito aproxima os modelos alemão e francês de seu vizinho insular, o modelo britânico do rule of law.

69

Assim, o Estado de Direito não se apresenta apenas sob uma forma jurídica calcada na hierarquia das leis, ou seja, ele não está limitado apenas a uma concepção de ordem jurídica mas, também, a um conjunto de direitos fundamentais próprios de uma determinada tradição. (2004, p. 87-88, grifo dos autores).

Leal assim leciona como se chegou a concepção de Estado Democrático de Direito:

Até o presente momento, tem-se claro que a linha política e filosófica de desenvolvimento das questões afetas à administração dos interesses públicos ou coletivos e aos poderes instituídos, ao menos no Ocidente, vem matizada pela cultura dos séculos XVI a XVIII, especialmente com os precursores do modelo de Estado Liberal, mais notadamente a partir do advento das Revoluções Francesa e Americana. Nesse sentido, concordamos com Habermas quando sustenta que um produto genuíno da Revolução Francesa foi a constituição de um modelo de Estado Nacional, eis que a partir dela são constituídos uma série de princípios e fundamentos racionais para a justificação do poder político. Em meio a este conjunto de acontecimentos políticos, forja-se uma certa consciência de entorno crítica e reflexiva sobre os fenômenos societais que envolvem o jogo da política, próxima talvez daquilo que Habermas chama de consciência revolucionária, aqui entendida como uma nova mentalidade social, caracterizada por uma nova consciência do tempo, um novo conceito de práxis política e uma nova noção de legitimação. Especificamente modernas son la consciencia histórica que rompe con el

tradicionalismo de las continuidades geradas esponáneamente; la comprensión de las praxis política bajo el signo de la autodeterminación y la autorrealización; y la confianza em el discurso racional mediante el cual deberá legitimarse cualquier forma de dominación política (Habermas). A partir daqui, vislumbra-se a possibilidade de que a única perspectiva racional e moderna que se pode ter de Poder Político e de seu exercício é a da cidadania, ou seja, a crença de que los indivíduos emancipados están llamados a constituirse, conjuntamente, em autores de su destino. Em su manos está el poder de decidir sobre las reglas y modalidades de su convivencia (Habermas). E o fazem, através de um pacto social instituidor da esfera institucional-jurídica do Poder: O Estado nominado de Democrático. (2001, p. 206-207).

Assim, o Estado de Direito pressupõe a efetividade da expressão liberdade , onde há

princípios de separação entre os poderes, garantia dos direitos e liberdades, pluralismo

político e social, a subordinação do Estado à Constituição e o controle da constitucionalidade

das leis, e, daí, a nominação de Democrático.

70

Dentre os princípios essenciais do Estado de Direito encontram-se o da liberdade, da

segurança, da igualdade, da vedação de práticas discriminatórias e de responsabilidade e

responsabilização dos detentores ou titulares do poder. Canotilho (1999) assevera que

somente se pode dizer que há Estado de Direito quando as instituições e cidadãos se sujeitam

ao direito, atuam através dele e positivam suas normas na idéia de direito.

Leal assim define as características do Estado de Direito

De qualquer sorte, quando se fala em Estado Democrático de Direito, ao menos no âmbito da era contemporânea, pode-se frisar como características, por um lado, as fornecidas por Elias Diaz (in Estado de Derecho e Sociedad Democrática, 1975, p. 29): a) império da lei: lei como expressão da vontade geral; b) divisão dos poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário; c) legalidade da administração, atuação segundo a lei e suficiente controle judicial; d) direitos e liberdades fundamentais: garantia jurídico-formal e efetiva realização material. (2001, p. 209-210).

O Estado de Direito deve submeter-se à lei por ele criada, de modo que o poder

político não é livre, mas vinculado ao direito. Isso significa que o Estado, seus poderes locais

e regionais, seus órgãos e agentes devem respeitar, observar, cumprir as normas jurídicas

vigentes, assim como os particulares. Como disse Leal (2001), legalidade da administração,

atuando segundo a lei e suficiente controle judicial.

Ainda define o autor:

É o império da lei que se impõe, devendo significar que o legislador mesmo se vincule à própria lei que cria, tendo presente que a faculdade de legislar não é instrumento para dominação arbitrária. Esta vinculação do legislador à lei, entretanto, para os bons homens dotados de boas intenções, só é possível na medida em que ela seja constituída com certas proprieda-des/pressupostos: moralidade, razoabilidade e justiça, por exemplo. (LEAL, 2001, p. 210).

71

Bedin (2002) refere que os governantes não estão acima das leis, e o Estado como um

todo deve desenvolver suas atividades e desempenhar suas tarefas de acordo com os preceitos

legais referentes à competência, legalidade, legitimidade.

Para isso o Estado Democrático de Direito tem como um de seus fundamentos a

Teoria da Tripartição dos Poderes, sob a égide do Sistema dos Freios e Contrapesos, em que o

Poder do Estado é dividido e exercido por três instituições autônomas e independentes entre

si, mas que atuam em harmonia e fiscalização recíproca de suas atividades, por isso o Estado

de Direito é qualificado de democrático, como asseverou Leal (2001).

Da mesma forma qualificou Bester (2005), preceituando que o qualificativo

democrático , na verdade, já estava presente desde a primeira versão do Estado

Constitucional (Liberal) de Direito, isto pelo elemento da separação dos poderes, sendo cada

um deles considerado típico para o exercício de uma função distinta.

Para os governantes o limite é a lei e para que não possam ultrapassar esses limites,

que é delimitador do exercício de governar, ou desenvolvam as atividades concernentes para a

efetivação dos direitos individuais, coletivos, sociais, ambientais do cidadão e da sociedade,

dando efetividade e concretização aos preceitos constitucionais e ao ordenamento jurídico

complementar.

Bedin define este Estado de Direito dessa forma:

O Estado de Direito é, portanto, um Estado subordinado ao direito, que defende os direitos fundamentais e a segurança de seus cidadãos e que tem por base o princípio da razoabilidade, da responsabilidade por seus atos e do respeito da via judicial. Além disso, estrutura-se a partir da divisão dos poderes e da descentralização de suas atividades, sendo a sua administração orientada pelo princípio da legalidade e voltada à supremacia dos princípios

72

da liberdade e da igualdade, sem nunca afastar o fundamento popular do poder e a defesa do bem público. Presentes todas estas dimensões, estaremos diante da realização perfeita do Estado de Direito. (2002, p. 179).

Ao estabelecer Bedin (2002) como uma das dimensões para existência, validade e

eficácia do Estado de Direito a defesa dos direitos fundamentais e a segurança de seus

cidadãos, preconiza, então, que é dever do Estado-Governo orientar sua administração pelo

princípio da legalidade e voltada à supremacia dos princípios da liberdade e da igualdade, e

não se afastar do fundamento popular do poder e a defesa do bem público. E se assim mesmo

não obedecer estes preceitos, saber respeitar a via judicial, em que o Poder Judiciário é

elevado como um elemento promovedor de regularidade e equidade social, de acordo com a

própria previsão constitucional do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal do Brasil.

Ao diferenciar o Estado de Direito de Estado do Não-direito, afirma Canotilho (1999)

que no Estado de Não-direito o poder não possui limites jurídicos e aos cidadãos não são

reconhecidos os direitos e liberdades. Para Canotilho (1999) no Estado de não-direito há leis

arbitrárias, cruéis e desumanas, exercício abusivo do poder e da força, deixando os cidadãos

sem defesa jurídica eficaz, onde o direito identifica-se com a razão do Estado, ou seja, com a

lei imposta por chefes, com a vontade do partido ou do governante, em nome do bem do

povo, onde reina a injustiça e a desigualdade na aplicação do direito, já que imperam dois

pesos e duas medidas, dependendo para quem devem ser impostas as leis.

Morais e Streck assim se expressam a respeito:

É por essas, entre outras, razões que se desenvolve um novo conceito , na tentativa de conjugar o ideal democrático ao Estado de Direito, não como uma aposição de conceitos, mas sob um conteúdo próprio onde estão presentes as conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social. Tudo construindo um novo conjunto onde a preocupação básica é a transformação do status quo. O conteúdo da legalidade

princípio ao qual permanece vinculado

assume a forma de

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busca efetiva da concretização da igualdade, não pela generalidade do comando normativo, mas pela realização, através dele, de intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade. O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica. E mais, a idéia de democracia contém e implica, necessariamente, a questão da solução do problema das condições materiais de existência. (2004, p. 92-93, grifo dos autores).

No Estado do não-direito há identidade entre direito e a força, em que as leis devem

ser obedecidas mesmo que traduzam a vontade arbitrária dos governantes e vão de encontro

aos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos e da comunidade. Contudo, mesmo um

Estado nestes termos não deixa de ser um Estado de Direito, como Canotilho (1999) chama

de Estado Fascista de Estado de Direito justamente porque existe uma ordem legal, embora

totalitária e isenta de liberdades.

Por isso não se pode afirmar não ser um Estado de Direito, como referiu Bester

(2005), ao citar que quando Kelsen identificou Estado com Direito, isto significou que

qualquer Estado, desde que organizado

pelo Direito, seria um Estado de Direito, não

importando que fossem ditaduras. Isto é, obviamente, um sentido muito restrito da expressão

Estado de Direito. É que Estado de Direito é, como referem Morais e Streck (2004, p. 88),

também, uma concepção de fundo acerca das liberdades públicas, da democracia e do papel

do Estado [...].

E nesse espaço, mesmo existindo liberdades e preservados os direitos, garantias e

prerrogativas do cidadão, ainda persiste a realidade de eles não serem implementados,

respeitados realizados, efetivados, concretizados, determinando que o cidadão saia da posição

74

de expectador e venha exercer efetivamente sua cidadania, utilizando-se dos instrumentos que

estão a sua disposição, elevando-se, dentre eles, de grande e vital importância, o Poder

Judiciário, que também deixa a passividade jurídico-politica e passa a exercer uma função de

promoção e eficácia de medidas socializantes, conferindo ao cidadão a efetividade de seus

direitos.

2.3 A transformação do Estado de Direito

O Estado de Direito que se apresenta no século XX é o próprio Estado Direito, mas

com a adesão do componente da democracia. Isto determina que o Estado de Direito vá além

de sua preconfiguração positivista, além de seu formalismo, como decorrência de sua

substancialidade, pelo caráter indomado da democracia, definindo-se por uma contínua

transformação, que não diz respeito a revolução das estruturas sociais do modelo tradicional,

mas agrega a questão da efetividade da qualidade de igualdade de oportunidades ao cidadão.

Por isso, no Estado de Direito o centro é o indivíduo e as liberdades, conforme nos

explica Morais e Streck:

O Estado de Direito apresenta-se caracterizado pelo conteúdo liberal de sua legalidade, onde há o privilegiamento das liberdades negativas, através de uma regulação restritiva da atividade estatal. A lei, como instrumento da legalidade, caracteriza-se como uma ordem geral e abstrata, regulando a ação social através do não impedimento de seu livre desenvolvimento; seu instrumento básico é a coerção através da sanção das condutas contrárias. O ator característico é o indivíduos. (2004, p. 96-97).

Estas características, contudo, não esgotam a trajetória do Estado de Direito. É

possível perceber que, numa segunda fase, os grupos humanos também passam a ser

protegidos. Com isto, surge o Estado Social de Direito, que é a sociedade como grupo de

pessoas que passa a figurar como centro do Estado, mantendo o ideal liberal da liberdade, em

75

que passa do individual para o coletivo, onde o ordenamento jurídico deixa de ser instrumento

de legalidade e de coerção para ser instrumento de ação efetiva do Estado, agregando o

elemento social. Morais e Streck definem assim essa transformação:

O desenrolar das relações sociais produziu uma transformação nestemodelo, dando origem ao Estado Social de Direito que, da mesma forma que o anterior, tem por conteúdo jurídico o próprio ideário liberal agregado pela convencionalmente nominada questão social, a qual traz à baila os problemas próprios ao desenvolvimento das relações de produção e aos novos conflitos emergentes de uma sociedade renovada radicalmente, com atores sociais diversos e conflitos próprios de um modelo industrial-desenvolvimentista. Temos aqui a construção do Estado ladeada por um conjunto de garantias e prestações positivas que referem a busca de um equilíbrio não atingido pela sociedade liberal. A lei assume uma segunda função, qual seja, a de instrumento de ação concreta do Estado, aparecendo como mecanismo de facilitação de benefícios. Sua efetivação estará ligada privilegiadamente à promoção das condutas desejadas. O personagem principal é o grupo que se corporifica diferentemente em cada movimento social. (2004, p. 97).

De comum nos dois modelos de Estado de Direito, o Liberal e o Social, há a adaptação

social do indivíduo e dos grupos de indivíduos, pois o ideário liberal permanece.

Não bastasse a evolução do objeto de ação do Estado, passando do individual para o

coletivo, agregando a questão social ao ideário liberal, com o acréscimo da questão de

igualdade dos indivíduos e grupo de indivíduos perante as oportunidades sociais que são

disponibilizadas pelo Estado, nova transformação ocorre no Estado de Direito, agregado pela

questão de democracia no exercício dos benefícios oferecidos pelo Estado, passando a ocorrer

o Estado Democrático de Direito.

Morais e Streck assim se expressam a respeito:

A novidade do Estado Democrático de Direito não está em uma revolução das estruturas sociais, mas deve-se perceber que esta nova conjugação incorpora características novas ao modelo tradicional. Ao lado do núcleo liberal agregado à questão social, tem-se como este novo modelo a incorporação da questão da efetividade da igualdade como um conteúdo

76

próprio a ser buscado através do asseguramento jurídico de condições mínimas de vida ao cidadão e à comunidade. (2004, p. 97).

Os autores afirmam ainda que se agrega a esse conteúdo social ao modelo liberal outro

elemento importante na recriação do Estado Democrático de Direito, que lhe confere nova

roupagem, elegendo a solidariedade como componente de agregação comunitária, assim

expressando-se:

Embora tal problemática já fosse visível no modelo anterior, há, neste último, uma redefinição que lhe dá contornos novos onde tal objetivo se coloca vinculado a um projeto solidário

a solidariedade agrega-se a ela compondo um caráter comunitário. Aqui estão inclusos problemas relativos à qualidade de vida individual e coletiva dos homens. (MORAIS; STRECK, 2004, p. 98).

O Estado passa a ter um papel diferenciado do modelo anterior, ocorrendo uma

transformação de conteúdo, onde a norma jurídica, seja ela constitucional ou esparsa, deixa de

ser um instrumento de administração para servir de instrumento de inclusão social e

manutenção da qualidade de vida humana.

Nestes termos lecionam Morais e Streck.

A atuação do Estado passa a ter um conteúdo de transformação do status quo, a lei aparecendo como um instrumento de transformação por incorporar um papel simbólico prospectivo de manutenção do espaço vital da humanidade. Dessa forma, os mecanismos utilizados aprofundam paroxisti-camente seu papel promocional, mutando-o em transformador das relações comunitárias. O ato principal passa a ser as coletividades difusas a partir da compreensão da partilha comum de destinos. (2004, p. 98).

O Estado Democrático de Direito tem uma atuação transgressora da preconfiguração

positivista, assumindo um caráter dinâmico do que sua própria porção estática, sua própria

formalidade. Morais e Streck assim ensinam:

Diferentemente dos anteriores, o Estado Democrático de Direito carrega em si um caráter transgressor que implica agregar o feitio incerto da

77

Democracia, impondo um caráter reestruturador à sociedade e, revelando uma contradição fundamental com a juridicidade liberal a partir da reconstrução de seus primados básicos para conservação do passado. Nesse sentido, pode-se dizer que, no Estado Democrático de Direito, há um sensível deslocamento da esfera de tensão do Poder Executivo e do Poder Legislativo para o Poder Judiciário. (2004, p. 98).

Com a conversão dos direitos de liberdade em direitos de realização de direitos, o

Estado teve necessidade de ao invés de sancionar condutas dos cidadãos, determinar a

promoção da realização de seus direitos, o que determina uma constante mutação e ampliação

dos conteúdos normativos do Estado de Direito. Exigindo o pronunciamento do Poder

Judiciário acerca das constantes mudanças das regras jurídicas.

Morais e Streck assim argumentam:

Percebe-se nesta trajetória como que uma redefinição contínua do Estado de Direito, com a incorporação de conteúdos novos, em especial face à imposição dos novos paradigmas próprios ao Estado de Bem-Estar Social. o que ocorre não pode ser circunscrito, apenas, a um aumento do número de direitos mas, isto sim, a uma transformação fundamental no conteúdo do Direito ele mesmo. Para além da passagem dos droits-libertés para os droits-créances da transmutação da sanção em promoção, há a constituição de realidades novas que se impõem. O caráter democrático implica uma constante mutação e ampliação dos conteúdos do Estado de Direito. (2004, p. 98, grifo dos autores).

Ao modificar o regramento jurídico numa redefinição do Estado de Direito, se está

passando de um ordenamento generalizado para uma legislação particularizada, dificultando o

entendimento e a interpretação, somando-se a valorização dos princípios constitucionais.

Morais e Streck descrevem:

Mais do que apontar a mutação das características tradicionais do Direito, a mudança de caráter da regra jurídica

não mais um preceito genérico e abstrato, mas uma regulação tendente à particularização -. De sua transitoriedade e, em conseqüência, de seu eventual desprestígio vinculado à sua complexidade, especificidade, tecnicalidade e proliferação, o que conduz a seu difícil conhecimento por parte dos operadores jurídicos, é preciso perceber que o Estado de Direito passa a ser percebido a partir da adesão de um conjunto de princípios e valores que se beneficiarão de uma

78

consagração jurídica explícita e serão providos de mecanismos garantidores apropriados, fazendo com que a concepção formal fique submetida a uma concepção material ou substancial que a engloba e ultrapassa, tornando a hierarquia das normas um dos componentes do Estado de Direito substancial. (2004, p. 98-99).

Diante da transformação do Estado de Direito e da Cidadania, que caracterizam o

próprio Estado Democrático de Direito, esta democracia deve ter por fundamento básico a

cidadania, o pleno e efetivo exercício dos direitos do cidadão, entendendo-se um Estado

Democrático somente aquele em que a soberania popular prevalece sobre questões técnico-

jurídicas do Estado.

Morais e Streck definem:

O Estado de Direito, dada sua substancialidade, para além de seu formalismo, incorporando o feito indomesticado da democracia, apresenta-se como uma contínua (re)criação, assumindo um caráter dinâmico mais forte do que sua porção estática

formal. Ao aspecto paralisante de seu caráter hierárquico agrega-se o perfil mutante do conteúdo das normas, que estão, a todo instante, submetidas às variações sociopolíticas. (2004, p. 99).

Esta substancialidade que determina a dinâmica social e as conseqüentes variações do

conteúdo formal do Estado, não faz desaparecer as dificuldades do exercício dos direitos

sociais. Morais e Streck discorrem:

Evidentemente que uma preconfiguração positiva de tal fenômeno não subestima, sequer faz desaparecer, alguns problemas que são fundamentais e estão intrinsicamente relacionados à prática do Estado de Direito, como p.ex. a possibilidade de que mais do que garantir e promover interesses sociais apresente-se como um mecanismo de opressão, utilizando-se da juridicização integral do cotidiano das relações sociais, construindo a realidade tomando como paradigma o prisma jurídico. Seu caráter retórico-argumentativo serve, inclusive, de vínculo redutor da política no debate público. (2004, p. 99).

Corre-se o risco de juridicizar o Estado mediante rituais legais. Todavia, pelo matiz da

democracia, que determina que o Estado se submeta ao Direito, na supremacia da

79

Constituição como elemento determinante da formação e base do Estado Democrático de

Direito, resultando em contínuo aperfeiçoamento desta forma de Estado, agregando-se à

garantia, o asseguramento do pleno exercício dos direitos constitucionais, que caracteriza a

cidadania e seu exercício.

Morais assim se expressa a respeito dessa evolução no Estado Democrático de Direito:

Mas, dado ao seu viés mutante, o Estado do Bem Estar não se constitui definitivamente, de uma vez por todas. A sua história é feita de constantes mudanças de rumo, direção, mantendo, apenas, o sentido que lhe é próprio, o do atingimento da função social. O Estado Democrático de Direito, na esteira dessa tradição, emerge como um aprofundamento/transformação da fórmula, de um lado, do Estado de Direito, e, de outro, do Welfare State. Assim, o conteúdo deste modelo se aprimora e complexifica, posto que impõe à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação do status quo, muito embora se ressinta de afetações que se lhe apresentam a partir já dos anos 1970, tomados como referência histórica circunstancial. Estas podem advir da reação de seus opositores, tal como hoje fazem os ditos neoliberais faustores de uma política de reforma do Estado, ou do seu próprio desenvolvimento contraditório, muitas vezes titubiante ou fragilizado pela insuficiência ou, por vezes, inexistência de uma(s) teoria(s) que lhe dê sustentação, em particular no que diz respeito a sua estrutura jurídica, expondo-lhe como crise fiscal, crise estrutural e crise filosófica. (2005, p. 18-19, grifo do autor).

Comparato assim expressa:

Na Idade Moderna, só se pode considerar democrático o regime político fundado na soberania popular, e cujo objetivo último consiste no respeito integral aos direitos fundamentais da pessoa humana. A soberania de um povo, não dirigida à realização dos direitos humanos, conduz necessariamente ao arbítrio da maioria o respeito integral aos direitos do homem, por sua vez, é inalcançável, quando o poder político supremo não pertence ao povo. (2004, p. 7).

Um Estado que se diz democrático, somente pode ser assim qualificado, se respeitar a

dignidade da pessoa humana, dando efetividade aos seus direitos sociais e combatendo o

arbítrio e o desrespeito a essa condição.

80

2.4 Considerações finais

O Estado de Direito chega a um patamar de evolução conceitual, estrutural,

organizacional e de instrumentalidade jamais alcançados em sua trajetória, valorizando o

aspecto de respeito e cumprimento do ordenamento jurídico, com prevalência da Constituição

Federal. Todavia, um dos aspectos mais importantes nesta evolução está o componente

humanista, aliado à flexibilização da aplicação deste ordenamento jurídico, sempre voltado

para as elementares referentes àqueles que estão sob sua égide, considerando a condição

humana dos cidadãos integrantes de seu território.

Assim, o Estado de Direito, que no seu início estava voltado para impor uma limitação

ao próprio Estado e aos seus cidadãos, agora converte-se em linha guia de efetividade dos

direitos sociais fundamentais, que, após constitucionalizados, determinam uma nova guinada

na história do Estado de Direito, em que não se deixa de lado o aspecto da economia de

mercado, que deve conviver com a efetividade e concreção daqueles direitos, tendo como

instrumento desta efetividade um dos Poderes do Estado, o Poder Judiciário, que erige-se no

grande trunfo do cidadão para busca de um mundo com mais divisão de bens e mais justiça

social.

81

3 ESTADO DE DIREITO, PODER JUDICIÁRIO E MAGISTRATURA CONSTITU-

CIONAL

Neste Estado de Direito, em que o Poder Judiciário passa a exercer importância

fundamental na efetividade dos direitos sociais fundamentais constitucionalizados, o Juiz

Constitucional, aquele que cumpre a Constituição de seu país, elegendo-a como norma

fundante e orientadora das demais e que a ela tem que se conformar, assume papel

determinante na sociedade contemporânea, deixando uma posição estática para assumir novos

contornos funcionais, mais ativos e participativos.

Esta nova característica do Poder Judiciário lhe confere uma função efetiva no Estado

de Direito, deixando de ser um mero aplicador da lei para garantia da segurança, da ordem

pública e da harmonia social. Sua atuação, por meio de seus representantes, chamados de

Juízes Constitucionais, passa a ser ativa e efetivamente decisiva, pois em elegendo o texto

constitucional como norma fundamental das decisões judiciais, estabelece ser indiscutível sua

aplicação, justamente porque os direitos e garantias constitucionais não podem ser

contraditados por outras leis e descumpridas pelos cidadãos, pela sociedade, ou instituições e,

inclusive, pelo próprio Estado.

82

Essa nova conformação inclusive vem dar nova definição do equilíbrio entre os três

Poderes do Estado, já que o Judiciário passa a determinar o cumprimento da Constituição

Federal pelos Poderes Legislativo e Executivo, passando a ter uma atuação jurídico-política.

Assim modifica a própria conformação do Estado de Direito, que mais do que nunca é, hoje,

um Estado Constitucional, ou seja, um Estado que é regido e controlado pela sua

Constituição.

3.1 Estado de Direito e Poder Judiciário

Na nova fase do Estado de Direito, é fundamental a questão da busca pela

concretização e pela efetividade dos direitos fundamentais. Nesse sentido, a intervenção do

Poder Judiciário é fundamental para essa concretude e efetividade desses direitos

fundamentais. Isso ocorre porque o Poder Judiciário, como elemento integrante dos três

poderes do Estado, passa a intervir na própria atividade-fim do Estado, diante da omissão do

Poder Executivo e Legislativo, na dimensão que não efetivam suas obrigações para com o

cidadão, em aplicação direta e objetiva do sistema de freios e contrapesos e da recíproca

fiscalização que um Poder exerce sobre o outro. Vai mais além, não cumprem a Constituição

Federal.

Neste sentido, conforme afirma Nobre, o Poder Judiciário é detentor de prerrogativa

que, certamente, preocupa:

o poder político dominante com relação à sua extensão e força coercitiva. Aliás, é a coercitividade da atuação jurisdicional importante instrumento de poder também com relação as demais esferas, haja vista que, a respaldar o provimento jurisdicional, encontra-se todo o aparato administrativo e policial de imposição deste ao seu destinatário, tornando intelegível o temor que permeia as demais esferas com relação à Judiciária, porquanto maior que o poder de instituir lei é o de fazer cumpri-la, poder este de titularidade exclusiva do Judiciário. (2004, p. 146).

83

Neste sentido, lembra Lucas que o Poder Judiciário emerge, portanto, como

espaço de proteção em um contexto social em que o Estado se ausenta, se fragiliza e não consegue garantir os direitos prometidos. Segundo Vianna, apoiado em Garapon, a emergência do Poder Judiciário, corresponderia, portanto, a um contexto em que o social, na ausência do Estado, das ideologias, da religião, e diante de estruturas familiares e associativas continuamente desorganizadas, se identifica como a bandeira do direito, com seus procedimentos e instituições, para pleitear as promessas democráticas ainda não realizadas na modernidade . (2004, p. 184).

Segue Lucas em seu entendimento sobre um Poder Judiciário interventivo, numa

condição de Poder de Estado ativo, não somente de aplicador do texto de lei, mas de

fundamentando suas decisões de formam ais ampla, em que a Constituição é a linha mestra e

direito como um todo seu complemento, entendido este como princípios, direitos e

prerrogativas constitucionalmente deferidos ao cidadão e à sociedade, dando-lhes efetividade

e concreção, nos seguintes termos:

O Poder Judiciário passa a representar para a sociedade civil um poder interventivo, um poder ativo na realização das promessas constitucionais e na afirmação da democracia. Assim, de acordo com José Reinaldo Lima Lopes, chegam ao Judiciário questões que o sistema representativo brasileiro e a sociedade não têm conseguido resolver A afirmação da democracia política permitiu uma maior mobilização e organização da sociedade civil e, por conseqüência, viabilizou o crescimento das identidades coletivas em torno de objetivos comuns reveladores das necessidades não satisfeitas pelo Estado, mas que passaram a configurar no texto constitucional a partir de 1988. Com essa nova conformação do Estado brasileiro os movimentos sociais, as associações e demais atores coletivos ganharam visibilidade, e constroem espaços de atuação política fora dos ambientes tradicionais dos sindicatos e dos partidos políticos. A incapacidade do Estado brasileiro em promover uma política social substancial, incapacidade diretamente relacionada com o seu legado patrimonialista e clientelista, conduziu a uma multiplicação das reivindicações sociais de natureza coletiva, direcionadas à melhoria das condições materiais de vida. (2004, p. 185-186).

Esse movimento social ascendente do cidadão vem valorizar o exercício da cidadania,

sendo necessário não para o maior número possível de cidadãos, mas para que todo e qualquer

cidadão possa responder quatro perguntas básicas em matéria de exigir seus direitos

constitucionais, que fundamentam a cidadania efetiva, quais sejam: o que querer, como

84

requerer, quando requerer e para quem requerer. Quando puderem ser respondidas estas

perguntas, a cidadania deixara de ser potencial e será efetiva.

Nesse sentido, a intervenção do Poder Judiciário tem sido essencial, recebendo essa

demanda entre a cidadania e Estado Democrático de Direito, verificando a efetivação dos

direitos fundamentais por meio da própria Constituição, o mercado globalizado intervém

diretamente no sentido de desconstruir/desconstituir a concretude constitucional desses

direitos, referindo Lucas sobre o despreparo do Poder Judiciário para receber estas questões:

[...] Essa nova conflituosidade invade o Poder Judiciário e instaura uma situação paradoxal, pois ao mesmo tempo em que define a Jurisdição como um novo campo para defesa dos interesses coletivos, revela as limitações e precariedades da racionalidade jurídica para o trato dessa mesma conflituosidade [...] Em nome do mercado e da concorrência externa iniciou-se uma corrosão da Constituição, caracterizada, como se disse, por um conjunto de reformas políticas e estruturais que levou a sociedade civil, os partidos políticos e demais atores sociais a buscarem no Poder Judiciário a proteção dos valores fundamentais do Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição de 1988. (2004, p. 186).

Lucas arremata afirmando que o Poder Judiciário deixou os bastidores do mundo

legal, abstrato, teórico, e passou a enfrentar a realidade da vitrine, da exposição, do concreto,

não por vontade própria, mas provocado, justamente pela perspectiva do cidadão pleitear o

que está inserido na Constituição Federal, exercendo efetivamente a cidadania, buscando a

efetividade de seus direitos, passando o Judiciário a assumir funções que até o presente

momento não tinha qualquer preparo e predisposição para realizar, assim lecionando:

Esse protagonismo da Jurisdição não é decorrente de sua própria vontade, mas de um conjunto de alterações significativas que se operam entre a sociedade e o Estado e, obviamente, das alterações processadas no campo econômico nas últimas décadas. Por outro lado, o fato de o Poder Judiciário assumir novos papéis não significa que a moderna concepção de Poder Judiciário não subsiste mais, eis que sua racionalidade assume um papel importante para a afirmação das promessas democráticas, parece correto afirmar também que existe uma certa obnubilação existencial deste poder,

85

representada pelos diversos velamentos e cegueiras que marcam a crise da funcionalidade da jurisdição. (2004, p. 186-187).

Essa transformação e intervenção da Jurisdição passam pela educação, justamente

porque o Poder Judiciário é um Poder estático, necessitando ser provocado e, por isso, não é

uma intervenção decorrente de sua própria vontade. Todavia, é o pleno exercício da cidadania

pelos movimentos sociais, pelas associações e demais atores coletivos, construindo e abrindo

oportunidades de espaço de atuação, independente de partido, política ou sindicatos (LUCAS,

2004), que determina que a cada violação de um direito possa a Jurisdição ser provocada e

venha a manifestar-se a respeito, porque, conforme ensina Nobre:

A Sentença, como ato judicial terminativo do conflito trazido à apreciação do Juiz, é permeada de conteúdo valorativo, haja vista que terá o julgador que escolher a tese jurídica a qual prevalecerá sobre a outra, para isso dando as razões que motivaram seu convencimento. O simples fato de o julgador entender que deve dar provimento aos argumentos jurídicos de uma parte, e não da outra, já transparece a escolha que teve de fazer, escolha essa lastreada em seu entendimento do que é certo ou errado, daquilo que possui ou não o respaldo da lei objetiva vigente. Logicamente, existem aqueles casos em que a apreciação valorativa do Juiz não se faz necessária, por tratar-se o fato de questão eminentemente técnica, de mera aplicação do comando normativo específico; nesses casos inegável é a atividade dogmática do julgador, a qual não traduz, por óbvio, uma postura de sua parte, mas uma atitude isolada. A interpretação do conteúdo normativo positivado é tarefa da qual se serve diariamente o Juiz ao proferir suas decisões ou despachos ordinatórios, e essa interpretação não pode ser vista de forma negativa ou tendente a considerá-la inapropriada ou mesmo capaz de denegrir o espírito da lei, visto que na atividade judicante, impossível será ao julgador realizar a subsunção do fato à norma sem que se incorra em um mínimo de esforço hermenêutico; a aplicação do direito ao caso concreto irá requerer do julgador, muitas vezes, uma atitude de inovação do direito positivo, de forma a adequar sua decisão às peculiaridades inerentes aos casos trazidos a sua obtemperação. (2004, p. 147).

A autora assevera que o Juiz, como detentor de poder, não é uma máquina, mas um ser

humano como aqueles que ele está julgando, determinando que o seu ato de julgamento seja

um ato do homem e não simplesmente um ato da lei , dessa forma consignando que o Juiz

julga na condição de homem e não de repetidor de textos legais, devendo colocar essa

humanidade não somente na aplicação dos direitos, mas entender que ela está vinculada

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umbilicalmente nos conflitos que tem que resolver, nestes termos:

O Juiz, como ser humano que é, encontra-se sujeito ás influências do meio em que vive, seja o acadêmico, o familiar ou o social. a despeito de abalizadas opiniões em contrário. Os valores que cada um adquiriu na formação de sua personalidade não podem (no sentido mesmo da falta de possibilidade) ser simplesmente abstraídos em nome da proclamada imparcialidade do Juiz na apreciação do fato. Não há uma medida unicamente objetiva do que é justo. A justiça é, eminentemente, um valor, valor este que é informado pelos critérios pessoais de cada um

o que é justo para A pode não sê-lo para B

respeitando-se, entretanto, aquele critério mais ou menos comum de moralidade média, o qual fornece à justiça o sentido do mínimo que se deve buscar no convício social, aquela justiça a qual, no entender de Rawls, é informada por certos princípios, objetos de um consenso social: São esses princípios que pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitaram numa posição de igualdade, como definidores dos termos fundamentais dessa associação . Nesse sentido é que o Juiz decide utilizando-se de seus valores pessoais, de suas experiências de vida, de seus métodos de indução, devendo pautar-se nas raias da normalidade, evitando as convicções faccionias, os preconceitos infundados e os juízos distorcidos e exacerbados acerca dos fatos mais polêmicos. ( 2004, p. 148, grifo da autora).

Verifica-se que o Poder Judiciário ao implementar as políticas sociais não cumpridas

tem papel determinante no exercício pleno da cidadania e, sendo composto por homens, serve

de elo de ligação entre o Estado Democrático de Direito e a cidadania, porque ciente dos

valores e crenças do homem.

Todavia, a fim de evitar o que Lucas (2004, p. 150) chama de racionalidade precária

no trato com os conflitos sociais, ou a obnubilação existencial do Poder Judiciário ,

representada por velamentos e cegueiras que marcam a crise da Jurisdição, é que Nobre

proclama, concluindo este ponto:

A mudança de consciência quanto ao papel social dos juízes é, grande parte, devido à atuação da magistratura dos Estados Unidos da América. A jurisprudência naquele país, é uma das mais importantes fontes do Direito vigente, em sua maioria aquela emanada da Suprema Corte, órgão supremo da jurisdição americana. Iniciada com a inovadora atuação do Juiz Marshall, que enfrentou o poder Executivo da época, proferindo, no caso, conhecido como Madison vs. Marbury, decisão importantíssima no sentido de firmar o primeiro passo rumo à independência do órgão jurisdicional, a tendência de um Judiciário pensante tem sido cada vez mais reforçada nos dias atuais, e

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o padrão de magistratura inerte e legitimadora do poder estatal tem perdido, de forma definitiva, seu poder de influência sobre aqueles que possuem o mister de compor as lides com justiça. (2004, p. 150).

Na ordem lógica entre Estado (Democrático) de Direito, cidadania e Poder Judiciário

era no sentido de que o Estado patrocinava os direitos sociais e o exercício desses direitos aos

seus cidadãos, intervindo o Poder Judiciário em hipóteses em que havia conflito entre

cidadãos. Na evolução dessa relação, o Estado se omitiu, a cidadania teve que buscar em suas

origens e meios instrumentos de efetivar os direitos do cidadão, convertendo-se o Estado de

Direito em Estado Democrático de Direito. Com a intervenção ativa do Poder Judiciário a

patrocinar um real acesso à justiça e a pacificação dos conflitos sociais, aparece o Estado

Democrático Constitucional Social de Direito, invertendo a lógica entre as três instituições,

determinando que onde o Estado (Executivo/Legislativo) não atua, o cidadão faz com que ele

venha a atuar, em um conflito dos cidadãos contra o Estado, por intermédio do próprio

Estado-Juiz.

3.2 A superação do Princípio da Não-Intervenção

Na atuação clássica do Poder Judiciário vige o princípio da não-intervenção, também

chamado de princípio da inércia, que determina ser o Judiciário uma instituição de reação, que

somente se movimenta mediante provocação, dentro dos limites da lei para solução dos

conflitos sociais, conforme descrição de Roesler:

O Juiz

figura emblemática de operador jurídico -, de acordo com esses pressupostos, nada mais é do que a boca da lei , na célebre expressão de Montesquieu. Seu status é o de um funcionário público especializado, que cumpre uma função técnica, e que tem uma missão altamente dignificada. A de distribuir a justiça, que vem difusamente identificada com a legalidade. Ao juiz aplicador da lei não cabe um papel ativo em relação aos conflitos. O Poder Judiciário é concebido como um órgão reativo, que deve ser provocado a intervir. Também não é sua função avaliar as conseqüências sociais e/ou políticas de suas decisões. Tais considerações implicariam uma avaliação da legislação, de caráter político, para a qual ele não está

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legitimado na medida em que não é órgão representativo da vontade geral, como o é o Legislativo. Praticar tais avaliações significaria usurpar um poder que não lhe foi conferido. Expressa-se deste modo, no âmbito do Judiciário, o papel do Estado de arbítrio do jogo social, no qual sua interferência deve ser sempre tangencial e limitada. (2003, p. 231-232).

Nesta perspectiva estática, pouco poderia se esperar do Poder Judiciário do que

simplesmente verificar a adequação dos fatos (suportes fáticos in concreto) com as previsões

legais (suportes fáticos in abstratos) realizando o que se chama de juridicização dos fatos do

mundo dos fatos. Isso nada mais é do que simplesmente fazer um juízo de adequação,

mantenedor da doutrina liberal do Estado do Bem-Estar. Nobre assim expressou-se:

O normativismo exagerado traz consigo incontáveis prejuízos ao exercício de uma jurisdição justa. Em nome da estrita aplicação do texto legal, são olvidados aspectos importantes envolvidos na questão, capazes de, se indevidamente apreciados e valorados produzir significativas mudanças no pronunciamento normativista eventualmente proferido, mudanças essas dirigidas a um único objetivo: a solução justa da demanda. Muitos são os argumentos justificadores desse posicionamento legalista, os quais vão desde o fato de o magistrado, por não ser legislador, deve respeitar os estritos limites da letra fria da lei, a fim de que seu subjetivismo não invada a esfera de competência daquele, passando pela exigência da neutralidade política que se faz ao juiz (exigência quimérica, visto que o legalista atua, sobretudo, como instrumento político de manutenção das regras estabelecidas por aqueles que exercem o poder dominante), no exercício de suas funções, chegando até ao argumento dos que se dizem escravos da lei , a fim de legitimar sua atuação como modista, irresponsável

e injusta, disfarçada por uma máscara de falsa neutralidade e comprometimento inexistente com sua função judicante, atuando, na realidade, como meros vestais, travestidos de uma hipócrita fantasia de técnicos do direito. (2004, p. 142).

A autora prossegue, citando Dalmo Dallari:

A lição de Dallari continua em seu inconformismo com o formalismo de alguns juristas: Outro perigo, que favorece a impunidade, é dos juízes que, por um vício de sua formação jurídica, são demasiados formalistas. Geralmente fanatizados pela lógica aparente do positivismo jurídico, muitas vezes não chegam a perceber que o excessivo apego a exigências formais impede ou dificulta ao extremo a consideração dos direitos envolvidos no processo. Condicionados por uma visão exclusivamente formalista do direito, esses juízes concebem o respeito das formalidades processuais como o objetivo mais importante da função judicial. Não se sensibilizam pelas mais graves violações dos direitos humanos, desde que sejam respeitadas as formalidades. Por isso se pode dizer que os juízes formalistas

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são cúmplices inconscientes dos violadores de direitos humanos e concorrem de maneira significativa para garantir sua impunidade. A interpretação estritamente literal dos preceitos normativos é tarefa reprovável ao jurista moderno, e essa reprovação se torna ainda mais severa quando se trata esse jurista do próprio aplicador direto da norma; o juiz não pode eximir-se de analisar os aspectos específicos de cada caso, sob o pretexto de qualificar sua atuação como neutra e imparcial, em respeito a uma exigível abstração, quando da subsunção do fato à norma, sob pena de padecerem seus pronunciamentos de legitimidade, ou mesmo, em última instância, de eficácia material, haja vista as injustiças patentes que se podem cometer mediante a adoção dessa prática. (2004, p. 143, grifo da autora).

Trata-se do mito de neutralidade do Juiz, tendo como pano de fundo a legalidade

estrita na função jurisdicional, em que somente aquele que aplica o texto de lei é imparcial.

Nobre assim define:

A simbologia da imparcialidade do Juiz produz efeitos e, dentre eles, o de dar suporte à idéia de que o Julgador deve pautar sua conduta e jurisdição segundo princípios de interpretação estrita dos comandos normativos, num exercício de positivismo extremo, sem dar lugar a juízos próprios de valor ou idéias preconcebidas. A concepção de que o Juiz, ao julgar um feito, deve atuar como se máquina fosse, despido de conteúdo axiológico ou ideológico próprios, é uma falácia que merece ser trazida à colação, a fim de que se explicitem seus fundamentos e defeitos. A imagem do juiz autômato, um simples aplicador de comandos legislativos, por muitas décadas foi arduamente defendida pelos teóricos de uma forma um tanto exacerbada de positivismo jurídico. (2004, p. 144).

Não é outro o entendimento de Roesler, preconizando que os conflitos são resolvidos

abstraídos de seu elemento social e humano, não sendo relevante a repercussão da decisão:

Para melhor cumprir essa função é exigida do Judiciário a capacidade de julgar os conflitos de modo uniforme e com alcance generalizado, corroborando, uma vez mais, a certeza e a segurança jurídicas. Os conflitos, no entanto, são julgados sempre da perspectiva antes mencionada: abstraída a sua determinação social e a sua posterior repercussão. De certo modo pode-se dizer que o Judiciário assim concebido tem sempre uma função retroativa: ele repara situações de fato que foram descompostas. Não é capaz e nem lhe cabe trabalhar prospectivamente. Ele não tem, e isto é fundamental para compreendermos as posteriores transformações, pretensões de produzir mudanças sociais ou de orientar ativamente a vida social sua finalidade é limitada pela perspectiva negativa que já salientamos: ele procura apenas alcançar um estado de liberdade universal. (2002, p. 231-232).

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A posição clássica do Poder Judiciário no Estado Liberal no Estado de Direito é ser

um dos poderes de Estado, limitando-se a solucionar conflitos jurídicos, sem interferência na

esfera administrativa-política. Contudo, com a constitucionalização dos direitos sociais e

econômicos, auto-aplicáveis, o Judiciário viu-se provocado a ir mais além do que sua atuação

rotineira, intervindo no social e político, determinando o surgimento de tensões entre os

Poderes do Estado, assim descrevendo Roesler:

O lócus onde desembocarão todas essas tensões, em razão do princípio do no liquet, é o Poder Judiciário. Ele precisa decidir conflitos que são de um novo tipo, cuja marca é a conotação política, a partir de uma estrutura operacional e de um sistema conceitual dogmático que não foram pensados para tal mister. A formação que o próprio sistema é capaz de oferecer aos seus operadores é ainda a tradicional, calcada na visão liberal do Direito. A realidade é, no entanto, muito diferente. O Estado de Bem-Estar trouxe consigo, ao constitucionalizar os direitos sociais e econômicos, uma nova tarefa, de cunho fortemente político, ao Judiciário. Sendo este poder o encarregado de defender o texto da Constituição em nome do Legislador originário, quando o Legislativo e o Executivo atuam como executores do programa constitucional, é sempre possível recorrer ao Judiciário para que se pronuncie sobre a correção dessa atuação. [...] [...] O Judiciário se vê, deste modo, pressionado simultaneamente em duas frentes. Por um lado, a sociedade exige dele uma atuação mais efetiva na concretização dos direitos e garantias constitucionais ou legalmente assegurados. De outro, Legislativo e Executivo questionam sua legitimidade para interferir em opções políticas, já que ele não goza de legitimação eleitoral da qual são depositários e acusam-no de usurpar funções que não lhe são atribuídas. (2002, p. 241-242, grifo da autora).

Todavia, tal argumento preconizado pelo Legislativo e Executivo de que o Poder

Judiciário está usurpando suas funções por não ter a legitimidade do voto popular não tem

qualquer fundamento, pois a atuação do Poder Judiciário independe desta legitimação,

justamente porque se trata de um corpo técnico, destinado a resolver conflitos, sejam sociais,

econômicos, administrativos, criminais, ou seja, questões conflitantes da sociedade e, nesse

caso, sua função de fazer cumprir a constituição lhe atribui uma função maior do que

simplesmente dizer o direito (ROESLER, 2002, p. 242).

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Assim define Lucas sobre a importância da Constituição na atividade do Poder

Judiciário e na redefinição das funções jurisdicionais:

Nosso texto constitucional reconhece as limitações de nossa democracia material e aponta para um conjunto de transformações que a sociedade brasileira considera importantes, vinculando a todos em torno de suas possibilidades. A Constituição apresenta-se como um constituir, como o pacto social que estabelece as referências para a atuação dos Poderes de Estado. Nesse sentido a Jurisdição, especialmente a constitucional, constitui-se em espaço de defesa dos conteúdos materiais, dos direitos e garantias que sustentam o projeto democrático estampado na Constituição. Nenhum poder está imune ao projeto constitucional, que define um marco material para o exercício independente dos Poderes do Estado e concede ao Poder Judiciário a tarefa de controlar este limite. A redefinição das funções da Jurisdição e sua possibilidade interventiva é resultado da ampliação das funções estatais e um recurso indispensável para a sociedade democrática tentar evitar os desvios de seu projeto social. (2005, p. 215).

O Juiz deve afirmar, realizar determinada vontade concreta da Constituição e das leis

constitucionalizadas, desde que aqueles que deveriam cumpri-la se neguem a fazê-lo. Essa

seria a pedra de toque para a superação do princípio da não-intervenção do Poder Judiciário,

que passaria a atuar o direito e não somente a lei, com base no texto constitucional.

Oliveira, ao se referir a ordem constitucional e o formalismo processual, preleciona

que tais aspectos não deixam de se relacionar diretamente com a influência da Constituição na

posição jurídico-material do Poder Judiciário, assim definindo:

Lidando o formalismo processual no fundamental com a domesticação do arbítrio estatal dentro do processo, o aspecto constitucional cobra especial importância, pois em plano superior a Constituição visa a solucionar os difíceis e agudos problemas de relacionamentos entre a ordem legal, justiça e liberdade. Ademais, se o direito processual civil não pode e não deve ser considerado de forma isolada, mas sim englobado, como visto, nas idéias e concepções predominantes em determinada sociedade, a ordem constitucional apresenta-se em grande parte como desaguadouro natural dessas condicionantes. Dentro dessa linha de pensamento, reconhece-se hodiernamente aos direitos fundamentais, sem maiores objeções, a natureza de máximas processuais , direta ou indiretamente determinadoras da conformação do processo, contendo ao mesmo tempo imediata força imperativa. Desta sorte, a Constituição passa a influenciar de forma direta a posição jurídico-material dos indivíduos perante os tribunais, garantindo posições jurídicas subjetivas,

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assumindo natureza de direitos de defesa perante os poderes públicos com dimensão objetivo-institucional, funcionando como princípios jurídico-objetivos para a conformação dos tribunais e do processo judicial. Sublinhe-se a grande riqueza oferecida pelo ordenamento constitucional brasileiro no concernente a máximas processuais, a evidenciar a visão essencialmente comprometida do constituinte de 1988 com a garantia dos direitos processuais do cidadão e sua preocupação em evitar, ou pelo menos minimizar, o autoritarismo dentro do processo. (2003, p. 83-84).

Continua sua análise o autor, afirmando que foi o próprio constituinte de 1988 que

elevou os Juízes Brasileiros à condição de Juízes Constitucionais e o Poder Judiciário como

um Poder de Estado ativamente participante, no seu art. 5º, inciso XXXV, preceituando que a

lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, assim definindo:

[...], marcando com vigor a opção do ordenamento constitucional brasileiro, o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, na esteira da tradição republicana, deixa bem claro que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito . Bem por isso, dispõe o cidadão brasileiro de writs constitucionais semelhantes aos do sistema da commom law, tais como o mandado de segurança, o habeas corpus e, agora, o habeas data, sem falar no mandado de injunção, remédio sem similar no direito comparado (Constituição, art. 5º, LXVIII, LXIX, LXX, LXXI e LXXII). Dentro de quadro de contornos assim tão nítidos, não parece demasia ressaltar, ainda, a extensão que se vem emprestando ao controle do mérito do ato administrativo. O próprio sistema parece implicar essa abertura, pois a nova Constituição coloca entre os limites de atuação da administração pública direta, indireta ou fundacional de qualquer dos poderes da União, Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a obediência aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade e da publicidade (art. 37, caput). Não bastasse isso, mesmo no processo administrativo são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e os recursos a ele inerentes (art. 5º, LV), não prescindindo de motivação as decisões administrativas dos tribunais (art. 93, X). e, de forma ampla, além do requisito geralmente aceito da legalidade, deve a administração agir de modo legítimo e eficiente (economicidade), conforme desponta claramente da verba do art. 70, caput, da Constituição. (OLIVEIRA, 2003, p. 101-102, grifo do autor).

Há uma mudança de enfoque, de postura, onde o Poder Judiciário deixa de ser o

elemento fim, no exame dos fatos e adequação com a lei, e passa a ser instrumento de

efetivação e defesa dos direitos e garantias constitucionalizados, seja em direito material ou

formal, ou seja, toda vez que alguma pessoa, seja física ou jurídica, seja pública ou privada,

até o próprio Estado, nas suas três esferas, se negar a não cumprir o que é líquido e certo ao

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cidadão. P.ex., fornecimento de medicamento, matrícula de filho em colégio público, poluição

do meio ambiente, tem legitimidade o Poder Judiciário de intervir para o efetivo cumprimento

desta previsão constitucional. É a aplicação do princípio de que o exercício da Jurisdição deve

ser dizer o direito e não dizer a lei , obedecendo aos princípios constitucionais do direito.

O próprio art. 4º da LICC, preconiza que quando a lei for omissa, o Juiz decidirá o

caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Nesse sentido

verifica-se uma segunda noção de que o Poder Judiciário, como um dos poderes de Estado,

pode atuar na solução de possibilidade de lesão ou risco de lesão a um cidadão, grupo de

cidadãos ou uma comunidade inteira. Lucas assim expressa citando Ferrajoli:

A sociedade compromete-se a partir do texto constitucional, sujeitando ao seu projeto todos os Poderes do Estado. Assim como refere Ferrajoli: é nessa sujeição do Juiz à Constituição, e portanto no seu papel de garantir os direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos, que reside o principal fundamento atual da legitimação da Jurisdição e da independência do Poder Judiciário frente aos Poderes Legislativo e Executivo, embora sejam

e até certo ponto são

poderes assentes na maioria. Precisamente porque os direitos fundamentais em que se baseia a democracia substancial são garantidos incondicionalmente a todos e a cada um, mesmo contra a maioria, eles constituem o fundamento, bem mais do que o velho dogma juspositivista da sujeição à lei, da independência do Poder Judiciário, que para a sua garantia está especificamente vocacionado. (2005, p. 216).

Puoli manifesta seu entendimento com relação ao compromisso do Judiciário com o

acesso à justiça a partir do Texto Constitucional, ratificando os novos contornos funcionais do

Judiciário no Estado de Direito:

Não é necessário recorrer-se a interpretações sofisticadas para concluir que os responsáveis pela Justiça institucionalizada têm compromisso consistente com a multiplicação de portas de acesso à proteção dos direitos lesados. E diante de textos de tamanha abrangência, não de pode afirmar que a constituição tenha deixado de fornecer ao juiz fundamentos positivos para tornar o acesso à justiça uma concreção uma realidade fenomênica, não mera aspiração doutrinária. O movimento do acesso à justiça acentuou o novo papel dos juízes, manifestado em toda sua grandeza. Pois a fixação de objetivos, vinculados a princípios bem definidos, importa em planejamento e elaboração de programas de ação, propostas projetadas para op futuro.

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Em suma, ao desempenhar sua função de atuar normas constitucionais de conteúdo programático não totalmente delineado, para com elas, filtrar o válido conteúdo das normas infraconstitucionais e, em alguns casos, até mesmo de forma direta, solucionar o caso concreto, o Judiciário estará tendo atuação política (ainda que apenas em casos materialmente predispostos para seu conhecimento e decisão) e com esta função política lhe ra anteriormente negada, conclui-se que se põe à mostra mais um indicativo do aumento dos poderes do Juiz. (2002, p. 133).

Isso evidencia que o Poder Judiciário deixa sua condição de Poder de Estado estático,

com sua funções limitadas ao aspecto jurídico do conflito, para atuar como Poder ativo, de

interferência da esfera jurídica-político-econômica no Estado Constitucional.

3.3 Poder judiciário, magistratura constitucional e cidadania

Com fundamento nessa transformação e que faz com que os Magistrados tenham uma

nova postura. Bonavides chama essas novas funções de Magistratura Constitucional , que se

estabelece para promover a aplicação dos princípios constitucionais relativos aos direitos

fundamentais, tendo a Constituição como norte na sua nova postura no Estado Democrático

do Bem-Estar, assim advertindo:

Os juízes da magistratura constitucional que se deixam embalsamar na hermenêutica jusprivatista de Savigni e, por isso mesmo, infesos à teoria material da Constituição e aos métodos interpretativos da Nova Hermenêutica, deviam primeiro refletir nessas verdades que o poetas das musas românticas, Antônio Castilhos assim retratou: O sol não retrocede no dia, os anos não retrogradam nas eras, a árvores não reverte à semente, nem o rio á fonte, nem o homem à infância, nem a civilização à barbárie. Quem não for com a corrente das coisas, maravilhosa corrente que sobre sempre para as alturas desconhecidas, se há de afogar, rematou o vate (F. Castilhos, Método de Instrução Primária). Governar e civilizar só é possível com a Constituição. Sem Constituição e sem Estado Social o Brasil é ingovernabilidade, a medida provisória, a ditadura presidencial. Vamos salvá-lo antes que ele se afogue na contracorrente do neoliberalismo, cujo projeto reacionário e desnacionalizador globaliza a economia sem limites e sem as salvaguardas do bom senso, ao mesmo passo que assassina a soberania nacional, abate o Estado de Direito e faz do povo livre povo escravo. (2001, 141, grifo do autor).

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O Juiz Constitucional com suas funções ampliadas em decorrência da preponderância

dos princípios constitucionais sobre a legislação esparsa, tem o dever de fazer atuar e cumprir

a Constituição e os direitos e garantias sociais constitucionalizados como dever de Poder de

Estado e, diante do não-cumprimento desses direitos, como defensor do texto constitucional e

da legalidade, determinar, mesmo de ofício, que sejam cumpridos os preceitos constitucionais,

sob pena de responsabilização criminal, civil e administrativa. Por enquanto o Juiz não pode

agir sozinho, ele depende do exercício pleno da cidadania, ao menos para fazer o carro andar,

assim preceituando Lucas:

A Constituição não se realiza em si mesma, precisa e convoca todos os Poderes e atores sociais para realizarem a sua substância. Ela define os limites e as possibilidades do constituir, do construir de uma comunidade. Assim, a concretização da Constituição não é uma tarefa isolada e exclusiva de um dos Poderes do Estado, pois vincula a sociedade e suas instituições a um referencial de sentido político que resulta de escolhas históricas e que reflete as condições desejadas de sociabilidade. Para que isso seja possível, as comunidades democráticas confiam em suas instituições a proteção dessa escolhas, definindo o conteúdo e os procedimentos que orientam uma atuação política legítima. Nesse sentido, o Poder Judiciário, como também os demais Poderes, têm óbvia missão democrática de fazer com que se cumpra o texto constitucional. (2005, p. 214).

Lucas assevera ainda que esta nova condição do Poder Judiciário no Estado

Democrático de Direito no Estado de Direito, convertendo o Julgador em Juiz Constitucional,

determina uma crise de identidade, mas que precisa ser resolvida:

Se é incontestável que o texto constitucional possui normatividade vinculatória, parece, no entanto, que esta mesma certeza não se reflete quando se trata de definir a maneira de concretizá-la. Receiam alguns que não seria salutar para a democracia que o Judiciário assumisse um papel predominantemente no processo de concretização dos direitos fundamentais enquanto outro e entendem que a Jurisdição deve ser interventiva, capaz de obrigar o cumprimento dos direitos constitucionais. Tais divergências antes de representarem apenas uma controvérsia pontual, revelam-se sintomáticas da crise de identidade que se abate sobre a Constituição, uma espécie de ceticismo que (des)constitui e que se irradia para as instâncias responsáveis pela proteção do teor constitucional. (2005, p. 215).

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A Constituição Federal de 1988 é o marco histórico, divisor de águas entre o Poder

Judiciário do Estado Liberal, passivo e contemplativo e o Poder Judiciário do Estado

Democrático do Bem Estar-Social, ativo e protagonista. É o fundamento primeiro para a

superação do princípio da não-intervenção, em que o Magistrado deixa de ser mero aplicador

da lei, para manutenção da segurança jurídica, da paz social e da justiça (OLIVEIRA, 2003),

para ser um aplicador do direito como um todo, principalmente os princípios constitucionais,

ser um instrumento de acesso aos direitos fundamentais constitucionais, de acesso à justiça

social e de exercício pleno de cidadania.

Neste sentido esclarece Puoli que o papel da magistratura, seja controlando a

constitucionalidade de atos legislativos, seja julgando hipóteses em que estejam sendo

debatidos os novos direitos de caráter e repercussão social,

passa a ser reservado, preponderantemente, papel que impulsiona para além de sua tradicional função de mero aplicador da lei, para passar, efetivamente, participar da consecução e da busca pela efetivação de metas constitucionais e sociais não objetivas. Ocorre que é justamente esta fluidez que o obriga a, direta ou indiretamente, acabar participando da própria formulação do conteúdo dessas metas. É por isso que Sálvio de Figueiredo Teixeira, ao comentar o novo papel que é confiado do Judiciário pela moderna concepção de Estado de Direito, é expresso ao concluir, na linha do que vem sendo exposto, que o Estado Democrático de Direito não se contenta mais com uma atuação passiva. O Judiciário não é mais visto como mero Poder eqüidistante, mas como efetivo participante dos destinos da nação e responsável pelo bem comum. Os direitos fundamentais sociais, ao contrário dos direitos fundamentais clássicos, exigem a atuação do Estado, proibindo-lhe a omissão. Essa nova postura repudia as normas constitucionais como meros preceitos programáticos, vendo-as, sempre dotadas de eficácia em temas como dignidade humana, redução das desigualdades sociais, erradicação da miséria e da marginalização [...] e construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária. (2002, p. 132).

Um dos maiores obstáculos para que o Poder Judiciário passe a configurar-se como

este defensor dos princípios constitucionais referentes aos direitos e garantias sociais

individuais e coletivas é o próprio Código de Processo Civil, que é de 1973, e erigido sob os

auspícios da doutrina liberal, assim ensinando Oliveira:

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Essas diretrizes de natureza política, juridicizadas por sua introdução na Constituição brasileira, influenciam de forma direta a conformação do processo civil, que entre nós não se esgota no Código de Processo Civil. Todavia, o caráter individualístico e liberal do estatuto processual de 1973

essencialmente inspirado em modelos legislativos e ensinamentos doutrinários da Europa Continental

já se encontrava, ainda antes da

promulgação da Carta Política de 1988, em aberta contradição com as linhas mestras do sistema constitucional e as tradições do direito brasileiro. Talvez o exemplo mais frisante patenteie-se na exclusiva preocupação com a regulação de litígios puramente individuais, em qualquer referência as demandas de cunho social e coletivas, a se refletir na extensão da legitimidade, da coisa julgada, nos poderes do juiz e de modo geral em toda a conformação do próprio código. (2003, p. 106-107).

O mesmo autor ainda estabelece que esta dissonância entre as leis esparsas e o texto

constitucional, em face da pressão social, doutrina e jurisprudência, determinou ao juiz

poderes antes não vivenciados, porque o Magistrado vivia nos limites do ordenamento

jurídico, assim lecionando:

As dissonâncias entre essa concepção e as diretrizes constitucionais, de envoltas com as nuanças culturais imperantes no Brasil, haveriam de ser superadas

por obra da pressão das forças sociais, da doutrina e da jurisprudência

primeiramente por meio de legislação extravagante e já em estágio posterior e mais amadurecido mediante reformas introduzidas na própria estrutura do Código. Assim, legislação esparsa desde muito vem investindo o juiz brasileiro de poder para a prática de autênticos atos de império, por meio de ordens e mandados dirigidos á autoridades públicas e às pessoas e entes privados, concebendo ações para defesa de interesses coletivos ou difusos, estabelecendo coisa julgada erga omnes ou ultra partes da sentença nas demandas de natureza social ou política, ou criando tutelas sumárias autônomas. Segundo certa doutrina, sobressai, aqui, com grande força a outorga de poderes de imperium ao juiz brasileiro, próprias do Pretor Romano, em contraposição à figura tradicional do juiz europeu continental, chamado a desempenhar as modestas funções do iudex do direito privado romano. (OLIVEIRA, 2003, p. 107-108, grifo do autor).

Um outro elemento determinante para que o Juiz permaneça obediente aos preceitos

legais, é o referente ao individualismo de cada juiz de um Estado ou de um País, porque o

sendo o Juiz o próprio Poder Judiciário em sua representação, cada Juiz é autônomo e

independente no exercício de sua jurisdição, no exercício do poder. Não se trata de uma

instituição una e indivisível, porque são mil ilhas que compõe um arquipélago, todas elas

independentes e autônomas. Assim pondera Lucas com relação a esta questão de superação do

98

individualismo, em que não há o senso de coletivo ou de coletividade, até sendo este um

elemento a ser superado para quebra do princípio da não-intervenção:

Mas para que a Jurisdição cumpra com seu papel no Estado Democrático de Direito é preciso que reconheça suas impotências e debilidades funcionais, que supere seu legado operacional e epistemológico de matriz individualista, incapaz de pensar os conflitos transindividuais e de alta complexidade da sociedade contemporânea. É preciso, também, que reconheça as limitações de uma democracia marcada por atropelos institucionais, que não esqueça das reais condições materiais de desigualdades que fazem parte do construir constitucional, e que aceite a Constituição como um projeto capaz de conduzir um constituir permanente. Além disso, é fundamental que a Jurisdição não usurpe e não descaracterize as possibilidades constitucionais, sob pena, aí sim, de ser um perigo para as ambições democráticas, pois uma Jurisdição aparentemente absoluta e salvadora, assim como a ingerência desmedida de qualquer outro Poder do Estado, ultrapassa os limites de legitimidade instituídos pelo poder constituinte. (2005, p. 217).

A adoção do Texto Constitucional, seus direitos e garantias constitucionais, seus

princípios de direito material e formal, já seria o suficiente para superação do princípio da

não-intervenção. Todavia, para que isso ocorra há necessidade de uma reciclagem da

Magistratura, que diante de um desafio ou obstáculo, fecha-se, recrudesce e se formaliza em

nome da segurança jurídica, mascarando a própria insegurança do Novo Juiz inserido no novo

contexto que tem que atuar. Há necessidade de uma reestruturação, assim definida por Lucas:

O debate a respeito da reestruturação da Jurisdição, com efeito, não pode resumir-se às necessidades e à racionalidade do mercado, mas contemplar estratégias que indiquem para o aprimoramento da prestação jurisdicional em todos os seus níveis, construindo respostas para a crise de identidade funcional da Jurisdição que estejam comprometidas com o avanço ético e com a realização democrática do direito para enfrentar este conjunto de desafios e de complexidades, o projeto democrático obriga a pensar o poder jurisdicional a partir e uma racionalidade ao mesmo tempo instituidora e desinstituidora, sem compromissos com o legado antidemocrático que marcou os rumos e imprimiu a identidade as instituições jurídico-políticas no Brasil. (2005, p. 217).

Este apego ao ordenamento jurídico, determinando a grande dificuldade em superar o

princípio da não-intervenção do Juiz Constitucional é ocasionado também pelo

distanciamento do Poder Judiciário da sociedade, reconhecidos os Juízes como pessoas de

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difícil acesso. Esta distância também é decorrente da falta de conhecimento do que acontece

ao seu redor, das questões sociais e humanitárias da sociedade que ocorrem no na comunidade

em que o Juiz está inserido. Na generalidade, o Juiz se apresenta para a sociedade tão somente

como aquele que condena ou absolve, quando nem mesmo o próprio Juiz está atento para

quem ou o que está condenando ou absolvendo. Lucas assim descreve:

Pensar o direito, os conflitos sociais e a Jurisdição no contexto complexo da realidade social contemporânea não significa negar as conquistas e as virtudes da modernidade inacabada; significa, antes, repensar o direito, os conflitos e a Jurisdição para fortalecê-los. O grande desafio é humanizar o direito/Jurisdição para poder compreender os conflitos sociais também em sua dimensão humana, e não apenas jurídica, o que permitirá reconhecer nas novas formas de litigiosidade a revelação das próprias formas de humanidade, que se reproduzem e se inovam, também, pelos conflitos sociais. Como a modernidade forjou uma Jurisdição limitada para atender a uma conflituosidade rotulada aprioristicamente e limitada geograficamente em uma abrangência, para o jurista o conflito racionalizou-se, judificou-se e perdeu o seus viés humano. O aumento e a complexidade dos conflitos contemporâneos desafiam o purismo metodológico e a racionalidade hermética do direito positivo moderno que, ao racionalizar e centralizar o direito/Jurisdição, negou epistemologicamente a pluralidade/diversidade do conflito e perdeu a criatividade e a inventividade para tratar com o novo e com situações não padronizadas. E como os conflitos não podem ser eliminados da realidade social, uma sociedade complexa constituiu-se de conflitos complexos, de conflitos não tabulados e não estereotipados, de conflitos a que a racionalidade moderna não consegue atender. (2005, p. 217).

A situação não é otimista e alentadora, pois na medida em que os juízes são cada vez

mais jovens, sem experiência de vida, o apego ao ordenamento jurídico se faz como uma

tábua de salva-vidas, em que há a preferência à aplicação simples, confortável e segura da lei

ao contestar um texto legal com os princípios constitucionais, em detrimento de princípios

que repousam na história secular do direito, remontam as Leis da 12 Tábuas, em princípios

que há milênios vêm norteando os caminhos do direito, da epistemologia e da hermenêutica,

mormente quando de meros princípios axiológicos foram erigidos a princípios constitucionais.

O formalismo e a legalidade são bengalas da insegurança. Lucas assim se expressa:

100

O modelo de Jurisdição moderna não consegue enfrentar as demandas da economia global e os conflitos multiculturais que caracterizam a excessiva diversidade da sociedade atual, de modo que a elaboração de um novo paradigma de resolução de conflitos deve ser conduzido a partir de pressupostos comprometidos com a ampliação e o fortalecimento das conquistas democráticas. Furtar-se ao diálogo e ao compromisso de reinventar a racionalidade jurídica neste momento de dificuldades significa permitir que as soluções se dêem à revelia dos interessados, distante das preocupações e dos espaços sociais que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, produzem o conflito e retratam a atualização das demandas públicas pela própria implantação do litígio, seja ele absorvido ou não pelo direito estatal. Em outras palavras, quanto mais a Jurisdição sofre com um conjunto de demandas internas e externas que não consegue solucionar, mais claro fica que tanto as expectativas dos grupos marginais excluídos como dos grupos marginais que se excluem não estão sendo absorvidas nem se revelam capazes de atualizar as razões operacionais e funcionais do direito. (2005, p. 220-221).

É nesse contexto que se insere o dever do Poder Judiciário de fazer quebrar o princípio

da não-intervenção, de deixar de ser um Poder de Estado estático, sujeito à lei e a iniciativa

das partes, assumir a prevalência e importância de suas funções no Estado Democrático

Constitucional de Direito, revitalizado pela sua afirmação e compromisso como a

Constituição e os direitos fundamentais nela inseridos (LUCAS, 2005).

Embora a maioria da Jurisdição Nacional ainda envergue o manto da ortodoxia e do

conservadorismo, em que a lei é sinônimo de segurança, finaliza-se o tópico com uma posição

otimista compartilhada com o entendimento de Lucas, de que é preciso enxergar que por traz

dos conflitos processuais há humanidade e que os direitos dessa humanidade estão em risco

de se tornarem apenas texto frio da norma jurídica se o Poder Judiciário não assumir seu papel

de garantidor da efetividade desses direitos, nestes termos:

A jurisdição, que se pretende ser instrumento de promoção do direito de realização do projeto constitucional emancipatório, precisa ser uma Jurisdição forte, capaz de intervir e de mediar, sem olvidar os ditames democráticos que devam orientar as atividades estatais. A Jurisdição necessita perceber e considerar o humano que reside nos conflitos sociais, do conjunto de expectativas que a sociedade tem em relação ao direito. é preciso que a Jurisdição tradicional sofra os riscos de um encontro verdadeiro e definitivo com a democracia substancial, encontro que é

101

pressuposto para se pensar de modo sério sobre os papéis jurisdicionais na complexa sociedade contemporânea. (2005, p. 221).

Nesta nova postura, esta Magistratura chamada de Constitucional deve romper com os

limites que lhe são impostos pelos regramentos do Estado de Direito, adequando-se aos novos

anseios de uma sociedade contemporânea complexa, priorizando os direitos sociais

constitucionalizados, valorizando a condição da humanidade ao examinar as questões que lhe

são colocadas á apreciação em cotejo com a Constituição, com o restante do ordenamento

jurídico e os princípios gerais de direito, analogia, costumes e jurisprudência, tendo plena

consciência no exercício de suas funções que são homens que julgam homens, e não um

Poder que julga os homens.

3.4 Considerações finais

Embora tenhamos um certo otimismo com a nova postura funcional do Poder

Judiciário, ainda há exemplos de que o respeito e a credibilidade são decorrentes da imagem

do Juiz como elemento distante da sociedade, como é o caso do Poder Judiciário de São

Paulo, que determinou, por sua Egrégia Corregedoria-Geral de Justiça, que os Juízes de

primeira instância passassem a usar beca , que são as chamadas vestes talares , a chamada

Capa Preta , durante a realização das audiências, numa simbologia do Magistrado

inacessível e diferente dos demais homens que compõe a sociedade (PUOLI, 2002). No

interior do nosso Rio Grande do Sul, em muitas Comarcas, os Juízes de Direito ainda são

conhecidos como Capa Preta , numa simbologia atual de um conceito ultrapassado.

O que se busca com a Magistratura Constitucional é o aprimoramento do Poder

Judiciário e do próprio Estado de Direito, uma qualificação da tutela jurisdicional, tendo como

102

elemento básico, fundante, o próprio Texto Constitucional. A sociedade clama por Juízes

Constitucionais, independentes, preocupados com a efetivação dos direitos sociais

fundamentais, mas também com a ordem jurídica e o desenvolvimento do Estado.

A sociedade deseja um Juiz participativo, que ouça os jurisdicionados, conheça o

aspecto sócio-econômico do seu em torno, que conceda a tutela jurisdicional amparado em

critérios de justiça social, com base em princípios constitucionais, costumes, analogia e

jurisprudência, e, também, de acordo com a lei, desde que ela venha ao encontro dos

primeiros. Porque se ela contrariar princípios constitucionais, deve dar prevalência ao que

preceitua a Constituição.

Somente assim o Judiciário vai caminhar ao encontro do seu engrandecimento,

valorização, respeito e credibilidade, em que tais prerrogativas sejam decorrentes de seu

trabalho e participação no Estado de Direito e na sociedade, e não simplesmente pela

autoridade de Poder Judiciário.

103

CONCLUSÃO

Diante da crise de identidade e da grande dificuldade em quebrar princípios

axiológicos no Poder Judiciário Nacional, não se pretende promover uma transformação

radical no modo de agir do Poder Judiciário, na sua representação no Estado, na postura dos

Juízes e no seu relacionamento com a sociedade e com o direito. Procurou-se examinar, na

evolução do Estado, como se dá a participação do Judiciário, verificando que com a evolução

do próprio Estado e das complexas relações político-jurídicas, o Poder Judiciário pouco

modificou sua condição na sociedade. Verifica-se ainda uma apatia do diálogo, um

afastamento, uma racionalização e uma postura padronizada que não condizem mais com a

complexa sociedade contemporânea. O tecnicismo e o formalismo não podem servir de

bengalas para a insegurança e para a crise funcional.

No decorrer do trabalho verificamos a formação do Estado de Direito e que sua

relação com o Poder Judiciário foi além do aspecto jurídico, em que se estabeleceu o primado

das leis como elementos limitadores das condutas dos cidadãos e a arbitrariedade dos

Governos e do próprio Estado. O Judiciário nessa ordem apenas repetia o que a lei

preceituava, era um aplicador da lei.

104

No desenvolvimento do Estado de Direito não foi necessário somente a organização

político-jurídica, mas também a construção de um Estado de Bem-Estar, em que o cidadão

pudesse desfrutar de qualidade de vida e justiça social. Para isso o Estado de Direito foi

adotando novos contornos de acordo com o dinamismo da própria sociedade, que vem

determinando a conformação deste Estado. Essa diversidade e dinamismo determinaram que o

Estado e, via de conseqüência, o Poder Judiciário, tivesse que se adaptar a esses novos

movimentos sociais.

De um mundo selvagem e desconhecido chega-se a um Estado em que se reconhece a

Constituição como norma fundante das demais normas e linha mestra da conduta e postura do

Estado, onde os direitos sociais fundamentais foram inseridos no seu texto e determinaram a

obrigação de todos em respeitá-los e lhes dar efetividade.

Nesse aspecto o Poder Judiciário passou a ter presença importante no Estado de

Direito, deixando de ser um mero aplicador da lei, para converter-se em um Poder

participativo, com influenciação no aspecto jurídico-político-econômico, ao transformar-se

em instrumento de inclusão social e de efetividade dos direitos sociais constitucionalizados.

Na questão formal, o Juiz, como personificação do Poder Judiciário, sempre será, no

meio da sociedade, uma referência, quer no que diz respeito ao seu procedimento profissional,

quer na vida privada. E por isso mesmo sua responsabilidade para com a credibilidade e

respeito que representa dentro do contexto social comunitário, sendo visualizado, no mais das

vezes, como a grande solução para os conflitos sociais.

105

O Estado de Direito veio determinar que todos estão sujeitos ao ordenamento jurídico,

como limitador das condutas, obrigações e deveres de cada um dos componentes da sociedade

e do próprio Estado enquanto Governo. É nesse Estado de Direito, em constante movimento e

evolução, que se afigura preponderante a participação do Poder Judiciário como instrumento

de acesso aos direitos sociais fundamentais que, uma vez constitucionalizados, determinaram

que o Judiciário fosse colocado em um novo contexto de suas funções, para dar efetividade e

concretude aqueles direitos.

Essa circunstância determina que o Juiz, inserido na comunidade, passe a exercer além

da função de solucionar conflitos jurídico-sociais, passe também a exercer um papel político-

jurídico, ou seja, que a credibilidade e o respeito que o Juiz de Direito representa para os

cidadãos, agora seja exigida na sua atuação profissional e funcional, em decorrência do pleno

exercício da cidadania que, ao pleitear os direitos sociais fundamentais inseridos na

Constituição Federal, resultando na necessidade e obrigação Constitucionais do Poder

Judiciário agir em nome dessa cidadania, efetivando esses direitos constitucionalizados, mas

também fazendo agir aqueles que se contrapõe àqueles direitos, inclusive o próprio Estado e

os demais Poderes deste Estado.

Esses novos contornos funcionais do Poder Judiciário determinam a quebra de

princípios que limitavam a atividade do Juiz, mas que em nome da democracia substancial

deve superar o conservadorismo e tradição de uma Jurisdição estática, inserindo-se no papel

que a complexa sociedade contemporânea espera do Poder Judiciário.

O presente momento jurídico-político-econômico do Estado de Direito traz uma nova

conformação, em que o Estado Democrático de Direito, com a inserção dos direitos sociais no

106

Texto Constitucional, não se bastou em si mesmo. Houve necessidade de que a cidadania

fosse exercida em sua plenitude, deixando de ser mero conceito axiológico, para representar a

atividade do cidadão na busca da realização de seus direitos, onde a educação deste cidadão é

fundamental na busca da concretização desses direitos.

Com isso, prevendo a Constituição no seu art. 5º, inciso XXXV que a lei não excluirá

da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, assim definindo, o próprio

constituinte de 1988 elevou o Poder Judiciário e os Juízes Brasileiros à condição de Juízes

Constitucionais e o Poder Judiciário como um Poder de Estado ativamente participante.

Espera-se que efetivamente o Poder Judiciário se converta em um elemento

garantidor, com força e capaz de intervir, mediar e dar solução aos conflitos sociais, tendo

como parâmetro os preceitos democráticos e constitucionais, sempre consciente de que no

centro desses conflitos sempre está um ser humano, na busca de soluções que traduzam os

anseios e as expectativas da sociedade, quebrando princípios e tabus, sem que isso determine

a quebra da imparcialidade.

Trata-se de uma nova onda de transformações na configuração do Estado de Direito,

que além de presar pela liberdade e igualdade entre os homens, agora também tem como

elemento determinante o exercício dos direitos sociais fundamentais constitucionalizados,

que, uma vez descumpridos, têm no Poder Judiciário um instrumento para preservação da

cidadania, a dignidade da pessoa humana, respeitando a Constituição e construindo um Estado

de Direito Democrático em toda sua amplitude, ou seja, em que os direitos não sejam somente

colocados a disposição dos cidadãos, mas sejam efetivamente realizados para todos.

107

Com isto, temos a formação de um Estado de Direito com uma natureza democrática,

constitucional e social, em que a dimensão humana determinará a quebra de princípios

racionalizados e compartimentados, em que a Jurisdição irá se reencontrar com a sociedade e

preservar o respeito à cidadania.

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