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Revista do Direito Privado da UEL – Volume 2 – Número 3 – www.uel.br/revistas/direitoprivado
A TEORIA DO
ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DOS CONTRATOS
Pedro Fauth Manhães Miranda*
RESUMO
O presente trabalho tem como principal objetivo verificar a possibilidade de aplicação da Teoria do
Adimplemento Substancial dos Contratos no Direito Brasileiro, a qual admite a mitigação dos efeitos
negativos de uma obrigação descumprida, inclusive impossibilitando a resolução contratual, desde que
este inadimplemento não seja gravoso. Para tanto, analisaremos o histórico de institutos correlatos,
princípios formadores da teoria em questão, sua aplicabilidade prática, sempre incluindo doutrinas e
jurisprudências esclarecedoras, para então concluirmos o tema de maneira objetiva.
Palavras-chave: Adimplemento substancial. Inadimplemento. Contrato. Boa-fé. Função social.
ABSTRACT
This work has as main objective to verify the possibility of applying the Substancial Performance os
the Contracts‟ theory in Brazilian Law, which allows the alleviation of the negative effects of an
obligation breached, including preventing the resolution of contract, provided that the breach is not
burdensome. We will analyze the history of related institutions, principles of the theory in question, its
practical applicability, always including doctrines and jurisprudence enlightening, so we can conclude
the issue objectively.
Keywords: Substancial performance. Default. Contract. Good faith. Social function.
_______________ * Bacharel em Direito (Universidade Estadual de Londrina); Especialista em Direito Civil e Processo Civil
(Universidade Estadual de Londrina); Advogado atuante em Londrina (OAB/PR 48.361).
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1 INTRODUÇÃO
Inexiste dúvida na afirmação de que a Direito das Obrigações é tema de grande
importância jurídica, afinal este instituto permeia boa parte do ordenamento civil, seja no
tocante a esfera pública ou privada, em relação a particulares ou pessoas jurídicas. Quase todo
o Código Civil está dedicado aos negócios jurídicos e aos contratos, lembrando que mesmo os
livros de Direito de Família e Direito das Sucessões se relacionam com o instituto.
Contudo, a matéria de Direito Obrigacional evoluiu muito nos últimos tempos, em
face das mudanças nas relações de consumo, de trabalho e mesmo as sociais, capitaneadas
pela terceira revolução industrial e a globalização.
Atualmente, negócios comerciais são fechados com empresas de outros continentes,
trabalhadores exercem suas funções sem sair de casa, surgem novos tipos de contratos, e o
consumo cresce exponencialmente, até mesmo pela internet. Com isso, o Direito teve que se
atualizar, normatizando as novas situações, inclusive contratuais.
Obviamente que em se tratando Direito das Obrigações, a figura do contrato está
presente e quaisquer atos prejudiciais à outra parte podem gerar repercussões de ordem
jurídica, sendo, portanto, imprescindível evitá-los.
Contudo, a teoria do Adimplemento Substancial dos contratos, a ser desenvolvida no
presente texto, não busca impedir os referidos atos prejudiciais, mas sim minorar suas
consequências e evitar eventual repercussão jurídica diante do objetivo maior do contrato em
si, qual seja ser plenamente concretizado.
A teoria do Adimplemento Substancial não se encontra expressa em nossa legislação,
e poucos são os manuais que se referem a ela, apesar de ser um instrumento que busca a
manutenção dos contratos, interesses das partes e da sociedade. Por isso mesmo, ela se faz
presente em vários países e é constantemente invocada pelos advogados pátrios, sendo aceita
por parte considerável de nossa jurisprudência. Assim, o interesse prático da presente teoria é
inegável.
Pelos motivos expostos, acreditamos que um estudo mais aprofundado deste tema é
pertinente e extremamente necessário.
Para desenvolvermos um estudo sobre a teoria em questão, será necessário
primeiramente contextualizá-la no histórico dos contratos, para, então, elencarmos novos
princípios contratuais, relativos a ela. Depois, discorreremos sobre as formas de
adimplemento e inadimplemento em geral dos contratos. Com esta base sedimentada,
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passaremos à Teoria do Adimplemento Substancial e suas peculiaridades.
Assim, depois de tais explanações, que terão como fundamento doutrinas,
jurisprudências e a legislação, esperamos concluir o presente estudo de modo satisfatório, sem
o intuito de esgotar o tema, mas sim suscitar debates e outros estudos sobre ele.
2 HISTÓRICO DOS CONTRATOS
2.1 A Revolução Francesa e o Código de Napoleão de 1804
Os contratos estão presentes na sociedade desde sempre, precedendo, até mesmo a
escrita, e, tal como o restante do Direito, evoluíram muito durante a História.
Porém, no presente estudo, tomaremos como ponto de partida da matéria contratual a
lei que normatizou o pensamento iluminista, o Código de Napoleão de 1804, importantíssimo
para tantos outros institutos jurídicos e, como não poderia deixar de ser, para os contratos
também.
O referido códice, publicado em 21 de março de 1804, acabou com os antigos
paradigmas jurídicos existentes até ali, provindos dos Direitos Feudal, Costumeiro e Romano,
normatizando os valores burgueses da sociedade pós-revolução francesa de 1789.
Todavia, o Código de Napoleão não foi o único avanço jurídico trazido pela
revolução, sendo que outro documento, anterior àquele, a Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, de 1789, também garantiu direitos e deveres importantes para a época,
principalmente no tocante aos Direitos da Personalidade, que começam a ser normatizados
neste momento.
A partir da revolução, a razão passa a ser o princípio diretor da ação humana e seus
frutos – os direitos individuais absolutos (liberdade, igualdade, vida, e propriedade) – são
garantidos pelo Código, influenciado pela Declaração de 1789. Esta visão iluminista, de que o
homem domina sua existência através da razão, faz do Estado um intruso nas relações
particulares, surgindo a necessidade de limitar seu alcance.
A famosa tríade de princípios, composta de liberdade, igualdade1 e fraternidade, cria
um individualismo exacerbado, pois se todos são iguais e racionais, é lógico que tenham
liberdade para fazer o que bem entenderem, inclusive no tocante aos contratos. Por isso, a
_______________ 1 “Igualdade” em termos, já que o voto censitário é instituído pelo Código de 1804, o que faz dos provocadores
da revolução, os novos regentes da situação. Assim, a igualdade é realmente a regra nesta época, mas apenas
entre os burgueses.
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máxima de que “o contrato faz lei entre as partes” é tomada aqui de maneira literal.
Ruy Rosado de Aguiar Junior (2005, p. 7-8), resume a situação histórico-jurídica de
então da seguinte maneira:
Na verdade, o Código é a consagração do individualismo (o homem como centro do
mundo), do liberalismo (o homem tem direito à liberdade), do voluntarismo (o
homem pode conduzir atos de disposição de autonomia privada de acordo com a sua
vontade), da economia fundada na propriedade individual e, nas relações sociais, da
força vinculativa dos contratos.
Daí a conseqüência, no âmbito do Direito dos contratos: aceitam-se os princípios da
autonomia da vontade e da obrigatoriedade do contrato – o que foi contratado pela
vontade das partes é o justo.
Humberto Theodoro Júnior (2008, p. 01), analisa os referidos princípios, além de um
terceiro, de maneira mais detalhada:
Todo o sistema contratual se inspira no indivíduo e se limita, subjetiva e
objetivamente, à esfera pessoal e patrimonial dos contratantes. Três são, portanto, os
princípios clássicos da teoria liberal do contrato: a) o da liberdade contratual, de
sorte que as partes, dentro dos limites da ordem pública, podem convencionar o que
quiserem e como quiserem; b) o da obrigatoriedade do contrato, que se traduz na
força da lei atribuída às suas cláusulas („pacta sunt servanda‟); e c) o da relatividade
dos efeitos contratuais segundo o qual contrato só vincula as partes da convenção,
não beneficiando nem prejudicando terceiros („res inter alios acta neque nocet neque
prodest‟).2
Partindo do pressuposto que a lei, assim como o contrato, era criada por cidadãos
racionais, o magistrado tinha como única função subsumir a norma ao caso concreto. O juiz
não possuía discricionariedade, afinal, do modo mais kelseniano possível, tudo o ele precisava
estaria na lei, à prova de falhas. A burguesia, sempre visando seus próprios interesses,
pregava que não só a legislação, mas todo o sistema era à prova de falhas.
O Código Civil Brasileiro de 1916 (lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916), assim
como vários outros, é claramente influenciado pelo Napoleônico, trazendo deste boas
inovações jurídicas, mas também desconsiderando desigualdades fáticas.
2.2 A Primeira Revolução Industrial
Paralelamente à Revolução Francesa e à criação do Código Napoleônico de 1804, a
_______________ 2 Tais princípios são importantíssimos, pois, apesar de estarem ultrapassados se analisados individualmente,
quando em conjunto com os novos princípios contratuais (vide tópico 3), darão ao Direito Contratual a visão
atual que dele se espera. Afinal, tanto estes princípios antigos como os novos, como se verá adiante, não são
excludentes, mas reciprocamente ajustáveis diante de várias situações fáticas.
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Inglaterra também atravessava outra Revolução, a primeira das Industriais, que teve início em
meados do século XVIII com a invenção da máquina a vapor, por James Watt.
Assim como a Francesa, a Revolução Inglesa é um marco histórico, mas por
diferentes razões. Enquanto aquela trouxe profundas transformações sociais e, posteriormente,
jurídicas, esta alterou primeiramente os modos de produção, para, de maneira reflexa, mudar a
sociedade e o Direito.
No final do século XVIII, a máquina a vapor passa a servir de base para toda a
indústria, inclusive a ferroviária, que a utiliza para a construção da locomotiva, permitindo um
grande aumento na produção mineira, notadamente de carvão e ferro. A indústria têxtil
também avança num ritmo acelerado, com a introdução do tear mecânico, bem como a
siderúrgica, a partir da descoberta da técnica do cadinho.
Esta primeira revolução industrial (1760 – 1860) acarreta desdobramentos sociais de
várias ordens. Inicialmente, há um aumento na concentração populacional urbana. A produção
dividida em etapas distancia o produto final do trabalhador urbano, enquanto este forma uma
nova classe social, o proletariado, que vive em péssimas condições, ao lado do desemprego e
da fome.
Associadas a tal situação, o Direito Inglês não oferece ajuda aos desafortunados,
grande maioria da população:
A indiferença do direito obrigacional com o conteúdo das relações contratuais –
exigindo apenas, em fórmula que ainda hoje se repete nas codificações, que o objeto
do contrato seja lícito e possível, não que seja justo ou equilibrado – associou-se aos
princípios da liberdade de contratar e da obrigatoriedade dos pactos („pacta sunt
servanda‟) para legitimar, sob o ponto de vista jurídico, a imposição de condições
verdadeiramente perversas à parte economicamente mais desfavorecida, como
revelam de modo emblemático os contratos de trabalho estabelecidos no século XIX
(SCHREIBER, 2007, p. 126-127)
O Direito, ainda controlado pela burguesia, tenta contornar a situação criando alguns
direitos trabalhistas, como o impedimento de menores no trabalho ou estabelecendo duração
diária de trabalho. Todavia, o Código de Napoleão está irradiando seus primeiros reflexos no
mundo jurídico e, portanto, o Direito Contratual permanece como disposto por ele: desumano,
mas “racional”.
2.3 A Segunda Revolução Industrial
A partir de 1860, começa a ocorrer a Segunda Revolução Industrial, que dura até
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1900. Ela se caracteriza pela rápida propagação da industrialização por países como França,
Alemanha, Itália, Bélgica, Estados Unidos e Japão. Na indústria, o vapor é substituído por
eletricidade e petróleo, o aço toma o lugar do ferro e novos motores aparecem. Surge o
fordismo e, com ele, a massificação da produção. No comércio, grandes empresas formam
cartéis, e há também a massificação do consumo, pois a nova classe social – a média – possui
um poder aquisitivo considerável.
Esse comércio em desenvolvimento gerou novas formas de contrato, em especial o
de adesão, muito em voga ainda hoje em dia, impeditivo da livre negociação entre as partes,
tornando uma delas hipossuficiente. Deste modo, ou a pessoa que deseja comprar algo, seja
um produto essencial ou supérfluo, concorda com as imposições criadas pelo vendedor ou não
compra coisa alguma.
A burguesia, obviamente, não se importava com esta situação desigual, pois podia
arcar com os altos preços praticados pelo comércio, mas à medida que produção e comércio
se intensificaram, mais trabalhadores se tornaram necessários. Assim, a classe média cresceu
exponencialmente e não podia mais ser ignorada pelo Direito:
A necessidade da concepção de um direito social também em matéria contratual
tornou-se crescente após a emergência dos Direitos da Personalidade, crescente
principalmente após a Segunda Revolução Industrial e que trouxe uma nova maneira
de negociar, novos elementos subjetivos, em posições díspares no momento
contratual (TARTUCE, 2004).
O Direito passa a ter um caráter mais social, criando princípios e garantias que
elevassem a parte hipossuficiente a uma condição mais igualitária com a parte adversa,
tornando a relação jurídica existente entre elas mais justa.
2.4 O Estado Social
A partir dessa mudança de posicionamento do Direito – do caráter individual para o
social – institutos como a responsabilidade objetiva, o princípio da boa-fé contratual, as
teorias da imprevisão (rebus sic stantibus) e do adimplemento substancial passaram a
coexistir com outras normas que aparentemente seriam contraditórias a elas, como o princípio
da autonomia da vontade e da obrigatoriedade dos contratos (pacta sunt servanda).
“Assim, [...] „princípios tradicionais e pacíficos, cuja imutabilidade parece havia
passado em julgado‟ vêm sofrendo, mais recentemente, a contraposição de novos princípios,
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substancialmente opostos” (SHREIBER, 2007, p. 127).
Tais institutos, na realidade, não são contraditórios e se correlacionam, culminando
na possibilidade de aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial.
Ricardo Luis Lorenzetti elenca as razões desta mudança de atitude do Estado frente
aos contratos:
O Estado requer um Direito Privado, não um direito dos particulares. Trata-se de
evitar que a autonomia privada imponha suas valorações particulares à sociedade;
impedir-lhe que invada territórios socialmente sensíveis. Particularmente, trata-se de
evitar a imposição a um grupo, de valores individuais que lhe são alheios. Aqui faz
seu ingresso a ordem pública de coordenação, de direção (LORENZETTI apud
TARTUCE, 2004).
O Estado, portanto, atua agora de forma intervencionista, por meio de um dirigismo
estatal, mudando a realidade dos contratos quando estes forem contrários a objetivos sociais.
A matéria contratual é, então, elevada a outro patamar, em que a segurança jurídica das
obrigações ainda existe, mas apenas em segundo plano, atrás da justiça contratual, efetivada
por novos princípios.
3 OS NOVOS PRINCÍPIOS DO DIREITO CONTRATUAL
Como apresentado, a justiça contratual, quando não presente no contrato ou na sua
execução, tem sua concretização forçada pelo Estado, através do Judiciário e da legislação
garantista.
Como diz Humberto Theodoro Júnior (2008, p. 06), há “o propósito de superar o
individualismo egoístico e buscar a implantação de uma sociedade presidida pelo „bem-estar‟
e sob „efetiva prevalência da garantia jurídica dos direitos humanos‟”.
Dentre os princípios contratuais que servem de base à justiça contratual imposta,
Antônio Junqueira de Azevedo (1998, p. 116) elenca três dos mais importantes, quais sejam o
da Boa-fé Objetiva; o do Equilíbrio Econômico e o da Função Social do Contrato.
Contudo, a teoria do Adimplemento Substancial, objeto do presente estudo, possui
como principal objetivo a conservação dos contratos, enquanto que o princípio do equilíbrio
econômico visa resolver o contrato “se a prestação de uma das partes se tornar
excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra”, segundo o artigo 478 do
Código Civil.
Deste modo, ainda que o princípio do equilíbrio econômico esteja ligado à justiça
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contratual exercida pelo Judiciário, não se conecta com o Adimplemento Substancial3 e, por
isso, não será tratado aqui.
Neste sentido, exatamente por ser o amparo à manutenção contratual o contraponto
essencial entre estes dois institutos, e também pela sua importância em relação ao último, o
princípio da conservação dos contratos figurará neste tópico.
3.1 Princípio da Boa-fé Objetiva
O princípio da boa-fé foi codificado primeiramente no Direito Moderno pelo Código
Napoleônico de 1804, em seu artigo 1.135. Contudo, em razão do individualismo presente
neste códice, “tal disposição permaneceu letra morta” (BUSSATTA, 2007, p. 64).
Após a Primeira Guerra Mundial, o princípio, antes presente timidamente no Código
Civil Germânico, passou, segundo Fernando de Noronha, a assumir papel relevante na
Alemanha, principalmente em razão dos Tribunais, tornando-o verdadeiramente ativo
(NORONHA apud BUSSATTA, 2007, p. 65).
O Código Civil brasileiro de 1916 não recepcionou a boa-fé como princípio, apenas
trazendo-a como norte em alguns artigos, como quando presumia de boa-fé os “negócios
ordinários indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, agrícola, ou industrial
do devedor” (art. 112); ou ao tratar da posse de boa-fé (arts. 490 e 491).
O Código de Defesa do Consumidor, lei 8.078/1990, supriu tal lacuna, colocando a
boa-fé como princípio fundamental da Política Nacional das Relações de Consumo (art. 4º,
III) e causa de nulidade de cláusulas contratuais quando desrespeitada (art. 51, IV).
Aproveitando a evolução trazida pelo Código de Defesa do Consumidor, o Código
Civil de 2002 também estabeleceu a boa-fé como norma de conduta, trazendo-a em vários
dispositivos diferentes, como veremos a seguir.
A partir de então a boa-fé, definitivamente, passa a fazer parte do nosso ordenamento
jurídico, como princípio a ser verificado não somente na análise e execução de contratos, mas
como em toda a vida civil, já que sua ausência configura ato ilícito.
Contudo, a boa-fé é gênero do qual surgem duas modalidades. A que interessa ao
adimplemento substancial é a boa-fé objetiva, sendo, portanto, necessário diferenciá-la da
subjetiva.
_______________ 3 Na realidade, o Adimplemento Substancial é um tipo de justiça contratual forçada pelo Estado, mas sem caráter
resolutivo, como disposto pelo princípio do equilíbrio econômico.
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A boa-fé subjetiva é aquela presente quando o sujeito tem a certeza de estar agindo
de acordo com os parâmetros impostos pelo Direito, quando, na verdade, não está. O sujeito
se encontra num estado de ignorância, como no caso dos artigos 309 do Código Civil, no qual
“o pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado depois que não era
credor”, ou 1.201, segundo o qual “é de boa-fé a posse se o possuidor ignora o vício, ou
obstáculo que impede a aquisição da coisa”.
A outra modalidade de boa-fé, a objetiva, também presente no Código Civil,
“desliga-se completamente do elemento vontade, para focalizar sua atenção na comparação
entre a atitude tomada e aquela que se poderia esperar de um homem médio [...]. Enquanto na
primeira modalidade o reconhecimento do „animus nocendi‟ é vital, na segunda desimporta”
(USTARRÓZ apud THEODORO JÚNIOR, 2008, p. 10).
É latente a diferença entre as duas boas-fés, principalmente quando lemos os artigos
do Código Civil que tratam desta última:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos
do lugar de sua celebração.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé
ou pelos bons costumes.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
É fácil observar que nos dispositivos acima, a boa-fé assume uma conduta esperada
pelas partes das próprias partes, ou seja, tanto credor como devedor de uma obrigação
esperam que o outro aja de acordo com honestidade, franqueza, enfim, ditames estabelecidos
pela sociedade como corretos. Na realidade, não apenas as partes esperam esse tipo de atitude,
mas também a sociedade como um todo, pois a obrigação pode gerar efeitos reflexos e atingir
pessoas que até então não faziam parte dela originalmente.
Interessante relembrar um dos princípios contratuais surgidos na época da Revolução
Francesa e normatizados pelo Código Napoleônico (vide tópico 2.1), qual seja o da liberdade
contratual. Tal princípio se contrapõe diretamente com o da boa-fé objetiva, já que segundo
aquele as partes poderiam dispor obrigações e deveres como bem entendessem. Contudo, a
boa-fé objetiva apenas limita as cláusulas e ações que extrapolarem o tido como aceitável e
justo, sem limitar totalmente sua vontade. Por isso, ambos os princípios podem coexistir
pacificamente, sendo preciso apenas um “acomodamento” quando necessário.
Poder-se-ia concluir, portanto, que a boa-fé subjetiva é apenas um “ser”, enquanto a
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objetiva é um “dever”. Neste sentido, este último instituto se torna “causa de limitação do
exercício de um poder jurídico, no caso, do direito formativo de resolução, do qual é titular o
credor de obrigação não cumprida” (BECKER, 1993, p. 70).
Além disso, a boa-fé objetiva possui várias funções. Antonio Junqueira de Azevedo
aprofunda o enfoque neste assunto da seguinte forma:
[A boa-fé objetiva] possui uma tríplice função no campo contratual, porque
justamente a idéia é ajudar na interpretação do contrato, „adjuvandi‟, suprir algumas
das falhas do contrato, isto é, acrescentar o que nele não está incluído, „supplendi‟, e
eventualmente corrigir alguma coisa que não é de direito no sentido de justo,
„corrigendi‟ (AZEVEDO apud SCHREIBER, 2007, p. 128).
Dessa maneira, a boa-fé objetiva deve estar presente em todas as fases da obrigação,
desde a pré-contratual, passando pelo seu ajuste e cumprimento, até depois de findo o vínculo.
3.2 Princípio da Conservação dos Contratos
Como o próprio nome indica, o presente princípio visa dar aos contratos longevidade
e condições suficientes para que ele seja concluído.
Por sua obviedade, tal princípio sequer está codificado expressamente em nosso
ordenamento jurídico.4
[O princípio da preservação dos contratos] prestigia a manutenção equilibrada do
vínculo obrigacional, se mantida a essencialidade da obrigação dentro da eqüidade
aplicável sob o princípio do „pacta sunt servanda‟ que se relativiza mediante o
princípio da função social que prima pelo equilíbrio contratual (SILVA, 2006, p.
98).
Trazendo para a presente explanação o princípio da boa-fé objetiva, a conservação
dos contratos se torna ainda mais lógica, pois que ninguém celebraria de boa-fé um contrato já
pensando em descumpri-lo futuramente.
A natureza do contrato é entendida como um processo, com começo, meio e fim.
A relação obrigacional passa a ser compreendida como um processo de cooperação,
o vínculo obrigacional passa a ser visto de forma dinâmica, dele decorrendo deveres
para ambos os pólos da relação jurídica. Isto, em virtude do entendimento de que
esta relação é polarizada por uma finalidade tutelada pelo direito: a cooperação
_______________ 4 Porém, outros institutos tão ou mais óbvios que este se encontram em nossa legislação e até mesmo na
Constituição Federal. Por isso, pela importância não menor do que estes outros, argumentamos no sentido de que
este também deve ser incluído.
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social mediante o intercâmbio de bens e serviços. Para que tal finalidade seja
alcançada, é necessário que a obrigação seja cumprida, resultando daí que a relação
obrigacional deixa de ser apenas a soma de crédito e débito, estaticamente
considerados (BECKER, 1993, p. 72)
Exatamente por forçar a conservação do contrato, este princípio se conecta
diretamente a outro já visto, codificado pelo Código de Napoleão de 1804, o da
obrigatoriedade dos contratos. Contudo, a semelhança entre os dois é apenas aparente, pois o
princípio napoleônico obrigava as partes às cláusulas tal como pactuadas, enquanto que o da
conservação visa à continuação do contrato, ainda que para isso seja necessário adaptar
cláusulas do contrato.
Assim, este princípio tem como simples objetivo tão somente satisfazer a natureza
obrigacional do contrato perante suas partes e, mais ainda, perante a sociedade.
3.3 Princípio da Função Social do Contrato
O contrato é, em sua essência, instrumento particular firmado entre as partes.
Contudo, atualmente, consideram-se seus efeitos passíveis de atingirem terceiros, que não
tinham conexão alguma com a relação originária.
O próprio ordenamento jurídico já admitiu ter a livre iniciativa um caráter social, no
art. 1º, inc. IV da Constituição Federal,5 bem como a limitou por meio deste mesmo caráter,
no art. 421 do Código Civil.6
É comum não vislumbramos o contrato como instrumento passível de gerar efeitos
reflexos a terceiros, porque quase sempre imaginamos como exemplo de contrato o ato de
compra e venda realizado apenas entre vendedor e comprador. Tal pensamento não é
equivocado, pois, além de ser o tipo de contrato mais comum, seja verbal ou escrito, a compra
e venda é realizada por nós quase que diariamente.
Contudo, empresas multinacionais, grandes cooperativas, empresários, advogados e
demais pessoas, sejam físicas ou jurídicas, também celebram contratos civis e comerciais, e
estes fatalmente gerarão reflexos sobre relações e pessoas adversas da original.
O contrato deixa de ser coisa apenas dos contratantes, passando a refletir positiva e
_______________ 5 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: IV - os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa. 6 Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
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negativamente também em relação a terceiros. Sua eficácia, no tocante às obrigações
contratuais, é sempre relativa, mas sua oponibilidade é absoluta, quando em jogo
interesses de terceiros ou da comunidade (THEODORO JÚNIOR, 2008, p. 15).
Nas palavras de Miguel Reale (2003):
Como se vê, a atribuição de função social ao contrato não vem impedir que as
pessoas naturais ou jurídicas livremente o concluam, tendo em vista a realização dos
mais diversos valores. O que se exige é apenas que o acordo de vontades não se
verifique em detrimento da coletividade, mas represente um dos seus meios
primordiais de afirmação e desenvolvimento.
Como já analisados nos outros dois princípios, neste último também deve ser feita
uma correlação com outro princípio do Código de Napoleão, qual seja o da relatividade dos
efeitos contratuais. Este dispunha que o contrato só vinculava as partes, sem beneficiar ou
prejudicar terceiros. Porém, já percebemos que vários são os contratos que podem atingir
terceiros.
Partimos do pressuposto que o desejo de qualquer contratante ou não-contratante é
que o disposto por aqueles produza apenas resultados internos, inter partes. Esta, portanto,
seria a regra.
Quando, porém, a regra não é efetivada, torna-se necessária a intervenção de um
ordenamento que determine a adaptação do contrato a uma realidade social, deixando de
classificá-lo apenas como um instrumento particular.
4 NOÇÕES DE ADIMPLEMENTO E INADIMPLEMENTO CONTRATUAIS
A teoria do adimplemento substancial é, definitivamente, resultado de uma nova
realidade, caracterizada pela existência dos princípios anteriormente explanados. Aliás, como
veremos, os três princípios possuem incidência muito bem definida na presente teoria.
O adimplemento substancial, na verdade, não atinge a completude da obrigação,
pois, como o próprio nome indica, ela é cumprida substancialmente, ou seja, na sua essência
ela se encontra praticamente exaurida. Porém, é verdade que algo “praticamente adimplido”
não o foi de maneira completa. Em outras palavras e em sentido extremamente literal,
continua inadimplido.
Assim, é óbvio que o conceito de Adimplemento Substancial é comparativo com os
de Inadimplemento Total e Adimplemento Total. Por esta razão, iremos tratar sobre estes
últimos termos, antes de finalmente chegarmos ao cerne do nosso estudo.
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4.1 O Adimplemento Contratual
Ninguém que esteja de boa-fé forma um vínculo contratual com outrem desejando
que o contrato não seja cumprido. A vontade das partes se resume na resolução do contrato na
forma pactuada, ou seja, por seu adimplemento no modo, tempo e lugar devidos.
No adimplemento, as partes ficam satisfeitas com a consecução da obrigação e são
libertadas daquele vínculo que as unia diante de um fim comum.
Anderson Schreiber (2007, p. 138) afirma que o princípio fundamental deste instituto
seria o da pontualidade. “O cumprimento deve ser pontual em todos os sentidos (não apenas
no sentido temporal); deve coincidir ponto por ponto com a prestação a que o devedor está
obrigado; deve ajustar-se-lhe inteiramente.”
Paulo Luiz Netto Lôbo (2005, p. 87) define o adimplemento, destrinchando vários de
seus elementos:
O adimplemento é o cumprimento pelo devedor da prestação a que estava vinculado:
dar, fazer ou não fazer. Com o adimplemento, cessa a relação jurídica obrigacional
entre o devedor e o credor. O adimplemento realiza o fim da obrigação, satisfazendo
o credor e liberando o devedor, extinguindo a dívida. “A obrigação é criada com o
fim de se extinguir pelo seu cumprimento” (= adimplemento).
Vale frisar que o adimplemento eficaz não é formado somente da realização da
prestação principal, mas também “dos deveres derivados da boa-fé que se fizerem
instrumentalmente necessários para o atendimento satisfatório do escopo da relação, em
acordo ao seu fim e às suas circunstâncias concretas” (MARTINS-COSTA, 2003, p. 348).
Contudo, nem sempre o adimplemento extingue definitivamente a relação entre
credor e devedor, como na novação, em que uma dívida substitui outra, ou na imputação,
segundo a qual o devedor escolhe uma dentre alguma das dívidas que possui com o mesmo
credor.
De qualquer maneira, mesmo nas exceções apontadas, o credor terá alguma
satisfação e certo vínculo contratual entre ele e o devedor será desfeito, seja para criar um
novo ou permanecerem outros.
4.2 O Inadimplemento Contratual
Enquanto o adimplemento pode ser, grosso modo, considerado o cumprimento da
14
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obrigação nos termos pactuados, o inadimplemento é o desrespeito a estes, seja por ação ou
omissão do devedor.7
Se desta situação, resultar a impossibilidade de cumprimento da obrigação pelo
devedor, o inadimplemento será absoluto e, neste caso, é facultada ao credor a resolução do
negócio, como forma de se precaver de um maior prejuízo e até enriquecimento ilícito da
parte inadimplente.
Porém, se ainda houver possibilidade de cumprimento da prestação, por meio de
purgação ou emenda, a situação existente será a de um inadimplemento relativo, caracterizada
pela mora8.
Carlos Alberto Reis de Paula (apud SILVA, 2006, p. 136) diferencia estas
modalidades de modo definitivo:
Será absoluto se tiver faltado completamente a prestação, e não há mais
possibilidade de ser executada a obrigação, de forma útil e proveitosa para o credor.
Será relativo se houve parcial cumprimento da obrigação, quanto ao objeto, ou se a
obrigação não foi cumprida „in opportuno tempore‟, mas ainda pode ser cumprida,
ainda que em mora [excetuado o caso de obrigação infungível, obviamente]. Em
ambas as hipóteses, há descumprimento de obrigação, pois o credor tem direito a
todo o devido, quanto ao objeto, ao tempo e demais circunstâncias do negócio
jurídico.
Para o credor, tais situações são semelhantes, já que ele não se encontra satisfeito em
nenhuma delas, mas possui, em ambas, a opção de resolver a obrigação e, havendo culpa do
devedor, em regra, exigir dele indenização.
5 TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
Afinal, trataremos sobre a teoria do adimplemento substancial em si. Com a base
estabelecida até aqui, poderemos trazer os conceitos antes formulados e aplicá-los frente à
teoria em questão.
5.1 Histórico
A idéia de o inadimplemento de uma obrigação servir de causa para a resolução do
_______________ 7 Art. 394 do Código Civil. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não
quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer. 8 O credor também pode constituir a obrigação em mora ao se recusar a receber a prestação da forma contratada.
15
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contrato surge no Direito Canônico, por meio do Decreto Quemadmodum, do Papa Inocêncio
III, ao dispor que o marido teria o direito de deixar a esposa infiel, pois “só é obrigatório
manter-se casado durante toda a vida quando há o cumprimento pela outra parte do dever de
fidelidade” (BUSSTTA, 2007, p. 34).
Tal entendimento foi a semente para que a resolução por inadimplemento dos
contratos de obrigações recíprocas se tornasse norma, pois até então, por influência do Direito
Romano, o credor tinha como remédio apenas a ação de cumprimento. No Código de
Napoleão, tal previsão foi incorporada no artigo 1.184.
Mas é com a common law do Direito inglês, que a teoria do adimplemento
substancial começa a tomar forma, mais precisamente no caso Boone v. Eyre, de 1779, pois
percebe-se que a resolução do vínculo geraria mais injustiça às partes do que se fosse
mantido.
Diante das injustiças que poderiam advir da resolução do contrasto ante o
descumprimento de somente parte do programa obrigacional, surgiu no Direito
inglês o entendimento de que tão-só o descumprimento de uma prestação
dependente („condition‟) dava azo à resolução do contrato, enquanto o
descumprimento de um dever meramente acessório ou colateral, do qual a avença
não é dependente („warranty‟), apenas concedia ao credor o direito de reclamar
perdas e danos („damages‟) daí decorrentes (BUSSATTA, 2007, p. 35)
No referido caso, Boone transferiu a propriedade de uma plantação nas Antilhas e a
posse dos escravos que lá se encontravam para Eyre, cuja obrigação era pagar-lhe de imediato
500 libras e mais 160 de renda anual. Ocorre que os escravos fugiram da propriedade, de
modo que Eyre suspendeu o pagamento por entender que a obrigação fora descumprida.
Boone não aceitou tal argumento e exigiu o pagamento do valor acordado.
Para o julgamento desta demanda, o magistrado Lorde Mansfield criou uma nova
teoria jurídica, tomando a natureza dos elementos da obrigação para classificar o seu
inadimplemento como substancial ou absoluto. Assim, se descumprida uma prestação
principal, nasceria para o credor o direito de resolver a obrigação, enquanto que o
inadimplemento de uma prestação acessória ensejaria apenas dever de indenização por tal
falta pelo devedor.
Deste modo, entendeu que a permanência dos escravos na propriedade era apenas
uma prestação secundária, e, portanto, não ensejadora de resolução do vínculo, obrigando o
pagamento da prestação pelo réu, Eyre.
Lorde Mansfield, ao diferenciar as prestações de um vínculo contratual, fincou a base
16
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para a Teoria do Adimplemento Substancial.
Bussata (2007, p. 37) demonstra que, apesar de importante na escala evolutiva da
teoria contratual, esta diferenciação não supria as limitações da aplicação literal do pacta sunt
servanda:
Não obstante a interessante distinção, esta era artificiosa na medida em que não
considerava a gravidade do descumprimento, podendo, com isso, ainda assim, servir
de palco para a injustiça. De fato, pelo que foi exposto, uma leve, ínfima, irrelevante
infração a uma „condition‟ poderia levar à resolução do contrato e, inversamente, o
descumprimento grave, substancial, de uma „warranty‟ somente dava o direito ao
recebimento de perdas e danos.
Para tornar mais clara a dificuldade apresentada pela teoria de Lorde Mansfield,
exemplifiquemos algumas situações problemáticas.
Um contrato de compra e venda, por exemplo, possui apenas uma prestação por parte
do credor, entregar a coisa, e outra a ser realizada pelo devedor, de pagar o convencionado.
Assim, nos contratos que se perfazem em uma única prestação, de obrigação indivisível, não
seria possível existir uma warranty, já que os atos de dar a coisa e pagá-la são intrínsecos a
ele, não podendo ser consideradas independentes. Grosso modo, um centavo de real de uma
obrigação de um milhão seria causa suficiente para resolver o vínculo, afinal a condition não
foi cumprida.
Ademais, esta teorização também não protege o contrato no qual seja descumprida
uma warranty que, apesar de o ser, possui grande valor para o vínculo em geral, como no caso
de um advogado que não devolve os processos dos quais fez carga. Ora, ele cumpre todas as
funções primárias de sua atividade, pactuadas com seu cliente, como atendê-lo, realizar
audiências, elaborar petições etc. Porém, ao não devolver processo algum em carga com ele,
ocorrerá uma desordem processual, prejudicando a Justiça e seus clientes. Assim, uma
warranty descumprida se torna muito prejudicial, não somente ao sinalagma mas a toda a
sociedade. Todavia, pela teoria das conditions e warranties, tal situação não ensejaria
resolução do contrato.
Assim, ao enfrentar novas situações, como as exemplificadas acima, os julgadores
ingleses perceberam a necessidade de atualizar a teoria, para que ela pudesse abarcar a
totalidade destas imprevisões contratuais. Tanto doutrina quanto jurisprudência foram, então,
se aperfeiçoando, até 1952, ano em que ocorreu o julgamento do caso Hoenig versus Isaacs,
exemplo de maturidade da teoria do adimplemento substancial.
A referida demanda tratava do recebimento de saldo residual de uma decoração de
17
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interiores, feita pelo autor Hoenig para o réu Isaacs, o qual alegou que o serviço, apesar de
quase totalmente terminado, fora defeituoso, pela má qualidade das mobílias e do serviço
fornecidos. Pautando-se pela substancialidade do adimplemento e pelo fato de o réu ter ido
morar na residência depois da prestação do serviço, se beneficiando dele, o magistrado julgou
a demanda procedente. Porém, no julgamento ficou ressalvado que o réu teria direito de
cobrar do autor os gastos de um eventual conserto pela prestação defeituosa.
Neste momento, há uma “inversão do ponto de vista do julgador que, de apreciar a
gravidade a partir da inexecução, passou a considerar a execução, a fim de determinar se ela
satisfazia em substância a totalidade das obrigações estipuladas, apesar de sua imperfeição”
(BECKER, 1993, p. 63).
Sobre o histórico do adimplemento substancial, podemos concluir o seguinte:
[...] o construto histórico do adimplemento substancial foi formado a partir da
valoração da gravidade do inadimplemento em relação à razoabilidade das
penalidades aplicadas, cujo ponto de equilíbrio seria a constatação do atendimento
ao interesse do credor. Em outras palavras, na trajetória histórica desta Teoria houve
a verificação da necessidade da aplicação da tutela jurídica devida ao devedor que
não poderia perder todo o seu trabalho, sem a respectiva e proporcional
contraprestação do credor em razão de descumprimento mínimo da obrigação. Foi
crucial a conscientização do movimento ocorrido dentro das Cortes da Eqüidade de
que se atendido o principal interesse do credor satisfatoriamente, a resolução do
contrato não se adaptava dentro da razoabilidade, sendo esta inserida no princípio da
boa-fé (SILVA, 2006, p. 28-29)
Dessa maneira, surge o conceito de substancial performance, no Brasil denominado
adimplemento substancial, no qual servem de base para a sua caracterização a valoração da
gravidade da prestação descumprida e suas consequências.
Há países que reconhecem o Adimplemento Substancial como dispositivo legal e o
recepcionam em seus códigos, tais como a Itália (artigo 1.455 do código civil italiano) e
Portugal (artigo 808, nº 2 do código civil português). Outros países, como França, Espanha e
Argentina, não reconhecem a substancialidade do adimplemento explicitamente em seus
códigos, mas já o aceitam na jurisprudência e doutrina.
Por sua vez, a Convenção Internacional sobre Venda de Mercadoria (Convenção de
Viena), de 1980, também dispõe sobre o assunto, mas sob ótica diversa, a do inadimplemento
fundamental do contrato.9 Assim, a Convenção de Viena inverte a situação, por meio do artigo
25, digno de nota pela sua vertente diferencial:
_______________ 9 Para mais informações, vide AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A Convenção de Viena (1980) e a Resolução
por Incumprimento. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, v. 10, p. 7-21, jul. 1994.
18
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Uma violação do contrato cometida por uma das partes é fundamental quando causa
à outra parte um prejuízo tal que a prive substancialmente daquilo que lhe era
legítimo esperar do contrato, salvo se a parte faltosa não previu esse resultado e se
uma pessoa razoável, com idêntica qualificação e colocada na mesma situação, não
o teria igualmente previsto (apud LÔBO, 2005, p. 222)
No Brasil, o adimplemento substancial nunca foi expressamente admitido pela
legislação, seja no Código Civil de 1916, essencialmente individualista, ou no de 2002, mais
social e democrático. Contudo, ainda na época do antigo código, os doutrinadores já
apontavam a possibilidade de um “inadimplemento insignificante” ou “cumprimento
imperfeito” que pudesse ensejar a manutenção da obrigação.
Clóvis Beviláqua (apud SILVA, 2010, p. 92) em 1953, alegava que “se a inexecução
é completa, mais extensa há de ser a responsabilidade; se a execução é, apenas, imperfeita,
deve a responsabilidade ser proporcional ao que falta para completar a execução”.
Pontes de Miranda (apud LÔBO, 2005, p. 220) mesmo sem denominar a teoria, já
argumentava que “o credor não pode recusar a prestação se o que lhe falta é mínimo e não
diminui o valor do que se lhe quer entregar, ou se nada se opõe a que receba”.
Clóvis Veríssimo do Couto e Silva foi um dos juristas que mais argumentou a favor
da possibilidade de se adimplir substancialmente uma obrigação, na década de 70. Tal jurista
entendia que a obrigação deve ser vista como um processo, algo que segue uma lógica
crescente e busca o resultado desejado pelas partes, ou seja, o adimplemento.
Mais recentemente, com a recepção de vários novos princípios contratuais (três deles
estudados no tópico 3), tanto doutrina quanto jurisprudência se mostraram mais receptivos à
teoria do adimplemento substancial, ainda que a própria lei a excluísse, se interpretada de
modo literal.
O Superior Tribunal de Justiça passou a aceitar mais abertamente a possibilidade do
adimplemento vir a ser substancial a partir do Recurso Especial 272.739/MG (BRASÍLIA,
2001), cujo relator foi o Ministro Ruy Rosada de Aguiar, da 4ª turma:
ALIENAÇÃO FÍDUCIÁRIA. Busca e apreensão. Falta da última prestação.
Adimplemento substancial.
O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última
prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em
lugar da cobrança da parcela faltante.
O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a
propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do
interesse na continuidade da execução, que não é o caso.
Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela.
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Não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses
fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse.
Recurso não conhecido.
Assim, para um estudo mais profundo do tema, é necessário analisarmos as várias
doutrinas de adimplemento substancial, pois nos falta o azo da legislação, tentando chegar a
sua conceituação.
5.2 Conceito
A substancialidade do adimplemento, como vimos, é caracterizada pela gravidade do
descumprimento e não por sua natureza. Vejamos, então, como a doutrina conceitua o
presente tema.
Primeiramente, Eduardo Luiz Bussatta (2007, p. 83) argumenta que o adimplemento
substancial “corresponde a uma limitação ao direito formativo do contratante não
inadimplente à resolução, limite este que se oferece quando o incumprimento é de somenos
gravidade, não chegando a retirar a utilidade e função da contratação”.
Os termos “utilidade e função da contratação” são desenvolvidos por Anderson
Schreiber (2007, p. 141), ao argumentar que para se verificar a existência ou não do
adimplemento substancial, há que se realizar uma “ponderação judicial entre (i) a utilidade da
extinção da relação obrigacional para o credor e (ii) o prejuízo que adviria para o devedor e
para terceiros a partir da resolução”. Apesar de não exatamente conceituar o adimplemento
substancial, Schreiber nos aponta a possibilidade de efeitos negativos da resolução do vínculo
contratual para as partes.
Viven Lys da Silva (2006, p. 264), mestre no assunto, chega mais além e constrói um
verdadeiro roteiro de julgamento da substancialidade da obrigação:
Em suma, o juiz deverá verificar: (i) os elementos objetivamente fixados e
eventualmente descumpridos; (ii) o cumprimento dos deveres de conduta
secundários, como a boa-fé objetiva; (iii) precisar e ponderar a substancialidade do
adimplemento, que satisfaz o credor e impede a resolução, em relação à gravidade
do incumprimento, com violação da obrigação fundamental do contrato, que leva à
sua extinção; (iv) avaliar, na perspectiva do interesse do credor, quando a prestação
se tornou inútil para ele, incapaz de satisfazer substancialmente à sua legítima
expectativa, deixando de alcançar o escopo objetivamente previsto no contrato; (v)
medir o interesse econômico expresso no negócio e pensá-lo também como um fator
metajurídico relevante, subordinado ao interesse comum; e (vi) finalmente, decidir
de acordo com a eqüidade, os princípios da justiça comutativa e da boa-fé, que a
todos impõem deveres éticos inafastáveis nesta matéria.
20
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Deste modo, percebemos que não apenas a gravidade da situação comparada à
totalidade da obrigação deve ser avaliada, mas eventual resolução do contrato e suas
consequências, bem como os efeitos da própria inadimplência também devem ser
considerados.
Pensemos, por exemplo, num caminhoneiro que foi contratado para transportar
urgentemente uma carga por 100 (cem) quilômetros, de uma cidade a determinada garagem
de outra cidade. Todavia, o contratado resolve, sem motivo algum, dirigir apenas 95 (noventa
e cinco) quilômetros e deixar o veículo estacionado ali. Ora, 95% da obrigação acordada foi
cumprida e, portanto, segundo os valores apontados pela doutrina e jurisprudência, o
adimplemento teria sido substancial se apenas considerássemos a gravidade do
inadimplemento em relação à totalidade da obrigação.
No caso apresentado, porém, a obrigação resta fundamentalmente inadimplida, pois
apesar de ter sido quase concluída, não houve utilidade alguma para o credor, que não recebeu
a carga no tempo requisitado. Portanto, obrigações que tenham o fator tempo como agravante,
não podem ser substancialmente adimplidas se não realizadas no tempo devido.
Poder-se-ia argumentar que, na verdade, todas as obrigações indivisíveis seriam
insuscetíveis de adimplemento substancial, como no caso apresentado que se concluía apenas
com a entrega do caminhão na garagem no tempo contratado. Porém, uma compra e venda à
vista também se perfaz em apenas uma prestação, mas pode ser adimplida substancialmente,
se o comprador entregar, por exemplo, 47 (quarenta e sete) reais por algo que vale 50
(cinquenta).
Discordamos, respeitosamente, de Vivien Lys da Silva (2006, p. 273), pois em nossa
opinião ela comete o erro descrito acima, de se considerar todas as obrigações de uma
classificação doutrinária impassíveis de serem adimplidas substancialmente, como
demonstrado a seguir:
Por outro lado, esse instituto não se aplica nas hipóteses da obrigação de não fazer, a
violação desta pela comissão do agente da conduta proibida, gera automaticamente o
inadimplemento absoluto, uma vez que a realização da omissão imposta leva à
inexecução, sendo impossível o retorno ao status anterior, ensejando, assim, ao
ressarcimento pelos prejuízos causados. O inadimplemento absoluto também é
inevitável na obrigação em que o tempo é requisito fundamental, não se admitindo
cumprimento tardio. O atraso, nesta situação, torna inútil a prestação ao credor,
ensejando resolução do contrato com indenização por perdas e danos. E obrigações
infungíveis também não é possível a preservação do contrato com fundamento no
adimplemento substancial (SILVA, 2006, p. 273).
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Assim, destas três classificações de obrigações, concordamos apenas que aquela em
que o tempo é requisito fundamental não possibilita substancialidade do adimplemento, mas
este tipo de obrigação sequer está presente na classificação clássica das obrigações (fungíveis
e infungíveis; divisíveis e indivisíveis; de meio, resultado e garantia etc), sendo apenas uma
característica eventual do caso concreto a ser analisada pelo magistrado.
A obrigação de não construir um muro até certa altura, por exemplo, é obrigação de
não fazer, mas ninguém consideraria descumprida a obrigação se o mesmo ultrapassasse
alguns centímetros o limite.
No caso das obrigações infungíveis, o exemplo é mais difícil de ser encontrado, mas
se imaginarmos um cantor famoso que foi contratado para cantar 20 músicas numa festa e por
um problema qualquer canta apenas 18, acreditamos que o adimplemento pode ser
considerado substancial.
Exemplo interessante de uma obrigação infungível de não fazer é o apontado por
Anelise Becker (1993, p. 64), de uma pessoa que adquire um vestido de uma estilista famosa,
com a promessa de ele ser único, exclusivo. A estilista, contudo, não respeita a cláusula de
não confeccionar outro vestido idêntico. A doutrinadora conclui que, neste caso, a
compradora teria direito de resolver o contrato, pois a cláusula de exclusividade seria
fundamental.
Eduardo Luiz Bussatta (2007, p. 119) discorda desta conclusão, pois entende que no
exemplo fornecido, a obrigação descumprida é acessória e “o contrato conserva a sua função
econômico-social. Fica aberta, simplesmente, a via ressarcitória para a satisfação do interesse
lesionado”.
Em nossa opinião, Bussatta acerta ao argumentar que a cláusula de exclusividade
seria acessória, pois a principal seria criar o vestido, até então original. Depois de comprado, o
consumidor já usufruiu do produto e, apesar de descobrir uma cópia deste, ele ainda poderá
ser utilizado. Obviamente que o valor do vestido, antes único e agora simplesmente uma
cópia, restará diminuído, ensejando ressarcimento, mas não a resolução do contrato.10
Pelos exemplos e opiniões demonstrados, acreditamos poder definir o adimplemento
substancial da seguinte maneira: qualidade de um vínculo contratual que teve sua natureza
obrigacional inadimplida irrisoriamente em relação ao todo, a ponto de o credor (dever) estar
_______________ 10
É curioso observar que o critério aqui utilizado é o da natureza da prestação descumprida, criado em 1779 no
caso Boone v. Eyre (vide tópico 5.1), comprovando que, apesar de antigo, ainda pode ser invocado em certos
casos.
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satisfeito, tendo no descumprimento do devedor causa para sua responsabilização.11
O conceito acima, obviamente, não visa extinguir o debate existente sobre o tema,
até porque o mesmo inexiste na legislação e ainda é frequentemente discutido pela doutrina e
aplicadores do Direito. Assim, a definição apresentada tão somente objetiva apresentar os
pontos que consideramos mais importantes, dando um norte ao estudo.
5.3 Substancialidade na Prática
Ainda que tenhamos incluído elementos caracterizadores do adimplemento
substancial em nossa conceituação, um deles – importantíssimo, por sinal – não está presente
nela por sua inexatidão, qual seja a valoração do “pequeno descumprimento do devedor”.
Todavia, este elemento possui difícil definição já que carece de “preenchimento
valorativo”, como aponta Karl Engish (apud BECKER, 1993, p. 73). Deste modo, faz-se
necessário que o julgador traga valores extrajurídicos para o caso concreto, com a finalidade
de tornar o conceito de substancialidade aplicável.
É inegável que na ocorrência do adimplemento substancial, o devedor da obrigação
não a realiza inteiramente, bem como não a descumpre a ponto de ferir o equilíbrio contratual.
Assim, o principal problema enfrentado pela jurisprudência atual ao se deparar com
um possível adimplemento substancial é definir a linha tênue que diferencia o
inadimplemento prejudicial ao vínculo contratual daquele apenas irrisório.
Mesmo os Tribunais brasileiros ainda não chegaram a um consenso sobre esta
questão.
O Estado do Rio Grande do Sul (2001), por exemplo, já definiu em 2001, numa ação
de reintegração de posso em arrendamento mercantil, que “o adimplemento de mais de 60%
das parcelas avençadas no contrato conduz à ausência de mora.”
Já o Tribunal Regional do Paraná (2010), ao se deparar com a mesma quantia paga,
julgou que não seria o caso de adimplemento substancial, pois “em que pese o valor pago
_______________ 11
Entendemos aqui os termos “credor” e “devedor” como partes exigentes de uma das prestações da obrigação.
Assim, numa compra e venda, o comprador é credor da entrega do objeto e devedor do pagamento, enquanto que
o vendedor é credor do recebimento e devedor do envio da coisa.
Afinal, a tendência é imaginar o adimplemento substancial como situação a que apenas o devedor da prestação
pecuniária (comprador) deu causa – e fazemos aqui a nossa mea culpa por também apresentarmos quase sempre
exemplos desse tipo –, quando o contrário também pode ser verdadeiro. Como exemplo desta situação “inversa”,
imaginemos o vendedor de uma casa que a entrega com o banheiro sem ladrilhos, ou sem a porta de um dos
quartos. A casa, certamente, não foi entregue como desejada pelos compradores, mas tais motivos não poderiam
ser causas de rescisão contratual.
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corresponder a 60% do contrato, não houve depósito de quaisquer valores nos autos por parte
da agravante, sequer daqueles que entende como incontroverso”.
Em São Paulo, é interessante observar que em um julgamento “houve adimplemento
substancial pelo devedor de valor assumido no acordo, resultando no pagamento
aproximadamente de 75% da quantia que era devida ao exeqüente” (SÃO PAULO, 2010b),
enquanto que o mesmo porcentual também caracterizou inadimplemento absoluto em outro
julgado do mesmo Tribunal:
[...] pago cerca de 75% do total das prestações avençadas, faltando ainda dez a
serem quitadas, não encontro a razoabilidade e a proporcionalidade necessárias à
medida, para fazer incidir à causa a doutrina do adimplemento substancial de molde
a justificar a manutenção da posse do bem alienado fiduciariamente nas mãos da
recorrente. (SÃO PAULO, 2010a)
Pelo exposto, é certo que existe diferença de entendimento no tocante a qual
percentual da obrigação caracteriza a substancialidade do adimplemento, até porque as
circunstâncias de cada caso concreto são as mais diversas possíveis.
Bussatta (2007, p. 101-102) vai além das comparações meramente matemáticas, ao
afirmar que um inadimplemento de 5% (cinco por cento) pode ser ínfimo para um e excessivo
para outro, como na venda ad mensuram (art.500, §1º do CC12).
Interessante observar que o Direito não é a única ciência preocupada em definir o
limiar entre os conceitos de inexistente e substancial, ou seja, entre conjuntos antagônicos. A
filosofia e a matemática, por exemplo, se deparam com este problema há séculos, por meio do
denominado “Paradoxo de Sorites”.
Tal problematização é atribuída a Ebulides de Mileto, filósofo grego, que a definiu
com a seguinte pergunta: Quando um monte de areia deixa de ser um monte de areia, caso
retiremos um grão de areia de cada vez?13
Para que um conceito seja útil, basta que seja bem definido em alguns casos, de
modo que algumas coisas caiam sem sombra de dúvida sob ele (sic) e que outras,
sem sombra de dúvida, não o façam. O paradoxo de sorites surge da incapacidade de
_______________ 12
Art. 500. Se, na venda de um imóvel, se estipular o preço por medida de extensão, ou se determinar a
respectiva área, e esta não corresponder, em qualquer dos casos, às dimensões dadas, o comprador terá o direito
de exigir o complemento da área, e, não sendo isso possível, o de reclamar a resolução do contrato ou abatimento
proporcional ao preço.
§ 1o Presume-se que a referência às dimensões foi simplesmente enunciativa, quando a diferença encontrada não
exceder de um vigésimo da área total enunciada, ressalvado ao comprador o direito de provar que, em tais
circunstâncias, não teria realizado o negócio. 13
Para mais informações (em inglês) sobre o Paradoxo de Sorites: http://plato.stanford.edu/entries/sorites-
paradox/
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reconhecer que essa ausência de limites precisos é constitutiva de conceitos
perfeitamente úteis, como “pilha”: ordenar a alguém que faça uma pilha de objetos é
uma ordem clara, o que já não ocorre quando se lhe ordena que faça a menor pilha
que ainda possa ser considerada como tal (GLOCK, 1998, p. 129)
Por ser impossível, portanto, definir a medida exata em que um montante de coisas
deixa de sê-lo, o caso concreto é que deverá servir de medida.
Segundo Ruy Aguiar Júnior (apud BUSSATTA, 2007, p. 109), o dano deverá ser
“calculado em função da ofensa provocada à economia total do contrato [pois sobre ela] que
há de se ponderar a gravidade da infração e não em razão do prejuízo ocasionado ao credor,
que poderá ser [...] de maior ou menor repercussão”.
Tal medida deve ser a adotada, pois, inclusive, nem sempre as obrigações podem ser
mensuradas numericamente (ex: permuta de um computador por uma bicicleta) e, portanto, a
utilidade do Paradoxo de Sorites seria diminuída.
5.4 Consequências
Uma vez considerada a obrigação adimplida substancialmente, surgirão algumas
opções às partes: (i) o devedor pode cumprir a prestação faltante; (ii) o credor pode pagar a
dívida, com a possibilidade de requerer posteriormente indenização pelo devedor ou (iii) pode
executar do devedor a prestação inadimplida.
Porém, em todos os casos há que se lembrar que o credor tem direito a solicitar o
ressarcimento dos prejuízos ou eventuais despesas do inadimplemento não fundamental.
Observemos que na última parte do conceito formulado por nós (final do tópico 5.2),
se encontra a responsabilização do inadimplente, ainda que por pequena prestação.
Do mesmo modo, Analise Becker (1993, p. 62) faz questão de mencionar tal
consequência em seu conceito de adimplemento substancial:
Consiste em um resultado tão próximo do almejado, que não chega a abalar a
reciprocidade, o sinalagma das prestações correspectivas. Por isso mantém-se o
contrato, concedendo-se ao credor direito a ser ressarcido pelos defeitos da
prestação, porque o prejuízo, ainda que secundário, se existe deve ser reparado.
Portanto, verificando-se o adimplemento substancial da cobrança, permitir-se-á
apenas “a propositura da ação de cobrança do saldo em aberto” (RIO GRANDE DO SUL,
2001).
Vivien Lys da Silva (2006, p. 25) nos traz um caso antigo, mas nem por isso
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desinteressante, que explora bem a questão, ainda que com resultados injustos:
Em 1916, observamos mais um julgamento atinente à construção desta Teoria. O
processo entre „H. Dakin & Co., Ltd. versus Lee‟, no qual consagrou-se uma solução
demasiadamente a favor à Teoria do adimplemento substancial, ultrapassando em
excesso o seu conceito, o que também reputou-se prejudicial posteriormente. Neste
caso, diante de reduzidíssima divergência entre a reforma de uma casa, sob o
conceito entre trabalho terminado ou realizado – nem todas as colunas se ergueram
conforme o previsto –, entendeu-se suficiente a prestação, fazendo jus o empreiteiro
à totalidade do pagamento. Neste momento, o movimento intelectual da época já
permitia o exato enquadramento da verificação da gravidade do inadimplemento que
diante do princípio da boa-fé objetiva poderia reputar pela preservação do contrato
diante do adimplemento substancial. Contudo, houve o excesso da aplicação desta
Teoria, pelo fato de que não é possível premiar o inadimplente, mesmo sendo este
mínimo, pelo recebimento do preço integral. Alguma dedução deve ser feita para
restabelecer o equilíbrio contratual, sob pena de enriquecimento sem causa.
Após a apresentação deste litígio, a autora completa o assunto com a seguinte ressalva
– a qual, na verdade, é válida tanto para o presente tópico, quanto para o anterior:
[...] é preciso tomar cuidado com a dimensão dada ao adimplemento substancial,
para que não se volte totalmente a favor do inadimplente em desfavor à parte
adimplente, pois nesta hipótese estar-se-ia retrocedendo aos primórdios do
formalismo consistente da aplicação incondicional do direito resolutório com
grandes riscos de cometer-se uma atrocidade maior ainda e, após 3 (três) séculos do
surgimento da Teoria do adimplemento substancial matar, definitivamente, o
equilíbrio buscado nas obrigações comutativas estabelecidas dentro do programa
contratual (SILVA, 2007, p. 26).
Assim, ainda que a obrigação esteja adimplida substancialmente, o resto faltante há
que ser considerado para efeito indenizatório ao credor pelo devedor, pois se não o fosse, a
justiça contratual seria desrespeitada.
6 CONCLUSÃO
Pelo exposto no presente estudo, entendemos que o adimplemento substancial deve
ser aplicado em razão da justiça e equilíbrio contratuais, quando, obviamente, o caso concreto
permitir.
Pode-se dizer que o contrato tem vontade própria, a de ser cumprido em sua
exatidão, tal como disposto pelas partes. Contudo, quando tal objetivo não for alcançado, é
preciso ter leis que garantam a funcionalidade do contrato, ou seja, que possibilitem os efeitos
do adimplemento substancial.
Considerar substancialmente cumprida uma obrigação que tenha descumprimento
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exíguo será sempre melhor do que resolver o contrato, pois a resolução é medida de último
recurso, já que é muito prejudicial ao devedor e não traz benefícios reais ao credor.
Apesar de não possuir critérios muito objetivos quanto à mensuração da gravidade do
descumprimento – não sendo sequer possível criar tais critérios, já que vale aqui a velha
máxima de que “cada caso é um caso”, – acreditamos que tanto doutrina quanto
jurisprudência, à medida que adotarem a presente teoria, estabelecerão comparativos que
poderão ser utilizados nos julgamentos futuros.
O Direito, afinal, já agiu deste modo com a fixação do quantum indenizatório do
Dano Moral, que, apesar de também não possuir elementos de valoração objetivos, encontra-
se consolidado em nosso ordenamento, diferentemente do Adimplemento Substancial.
Ainda que não seja uma teoria tão recente, o Adimplemento Substancial não é muito
discutido na doutrina, limitando-se a notas de rodapé ou poucas linhas inseridas no capítulo
de adimplemento contratual. Ademais, não é sequer contemplado especificamente pela nossa
legislação.
Esperamos, contudo, que esta situação se modifique, já que as possibilidades trazidas
pela substancialidade do adimplemento são muito positivas para o contrato e, portanto, para a
vida de todos os cidadãos.
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