especial refugiados sírios · 2016-01-20 · dos refugiados sírios. para que se tenha uma noção...

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Revista Ano 1 • Dez 2015 • n° 01 Tammam Azzam Narrativas em movimento Refugiados Sírios Os refugiados, a crise e a retórica da crise Entrevista com o artista plástico sírio refugiado em Dubai Especial O contexto do conflito na Síria Por que nossa juventude está se juntando ao Estado Islâmico? Jornalista avalia os caminhos e possíveis saídas para os países da União Europeia Como são as políticas do Brasil em relação à maior onda migratória desde a 2° Guerra Mundial Entre o apocalipse e a redenção Celular, comida e busca por trabalho Refugiados palestinos e sírios em uma ocupação de sem-teto no centro de São Paulo

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Page 1: Especial Refugiados Sírios · 2016-01-20 · dos refugiados sírios. Para que se tenha uma noção maior do ... Chamada para a fuga Por Liza Dumovich Editorial da ... Na medida em

Revista Ano 1 • Dez 2015 • n° 01

Tammam Azzam

Narrativas em movimento

Refugiados Sírios

Os refugiados, a crise e a retórica da crise

Entrevista com o artista plástico sírio refugiado em Dubai

Especial

O contexto do conflito na Síria

Por que nossa juventude está se juntando ao

Estado Islâmico? Jornalista avalia os caminhos e possíveis saídas para os países

da União Europeia

Como são as políticas do Brasil em relação à maior

onda migratória desde a 2° Guerra Mundial

Entre o apocalipse e a redenção

Celular, comida e busca por trabalhoRefugiados palestinos e sírios em uma ocupação de sem-teto no centro de São Paulo

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Editorias | Página 02

levam, hoje, à dispersão da ideia nacional própria à modernidade. Entramos numa era de deslocamentos continentais mar-cada pelos novos movimentos migratóri-os, tal como pela criação de um novo traumatismo histórico, no assento da con-sciência e identidade dessas coletividades deslocadas. A revista quer responder à pregnância da visão internacional, que é também preocupação da UCAM nos seus diversos institutos, começando pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos, há mais de meio século. O propósito da Diáspora é, sobretudo, delinear a força emergen-te do Brasil nesses novos enlaces, inclu-sive com os Estados latino-americanos.. A perspectiva emergente desdobra-se so-bre os alinhamentos no Pacífico dessa mesma América Latina, mas, sobretudo, o que se busca é a contraposição a toda perda identitária que, na modernidade, ainda traduza o empenho do colonialis-mo e seus sucessivos avatares.

Prof. Candido Mendes – Reitor UCAMMembro do Conselho Editorial

da Revista Diáspora.

Nota da Universidade Candido Mendes

Narrativas em movimento

recado da Diáspora é incisivo. Trata-se de atentar às novas configurações internacionais que

Redação: Produtora Executiva •  Liza Dumovich

Editora - Tradutora•  Ana Maria Raietparvar

Editor Assistente - Jornalista•  Alexandre Facciolla

Chefe de Reportagem - Jornalista•  Leila Lak 

Editor de Arte • Diego Torrão 

Colaboradores:•  Igor Paes Leme 

•  Fabrício Toledo de Souza•  Monique Sochaczewski

  •  Pato Sarda

Conselho Editorial:•  Candido Mendes

•  Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto •  Beatriz Bíssio

•  Fernando Resende• Gisele Fonseca Chagas

•  Plinio Zuni

O

Foto capa: Sergi Cabeza 

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Contexto | Página 05

protestos  populares  contra  o  regime  de  Bashar al-Assad para um conflito armado que provoca, há quatro  anos,  tamanha  violência  física  e  simbólica, é  preciso  primeiramente  entender  as  especifici-dades históricas, políticas, sociais e econômicas que        atravessaram a sociedade síria nas últimas décadas. Não se trata de propor uma cronologia de acontec-imentos e tampouco elaborar quadros explicativos sobre “quem é quem” no conflito, mas estar ciente que os atores sociais que o produzem no cotidiano têm suas próprias (e, portanto, divergentes) narrati-vas sobre a situação.  Para entender os efeitos da guerra, é pre-ciso  colocar  em  contexto  os  processos  domésti-cos  que  a  moveram  e  que  continuam  dando  o tom das disputas entre os diferentes atores e seus                 alinhamentos no conflito. Se em setembro de 2015 a  imagem  do  menino  Aylan  al-Kurdi,  de  3  anos, morto  em  uma  praia  da  Turquia  conseguiu  con-densar e traduzir o horror da guerra na Síria para o mundo, em abril de 2011, em Deraa, uma província ao sul do país, a prisão, tortura e morte de Hamzaal-Khatib,  13  anos,  foi  o  epicentro  das  manifes-tações populares contra o status quo político.

Entre o apocalipsee a redenção Por Gisele Fonseca Chagas

  O corpo mutilado de Hamza foi entregue à família pela polícia do regime de Bashar al-Assad e, em seguida, um vídeo feito por um membro da família  mostrando  o  corpo  desfigurado  circulou rapidamente via internet, provocando uma onda de indignação em diferentes partes do território sírio. Um mês antes da morte de Hamza, protestos reivin-dicando “liberdade” e “justiça” já eram ecoados na mesma cidade, em resposta à prisão e tortura, pela polícia, de um grupo de adolescentes acusado de pichar o muro de uma escola com a frase “O povo quer  a  queda  do  regime”.  A  frase,  compartilhada por manifestantes  em  ruas  e praças de  cidades  e capitais do chamado mundo árabe, era slogan co-mum ao movimento de contestação política conhe-cido como “Primavera Árabe”.

Ilustração de menino refugiado: Reprodução/Twitter

Governo deposto      Governo derrubado várias vezes       Guerra civil       Protestos e mudanças governamentais      Grandes protestos       Protestos menores        Outros protestos e ação militante fora do mundo árabe     

Índice “outro lado do mundo”. Esse movimento de tornar o exótico familiar revela que o outro pode estar mais próximo do que se acredita, tanto geograficamente - com os deslocamentos através de refúgio e dos movimentos migratórios, seja de bra-sileiros para o Oriente Médio, seja de médio-orientais para o Brasil - quanto culturalmente - com discursos e práticas com-partilhados nas artes, na cultura, política e religião. Um exemplo contundente dessas conexões é o número cada vez maior de conversões para o islã na América Latina.O objetivo da Revista DIASPORA é revelar os diversos pontos de conexão entre os mundos. Que o encurtamento de distân-cias proporcionado pela internet permita que se vá além dos nossos preconceitos e estereótipos. Que uma revista sobre o Oriente Médio e o Norte da África, em português, ajude na des-construção de visões homogêneas sobre um mundo imaginado e na construção de um novo imaginário, plural, diverso, cheio de complexidades e nuances. Que o Oriente Médio deixe de significar somente petróleo, guerras, terrorismo e opressões para significar desejos, potên-cias, individualidades e alegria. Que se entenda que são so-ciedades formadas por religiosos, seculares, progressistas, con-servadores, ateus, muçulmanos sunitas e xiitas, sufis, cristãos, judeus, bahá’is, budistas, yoguis, artistas plásticos, cantores de rock, rappers, engenheiros, taxistas, professores, escritores, leitores, hackers, físicos, pais, mães, avós, netos, filhos, colegas de escola, vizinhos (daqueles inclusive a quem se pede uma xícara de açúcar emprestada). Enfim, uma infinidade de possi-bilidades tão iguais às nossas e a quaisquer sociedades e, ao mesmo tempo, tão diferentes e diversas.Nessa primeira edição, resolvemos nos aprofundar no tema dos refugiados sírios. Para que se tenha uma noção maior do conflito, a edição inicia com um panorama do que acontece na região, as configurações do problema na Síria e seus des-dobramentos, como a grave crise dos refugiados e a formação de grupos de oposição, incluindo o Estado Islâmico(pág. tal). Somado a isso, apresenta algumas reflexões relativas a esse grupo e os efeitos dos seus ataques em toda a região e, in-clusive, na Europa. Posteriormente, através de entrevistas com artistas e da opinião de especialistas, buscamos dar uma visão plural da situação dos refugiados no mundo e mostrar, a partir de diferentes viéses, como esses indivíduos deslocados vivem, sobretudo, nos países vizinhos, como a Turquia, o Líbano e os Emirados Árabes.Trazemos também uma pequena amostra do cotidiano desses refugiados no Brasil e revelamos algumas das motivações que os guiaram a esse país. Assim, desejamos revelar uma realidade que nos é tão próxima e vislumbrar outras formas de agir diante dessa situação: com compreensão, empatia e apoio.

Editorial | Página 02 e 03

Entrevista | Página 14

Entrevista | Página 11

Poítica | Página 07

Cotidiano | Página 18

Coluna | Página 16

Opinião | Página 22

Política | Página 05

Índice | Pagina 03

Conectar mundos, aproximar pessoas Porque as contradições internas do conflito sírio passam pelas fileiras de grupos fora do espectro ISIS versus forças pró-Bashar al-Assad

“A guerra em andamento não se dá apenas entre

EI e governo sírio. “

Os caminhos da Primavera

  Em  2011,  as  primeiras  cidades  sírias  a se  levantarem  em  protestos  contra  o  governo foram  aquelas  localizadas  em  áreas  periféricas,                     povoadas sobretudo por operários e trabalhadores rurais  que  pediam  por  liberdade,  mas  também por  justiça, pelo fim da corrupção e por melhores condições de vida, uma vez que  foram os setores da população mais atingidos negativamente pelas medidas econômicas liberais adotadas pelo regime de  Bashar  al-Assad,  no  poder  desde  2000.  Foram fatores internos, então, que levaram ao conflito.  Com o tempo, outras cidades tornaram-se palcos de protestos, até chegar aos grandes centros como Homs, Alepo e Damasco. No entanto, foram igual e brutalmente reprimidas pelas forças do re-gime. Naquele momento,  as  narrativas    governis-tas  descreviam  os  protestos  como  liderados  por agentes terroristas externos que tinham como alvo desestabilizar o país, sobretudo a partir de estímu-los ao sectarismo.

Políltica | Página 24

Revista DIASPORA surgiu como uma necessidade. Em tempos de atentados, conflitos e guerras, é preciso ir além do senso comum e aproximar oA esemaranhar os vários fios que enredam 

a atual guerra na Síria é uma tarefa com-plexa, pois para entender a guinada dosD

Conto | Página 27

Editorial da Revista Diáspora     Por Ana Maria Raietparvar 

Entre o apocalipse e a redenção       Por  Gisele Fonseca Chagas 

Os refugiados, a crise e a retórica da crise.

Por Fabrício Toledo de Souza

Vidas Suspensas Por Leila Lak

Dando sentido a uma vida sem sentido

Por Leila Lak

“Hóspedes” sírios na TurquiaPor Monique Sochaczewski 

Celular, comida e busca por tra-balho

Por Alexandre Facciolla

Muitas visões: Os Refugiados Sírios no Brasil

Por que nossa juventude está se juntando ao Estado Islâmico? Por Leila LAk

Chamada para a fugaPor Liza Dumovich

Editorial da Revista DIASPORA

Por Ana Maria

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Contexto | Página 06 Capa | Página 07

crise dos refugiados já era a maior desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com 42,5 milhões de pessoas fugindo de suas casas e, em três anos, o número cresceu em 40%. Em 2014, uma média de 42,5 mil pessoas por dia se  tornaram refugiadas,  solicitantes de refúgio ou deslocadas internos – um cresci-mento  quadruplicado  em  curto  período. Neste ano, o número de pessoas obrigadas a fugir deve ultrapassar os 60 milhões. Dos solicitantes de  refúgio, a maioria é  consti-tuída por crianças.  O  conflito  na  Síria  é  sem  dúvida  o mais grave, com impacto em todas as par-tes do mundo. O país  tem a maior popu-lação de deslocados internos (7,6 milhões) e também é a principal origem de refugiados (3,88 milhões,  ao  final  de  2014).  Os  sírios se  tornaram  a maior  população  refugiada sob mandato do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados)  e, desde 2011, tem sido o principal motivo do crescimento acelerado do número de des-locados.

O Afeganistão e a Somália vêm em seguida, sendo os países de origem de 2,59 milhões e 1,1 milhão de refugiados, respectivamente.  O contingente de refugiados equiva-leria ao 24º país mais populoso do mundo, se estes fossem contabilizados como uma só população. Ainda segundo o Acnur, as pop-ulações refugiadas e de deslocados internos cresceram em todas as  regiões do mundo, com destaque para 15 regiões atingidas por conflitos que se iniciaram ou se agravaram: Costa do Marfim, República Centro-Africana, Líbia,  Mali,  nordeste  da  Nigéria,  Repúbli-ca Democrática do Congo, Sudão do Sul e Burundi, na África, Síria, Iraque e Iêmen, no Oriente Médio, Ucrânia,  na  Europa e Quir-guistão e em diferentes áreas de Mianmar e Paquistão, no continente Asiático.  Na medida  em  que  as  rotas  para  a Europa tornam-se cada vez mais restritas e vigiadas,  os  países  da América do  Sul  sur-gem como opção para os deslocados, incluindo  os  sírios,  que  já  constituem  a maior população de refugiados no Brasil. O aumento dos fluxos de deslocados é atribuí-do à postura constituem a maior população de refugiados no Brasil. 

Nos últimos cinco anos, o número de pes-soas  pedindo  refúgio  no  Brasil  aumentou vertiginosamente. Foram feitos 25.996 pedi

Os refugiados, a crise e a retórica da crise. Por Fabrício Toledo de Souza

  É preciso destacar, contudo, que a guerra em andamento não se dá apenas entre Estado Islâmico e governo sírio – embora a mídia brasile-ira, em  linhas gerais,  tem como  foco narrativo as ações do EI, dado o imenso fascínio e horror que o grupo provoca nos corações e mentes globais.  Analistas  internacionais  reportam  que os conflitos entre o EI e o governo sírio têm sido   mínimos, com os dois lados tendo como alvo mais frequente  os  outros  setores  de  oposição  ao  re-gime, estes formados por inúmeros grupos –

  Pelo lado da oposição, as acusações eram de que o governo estava distribuindo desigualmente  a  violência,  mobilizando  a  lingua-gem do sectarismo religioso como forma de promover tensões e cisões nas demonstrações dos sírios contrários a ele. Apesar de inúmeros manifes-tantes ecoarem a uma só voz o slogan “Uma, uma, uma, a Síria é uma”, em pouco tempo, a polarização sectária, que não foi o leimotiv dos protestos, ocu-pou os espaços seguindo a militarização do conflito pela conquista do poder.  Em 2012, a guerra estava em aberto,     ar-rastando, em linhas gerais e de forma não unânime, a  maioria  sunita  para  a  oposição  e  as  minorias (alauítas,  xiítas,  cristãs  e  outras)  para  a  situação. No entanto, no próprio campo sunita sírio, encon-tram-se  apoiadores  do  regime,  incluindo  autori-dades religiosas e setores da alta burguesia urba-na. O entendimento desses processos só é possível considerando as relações de tensão e acomodação entre o governo do Baath (partido nacionalista ára-be surgido no pós Segunda Guerra Mundial) e o es-tablishment religioso sírio sunita desde a década de 1970, mas  sobretudo na Síria de Bashar al-Assad, conforme ressaltado pelo cientista político Thomas Pierret.

A retórica da crise de recursos não pode abafar as multidões que mostram, através de marchas de solidariedade, “o desejo por uma democracia universal e absoluta”.

O conflito na Síria é sem dúvi-da o mais grave, com impacto em todas as partes do mundo.

Foco errado no Estado Islâmico

tanto seculares, como o Exército da Síria Livre, quanto  islamitas,  como  os  que  formam  a Frente Islâmica. Todos esses grupos têm uma história e visões políticas próprias sobre suas ações.  Se  tomarmos  as  trajetórias  individu-ais  de  alguns  combatentes  como  ponto  de análise, veremos que há casos de rompimen-tos com seus grupos de origem e sua inserção em outros, seja por conta de projetos políti-cos  divergentes  ou  até  mesmo  pela  neces-sidade de buscar  uma melhor  estratégia  de sobrevivência, ainda que precária. Deserções e tentativas de deixar a Síria por parte desses militantes também são constantes.  Assim,  a  própria  dinâmica  do  con-flito,  as  interpretações  que  se  têm  sobre a  experiência  da  violência  e  os  diferentes  e divergentes  projetos  políticos  e  visões  de mundo que  foram  sendo  forjados  ao  longo do  tempo pelos combatentes, ou por quem está  vivenciando  cotidianamente  o  conflito, abrem caminhos para cisões e  rupturas que levam até mesmo a mudanças de posição e de expectativas a respeito da realidade vivida e, sobretudo, de uma Síria do porvir.  Como qualquer outro Estado-nação, a  Síria  é  uma  comunidade  política  que  é      diferentemente imaginada por seus cidadãos e que, em situações-limite como no caso da presente  guerra  civil,  os  posicionamentos  e tensões que a violência generalizada impõem produzem diferentes visões do conflito, numa escala que pode ir do apocalipse à redenção, para  ficarmos  apenas  com  essas  metáforas religiosas.  Nesse  caleidoscópio  político       movimentado pelo horror da guerra, também estão a nostalgia de um passado reimagina-do e a esperança de que a vida precisa con-tinuar.

Os conflitos entre o EI e o gover-no sírio têm sido mínimos, com os dois lados tendo como alvo mais

frequente os outros setores de oposição ao regime, estes formados

por inúmeros grupos – tanto seculares quanto islamitas

Entender o posicionamento que as vertentes religiosas tomaram

em relação ao regime só é possível considerando as relações de tensão e acomodação entre o governo do Baath e a elite religiosa sunita des-

de a década de 1970.

de  fato  uma  crise  humanitária  e   inegavelmente a maior das últimas décadas. Há quatro anos atrás, aÉ

O impacto da crise no Brasil

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Capa | Página 08

  A  crise  dos  refugiados  é  também uma crise da narrativa da própria crise: De que se trata afinal esta crise? Certamente, é  uma  crise  para  as  pessoas  obrigadas  a deixar suas casas, suas famílias, seus víncu-los, seus trabalhos, seus afetos e seus fu-turos. Uma crise para aquelas pessoas que                   testemunharam a morte de seus familiares e amigos, que carregam cicatrizes e dores. 

dos no ano passado, contra 1.165 em 2010 — um aumento de mais de dois mil porcen-to.  É o maior numero de  solicitações entre os  países  da  América  Latina.  Ainda  assim, o  número  oficial  de  pessoas  reconhecidas refugiadas  é  bastante  modesto:  são  7.946 pessoas,  de  81  diferentes  nacionalidades.  A  maior  parte  dos  refugiados  é  da  Síria  – com 2.077 pessoas reconhecidas refugiadas --  seguidos  dos  colombianos,  angolanos  e congoleses  (da  República  Democrática  do Congo).  Em  2014,  o  Brasil  teve  também  sua melhor  taxa de validação,  aprovando cerca de  88%  dos  pedidos  de  refúgio.  Em  2010, a  taxa  foi  de  38,4%.  O  aumento  poderia ser explicado, em parte, pelo alto índice de deferimento  dos  pedidos  feitos  por  sírios. Entretanto,  mesmo  excluindo  os  sírios,  a taxa permanece alta: 75,2% para os pedidos feitos  por  Segundo  declarações  do  repre-sentante do Comitê Nacional para os Refu-giados (CONARE), no final de 2014, cerca de 12 mil pedidos estavam aguardando  julga-mento. Para dar conta dos pedidos em an-damento - e dos novos que devem chegar - o governo  afirma que diversas mudanças estruturais  serão  feitas,  desde  contratação de pessoal, até reformulação da gestão dos processos e reavaliação do modelo decisórionacionais de outros países. Segundo  declarações  do  representante do  Comitê  Nacional  para  os  Refugiados (CONARE), no final de 2014, cerca de 12 mil pedidos  estavam  aguardando  julgamento. Para dar conta dos pedidos em andamento - e dos novos que devem chegar - o gover-no afirma que diversas mudanças estruturais serão  feitas, desde  contratação de pessoal, até reformulação da gestão dos processos e reavaliação do modelo decisório. 

 1° A criação e o aprimoramente de obstáculos nas fronteiras terrestres – como a criação de muros e fiscalização militar nas fron-teiras, como acontece atualmente na Hungria, Croácia e em outras partes da Europa – obrigaram os deslocados a buscar caminhos cada vez mais perigosos. Mais de 500 mil pessoas atravessaram o Mar Mediterrânio desde o início de 2015, em busca de proteção no continente europeu. Somente em setembro, foram mais de 160 mil pessoas, contra aproximadamente 34 mil no mesmo período do ano anterior. De acordo com dados oficiais do ACNUR, 2.980 pessoas morreram ou despareceram durante a travessia neste ano.

Capa | Página 09

Estados, pessoas e narrativas da crise

 Os refugiados estão sendo vítimas de práticas estatais absolutamente terríveis, como contenção em campos (como guetos) com privação alimentar, falta de condições básicas de abrigo, saneamento e saúde, deportação e contenção, classificação, etc. A morte de uma mulher por congelamento, no campo de campo de Baalbek, no Líbano, que abriga refugiados sírios e sofre com um rigoroso inverno na região (de acordo com o jornal turco Anadolu, disponível em http://www.aa.com.tr/en/life/syrian-woman-freez-es-to-death-in-lebanon-refugee-camp/83864) é a outra imagem emblemática desta crise.

  O número de sírios chegando ao Brasil tornou-se relevante sobretudo depois da aprovação da Resolução 17 pelo Conare eliminando exigências desnecessárias para  emissão de visto para as pessoas afetadas pelo conflito.  Segundo dados do Comitê e do Ministério das Relações Exteriores, cer-ca de 8 mil pessoas se beneficiaram deste visto especial. Em setembro de 2015, pou-cos  dias  depois  da  imagem do  corpo do menino Aylan Kurdi  ter circulado o mun-do, a resolução foi renovada por mais dois anos o que pode aumentar o número de sírios chegando ao País.

“Na medida em que as ro-tas para a Europa tornam-se cada vez mais restritas e vi-giadas, os países da América do Sul surgem como opção”

Ilustração mapa dos refugiados: fonte ACNUR.Foto: Sergi Cabeza.

Em 2014, o Brasil teve também sua melhor taxa de validação, apro-vando cerca de

88% dos pedidos de refúgio.

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Sujeitos em movimento

Se  os  refugiados —  ou  os migrantes  e  os sujeitos em fuga, de modo geral — fugiram em razão da ausência de democracia em seu país de origem, sua presença nos países de acolhida é um lembrete permanente da im-portância  de  democracia,  inclusive  no  que diz  respeito  a  quem  merece  cidadania  e quem decide sobre a cidadania.  A fuga, em si, não é apenas o fruto de um ato desesper-ado de vidas em risco. É também a irrupção de formas inteligentes de resistência contra a violência, a tirania, a opressão e à miséria. E quando as multidões de cidadãos se jun-taram  aos  refugiados —  seja  em  redes  de solidariedade,  como  acontece  em  várias partes do mundo, inclusive no Brasil, seja em marcha dentro  (e  cada  vez mais para den-tro)  das  grandes  cidades,  como  acontece hoje na Europa — elas não apenas preten-dem mostrar sua piedade e misericórdia. As multidões  em  solidariedade  e  em  marcha —  nacionais  enão-nacionais,  refugiados  e — estão demonstrando quenão-refugiados, migrantes  e  não-migrantes  uma  cidada-nia global  é possível. Que há o desejo por uma democracia  real  e  absoluta,  feita des-de baixo. Nem “razão de Estado”, nem crise, nem  piedade; mas  cidadania  universal,  em excesso, para todos.

Foto estraida do video: Lebanon: Winter Snowstorm (http://youtu.be/chTrI36rWSE) - UNHCR

O webdocu-mentário “Life

on Hold”, revela histórias de re-fugiados e como eles encaram e fazem a própria reconstrução de

suas vidas.

A Revista DIASPORA entrevistou a diretora Reem Haddad. 

Vidas SuspensasPor Leila Lak

  Como  filha  de  refugiados  pal-estinos,  Haddad  decidiu  no  início  de 2014  fazer  um  documentário  focando nos mais de um milhão de refugiados vindos da  Síria  em direção  ao  Líbano. Nesse momento, eles não estavam fa-zendo a perigosa viagem em direção a países da União Europeia e não eram o foco dos noticiários internacionais. Haddad e sua co-produtora Dima Gharbawi Shaibani (ela própria de uma família de refu-giados iraquianos) decidiram que essas histórias seriam melhor contadas em um webdoc-umentário (webdoc), no qual o espectador pudesse escolher as histórias a que gostaria de assistir e interagir com elas. “Os números são difíceis de processar e você esquece que essa guerra tem como alvo pes-soas reais, com vidas inteiras e que tiveram que deixar tudo para trás e se mudar para uma vida incerta”, disse em entrevista à Revista DIÁSPORA. Segundo ela, o motivo do projeto foi “conhecer de verdade as pessoas por trás dos números”, afirma Reem.A peça foi produzida ao longo de um ano e meio, com um ano inteiro dedicado somente ao trabalho em campo. “Life on Hold” tem como foco a vida de dez pessoas de diferentes origens socioeconomicas e faixas etárias. A série busca evitar a política, realçando, em vez disso, histórias individuais as quais incluem crianças, uma empresária, um ex-médico e um renomado poeta beduíno.

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Foto: Divulgação do webdoc “Life on Hold”

“O desafio da vidade fato aparece depois,

quando o refugiado chega a um novo país e tem que juntar os

pedaços para uma nova vida”.

Lá, suas vidas mudaram. Eles se deslocaram para assentamentos ilegais e, quando seu pai não conseguiu encontrar um trabalho que pagasse o suficiente para sustentar a familia, ele pôs Mohammed para trabalhar. Sua história é uma das muitas recontadas no webdocu-mentário ”Life on Hold”, da diretora Reem Haddad, publicado pela empresa internacional de comunicação Al Jazeera English. A história foi indicada, dentre outros prêmios, ao festi-val internacional de documentários de Amsterdam.

empre que alguém sai para brincar quando eu tenho que trabalhar, me dá von-tade de chorar,” diz Mohammed, um menino de 10 anos da cidade de Alepo, que fugiu com sua família da guerra na Síria buscando refúgiono Líbano. “S

É também uma crise para os que vivem hoje em precários campos de refugiados, abando-nados à própria  sorte entre  fronteiras  vigia-das ou expostas aos naufrágios no Mar Med-iterrâneo.   Os  Estados  têm  construído  uma  nar-rativa de crise de recursos. Certamente, uma grave crise para os países que estão receben-do milhares e milhares de pessoas, todos os dias.  Na  dimensão  que  ganha  hoje,  a  crise tem  sido  elaborada  principalmente  pelos países mais ricos, onde a chegada de refugia-dos,  embora  em  número  crescente,  ainda  é pequena  em  comparação  com  o  que  acon-tece nos países vizinhos aos conflitos — para ficar em apenas três exemplos, o relatório do Acnur mostra que a Turquia recebeu 1,9 mil-hão de sírios em quatro anos enquanto Líba-no e  Jordânia  receberam 1,1 milhão e 629,6 mil, respectivamente.    A crise, portanto, é composta de mui-tas  outras  crises,  paradoxos  e  nuances,  in-clusive  para  o  Brasil,  que  definitivamente passou  a  integrar  o  horizonte  dos  refugia-dos,  migrantes  e  deslocados  em  geral.  Se uma  dimensão  da  crise  é  a  emergência  e o  cresci  mento  dos  fluxos,  a  outra  é  a  im-posição de  formas de contenção dos fluxos. E não apenas através de barreiras e obstácu-los  materiais,  como  as  cercas,  os  muros  ou                                                               militarização  ostensiva  das  fronteiras,  mas também por meio da criação da imagem do que é um refugiado e sua distinção em relação aos migrantes. Na  disputa  de  narrativas,  os  classificados como  migrantes  (ainda  que  sejam  refugia-dos  e  ainda  que  esta  distinção  seja  repleta de muitas nuances)  são hoje  tratados  como mais uma das ameaças à segurança, à cultura e à identidadenacional. Dentro desta lógica, a questão dos migrantes é sempre tratada pela narrativa  de  invasão  ou  dentro  de  um  en-quadramento  do traficante de pessoas. For-mas de escamotear o problema e fragmentar a realidade.

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“O  objetivo  do  projeto  é  ver além dos rótulos,” diz Haddad. “Parte da narrativa do  refugia-do  é  a  perda  e,  embora  isso seja  importante,  tentamos não focar nessa narrativa, mas sim o futuro dessas pessoas”, detalha a  diretora.  A  jornada  para  um abrigo é, de acordo com Hadd-ad,  apenas  o  começo  da  vida de um refugiado. O desafio de fato  aparece  depois,  quando chega  a  um  novo  país  e  tem que  juntar  os  pedaços  para uma nova vida. 

Os refugiados não registrados vivem no Líbano em diversas locações, como fábricas e hos-pitais abandonados em Sabra e Shatila, o famoso campo de refugiados que abrigava pales-tinos e que, durante a Guerra Civil Libanesa em 1982, foi cenário de um famoso massacre. Nos campos informais, os refugiados têm acesso a alguma ajuda da ONU, mas os fatores externos não os favorecem. Estão expostos a um calor extremo no verão e a um frio extremo no inverno. “A experiência de ir aos campos informais abriu meus olhos,” diz Haddad. “No fim do dia, nós voltamos ao hotel, mas eles ficam lá e é preocupante quando você volta fresco, de ban-ho tomado e eles não podem fazer isso”, acrescenta.  “Life on Hold” mostra um panorama de vidas variadas. Haifa, uma empresária de sucesso com boa condição financeira, era proprietária de um hotel na Síria, mas tinha pouco tempo para sua família. Com o conflito, seu hotel teve que ser fechado. Com o stress e  a perda do trabalho de uma vida toda, seu marido morreu. Ela então foi para o Líbano com seus filhos, tendo dinheiro para alugar um bom apartamento. Haifa,  como muitos outros  sírios  com mais dinheiro, pôde passar um tempo nos bairros nobres de Beirute frequentando 

cafés e  restaurantes,  sem con-seguir,  no  entanto,  lidar  com sua perda.  Para  ela  foi  impos-sível se adaptar ao novo cenário ou  se  integrar.  Haifa    diz  que não  se  vê  como  refugiada.  Ela anseia por sua terra natal, mas através  da  perda  de  sua  vida               anterior ela afirma ter  redesc-oberto o amor por seus pais e sua  família,  pois,  ao  se  refugi-arem,  passaram  mais  tempo juntos  -  diferente  da  época em Damasco, quando levavam uma vida muito ocupada.  Foi a “primeira vez que eles se envolveram uns com os outros”, diz  Haddad.  A  diretora  disse ter  sido  inspirada pela história de Haifa,  que  falava  e  descre-via Damasco “com tanto amor, que ela cria uma linda imagem na sua mente”, acredita.

Oficialmente, há hoje pouco mais de um milhão de refugiados sírios registrados no Líbano, mas muitos permanecem não  registrados. Estimativas apontam que, em 2014, o número de refugiados chegou a aproximadamente dois milhões, com um quarto da população em território libanês. Um Estado pequeno e frágil como o Líbano está encontrando dificuldades para  lidar com esses números. Durante as filmagens, a maior parte dos  refugiados sírios encontrava abrigo nesse país, mas desde maio de 2015 o governo libanês deixou de aceitar novos refugiados. Os refugiados sírios estão espalhados por todo o Líbano. O país não ratificou a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, portanto o Alto Comissariado das Nações  Unidas  para  os  Refugiados  (Acnur)  organizou  campos  improvisados  sem  tendas apropriadas, uma vez que não estão autorizados a montar campos de refugiados oficiais. Dessa forma, não existem lá escolas ou outras instituições, como há em campos em países como a Jordânia ou Turquia. 

Conforme o conflito na Síria cria mais e mais refugiados, e estes se espalham pelo mundo, “Life on Hold” dá ao espectador uma visão sobre as pessoas por trás das manchetes de jornais e busca criar empatia por quem se encontra nessa situação. Como o renomado poeta beduíno Furati, que senta em um campo e vê seus filhos viverem sem ir para a escola. Para um intelectual, essa é um sofrimento indescritível. Mohammed, o menino de 10 anos que viu seu melhor amigo morrer ao pegar uma bomba achan-do que era uma bola de gude, sente saudades não apenas de seus amigos e de sua família na Síria, mas também de sua infância. “Há tanta perda,” diz Haddad e, citando um de seus entrevistados, diz: “As pessoas sonham com um futuro. Nós apenas sonhamos em voltar.” 

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Fotos: Divulgação do webdoc “Life on Hold”

Campos informais

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Dando sentido a uma vida sem sentido

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Por Leila Lak

Com  30  anos,  o  artista  sírio  foi  obriga-do  a  fugir  de  sua  terra  natal  e  começar uma nova vida no exílio em Dubai. Azzam foi  lançado à  fama  internacional quando seu  trabalho  intitulado  “Freedom Graffi-ti” (foto ao lado) se tornou viral nas redes sociais. Ele sobrepôs a  tela  “O Beijo”, de Klimt,  em  uma  fotografia  de  um  prédio sírio destruído. “Eu estava trabalhando em uma série em Damasco  antes  de  sair,  que  se  chamava ‘Série da Lavanderia’. Implicava em pegar roupas das ruas de Damasco e fazer co-lagens. Mas tudo isso acabou quando eu me mudei  para Dubai”,  relembra Azzam em entrevista por Skype à revista Diáspo-ra. “Eu não me preocupo com as pessoas aqui em Dubai como me preocupo com meu próprio povo.”“O  Beijo”,  uma  pintura  de  dois  amantes entregues em um beijo cercados por en-tornos  dourados  bizantinos,  é  uma  im-agem  que  evoca  amor,  desejo  e  prazer - algo muito distante dos prédios destruí-dos na Síria. Essa obra foi a última de uma série de fotografias que ele criou utilizan-do pinturas famosas. Azzam  afirma  ter  se  inspirado  na declaração do artista espanhol Francisco de Goya sobre sua pintura “Três de Maio de 1808 em Madri”,  na qual  ele diz que 80 pessoas foram mortas só naquele dia nas ruas da Espanha. “No nosso país, te-mos o Três de Maio todos os dias. Isso me fez pensar em como fazer uma declaração artística com sensibilidade sobre o que to-dos vêem todos os dias”, explica o  artista. 

Com  essa  ideia,  ele  começou  a  escolher pinturas  icônicas  relacionadas  ao  mesmo tema.  “Mona  Lisa”,  “O  Grito”  e  então  “O Beijo”. Azzam já era um artista consagrado em seu país.   No  começo  trabalhava  com pintura a  óleo  e  mudou  lentamente  para  design gráfico,  para  gerar  alguma  renda,  diz  ele. Ele  afirma  que  após  o  começo  das  revol-tas no Mundo Árabe se tornou uma pessoa diferente. “Você vê coisas que nunca imag-inou ver. Como, por exemplo, a morte estar perto todos os dias e isso se tornar normal”, 

Como  artista  de  grafite,  Azzam  se  diz  lim-itado em suas opções de técnicas,  já que o grafite  é  estritamente  proibido  em  Dubai. Em vez disso, Tamman faz stêncils [forma de grafite  de  aplicação  rápida,  com  uma  tela] em seu estúdio e manda para fora do país, onde seu trabalho é exibido em prédios em diferentes cidades, mais recentemente na ci-dade de    Saraievo.  “Meu  sonho é  ver meu trabalho de verdade em meu próprio país,” acrescentou. Tamman Azzam diz  ter certeza de que não poderá voltar ao seu país por pelo menos

Exportando stêncils

dez anos. Ele teme que a situação esteja se deteriorando e que as potências internacio-nais usem a Síria para seus próprios objeti-vos. Nesse meio tempo, ele mantém vivo o son-ho de seu país nas histórias que conta para sua filha de oito anos. Ele e sua esposa pas-sam  parte  do  tempo  tentando  explicar  a situação  para  ela,  além  de  explicar    como,  ainda que esteja perto, Dubai parece ser um mundo distante. A dificuldade aumenta, diz ele, quando não há nada de ruim acontecen-do em Dubai. 

o dia 5 de setembro de 2011, a  vida  de  Tammam  Azzam mudou para sempre. N

Artista plástico sírio refugiado em Dubai explica as mudanças em sua forma de criar e em como não consegue deixar de produzir para “fazer uma declaração 

artística com sensibilidade”.

Foto divulgação: Tammam Azzam Fotos divulgação: Tammam Azzam 

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sobre os ataques de 13 de novembro em Paris. Nesta fase ainda de conjec-turas, muito se fala do passaporte de um refugiado sírio encontrado  junto aos restos mortais de um dos terror-istas que se explodiu do lado de fora do Stade de France (estádio multi-uso construído na França para a Copa do Mundo de 1998). Ahmad Almoham-mad comprovadamente passou pela Grécia  e  pela  Sérvia.  Resta  saber  se de fato o morto era o refugiado sírio, mas  pairam  poucas  dúvidas  que  o verdadeiro Ahmad teria passado pela Turquia  para  chegar  à  Grécia.  Essa vem  sendo  a  rota  da  grande maio-ria  dos  refugiados  sírios  que  fogem desesperadamente do conflito  incia-do em 2011. Desde o início do conflito na Síria até agora,  cerca de 2 milhões e 200 mil sírios  entraram  em  território  turco. Aqueles  com mais  recursos  se  esta-beleceram em cidades mais afina

O drama sírio é tambémuma tragédia turca

Por Monique Sochaczewski

Kurdi,  vítima  de  um  acidente  com  um barco  e  cujo  corpo  foi  achado  numa praia  do  badalado  balneário  de  Bod-rum,  acabou  se  tornando  um  símbolo desses  refugiados  desesperados,  além de uma espécie de apelo que  fez com que  a  opinião  pública  internacional  fi-nalmente se desse conta de um drama que  os  turcos  –  assim  como  libaneses e  jordanianos  –  já  testemunhavam  há anos.   O  que  faz  com  que  não  quei-ram mais ficar na Turquia e se arrisquem em barcos precários e em longas mar-cha para chegar à Europa? Por que não pegam  afinal  os  voos  baratos  de  em-presas de baixo orçamento para capitais europeias? De que fogem com tamanho desespero? Está  cada  vez  fica  mais  difícil  achar moradia  e  trabalho  no  país,  frente  à quase saturação de refugiados (há ain-da cerca de 300 mil iraquianos no país). Fica  cada  vez  mais  claro  também  que não haverá uma Síria para onde voltar e então ficar próximo ao país natal, na esperança de que ele  se acalme, deixa de fazer sentido. Vale lembrar ainda que o inverno se aproxima. 

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das  culturalmente,  como Mardin,  no sudeste  turco. Outros  se  assentaram em cidades relativamente próximas à fronteira, como Gaziantep, inflaciona-ndo os preços de imóveis na região. Com o  tempo,  começaram  a  chegar aqueles  com  menos  recursos  e  se espalharam por todo o país, chegan-do mesmo em Istambul, onde não é raro  ver  refugiados  vendendo  miu-dezas,  se  exibindo  como  dançarinos ou músicos em troca de moedas em locais turísticos da cidade como Sul-tanahmet e  Istiklal Caddesi, ou mes-mo pedindo esmolas. Milhares vivem ainda  nos mais  de  vinte  campos  de refugiados.  Dois  terços  desta  popu-lação  é  de mulheres  e  crianças. Nos últimos  meses,  porém,  muitos  refu-giados  já  não buscavam mais  se  as-sentar na Turquia, mas passaram cada vez  mais  a  usá-la  como  passagem para chegar à Europa. Ultrapassaram a  pé  as  fronteiras  com  a  Grécia  e  a Bulgária,  ou buscavam desesperada-mente chegar às ilhas gregas em em-barcações precárias. O menino Aylan

território turco não é exatamente nova. Há um longo passado otoma-no de acolhimento de refugiados: judeus expulsos da Península Ibérica no final do século XV, em fuga dos pogroms russos no final do XIX e também do nazismo; circassianos sobreviventes de massacres no Cáucaso; nacionalistas poloneses e húngaros no século XIX; russos

Os refugiados, porém, vão a pé ou de barco para a Europa por causa da legislação que combate a imigração ilegal. Com base nela, as empresas aéreas que transpor-tarem imigrantes sem documen-tação adequada devem pagar todo o custo de levá-los de volta ao país de origem. Os refugia-dos, portanto, não passariam dos check ins nos aeroportos. Fogem com  tanto desespero,  so-bretudo, dos ataques de bombas de barril perpetrados pelo gover-no  de  Bashar  al-Assad  e  aliados. Fogem também do grupo armado Estado  Islâmico que, ao contrário do que este anuncia, não demon-stra com seu pretenso califado ser uma  alternativa  de  interesse  da população síria.

  Os  que  ficam  na  Turquia encaram  diversas  dificuldades, desde  a  lida  do  governo  em relação  a  estes  até  atritos  cres-centes com turcos. Trata-se de uma crise multinível. Se por um lado o governo  turco vem arcando com a quase  totalidade dos custos da absorção dos  refugiados  (a ajuda internacional, sobretudo europeia, tem começado a chegar mais am-plamente nos últimos meses, por conta  da  crise  no  último  verão de  lá),  por  outro  os  faz  vivenciar uma espécie de limbo jurídico. Os sírios  em  território  turco,  apesar de  claramente  serem  refugiados são  chamados  de  “hóspedes”.  A Turquia assinou a Convenção dos Refugiados de 1951 com limitação geográfica,  só  aceitando  como refugiados os que vinham da Eu-ropa. Se os sírios  forem reconhe-cidos  como  refugiados  o  Estado teria  que  arcar mais  amplamente com  sua  absorção  e  afins.  Re-cebem  proteção  temporária, mas não  têm  garantidos  residência legal  e  permanente,  e  melhores perspectivas  de  emprego.  Vale ressaltar que apesar de dramática, a questão atual dos refugiados em

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brancos  quando  da  Revolução  de 1917, entre outros tantos. A Repúbli-ca da Turquia  também foi  fundada com  refugiados  turcos  étnicos  ou muçulmanos  oriundos  de  Salônica, da Bulgária, de terras russas e com o fim da Guerra Fria acolheu búlgaros e bósnios. É importante reconhecer o  importante  papel  que  o  Império Otomano  no  passado  e  a  Turquia no presente representaram no acol-himento  a  refugiados  que  fugiam e  fogem desesperadamente de ex-pulsão,  perseguição,  massacres  e guerras.  Neste  exato  momento  o país vive uma fase de grande tensão

em  relação  aos  curdos  e  os  te-mores de que  a  tênue democra-cia  perca mais  forças  ainda. Não há, porém, como não reconhecer o  importante papel do país – do governo e da sociedade civil - em relação  aos  refugiados.  Embora não  se  possa  também  esquecer o quanto o fato de ter permitido a  porosidade  em  sua  fronteira tenha acabado por ajudar o Esta-do Islâmico a receber recrutas, eq-uipamentos  e  armamentos,  bem como  escoar  petróleo.  O  drama sírio é também enormemente um drama turco.

companhamos ainda as in-vestigações que trarão res-postas mais confiáveisA

Por conta de uma convenção assinada em 1951, a Turquia mantém os refugiados num limbo jurídico e os trata oficialmente por “hóspedes”.

É importante reconhecer o papel que o Império Otomano, no passado, e no presente a Turquia, representaram no acolhimento a refugiados fugidos de perseguições, massacres e guerras.

 Há passagens de   empresas como a      Pegasus por cerca         de 50 euros,          para as princi          pais cidades           europeias,          muito mais         baratas do que       os cerca de 2.500   euros que pagam a atravessadores.

“As empresas aéreas que transpor-tarem imigrantes sem documentação ade-quada devem pagar

todo o custo de levá-los de volta”

Fonte imagens: UNHCR

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o  elevador  constantemente quebrado  da  ocupação  Leila Khaled, , organizada pelo mov-imento  Terra  Livre  juntamente com o Mopat (Movimento Pal-estina  para  Todos),  no  bairro da Liberdade (SP), a impressão que se tem é de tranquilidade. Ao contrário dos dias da sem-ana (quando os habitantes são constantemente  procurados por  jornalistas  atrás  de  opin-iões  sobre  os  acontecimentos na guerra civil síria), os domin-gos têm sido o único momento de  descanso  para  os  cerca  de cem  refugiados – quase  todos palestinos  que  moravam  ou nasceram nos campos de refu-giados.  Há mais de três meses sem assistência direta do Esta-do,  compartilham  apartamen-tos,  sonhos de emprego e ex-periências  de  choque  cultural causadas  por  uma  adaptação às pressas nos  valores brasile-iros. Entre novas e antigas angústias que  carregam  consigo,  a  bus-ca  por  trabalho  é  a  que  mais preocupa  os  novos  habitantes da capital paulista. Os espaços de  50  metros  quadrados  dos quartos  -  a  maioria  sem  di-visórias - são divididos por pes

A  trajetória  de  fuga  dos  con-flitos  de  Othman  teve  início quase  que  ao  mesmo  tempo que a guerra, em 2011. Por um ano e meio ele se refugiou no Líbano,  pois  a maior  parte  do campo de refugiados Yarmouk, no  qual  morava,  fora  destruí-do. Exatos quatro anos após o início da guerra civil, em 20 de março de 2015, ele chegava em São  Paulo  em  busca  de  opor-tunidades e a pedido do irmão.

Hoje  ele  trabalha  como  cabe-leireiro  durante  a  semana  em uma barbearia no bairro do Sa-comã. A irmã e a mãe ainda es-tão na Síria. Enquanto ajuda o irmão (chefe de cozinha) a ser-vir petiscos árabes como faláfel e  homus  em  um  bar  (foto  ao lado)  com  música  ao  vivo  no bairro do bexiga, ele conta que “os brasileiros foram muito re-ceptivos,  tanto  pessoalmente quanto com meu trabalho”.

soas  com  os  mais  varia-dos  passados,  opiniões  e formações,  desde  aque-les              sem  nenhuma  for-mação  superior,  como  bar-beiros e cozinheiros, até um ex-gerente de hotel de  luxo em Abu Dhabi (Dubai) e um designer de interiores e pro-fessor  de  escultura.  Sejam                    especializados  ou  não,  as oportunidades que lhes apa-recem quase que  invariavel-mente estão

Celular, comida, e busca por trabalho

Sem uma política institucional adequada, refugiados sírios e palestinos dividem ocupação sem teto em São Paulo. 

relaciona  das  com  o  setor de bares  e  restaurantes de comida  árabe,  um  nicho encontrado e desenvolvido por  imigrantes sírio-libane-ses  que  estão  na  cidade há  duas  ou  três  gerações. É  o  caso  do  sírio-palestino Rami Othman,  de  30  anos, por  exemplo.  Cabeleireiro com mais de cinco anos de experiência, ele vive há oito meses na ocupação.

Celular na mãoEm  um  smartphone  bastante usado,  Rami  mostra  à  report-agem  fotos  enviadas  por  seus amigos que ainda vivem sua ci-dade natal. Yarmouk já teve 200 mil habitantes. Hoje, com 10% da  população,  apenas  prédios destruídos e escrombos tomam conta  da  pequena  tela.  Para  a maioria  dos  estrangeiros  na ocupação, os aparelhos móveis são itens indispensáveis para 

Ao  subir  pelas           escadas  do  prédio de dez andares com A

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Por Alexandre Facciolla

obter  informações.  Todos eles  utilizam  a  ferramenta para conversar e ter notícias de  amigos  e  parentes  que ficaram  no  território  defla-grado. O  artista  plástico  e músico Abed  Alsalm_Alsyyed,  de 53  anos,  recebeu  DIASPO-RA em um dia  de  semana, quando ele começara a tra-balhar  como  designer  de interiores há nos quartos).

exatos dois dias em um es-critório  na  zona  oeste  da capital  paulista.  Antes,  ele assava  doces  em  um  for-no  potente  instalado  no        ambiente aberto do aparta-mento (apenas alguns apar-tamentos com crianças têm tapumes nos quartos).De  cabelos  encaracolados e  aparentando  cansaço  do dia de trabalho, Abed tira o paletó enquanto mostra 

Foto Diego Torrão Foto: Diego Torrão

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alguns  de  seus  trabalhos  e fuma  cigarros  paraguaios um  atrás  do  outro.  Ele  re-sponde com  toda a paciên-cia  às  perguntas  digitadas e traduzidas por um serviço de internet de seu celular. É com ele que Abed conversa com  a  filha,  que  também  é artista  plástica  na  Síria.  Se-gundo ele, “essa guerra suja e a imigração forçada têm o consentimento do presiden-te”.Partindo de uma análise pró regime,  o  refugiado  sírio  e único não palestino do pré-dio,  Jad AbDulhamid, de 40 anos,  é  um  personagem  à parte.  Mesmo  expulso  por conta da guerra, ele é talvez o  único morador  do  prédio que  não  só  defende  o  re-gime  de  Bashar  Al  Assad, como afirma que “amo meu presidente”.    Segundo  ele, que mora no Brasil há cinco meses  –  dos  quais  três  na ocupação – a principal hipó-tese para a continuidade da guerra é que “Israel quer que a Síria seja enfraquecida”.

*Assad, em árabe, é leão. Hafez al-Assad, pai de Bashar al-Assad adotou esse nome durante os anos 50 e fazia parte do Ba´th (partido hegemôni-co).  

da  dificuldade  de  comuni-cação e da situação  instável dos  refugiados  para  con-tratá-los  por  salários  muito baixos.  Ele,  que  afirma  ter sido  gerente  de  hotel  em Dubai por 8 anos, chegou a trabalhar  11  horas  por  dia, sem descanso, por R$ 1 mil. Agora, ele acredita que está melhor,  trabalhando  como gerente  em  um  restaurante árabe  na  avenida  Paulista, centro da capital.

O  jovem  Mohand  (foto  ao lado, no centro), de 22 anos, passou  por  uma  situação bem parecida. Após a morte do pai, taxista que foi atingi-do por uma bomba,  ele  re-solveu  partir  sem  conhecer nada ou ninguém no Brasil. Segundo  Mohand,  apesar do medo de ficar muito tem-po sem trabalho, ele diz não querer trabalhar em nenhum lugar árabe. Isso porque tra-balhou  alguns  meses  para empresários  libaneses  que simplesmente não pagavam a  mão  de  obra.  Hoje,  vive com sua mãe, irmã pequena e o irmão na pequena comu-nidade  palestino-sírio  que tenta se reerguer.

Tanto  no  Rio  de  Janeiro quanto  em  São  Paulo,  or-ganizações  religiosas  como Mesquitas  e  Igrejas  Cristãs ligadas à comunidade árabe organizam  o  acolhimento  e doações para os recém-che-gados refugiados sírios.

Dificuldades com a velha comunidade

Sempre  sorridente  e  com um desenho de leão* acima de sua cama (“sou do signo de  leão”),  Jad apontou uma reclamação:  há  um  certo preconceito  por  parte  dos árabes  já  estabelecidos  na cidade, pois se aproveitam 

Fotos: Alexandre Facciolla.

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oportunidades  eram  muito  limitadas.  Se    tivéssem  nomes  que  remetessem  a  árabes, raramente encontravam trabalho. Até mesmo a aparência árabe trazia problemas. Uma piada popular mesmo entre jovens fran-ceses bem educados dizia que os únicos árabes bons eram aqueles afogando no Sena. Como muitos do centro de Paris, nunca tive motivos para me  aventurar  em Banlieus  -      subúrbio da cidade onde os conjuntos habitacionais do governo protegiam o centro dos pobres vin-dos do gueto, em sua maioria de origem ar-gelina. 

Por que nossa juventude está sejuntando ao Estado Islâmico?

Jornalista avalia os caminhos e possíveis saídas para os países da União Europeia e a        incógnita das causas que faz o jovem de ascendência árabe com plena cidadania 

aderir ao discurso do Estado Islâmico.

inclui a França, fazem desde agosto de 2014. Pouco foi conquistado com isso, e, aparente-mente, o Daesh usou esses ataques como pro-paganda  para  atrair mais  e mais  seguidores, muitos da UniãoEuopeia. A  França  teve  problemas  em  integrar  sua população  muçulmana  por  décadas.  Após  a Revolução Iraniana de 1979, minha família foi forçada a deixar o Irã, e eu cresci em Londres. Mas,  durante  a  década  de  1980,  eu  visitava minha avó francesa em seu apartamento, per-to da Torre Eiffel. Na casa dela, estava bastan-te protegida da realidade que as minorias en-frentavam no país. Eu  invejava meus amigos  iranianos  (os quais os  franceses  se  referem  como  “persas”)  que cresciam na França, em oposição à Inglaterra. Nós éramos muito integrados à cul-tura ocidental, por termos nascido em família ocidentalizadas,  mas  meus  pares/conterrâ-neos? Esses podiam se definir como franceses sem serem questionados por isso. Eu fui morar na  Inglaterra  com  5  anos  de  idade,  e  tinha poucas memórias  do  Irã, mas  não podia me denominar inglesa sem que me perguntassem “sim, mas originalmente você vêm de onde?”á  adolescente,  sempre  pensava  que  preferia ter crescido na França. Em meados da década de 1990, me mudei para  lá  e fiquei  chocada em como eram as relações raciais. Percebi que minha visão sobre a França sempre havia sido muito otimista. Minha geração de 20 e poucos anos de ascendência árabe reclamava que as

entre países. A maioria dos muçulmanos do mundo formam sua cultura não apenas pelo Islã, mas numa confluência do país, religião e influências da mídia internacional. Alguns deles atraídos pelo Daesh se radicalizaram em prisões, outros pela internet, onde se enfureceram  com as invasões ocidentais em lugares percebidos como “terras islâmicas” e são, na sua maioria, marginalizados em suas próprias sociedades. A essa combinação de fatores, somava-se a retórica em torno de cada ataque terrorista carregado em nome do Islã. Com um dis-curso subsequente de que toda a população muçulmana deveria pedir desculpas pelos atos de poucos extremistas radicais, jun-tado aos bombardeio a lugares no mundo islâmico, levara esses jovens diretamente àqueles que buscavam polarizar o mundo,      mergulhando no mundo Islâmico e na luta contra o que crêem ser os “infiéis que quer-em destruí-lo”. A política externa europeia agravou a del-icada situação da juventude marginaliza-da. Esta política inclui desde ataques com drones ao Paquistão e ao Iêmen, passa pelo apoio constante à Arábia Saudita (ignoran-do o apoio contínuo deste país a grupos islâmicos radicais), até o armamento na Síria de grupos de oposição desconhecidos, cuja maioria são grupos radicais sunitas. Toda essa conjuntura, unindo-se com a invasão do Iraque, deu a esta juventude o que acreditavam ser um propósito de vida. E uma oportunidade de lutar contra o que consideram ser o “mal”. Trabalhar em torno de uma paz viável na Síria poderia ajudar, mas talvez seja preciso que a Europa comece em casa a buscar uma maneira de assegurar ao menos à nova ger-ação de imigrantes pobres a sentir que eles têm uma participação em nossa sociedade, para que eles não queiram nos destruir. 

As centrais de inteligência acreditam que mais de quatro

mil jovens deixaram a Europa pela Sìria para jun-

tar-se ao Daesh.temor, mas  como  a muitos,  também  de  um terrível sentimento de inevitabilidade. Conforme as redes sociais e os noticiários tra-ziam informações sobre as vítimas do ataque de Paris,  era assustador  ver os  rostos  jovens que apareciam nas notícias. Como jornalista e diretora de documentário britânica de origem francesa e  iraniana, cobri notícias no Oriente Médio por mais de 15 anos, desde os ataques de  11  de  Setembro  (2001),  quando  pareceu que naquele dia o mundo mudaria para sem-pre.  Hoje,  olhando  para  trás,  vejo  que  sem dúvida mudou. Enquanto a França sepulta seus 129 mortos, o mundo luta para entender porque esse terrível evento aconteceu e o que pode ser feito sobre a ameaça que o Daesh*, o auto-denominado Estado Islâmico (EI), representa, não só para o Ocidente, mas para o mundo inteiro. Na  Europa  também  lutamos  para  entend-er por que nossa  juventude  se  sente  atraída em  juntar-se a uma organização que muitos de nós vemos como uma monstruosidade, e ainda voltam para atacar seus próprios países, nossos países. As centrais de inteligência acreditam que mais de quatro mil jovens deixaram a Europa pela Sìria para juntar-se ao Daesh.  O presidente francês, François Hollande, rap-idamente declarou estas práticas como “atos de  guerra”,  e,  dentro  de  48  horas,  enviou aviões  para  atacar  a  fortaleza  do  Daesh  em Raqqa (cidade do centro-norte da Síria). Mas essa estratégia apenas  repete o que os alia-dos, liderados pelos Estados Unidos e que

uando  surgiram  as  notícias  do  dia 13 de novembro  sobre os ataques em Paris, meu coração se encheu deQ

Brutalidade policial

A brutalidade policial, como demonstrada no filme divisor de águas “O Ódio”, ajudou a segregar a juventude. Mais recentemente, a proibição da Burca foi vista como um ataque direto à cultura desses jovens. O crescimento da Frente Nacional, partido de extrema direita francês sob a direção de Marie Le Pen (foto) segregou não só os muçulmanos, mas muitas minorías étnicas. Isso não é, de forma alguma, uma justificativa para o massacre ocorrido em Paris. A França se orgulha por ser um Estado laico e deve ser parabenizada por isso. As es-colas públicas não permitem nenhum aparato religioso, e mesmo tribunais religiosos não são permitidos. Infelizmente, para muitos jovens muçulmanos desfavorecidos, a interpretação estrita do secularismo se contrapõe com a base do Islã, uma religião a qual requer a seus seguidores vivam sob seus preceitos acima de outras instituições estatais. Esse não é, no entanto, o “choque de         civilizações” previsto por Samuel Hunting-ton, (influente cientista político). O autor              preconiza que as próximas guerras em um mundo pós-queda do muro de Berlim se daria entre culturas, em especial o conflito entre o Islã e países ocidentais, e não mais

* Daesh: Daesh é a expressão literal não traduzida do auto-denominado Estado Islâmico ou ISIS, a sigla de Is-lamic State of Iraq and Syria. Passou a ser utilizada por alguns Estados europeus e EUA como forma de repúdio simbólico, por não reconhecer o grupo como um Estado e nem como porta-voz do Islã. 

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Por Leila Lak

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Muitas visões: Os Refugiados Sírios no Brasil

O número de refugiados sírios no mundo figura em torno de 4 milhões de pessoas.No Brasil, o número oficial é de 2100 pessoas.

Por Igor Paes Leme Lellis do Lago

atores sociais e as mais diversas variáveis de sentido para o conflito, o que  implicaría na incerteza  em  relação  a  sua  duração  e  aos seus  desdobramentos.  Sob  violência  cada vez mais intensa, criou-se um quadro de in-segurança  crescente  para milhares  de  pes-soas que se viram imersas em um conflito ar-mado de grandes proporções. Nesse conflito que completará cinco anos, a Síria se tornou cenário de uma grave crise humanitária com fortes implicações regionais.

A constante sensação de insegurança resul-tou no deslocamento de populações,  tanto no  interior da própria Síria  como para  fora do país. De acordo com dados da ONU e do Observatório  de Direitos Humanos  da  Síria (agência de comunicações específica sobre o tema e gerida por um homem sírio baseado na Inglaterra há 15 anos), estima-se que 

esde 2011 a Síria presencia uma guerra  civil  em  larga  escala,  en-volvendo um grande número deD

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Ao chegarem no Brasil, os desterrados insta-lam-se  principalmente  em  São  Paulo  e  Rio de Janeiro. Aqui, reconfiguram suas vidas e produzem diferentes  tipos de memória so-bre a Síria, se posicionando de acordo com as  múltiplas  interpretações  sobre  a  guerra que devasta seu país de origem.

Adel Bakkour,  jovem refugiado de 22 anos, estuda química na Universidade Federal do Rio de Janeiro(UF-RJ), conversou com a Re-vista Diáspora portando orgulhoso  em  seu pescoço um pingente com os contornos do território sírio sob o pano de fundo da ban-deira oficial síria.

Bakkour afirma que chegou ao Brasil acom-panhado de seu irmão e por intermédio da irmã que já vivia no Brasil. Adel possui uma interpretação  peculiar  sobre  a  guerra:  sen-do  ateu  e  tendo  participado  das  primeiras manifestações contra o regime de Bashar al Assad, Adel vê a origem do conflito em uma questão sócio-política.

Ele avalia que as partes mais marginalizadas da população  vão  às  ruas  contra o  regime sob o olhar cético dos mais abastados. En-tretanto, Bakkour entende que a religião se apropria deste momento,  reconfigurando e dando  novos  sentidos  para  o  conflito.  Se-gundo ele, a política deve se “utilizar da re-ligião para atingir seu ponto”. 

Já  em  São  Paulo,  homens  e  mulheres recém-chegados da Síria são acolhidos prin-cipalmente por instituições religiosas muçul-manas  e  cristãs.  A  Oásis  Solidário,  organi-zação  não-governamental  (ONG)  originada na Mesquita do Pari, tem sua sede no tradi-cional bairro comercial do Brás em

entre  250  mil  a  330  mil  pessoas  tenham morrido nos últimos cinco anos. 

Com uma população total estimada em 22 milhões  de  habitantes  antes  da  guerra,  o país  tem  hoje,  segundo  a ONU,  cerca  de 7,6 milhões  de  deslocados  internos  e  3,9 milhões de refugiados no exterior.

Muitos  sírios  obtêm  asilo  em  campos  de refugiados  situados  principalmente  em países  vizinhos  como  Turquia,  Líbano  e Jordânia.  Uma  grande  percentagem  tam-bém reside no Iraque e no Egito, enquanto outros tentam chegar ao continente euro-peu, EUA, Canadá e países da América Lati-na, como o Brasil.

São Paulo e Rio de Janeiro: principais destinos

Muitos dos refugiados escolhem vir para cá por conta da facilidade de entrada no país, bem como à abertura do governo brasileiro em aprovar a solicitação de asilo a sírios. O país é signatário dos principais tratados in-ternacionais de direitos humanos e possui uma lei de refúgio (nº 9.474/97) que con-templa as principais resoluções regionais e internacionais  sobre  o  tema  e,  com  a  in-tensificação do conflito no Oriente Médio, aprova  todos  os  pedidos  de  refugiadoss sírios para o país.

De  acordo  com  os  dados  da  Acnur  (Alto Comissariado  das Nações Unidas  para  os Refugiados) e do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), o número de refugia dos sírios no mundo figura em torno de 4 milhões de pessoas. No Brasil,  é de cerca de 2100 pessoas.

Apesar da facilidade de entrada no País, os sírios sofrem com a falta de um amparo organi-zado por parte do governo brasileiro, o que deixa

estas pessoas à própria sorte...

...ou deixados aos cuidados de instituições de cunho re-ligioso médio-oriental, como

igrejas ortodoxas e mesquitas - e da Igreja Católica, no caso da instituto Cáritas de São Paulo

e Rio de Janeiro.

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rentável chamado “comida árabe”.

Apesar da facilidade de entrada no País, os sírios sofrem com a falta de um amparo or-ganizado por parte do governo brasileiro, o que deixa estas pessoas à própria sorte ou deixados aos cuidados de instituições de  cunho  religioso  médio-oriental,  como igrejas ortodoxas e mesquitas - e da Igreja Católica, no caso da instituto Cáritas de São Paulo e Rio de Janeiro.

Este contexto produz, inclusive, o desejo de muitos em tentar sair do Brasil para chegar à  Europa  ou,  até mesmo,  retornar  a  Síria. O  ato  de  buscar  lembranças  que  produ-zam um novo  sentido para  suas  vidas  no Brasil  revela  a  esperança de  construir  no-vas  etapas  para  suas  trajetórias  longe  da violência da guerra e de sonhar com uma Síria livre.

São Paulo, local onde se manifestam a het-erogeneidade e a profusão de línguas dos seus muitos imigrantes, desde bolivianos e coreanos até sírios, palestinos e libaneses.

Apoio material e imaterial da cultura

Além de  tentar  auxiliar  os  refugiados das mais variadas formas – como a distribuição de doações e encaminhamento dos recém chegados para o primeiro emprego, o Oá-sis  promove  confraternizações  que  visam estabelecer  vínculos  entre  os  muitos  re-fugiados sírios da cidade e áreas vizinhas. Estas reuniões promovem momentos para se lembrar da Síria, nas quais os refugiados buscam lembranças com intuito de recriar sentidos para suas trajetórias no Brasil. As sim, aquilo de antes era uma simples tarefa culinária em seu país de origem se transfor ma, no Brasil, em algo extremamente

Chamada para a fuga Por Liza Dumovich

Um breve recuo e me salvo, mas até quando não sei. Es-barro no corpo imóvel e caio na  cama  novamente.  A  ab-lução! Eu me levanto, entre-tanto, a chamada que ouço não é para a oração do fajr: pedem sangue pelo alto-fa-lante,  alguém  fora  atingido e precisa de doadores. Mais uma vez não posso ir.      O  sol  começa a dar à  luz o dia,  mas  ainda  não  consi-go  ver  o  minarete.  Penso no  cheiro  da  poeira  dom-inante,  na  aspereza  seca do  dia,  enjoo.  As  janelas                              ficariam  melhor  fechadas. Preciso fazer ablução. Corpo mole, cambaleio. Ainda tem tempo, me sirvo de mais al-guns segundos. Vou me  levantar, mas  a  luz já é demasiada e uma nova contração  das  pupilas  me impede de qualquer coisa. Permaneço  deitada  ao  lado do  corpo,  o  imóvel.  Já  não me lembro de quanto tempo ele está ali. Não lembro que dia é hoje. Houve estrondos, mas  ultimamente  é  quase tudo o que se ouve. Torno a buscar  a  janela,  o minarete ausente. Quero  falar, mas o som sai seco, é a poeira, é o Côtes de l’Oronte 2006.

É 2013, abril, talvez 25.

sueco.  Ignoro  de  onde  é. Vem da Áustria e fala inglês, mas  não  importa.  As  tatua-gens,  um  relevo  negro  na pele alva, os dedos da mão esquerda  tocam  o  chão. Parece que ele vai ficar.“Allahu akbar, Allahu akbar”. Preciso fazer ablução. Nova-mente  meus  olhos  buscam a  janela,  ainda  a  ausência. Não,  não  pode  ser  –  que dia é hoje? O vento espalha ainda mais o jornal que meu braço não alcança. Côtes de l’Oronte 2006.Os pés  tocam o  chão  e me percorre um arrepio. Do par-apeito,  não  há minarete  al-gum, me debruço e vou cair. 

Conto | Página 27

Ilustação contra capa: Soli e Lune - Piero Fornasetti

primeiras horas me desperta a seu lado. Pouco me lembro da noite que ainda não ter-minara  –  páginas  soltas  do jornal  dormido  pelo  chão,  o chá frio em cima da mesa e  a metade  cheia da última garrafa de Côtes de l’Oronte 2006. Aqui dentro, o abajur é fraco; do lado de fora, a es-curidão. Procuro o minarete, mas  vejo  o  vazio  de  Alepo. Por um momento, duvido de onde estou.Ele dorme como morto, pe-sado e espaçoso. O nome é italiano, mas parece um

“A llahu  akbar,  Allahu akbar”.  A  chamada para a oração das

Contexto | Página 26

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