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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de História Programa de Pós-Graduação em História Social Escrevendo a pis de cor: Infância e história na escritura de Guimarães Rosa Camila Rodrigues (versão corrigida) São Paulo 2014

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Universidade de São PauloFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de HistóriaPrograma de Pós-Graduação em História Social

Escrevendo a lápis de cor:Infância e história na escritura

de Guimarães Rosa

Camila Rodrigues

(versão corrigida)

São Paulo2014

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Camila Rodrigues

Escrevendo a lápis de cor:Infância e História na escritura

de Guimarães Rosa-* o exemplar original encontra-se disponível no CAPH da FFLCH

Tese apresentada ao Programa dePós-Graduação em História Social do

Departamento de História, da Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Humanas

da Universidade de São Paulo, para aobtenção do título de Doutor (a) em História.

Orientador: Prof. Dr. Elias Thomé Saliba

De acordo: ---------==-=-=-------~---

São Paulo2014

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Camila Rodrigues

Escrevendo a lápis de cor:Infância e História na escritura

de Guimarães Rosa

Tese apresentada ao Programa dePós-Graduação em História Social do

Departamento de História, da Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Humanas

da Universidade de São Paulo, para aobtenção do título de Doutor (a) em História.

Orientador: Prof. Dr. Elias Thomé Saliba

São Paulo2014

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Escrevendo a lápis de cor : Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 1

RESUMO

Pensando nas relações entre História e Literatura, propomos uma consideração acercada escritura, compreendida como um elemento da construção ficcional que atua comoinstância mediadora, relevando as questões em torno da ficcionalidade enquanto umoperador que nos permite contemplar certos procedimentos rosianos – dentre os quais,por exemplo, o fato de o autor utilizar o lápis de cor , a fim de destacar a funçãotransitória e imaginativa do texto, aspecto que inspirou o título desta tese. Durante adécada de 1960, a escritura de João Guimarães Rosa começou a ganhar novos tons emrelação à produção que tinha sido publicada até então, visto que ele passou a escrevertextos mais curtos, com linguagem mais condensada, desenvolvendo o que eledenominou de Estórias. Como gênero narrativo curto, próximo da anedota, as estóriascontrapõem-se diretamente à grande narrativa da História, já que nelas as noções detempo e de direção, assumidas pela historiografia tradicional, são sempre postas emxeque, sendo que tal questionamento pode aparecer através da proximidade com algunstemas que também são contrários à perspectiva linear, tal como a infância. Visandotanto problematizar essas instâncias como nos aproximar da própria construção daescritura rosiana, além de publicações de Rosa – como algumas estórias selecionadas e acorrespondência desenhada que manteve com a neta de pouca idade Vera Ooó –, foiconsultado especialmente o conteúdo do acervo do autor disponível nos arquivos doIEB e da Fundação Casa de Rui Barbosa, notadamente os seus Cadernos manuscritos,nos quais foram flagradas diversas referências à infância e à maneira das criançaslidarem com a linguagem, aspecto que nos permitiu visualizar imagens difusas daligação entre infância e História naquela escritura.

PALAVRAS–CHAVE: Guimarães Rosa. História. Literatura. Infância. Linguagem.

Oralidade.

ABSTRACTConsidering the relationship between History and Literature, this research proposesviewing the writing process as part of the construction of fiction, and as mediator in thisrelationship.During the 1960s, the writings of João Guimarães Rosa started changing, ifcompared to what had been published until then. He began to write shorter texts, withmore succinct language, which he named Estórias (stories). Being very short narratives,quite similar to anecdotes, the Estórias directly oppose the grand narrative of History. Inthe Estórias, the notions of time and direction offered by Historiography are alwaysquestioned, through their proximity with themes that are essentially opposed to a linearperspective, such as childhood.To reflect upon this, and get in touch Rosa’s writingprocess, as well as his publications, such as some selected Estórias and some letterswith drawings that he exchanged with his granddaughter Vera Ooó (who was a child atthe time), we consulted the content of archives from IEB and Fundação Casa RuiBarbosa. A special part of this material are Rosa's handwritten notebooks, that allow usto visualize traces of the connection between childhood and History in his work,and where we can find several references to childhood and the special way in whichchildren deal with language.

KEY-WORDS Guimarães Rosa. History. Literature. Childhood. Language. Orality.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 2

Aos historiadores e professores

Elias Thomé Saliba e Nicolau Sevcenko (em recordação)Que me ensinaram a sempre ver a História como se fosse a primeira vez...

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 3

“...Quando eu tinha seis anosNão pude ver o fim da festa de São João

Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo...”

Manuel Bandeira – Profundamente

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 4

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais Hermelindo e Regina pela minha infância, pela minha História. Meumuito obrigada às crianças da família, em especial minhas sobrinhas Isabella e Marilia, queforam e ainda são minhas menininhas, mesmo depois de terem crescido tanto...

Obrigada à Escola Lumiar de São Paulo e ao Projeto Piá da FE/USP, que em momentosdiferentes, me proporcionaram conviver com Guimarães Rosa e as crianças. Em especial deixoo meu ‘muito obrigada’ a todos os meninos e meninas que brincaram comigo e com Rosa;especialmente agradeço Vera Tess e Beatriz Tess, pela disponibilidade e pelos ricosdepoimentos concedidos.

Agradeço as Equipes da Fundação Casa de Rui Barbosa e do IEB; a equipe das BibliotecasFlorestan Fernandes,Mario Schenberg,Viriato Correa e do SESC Pompéia;aos funcionários doSetor de Pós-Graduação da FFLCH. Pessoalmente, agradeço o apoio técnico de Thiago Ricarte;Caio M. Marabesi; Mariana Newlands; Ligia Amélia; Luciana Antonini Shoeps;.

Esta investigação veio se construindo desde há muitos anos e muitas pessoas ajudaram aalimentá-la, como não posso nomear a todos, destaco algumas que foram marcantes: a profa.Marcia Mantovani - a dona Márcia -, que ainda na minha infância me “ensinou a achar bonita apalavra escrita”; ao Bernardo Brayner, que me presenteou com Ooó do vovô e abriu um poço deencantamentos e possibilidades; Equipe da Aliança pela infância, cujos Fóruns me ensinaramsobre temas infantis; aos apaixonados por crianças como Fernanda Duarte; Alexandre Tundisi eem memória Danilo Donzelli Alves (Danilão); ao Elomar Figueira de Melo, que me apresentouo primeiro estranhamento de linguagem de que tive consciência: minha “música uterina”;

Agradeço aos colegas pesquisadores da pós-graduação:na FFLCH: Rafael Scopacasa;MariaMargareth dos Santos; Lidiane Soares Rodrigues; Sonia Teller; Ana Karicia M. Dourado;Marina Soares; Ana Carolina Sá Telles; no arquivo IEB:Aline Novais; Thiago Mio Salla; naUnicamp: Rafael Zerbeto e Juliana Santos; na UFMG Mariana de Moraes Silveira, PedroLüscher, Thiago Lenine e Cléber C. Cabral. Minha gratidão especial aos pesquisadoresrosianos: Gisele Madureira Bueno; Vera Theodósio; Erich Soares Nogueira; Bruno F.LontraFagundes; Amanda Teixeira da Silva; Monica Gama; Nathalia Sanglard; Fábio Flora;

Agradeço a todos os participantes do Grupo de Estudos sobre Cultura da FFLCH/ USP; aosmembros do Grupo de Trabalho História da Infância e Juventude – ANPUH/SP; aospesquisadores dos Seminários sobre História e Humor, na FFLCH/USP;

Sou grata aos professores Nicolau Sevcenko; Adélia Bezerra de Meneses; Luiz Costa Lima;Willi Bolle; Ettore Finazzi Agrò; Olga Brites;Eduardo Nunes; Silvia Ambrosis PinheiroMachado; Luiz Tatit e aos membros da banca de qualificação: Roberto Zular e Patricia TavaresRaffaini.

Toda minha admiração, gratidão, carinho e respeito a Elias Thomé Saliba, que meu mestre eorientador, a quem só posso agradecer por ter me acompanhado esses anos todos na pós-graduação e possibilitado a realização do meu sonho de estudar Guimarães Rosa e História,sempre tirando uma anedota na manga, afinal “nada é tão sério assim” ...

Finalmente deixo um agradecimento à Guimarães Rosa e às crianças

Esta pesquisa recebeu fomento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico - CNPQ no primeiro semestre de 2011; e da Fundação de Amparo à Pesquisa doEstado de São Paulo - FAPESP, entre 2011 e 2014.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 5

SUMÁRIOUma escrita no caleidoscópio e as relações entre História e Literatura .................... 7

Capítulo 1: História e Literatura através da escritura de Guimarães Rosa ..................... 12

1.1 Relações entre História e Literatura .................................................................................. 12

1.2 Ficção: teóricos do século XIX e XX................................................................................ 16

1.3 Ficcionalidade: um fazer de ficção, performances ............................................................ 21

1.4 Escritura de Guimarães Rosa: História. Fictâncias. Estórias. ........................................... 23

1.4.1 Escrevendo como se fosse na infância ....................................................................... 30

Capítulo 2: A Infância e as linguagens infantis no mundo de Guimarães Rosa............. 36

2.1 Sobre as infâncias e a cultura “aletrada” ........................................................................... 36

2.2 Relação de Guimarães Rosa com Vicente Guimarães ..................................................... 59

2.2.1 A Última aventura do Sete-de-Ouros ......................................................................... 72

2.3. Relação de Guimarães Rosa com as infâncias ................................................................. 78

2.3.1 Ooó do vovô............................................................................................................... 80

2.4 Infância como experiência cultural ................................................................................. 117

Capítulo 3: Os Cadernos e a escritura caleidoscópica de Rosa ...................................... 119

3.1 Caderno: Espaço Escritural do sec. XX .......................................................................... 128

3.1.1 Cadernos de Estudo para a obra: Fundo JGR > IEB/USP........................................ 134

3.1.2 Cadernos de anotações: Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) ........................... 160

3.1.3 Cadernos de anedotas: Fundo ACGR > IEB/USP.................................................... 167

3.2 Escrita Caleidoscópica de Guimarães Rosa .................................................................... 181

Capítulo 4: As quatro meninas das estórias................................................................ 183

4.1 Nhinhinha........................................................................................................................ 186

4.1.1 Outras representações de Nhinhinha ........................................................................ 193

4.1.2 Fortuninha crítica de A Menina de lá ....................................................................... 195

4.1.3 Interpretação: Passarinho-verde pensamento ........................................................... 199

4.2 Brejeirinha....................................................................................................................... 204

4.2.1 Outras representações de Brejeirinha ....................................................................... 213

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 6

4.2.2 Fortuninha crítica de Partida do audaz navegante .................................................. 215

4.2.3 Interpretação: Deduzidos de babinhas...................................................................... 218

4.3 Fita Verde........................................................................................................................ 225

4.3.1 Outras representações de Fita Verde ........................................................................ 228

4.3.2 Fortuninha crítica de Fita Verde no cabelo: a nova velha estória ............................ 230

4.3.3 Interpretação: Fome de Almoço............................................................................... 233

4.4 Djaiaí ............................................................................................................................... 241

4.4.1 Fortuninha crítica de Tresaventura .......................................................................... 246

4.4.2 Interpretação: A doença de crescer .......................................................................... 251

Capítulo 5: Os periódicos e a escritura rosiana: Laboratório e recepção ...................... 266

5.1 Guimarães Rosa como autor de periódicos na década de 1960....................................... 268

5.1.1 “Guimarães Rosa conta”, em O Globo em 1961...................................................... 269

5.2. Faces da recepção publicada em periódicos e selecionada por Guimarães Rosa........... 282

5.2.1 Faces da recepção de Primeiras Estórias (1962), selecionadas por Rosa..................... 282

5.2.2 Recepção selecionada de Tutaméia (Terceiras Estórias) (1967) ............................. 318

5.3 A formação de um imaginário de escritura e de leitura das estórias que Guimarães Rosapublicou nos anos 1960......................................................................................................... 326

Um último giro no caleidoscópio ............................................................................... 328

Referências e listas...................................................................................................... 335

ANEXOS ..................................................................................................................... 355

ANEXO A – ARTIGOS SOBRE INFÂNCIA EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS ................... 355

ANEXO B - ARTIGOS SOBRE INFÂNCIA EM TUTAMÉIA (TERCEIRAS ESTÓRIAS)........................................................................................................................................... 396

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 7

Uma escrita no caleidoscópio e as relações entre História eLiteratura

Buscar um lugar legítimo para a História na obra do escritor mineiro João

Guimarães Rosa (1946-1967) foi o objetivo de uma larga pesquisa na área de História,

que começou a desenvolver-se em nosso mestrado, realizado entre 2005 e 2009

(RODRIGUES, 2009). Naquela primeira fase, descobriu-se um incômodo declarado por

Rosa em se sentir preso pelo “peso da temporalidade” (LORENZ, 1991, p. 84). Ainda

que de forma oblíqua e peculiar, ao propor tal questionamento, Rosa alinhava-se às

reflexões a respeito do tempo e da narrativa, propostas pelos próprios historiadores a

partir da segunda metade do século XX (GALLANGHER; GREENBLATT, 2005).

Um levantamento histórico-bibliográfico acerca da maneira pela qual o tema

História foi abordado pela crítica rosiana nos mostrou que, quando iniciamos nossa

investigação em 2005, pensar a História como um assunto literário de Guimarães Rosa

já contava com certa tradição, já que tal tema foi apontado, ainda que indiretamente,

desde os primeiros comentários críticos que o autor recebeu (CANDIDO, [1947] 1983).

Na década de 1970, logo após a morte do autor ocorrida em 1967, as interpretações

daquela escritura continuaram a suscitar essa preocupação, ainda que de modo difuso

(CANDIDO, [1964] 1983, [1970]; GALVÃO, [1972] 1986), enquanto que na década de

1980, as leituras rosianas deixaram de lado tal preocupação, preferindo apostar

unicamente em análises estilísticas, estruturais ou filosóficas (cf. BOLLE, 2004, p. 19-

20)1. Foi a partir da década de 1990 que a crítica rosiana iniciou uma discussão analítica

mais objetiva no que tange às relações entre aqueles textos literários e a História, a

partir de um debate de ideias sobre o tema da ficção – colocado então como um discurso

mitológico – e sua relação com o retrato histórico-social no romance Grande Sertão:

Veredas, travado pelos artigos de Davi Arrigucci Junior (1994) e de José Antonio Pasta

Junior (1999). Depois desse momento, até o início dos anos 2000, a História assumiu

papel importante na crítica rosiana, especialmente através de leituras que procuravam

estabelecer algum alinhamento entre o discurso tradicional da História e o texto rosiano,

como nos trabalhos de Heloísa Starling (1999) e de Luiz Roncari (2004). No mesmo

1 Os textos rosianos da primeira fase de sua escritura que mais receberam a atenção da crítica foram oslivros Sagarana (1946) e Grande Sertão: Veredas (1956). Remetemos nosso leitor ao apanhado darecepção crítica de Grande Sertão: Veredas, efetivado por Bolle (2004, p. 19-20), que pode nos iluminaros fluxos das leituras críticas de Rosa através das décadas. Já acerca do posicionamento da crítica rosianaa partir da década de 1990, a interpretação aqui tecida é nossa.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 8

período, entretanto, foi publicada a interpretação de Grande Sertão: Veredas

desenvolvida por Willi Bolle (2004), em cuja obra lemos a primeira interpretação do

texto de Rosa na qual a História aparece mais afastada do texto tradicional da

historiografia, abrindo, então, novos vislumbres da relação temporal presente na escrita

de Rosa, além de probabilidades interpretativas diferenciadas terem ganhado maior

notabilidade – dentre elas a possibilidade de relacionar a escrita rosiana e a perspectiva

infantil (RODRIGUES, 2009, p. 135), tema que escolhemos para a presente tese,

dedicada ao estudo dos textos escritos na década de 1960, período que chamamos “Rosa

das estórias” e que ainda recebeu um número limitado de interpretações. Tomado esse

contexto geral, cabe-nos destacar que nos anos 2000, para além das leituras de críticos

literários, também os historiadores passaram a considerar os textos de Guimarães Rosa

como objetos de pesquisa (RONCARI, 2004; THEODOZIO, 2005; RODRIGUES,

2009; SILVA, 2011).

Nesse sentido, neste trabalho acerca da escritura de Guimarães Rosa, propomos

dar prosseguimento aos estudos sobre o autor desenvolvidos pelos historiadores

apontados acima, mas aqui levaremos em conta uma reconsideração da História que

passa pela ponderação do assunto infância naqueles textos. É necessário, portanto,

destacar que a infância, de forma geral, também foi pouco estudada pelos pesquisadores

rosianos e que, quando iniciamos esta pesquisa, conhecíamos alguns raros artigos

dedicados ao estudo da perspectiva infantil na obra do autor (LISBOA, 1991;

VERUNSCK, 2008), sendo comum o fato de encontrarmos ora apenas pequenos trechos

consagrados ao tema em obras maiores (RESENDE, 1988; MENEZES, 2010, p. 211),

ora textos que procuravam abordar outros temas (PACHECO, 2006), ou mesmo

trabalhos que teciam uma perspectiva comparativa entre a importância da infância na

obra rosiana e na de outros autores com forte influência da Cultura Oral, tal como Mia

Couto (SILVA, 2000). Durante a pesquisa, acabamos encontrando outros textos que

falavam sobre a infância na escrita de Rosa, que serão destacados no decorrer da tese.

Mas se a bibliografia dedicada ao tema apresenta-se ainda de maneira bastante

difusa e o tema será abordado de várias formas no decorrer da tese, nesta introdução

impõe-se começarmos delimitando o que, inicialmente, estamos chamando de infância e

como pretendemos relacioná-la à escritura de Guimarães Rosa. Etimologicamente a

palavra infância vem do latim in­ fans, que significa a ausência de fala, tal sendo o

estado de linguagem dos seres humanos de pouca idade (CASTELLO; MÁRSICO,

2007). Falar de infância, portanto, é refletir sobre uma maneira peculiar que as crianças

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 9

utilizam a fim de se relacionar com a linguagem (AGAMBEN, 2008). Visando

tangenciar a escritura literária de Guimarães Rosa e o tema da infância, propomos que o

autor, quando escreve, também lança mão muitas vezes de escapulas peculiares, como

se fosse ele também um infante ao tentar relacionar-se com um mundo estranho, pronto

a receber significados. Se até o sentido etimológico da palavra infância refere-se a uma

relação que se estabelece com a fala, e tal ligação também está visivelmente expressa na

linguagem hermética dos textos literários rosianos, estamos defronte de um conflito dos

mais fundamentais para pensar as estórias, a saber, aquele estabelecido entre a fala e a

escrita (cf., entre outros, BOLLE, 2004, p. 375-446). O conflito cultural estabelecido

entre os que apenas falam e os que também escrevem é um dos mais violentos (e

silenciosos) da História cultural do Brasil, desde os tempos da colônia, cuja conjuntura

vemos problematizada na escritura de Rosa de várias formas, inclusive por meio do

choque cultural entre a perspectiva da criança e a do adulto.

Objetivando tratar da infância como elemento da escritura de Guimarães Rosa

nesta tese, foram consultados diversos documentos – manuscritos e textos do autor

publicados em livros e periódicos, textos críticos etc. –, montando um cenário

fragmentário e simultâneo que nos introduz ao contexto daquela criação. Para escrever

sobre esse material em forma de tese, forjamos uma narrativa composta por cinco

capítulos, escritos de forma avulsa, que também poderiam ser lidos como seções

independentes, mas que permitem contar a narrativa de como infância e História

apareceram naquela escritura.Nesta tese dividimos os capítulos apresentam-se assim:

no primeiro, “História, Ficção e Literatura através da escritura de Guimarães Rosa”,

apresentamos um breve panorama teórico das relações entre História e Literatura, desde

a Antiguidade até as novas configurações assumidas na modernidade, quando a

ficcionalidade foi repensada e vista como um elemento intermediário e engendrador

entre os dois polos, e este enfoque nos levou a pensar em Guimarães Rosa como

ficcionista. No capítulo trataremos das relações entre História e Literatura abordando os

teóricos da ficção no século XIX e XX, destacaremos a ficcionalidade como construção

do ficcional e, enfim, faremos um comentário introdutório sobre como tem sido

considerada a construção do ficcional na escritura de Guimarães Rosa. No segundo

capítulo, “A infância e as linguagens infantis no mundo de Guimarães Rosa”,

apresentamos uma seção mais biográfica ao tratarmos da relação de Rosa com os

universos infantis, a partir de duas pessoas de sua afinidade que, de alguma forma, o

aproximaram desse universo: o seu tio Vicente Guimarães, que viveu a infância ao lado

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 10

de Rosa e depois também se tornou escritor, mas especializado em livros para crianças,

tendo escrito apenas um livro para o público adulto, intitulado Joãozito: a infância de

João Guimarães Rosa (GUIMARÃES, [1972] 2006), no qual narra a meninice do

célebre sobrinho. É dele, também, a adequação de um texto de Rosa à linguagem das

crianças, no livro Última Aventura do Sete de Ouros, adaptação do conto de seu

sobrinho, O Burrinho Pedrês, à linguagem apropriada às crianças. Em seguida

destacaremos a relação de Rosa com a neta Vera Tess, que tinha entre 3 e 4 anos,

entrando ainda no mundo da linguagem, mas com quem o avô conseguiu estabelecer

adequada comunicação, devido a sua extrema flexibilidade linguística. A

correspondência por cartões-postais, publicados no livro Ooó do vovô (ROSA, 2003),

será por nós interpretada, discutindo-se possíveis relações com a escritura das estórias

na década de 1960. No terceiro capítulo, “Os Cadernos e a escritura caleidoscópica de

Rosa”, abordamos as fontes primárias consultadas na presente pesquisa – os cerca de 30

cadernos manuscritos do autor –, que estão divididos em três séries, a saber: os

Cadernos de Estudos para a obra de Guimarães Rosa (Arquivo do Instituto de Estudos

Brasileiros/Universidade de São Paulo – IEB/USP, Fundo João Guimarães Rosa –

JGR); os Cadernos de anotações de Guimarães Rosa (Arquivo da Fundação Casa de

Rui Barbosa – FCRB)e os cadernos de anedotas de Guimarães Rosa (Arquivo do

IEB/USP, Fundo Aracy de Carvalho Guimarães Rosa – ACGR, esposa do autor). Como

veremos, por se tratar de espaços de escritura propriamente ditos, sendo compostos por

muitos registros de criação de linguagens e de marcas de discursos de Outros, em uma

gama imensa de cores e sons de diferentes tamanhos, natureza e função, tudo servirá de

alimento para que aquela criação literária se realize e para que a escritura efetive

movimentos no e do tempo na escritura das estórias. Na quarta parte, “As quatro

meninas das estórias”, centramo-nos na produção literária de Rosa da década de 1960,

através da caracterização literária de crianças do sexo feminino a partir, de um lado, da

análise aproximada de quatro personagens protagonistas das narrativas e, de outro, de

um apanhado breve daquilo que chamamos Fortuninha Crítica de cada texto, com uma

interpretação singular para cada um, a saber: Nhinhinha e o seu “passarinho-verde

pensamento”; Brejeirinha e seus “deduzidos de babinha”; Fita Verde e sua “Fome de

almoço”; Djaiaí e sua “doença de crescer”. No quinto e último capítulo, “Os periódicos

e a escritura rosiana: laboratório e recepção”, tratamos da seleção da recepção

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 11

imediata que os dois livros de estórias escritos e publicados na década de 1960

receberam – Primeiras Estórias (1962) e Tutaméia (Terceiras Estórias)2 (1967) – cujos

artigos Rosa colecionou e recortou de periódicos e guardou em seu acervo. Dos mais de

200 textos consultados, foram selecionamos os que destacaram a presença do tema

infância, sendo abordados em duas partes, a primeira sobre as 136 entradas sobre

Primeiras Estórias e os 41 artigos que mencionaram a importância da infância naqueles

volume, e a segunda sobre as 101 entradas sobre Tutaméia (Terceiras Estórias) e os 05

artigos que mencionaram a infância naquele volume.

Ainda que tenhamos forjado uma narrativa mais ou menos linear para darmos ao

presente trabalho o nome de tese – visto que incluímos esta introdução, algumas

considerações finais e arranjamos as partes de forma mais ou menos cronológica –, é

preciso esclarecer que a história da escritura das estórias de Rosa não é uma narrativa

linear, ao que sugerimos que a tese possa ser lida como um caleidoscópio, podendo

girar a cada toque proposto pelo autor, ou pelo leitor, e qualquer que seja a imagem

resultante, invariavelmente, ela levará a uma abordagem do tema história e infância na

escritura de Guimarães Rosa.

2 Optamos por não grafar o título “Tutaméia” de acordo com a nova ortografia, a fim de reforçar adiferenciação operada por Rosa entre “Tutaméia” e a expressão “tuta e meia”.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 12

Capítulo 1: História e Literatura através da escritura deGuimarães Rosa

Com esse capítulo inicial começamos este trabalho tratando da ficção e de sua

construção, isto é, a ficcionalidade, como elementos que já foram lidos como aspectos

importantes para se pensar, de forma inovadora, as relações entre História e Literatura.

Grosso modo, essa discussão é uma das bases teóricas que fundamentam esta pesquisa,

já que, como foi adiantado na introdução da tese, este trabalho está inserido em um

momento especial das leituras dos textos rosianos, no qual se passou a apontar a

importância de se considerar a ficção como elemento fundamental daqueles textos3. Tais

discussões específicas foram recortadas de um tema maior, a saber, as relações entre

História e Literatura, aspecto que nos pode levar a refletir melhor acerca do motivo da

escolha da abordagem ficcional.

1.1 Relações entre História e Literatura

“Verdadeiro, Falso, Fictício”(Carlo Ginzburg - Subtítulo de O fio e os rastros, 2007)

“Falso, verdadeiro, inventado.”(Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas, 1956, p. 351)

Um momento notável na discussão a respeito das relações entre História e

Literatura aconteceu na Antiguidade, com a publicação da Poética de Aristóteles, texto

que instaurou o estatuto da diferença entre o discurso do literato – o da possibilidade – e

o do historiador – o da procura pela verdade (ARISTÓTELES, 1999, p. 47). Essa

relação tão esquemática nos mostra uma forma de pensar já direcionada, construída a

partir de uma crença em uma realidade completa e definida que só poderia ser

representada pela imitação. Tal direcionamento foi mantido como assente por séculos,

até que, com o advento do pensamento moderno, e especialmente a partir do final do

século XVIII, passou-se a questionar tanto os limites da realidade sensível como as

manifestações tidas como fatos, o que levou à necessidade de se pensar melhor as

relações entre História e Literatura, fazendo com que a questão ganhasse novos

3 Apontar para o ficcional na literatura de Guimarães Rosa não é propriamente uma novidade (cf.STARLING, 1999; HANSEN, 2000, entre outros); entretanto, a abordagem selecionada por nós, quepode considerar a construção da ficção como um elemento engendrador da relação entre História eLiteratura, conforme aponta Luiz Costa Lima (2006), é nova no contexto dos estudos rosianos.

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direcionamentos, até que, no século XX, a proposta aristotélica foi verdadeiramente

reconsiderada de diversas formas (cf., entre outros, GINZBURG, 2002, p. 47-63).

No pensamento intelectual brasileiro, inicialmente, os intérpretes das relações

entre História e Literatura demoraram em se afastar daquela concepção de mundo mais

completa, mantendo-se ainda por muito tempo a ideia de que ambos constituíam

discursos autônomos e completos em si mesmos e de que, ao serem comparados, só

poderiam estabelecer relações diretas de semelhança ou oposição, o que pode ser

considerado por parte da crítica como uma leitura desinteressante daquelas relações.

Somente na segunda metade do século XX que pensamentos mais complexos foram

teorizados nesse âmbito, dos quais selecionamos dois que nos parecem de importância

fundamental: o de Alfredo Bosi e o de Antonio Candido.

Para Bosi, melhor se entenderá as relações entre História e Literatura ao se

comparar os discursos, ressaltando suas zonas fronteiriças, nas quais os discursos se

tocam, se chocam ou se iluminam, sem que nunca um se transforme completamente no

outro (BOSI, 1997)4. Já a postulação de Antonio Candido é uma das mais tradicionais

das letras brasileiras, apontando que o discurso literário é capaz de “transformar o fato

em significado” (CANDIDO, 1999, p. 9) e assim permitir o acesso a uma história além

da nossa História, além do fato de o discurso literário poder, no entanto, nos fazer

compreendê-la melhor, visto que ele já estará interpretando a História (RODRIGUES,

2011). Apostando em relacionamentos mais complexos que o estabelecimento de

relações diretas, ambas as teorias abrem caminho para se refletir de forma mais

abrangente acerca do objeto literário, embora ainda acabamos ficando com a dúvida:

como acessar as “zonas fronteiriças” ou destrinchar a interpretação da História?

Foi nesse ponto da reflexão, quando nos faltavam hipóteses sobre o “como”

estabelecer tais relações teorizadas, que nos deparamos com o trabalho do pesquisador

da Teoria da Literatura, Luiz Costa Lima, que se esforçou em traduzir e tomar como

discussão no universo intelectual brasileiro outras vertentes inovadoras da teoria da

literatura, tais como a Estética da Recepção (JAUSS, 2012) ou mesmo os analistas da

Ficcionalidade (ISER, 1983), vertentes que nos ajudaram a pensar em diversas

propostas diferenciadas de interpretação. Nessa conjuntura, também foi Lima quem

4 Dando continuidade a seus questionamentos acerca das relações entre História e Literatura, em 2013, foipublicada uma antologia de estudos de Alfredo Bosi, na qual podemos flagrar diversos momentos em queo autor veio pensando sobre essas relações desde o início de sua carreira como professor e críticoliterário, assim como demonstra a profundidade e a abrangência da reflexão do autor no que concerne aotema (cf. BOSI, 2013).

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trouxe a solo brasileiro uma ideia que já vinha sendo discutida no exterior e que muito

nos interessou: a hipótese de repensar a construção ficcional como uma nova frente no

sentido de intermediar a História e a Literatura. Essa ideia, bem como os momentos

daquela investigação, foram propostos no livro História. Ficção. Literatura., de 2006,

obra na qual o pesquisador evidencia sua intenção: “procuramos pensar a relação entre

as escritas da história e da literatura” (LIMA, 2006, p. 181). Em nossa interpretação,

Lima abandona tal dicotomia e amplia as possibilidades de reflexão, fazendo com que o

estabelecimento de relações diretas deixem de ser uma boa hipótese de análise, já que

até mesmo o discurso histórico – que se quer detentor de uma verdade empírica –

também é uma construção narrativa, apresentando, portanto, sua face ficcional.

Por outra frente, é importante destacar, ainda, que meses depois da publicação

do livro de Lima, foi o historiador italiano Carlo Ginzburg quem divulgou no Brasil o

seu livro O Fio e os Rastros: Verdadeiro, falso, fictício, no qual podemos perceber uma

perspectiva bastante semelhante à defendida pelo crítico literário Luiz Costa Lima. Em

meio ao contexto do lançamento desse livro, em 28 de agosto de 2007, Ginzburg veio

ao Brasil e palestrou sobre as dimensões da leitura de Thomas Hobbes no século XXI;

porém, ainda que ele não tenha tratado diretamente do tema na palestra, no período

reservado às perguntas, o historiador foi questionado sobre como enxergava as relações

entre Literatura e História. Sua resposta foi no sentido da descrença em uma simples

diferenciação como “História = domínio da verdade e Literatura = domínio da arte”,

visto que, de acordo com seu ponto de vista, essa relação se constrói através de um jogo

entre a verdade/o fictício/o falso que se efetua primeiro no cotidiano das pessoas, ainda

que depois tais domínios se transformem em narrativas autônomas, sendo preciso

sempre lembrar que, na vida, não existiria tal dicotomia, por isso encará-las

individualmente, estabelecendo ligações diretas – por ele chamadas de “relações 1 a 1”

–, não é tão interessante quanto contrapor os dois tipos de discurso até que eles

demonstrassem, a partir da análise de seus detalhes, as possíveis ligações e

diferenciações em suas bases (GINZBURG, 2007a). Essa posição de Ginzburg parece

estar alinhada a um fluxo facilmente percebido na historiografia desde pelo menos

meados do século XX, quando os historiadores passaram a não mais considerar o texto

literário da mesma forma como se consideram os documentos oficiais, já se podendo

contemplar suas propriedades específicas de construção – os seus processos de escritura

–, que devem interferir diretamente na edificação da narrativa da História a ser

produzida, afinal

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A postura, hoje difundida, em relação às narrativas historiográficas meparece simplista porque examina, normalmente, só o produto literáriofinal sem levar em conta as pesquisas (arquivísticas, filológicas,estatísticas etc) que o tornaram possível. Deveríamos, pelo contrário,deslocar a atenção do produto literário final para as fasespreparatórias, para investigar a interação recíproca, no interiordo processo de pesquisa, dos dados empíricos com os vínculosnarrativos. Há muitos anos, (o historiador) Lucien Febvre observouque as fontes históricas não falam sozinhas mas só se interrogadas demaneira apropriada. Hoje isso nos parece óbvio. Menos óbvia é aobservação de que as perguntas do historiador são colocadas sempre,direta ou indiretamente, em formas (destaco o plural) narrativas. Essasnarrações provisórias delimitam um âmbito de possibilidades que,frequentemente, são modificadas ou até descartadas no curso doprocesso de pesquisa. Podemos comparar essas narrativas a instânciasmediadoras entre questões e fontes, as quais influem profundamente(ainda que não de maneira exclusiva) sobre os modos pelos quais osdados históricos são recolhidos, eliminados, interpretados – e, por fim,naturalmente narrados. (GINZBURG, 2002, p. 114, grifo nosso)

Assim, analisar a ficcionalidade – a construção do ficcional – nos parece ser uma

forma legítima de abordar as relações entre História e Literatura nesse novo contexto,

fato que nos ficou ainda mais claro quando tanto os investigadores da área de literatura

(LIMA, 2006), como os historiadores (GINZBURG, 2007) passaram a avaliar a

importância do ficcional como intermediário entre História e Literatura (cf.

especialmente LIMA, 2006; GINZBURG, 2007). Nessa conjuntura, ao ouvirmos vozes

enunciadas a partir dos dois polos, apontando ambas para reflexões em direção

semelhante, supomos então que estamos defronte de um registro legítimo de uma ideia

original acerca da consideração desse tema no século XXI e, evidentemente, esta

pesquisa realizada na área de História, que considera uma reflexão sobre a Escritura de

Guimarães Rosa contemplada como processo de construção do ficcional, é fruto desse

contexto mental, tal como se pontua na citação a seguir

Se é um “truísmo dizer que escrever textos é o objetivo final do ofíciodo historiador e todos os fazeres identificados como pertencentes aorol de atuação de seu trabalho – como a busca por fontes em arquivos,e as diversas formas de lidar com elas na tentativa de iluminar suahistoricidade – existem para que, ao final, se possa contar umanarrativa em prosa que vincule dados e ausências, a qual chama-sehistória. Ao conjunto destas narrativas dá-se o nome historiografia.(RODRIGUES, 2012)

Se as relações estabelecem-se nas narrativas e estas são montadas a partir dos

usos da linguagem, as narrativas historiográficas já trazem embutidas em si a presença

da ficção, o que já pode ser considerado como legítimo no contexto de ideias do século

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XXI, no qual não se pode mais pensar em uma História estática, mas sim em uma

História que está em um processo de significação constante, alterando-se, com isso, a

própria ideia de historicidade, objetivando uma História que não se fecha nunca, já que

se está assumindo constantemente novos sentidos, estando, portanto, diferente a cada

momento. Dessa forma, foi preciso que o historiador assumisse diferenciadas

perspectivas em relação aos sentidos e direções da História, a fim de que ela não ficasse

ultrapassada. Em muitos trabalhos historiográficos brasileiros, na passagem do século

XX para o XXI, já percebemos esse tipo de tentativa (cf., entre outros, SEVCENKO,

1992; SEVCENKO (org.), 2010; APROBATO FILHO, 2008; SALIBA, 2002).

Mas será que a própria consideração do ficcional também não possui seu aspecto

histórico? Tratemos melhor dele por um momento.

1.2 Ficção: teóricos do século XIX e XX

Como já foi dito, no Brasil, desde as últimas décadas do século XX, devemos

muito do interesse pela temática da ficção ao pesquisador Luiz Costa Lima, que vem

estudando o assunto desde pelo menos a década de 1980. A partir dos questionamentos

ressaltados por Lima, já podemos pensar sobre o ficcional, juntamente com intelectuais

ocidentais de diversas áreas, refletindo até mesmo acerca da interessante hipótese de

que, entre História e Literatura, há uma mediação engendradora, exercida pela

construção da ficção. Porém, regredindo na história universal, ficamos sabendo que, por

diversos motivos de ordem política, estética etc., nem sempre foi interessante ressaltar a

condição do ficcional, fato que acabou estabelecendo o

estatuto precário da ficção entre a Odisséia, passando peloesquecimento que durante séculos se abateu sobre Aristóteles, cujaexcepcionalidade era vista por uma pequena ponta, a subordinação dapoética à retórica, e os séculos de cristianismo, como uma brevereferência aos fins do século XVIII e começos do XIX. (LIMA, 2006,p. 260)

Tomado esse breve panorama histórico, era interessante para Lima repensar não

apenas a ficção – que aqui é considerada um como discurso ou narrativa de invenção

(LIMA, 2006, p. 177) –, mas também a ficcionalidade – que entendemos como o

processo de construção desse discurso ou narrativa, que é histórico porque ocorre no

tempo, movimentando-o (LIMA, 2006, p. 220). No intuito de abordar esses elementos,

Lima destacou três pensadores que, nos séculos XIX e XX, resgataram a reflexão

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concernente à ficcionalidade na modernidade: o inglês Jeremy Bentham (1748-1832),

em seguida os alemães Hans Vaihinger (1852-1933) e, enfim, Wolfgang Iser (1926-

2007).

O primeiro autor que se apresentou como uma exceção dentro do discurso

relativo à subalternidade à qual a ficção esteve submetida desde a Antiguidade até a

abertura do século XIX foi Jeremy Bentham (1748-1832), para quem “as ficções

ocupam um espaço intermediário entre o falso e o verdadeiro, e só podem ser definidas

por sua distinção quanto ao falso e pela perspectivização, teoricamente demonstrável,

do verdadeiro” (LIMA, 2006, p. 263). Essa posição “rasgará por um momento a

escuridão que envolvia o ficcional”, ainda que, para Bentham, não cabia à ficção outra

função que não fosse a de trazer mais clareza à prática jurídica (LIMA, 2006, p. 261),

tal como se depreende de seus postulados. Em suas próprias palavras5, “A palavra

direito é o nome de entidade fictícia; um daqueles objetos cuja existência é fingida

para fins do discurso por uma ficção tão necessária que, sem ela, o discurso humano

não poderia ser levado a cabo” (BENTHAM,1813-5 apud LIMA, 2006, p. 262, grifo

nosso)6.

Estabelecendo o conceito de entidade fictícia e refletindo sobre a ficção como

intermediadora “entre o falso e o verdadeiro”, estamos diante, enfim, de uma possível

teoria moderna do ficcional (LIMA, 2006, p. 260). Segundo as reflexões iniciadas por

Bentham, a ficção é fundamental para o bom funcionamento da linguagem, que é

elemento essencial ao ser humano visto que ela constitui “o meio pelo qual o mundo é

formulado” e sem o qual “ele é, para nós, indisponível” (LIMA, 2006, p. 263).

Apresentando reflexões acerca da ficção, pioneiras na modernidade, era igualmente

importante para Bentham repensar o que se considerava como real, por isso o autor o

definiu como “apenas aquilo que se impõe por si; o que, independente da linguagem,

está aí para o homem como para os outros animais” (LIMA, 2006, p. 268). Assim, não

sendo realidade, a ficção pressupõe e se sustenta na linguagem, que então “deixa de ser

entendida como uma simples mediadora para se tornar engendradora; não de ilusões,

mas, antes delas, de... ficções” (LIMA, 2006, p. 264). O destaque para a ficcionalidade

5 Neste capítulo, as citações diretas de Bentham e também de Vaihinger foram retiradas da obra de Lima(2006), não apenas porque as obras originais não puderam ser consultadas, mas também para ressaltar oesforço de investigação de Lima, que traduziu e selecionou os textos que julgou mais pertinentes pararepensar a questão do ficcional no contexto do pensamento brasileiro.6 Segundo Costa Lima a referência original da citação é: BHENTHAM, J. The Theory of Fictions, emOgden, C.K..:Bentham’s Theory of fictions, Harcourt, Brace- Keegan Paul. New York- Londres, 1932,Ed. fac-similar da MAS, New York, 1978.

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como constituindo a inclusão de certo movimento nas relações entre História e

Literatura foi, por si, uma grande contribuição deixada por Bentham para a teoria do

ficcional.

Apenas no século XX, por volta de 1925, foram encontradas outras reflexões

concernentes à ficção, agora advindas de uma tradição intelectual distinta de Bentham:

falamos aqui do filósofo kantiano Hans Vaihinger (1852-1933), para quem a ficção

aparece mais como um fingir, no qual o campo do fantasioso se sobrepõe à realidade, ou

em suas próprias palavras:

O imaginário (o abstrato, o ideal) justifica-se apesar de sua irrealidade.Sem esse imaginário, nem a ciência nem a vida são possíveis, naforma mais alta. A tragédia está mesmo em que os conceitos maisvaliosos, vistos sob o prisma da realidade, carecem de valor [...] osideais não são hipóteses; o seriam caso fossem realizáveis ou setivessem sido realizados em alguma parte do mundo; ao contrário, sãoficções. (VAIHINGER, 1913 apud. LIMA, 2006, p. 272)7.

E de que forma se operavam as ficções para Vaihinger? Através da consideração

reflexiva do como se, que era um argumento bastante utilizado nas “filosofias teórica,

prática e estética” de Kant, filósofo do qual Vaihinger é tributário. Se a partir dos

postulados de Kant, depois de termos concluído que “Deus, o mundo e a alma não são

objetos apropriados para um juízo humano limitado”, nossa ideia de realidade diminuiu

bastante, a ponto de se repensar essas instâncias, é nesse fluxo de pensamento que o

filósofo passa a usar frequentemente o como-se, atribuindo-lhe a função de “argumento

análogo” em suas “suas filosofias teórica, prática e estética”8. Dando continuidade à

reflexão kantiana, Vaihinger escreveu o seu volume A Filosofia do como-se (1911),

livro que legitimou a criação do grupo Sociedade de Amigos da Filosofia do Como-se

(HOWARD, p. 59), o que, por outra frente, mesmo sem a necessidade de se assumir tal

alcunha, significou uma possibilidade de discussão sobre uma atividade ficcional.

Lembrando esses dois primeiros pensamentos modernos a respeito da ficção,

Lima esclarece que em tais teóricos, embora a ficção enfim perdesse seu caráter

negativo, ela ainda era vista simplesmente como algo diverso da realidade e, portanto,

ambos os pensadores “ainda continuavam ligados à tradição que questionavam” (LIMA,

7 Segundo Costa Lima a referência original da citação é: VAIHINGER, H.: Die Philosophie des Als Ob.System der theoretischen, praktischen und religiösen Fiktionen der Menschheit auf grund einesidealistichen Positiivismus (2ª. Ed.: 1913), ed. cit: Scientia Verlag, Aalen, 1986, trad. De JohannesKretschmer. Hans Vaiginger : o texto do como se, Rio de Janeiro, 2002.8 Ainda que nós não nos debrucemos sobre a complexidade do pensamento filosófico de Kant, éimportante lembrarmos que essas reflexões, que fundamentam a ideia do como-se, estão expressas nasobras do filósofo alemão Crítica da razão Pura (1781) e Crítica do Julgamento (1790).

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2006, p. 281). Todavia, de acordo com Luiz Costa Lima, quem realmente propôs a

necessária reviravolta na orientação teórica da ficção foi Wolfgang Iser, que,

produzindo a partir de meados do século XX, foi leitor de seus predecessores e tentou

seguir adiante as colocações por eles iniciadas9, inclusive indo além, ao levantar o

questionamento que abriu o caminho mais importante para que se viesse a pensar na

ficcionalidade como intermediária engendradora entre a História e a Literatura:

Se os textos ficcionais não são de todo isentos de realidade, parececonveniente renunciar a este tipo de relação opositiva como critérioorientador para a descrição dos textos ficcionais, pois as medidas demistura do real com o fictício, neles reconhecíveis, relacionam comfrequência elementos, dados e suposições. Aparece, assim, nestarelação, algo mais que uma oposição, de modo que a relação dupla daficção com a realidade deveria ser substituída por uma relação tríplice[...] real, fictício, imaginário. (ISER, 1983, p. 384-5)

Assim sendo, importa refletir como vão se operando as relações entre os três

pontos, aspecto que Iser destacou como podendo ocorrer a partir da reflexão sobre os

atos de fingir:

no texto ficcional, os da seleção e os da combinação, dizem respeito àtransgressão de limites entre texto e contexto, ou seja, à transgressãodos campos de referência intratextuais. Daí evidenciar-se umacomplexificação crescente. Como produto da combinação, orelacionamento não se referia apenas à elaboração destes campos dereferência a partir do material selecionado, mas ainda ao mútuorelacionamento destes campos. Isso nos levou a reconhecer umadiferenciação relativa à qualidade do fictício. Esta diferenciação aindacrescerá mais ao tratarmos agora doutro ato de fingir, que consiste nodesnudamento de sua ficcionalidade. (ISER, 1983, p. 397)

Em outro texto de Iser, consultado para a melhor compreensão da questão aqui

abordada, o autor propõe o estabelecimento do ficcional como sendo um jogo tecido

entre autor-texto-leitor:

Os autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo. Opróprio texto é o resultado de um ato intencional pelo qual um autor serefere e intervém em um mundo existente, mas, conquanto o ato sejaintencional, visa a algo que ainda não é acessível à consciência. [...] oque quer que seja repetido no texto não visa a denotar o mundo, masapenas um mundo encenado. Este pode repetir uma realidadeidentificável, mas contém uma diferença decisiva: o que sucede dentro

9 Lima explica que sua pesquisa acerca da temática do ficcional foi traçada a partir do caminho primeirotrilhado por Wolfgang Iser, ou seja, foi esse pesquisador quem iluminou os dois nomes que o antecedem.Em uma leitura comparada de Iser e Lima, percebemos que ambos pensam de forma bastante alinhada,ainda que Lima chegue a pôr em questão algumas reflexões de Iser (LIMA, 2006, p. 278-80).

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dele não tem as consequências inerentes ao mundo real referido.Assim, ao se expor a si mesma, a ficcionalidade assinala que tudo étão-só de ser considerado como se fosse o que parece ser; noutraspalavras, ser tomado como jogo. (ISER, 2002, p. 107)

Desse modo, a partir desse percurso teórico acerca da ficcionalidade exposto até

aqui, e pensando a ficcionalidade como uma prática ou como uma encenação do real

sensível, a questão torna-se mais intricada e visualizamos um pensamento que se

encaminha para uma perspectiva semelhante à do historiador Carlo Ginzburg (2007),

como reiteramos acima. Com isso, aproximamo-nos do objetivo deste levantamento

teórico que segue o rumo primeiramente traçado por Lima (2006), pois essas

confluências justificam, tal como supomos, o motivo pelo qual pensar a ficcionalidade

se tornou indispensável ao historiador que se debruça sobre o contexto literário, como é

o nosso caso, afinal foi tomando esse desenvolvimento da reflexão que decidimos

rejeitar definitivamente a dicotomia comumente estabelecida entre História e Literatura,

uma vez que até mesmo na realidade, tantas vezes, é a ficção que funciona como

suporte do cognoscível.

Refletir acerca do ficcional a partir dessas novas configurações aqui

apresentadas é a novidade trazida para as discussões tecidas sobre História e Literatura

no século XXI, apontando um mais elevado grau de complexidade nas relações entre

ambas que abre para a reflexão do historiador concernente ao tema – bem mais

complexa que a longínqua tomada aristotélica –, já que mesmo para os profissionais da

História, a ideia de estabelecer uma simples oposição vem sendo deixada de lado,

propiciando que cada vez mais a postura da pesquisa em História seja contemplada

como um pensar em um

entrelaçamento de verdades e possibilidades [...] A nossa sensibilidadede leitores se modificou por mérito [dos historiadores] Rostovzev e deBloch – mas também [dos literatos] Proust e de Musil. Não é apenas acategoria da narração historiográfica que se transformou, mas anarração tout court. A relação entre quem narra e a realidade aparecemais incerta, mais problemática. (GINZBURG, 2007, p. 333)

Se até mesmo no trabalho de pesquisa histórica a complexidade do narrar já é

assente, fica claro que estudar uma obra literária – e todo seu arcabouço ficcional –

continua sendo fecundo para a produção historiográfica. Como já sugerimos, já não

podemos mais simplificar as relações entre História e Literatura, fato que nos leva a

assumir a complexidade em último grau, propondo a análise da ficcionalidade que, por

ser uma construção de narrativa – historiográfica ou literária – ocorrida no tempo, nos

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parece demandar o engendramento de uma postura crítico-analítica tomada com mais

cuidado.

1.3 Ficcionalidade: um fazer de ficção, performances

Nesse contexto de retomada da reflexão acerca da ficção e, especialmente, da

atribuição de sua construção como máquina engendradora entre História e Literatura,

abriu-se para o historiador um cenário repleto de questionamentos novos, na medida em

que, nessa conjuntura, as estruturas que dantes sustentavam o que chamamos de

História foram estremecidas. Para considerar uma produção literária escrita no século

XX, já podemos pensar em uma conexão entre autor/texto/leitor, problemática que até

então inexistia e que, passando a existir, se apresenta em conflito com a noção

tradicional de representação. Isso porque quando se passou a desconfiar da existência de

uma realidade completa, pré-atribuída e que podia ser representada como imitação,

acabou-se por exigir que se redefinisse a ideia de mimesis, que deixou se ser expressa

pela simples imitação, passando a exigir que o leitor execute largos “processos de

elucidação e de complementação que exigem uma atividade performativa”, a fim de que

seja possível a criação de algo novo, para o qual “o pré-dado não é mais visto como um

objeto de representação, mas sim como material a partir do qual algo novo é modelado.

O novo produto, entretanto, não é predeterminado pelos traços, funções e estruturas do

material referido e contido no texto” (ISER, 2002, p. 105).

Esperar que o leitor transforme e arremate o texto sugerido pelo autor,

redefinindo-o, só foi possível no momento em que se passou a duvidar de uma realidade

completa, podendo-se então recortar o referido, substituindo-o por um sistema aberto,

no qual, como nos diz Iser no excerto anteriormente citado, o novo produto não é

predeterminado pelos traços, funções e estruturas do material referido e contido no

texto. Essa mudança de direcionamento começou a se dar a partir do momento em que

se deixa de acreditar que o todo existente só poderia ser mostrado em expressões

tangíveis, então “o sistema fechado é perfurado e substituído por um sistema aberto, o

componente mimético da representação declina e o aspecto performativo assume

primeiro plano” (ISER, 2002, p. 105).

Especialmente desde o século XX, muitos intelectuais cogitaram formulações a

respeito do performativo, sendo Wolfgang Iser um deles; porém, como nosso trabalho

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se debruça sobre uma produção literária efetivada no Brasil, na década de 1960,

optamos por não seguir nenhum deles de antemão, mas apostar em uma interpretação

própria do fenômeno a partir do material consultado. De qualquer forma, mantemos em

nossos horizontes de interesses e expectativas o que foi expresso a partir das

intervenções artísticas de Hélio Oiticica, que acabou por se tornar uma referência para

se pensar a arte contemporânea (cf. AGUILAR, 2008; RAMOS, 2007), fazendo parte,

entre outras referências, do contexto imediato da escrita das estórias. Pensamos pois no

performativo como uma consideração, formulada a partir de outra ordem, das relações

entre os sentidos das palavras e das expressões, ou seja, no que não é necessariamente

enunciado de forma completa e plena, mas sim propalado como movimentação de um

corpo, sendo por isso válido se pensar com especial cuidado a participação do leitor em

uma obra literária – afinal é ele o ser que empresta seu corpo a fim de que as palavras

possam performar e engendrar novas realidades.

Para o historiador do século XXI que se debruça sobre o universo literário, é

preciso lembrar que também as relações entre História e Literatura assumiram novas

facetas, sendo que tais relações se dão a partir de choques e apropriações na linguagem

– entidade fictícia propriamente dita –, acarretando mudanças na perspectiva de se lidar

com o objeto literário, passando-se a considerar com mais legitimidade suas

especificidades de composição. Já não é mais possível ao profissional da História negar

totalmente que, qualquer que seja a sua interpretação do texto literário, ela só se

comporá daquela forma porque é resultado de sua leitura performativa daquelas

laborações com a linguagem.

Sobre a gradual importância das considerações acerca da linguagem no que

tange à História e à historiografia, nos propõe Harald Weinrich (2002, p. 201):

Em suma, é de se dizer que, na pesquisa atual, as possibilidadeslinguísticas e, precisamente, linguístico-textuais de descrição deestruturas narrativas e históricas estão longe de ser esgotadas. Devemser priorizadas, antes de que os métodos de descrição pela semiótica epragmática resvalem por outras regiões teóricas. Devem-se tambémfavorecer os debates interdisciplinares em que o linguista se apresentenão com uma teoria parcial, mas sim com uma teoria integralmentelinguística da teoria da história.

Ainda que os historiadores já estejam considerando melhor as possibilidades

expressas pela linguagem, e nós somos deles tributários, a interessante e porém ousada

proposta de Weinrich parece ainda não ter sido posta em prática plenamente na

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historiografia brasileira. Como trataremos aqui da escritura de Guimarães Rosa – um

autor pleno de malabarismos linguísticos de toda ordem –, acreditamos poder contribuir

para esse tipo de colocação.

Assim sendo, nesta tese sobre a escritura das estórias de Guimarães Rosa, a

relação entre História e Literatura se estabelece na consideração do próprio processo

escritural de Rosa que, por ser um fenômeno ocorrido no tempo, também apresenta teor

histórico. Mas como poderiam ser compreendidos, na ficcionalidade de Rosa, todos

esses elementos apresentados nesse contexto: a escritura, a linguagem, a ficcionalidade,

o performativo? Falaremos, então, da ficção em Guimarães Rosa.

1.4 Escritura de Guimarães Rosa: História. Fictâncias. Estórias.10

“Tudo é então só para se narrar em letra de forma?”(Guimarães Rosa – Sobre a escova e a dúvida – Tutaméia, p. 155)

Embora já no século XXI, em 2005, quando propomos o projeto de abordar de

forma mais profunda a História na produção literária de João Guimarães Rosa da década

de 1960, ainda era incipiente a ideia de pensar este autor como um ficcionista (c.f.

HANSEN, 2000), fato que nos ocorreu, entretanto, primeiramente em relação aos livros

escritos anteriormente às estórias11. Em relação a elas, a primeira indicação nesse

sentido surgiu quando encontramos no acervo do autor sob a guarda do IEB uma carta12

10 Muitos dos temas tratados neste capítulo – como as relações entre História e Literatura, as reflexõessobre a escritura e a ficcionalidade – foram primeiro contemplados na comunicação “As inventadasrealidades das fictâncias de Guimarães Rosa” (RODRIGUES, 2013).11 Neste capítulo propomos que pensar o ficcional nas interpretações literárias só ganhou legitimidade àsmargens do século XXI. Nesse sentido, o primeiro apontamento para os significados de uma análise doficcional nas leituras rosianas no século XXI deu-se em 2004, quando o pesquisador rosiano Willi Bollepublicou o seu Grandesertão.br, uma extensa interpretação do romance de Rosa que, no ano seguinte,recebeu uma resenha, escrita por Luiz Costa Lima (2005, p. 193), na qual se destaca que “Willi Bolle temseu mérito, muito raro entre os estudiosos da mesma direção, de reconhecer a função do ficcional.Permanece, contudo, fundamentalmente ligado à abordagem documentalista que tem marcado a literaturae os estudos literários latino-americanos e brasileiros, desde o XIX”. Ao que nos parece, incomodou aLima o fato de que toda a potencialidade do ficcional, reconhecida no trabalho de Bolle quando eleexperimenta reunir e desconstruir a linearidade na leitura dos intérpretes do Brasil, acabasse servindo paraalinhar o romance a uma perspectiva mais tradicional, visando não produzir um objeto novo, tal como seesperaria enquanto resultado do trabalho da ficcionalidade. Embora possamos reunir elementos na obra deBolle que contestem a leitura de Lima e embora se trate de uma interpretação rica, sendo o diálogoproposto por ela importante para a fortuna crítica de Rosa, nós não nos debruçaremos sobre tal questão,uma vez que ela se refere ao contexto do romance de 1956, estando, portanto, fora do recorte proposto poresta investigação, cujo escopo se centra na produção da década de 1960.12 Esse documento, fundamental para que esta tese fosse projetada, foi por nós abordado na dissertação(RODRIGUES, 2009) e também no II Encontro de Pós-Graduandos da Faculdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), em 2007 (RODRIGUES, 2007), numaetapa de nossa investigação na qual a carta parecia ser interessante, mas ainda não sabíamos comoabordá-la mais profundamente. Tempos depois, já durante a escritura desta tese, e conhecendo melhor as

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(LACERDA, IEB-JGR, 01 ago 1967) escrita de próprio punho por Carlos Lacerda,

agradecendo a Guimarães Rosa pelo envio do livro Tutaméia (Terceiras Estórias).

Nessa epístola, a ficção é citada:

Rio, 1.08.67A Guimarães Rosa,Li, há dois dias, uma estória na revista. Agora, como se vocêadivinhasse, chega o livro. Vou levá-lo direto à Letícia, que estádoente e quer ler. Quero, nos intervalos, ler também. Você sabe aminha opinião. Receio, às vezes, que a língua, o portubrasileiro demergulhador em que você se aprofunda faça alguns esquecerem asubstância, a perfeição dos tipos, os quadros, o movimento da vida nasua obra. Reconhecedor da língua, você o é também da ficção –pelo que não parece ficção, mas realidade inventada.Um abraço do Carlos Lacerda (LACERDA, IEB-JGR, 01 ago 1967,grifo nosso).

A primeira coisa que chama a atenção é o receio, assumido por Lacerda, de que

o trabalho rosiano com a linguagem pudesse apagar daquela obra “os quadros, os

movimentos da vida”. Ora, inventar uma língua que não é real e nem totalmente

inventada, mas um ente fingido como linguagem, não seria propriamente a construção

de uma ficção? Se for o caso, veríamos ali um exemplo de como a linguagem poderia

sobressair-se à realidade. Mas, nesse texto privado, muito provavelmente de forma

intuitiva, Lacerda identifica em Rosa não só um autor que reconhece a ficção, mas que a

escreve como se ela fosse “realidade inventada”. Ora, se a ficção é uma “narrativa de

invenção” (LIMA, 2006, p. 177), qual poderia ser a diferença entre ela e uma realidade

inventada? Supomos que essa distinção repousa na própria diferença estabelecida entre

ficção e ficcionalidade: se a ficção corresponde a um texto de invenção já pronto,

analisar a ficcionalidade seria se debruçar sobre seu processo de construção, o que nesta

tese estamos chamando de escritura13.

Na cultura ocidental, o escrever é uma prática fundamental e definidora, já que é

o seu domínio o que separa o mundo cultural e progressista do universo arcaico, isto é,

daquele que ainda estaria mais próximo ao “mundo mágico das vozes e da tradição”

teorias da ficcionalidade, retomamos o documento no referido congresso acerca da ficcionalidade, em2013, quando, ainda que ligeiramente, a carta foi interpretada por nós a partir desse arcabouço teóricopela primeira vez (RODRIGUES, 2013).13 Como já alertamos, na dissertação apresentada na primeira fase desta pesquisa, já experimentamos umainterpretação sobre qual seria a diferença entre ficção e realidade inventada e, ainda que nãoconhecêssemos as teorias do ficcional, intuitivamente já sugeríamos ser essa a disparidade entre um textoinventado e pronto (ficção) e um em constante processo de composição (ficcionalidade). Esse último nósjá relacionávamos à História, ainda que transversalmente: “a realidade inventada é a história, comoprocesso, articulada pela linguagem, transformando-se em um possível texto historiográfico”(RODRIGUES, 2009, p. 46-7).

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(DE CERTEAU, 1996, p. 224-5), elementos que constituiriam o domínio oral.

Definindo-se como contraponto da oralidade, o escrever propõe-se a compor novos

mundos, “não recebidos, mas fabricados” (DE CERTEAU, 1996, p. 225), a partir dos

quais se busca uma normatização que promove o

afastamento do corpo vivido (tradicional e individual) e, portanto,também de tudo aquilo que, no povo, continua ligado à terra, ao lugar,à oralidade ou às tarefas não verbais. O domínio da linguagem garantee isola um novo poder ‘burguês’, o poder de fazer a históriafabricando linguagens. (DE CERTEAU, 1996, p. 230)

Para o historiador do século XXI, esse tipo de pensamento apresentado por De

Certeau já caiu por terra e só o suscitamos aqui porque ele nos mostra de forma mais

clara os domínios de uma história que podemos chamar de tradicional, aspecto ao qual a

estória de Rosa, como gênero narrativo, se propunha a contrapor através da utilização de

uma ativa ficcionalidade, estabelecida muitas vezes a partir, justamente, do resgate de

vozes da tradição oral.

Doravante, discutiremos como poderia ter se construído a escritura de Rosa,

aquela que se coloca como uma atividade ousadíssima para o tempo – século XX – e o

lugar – Brasil – em que foi produzida: ser escrita, mas manter em movimento e atuantes

todos os elementos característicos da oralidade, tais como a magia, as vozes etc.. E

como e por que ele pôde fazer isso? Uma possibilidade geral de resposta achamos, por

um lado, em Barthes (1993, p. 117-46), para quem o exercício da escrita –

compreendida como atividade em processo temporal – pode abrir novos espaços de

historicidade, e, por outro, mais especificamente em relação aos estudos voltados para a

obra de Rosa, em Bolle (2004, p. 384-90), no qual lemos uma interpretação de todo o

trabalho de linguagem rosiano contemplado como uma forma de construir uma nova

escrita da História no Grande Sertão:Veredas, mas que aqui transportamos para o

universo das estórias. Considerando tudo isso e lembrando o título desta tese, cabe

alvitrar que nossa proposta é a de investigar elementos que remetem à infância –

período mais ligado à oralidade que à escritura – e à História na escritura das estórias de

Guimarães Rosa.

Nesse sentido, é o próprio autor quem, ao falar acerca de seu processo escritural,

nos autoriza a pensar em sua escritura como equivalente a um processo de construção da

ficção: “Os livros nascem quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a técnica do

jogo com as palavras” (ROSA, 2006, p. 85). O que seria esse jogo senão uma das

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performances possíveis que constroem a ficção? Por toda a tese, vamos nos deparar com

flagrantes desse “jogo com as palavras”, procedimento que era constantemente

executado por Rosa – tanto na vida como nos trabalhos como diplomata e escritor –, e

então poderemos perceber sempre quantas “realidades inventadas” possíveis podem

nascer dali. Entretanto, a brincadeira com as palavras proposta pela escritura rosiana,

como em todos os brinquedos, não é um simples divertimento ou técnica; ela é também

engendradora de novos mundos, a partir de partículas de certo real identificável, que

ressurgem como uma nova mimesis que, como já dissemos, não pode mais ser tomada

como imitação, mas sim como um estado de “becoming fiction” (LIMA, 2013),ou seja,

ela caracteriza-se como uma expressão que propõe movimento, transformação pela

significação e ressignificação, acarretando que aquela produção literária se faça a partir

do investimento em atos da imaginação criadora ou, em outras palavras, se constitua

como resultado de um complexo processo ativo de ficcionalidade (LIMA, 2006, p. 211).

Ainda que a escrita rosiana exija sempre um arremate do leitor – não podendo

ser considerada como algo plenamente terminado – sua escritura foi ação ocorrida no

tempo passado e, portanto, podemos enxergá-la como um processo histórico que

também deve ter deixado registros de sua composição, de maneira que, a fim de sondar

como ela poderia ter ocorrido, nos interessamos pela análise das marcas deixadas por

aquele processo escritural. Para nós isso foi especialmente importante porque, ao

contrário do que acontece em relação às primeiras obras do autor – cuja boa parte dos

manuscritos foram extraviados –, sobre as estórias escritas na década de 1960 é possível

pensar legitimamente em uma análise desse tipo, já que a maior parte do conteúdo

dedicado à literatura de seu Arquivo no IEB refere-se a esse momento da criação,

abrindo-nos uma miríade de possibilidades de leitura. De qualquer forma, não podemos

deixar de considerar as palavras do já citado pesquisador rosiano Willi Bolle, que nos

alerta para os limites da consulta àquele material no afã de se esgotar os processos de

escritura daquele autor, pois

aqueles elementos todos: biblioteca, cadernetas de viagem, listas depalavras ajudam, são elementos subsidiários para entendermos oprocesso de criação. Mas, na câmara íntima da criação deGuimarães Rosa eu acho que ninguém penetrou. (BOLLE, 2010,21’ 28’’)

Abordar essa perspectiva significa tratar de todo o conjunto de textos privados

(manuscritos) possíveis de serem consultados que, em conjunto com aqueles

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publicados, formariam aquilo que chamamos de a obra de Guimarães Rosa. Contudo,

estamos falando de acontecimentos ocorridos no passado e então, como sabemos, sobre

eles nunca será possível uma abordagem plena, já que, conforme veremos, o material

registrado por Rosa a respeito da escritura das estórias é altamente fragmentado, o que

acaba impondo que, a fim de que possamos nos aproximar dele, se perceba algum grau

de movimentação ou ritmo entre as partes. Ao falarmos em percepção, movimentação e

ritmo naquela escritura, estamos sugerindo que ela se apresenta de forma complexa,

como nos alerta a teórica Monique Balbuena:

Em sua elaboração de um texto estético, poético, artisticamente belo,Guimarães Rosa trouxe grandes inovações linguísticas em todos osníveis: léxico, gramático-sintático, poético e retórico. [...] Rosabuscava transformar o mundo com a força criadora da linguagem, euma linguagem rasa, meramente comunicativa ou referencial, nãoseria eficaz na realização de seus projetos mais ambiciosos. Dessaforma, a ‘revolução linguística’ pela qual seria responsável estáindissociada da necessidade que via em modificar os hábitosmentais do homem e libertá-lo de arcaicas categorias depensamento, resgatando a linguagem como verdadeira expressãoda vida, (BALBUENA, 1994, p. 78-9, grifo nosso)

Nesse breve trecho explicativo, já flagramos alguns momentos de análise que

destacam aspectos da escritura de Rosa, sempre ao redor da ideia de movimentação: o

primeiro pede atenção para os malabarismos linguísticos ao qual nosso autor estava

acostumado, quando escrevia, como se quisesse e pudesse transformar a linguagem

livremente, a ponto de recriá-la; o segundo ponto propõe uma justificativa para a

execução daquele engenho ficcional: era preciso libertar os leitores de antiquados

hábitos mentais, forçando-os a refletir melhor acerca da linguagem que utilizam

habitualmente14.

E Balbuena prossegue comentando outras faces importantes do texto rosiano:

Suas obras, muitos já o disseram, apresentam sérias dificuldades defluência e compreensão a uma primeira leitura. O leitor, acostumadoa textos mais coerentes e tradicionais, se vê atordoado,desnorteado e dominado, sem clemência, por uma prosaacidentada, difícil, com formas e sons inusitados, um manancialléxico desconhecido, compondo um estilo muito original. Passadasas primeiras investidas, conseguida a penetração na densa selva após aapreensão da chave léxica e, com ela, a possibilidade dedescodificação, o leitor, só então, se sente recompensado pelo seu

14 Cabe adiantar aqui que identificamos esse mesmo objetivo nas anedotas que encontramos diversasvezes citadas no material consultado nos Arquivos Pessoais de Guimarães Rosa, tanto no IEB como naFundação Casa de Rui Barbosa.

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esforço e persistência: estabelecida a comunicação, Rosa se revela emseu esplendor, e, banhado em luz e música, o leitor disso não maisquer se privar.Ao contrário, ele passa a tomar parte importante no próprioprocesso de criação, pois o estranho texto de Rosa deixa lacunasintencionais que devem ser preenchidas, apresenta formulações ouestruturas sintáticas que exigem reflexão constante... Em suma: elefaz pensar, proíbe a automatização e impede a letargia. (BALBUENA,1994, p.78-9, grifo nosso)

No destaque para a importância da atividade do leitor no que concerne ao

arremate do texto rosiano, mesmo que a autora não o defina, ela acaba por colocar Rosa

no rol dos ficcionistas, uma vez que seu texto espera que o leitor termine o processo de

criação, preenchendo as “lacunas propositais” deixadas por Rosa, a fim de que o texto

ganhe amplo sentido, “pois não importa que novas formas o leitor traz à vida: todas elas

transgridem – e, daí, modificam – o mundo contido no texto” (ISER, 2002, p. 107). No

caso do texto rosiano, manter constante o processo de significação é absolutamente

necessário, já que o autor joga seu leitor em um mundo onde não valem mais toda sua

lógica e tradição, aspectos que devem ser (re)criados para que a leitura seja tolerável.

Esse cenário de completo estranhamento (cf., entre outros, RABETÉ, 2012)15, parece

colocar o leitor rosiano mais próximo das crianças e de suas expressões muito limpas de

comprometimentos em um mundo onde tudo é passível de ser visto ‘como se fosse a

primeira vez’, visto que frequentemente tudo ganha nova significação, desprovida de

qualquer convenção anteriormente estabelecida e de qualquer determinação que a

cultura costuma cristalizar como ‘obediência’ a certos padrões e maneiras de sentir e

pensar.

Ao assumirmos essa complexa e ambiciosa confecção textual como ela

verdadeiramente se apresenta – textos literários que executam constantemente seu

“trabalho” de produção de significados, a partir de um material recolhido da oralidade

(MESCHONNIC, 2006, p. 5) –, então poderemos encontrar, nos registros deixados

pelos processos de escrita de Rosa, diversas marcas que remetem ao modo infantil de

lidar com a linguagem, o que pode nos levar a reflexões concernentes ao próprio

discurso historiográfico tradicional. Conforme explicou o próprio Rosa ao seu tradutor

para o alemão Curt Meyer-Clason, naquele jogo com as palavras que foi seu processo

escritural

15 Por toda a presente tese, a questão do estranhamento reaparecerá e outros teóricos serão citados, masmencionamos aqui apenas esse, porque nele o estranhamento está posto em relação próxima à própriaideia do escrever.

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Duas coisas convém ter sempre presente: tudo vai para a poesia, olugar-comum deve ter proibida a entrada, estamos é descobrindonovos territórios do sentir, do pensar e da expressividade; as palavrasvalem ‘sozinhas’. Cada uma por si, com sua carga própria,independentes, e às combinações delas permitem-se todas as variantese variedades. (ROSA, 2003a, p. 314)

Já a partir da leitura de textos como as estórias, é possível perceber que Rosa, em

sua escritura, exercitava uma série de escolhas dentre o que ele havia ouvido,

sublinhando uma forte herança da cultura oral. Essas seleções, feitas a partir da força

sonora ou semântica de palavras e expressões, visavam não à reprodução da fala, mas a

uma construção rítmico-prosódica dela, na qual seriam apreendidos seus modos – tais

como timbres, durações e intensidades –, levando-nos a uma primeira aproximação

daquela obra com a construção estabelecida a partir do circuito fala/escuta. Relação que

foi legitimada pelo autor em declarações como a seguinte:

Leio muito pouco, quase não tenho tempo. [...] Gosto mesmo é deouvir conversas. Com pessoas estranhas, de preferência. Ouvir a vidapara poder transmiti-la. Se a gente lê muito, em demasia, acabacontando coisas que todo mundo já sabe. É preciso dar coisas novas,há milhares de coisas novas para dar. É descobri-las. (ROSA, 2006, p.78, grifo nosso).16

Penetrando nessa verdadeira experiência cognitiva proposta pela leitura das

obras de Rosa, o próprio ficcionista ainda comenta sobre a importância capital da

perspectiva do leitor no sentido do arremate de seu texto:

Começando a escrever eu me desligo. Dedico-me apenas aos meuspersonagens, à minha inspiração. Muita gente diz que é difícil lerminhas obras. Não é difícil. E não precisa ler em voz alta, comomuita gente que conheço, para assimilar. Basta ler, ler com atenção.Você pensa que não está entendendo mas mentalmente está.(ROSA, 2006, p. 84, grifos nossos)

Como se operaria esse entendimento inconsciente do leitor, do qual nos fala

Rosa? Talvez através da recente desautomatização da percepção, ou então porque,

mesmo que tantas vezes o texto de Guimarães Rosa não logra ser primeiramente

entendido – devido ao malabarismo linguístico de sua ficcionalidade – é inegável que

16 Sobre a palavra escrita e a não escrita confira, entre outros, o trabalho de Calvino (1996, p. 139-47).

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ele expressa conteúdo através de um sentir/pensar que, de alguma forma diversa da

lógica da cultura escrita, acaba ganhando novos sentidos e significados.

Recolhidas algumas reflexões sobre os processos de escritura rosianos – a forte

herança que recebeu da cultura oral, a constante necessidade de (re)criar elementos do

mundo, o caráter lúdico do escrever como um brincar etc. –, passamos agora à

possibilidade de repensá-la como se fosse a construção da comunicação de uma criança.

1.4.1 Escrevendo como se fosse na infância

Pensar a afinidade entre a escritura de Rosa e a infância, tal como propomos

nesta tese e, mais especificamente, nesta seção do capítulo, não é uma completa

novidade; ao contrário, sempre que tomamos contato com declarações a respeito dos

processos de escritura rosianos não é incomum que se construa alguma analogia com a

relação que a criança estabelece com a linguagem. Por ora, por estarmos sublinhando o

processo de construção ficcional rosiano, cabe ressaltar que esses depoimentos, ao

abordarem a infância, mais comumente se referem ao período que chamamos de

Primeira Infância, convencionalmente atribuído aos primeiros 3 e 4 anos da vida

humana, marcados pelo amplo processo de crescimento através de

um modo muito notável, em que a criança em desenvolvimento torna-se aberta à língua, capaz de construir uma gramática a partir daselocuções de seus pais. Ela demonstra uma habilidade espetacular,uma genialidade para a língua entre as idades de 21 e 36 meses [...] eem seguida uma diminuição da capacidade, que termina com o fim dainfância (aproximadamente aos doze ou treze anos). (SACKS, 2010,p. 74, grifo nosso)

Figura 1.1 – Recortes de desenhos que VovôJoãozinho fez para a neta Vera Tess e que abordavama escritura: primeiro o ato de escrever; depois o autorRosa e enfim o resultado final: o livro. É interessanteobservar aqui que a linguagem gráfica do desenhosimples consistia em uma linguagem que até umamenininha de 3 para 4 anos pudesse compreender.Fonte – (ROSA, 2003, p. 61)

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Mas qual seria realmente a relação estabelecida entre a infância e a escritura de

Guimarães Rosa? Se a criança entra na linguagem a partir de fragmentos de elocuções

que ouve dos outros, trazendo essas declarações para o que concerne à obra de Rosa,

podemos pensar naquela escritura como uma polifonia de elocuções que seriam como

uma espécie de campo sonoro para aquela criação. Dito de outro modo, seria como se o

autor, ao escrever, desejasse retomar aquele tão antigo processo que todo ser humano

que fala e ouve viveu no início de sua vida, quando construiu sua própria gramática a

partir de restos de enunciações que encontrou a sua disposição. Assim, se para Rosa –

que, diga-se de passagem, foi um poliglota – a Língua Portuguesa usada no Brasil era

sua Língua Nativa (ou materna), isto é, a língua primeira que ouviu e à qual seu

aparelho fonador foi condicionado na chamada primeira infância, parece claro que é a

partir da audição da melodia desse idioma que o autor, tal qual fosse uma criança,

poderia formular sentidos próprios ao mundo a seu redor, ou seja, criar uma cultura. Em

entrevista fornecida em 1965, o próprio autor chegou a comentar o idioma que escolheu

para escrever:

Temos de partir do fato de que nosso português-brasileiro é umalíngua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado naEuropa. E além de tudo, tem a vantagem de que seu desenvolvimentoainda não se deteve; ainda não está saturado. Ainda é uma línguajenseits Von Gut und Bösel17, e apesar disso, já é incalculável oenriquecimento do português no Brasil, por razões etnológicas eantropológicas. [...] (a mistura com elementos dos idiomas dos negrose índios) foi um enriquecimento imenso e já pode ser notado noexterior pela quantidade de diferentes dicionários europeus eamericanos do mesmo idioma. Naturalmente, tudo isto está a nossadisposição, mas não à disposição dos portugueses. Eu, comobrasileiro, tenho uma escala de expressões mais vasta que osportugueses, obrigados a pensar utilizando uma língua já saturada.(LORENZ, 1991, p. 81)

A aguçada percepção do autor no que tange à língua que usava, expressa nessa

colocação, não é um fenômeno datado ou irrelevante, conforme pudemos flagrar no

depoimento de Hans Joachin Störig acerca do português falado no Brasil, na sua história

das línguas do mundo18:

17 A frase em alemão é traduzida na edição consultada como “além do bem e do mal”, constituindo umareferência direta ao nome da obra de F. Nietzsche.18 Não sabemos em que data esse texto foi originalmente escrito pelo cientista alemão, mas naapresentação do volume consultado, Erwin Theodor explica que “o capítulo relativo ao português, que nooriginal era pouco expressivo, foi especialmente preparado pelo ilustre escritor Hernâni Donato para apresente edição” (STÖRIG, 2006. p. 12).

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Ao começar o século XXI, o (idioma) português observa no Brasilrequisitos sociolinguísticos próprios de uma língua em uso, emevolução, incontrastada. É uma língua materna, nacional, oficial,padrão e de cultura.Os que não a têm como língua materna apontam dificuldades no seuaprendizado e emprego. (STÖRIG, 2006. p. 18-9)

Ora, se na época em que Guimarães Rosa escreveu o português falado no Brasil

era considerado difícil, porém inventivo – visto estar ainda em formação –, tal situação

perduraria atualmente, já que, apesar da virada do século, podemos dizer que talvez não

houvesse idioma melhor para que Rosa pudesse bem escrever suas ficções, afinal elas

também aparecem ao leitor como difíceis e inventivas, como se fossem um material que

permanece em construção.

Para esta investigação, o interesse em trazer à tona o tema infância na escritura

de Rosa está em problematizar a relação, tantas vezes conflituosa, estabelecida entre o

autor e a História, afinal sabe-se que na fase inicial da vida humana a criança pequena

ainda não possui a compreensão completa do tempo segmentado e por isso vai

vivenciando o mundo como um fluxo contínuo até que, com sua entrada na linguagem

verbal, acontece um amadurecimento da sua percepção temporal, quando ela começa a

se “orientar em um outro espaço (no sentido amplo) que não aqueles que são esboçados

pelos movimentos de nosso corpo: o tempo” (FRANÇOIS, 2006, p. 188), como se

estivessem sendo criados ‘novos tempos’. Propomos aqui que algo parecido igualmente

ocorre com a ficcionalização efetuada por Guimarães Rosa, já que nela o autor procura

interagir com esses processos de criação de linguagens e assim não só lança mão de sua

escritura para criar ‘novos tempos’ – tantas vezes opostos aos determinados como

únicos e verdadeiros pela História – como também interage e reage performativamente

aos seus movimentos.

Se a escritura de Rosa lida com a linguagem de forma análoga àquela operada

pelas crianças, tomando-a sem predeterminações e acreditando na possibilidade de

submetê-la a inúmeras modificações, vejamos qual a impressão do escritor

moçambicano Mia Couto, ao ler pela primeira vez um volume de Guimarães Rosa, em

meados da década de 1970, em meio a um contexto de guerra pela descolonização e

pelo tardio estabelecimento de Moçambique como Estado Nacional, por meio de seu

relato tecido em 1998:

Quando chegou o primeiro livro (de Guimarães Rosa), Primeirasestórias, houve um fenômeno curioso. Eu não conseguia entrarnaquele texto. Era como se eu não lesse, ouvisse vozes, que eram as

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vozes da minha infância. Os livros de Guimarães Rosa quase meatiram para fora da escrita. E, para eu entrar naquele texto, eu tenhode fazer apelo a um verbo que não é o verbo ler, que é um outro verboque provavelmente não tem nome. O que me tomava principalmentenão era a invenção de palavras, mas havia ali uma poesia, a talarrumação que funcionava muito como os dançarinos deMoçambique, os dançarinos da África em geral, naquele exatomomento em que eles estão entrando em transe para serempossuídos pelos espíritos. Aquele flagrante daquele momento em queaquilo já não é dança, mas já é outra coisa. Era isso que acontecianaquela linguagem. Era uma linguagem, quase uma linguagem detranse, que permitia que outras linguagens tomassem posse dela.(COUTO, 1998, p. 12, grifos nossos)

Nesse comentário acerca da forma como Rosa utiliza sua linguagem,

identificamos momentos que podem ser associados ao ficcional e à infância, tais como

quando Couto claramente cita a rememoração de “vozes de sua infância”19. Essa

afirmação nos remete a uma colocação de Jack Goody, citada por Luiz Costa Lima, que

nos fala da quase inexistência de narrativas ficcionais nas culturas orais africanas:

Em um ensaio que amplia enormemente o campo do que já chamei o“controle do imaginário”, o antropólogo Jack Goody observa a quaseabsoluta ausência da narrativa de invenção nas culturas orais, “talcomo se mantiveram as sociedades africanas primitivas, em que aficção era reservada aos relatos infantis [...] a difusão da literaturaescrita não abole a desconfiança a respeito da fiction. A narraçãosempre foi uma atividade ambígua, que comportava o ‘contarhistórias’, no sentido de coisas não verdadeiras, quando não deverdadeiras mentiras. Não se tratava de uma coisa séria”. (Apud.LIMA, 2006, p. 177)20

No âmbito dos questionamentos desenvolvidos no presente trabalho, é

interessante ler essa colocação a partir do filtro estabelecido pelas estórias rosianas, que

são ficções que rejeitam a séria verdade proposta pela História para se aproximarem

mais da anedota – tipo de narrativa que exige uma ampliação da percepção das direções

das expressões e de suas linguagens. Por ora, nos cabe esse destaque inicial, alertando

que a questão da anedota ainda voltará a ser abordada nesta tese.

Outro ponto que gostaríamos de sublinhar na fala de Couto é a abordagem da

ficção e da infância em Rosa de forma mais transversal, o que acontece quando o

moçambicano supõe que o texto de Rosa é escrito de modo a tirá-lo para fora da escrita

19 Flagramos a associação entre a escrita de Guimarães Rosa e as “vozes da infância” em alguns artigosde periódicos sobre a recepção das estórias, que foram selecionados por Rosa e que analisaremosdetalhadamente no último capítulo da tese.20 Luiz Costa Lima cita GOODY, J. De l’oralità Allá scrittura. Rflessioni antropologiche sur narrare,em Il Romanzo, vol. 1, La Cultura Del romanzo. F. Moretti(org). Einaudi, Turim, 2001.

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– sendo, portanto, uma escritura oral? –, fazendo com que, para Couto, a linguagem de

Rosa deixasse aberta a passagem para uma espécie de transição de um estado para o

outro, remetendo, com isso, à ideia de objeto transicional desenvolvida pelo

psicanalista D. W. Winnicott a respeito dos bebês. Para Winnicott, o que ocorre com a

criança em sua “primeiríssima infância”, é que “qualquer objeto que conquiste um

relacionamento com o bebê é criado por este” (WINNICOTT, [1959] 1994, p. 44), em

um contexto de transição no qual as sensações são adensadas. Adiante, em seu artigo,

Winnicott supõe a possibilidade de que “os fenômenos transicionais não passam [...],

eles podem se tornar uma arte perdida”, ou seja, iniciar uma outra “relação com a vida

cultural e da derivação, por ela sugerida, dos fenômenos transicionais da primeira

infância” (WINNICOTT, [1959] 1994, p. 48), tecendo uma reflexão de suma relevância,

à qual ainda retornaremos nesta tese.

Voltando ao inventivo texto de Couto, o autor arremata sua reflexão explicando

qual a importância, para um país como o que ele vivia, de se considerar os fenômenos a

respeito da invenção, especialmente na época de seu estabelecimento como Estado

Nação:

E isso era fundamental num país em que há uma amálgama, há umaficção que se chama Moçambique. Moçambique não é uma naçãoainda, é um projeto de nação, portanto é uma espécie de categoriaficcional que nós estamos inventando, numa situação em queexistem vários povos com suas próprias línguas, numa situação emque 80% não tem a língua portuguesa como língua materna, em quehá muita gente que não fala sequer português. (COUTO, 1998, p. 12-13, grifo nosso)

Desse modo, a partir da leitura do texto de Rosa e de sua “linguagem

transicional”, extremamente maleável, que ultrapassaria em muito a simples leitura das

letras dispostas da esquerda para a direita – direção única proposta pela cultura escrita

ocidental – e entraria no próprio contexto da criação, Couto chega a refletir rapidamente

acerca da construção do Estado de Moçambique, ao chamá-la de ficção, como que

alertando para a enorme importância da ficcionalização, especialmente no que tange a

países de passado colonial, que acabaram tendo de ser inventados enquanto Estados e

que talvez por isso sejam frequentemente relacionados à infância, fase mais inventiva da

vida humana.

Cabe aqui destacar que com a expressão “escrevendo a lápis de cor”, utilizada

no título desta tese, estamos nos referindo a registros do tempo que não são cristalizados

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como a História, mas a escritos a lápis que são, portanto, mutáveis, e que, por serem

coloridos, trazem embutidos em si mesmos a ficcionalização, já que o uso das cores

revela “algo da ordem do deslizamento mimético pelos improvisos imprevistos do

imaginário” (cf. SCHÉRER, 2009, p. 131), ou seja, eles constituiriam uma espécie de

ficcionalidade.

No entanto, se a escritura de Guimarães Rosa tinha realmente relações próximas

com as primeiras percepções das crianças é algo que vamos perceber na análise das

fontes dos nossos próximos capítulos. Por ora, no capítulo seguinte, trataremos melhor

da relação que o autor estabeleceu com infâncias e com a linguagem empregada pelas

crianças.

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Capítulo 2: A Infância e as linguagens infantis no mundo deGuimarães Rosa

2.1 Sobre as infâncias e a cultura “aletrada”

Começaremos esta etapa de nosso trabalho sobre a escritura rosiana com uma

abordagem mais biográfica, destacando as possíveis relações que o autor foi construindo

com a ideia de infância: a sua própria, a das filhas, a dos netos... indagando-nos se isso

poderia ter tido algum vínculo com a forma de compor seus textos. Para a História, a

própria ideia de infância – pressupondo relações peculiares com o tempo e a linguagem

– já seria assunto de grande interesse para os estudiosos, sendo proposto como tema de

pesquisas assim:

Podemos compreender a infância como concepção ou a representaçãoque os adultos fazem sobre o período inicial da vida, ou como opróprio período vivido pela criança, o sujeito real que vive essa faseda vida. A história da infância seria então a história das relações dasociedade, da cultura, dos adultos, com essa classe de idade e ahistória da criança seria a história da relação das crianças entre si ecom os adultos, com a cultura e a sociedade. Mas a opção por uma ououtra perspectiva é algo circunscrito ao mundo dos adultos, os queescrevem as histórias, os responsáveis pela formulação dos problemase pela definição das fontes a investigar. (FREITAS; KUHLMANN,2002, p. 07, grifo dos autores)

Nesta tese, embora venhamos a tocar nessas duas possíveis perspectivas de

abordagem do mundo da criança pelo historiador, interessa-nos mais selecionar o

conteúdo que melhor servir para ajudar a repensar as reconstruções executadas pela

ficcionalidade de Rosa através das construções linguísticas que operou e que estão

presentes nas diversas modalidades da escrita literária do autor.

Partindo do que veio sendo largamente comentado por seu críticos (COUTINHO

(org.), 1991), para uma escritura como a rosiana – que é toda estruturada a partir da

ficcionalização de elementos da fala (GALVÃO, 1986, p. 69-76) –, a infância já aparece

de imediato, afinal, em essência, o que seria esse processo senão a construção da sua

fala a partir da criação de elementos composicionais como a própria voz? Na escritura

de Guimarães Rosa, a construção da ficção – de maneira semelhante à da fala e da voz

para a criança que ascende à linguagem –, não se realiza como um acontecimento

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pedagógico, no sentido de ensinar os significados já existentes no mundo, mas através

de um movimento incessante de montagem, desmontagem e remontagem das

expressões, colocando a língua, a nacionalidade e a cultura numa zona de hesitação e

permutação.

O ser humano nasce dependente da relação que estabelece com o Outro e, para

garantir sua sobrevivência e se agrupar a seus pares, precisa desenvolver a

comunicação. Enquanto ainda é feto, o bebê sente apenas o que a mãe sente e sua voz é

ainda a voz da mãe, mas a necessidade de se distinguir dela e de tentar expressar sua

voz interior é percebida logo no parto, quando o bebê saudável chora:

O infans nas origens de sua existência, sob o efeito de uma tensãoendógena impossível de ser gerida, devido ao seu desamparo, lançaum grito. O grito do recém nascido não é, inicialmente, um apelo,sendo somente a expressão vocal de um sofrimento. Somente tornar-se-á apelo, pela resposta da voz do Outro, onde sinaliza seu desejo:‘que queres tu que eu te queira?’. O sujeito aqui é chamado a ser. Emoutras palavras, ele não é um produto natural. Para existir é preciso oOutro convocá-lo (no duplo sentido de apelo e nomeação). Pelainvocação do Outro, o significante entra no real e produz o sujeitoenquanto efeito de significação, sob a forma de resposta. Com aresposta do Outro, o grito puro tornar-se-á grito para. (VIVES,2009, p. 195, grifo nosso)

O som de agonia que inaugura a manifestação da voz primordial e especialmente a

resposta que recebe e que o delimita dão início ao princípio de um sujeito. Essa voz do

recém-nascido é carregada de terror, pois nasce de rupturas profundas – com a voz

materna que o eu achava ser a sua e com os significados expressos pela linguagem do

silêncio ao qual estava submetido até então (MESCHONNIC, 2006, p. 38). Para

exprimir sua voz, o ser humano precisou percorrer um longo caminho evolutivo,

passando por diversas adaptações, num trabalho conjunto do sistema nervoso central,

respiratório e digestivo, além de músculos que foram adaptando suas funções em busca

de um funcionamento harmônico que pudesse proporcionar uma emissão externa de

som eficiente (cf., entre outros, CORNUT, 1983, p. 03-40 e STEINER, 2005, p.78).

Segundo o foniatra Pedro Bloch,

O que mais espanta é que uma criança chegue a falar bem, poissabemos que o aparelho fonador parasita os aparelhos digestivo erespiratório para sua formação. Boca não foi feita para falar, nemlaringe, nem pulmão, nem diafragma, nem os órgãos de ressonância earticuladores. A fonação, em ordem de importância, é a terceirafunção da laringe, primordialmente órgão de proteção das vias aéreasinferiores e de respiração. A fonação, a fala, é uma função secundária,

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uma função imposta a órgãos que têm funções outras, umasuperestrutura ou uma sobrestrutura. É espantoso que a fala, diantedesta função recente, não se desorganize muito mais. (BLOCH, 1970,p. 14-5).

Partindo dessa situação surpreendente, podemos também perguntar: por que o

ser humano precisou desenvolver a fala? Era preciso que o ‘eu’ pudesse se manifestar

em som, garantindo que todo o ser humano saudável que fala também pudesse ouvir,

assim como todo aquele que ouve também pudesse falar, no “bocorelha”, ciclo

estabelecido no corpo e que apresenta como produto final a comunicação vocal. No

interessantíssimo livro Vendo vozes, o médico Oliver Sacks, entre outras coisas, reflete

acerca do modo como as pessoas que ouvem conseguem, ou não, lidar com as

dificuldades enfrentadas pelas pessoas que nasceram surdas ou perderam a audição

ainda na infância, no que tange ao ingresso na linguagem e na efetivação da

comunicação. Além disso, Sacks também fala da sensação que teve quando aprendeu a

língua dos sinais: era aprender um outro modo de linguagem que lhe forneceu

uma perspectiva totalmente nova e inesperada da linguagem, dabiologia e da cultura... tornou estranho o familiar, e familiar oestranho. [...] fui levado a vê-los [os surdos] como um povo, com umalíngua distinta, com sensibilidade e cultura próprias. [...] O estudo dossurdos mostra-nos que boa parte do que é distintivamente humano emnós – nossas capacidades de linguagem, pensamento, comunicação ecultura – não se desenvolve de maneira automática, não se compõeapenas de funções biológicas, mas também tem origem social ehistórica; essas são um presente – o mais maravilhoso dos presentes –de uma geração para a outra. Percebemos que a cultura é tãoimportante quanto a natureza. (SACKS, 2010, p. 10)

Se o estabelecimento da linguagem é uma condição humana, historicamente

esclarece-nos Nicolau Sevcenko que pesquisas

têm convergido no sentido de assinalar uma origem muito mais tardiado que se supunha até recentemente, ao desenvolvimento dalinguagem na espécie humana. Segundo as conclusões dapaleolaringologia somente com o homo erectus, há cerda de 500 milanos atrás, com o abaulamento da base do crânio e o abaixamento dalaringe, é que a linguagem articulada se tornaria anatomicamentepossível pela primeira vez na linguagem dos hominidíos. Essa questãotem uma implicação muito além do que simplesmente linguística. Ofenômeno de transformação genética que levou ao abaulamento dabase do crânio e o abaixamento da laringe é outra daquelastransformações que tornaram nossa espécie, ao mesmo tempo, rostoflexível e particularmente vulnerável, pois, entre outras implicações,ao contrário dos outros animais, o homem não pode respirar enquantocome, enquanto se alimenta. E isso é fundamental, na medida em que,

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em circunstâncias naturais, coloca o homem à exposição de outrasferas [...] A alimentação em grupo é, portanto, necessária por questõesde segurança, de repartição, o que cria a necessidade e aumenta acomplexidade nas comunicações humanas. É, portanto, óbvia arelação da alimentação e do desenvolvimento da fala, na medida emque ela implica em ritmo, em metodização e em comunicaçãoimediata. (SEVCENKO, 1988, p. 121-2)

Com mais esse intrigante trecho tocamos na possibilidade de retroceder pelos

séculos e de chegar em possíveis origens da narrativa para o ser humano. Sobre isso,

alertava-nos Walter Benjamin que a “experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte

a que recorrem todos os narradores” (BENJAMIN, 1994, p. 198). Mas será que a

narrativa é mesmo tão fundamental para nossa espécie? No início do século XXI

acredita-se que sim, já que isso vem sendo assunto de pesquisas na área de

neurolinguística e uma das hipóteses mais interessantes que tem sido levantada, ainda

que de forma difusa, é a possibilidade de que o ser humano seria, biologicamente, um

ser narrativo, pois “embora sejamos seres anatomicamente parecidos, historicamente

cada um de nós é uma narrativa singular, que deve ser recontada sempre a fim de que

possamos construir nossa identidade” e encontrar nosso “possível lugar no

desenvolvimento humano através do tempo, ou em outras palavras, do nosso corpo na

história” (RODRIGUES, 2009, p. 119).

Ainda naquele que até hoje é considerado um texto fundamental sobre o tema

das narrativas, o filósofo Walter Benjamin explica que “a narrativa, que durante tanto

tempo floresceu num meio artesão – no campo, no mar e na cidade – é ela própria, num

certo sentido, uma força artesanal da comunicação” (BENJAMIN, 1994, p. 205), sendo

que seu florescer acontece logo no início da existência, perceptível já no parto, no

primeiro grito do bebê pedindo a resposta de um Outro, iniciando a delimitação da

subjetividade: é o choro a dicção primordial humana, que mais tarde permite o início da

relação com a linguagem verbal – a expressão de fonemas e de palavras –, aquela que,

ainda na infância, é colocada como sendo a melhor forma de comunicar. Segundo

Heidegger, “o fundamento ontológico-existencial da linguagem é a fala. [...] Do ponto

de vista existencial, a fala é igualmente originária à disposição e ao compreender”

(HEIDEGGER, 2006, p. 223). Como nos esclarece Paul Zumthor,

Jogo, ritmo vocálico anterior à instauração de um espaço e de umtempo mensuráveis [...] no útero a criança já se banhava da Palavraviva, percebia as vozes e, como se diz, melhor os graves do que osagudos: vantagem acústica a favor do pai, mas a voz materna se ouviano íntimo contato dos corpos, calor comum, sensações musculares

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apaziguadoras. Assim se esboçavam os ritmos da palavra futura, numacomunicação feita de afetividade modulada, de uma música uterina...(ZUMTHOR, 2010, p. 16)

Mas o que a criança faz depois que ingressa na linguagem verbal? Ela

continuaria aquele processo, que começou antes de seu nascimento, de significar o

mundo a seu redor, conforme o vai percebendo. Quando nasce, tudo para ela é o

território do total estranhamento, que precisa ser inventado, de modo que a busca

constante por sentidos está presente em todas as atividades infantis. Quando brinca, a

criança constrói seu universo e sua subjetividade, mesmo que seja a partir de suas

concepções de tempo e espaço ainda em desenvolvimento, sempre usando livremente

seu corpo – gestos, formas e, sobretudo, a voz – como instrumentos de linguagem que

ainda não estão totalmente submetidos a regras. Segundo Claudia Santos Jardim,

o brincar informa sobre uma dimensão de fundamental importânciapara compreender o devir-criança. [...] Se o tema brincar estáassociado à infância, é porque a brincadeira é uma atividade quese inaugura na infância, ao mesmo tempo em que define através damemória lúdica do ‘eu brincar’ colado à pele e ao espírito. Trabalha-se, então, com subjetividades marcadas por um devir-criança cujalógica obedece mais à noção de blocos do que unidade. Brincar einfância parecem lugares privilegiados no percurso científico parapensarmos a subjetividade da criança. (JARDIM, 2002, p. 09, grifonosso)

No caso da produção literária de Guimarães Rosa, conforme ainda veremos

nesta tese, a diferença entre adulto e criança é problematizada, ganhando diversas

nuances e representações, o que nos autoriza a pensar que, tendo tido ou não a intenção,

Rosa parecia estar alinhado aos fluxos do pensamento acerca da infância e da criança

que tomavam forma especialmente a partir de meados do século XX – época da

escritura de suas estórias –, quando estudos das Ciências Sociais, especialmente a

Antropologia, nos possibilitaram falar de infância não mais como um campo de

limitações ou incompletudes, mas sim como um processo de constante construção de

sentidos, especialmente através do brincar. Nesse sentido, afirmamos aqui que o brincar

pode ser um processo de permanente busca por significados que as crianças praticam

constantemente, dando vida às linguagens e até mesmo à História.

Se para as crianças o processo de subjetivação inicia-se a partir do diálogo com

discursos de um Outro que lhe vai dando contorno, quando essa edificação conjunta se

abre, estamos falando de infância, independente da idade cronológica dos envolvidos. E,

talvez, o momento mais complexo de todo esse processo seja mesmo o da entrada do

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humano na linguagem por meio da fala. Assim, a quem deseje abordar o campo da fala

é importante atentar para alguns de seus mecanismos de funcionamento, tais como os

movimentos destacados pelo ritmo e pela prosódia21. Nas crianças, a reprodução rítmica

– como que imitando as repetições alternadas entre silêncio e ruído ocorridas

internamente no corpo (WISNIK, 1999, p. 18-19) – é compensadora, funcionando como

uma espécie de ‘recompensa’ pelo estresse neurológico resultante das frequentes

significações do mundo, por isso elas são especialmente sensíveis ao que é ouvido e que

pode ser repetido22. Na percepção da existência de breves silêncios no som abre-se a

chance para a produção de novos sentidos, independentemente da pré-atribuição de um

significado racional, como nos esclarece Mário de Andrade: “O ser biológico, colocado

em nova cenestesia pela poderosa rítmica sonorizada, se põe a pensar no que quer [...]. a

imaginação é fecundada pelo som e surge a ronda convidativa das imagens”

(ANDRADE, 1980, p. 24).

É assim que também funciona o pensamento que alimenta a imaginação na

criança, aspecto que posteriormente acaba surgindo em sua linguagem verbal, aquela

expressa inicialmente pela emissão de sons, na qual o corpo ainda aparece mais

diretamente. O sistema linguístico centrado na fala, que Paul Zumthor definiu como

“vocalidade”, corresponderia a qualquer reflexão sobre a “historicidade da voz: seu uso”

e isso está diretamente ligado às manifestações performativas do corpo23, acarretando

que “essa phoné não se prende a um sentido ou maneira imediata: só procura seu lugar”

(ZUMTHOR, 1993, p. 21). Ainda segundo Zumthor, a oralidade constituiria um

fenômeno diverso, uma vez que, ao tratar do falar, já adotaria uma perspectiva mais

linear, numa composição advinda da racionalidade letrada, problematizando, assim, de

forma mais ampla, a relação entre fala e escrita. Mas é somente a partir da extensão do

conceito proposto por Heri Meschonnic que a oralidade ganha contornos mais

definidos: “Para uma definição não mais fisiológica nem psicológica, mas cultural,

21 Sobre as adaptações do aparelho fonador, necessárias para garantir a fala humana, confira o estudo deCornut (1983).22 Em 2011, um vídeo público fez muito sucesso na internet, no qual dois bebês gêmeos idênticos, de umano e três meses, à margem das primeiras expressões vocais, estabelecem uma “conversa” ainda sempalavras. É interessante notar que, mesmo sem palavras, os bebês executam uma performance perfeita deum diálogo adulto: mostram que compreendem e respeitam o turno da fala, esperam sempre sua vez defalar, nunca sobrepõem as enunciações, entre outros aspectos que, tantas vezes, nem mesmo os adultosconseguem respeitar (cf. http://www.youtube.com/watch?v=NboDEYBGvbA).23Em maio de 2010, foi apresentada a comunicação João Rosa: Um escrevinhador de Narradores, no IISimpósio de Estudos Sobre Cultura: Linguagens e Abordagens no campo da performance dos pós-graduandos em História Social na FFLCH/USP, em cujo texto foi defendido que, no texto de GuimarãesRosa, é a linguagem que executa uma performance (RODRIGUES, 2010).

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histórica e poética da voz passa-se da dualidade oral/escrito a uma partição tripla: o

escrito, o falado, o oral” (MESCHONNIC, 2006, p. 37). Nesse sentido, o autor, ao

inserir a oralidade entre a “fala” e a “escrita”, multiplica as possibilidades de

significação das palavras, já que a elas não é atribuído mais um sentido definido pelos

códigos linguísticos, mas também uma articulação entre corpo e linguagem, na qual o

performativo está operando: “O oral é da ordem do contínuo – ritmo, prosódia,

enunciação. O falado e o escrito são da ordem do descontínuo, das unidades discretas da

língua” (MESCHONNIC, 2006, p. 42). Em seu movimento continuado, a oralidade

mistura aquilo que é escrita e o que é fala, sempre considerando a expressão das

mensagens anunciadas pelo corpo, antes mesmo do que é falado ou escrito, em um

mecanismo que nos permite visualizar os modos pelos quais os corpos usam e formam

as linguagens a fim de produzir modos de significação.

Desse modo, fugindo da interpretação dual, a teoria da oralidade de Henry

Meschonnic considera todas as esferas do processo oral, mas destaca que o lugar de

potência da fala se dá na escrita, porque em seu trabalho se delimita a aparição do

corpo. Mas, pensando a oralidade como um mecanismo que procura sempre estabelecer

uma continuidade entre as partes – como, por exemplo, através dos movimentos

expressos pelo ritmo –, é possível voltar à primeira percepção humana do tempo: um

contínuo no qual a criança habita. Sobre esse tempo, ainda em formação, escreveu Rosa:

“É o que mais se parece com a ‘felicidade’: um modo sem sequência, desprendido dos

acontecimentos – camada do nosso ser, por ora oculta – fora dos duros limites do desejo

e de razões horológicas” (ROSA, 1967, p. 151). Em seus primeiros anos de vida, o ser

humano vive no tempo horológico, já que não percebe o tempo como algo dividido em

partes ou mesmo como algo separado do espaço, aspecto que interfere na sua acepção

de linguagem, pois tudo pode ganhar diferenciados sentidos. Embora a divisão de

“sequências, modelo de recorrência regular como horas ou minutos” (ELIAS, 1998, p.

07), proposta pelo relógio, seja apenas uma padronização social, é preciso ensiná-la às

crianças, visando sua melhor convivência no mundo. Mas há um momento na infância

em que a criança, enfim, começa a perceber o tempo padrão organizado, o que acontece,

especialmente, quando ela começa a ser alfabetizada e aprende as regras de organização

de sua vida (AGAMBEN, 2008, p. 111-28)24.

24 Ilustrando esse aspecto, na canção chamada Relógio, no disco Mil Pássaros, da dupla de música infantilPalavra Cantada, vemos um experimento sonoro que pretende expor a criança às divisões simultâneas dotempo, que ela inicialmente percebe como contínuo (PALAVRA CANTADA, 1999).

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Essa elaboração do tempo ocorre concomitantemente a uma espécie de

amadurecimento em relação à linguagem verbal. No livro infantil O Menino que

aprendeu a ver, de Ruth Rocha, é possível acompanhar o estranhamento do garoto João,

que começa a ser introduzido nas normas gramaticais. Como criança, ele ainda entende

as letras como desenhos, tal como nas fases mais ‘primitivas’ da cultura humana,

fazendo com que o mundo de João seja assim:

Já quando ele começa a ser alfabetizado na escola, deixa de ver os desenhos que

via antigamente, pois eles são substituídos por letras, causando-lhe estranhamento:

Figura 2.1 – Texto de Ruth Rocha e ilustração de Elisabeth Teixeira contando que João enxergava as letrascomo se fossem desenhos, que consistiam em algo ao qual ele estava acostumado a ver.Fonte – (ROCHA, 1998, p. 08).

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Isso acontece porque a passagem do registro infantil para a ordenação letrada é

bastante forte, podendo até ser traumática (cf. SACKS, 2010, p. 44-7; GOODY; WATT,

2006). Ainda durante a alfabetização, a criança parte daquelas múltiplas linguagens com

as quais estava habituada a se comunicar para expressar suas vivências, que

posteriormente passarão a seguir as regras gramaticais (EDWARDS; FORMAN;

GANDINI, 1999).

A partir de meados de 1980, as experiências no tocante às formas de

alfabetização de crianças desenvolvidas pela psicolinguista argentina Emilia Ferreiro

começaram a ser divulgadas no Brasil, causando grande impacto entre os educadores.

Para Ferreiro – formada pelo construtivismo de Jean Piaget – também os pequenos

possuem papel ativo no próprio aprendizado, pois são capazes de ajudar a edificar seu

próprio conhecimento, já que a criança também “constrói sistemas interpretativos,

pensa, raciocina e inventa, buscando compreender esse objeto social que é a escrita, tal

como ela existe em sociedade” (FERREIRO, 1995, p. 07)25. A visada proposta por

Ferreiro considera fundamental levar em conta não apenas o que os alfabetizadores

adultos pensam sobre a escrita, mas também as crianças educandas, que estão

aprendendo, visto isso acabar incentivando uma reflexão sobre o processo e as

25Encontram-se disponíveis na internet vídeos realizados para alfabetizadores nos quais é possívelcompreender o que crianças bem pequenas (com cerca de 5 anos de idade) pensam sobre a escrita antesde serem alfabetizadas (cf. http://www.youtube.com/watch?v=NCo5ybibn5Q;http://www.youtube.com/watch?v=icFlW3OjesE& feature=relmfu).

Figura 2.2 – Texto de Ruth Rocha e ilustração de Elisabeth Teixeira contando que João expressa seuestranhamento ao perceber que em tudo, ao seu redor, estavam inscritas as letras que ele estava aprendendo naescola.Fonte – (ROCHA, 1998, p. 28-9)

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consequências do letramento (PINO & ZULAR, 2007, p. 49-100; GOODY; WATT,

2006), reflexão essencial não só para o Brasil, como para todas as nações que foram

colonizadas, nas quais a prática da escrita sempre foi e continua sendo um elemento de

diferenciação social, naturalizando uma hierarquia social que se apresenta, muitas das

vezes, de forma violenta.

Esse tipo de estranhamento que as crianças sentem em relação às palavras

escritas foi sentido em outros momentos da História Cultural da humanidade. Para

abordarmos tal aspecto, voltemos a pensar naquela citação de Zumthor acerca da

importância do ritmo para a comunicação humana ainda na fase intrauterina, que se

refere ao circuito especial, formado pela fala/escrita, que está na base daquilo que foi

desenvolvido na Idade Média e que chamamos de poesia oral. Enunciações desse tipo já

eram identificadas na antiguidade, fosse nos discursos dos filósofos pré-socráticos, dos

dramaturgos gregos ou mesmo nos poemas homéricos, conforme se analisou no

instigante trabalho A Revolução da escrita da Grécia Antiga e suas consequências

culturais, de Eric A. Havelock (1996), a partir do qual é possível pensar que os textos

antigos, quando lidos em nosso tempo, nos possibilitam a identificação de certa

obediência às “regras da composição oral – com tudo o que isso implica de improviso”,

ao que poderíamos nos perguntar se essa leitura não seria,

de um ponto de vista histórico, um exercício artificial sobre arranjoslinguísticos elaborados de modo a prender a atenção do ouvido, e nãodo olho, arranjos correspondentes a sensibilidades acústicas, deaudiências que haviam de escutar e recordar algo do que ouviram,porém jamais nutriram a expectativa de ler e julgar essas coisas comose lê e julga uma obra escrita de literatura? A composição oral, talcomo era praticada pelos mestres gregos, por certo não deve serpensada como matéria de improviso, à maneira do que fazem oscantadores [...] era, por definição, uma composição rítmica, logo‘poética’, pode-se dizer – embora quiçá fosse mais apropriado, mesmose mais rude, dizê-la ‘poetizada’. Os termos ‘poéticos’ e ‘poesia’, talcomo nós os pensamos, equivalem a ‘letrado’ e ‘arte da escrita’.Constituem por exemplo de um modo de falar que transporte para oque é nomeado um juízo de valor, derivado, neste caso, do sistema devalor da cultura escrita. (HAVELOCK, 1996, p. 13)

A partir de tais reflexões, cabe a pergunta: será que esse tipo de preocupação não

poderia ser uma das fontes remotas da escritura de Guimarães Rosa, no sentido de que

seu artesanato ficcional constrói uma determinada oralidade a partir de uma via de mão

dupla entre fala e escrita, na qual o ritmo se encarrega por todo o teor de movimentação,

executando assim o papel de mediador, que poderia salvar essa escrita de juízos de

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 46

valor? Ao que nos parece, na escritura rosiana tal conflito é, sim, requestionado, não

apenas no conteúdo, mas também na forma: quando lemos seus textos, nos sentimos tão

próximos à cultura oral que é até possível esquecer que se trata de composições escritas

do começo ao fim. Isso demonstra que a tensão entre as culturas oral e escrita já está

sendo colocada na obra rosiana desde o início – ora propondo harmoniosa circularidade,

ora conflitos –, mas o fato de que não a percebamos logo de início indica não só o alto

grau de complexidade daquele engenho, mas também o possível sucesso de Rosa em

sua construção ficcional literária: o senhor “mire e veja” (ROSA, 1979). Tudo está ali,

imbricado naquela composição literária.

Continuando a pensar na tensão entre as culturas, destacamos que, em 2010, foi

publicada no Brasil a tradução do longo poema satírico A nau dos Insensatos (1494), de

Sebastian Brant, não em sua versão original, mas em uma adaptação em prosa, com

vistas a facilitar a compreensão do leitor brasileiro, já que a crescente dificuldade na

leitura dos poemas em nosso tempo obriga que, no âmbito do universo editorial

mercadológico, até mesmo os poemas clássicos sejam adaptados em prosa para

conseguir leitores (BRANT, 2010, p. 17). Ainda assim, a publicação continua

preservando alguns momentos nos quais se flagram marcas do conflito entre as culturas

letrada/iletrada, marco da passagem da Idade Média para a Moderna, como vemos aqui:

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Para tratar do embate entre os que escrevem e os que não escrevem na sociedade

grega antiga, o já citado classicista britânico Eric A. Havelock assume a dificuldade em

ter de contestar o modo de pensar de todo um grupo de estudiosos que considera

constrangedor assumir que os pensadores da Grécia antiga não eram letrados. Para o

teórico, porém,

a piedosa condescendência implícita nestas palavras, refletindo, comoo faz, os valores de uma cultura letrada, talvez seja mal concebida emal orientada. Substituindo-se o termo analfalbetismo, indicador deuma deficiência pessoal, por cultura sem escrita, ou pré-letrada,torna-se possível uma perspectiva histórica diferente. (HAVELOCK,1996, p. 12)

De fato, usar o termo analfabeto quando se compara culturas diferentes é

carregar o discurso de juízos de valor, já que o adjetivo pressupõe que aquele que não

conhece o alfabeto é incapaz de ler o mundo, ideia com a qual Guimarães Rosa – autor

de textos tão sonoros e imagéticos – não parece compactuar. Mas também o termo “pré-

letrado”, sugerido como opção de substituição a analfabeto por Havelok, não parece ser

dos melhores, já que também carrega embutido em si a sugestão positivista da

Figura 2.3 – Xilogravura do próprio Sebastian Brant, que foi também quem escreveu a legenda original,mantida acima, como parte da imagem: “À dança dos parvos eu me uno, colocando-me na dianteira do desfile,pois vejo ao meu redor uma montanha de livros que não leio e nem consigo entender”.Fonte – (BRANT, 2010, p. 26).

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existência de uma “evolução” a ser vivenciada pelos que se expressam em culturas não

letradas ao passarem para a condição de letrados.

No caso específico da literatura de Rosa, lembramos que todas as suas

mensagens se encontram consolidadas na linguagem literária que utilizou, não sendo

inocentemente que o autor tenha chamado o primeiro dos quatro prefácios de seu livro

Tutaméia (Terceiras Estórias) de Aletria e hermenêutica. Segundo as sugestões de

significado desse título, propostas pelo Léxico de Guimarães Rosa, a palavra aletria

poderia ser “macarrão popularmente chamado de cabelo-de-anjo”26, levando a

considerar a possibilidade de o autor ter escolhido um

título jocoso (do tipo latim macarrônico) com estranha assimetriasemântica? Teria inventado uma metáfora em que aletria representasutilezas, finuras de linguagem exigidoras de hermenêutica(interpretação do sentido das palavras)? Pode-se pensar tambémnum homônimo neológico criado pelo autor com os elementos a-(pref. neg.) + letra + -ia = ‘privação da escrita’, ‘anafalbetismo.’(MARTINS, 2001, p. 20, grifo nosso).

Tendo em vista a hipótese de que há um interesse de Rosa pela relação distinta

que os pequenos estabelecem com a linguagem, não gostaríamos de pensar as crianças

como letradas ou iletradas, analfabetas ou pré-letradas, não só porque esses termos

carregam uma miríade de juízos de valor (HAVELOCK, 1996a, p. 12), mas

especialmente porque nenhum deles dá conta de expressar a situação infantil. As

crianças, especialmente as pequenas, vivem um momento mais especial, no limiar da

palavra escrita ou falada, exatamente onde as duas formas culturais se tocam e se

transformam a partir do contato de uma com a outra, acarretando que, para nomear esse

momento, pedimos licença para inventar um termo novo: “aletrado”27. Na língua

portuguesa, o prefixo ‘a’ não indica apenas negação, mas pode propor outros sentidos,

como o de afastamento (MARTOS, 1991, p. 90), de modo que, se pensarmos em

‘aletrada”, procuramos destacar que a situação da criança em relação ao conflito

estabelecido entre letrados e iletrados é diferente, já que, embora ela também esteja

inserida nele, consegue vivê-lo a partir de outra ordem, como que dele afastada, vivendo

no pleno estado do transe ou, citando um conto do próprio Rosa, poderíamos dizer que

26 Como ainda veremos ao longo desta tese, é importante ter em mente que os anjos e também os pássarossão símbolos que representam a intermediação entre a terra e o céu (cf. CHEVALIER; GHEERBRANT,1994, p. 690), intervenções simbólicas facilmente percebidas pelas crianças, que compactuam com talintermediação.27 Ao propormos esse termo, partimos da palavra “aletria”, que foi usada por Rosa no título do já citadoprefácio (ROSA, 1967), indicando uma negação do mundo letrado.

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as crianças estariam na terceira margem do rio (ROSA, 1978, p. 27-32) que separa a

cultura letrada da não-letrada. Esse talvez tenha sido o próprio “projeto mágico”

desenvolvido pela literatura rosiana (SEVCENKO, 1998, p. XXI-XXV).

Pensando nesse tipo de posicionamento e também no meticuloso trabalho com a

linguagem executado pelo autor, ao que nos parece, naqueles textos, os parâmetros

experimentados pelos gregos antigos ou pelas crianças estão sempre postos em

discussão: naquela escrita, de forma surpreendente, são os valores da cultura vocal

popular os que determinam seu alcance, daí multiplicarem-se as temporalidades e até

mesmo o poder da mensagem escrita ser posto em questão, já que aquele trabalho quer

se construir livre dos “ocloques”28 do relógio, pois eles só repetiam sempre a mesma

hora (ROSA, 1967, p. 150), enquanto que, para um intermediador cultural como Rosa, é

evidente a coexistência de múltiplas temporalidades em tensão constante, aspecto que o

tempo único do relógio não dá conta de dimensionar.

Inicialmente, é esse contexto especial, vivido pela criança em relação ao tempo e

à linguagem durante sua subjetivação, que constitui uma das definições de infância que

aqui levantamos e pensar isso em relação ao universo do escritor Guimarães Rosa,

inicialmente, parece algo um tanto despropositado, haja vista que ele, diferentemente de

outros escritores de literatura adulta do século XX29, nunca escreveu nenhuma obra

destinada ao público infanto-juvenil, apesar de ter sido citado no levantamento da

literatura infantil brasileira de Leonardo Arroyo como um dos escritores que Cavalcanti

Proença destacou como o responsável por levar, aos seus textos escritos para adultos,

traços herdados da audição de estórias orais na infância – como o “ritmo fraseológico” e

a consideração da palavra como “matéria prima de emoções artísticas” (ARROYO,

2011, p. 61). Mesmo em suas estórias escritas para o público adulto, as personagens

crianças não são as que recebem maior destaque, excetuando-se uma delas, o menino

Miguilim – protagonista da novela Campo Geral, do livro Corpo de Baile que ainda

28 Ocloque: “Batida, toque. Forma adaptada do inglês o’clock, que se usa na indicação das horas, assumeno texto (ROSA, 1967. p. 150-67) valor de onomatopeia por associação a toc e a tic-taque” (MARTINS,2001, p. 358).29 Lembramos especialmente de Graciliano Ramos, com os livros A Terra dos meninos Pelados (1939),Alexandre e outros heróis (1962), Histórias de Alexandre (1944) e O Estribo de Prata (1984); ÉricoVeríssimo, com os livros A vida de Joana d'Arc (1935), A vida do elefante Basílio (1939), As aventurasde Tibicuera (1937), As aventuras do avião vermelho (1936), Meu ABC (1936), O urso com música nabarriga (1938), Os três porquinhos pobres (1936), Outra vez os três porquinhos (1939), Rosa Maria nocastelo encantado (1936), Viagem à aurora do mundo (1939), Aventuras no mundo da higiene (1939) eGente e bichos (1956); e Clarice Lispector, com os livros A Mulher que Matou os Peixes (1968), A VidaÍntima de Laura (1974), Como Nasceram as Estrelas: Doze Lendas Brasileiras (1987), O Mistério doCoelho Pensante (1967) e Quase de Verdade (1978).

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será citado nesta tese e que apresenta elementos diretamente inspirados na própria

infância do autor (GUIMARÃES, 2006, p. 29-30) –, ainda sendo tomado como a

melhor ou única representação legítima da infância na obra de Guimarães Rosa

(ASSUNÇÃO, 2010). Entretanto, conforme ainda veremos, há também naquela obra as

interessantíssimas representações de personagens meninas, apresentando outras faces da

infância.

Como temos discutido aqui, sempre que tomamos contato com declarações

acerca dos processos de escritura rosianos, não é incomum que se construa alguma

analogia entre ele e a relação que a criança, especialmente a pequena, estabelece com a

linguagem. Vimos isso acontecer a partir das próprias declarações do autor – como

quando, em 1965, ele contou a Güinter Lorenz seu desejo de limpar a linguagem até que

ela voltasse a ter seu sentido original (LORENZ, 1991, p. 81) – ou a partir das reflexões

advindas de analistas da linguagem – como consta no acervo permanente do Museu da

Língua Portuguesa em São Paulo que aponta que “vários processos de formação dos

neologismos de Guimarães Rosa são encontrados na fala de crianças que estão

aprendendo o português como língua materna”30. Assim, primeiramente, a relação entre

a escritura de Guimarães Rosa e o mundo infantil se percebe na relação com o período

que chamamos comumente de Primeira Infância, no qual as crianças constroem sua

própria linguagem a partir das elocuções dos outros, tal como Rosa se deixaria penetrar

pelas vozes de terceiros em seu texto. Assim declarou o próprio Guimarães Rosa sobre

sua escritura:

Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idiomaportuguês, tal como o usamos no Brasil; entretanto, no fundo,enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outrosidiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idiomapróprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tiraniada gramática e dos dicionários dos outros. A gramática e achamada filologia ciência linguística, foram inventadas pelosinimigos da poesia. (LORENZ, 1991, p . 70, grifo nosso)

Assim, as primeiras vivências do ser humano com a linguagem verbal parecem

ser de especial interesse para Guimarães Rosa, lembrando a definição daquilo que ele

próprio disse ser o seu método, o qual “implica na utilização de cada palavra como se

ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e

reduzi-la a seu sentido original” (LORENZ, 1991, p. 81), pensando nessa busca por

30 Tal frase foi encontrada no segundo andar da exposição permanente do Museu da Língua Portuguesa,em São Paulo, em 10 de outubro de 2010.

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trilhar um caminho reverso no tempo cronológico, propondo aos leitores que tornem a

experimentar a perspectiva de uma criança pequena (cf. FITZGERALD, 2009). Como o

texto de Rosa se constrói a partir da proposta de um constante trabalho de significação,

em uma espécie de brincadeira poética, seu texto aproxima-se do sentido ativo de

retomar o período em que o bebê se comunica com seus pais por meio de linguagens

primitivas, como o mamanhês, nome dado ao modo como os pais e todos ao redor falam

com o bebê recém-nascido:

Em praticamente todas as culturas, mesmo ao se dirigir a um recém-nascido, ainda que a mulher seja mãe pela primeira vez, ela tende autilizar um modo especial de fala ao se dirigir ao seu bebê. As mesmascaracterísticas podem ser observadas na fala paterna, e na interaçãodos adultos de um modo em geral com crianças muito pequenas. Estetipo de fala, geralmente utilizado por adultos quando em interaçãocom crianças pequenas foi denominado baby-talk ou fala mamanhês.(FERREIRA, 2005, p. 201)31

Ferreira continua explicando que a característica mais importante desse falar,

que não é um simples tatibitati, é o estabelecimento de vínculos afetivos, de

socialização e de comunicação fundamentais, tanto que a autora pôde distinguir uma

tipologia linguística do mamanhês:

CARACTERÍSTICAS SINTÁTICAS: Frases curtas e independentes,paradas durante o enunciado, repetição;CARACTERÍSTICAS LEXICAIS: Simplificação morfológica,reduplicação, multifuncionalidade das palavras;CARACTERÍSTICAS PROSÓDICAS: Tom de voz bastante agudo,entonação exagerada, velocidade de emissão mais lenta, silabação,alongamento de vogais. (FERREIRA, 2005, p. 202)

É assim que o bebê começaria a se adequar a sua Língua Materna para, em

seguida, poder falar normalmente. Em Rosa, apesar da busca constante de um retorno ao

que há de mais limpo de pré-atribuições, sempre há pelo menos um conteúdo prosódico

que remete a uma memória muito primeva, que trazemos desde quando ouvimos os sons

e os ritmos da vida intrauterina e quando os pais e pessoas próximas já se comunicavam

com o feto através de vocalizações e do mamanhês, formas iniciais de comunicação

sonora que iniciam e dão continuidade ao processo de construção da subjetividade, fato

que sucede principalmente na infância através da brincadeira, segundo postula Raquel

Zumbano Altman:

31 Sobre esta comunicação com crianças pequenas, confira também (PINKER, 2010,p.40-111)

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O seio oferecido, os olhos apaixonados que seguem seus movimentos, ocontato com a face da mãe que o embala, o sorriso do pai que o recebenos braços são os primeiros brinquedos do bebê. Aos poucos elepercebe as próprias mãos, segura os pés, tateia nariz, orelhas, boca,despertando seus sentidos num mundo de descobertas. É a aventura dedescobrir-se e reconhecer sons, cores, formas. Despertando para omundo que a cerca, a criança brinca.No ciclo da vida sempre há de ser assim. No começo, a criança é seupróprio brinquedo, a mãe é seu brinquedo, o espaço que a cerca, tudo ébrinquedo, tudo é brincadeira [...]. (ALTMAN, 2007, p. 245)

Nesse ambiente, o brincar, percebido como fenômeno que se opera em um

espaço transacional entre realidade e não realidade, efetua a subjetivação e ensina ao

bebê as coisas do mundo a seu redor, constituindo uma das bases fundamentais para o

desenvolvimento humano (WINNICOTT, 1975). Ainda sobre esse aspecto da infância,

em outubro de 2012, foi publicada uma reportagem sobre as mais atuais pesquisas

científicas acerca do desenvolvimento dos bebês, na qual a psicóloga e pesquisadora da

Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Maria Stella Coutinho Gil, defende que,

“mais do que nascer sabendo, o bebê já nasce aprendendo” e que o mais importante no

que respeita ao desenvolvimento da cognição do bebê é que se interaja com ele, que se

fale e brinque com a criança, ainda que seja em mamanhês, afinal,

Quando o bebê começa a grunhir, querendo ‘conversar’, a mãe esperaque ele termine e responde ao grunhido da mesma forma,estabelecendo a comunicação”, diz a psicóloga Maria Stella CoutinhoGil. O resultado disso? “Com o passar do tempo, a mãe se torna maisexigente em relação à pronúncia das palavras quando o bebê começa afalar, contribuindo para o desenvolvimento da linguagem. (LOPES eLOPES, 2013, s.p.)

Ainda que muito se tenha pensado sobre como acelerar o desenvolvimento dos

bebês32, até hoje não se chegou a nenhuma conclusão definitiva que, comprovadamente,

supere tal ideia de que o mais importante é interagir com o pequeno, a fim de que ele

possa ouvir a ‘canção’ entoada pelas falas de pessoas a seu redor (TATIT, 2012)33,

compondo uma fértil “paisagem sonora” (SCHAFER, 2001, 2011)34 a partir da qual a

32 Como exemplo de empreendimentos em tal sentido, consultamos apenas o CD Baby Bach e o DVDBaby Mozart, mas é sabido que Baby Einstein é uma marca de toda uma coleção, destinada a bebês oucrianças pequenas, que foi sucedida por tantas outras com os mesmos objetivos.33 Segundo Luiz Tatit, a canção, da maneira como é conhecida no Brasil, não seria um gênero musical,mas sim uma linguagem, cuja característica básica seria conter conjuntamente melodia e letra, resultandoem novos significados. Seu surgimento deu-se a partir da nossa fala cotidiana, que também possuimelodia e letra.34 Uma leitura da ideia de “paisagem sonora” pensada por Schafer está em Obici (2008). Já uma tentativade pensar esse conceito a partir do universo de Guimarães Rosa encontrase-se na dissertação, defendidana área de Geografia, de Felicissimo (2006).

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comunicação do bebê se desenvolverá. Esses primeiros usos do som pelo ser humano,

que busca estabelecer uma comunicação afetiva, se efetiva no desenvolvimento da

empatia. Segundo os recentes resultados das pesquisas do primatólogo Frans de Wall, a

capacidade de desenvolver tal sentimento não é característica apenas do ser humano, já

que estudos têm demonstrado que outros animais também são capazes de manifestar o

mesmo sentimento, em diferentes níveis. Isso poderia explicar situações como a

observada entre os babuínos, nas quais um macho pode produzir grunhidos e

vocalizações “ao identificar-se com as intenções de um filhote, enquanto a mãe lhe fazia

cafuné” (WALL, 2010, p. 206), demonstrando, assim, certo grau de empatia. Aliás, em

relação aos animais, considerados no decorrer do tempo evolutivo das espécies, Wall

nos apresenta a hipótese de que a empatia:

Faz parte de uma herança tão antiga quanto a própria linhagemmamífera. Ela mobiliza regiões do cérebro que existem há mais decem milhões de anos. A capacidade de sentir empatia pelo outroemergiu num passado extremamente longínquo, com o mimetismo e ocontágio emocional. Depois disso, a evolução foi acrescentandocamada após camada, até que nossos ancestrais se tornassem capazesnão apenas de sentir o que os outros sentem, mas também decompreender os desejos e as necessidades de seus semelhantes. Aempatia tem a forma de uma boneca russa. No seu núcleo internoencontra-se um processo automático partilhado por um grande númerode espécies, e esse núcleo é rodeado por camadas externas queregulam a finalidade e o alcance da empatia. (WALL, 2010, p. 294-5)

Nas vivências iniciais do ser humano, é a presença dos pais, especialmente da

mãe, que vai trocar com o bebê as primeiras sonoridades, ritmos e tradições culturais.

Assim, além de visar as trocas de enunciações e de outras sonoridades, dentre os

primeiros cuidados dispensados à criança, Silvia Ambrosis Pinheiro Machado explica

qual seu objetivo ao estudar as Canções de Ninar brasileiras:

Conhecer e estudar as palavras ditas e cantadas às crianças pequenas,fortalecendo, assim, o ambiente cultural que as envolve é o objetivoespecífico desta pesquisa; cuidar da infância brasileira, dos pequenosque ainda não falam foi e é seu motivo maior. O ambiente cultural étão fundamental e delimitador da experiência humana quanto oambiente físico e emocional (familiar ou institucional). Cuidar dosurgimento das palavras, da sua afinação com a experiência vivida, deseu vigor e sentido; cuidar do ouvir, do balbuciar, do murmurar, dofalar, do cantar, do contar, do silenciar; cuidar, enfim, da experiênciainicial com a palavra é condição para o desenvolvimento pleno desteser de linguagem que é o homem. (MACHADO, 2012, p .22)

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Tais objetivos parecem se alinhar em muitas frentes aos propostos pela escritura

de Guimarães Rosa, visto que ao nos debruçar sobre seu trabalho, estamos abordando a

produção e circulação de artefatos de cultura, tão importantes quanto são os acalantos,

tal como ainda nos explica Silvia:

A canção de ninar é um objeto cultural que se inclui na esferaeducativa e de cuidados dispensados à criança pequena, neste sentidoé uma ação de puericultura. Resgatar o componente ‘cultura’ do termo‘puericultura’ permite situar a canção de ninar no âmbito destapesquisa. (MACHADO, 2012, p. 22)

Assim, estamos falando de canções que agem como forma de cuidado – no

sentido de serem ‘melodias + palavras’ que atuam de forma terapêutica, já que negar os

poderes medicinais da música “seria negar a própria função dos sentidos” (ANDRADE,

1980, p. 13) – e que agem também como cultura, segundo nos explicou Alfredo Bosi,

lançando mão da etimologia da palavra:

De cultum, supino de colo, deriva outro particípio: o futuro, culturus,o que se vai trabalhar, o que se quer cutivar. O termo, na suasubstantiva, aplica-se tanto às labutas do solo, agri-cultura, quanto aotrabalho feito no ser humano desde a infância; [...] cultura é oconjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores que sedevem transmitir às novas gerações para garantir a reprodução de umestado de coexistência social. (BOSI, 2003, p. 16, grifo nosso)

Nosso interesse em trazer à tona o tema da infância na escritura de Rosa visa,

portanto, problematizar a relação, tantas vezes conflituosa, estabelecida entre o autor e a

História, uma vez que, como já lembramos no começo desta tese, na fase inicial da vida

humana a criança pequena ainda não possui a compreensão completa do tempo

segmentado (cf. PIAGET, 2002), sendo que, quando ela começa a perceber o tempo de

outra forma, é como se estivessem sendo criados ‘novos tempos’. Podemos dizer que

algo semelhante se dá na escritura rosiana, logrando estabalecer uma interação e reação

com os movimentos do tempo, (ZULAR, 2007), como veremos mais detalhadamente no

terceiro capítulo desta pesquisa, no qual nos debruçaremos sobre seus Cadernos. Por

enquanto, vejamos o exemplo de uma carta-enigma que Rosa escreveu a uma de suas

irmãs quando ainda era menino:

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Nessa missiva, podemos observar um exercício característico de quem está

percebendo processos de fragmentação do tempo, já que ali Joãozito não só dividiu o

mundo em palavras, mas também as fragmentou em pedacinhos estabelecidos a partir

de seus aspectos visuais ou sonoros, transformando-os em desenhos ou símbolos.

Naquela brincadeira pioneira com as palavras, identificamos um grande interesse em

dividir para manter ativo o movimento entre as partes, o que, paradoxalmente,

restauraria o contínuo através de processos de ressignificação, sendo talvez por isso que

essa carta foi chamada por sua filha, Vilma Guimarães Rosa, de “a mais antiga obra

literária do João-Papai-Menino” (ROSA, 1999, p. 70). Nota-se ainda que no período da

infância de Guimarães Rosa (de 1908, quando nasceu, até aproximadamente 1920,

quando completou 12 anos) era comum que almanaques e periódicos apresentassem

esse tipo de carta (cf. JANOVITCH, 2006) e, mesmo no período em vivia em

Cordisburgo, Guimarães Rosa, por ser filho de um comerciante, sempre estava em meio

a jornais velhos, usados como papel de embrulho na loja do pai (GUIMARÃES, 2006,

Figura 2.4 – Carta enigma escrita por Joãozito a sua irmã. “Querida irmã/ Desejo que estejas passandobem. Mamãe e papai e Zezé, Dora, Zé Luiz e o Barriga de Peixe estão bem?/ Mamãe recebeu minha carta? Ea revista? Dei os jabotis e guardei apenas o pequenino crucifixo.../ Saudades!/ Joãozito. P.S. Peço-te entregaresta música ao João do Snr Januário. É uma valsa muito bonita. Lembranças ao Snr. Januário, João e Vicente.O mesmo.”Fonte – (ROSA, 1999, p. 70).

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p. 43), sendo muito provável que tenha sido essa a inspiração de Joãozito para brincar

de tal modo com as palavras desde tão cedo. Dentre esse tipo de publicação, destacou-se

na época O Tico-Tico (1905)35, primeiro periódico nacional dedicado ao público

infantil, que apresentava um projeto pedagógico para o qual “a criança passava a ser

vista principalmente como o futuro da nação, adquirindo uma responsabilidade que seria

simbolicamente reforçada pela utopia do país do futuro” (HANSEN, 2007, p. 03).

Nesses tempos, a criança passava a tomar posição importante na sociedade brasileira,

afinal ela era – tal qual o Estado republicano do Brasil – uma representação do futuro.

Já no que respeita à história das ideias sobre o Brasil, a analogia com a infância

nasceu junto com a construção da nação, propiciada com a proclamação da República

em 1889 (cf., entre outros, SEVCENKO, 2003; CARVALHO, 2007), aspecto que se

manifesta claramente na própria letra do Hino Nacional, na qual o país aparece

metaforicamente associado a um bebê:

Deitado eternamente em berço esplêndido,Ao som do mar e à luz do céu profundo,Fulguras, ó Brasil, florão da América,Iluminado ao sol do Novo Mundo!36

Muito antes de sua consolidação em símbolo nacional, a ideia do Brasil-criança

já vinha sendo construída pelos intelectuais, tal como corrobora um exemplo ainda

anterior a 15 de novembro de 1889, que pode ser obserservado no artigo “Da Crítica

Literária”, de Macedo Soares, de 1860:

as litteraturas que começam sob o poderoso influxo de uma civilizaçãoadiantada; que soltam vagidos de infante ao darem de face com a luzdeslumbrante do século; que acordam da modorra do limbo ao tromdos canhões, ao arruído dos vagões, ao alvoroço intenso e confuso demil vozes que falam, de mil trompas que atordoam, de mil operáriosque cantam, riem e choram; para essas é sempre útil, semprenecessária a crítica. Nascida no seio da opulência,calçam o cothurno,passeiam de carro, viajam a Europa no vapor inglez, conversam comas vizinhas por intermedio dos fios telegraphicos. São crianças sobresi, que nunca conheceram pobreza e nem pressentem as dôres occultasnos adrajos do mendigo: por isso necessitam mais e mais da vigilanciae do cuidado de um tutor. [...] A nossa litteratura está n’este caso.Falta-lhe experiência para observar de si propria conselhos que máeducação lhe não deixa seguir. (SOARES, 1860, p. 272)

35 Toda a coleção de O Tico-Tico e do Almanaque do Tico-Tico está disponível em formato digital, no siteda hemeroteca digital da Biblioteca Nacional em http://memoria.bn.br.36 Hino Nacional da República Federativa do Brasil, com letra de Joaquim Osório Duque Estrada emúsica de Francisco Manuel da Silva.

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Por meio desse excerto, é possível perceber que a analogia com a infância

encontra-se vinculada à perspectiva hierárquica sobre a qual se estrutura aquilo que

convencionamos chamar de Cultura Ocidental, na qual o Brasil estaria ainda na primeira

fase e, tal como uma criança, precisaria de um tutor para imitar. Em 1889, na Revista

Sul-Americana, o então republicano Sylvio Romero publica seu Como se deve escrever

a história do Brazil, texto no qual ele afirma taxativamente que

O Brazil é ainda muito novo para haver tido uma missão jácumprida, já concluida na história; mas já é bastante velho paraque vós, que representais seu futuro, comeceis a vos inquietar peloseu bom nome aos olhos dos homens que vos hão-de succeder, aosolhos da posteridade. Como não será lisongeiro para nossa patria dizero historiador do porvir: a missão do Brazil foi uma missão ilustre deglória, de bem, de justiça; [...]”(ROMERO, 1889, p. 97-8, grifo nosso)

Nessa declaração, lemos uma interpretação do país que o associa diretamente à

vivência infantil, visto ser a criança que, por estar em pleno desenvolvimento, constitui

o ser que vive em extrema indeterminação temporal, sendo nova demais para algumas

coisas e velha o suficiente para outras37. No imaginário proposto por periódicos

voltados à infância, como O Tico-Tico, é certo que se construiu um modelo de criança

brasileira na passagem do século XIX para o XX, ideal que pode ser identificado em

discursos como os de Olavo Bilac e Coelho Netto, consistindo na imagem de uma

criança viril, visto que deveria ser “masculino e deveria nortear a formação da

nacionalidade, associado ao projeto de nação que se tinha em mente” (HANSEN, 2007,

p. 23). Mesmo em meio a todo esse imaginário da formação de um modelo viril para as

crianças brasileiras, com discursos que elevavam a masculinidade, a escritora Julia

Lopes de Almeida escreveu o seu livro de contos infantis Histórias da nossa terra

(1907), no qual

as personagens de crianças do sexo feminino aparecem em grandenúmero, em contraste com os outros, sugere uma transposição dostemas da autora, ligados à educação feminina e afirmação do papelsocial da mulher, para o âmbito da formação da infância brasileiracom a qual até então apenas os meninos se identificavam. (HANSEN,2007, p. 23)

37 Investigar melhor tais relações seria apostar em um campo de documentos muito amplo, constituindoassunto para outra tese, desviando aqui a atenção de nosso real interesse nesta pesquisa, que é repensarcomo essas relações entre infância e História se operam na escritura de Guimarães Rosa. Entretanto, aindacontinuamos mantendo a ideia, mesmo que de forma introdutória, mostrando como tal analogia entreBrasil e infância apareceu em alguns dos símbolos nacionais e nas primeiras interpretações da nação.Reiteramos que essa ideia ainda voltará a aparecer no terceiro capítulo desta tese.

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Apesar da iniciativa desses contos infantis, podemos afirmar que para as

crianças desse tempo O Tico Tico foi de extrema importância, embora pudesse

apresentar características bastante questionáveis, sendo inegável que seu aparecimento

significou muito no tocante à formação das crianças da época, como mostra o

depoimento deixado pelo poeta Carlos Drummond de Andrade pelo cinquentenário da

Revista em 1955:

O Tico-Tico era de fato a segunda vida dos meninos do começo doséculo, o cenário maior em que nos inseríamos para fugir à condiçãoescrava de falsos marinheiros, trajados dominicalmente com ouniforme, porém sem navios que nos subtraísse ao poderio dos pais,dos tios, e da escola. E era também muito da escola disfarçada embrincadeira. [...] Uma pesquisa em regra na coleção de O Tico-Ticoindicaria a gênese de inúmeras vocações literárias e jornalísticasmanifestadas de 1920 para cá [...]. O Tico-Tico é pai e avô de muitagente importante. Se alguns alcançaram importância mas fizerambobagens, O Tico-Tico não teve culpa. O Dr. Sabetudo e o vovôensinaram sempre a maneira correta de viver, de sentar-se à mesa e dese servir à pátria. (ROSA, 2002, p. 115-26, grifo nosso)

Se Drummond, que nasceu em 1902, tendo vivido a infância na pequena cidade

de Itabira (MG), pôde ter acesso a O Tico-Tico, é bastante provável que Rosa também

tivesse tido acesso a ela ou a publicações análogas em Cordisburgo. Mas que

influências tal tipo de leitura tão ideológica teria permanecido na produção literária do

adulto João? Ainda que se reconheça haver na escrita rosiana uma forte preocupação

com o Brasil – que para ele era contemplado como a língua portuguesa falada aqui, já

que “brasilidade é um sentir/pensar... a língua de algo indizível” (LORENZ, 1991, p.

91) – problematizada em seus trabalhos com a linguagem, com as brincadeiras com

palavras-enigma que abriam novas formas de encarar o mundo, não enxergamos ali um

conteúdo pedagógico linear como o exposto pelo plano ideológico dos almanaques

infantis da primeira república, mas sim um processo de ficcionalização constante, já que

para Rosa “mestre não é quem ensina, mas quem de repente aprende” (ROSA, 1979, p.

436).

Nesse sentido, a fim de começar a abordar o tema infância no universo de nosso

autor, escolhemos destacar a relação que ele estabeleceu com duas pessoas de suas

relações íntimas que, de alguma forma, abriram ao escritor mineiro um campo de

observação para o universo infantil: seu tio Vicente de Paulo Guimarães, autor de

literatura infantil consagrado em seu tempo de escrita, e Vera Tess, sua netinha mais

nova.

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2.2 Relação de Guimarães Rosa com Vicente Guimarães 38

“...Por isso faziaSeu grão de poesia

E achava bonitaA palavra escrita”

(Vinícius de Moraes – O Poeta Aprendiz)

A produção literária de João Guimarães Rosa39 é marcada pela busca de uma

melhor compreensão da experiência cultural popular, que em sua obra é usada para dar

forma a seus escritos. As palavras escritas são coisas para se ver e ouvir, sendo que nos

textos rosianos elas possuem múltiplas e simultâneas características destacadas: as

visuais e especialmente as sonoras, que resgatam a experiência vocal e as recheiam de

magia, tornando-se, assim, uma a uma verdadeiras palavras-mágicas. Destacar tal

aspecto feérico nos remete ao mundo infantil, já que tamanha valorização dos vocábulos

é uma experiência comum aos pequenos desde suas primeiras experiências humanas

com os discursos, quando eles manejam incessantemente a linguagem mágica: “A criança

chama a mãe, a ama, o pai, a pessoa aparece. Quando ela pede comida, é como se

formulasse uma encantação mágica [...]. Ao crescer, ela não é coagida a modificar esse

hábito, pois as palavras lhe asseguram sempre o domínio das coisas” (MALINOWSKI,

1922 apud TODOROV, 1980, p. 242, grifo nosso) 40.

Recuperar esse poder fantástico da palavra é uma das aproximações inicialmente

percebidas entre a escritura rosiana e o mundo infantil, pois “para compreender a poesia

precisamos ser capazes de enxergar a alma da criança como se fosse uma capa mágica, e

admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto” (HUIZINGA, 2001, p.

133-4). No artesanato ficcional rosiano, tal resgate de enunciações mais limpas, em

relação às já desgastadas que são utilizadas no mundo adulto e letrado, é buscado em

uma série de escolhas estabelecidas a partir da força sonora ou semântica de palavras ou

expressões que reproduzem não apenas a fala diretamente, mas sim o ritmo do que foi

ouvido, já que Guimarães Rosa elege esse elemento como a força motriz da

comunicação. Dessa forma, o autor executa uma construção rítmico-prosódica a partir

da percepção de timbres, durações e intensidades – ou seja, os modos da fala, que

38 A relação entre os escritores João Guimarães Rosa e seu tio Vicente Guimarães foi também revisitadaem Rodrigues (2012a).39 Pela ordem de publicação, referimo-nos aos seguintes volumes do autor: Sagarana (1946), Corpo deBaile (1956), Grande Sertão: Veredas (1956), Primeiras Estórias (1962) e Tutaméia (1967).40 Todorov cita : MALINOWSKI, B. TheLanguage of magic and Gardening (coral gardedens and theirmagic II). 2a. ed., Londres, George Allen & Unwin,1966.

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chamamos de vocalidade – e quando isso é expresso na palavra escrita entramos

naquele modo de funcionamento da linguagem que Henri Meschonnic chamou de

Oralidade, no qual a busca de renovados sentidos para a realidade se dá através da

percepção dos ritmos da fala e de várias outras expressões (MESCHONNICK, 2006, p.

47). Assim, as palavras passam a ganhar significação através de uma soma de

linguagens (EDWADS; FORMAN; GANDINI, 1999), representando, então, um

pássaro vivo, como nas palavras do próprio autor: “não é sem assim que as palavras têm

canto e plumagem” (ROSA, 1984, p. 274).

Se as palavras escritas ali estabelecem uma relação íntima com a vocalidade, o

próprio Rosa conta que o ato de ouvir narrações lhe marcou desde quando ele era

apenas Joãozito:

Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativasmulticoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamosem um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel.Deste modo a gente se habitua, e narra estórias que corre pornossas veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque osertão é a alma dos nossos homens. Assim não é de se estranhar que agente comece desde muito jovem. Deus meu! No sertão o que podeuma pessoa fazer do seu tempo livre a não ser narrar estórias? A únicadiferença é que eu, em vez de contá-las, escrevia. (LORENZ, 1991, p.69-70, grifo nosso)

Essas primeiras memórias auditivas relatadas pelo autor remontam a momentos

acontecidos na pequena cidade de Cordisburgo, Minas Gerais, nas primeiras décadas do

século XX, nas quais, conforme lemos, as crianças costumavam ter sua entrada no

processo de linguagem incentivada pela audição de mitos. Para o próprio Guimarães

Rosa, a “única diferença” entre o menino Joãozito que ele foi e as outras crianças era

que ele ouvia as narrativas pronunciadas pelas vozes dos oradores e não as repetia

depois – como pede a tradição oral –, mas as escrevia. Com a utilização desse pequeno

diferencial, o autor acabou tornando-se desde muito cedo um “escritor de narradores”

(BRANDÃO, 2006), o que significa dizer que ele operou pela cultura escrita uma

apropriação inicial daquela cultura oral41. Essa mudança transforma o mito em algo

“plenamente histórico”, no qual o

pensamento adquire autonomia e formula a narrativa segundo asconvenções de uma estética afinada com uma hierarquia de valores,

41 Ao transformarem-se em registros escritos, as expressões orais são condicionadas ao código alfabético,o que acaba por as reduzir de forma notável, porém lhes garante maior durabilidade (cf.HAVELOCK,1996, p. 71-9).

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que corresponde a um sistema social e político instituído e vertical.Nessa nova situação, o mito continua existindo, mas sua existênciaestá vinculada à representação literária. (SEVCENKO, 1998, p.XXIII)

Para efetuar essa ficcionalização, o processo de trabalho com a linguagem

executado no texto rosiano não foi algo tão simples de ser feito, já que o escritor não

quis simplesmente registrar pela escrita o conteúdo expresso pelas vozes que ouviu,

como se fosse um antropólogo, mas sim utilizar aquelas vivências que guardou na

memória como uma espécie de matéria-prima para sua criação literária, executando por

meio de sua linguagem uma verdadeira performance. Assim, em sua escrita, o autor

tentou manter-se fiel ao máximo à forma mítica, organizando um texto com palavras-

mágicas, a saber, os vocábulos performativos por excelência, visto passarem a ser

aquilo que enunciam (OTTONI, 1998, p. 67; AUSTIN, 1990) e, além disso, seus modos

de mesclar a fala e a escrita também nos ajudarem a refletir acerca de um dos mais

importantes conflitos da História Cultural do Brasil, aquele estabelecido entre a cultura

letrada – aqui representada pela escrita rosiana – e a iletrada – aqui simbolizada pela

linguagem infantil.

Antes do choque de diferenciação exposto em sua linguagem, essas posições já

estão colocadas na forma por meio das quais suas ficções são construídas, uma vez que

frequentemente os narradores dos textos rosianos colocam-se no papel de orador de

acontecimentos peculiares aos outros personagens da trama. Com tal forma textual, que

o próprio autor denominou de estórias42, vemos florescer um gênero discursivo tão caro

ao universo mítico, já que nele se abordam casos e relatos de veracidade muitas vezes

não comprováveis, mas que acabam adquirindo importância capital na construção de

certo imaginário.

Ainda que as memórias das vivências do menino Joãozito possam ter

contribuído para que Guimarães Rosa se tornasse um autor que escreveu como quem

falava, demandando ser lido como se estivesse sendo escutado, o autor assim declarou

em entrevista a Ascendino Leite, em 26 de maio de 1946

42 O termo estória é um neologismo proposto por João Ribeiro em 1919, como forma de retomar umtermo muito utilizado nos manuscritos medievais de Portugal, constituindo, portanto, um arcaísmo quedesignava as narrativas populares, folclóricas e contos tradicionais, ou seja, todas as formas de narrarcomumente contadas às crianças, tanto que o termo aparece muitas vezes na seleção de textos daLiteratura infantil brasileira proposto por Arroyo (2011). Já em Aulete, estória é classificada como umbrasileirismo, embora possa ter origem no termo inglês story. O termo estória nunca chegou a serassumido pela norma culta da língua portuguesa falada no Brasil, visto se recomendar a utilização dotermo história “tanto no sentido de ciência histórica, quanto no de narrativa de ficção, conto popular, edemais acepções” (FERREIRA, 2010).

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Não gosto de falar de infância. É um tempo de coisas boas, massempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo,comentando, perguntando, mandando, comandando, estragando osprazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso deadultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados epoliciais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso erevolucionário permanente, então. Já era míope e, nem mesmo eu,ninguém sabia disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar degeografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquistade algum isolamento, com a segurança de poder fechar-se num quarto,trancar a porta. Deitar no chão e imaginar histórias, poemas,romances, botando todo mundo conhecido como personagens,misturando as melhores coisas vistas e ouvidas, numa combinaçãomais limpa e mais plausível, porque – como muita gente já falou – avida não passa de histórias mal arranjadas, de espetáculo fora de foco.A arte e o céu serão, pois, assunto mais sério, e também são países deprimeira necessidade [...] armar alçapões para apanhar sanhaços – tãoformosos, tão azulados, macios e inúteis como pássaros de gaiola – edepois soltá-los: uma maravilha! (LIMA, 2003, p. 39-40, grifo nosso)

Nesse comentário, flagramos nosso autor justificando porque não gostava de

discursar acerca de seus tempos de meninice, embora seja nessa entrevista que, em

seguida, ele vai fornecer maiores recordações daqueles tempos, como veremos a seguir.

No entanto, o fato é que aquela infância foi legitimamente narrada, em detalhes, pelo

seu tio Vicente de Paulo Guimarães no livro Joãozito: a infância de Guimarães Rosa

(GUIMARÃES, 2006)43, em cujo prefácio da segunda edição, de 2006, comenta o

médico e escritor Moacir Scliar:

Vicente Guimarães não foi o tio clássico, mais velho que o sobrinho.Como às vezes acontece em famílias grandes, a diferença de idadeentre os dois era pequena, cerca de dois anos. Brincavam juntos,desenvolveram carreiras literárias paralelas, e foi isto que permitiu aVicente falar do grande diplomata e escritor, membro da AcademiaBrasileira de Letras e candidato ao Nobel como Joãozito. (SCLIAR,2006, p. 05)

Segundo nos relata essa biografia da meninice de Rosa, a ligação entre Vicente e

João, especialmente nos primeiros anos de vida de ambos, era muito mais estreita do

que se divulga. Nas palavras de Vicente:

Cordisburgo em nosso tempo, foi o burgo onde nascemos e vivemosa primeira infância. De lá mudei-me, acompanhando a família, comquatro anos de idade; ele da de seus pais saiu para a casa do avôpadrinho Luis, aos oito anos e mais meses, alguns.

43 Esse livro é o único escrito por Vicente Guimarães destinado ao público adulto.

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Menino diferente foi: sossegado, caladão, calmo, observador, singelo.Lia muito, estudava... Brincar, raramente, depois que descobriu aleitura. Separá-lo de um livro era difícil até para as refeições.(GUIMARÃES, 2006, p. 29-30, grifo nosso)

Nesse excerto, é interessante destacar que ambos os escritores parentes tiveram

seus primeiros contatos com a linguagem juntos, naquele “só quase lugar, mas tão de

repente bonito” (ROSA, 1999, p. 481), chamado Cordisburgo, onde viveram a primeira

infância. Depois ambos acabaram mudando-se para Belo Horizonte – primeiro Vicente,

depois João –, onde continuaram dividindo as vivências da infância até que Joãozito

ingressou como interno no ginásio do Colégio Santo Antonio em São João del-Rei,

onde pôde estudar com os frades franciscanos por um tempo, até ser transferido para o

Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, onde aprendeu alemão com os padres. Nas

palavras de Vicente: “Eu e Joãozito éramos tio e sobrinho, mas a vida mais nos ligou,

em especial fraternura, compartilhantes que fomos do mesmo quarto, de brinquedos,

peraltices e de geral vivência” (GUIMARÃES, 2006, p. 49).

Ainda segundo Vicente Guimarães, Rosa foi um menino calmo e míope que,

depois que aprendeu a ler – “com sete anos incompletos” (GUIMARÃES, 2006, p. 33)

– era difícil tirá-lo de frente dos livros, como vimos, e atraí-lo para reinações, a menos

que essas proporcionassem alguma guloseima (GUIMARÃES, 2006, p. 51). Ainda

assim, Vicente alerta que ele foi, sem dúvida, desde muito cedo, um grande idealizador

de brinquedos:

Antes do livro e mesmo após a descoberta deste, para descansar daleitura. E desde bem pequenininho ainda, seus brinquedos eram orafazer tijolinhos com barro em formas de caixa de fósforo e construircasinhas para as bonecas de suas irmãs; ora escolher sabugos deespigas de milho, que sua imaginação transformava em bois de carro;ora lidar com insetos, que observava atento e com eles se divertia.Dentre esses, a formiga o entretinha horas extáticas, mais do que outroqualquer. (GUIMARÃES, 2006, p. 30)

Tal associação de Rosa a um inventor torna-se patentemente perceptível em sua

produção literária, conforme apontou Antonio Candido, para quem o autor escreve a

partir da “absoluta confiança na liberdade de inventar” (CANDIDO, 1983, p. 294), o

mesmo acontecendo também com a criança nas suas primeiras experiências com o

mundo e com a palavra falada (cf., entre outros, DEL RÉ, 2003; RODRIGUES, 2009, p.

62-72). Nesse sentido, o próprio autor explicou, em outro momento daquela entrevista a

Ascendino Leite, supracitada, um pouco mais as recordações de seu tempo de meninice,

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associando diretamente aquele momento à florescência em alto grau de busca de maior

inventividade:

Outras maravilhas da infância por Guimarães Rosa evocadas comternura: puxar sabugos de espigas de milho, feito boizinhos de carro,brinquedo saudoso; atrelar um sabugo branco com outro vermelho, emais uma junta de bois pretos – sabugos enegrecidos ao fogo...– Pena era não dispor de tintas para desensabugar um boi verde44

– deplora Guimarães Rosa – outro de uma cor inventada nacabeça, que ninguém conheceu com os olhos e eu mesmo já meesqueci como era. Prender formiguinhas em ilhas, que eram pedraspostas num tanque raso, e unidas por pauzinhos, pontes para asformiguinhas passar. Aproveitar um fiozinho d’água, que vinha doposto das lavadeiras, e mudar-lhes duas vezes por dia o curso,fazendo-o de Danúbio ou de São Francisco, ou de Sapakral-lar (velhonome inventado), com todas as curvas dos ditos, com as cidadesmarginais marcadas por grupos de pedrinhas, tudo isso sob o voomatinal das maritacas de Nhô Augusto Matraca, no quintal. Um diahei de escrever um pequeno tratado de brinquedos para meninosquietos. Havendo imaginação, é uma boa escola. (LIMA (org.),1997, p. 43, grifos nossos)

Ainda que, na visão de Vicente, Joãozito não fosse tão afeito a travessuras,

quando o ouvimos falar de sua própria infância, nota-se um discurso típico de quem foi

uma criança míope – talvez por isso tão concentrada em coisas diminutas a seu redor e

especialmente em tudo o que lhe chegava aos ouvidos –, mas sobretudo atenta desde

cedo à possibilidade de, ludicamente, (re)inventar o mundo. A partir dessa descrição das

brincadeiras de Guimarães Rosa, lembramos que quem abordou igualmente o tema

brincar e brinquedo, relacionando-os a uma perspectiva histórica foi Walter Benjamin,

em vários textos acerca de jogos, brincadeiras, bonecos etc.45, tal como o teórico

escreveu em 1928:

Hoje talvez se possa esperar uma superação efetiva daquele equívocobásico que acreditava ser a brincadeira da criança determinada peloconteúdo imaginário do brinquedo, quando, na verdade, dá-se ocontrário. A criança quer puxar alguma coisa e torna-se cavalo, querbrincar com areia e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-sebandido ou guarda. Conhecemos muito bem alguns instrumentos debrincar arcaicos, que desprezam toda máscara imaginária

44 Nesse depoimento das reminiscências de infância de Guimarães Rosa, cabe-nos sublinhar a citaçãoespecial da cor verde, associada a outra cor inventada, que ele mesmo se esqueceu como era, já que overde também aparecerá em seus Cadernos manuscritos, como veremos no terceiro capítulo da tese.45 Ainda que de forma fragmentada, a relação entre a criança e a História parece ter sido uma das bases dopensamento de Walter Benjamin, uma vez que encontramos muitas produções nas quais ele se dedica aessa reflexão. Isso pode ser especialmente percebido em novas traduções de sua obra (BENJAMIN,2013). Entretanto, neste momento específico de nossa relfexão, nos referimos apenas aos artigos de outraparte da produção do autor (BENJAMIN, 2002).

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(possivelmente vinculados na época a rituais): bola, arco, roda depenas, pipa – autênticos brinquedos, [...] pois quanto mais atraentes,no sentido corrente, são os brinquedos, mais se distanciam dosinstrumentos de brincar; quanto mais ilimitadamente a imitação semanifesta neles, tanto mais se desviam da brincadeira viva.(BENJAMIN, 2002, p. 93, grifo nosso)

Pensando no desejo expresso por Rosa, porém nunca realizado, de escrever um

tratado de brinquedos para meninos quietos, como ele mesmo foi, cabe aqui lembrar

que, mais de trinta anos depois da sua morte, a educadora e poetisa Selma Maria Kuasne

partiu dessa ideia para visitar as crianças que vivem na pequena cidade natal dos autores

Vicente Guimarães e João Guimarães Rosa, observando que elas continuam se

divertindo com brinquedos construídos por elas mesmas usando espigas de milho, como

fazia Joãozito. Dessa experiência Kuasne registrou algumas fotos, encontrando

inspiração para um livro de poemas (KUASNE, 2009):

Para Kuasne, a criança quieta é aquela que não tem medo da falta de barulhos ou

da não representação direta, já que assim pode se aproximar mais daquilo que Benjamin

chamou de “brincadeira viva”, na citação acima, e mergulhar na imaginação46, sendo

talvez através de brinquedos produzidos com objetos sem importância que a brincadeira

46Acerca da necessidade ou não de uma forma para os brinquedos, escreveu E. H. Gombrich: “A criançarecusará uma boneca perfeitamente naturalista em favor de alguma ‘bruxa’ monstruosamente abstrata queseja mais fofinha. É possível até mesmo que prescinda do elemento forma e tome o travesseiro ouedredom por sua ‘chupeta’ predileta – um substituto ao qual quer entregar o seu amor” (GOMBRICH,1999, p. 04).

Figura 2.5 – Brinquedos feitos com sabugo de milho pelas crianças de Cordisburgo.Fonte – (KUASNE, 2009, p. 57-62)

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possa fazer história (BENJAMIN, 2002, p. 138). Como escreveu Sonia Kramer, “Walter

Benjamin já nos alertava para o fato de que o homem faz história, de que existe a

possibilidade de fazer história, porque temos a infância” (KRAMER, 2006, p. 08), de

um lado, e seu estado de contínua formulação de novos sentidos para o mundo, de

outro.

As considerações iniciadas por Walter Benjamin ainda parecem ser o momento

mais interessante das reflexões sobre História e Infância da segunda metade do século

XX, afinal tais cogitações acolhem todo o universo dos pequenos, suas vivências,

brincadeiras, noções de linguagem e narrativa, reunindo, enfim, tudo o que vai

possibilitar que a criança construa a noção temporal. Mesmo depois de Benjamin, os

melhores trabalhos dedicados ao tema foram escritos por autores que resgataram sua

perspectiva e propuseram novas leituras da fonte original benjaminiana, como Giorgio

Agamben:

É a infância, a experiência transcendental da diferença entre língua efala, a abrir pela primeira vez à história o seu espaço. Por isso, Babel ,ou seja, a saída da pura língua edêmica e o ingresso no balbuciarda infância (quando, dizem-nos os linguistas, a criança forma osfonemas de todas as línguas do mundo), é a origem transcendentalda história. Experenciar significa, necessariamente, neste sentido,reentrar na infância como pátria transcedental da história. O mistérioque a infância institui para o homem pode de fato ser solucionadosomente na história, assim como a experiência, enquanto infância,e pátria do homem, é algo de onde ele desde sempre se encontrano ato de cair na linguagem e na palavra. Por isso a história nãopode ser o progresso contínuo da humanidade falante ao longo dotempo linear, mas é, na sua essência, intervalo, descontinuidade,epoché. Aquilo que tem na infância a sua pátria originária, rumo àinfância e através da infância, deve manter-se em viagem.(AGAMBEN, 2008, p. 64-5, grifos nossos).

Ora, se o “mistério que a infância institui para o homem pode de fato ser

solucionado somente na história” e isso “não pode ser o progresso contínuo da

humanidade falante ao longo do tempo linear”, notamos que, muito pelo contrário, tal

aspecto poderia estar guardado nos primeiros balbuciares descontínuos dos bebês que

falam todas as línguas do mundo e só encontrariam sentido na criação contínua de

novas palavras e linguagem, remetendo-nos à declaração de Guimarães Rosa a Mary L.

Daniel: “Eu quero tudo: o mineiro, o brasileiro, o português, o latim − talvez até o

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esquimó e o tártaro. Queria a língua que se falava antes de Babel” (DANIEL, 1968, p.

26).47

Sobre o balbuciar infantil ainda falaremos neste capítulo, por ora voltemos nossa

atenção para a relação entre o tio Vicente e Joãozito, lembrando que ambos foram

infantes aprendizes de escritores. Segundo nos relata a filha de João Rosa48, Vilma

Guimarães Rosa, a relação entre seu tio e seu pai era muito estreita, eles “conversavam

na mesma linguagem, enxergando e proclamando as belezas da vida” (ROSA, 1999, p.

39). Assim como o menino Joãozito se transformou no autor literário que escrevia

estórias, também Vicente, ao ficar adulto, enveredou-se pela escritura inspirada naquela

mesma experiência pueril. Consideradas as semelhanças entre a produção de ambos os

escritores, cabe aqui destacar que há, da mesma maneira, pelo menos uma diferença

fundamental entre as estórias escritas pelo tio Vicente e as de autoria de seu sobrinho

João: Vicente dedicou-se a escrever estórias em livros para crianças. Tal escolha

garantiu seu sucesso e notoriedade nesse meio editorial, na época em que ainda estava

escrevendo, tanto que em 1967 se chegou a instaurar no Rio de Janeiro o dia 23 de maio

– data de seu nascimento – como o Dia do Livro Infantil49. Sobre sua atuação, conforme

destaca o Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira, é sabido que ele

foi autor de

produção ininterrupta, divulgada na imprensa especializada ou emlivros, durante os quarenta e quatro anos em que manteve suasatividades de escritor e de intelectual, empenhado na área deeducação. [...] e homenagem ao seu fecundo trabalho de incentivo aoensino, à educação cultural da criança e à produção de uma literaturadestinada a ela, o seu nome foi dado a inúmeras bibliotecas infantis,clubes de leituras escolares e grêmios estudantis em vários estados doBrasil. [...] Era sobrinho de Guimarães Rosa, que o chamava o“Andersen brasileiro”. [...] A leitura de qualquer um de seus livrosinfantis deixa evidente o espírito de educador que sempre norteouVicente Guimarães. Toda a sua atuação profissional ou pesssoal, bemcomo sua produção literária revelam que a orientação dos seres emformação foi sempre ideia direta de sua vida. [...] Enfim, a literaturainfantil de Vicente Guimarães é das que cumpriram sua tarefa:

47Segundo George Steiner, “não há civilização que não tenha sua versão de Babel, sua mitologia dadispersão das línguas.(...) esse corpus de mitos, originando-se de uma perplexidade antiga e obstinada,transforma-se gradualmente em especulação hermética e filosófica. A história de tais especulações, dosesforços de filósofos, lógicos e illuminati para explicar a confusão das línguas é em si mesma um capítuloobrigatório nos anais da imaginação.” 'Depois de Babel: questões de linguagem e tradução', p. 84-5).48 O nome João Rosa era como os conterrâneos da época de meninice de Guimarães Rosa chamavam oautor em 1989 quando o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão visitou Cordisburgo em busca devestígios daquela época (BRANDÃO, 2006, p. 31).49 Desde 2002 foi implantado o dia 18 de abril (data de nascimento de Monteiro Lobato) como sendo oDia Nacional do Livro Infantil.

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encantou milhares de crianças em todo o Brasil e hoje pertence aosestudiosos da literatura infantil brasileira, a ser compreendida em suasorigens, valores e evolução. (COELHO, 1995, p. 119-22, grifo nosso).

Ao associar seu tio Vicente a Andersen, Guimarães Rosa estaria reafirmando os

valores perceptivelmente expressos em sua literatura que, tal qual os divulgados pelo

dinamarquês Hans Christian Andersen, estava “sintonizado com os ideais românticos de

exaltação da sensibilidade, da fé cristã, dos valores populares, dos ideais da fraternidade

e da generosidade humana” (COELHO, 2008, p. 30). Ainda acerca da trajetória de

Vicente Guimarães, Leonardo Arroyo aponta:

A literatura infantil de Vicente Guimarães, já citado50, implica umavalorização da experiência com que poucos autores podem contar hojeno Brasil. Com efeito, sua obra de ficção nasceu no processo oral, poiscomeçou contando estórias para crianças em um programa organizadoem Belo Horizonte, com o pseudônimo de Vovô Felício. Em face doêxito como contador de estórias, escreveu vários livros, que sãorealmente bons, porque marcados por aquele processo oral, objetivo,direto, concreto. Alguns de seus livros alcançaram várias edições,entre os quais Histórias divertidas (sic), Os três irmãos, Festa deNatal e A princesinha do castelo vermelho. Sua atividade é importantena literatura infantil brasileira também pela iniciativa da fundação dealgumas revistas para a infância, como Era uma vez... e Sesinho, alémde ter sido o fundador, em Belo Horizonte, da Biblioteca Infantil CaioMartins. (ARROYO, 2011, p. 329)

Assim, uma análise historiográfica dessa atuação de Vicente na direção da

Revista Sezinho (1947/1960) foi apresentada pela historiadora Olga Brites, em cuja

interpretação a autora alerta especialmente sobre como a tendência disciplinadora e

moralizante assumida pela literatura de Vicente bem serviu para modelar um perfil ideal

a ser assumido pelos filhos de trabalhadores do Sesi, formando, assim, os trabalhadores

da Pátria que deveriam ser educados desde a infância para, em detrimento do trabalho

rural, atuar na indústria (BRITES, 2004, p. 23-48).

Ainda comparando a literatura de Vicente à de Rosa, se na já citada declaração

de Rosa a Güinter Lorenz é expressa a influência sofrida pela audição das “narrativas

multicoloridas dos velhos” (LORENZ, 1991, p. 69) na infância, no que tange à

concepção das suas estórias para adultos, Vicente, já crescido, teria optado por ser ele

próprio o narrador de histórias para crianças – primeiro oralmente, depois também

50 Antes dessa citação, Vicente Guimarães já havia aparecido no livro de Leonardo Arroyo no seguinteexcerto: “A tendência da moderna literatura infantil é o fato concreto, ou, como se expressava L.Verniers, a necessidade de se colocar a criança, na medida do possível, em face das coisas concretas ou darepresentação das coisas. Observe-se, entre nós, a constatação do fato na obra de Monteiro Lobato,Vicente Guimarães e Franscico Marins, entre outros” (ARROYO, 2011, p. 20).

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escrevendo para os infantes. A marca da audição de narrativas parece delimitar a

produção de ambos os escritores, que estabeleceram uma relação mais íntima com as

palavras. Acerca de tal relação, cabe-nos aqui destacar alguns aspectos. Durante o ano

de 1957, o escritor e jornalista Antonio Olinto propôs uma enquete em sua coluna Porta

de Livraria, no jornal O Globo, perguntando quais seriam as dez palavras mais bonitas

da língua portuguesa, para a qual João Guimarães Rosa guardou 154 respostas dadas

por letrados à enquete, mostrando seu inquestionável interesse pela palavra escrita.

Selecionamos aqui as respostas dadas por Vicente Guimarães e pelo próprio Guimarães

Rosa, destacando-se primeiramente a a seleção de palavras do tio Vicente:51

51 Na presente tese, todo o material de periódico consultado em arquivos serão referenciados no corpo dotexto seguindo o modelo: autor, data, sigla do arquivo, código do documento, sendo que as indicaçõescompletas dos documentos serão referenciadas ao final da tese.

Figura 2.6 – Recorte guardado por Guimarães Rosa da resposta de Vicente Guimarães à enquete “As dezpalavras mais bonitas da nossa língua”, proposta por Antonio Olinto em O Globo de 10 de setembro de 1957:“10.IX.57. Dez palavras bonitas. Presta seu depoimento, hoje, neste inquérito, o conhecido autor de históriasinfantis, Vicente Guimarães, que usa o pseudônimo de Vovô Felício. Acaba ele de publicar um volume deversos, também, para crianças. A escolha de Vicente Guimarães é a seguinte: 1- Libélula; 2- Aleluia; 3- Roseiral;4- Deslumbramento; 5- Infância; 6- Ensolarada; 7- Crepúsculo; 8- Ternura; 9- Pastoral; 10- Saudade.”Fonte – (OLINTO; GUIMARÃES, 1957, IEB JGR-RT-02,109).

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Observa-se, na lista de dez palavras elencada por Vicente Guimarães, a presença

marcante de nomes presentes no vocabulário católico, tais como aleluia – que consiste

em um canto de alegria – e pastoral – que tanto se refere a pastor espiritual como ao

trabalhador do campo. Em destaque, no centro da lista, temos a palavra infância, que

pode ser considerada como o próprio eixo da vida e da obra literária do autor.

Já a resposta de João Guimarães Rosa foi a seguinte:

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Aqui temos expressa, por Antonio Olinto em 1957, a paixão nada platônica de

Guimarães Rosa pelas palavras, o que anos depois, em 1965, foi reafirmado pelo autor

em entrevista a Güinter Lorenz: “A língua e eu somos um casal de amantes que juntos

procriam apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a bênção eclesiástica e

Figura 2.7 – Resposta de Guimarães Rosa à enquete de Antonio Olinto: “As dez palavras mais bonitas da nossalíngua”, proposta por Antonio Olinto em O Globo de 11 de abril de 1957: “Quem comparece hoje à nossaenquete é Guimarães Rosa, o autor de ‘Grande Sertão: Veredas’. Homem intimamente ligado às palavras, gostade valorizá-las e de tecer comentários sobre elas. Em conversa mantida conosco, a lista que indicou, sepublicada, ultrapassaria de muito o limite de dez que demos ao inquérito. O que João Guimarães possui é, naverdade, um ‘harém de palavras’. Chegamos até ao ponto de sugerir que, no caso de algum escritor escolhermenos de dez, que ceda sua ‘vaga de palavra’ ao autor de ‘Sagarana’. As palavras selecionadas por GuimarãesRosa foram as seguintes: 1- Alegria; 2- Alma; 3- Primavera; 4- Querência; 5- Floresta; 6- Sota-vento; 7- Dar; 8-Rutilar; 9- Saudade; 10-Vagalume.”Fonte – (OLINTO; ROSA, 1957, IEB JGR-RT-02,004).

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científica. Entretanto, como sertanejo, a falta de tais formalidades não me preocupa.

Minha amante é mais importante para mim” (LORENZ, 1983, p. 83).

Na lista de Rosa, temos três referências à infância: a primeira palavra é alegria e

pode ser relacionada à criança; a quarta é querência, que significa “lugar ou paradeiro

onde o gado habitualmente pasta ou onde foi criado, ou local de nascimento ou

residência de uma pessoa; pago, fogão” (FERREIRA, 2010), além de ser também uma

música, tal como sugere o manuscrito com uma partitura assim denominada, elencada

por Carvalho (1996, p. 196), e a última palavra pode ser uma referência direta a sua

infância, pois nos conta Vicente Guimarães que Joãozito gostava de observar

pirilampos, que “só chamávamos de vagalumes” (GUIMARÃES, 2006, p. 44).

Para uma melhor comparação entre as obras dos dois Guimarães, vejamos as

maneiras pela qual se operou a adapação feita por Vicente Guimarães do conto O

Burrinho Pedrês, de Sagarana.

2.2.1 A Última aventura do Sete-de-Ouros

“Há vozes.Não é a memória.

É o olvido que cresce em nós e canta.”(Guillermo Boido – Infância)

Se no mundo das estórias de João Guimarães Rosa o ambiente narrado é o

rústico norte das Minas Gerais e a infância aparece mais imbricada em seu processo de

construção de linguagem que na presença de muitas personagens crianças, nas estórias

escritas por Vicente tudo muda. Em seus livros é apresentado todo um cenário que

constitui uma representação clássica do imaginário das crianças, sendo que suas

referências literárias mais diretas estão em grandes personagens de clássicos da

literatura infantil, como Pinóquio, de Collodi (1883), ou Alice no País das Maravilhas,

de Lewis Carroll (1865).

Quando Vicente Guimarães cria seu personagem/pseudônimo Vovô Felício –

que mora em uma Chácara (ao modo do Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro

Lobato) em cuja varanda realiza sarais todas as noites para seus netos e outras crianças,

animais, bichos fantásticos e até o boneco de bolas de plástico João Bolinha que (ao

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modo da boneca Emília, também de Monteiro Lobato)52 fala e interage o tempo todo

com as pessoas –, ele acaba referindo-se diretamente aos modos representativos da

cultura Oral, não negando a inspiração que recebeu. Outra referência a esse universo

aparece sempre que a personagem Vovô Felício nos relata que se deliciava, todas as

noites, ao observar “nos olhos dos pequenos ouvintes o interesse e o deslumbramento

que lhes provocam as estórias contadas pelo pacífico vovô” (GUIMARÃES, [196-?], p.

15). Dessa forma, com a criação do Vovô Felicio, estamos defronte de uma figura

bastante tradicional, estabelecida como orador principal, já que é o avô – o ‘mais velho’

– quem conta lendas, causos, narrativas folclóricas etc. (cf. BRITES, 2004, p. 25).

Como vemos, aqueles dois meninos de sobrenome Guimarães, nascidos no

interior das Minas Gerais, que ouviram muitas narrativas orais na infância, quando

adultos, ficaram tão marcados por aquela experiência que acabaram se tornando

escritores. Segundo a sobrinha de Vicente e filha de Joãzito, Vilma Guimarães Rosa,

ambos

Firmaram-se contando estórias. Traçaram no imaginário mapa a suavertical das Tordesilhas: de um lado, o campo literário de Joãozito; dooutro, o do tio Vicente, tornado Vovô Felício para o entendimento dascrianças, difícil-fácil. [...] Tordesilhas, linha imaginária. De ambos oslados, mistério e encantamento. Atravessou-a Vovô Felício para trazero burrinho pedrês, traduzindo-lhe a saga, na linguagem que as criançasentendem. O difícil-fácil que elas sentem. (ROSA, 2009, p. 39-40)

Os dois escritores, amantes de vocábulos e de sobrenome Guimarães, tio Vicente

e sobrinho Joãozito, costumavam conversar sobre as palavras e, certa vez, Vicente

tentou explicar a Joãzito que, para escrever para crianças, o ideal seria esquecer-se de

qualquer palavra difícil, a fim de garantir a simplicidade e a compreensão da leitura dos

pequenos (cf. GUIMARÃES, 2006, p. 14). Em depoimento publicado no livro que

escreveu acerca das memórias da infância de Guimarães Rosa, mas sem data definida, o

“muito tio e grande amigo” (GUIMARÃES, 2006, p. 17) Vicente Guimarães relembra o

sobrinho Joãozito do seguinte diálogo que haviam mantido entre ambos:

Apresentei a você uma carta, na qual uma criança dava o prezadovalor à minha literatura. Esta começava assim: Vovô Felício, acabeide ler o seu livro Rui53. Que livro bacana! A professora me mandouler outras biografias, mas eram muito chatas. Eu começava e nãoacabava. Se fossem como a do Rui, eu teria lido todas...

52 A relação entre Monteiro Lobato e Vicente Guimarães é comentada e discutida em vários estudos, aosquais remetemos nosso leitor (COELHO, 1995, p. 1119; BRITES, 2004, p. 27, entre outros).53 A criança refere-se na carta ao livro acerca da biografia de Rui Barbosa (GUIMARÃES, [1973?]).

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Você, terminada a leitura, me falou, entusiasmado: Isso vale mais queesses artigos todos que publicaram a respeito do meu livro. Queespontaneidade! Que sinceridade a desse menino! Eu gostaria tantoque as crianças lessem os meus livros... mas é impossível isso. Vocênão quereria escrever um conto meu na linguagem do VovôFelício, para seus netinhos?Aceitei a tarefa e, ali mesmo, no instante da lembrança, escolhemos OBurrinho Pedrês, que na versão infantil, teria o título por vocêsugerido, de Última aventura do Sete-de-Ouros.Infelizmente, tristeza nossa, você só pôde ler e aprovar os originais,dando-me, na ocasião, sem que eu solicitasse, escrita autorização parapublicá-lo. Reconhecimento este do valor prestável e necessário dalinguagem simples do Vovô Felício. Quando o livro saiu você já tinhadesvivido.” (GUIMARÃES, 2006, p. 14-5, grifo nosso)54

Como vemos, o interesse inicial de Rosa em ter o seu texto literário adaptado a

uma linguagem acessível à criança estava mesmo circunscrito em obter mais uma

resposta de um Outro que, talvez, pudesse dar novos contornos ao seu texto,

completando o criativo processo de subjetivação da sua escritura. E Rosa sabia que seu

tio estava plenamente adaptado à forma de escrever aos infantes, já que,

semelhantemente ao que acontecia com Monteiro Lobato, também para Vicente

Guimarães estabelecer diálogo com seus pequenos leitores era experiência bastante rica

(RAFFAINI, 2008), tanto que chegou a tão alto grau de cumplicidade com tal público

que despertou certa inveja em seu sobrinho João Guimarães Rosa. Além disso,

supomos, um interesse maior pelo universo tão livre da criança pode ter sido

despertado, de alguma forma, em João. Assim, na década de 1960, foi editada a

adaptação do conto de Sagarana à linguagem compreensível às crianças:

54 As datas exatas das publicações de muitos livros escritos por Vicente Guimarães – especialmente osinfantis – não constam nas edições originais e nem mesmo em levantamentos sobre a literatura infantilbrasileira, como o trabalho de Coelho (1995, p. 1119), no qual se indica que o livro Última aventura doSete-de-Ouros teria sido publicado em 1963. Porém, nesse relato de Vicente Guimarães, ficamos sabendoque o livro só saiu depois da morte de Guimarães Rosa, em 1967, por isso a data correta da publicaçãoteria sido entre 1960 (data da carta escrita por Guimarães Rosa autorizando que Vicente Guimarãespublicasse a adaptação do conto de Sagarana) e 1967.

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Acerca da adaptação do conto, é relevante destacar que a carta de autorização de

Guimarães Rosa para a adaptação é anexada à primeira página do livro, como se vê a

seguir:

Figura 2.8 – Ilustração de Rodolfo Marques de Sousa, para a capa do livro Última aventura do Sete-de-ouros,de Vicente Guimarães.Fonte – (GUIMARÃES, [196-?], capa).

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E como foi, então, que Vicente Guimarães atravessou a tal “linha imaginária das

Tordesilhas”, que dividiria suas narrativas contadas às crianças daquelas escritas pelo

sobrinho Joãozito? Em A Última Aventura do Sete-de-Ouros, é o boneco João Bolinha –

que também era considerado como um neto pelo Vovô Felício – quem pega um

exemplar do livro Sagarana na biblioteca da Chácara e reclama para o Vovô nesse

interessante diálogo:

– Aqui está – disse o boneco, depositando na mesa a carga que trazia –o motivo porque não gosto de freqüentar sua biblioteca, Vovô Felício.Hoje, quis ler um livro. Peguei todos êstes, tentei compreendê-los,mas achei cada um mais difícil e complicado.– Você tem razão, meu netinho. Êsses livros não foram escritos paracrianças, apesar de muitos dêles conterem estórias simples e bonitas.Apenas a linguagem, o estilo não estão ao alcance dos leitorespequeninos. Você, porém, estou certo, gostará de muitas estórias nelespublicadas.– Mas como, se não entendo quase nada do que está escrito?!

Figura 2.9 – Carta de Guimarães Rosa, autorizando seu tio Vicente Guimarães a escrever e publicar a adaptaçãode seu conto O Burrinho Pedrês para a linguagem infantil: “Autorizo o Sr. Vicente Guimarães a contar àscrianças, escrevendo em linguagem sua, apropriada à infância, a estória do meu conto ‘O Burrinho Pedrês’, dolivro ‘Sagarana’, e a publicar a estória sob o título ‘A Última Aventura do Sete-de-Ouros’./ Em favor do referidosenhor Vicente de Paulo Guimarães abro mão de qualquer direito autoral que me possa caber, exigindo apenasque nas edições do referido livro ‘A Última Aventura do Sete-de-Ouros’ conste sempre referência ao meu conto‘O Burrinho Pedrês’, citando o livro ‘Sagarana’ ao qual o mesmo pertence./ Rio de Janeiro, 6 de outubro de1960./ João Guimarães Rosa”Fonte – (GUIMARÃES, [196-?], p. 7).

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– Muito fàcilmente. Eu poderei contar algumas, com palavras quevocê possa compreender. (GUIMARÃES, [196-?],p. 17)55

Assim, foi atendendo ao pedido do sobrinho Guimarães Rosa que Vicente fez

Vovô Felício narrar um conto de Sagarana a seus netinhos. Não soubemos se algum

pequeno leitor desse volume chegou a procurar Vicente Guimarães para opinar,

espontaneamente, acerca da adaptação – algo que Rosa gostaria muito –, mas, para

deleite do sobrinho, ao menos os netinhos do Vovô Felício interpelaram-no muitas

vezes, fazendo várias perguntas e comentários.

Cabe destacar aqui que a reclamação da personagem João Bolinha assemelha-se

muito ao conteúdo da legenda da xilogravura de Sebastian Brant, aqui apresentada na

figura 2.3, com uma significativa diferença: se Sebastian Brant fala de um desatinado

que assume não pertencer ao ambiente letrado e então se une aos outros insensatos na

nau, na chácara de Vovô Felício o boneco João Bolinha reclama e o Vovô alimenta sua

dependência cultural, oferecendo-se para ler e explicar os grossos livros da biblioteca.

Esse tipo de conflito é frequentemente vivido pelos que se expressam na cultura sem

55 Na ilustração, Rodolfo desenhou a capa da segunda edição de Sagarana, com a referida caveira de boi,aspecto do livro que chamou a atenção e foi comentado por João Bolinha.

Figura 2.10 – Ilustração de Rodolfo Marques de Sousa, para o livro Última aventura do Sete-de-ouros, deVicente Guimarães. O boneco João Bolinha mostra ao Vovô Felício o livro Sagarana, de Guimarães Rosa,achado na biblioteca do avô e ainda pergunta se ele irá contar a estória daquele “livro que tem caveira de boi nacapa”.Fonte – (GUIMARÃES, [196-?], p. 19).

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letramento – grupo que inclui as crianças “aletradas”. É então, a partir do próprio nó

tecido pelo conflito das referidas culturas, que o vovô Felício começa a contar a estória

do burrinho às crianças, experimentando ultrapassar, assim, a linha da linguagem que

separa o que é adulto do que é infantil. O orador prepara os pequeninos para adentrarem

no cenário estranho da vida dos vaqueiros e das vivências do burrinho, mas sempre que

julga possível retoma alguns fragmentos selecionados do texto original de João

Guimarães Rosa, o que acontece muitas vezes – especialmente quando se narram os

diálogos –, em citações indicadas por trechos escritos em negrito. Destacamos desses

um fragmento no qual o Vovô assume aos netos que vai passar a voz aos personagens

da narrativa. Ele segue narrando até que interrompe para comentar: “Um dia, porém...

Deixemos o próprio Raimundão contar o fato ao Major. Prefiro ler êste trecho, que é

simples. Assim, vocês o saborearão melhor” (GUIMARÃES, [196-?], p. 44-5), inserindo

em seguida um grande diálogo em negrito, exatamente como está no texto original de

Guimarães Rosa (cf. ROSA, 1984, p. 70).

Esse recurso de rechear a narrativa com amostras do texto original permite que o

orador melhor prepare os pequeninos para adentrarem no cenário estranho da vida dos

vaqueiros e das vivências do burrinho. Se a tentativa de Vicente, nesse livrinho, foi bem

sucedida, isso se deve ao fato de que, mesmo sendo o Vovô Felício o narrador da

estória, ele está sempre brindando seus ouvintes com aperitivos da linguagem mágica de

João Guimarães Rosa. Dessa forma, pelo menos uma vez – e contando com a

intermediação de quem melhor entendia do assunto – Guimarães Rosa falou às crianças.

2.3. Relação de Guimarães Rosa com as infâncias

Como parece ficar claro, a presença constante de Vicente Guimarães durante

toda a vida de Guimarães Rosa – ainda que em diversos graus de proximidade – pode

ser entendida como uma aproximação frequente do mundo infantil, já que o tio seria

uma espécie de personificação das recordações da meninice de Joãozito e também um

caminho a unir a reflexão acerca da linguagem da criança e a vida de trabalho do

escritor adulto.

Se na infância Guimarães Rosa foi o Joãozito, como vimos, na maturidade ele

ganhou novo apelido, também carinhoso, dentre as pessoas mais íntimas: passou a ser

Joãozinho. A alcunha, em diminutivo, preserva alto grau de ternura, remetendo ao

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universo da criança, ainda que ele mesmo estivesse às portas da madureza. Essa

observação – ainda que indiretamente – abre diversas possibilidades para se pensar os

possíveis significados da infância no universo de Guimarães Rosa: seria a infância um

recorte cronológico? O estabelecimento de determinada relação específica com a

linguagem? Determinada maneira de sentir e pensar? Para problematizar tais questões,

pensemos em algumas relações que o autor estabeleceu com crianças durante a vida

adulta.

Aos 22 anos, João Guimarães Rosa casou-se com Lígia Guimarães Rosa e em

seguida foi pai de duas filhas – Vilma e Agnes Guimarães Rosa. A relação que

estabeleceu com elas, de pai carinhoso e divertido, aparece descrita no livro escrito por

sua filha mais velha, no qual se conta que Rosa

Era um pai colorido. Costumava me perguntar se o considerava umbom pai, e parecia muito preocupado com minha opinião. Respondia-lhe que não o considerava um pai burguês, convencional, apegado asistemas e esquemas. Mas sim o pai especial dos grandes momentos,que sempre me apoiou, sempre esteve junto de mim, mesmo quandoseparados pelas distâncias. (ROSA, 1999, p. 137)

Vilma também explica que, anexados àquele livro, ela estava publicando alguns

documentos pessoais de Guimarães Rosa – como cartas, bilhetes, fotos etc. – que

ficaram sob os cuidados dela após a morte do autor, sendo que o restante seria enviado

para ficar sob a guarda da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), no Rio de Janeiro.

Dessa forma, Relembramentos é um importante manancial para os pesquisadores de

Rosa encontrar as mais diversas fontes documentais acerca do autor56.

Anos depois, Rosa também viveu a experiência de ser avô de quatro netos que,

como ele em seus últimos anos de vida, também viviam no Rio de Janeiro: o casal

Laura Beatriz e João Emílio, filhos de Vilma, e as garotas Maria de Lourdes (Busi) e

Maria Cristina (Kiki), filhas de Agnes. A autora de Relembramentos também nos conta

que o que Rosa gostava, mesmo, era de ser chamado por esses jovens descendentes de

“vovô bacaninha” (ROSA, 1999, p. 18). Uma narrativa interessante acerca da relação

estabelecida entre o “vovô bacaninha” e dois de seus netos foi escrita pela mãe do casal

assim:

Uma das vezes em que o vi [Guimarães Rosa] radiante foi quandopediu à minha filha Laurinha para ler um trecho de Sagarana em voz

56 Uma análise crítica de tais livros (ROSA, 1999; MARTINS, 2001) encontra-se no trabalho de Galvão(2008a).

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 80

alta. Quando terminou a leitura, ela perguntou, com sua inocênciainfantil: – Vovô, por que você escreve tão complicado, se pode dizertudo isso de um jeito mais simples? Ele riu muito. E achou graça naresposta do meu filho João Emílio: – Vou deixar pra entender quandocrescer...” (ROSA, 1999, p. 133)

Especial essa narrativa, sobretudo se lembrarmos que foi justamente o livro

Sagarana o escolhido para ter um de seus contos adaptados à linguagem infantil, feita

por Vicente Guimarães. Foi através dessas experiências comparativas entre uma

linguagem literária e artística – como a que ele usava para escrever – e a compreensão

dos que ainda estão adentrando o mundo e a palavra (especialmente a escrita) – como as

crianças –, que Guimarães Rosa foi percebendo melhor o tamanho da dificuldade em se

comunicar bem com os pequenos, já que eles fazem um uso próprio da linguagem,

diferente daqueles que se sentem confortavelmente protegidos “atrás deste objeto

palpável que é a palavra escrita”, tal como Rosa e seus leitores (CALVINO, 1996, p.

139).

Em que pesem esses experimentos com as diferenças entre os usos de linguagem

das crianças e dos adultos, cabe destacar que uma vivência realmente radical em relação

à aproximação com a linguagem infantil só será vivenciada por Guimarães Rosa, em

nível privado, através do envio de mensagens e cartões a duas especiais garotinhas de

pouca idade, Beatriz Helena Tess e, em especial, Vera Lúcia Tess (Ooó),

correspondência na qual, a fim de estabelecer a comunicação escrita com crianças, o

autor já não mais podia contar com nenhum intermediador, como foi Vicente

Guimarães, tendo de abrir ao máximo seu leque de possibilidades de linguagem.

2.3.1 Ooó do vovô

“Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai,eu lhe prometo amor eterno... ”

(Vinícius de Moraes – Para uma menina com uma flor)

No período entre setembro de 1966 e novembro de 1967, João Guimarães Rosa

manteve uma curiosa ‘correspondência desenhada’ com duas interlocutoras

interessantíssimas: duas senhoritas que ele chamava de “as meninas do vovô

Joãozinho”: Beatriz Helena Tess (então com idade entre 4 e 5 anos) e Vera Lúcia Tess

(entre 3 e 4 anos), crianças em plena primeira infância, netas biológicas da segunda

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 81

esposa do autor, Aracy Guimarães Rosa, mas que Rosa adotou como suas próprias

netas.

Essas crianças moravam com a família em São Paulo, enquanto os avós Aracy e

João viviam no Rio de Janeiro, uma vez que na década de 1960 Rosa trabalhava como

diplomata57. Para amenizar as saudades das meninas, o vovô Joãozinho enviava-lhes

cartões-postais, convidando-as a passar um período com os avós no Rio. Em 2003, os

17 postais (15 enviados às meninas e 2 à mãe Beatriz) mais 18 bilhetes e registros sobre

Vera Tess – foram publicados no livro Ooó do vovô: correspondência de João

Guimarães Rosa, o vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess, de setembro de

1966 a novembro de 1967 (ROSA, 2003).58

Nessa correspondência publicada, o conflito cultural entre adultos e crianças é

frequentemente problematizado, implicando em que o volume mereça aqui uma atenção

especial. Vejamos, a seguir, uma tabela que sintetiza o conteúdo do livro:

2.TAB 1 – Cartões-postais para Beatriz Helena e Vera Lúcia Tess(As linhas destacadas indicam os cartões nos quais a imagem e também o conteúdo se referem aouniverso infantil)

57 Apesar da inauguração da nova capital do país, Brasília, em 1960, o Ministério de Relações Exterioressó seria transferido de cidade a partir de 1970, portanto depois da morte de Rosa, ocorrida em 1967.58 O conteúdo desta publicação também foi contempaldo na comunicação Prezada senhorinha:Correspondência de Guimarães Rosa com a netinha Vera Tess, apresentada em reunião do Grupo deTrabalho História da Infância da ANPUH seção SP, em 08 de abril de 2014. (RODRIGUES, 2014)

Figura 2.11 – Capa do livro Ooó do vovô – Correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, comVera e Beatriz Helena Tess.Fonte – (ROSA, 2003, p. 11)

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 82

No. DataRemetente e origem/

Destinatário edestino

Imagem/Conteúdo

Pg.

01 21/10/1966De Vovô RJ/Para

Neném querida SP

Imagem = Uma garotinha loira segurando umcachorrinho.Conteúdo = Cantiga infantil popular portuguesa ‘põea-há, põe a-há o teu pézinho, o teu pézinho, põe a-há,põe a-há para o Vovô. Ao tirar, ao tirar o teu pézinho,um abraço, um abraço do Vovô... um abraço “dedoeu’ (lhe dou eu) Ciao’ e referência a Mechéu.

16

02 18/11/1966De Vovô RJ/Para Ooó

do vovô SP

Imagem = Muitos gatos brincam como crianças emum rio.Conteúdo = Vovô preencheu todo o espaço com afrase: “Ooó do vovô”, tem um desenho dela, do vovôe de um passarinho levando uma flor.

17

03 28/10/1966De Vovô RJ/Para

Verinha olhos verdesSP

Imagem = Duas garotinhas (crianças) de maiô napraia.Conteúdo = É um convite para que ela lhe faça umavisita. Tem desenhos da família e apelidos carinhososde Vera: Neném, Ooó, Miss São Paulo, VeraPituquinha, Bonequinha, meu amor.

20

04 Setembro

De Vovô RJ/ParaSenhorita Vera LúciaTess Casinha bonita

SP

Imagem = Gatinhos brincando num campo de areia,como crianças.Conteúdo = Promete contar muitas estórias se ela forao Rio.

21

05 SetembroDe Vovô RJ/ParaSenhorita Beatriz

Helena SP

Imagem = Um gato de rosto fino e largo.Conteúdo = Promete estórias se ela for ao Rio noNatal ou antes, faz desenhos.

26

06 SetembroDe Vovô RJ/Para

Senhoritas Nenem e 2Nenem Tess

Imagem = Gato bem fofinho.Conteúdo = Diz que chora de saudades das meninas eda família toda, pergunta se, como ele, elas tambémchoram.

27

07 S.D.

De VovôPanamá/Para Ooó dovovô, Verinha, meu

amor

Imagem = Uma panamenha estilizada com um belovestido.Conteúdo = Pergunta se ela gosta do vestido da moçae diz que quando crescer vai ter um assim. Escreve acantiga “como pode o peixe vivo” e diz que vai fugircom neném.

28

08 14/10/1966De Vovô RJ/Para

Neném

Imagem = Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro.Conteúdo = Se diz com saudade e promete praia seela visitar o Rio. Escreve a cantiga popular mexicana“Cielito Lindo” em espanhol: “De la Sierra Morenavienen bajando/ Cielito Lindo, dos ojos verdes decontrabando.../ Ay, ay, ay, ay, reía y no llore,/Nenem, Nenem do Vovô, adola,/ Nenem não vaiembola...”

29

09 S.D.De Vera RJ/Para

Biatiz Eêna, minhairmãzinha SP.

Imagem = Dois cachorrinhos.Conteúdo = Mensagem de Vera à irmã (ditadoexato). Vera também desenha.

38

10 04/11/1966De Vovô RJ/Para

Nenen, Ooó do Vovô.Imagem = Cão grande.Conteúdo =Todo desenhado.

39

11 11/11/1966

De Vovô RJ/ParaNenen, Verinha, Ooó

do vovô, Miss SãoPaulo.

Imagem = Gatinhos correndo como criançasbrincando.Conteúdo = Desenha e dá apelidos carinhosos àfamília.

42

12 25/11/1966De Vovô RJ/Para Ooó

do vovô, com bola,com flor.

Imagem = Um trem conduzido por gatinhos e comfamílias de gatos como passageiros.Conteúdo = Desenha muito, inclusive um trem que épara ‘nenem vir ati’.

43

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 83

13 02/12/1966De Vovô RJ/Para

Nenen

Imagem = Gatinhos brincando como crianças numacozinha e ajudando a mamãe gata.Conteúdo = Desenha muitas vezes Ooó e vovôbrincando de bola, chupando chupeta, no carro,voando.

46-7

14 12/03/1967De Vovô/Para Asmeninas do vovô.

Imagem = Foto da Praça7, no centro de BeloHorizonte.Conteúdo = Expressa saudade delas através do versoda cantiga “como pode o peixe vivo?”e de desenho depássaros. Para Vera transcreve: “Eu vim de longe,bem de longe, pra te ver... Beijinho (sem carinho nãoexiste)”;Para Beatriz : “Dois-neném: eu gosto de vocêtambém”.

50

15 21/03/1967

De Vovô JoãozinhoGuadalajara

México/Para Ooó dovovô, Verinha do

Joãozinho.

Imagem = Desenho de uma garotinha mexicanaestilizada com um cavalinho.Conteúdo = Desenha um conjunto de músicamexicana tocando para uma garota dançar com umaflor e escreve trecho de Cielito lindo e “sem carinhonão existe! Ooó.”

51

É muito difícil para um adulto escrever para crianças, assim como se fazer bem

compreender por elas, já que a cultura infantil é distinta da do adulto, sendo suas noções

de mundo, de tempo, valores e repertórios outros e tão diversificados que não cabem na

cristalização da escrita. No caso da correspondência que Guimarães Rosa manteve com

as netas, a situação ainda ganha diferenciadas tonalidades, uma vez que não estamos

falando de um adulto qualquer, mas um escritor habituado aos jogos de linguagem, além

do fato de também as crianças destinatárias viverem um momento especial da vida:

eram meninas pequenas, que ainda mal haviam entrado plenamente no mundo da

palavra, inclusive da palavra falada. Ao tratar desse material estamos, portanto, tentando

destacar uma tentativa de contato entre os dois polos extremos da relação humana com a

linguagem.

Visando corresponder-se com as netas de pouca idade e que moravam longe,

Guimarães Rosa – uma pessoa de raízes sertanejas fortes, mas também de tendência

cosmopolita e integrada à cultura escrita – optou pelo uso de cartões-postais, escolha

extremamente interessante, já que esse tipo de correspondência está intrinsecamente

ligada à cultura epistolar do século XX, chagando a ser objeto de interesse de

colecionadores durante todo o período da Belle Époque e nos anos seguintes,

permanecendo como uma forma afetiva de lembrar de quem estava distante durante as

viagens. Assim sendo, nosso autor, saudoso do contato com as crianças, começou

tomando uma decisão acertada: querendo convidá-las a ir ao Rio, escolheu enviar-lhes

cartões-postais.

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Desde que surgiram nos oitocentos, os postais são uma espécie de missiva

específica que se presta ao convite à viagem, apresentando sempre uma ilustração fixa

na capa e uma mensagem no verso, que fica ao gosto do remetente. Com essa

configuração, o postal acabou por se estabelecer “como um padrão de correspondência

condensada cuja função era a de transmitir uma mensagem escrita breve e simplificada”

(SCHAPOCHNIK, 2010, p. 427), na qual pelo menos metade do conteúdo estaria a

cargo das sedutoras imagens. Assim, tradicionalmente, nesse tipo de carta, o conteúdo

mais importante não era o escrito, aspecto que poderia ser dispensável, visto que pelo

menos a metade do conteúdo estaria a cargo das imagens, possibilitando que até mesmo

as crianças pudessem compreender sozinhas alguma parte do que lhes foi enviado.

Nesse sentido, percebemos no caso de Rosa que até mesmo as figuras, em sua maioria,

conforme exposto na tabela descritiva acima arrolada59, foram cuidadosamente

selecionadas no intuito de agradar às meninas: desenhos, crianças, bichos, bailarinas

etc.. Um verdadeiro carrossel de ilustrações coloridas e atraentes que objetivavam

encantar as netinhas e atraí-las para a viagem, correspondendo, assim, a um dos

objetivos dos postais, que

São como um convite à viagem, uma prenda delicada àqueles queestão distantes. Imagens coloridas servem de moldura a juras de amor,reiteram plasticamente laços de amizade, perplexidade eencantamento. [...] A conjunção que se estabelece entre o texto e aimagem, sublinha a atitude deliberada do remetente em persuadir odestinatário a compartilhar, ao seu modo, o gosto da viagem. De umamaneira ou de outra, o cartão procura estabelecer uma comunicaçãoentre ausentes e assim restituir uma distância. (SCHAPOCHNIK,2010, p. 424)

Contudo, apesar de todo esse cuidado plástico de Vovô Joãozinho na escolha das

imagens, paradoxalmente, o maior tesouro contido naqueles cartões não são as belas

figuras, mas sim os conteúdos inscritos nos versos dos postais, nos quais Guimarães

59 Dentre os 15 cartões, apenas 3 não se referem diretamente ao universo infantil. Desse trio, doisapresentam justificativas indiretas para estarem sendo enviados a crianças: um apresenta imagem de umapraia e outro de uma panamenha estilizada com exuberante vestido, sendo que em ambos os casos aimagem é devidamente comentada pelo remetente, justificando sua seleção. O terceiro postal que nãoapresenta relação com o universo infantil é o da Companhia aérea Varing que traz a foto da Praça 7, nocentro de Belo Horizonte. Embora o Vovô comente no verso que escreveu “a bordo do avião da Varingem Vira Copos”, o restante do conteúdo destaca a ânsia em comunicar suas saudades das crianças e,possivelmente, só foi selecionado porque não havia outro mais adequado às destinatárias, evitando queelas deixassem de ser lembradas. Destacamos esse postal pois ele parece corresponder a outracaracterística tradicional dos postais que é a de “corroborar uma compreensão reduzida da paisagem” e,assim, cristalizar na memória coletiva um momento da cidade (SCHAPOCHNIK, 2010, p. 426-39). Essetipo de registro voltará a aparecer nesta tese através das capas de alguns dos Cadernos de GuimarãesRosa.

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Rosa se reconhecia como o Vovô Joãozinho e, para continuar correspondendo ao

primeiro objetivo de um cartão-postal, convidava as netinhas a viajar, fazendo um uso

fascinante de diversas linguagens caras aos infantes: cores, músicas, desenhos,

promessas de contar estórias etc.. Para além de, efetivamente, convidarem as meninas

para um passeio no Rio, os postais acabavam propondo – às destinatárias e também ao

remetente – uma outra viagem, muito mais complexa e curiosa: aquela estabelecida pelo

contato entre a linguagem da criança e a do adulto. Desse modo, nessa correspondência,

“o maior escritor brasileiro do século XX sente-se atraído pelo mundo infantil, põe de

lado seus inúmeros afazeres, e com elas conversa, quase monologa, e desenha com uma

constância comovedora” (CANDIDO; MINDLIN, p. 13). Depois de conhecermos

melhor o conteúdo do livro, voltaremos à questão: em qual medida, realmente, o Vovô

monologa ou dialoga com as meninas nessa correspondência? Por ora vamos guardá-la

e falar mais de sua publicação.

Quando escreve às netinhas é certo que o autor, no papel de Vovô Joãozinho,

não tem pudores em celebrar, em forma de desenhos nos versos dos cartões, seu afeto e

suas saudades das meninas distantes, em especial de Vera Tess, a principal destinatária

dos postais que é caracterizada diversas vezes, tal como observamos nessa composição:

Figura 2.12 – Verso do postal no qual Vovô Joãozinho desenha Ooó diversas vezes, inclusive como selo e,na parte superior direita, imbricada nas letras de Ooó.Fonte – (ROSA, 2003, p. 46-7)

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É interessante observar que, nessa mensagem, Vera é desenhada muitas vezes,

quase sempre em plena atividade: no lugar do selo, brincando com uma bola, dirigindo,

voando e, intrigantemente, escorregando entre as letras de seu apelido Ooó. Ao fazer tal

brincadeira desenhada, Rosa está, também, problematizando uma condição da criança

em relação à cultura letrada, uma vez que tudo para o infante serve para brincar,

inclusive as letras. Segundo Mario de Andrade, devido a seu caráter

infinitamente subtil de ser ao mesmo tempo uma transitoriedade euma sabedoria. O desenho fala, chega mesmo a ser muito maisuma espécie de escritura, uma caligrafia, que uma arte plástica. [...]É como que uma intermediária entre as artes do espaço e as do tempo,tanto como a dança. E se a dança é uma intermediária que se realizapor meio do tempo, sendo materialmente uma arte em movimento; odesenho é a arte intermediária que se realiza por meio do espaço, poisa sua matéria é imóvel. [...] Porque o desenho é, por natureza, um fatoaberto. Se é certo que objetivamente êle é também um fenômenomaterial, êle o é apenas como uma palavra escrita. Nós temos dadospositivos para saber que, de fato, foi do desenho que nasceu a escritados hieróglifos. (ANDRADE, 1975, p. 71-2, grifo nosso)

Então, ao desenhar para a neta, podemos afirmar que o Vovô Joãozinho também

escreve em uma caligrafia que até ela poderia entender. Ao figurar o corpo de Vera

brincando entre as letras, ele vai ainda mais além nesse uso do desenho, cuja

transitoriedade – tão cara ao universo infantil e também ao ambiente de criação – faz

referência ao processo de formação de uma das mais importantes tecnologias

desenvolvidas pela cultura humana, o alfabeto (HAVELOCK, 1976a, p. 11-44), surgido

justamente quando o que antes era desenho virou letra (LATZ, 2002). Até mesmo

devido a sua condição efêmera, o desenho constrói-se melhor através do uso de

instrumentos como o lápis, utensílio que expressa com mais amplitude as impressões

provisórias e moventes, tão caras aos que ainda não estão completamente imersos no

cristalizado mundo das palavras escritas.

Se, habitualmente, os cartões-postais seguem abertos, podendo ser lidos por

qualquer pessoa que tomasse contato com eles (SCHAPOCHNIK, 2010, p. 428), no

caso dos enviados por Vovô Joãozinho às netas de São Paulo, tal fato não se sucedia, já

que todos os maravilhosos postais seguiam pelo correio protegidos por envelopes,

confirmando seu caráter de extrema pessoalidade: aqueles afagos e carinhos tinham

destinatárias específicas e somente elas – ou os intermediários que os lessem –

poderiam acessar seu conteúdo. Ainda que na publicação dos cartões apenas um

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 87

envelope apareça – destinado a “Senhorita Vera Tess” –, em setembro de 2011

mantivemos uma conversa com Vera, sobre a qual falaremos mais detidamente adiante,

ocasião em que pudemos então consultar os cartões originais, todos publicados no

referido livro, e também os envelopes nos quais eles foram postados, nos quais se

destacaram, nos sobrescritos, as diferentes formas carinhosas que o Vovô usava para

chamá-la, em diversas línguas:

Tanto cuidado com a menina indica uma mudança que acabou acorrendo

posteriormente: se inicialmente os postais eram destinados às duas netas – as meninas

do Vovô Joãozinho –, com o tempo um favoritismo pela mais jovem – apelidada de

Ooó – acentuou-se, apontando não apenas uma maior afinidade entre os dois

correspondentes, mas também, possivelmente, uma situação peculiar em relação à

linguagem que a menina vivia naqueles meados da década de 1960, origem de tal

apelido, como ela mesma explica no prefácio do volume:

Caçula, eu não ia ainda para a escola, o que me permitia passar maistempo no Rio. Os cartões, escritos entre 1966 e 1967, quando eu tinhaentre 3 e 4 anos de idade, eram como vovô Joãozinho me convidava

Figura 2.13 – Foto de alguns dos envelopes usados por Vovô Joãozinho para enviar os cartões a VeraLúcia Tess. Destaque para as diferentes formas carinhosas de chamá-la em diversas línguas: mademoiselle,senhorinha, señorita, miss, senhorita, senhorinha.Fonte – Fotografia de Camila Rodrigues, feita em 23 de setembro de 2011, em ocasião da entrevista realizadacom Vera e Beatriz Helena Tess.

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para mais uma temporada no Rio. Demorei para falar (por purapreguiça, diziam), limitava-me a apontar para os objetos que eu queriapegar, chamando-os de ‘ooó’60. Daí meu avô carinhosamente chamar-me de ‘ooó do vovô’. (ROSA, 2003, p. 11)

Segundo relatos da própria Vera já adulta, à época em que ela apresentava tais

dificuldades em começar a falar, todos se preocuparam com a possibilidade de ela estar

sofrendo algum mal de saúde, mas foi o Vovô Joãozinho quem a levou a consultar-se

com seu amigo e médico foniatra Pedro Bloch, que constatou logo que, fisicamente, a

menina não apresentava nenhum problema, sugerindo-se então que sua dificuldade em

adentrar no domínio da palavra falada teria origem comportamental ou emocional. Após

cuidadosa anamnese, o clínico ficou sabendo mais acerca da vida cotidiana da menina e

aventou que o bloqueio acontecia porque, como ela era caçula e tinha quatro irmãos

mais velhos sempre a seu redor, a garota logo percebeu que bastava apenas apontar para

aquilo que desejava e, magicamente, algum deles lhe traria aquilo que ela queria, ou

seja, a intermediação da palavra não lhe era necessária. Como já foi dito, a criança só

entra no campo da palavra por necessidade de se comunicar melhor visando conseguir

fazer com que seus desejos se tornem realidade, a palavra adquire caráter mágico para o

ser humano já nos primeiros anos de vida. Nota-se que durante a primeira infância de

Vera, usar palavras para falar não era imperativo, visto a comunicação pré-verbal,

através de outras formas de linguagem menos lineares, se operar bem com seus irmãos

que, apesar de maiores, também eram ainda crianças. Nesse contexto, é como se Vera

tivesse permanecido na fase da palavra mágica por muito mais tempo que o normal,

vindo a falar através de vocábulos mais complexos que os ruídos rudimentares da

sequência de “o” apenas quando isso se tornou uma obrigação. A percepção de Bloch

foi comprovada quando os irmãos aceitaram sua sugestão e fingiram que não entendiam

o que ela desejava todas as vezes que ela enunciava o ooó, fato que acabou obrigando-a

a começar a nomear os objetos. Segundo Meneses, sabemos que “nomear algo significa

convocar, criar realidade da coisa, ou antes, reconhecer essa realidade. Trata-se do valor

mágico da palavra, do poder da palavra, da palavra eficaz” (MENESES, 2010a, p. 233),

ao que podemos sustentar que Verinha se demorou mais na vivência pura das coisas

antes de ‘criá-las pela palavra’, peculiaridade que, certamente, deve ter interessado

bastante ao vovô Joãozinho.

60 Se Ooó é a fala pré-verbal de Vera Tess, mudando a acentuação, segundo Nilce Sant’Anna Martins,Oôo constitui uma onomatopeia não dicionarizada inventada por Rosa, que aparece no livro Corpo deBaile (1956), correspondendo ao mugido de vacas (MARTINS, 2001, p. 360).

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 89

Todavia, vimos que a história de Verinha nos leva até a figura de Pedro Bloch,

que foi um bom intermediador cultural entre adultos e crianças, já que, tendo

estabelecido muito contato com elas enquanto médico, experimentou ouvi-las e

transformar suas enunciações em registros escritos, nos quais são percebidos traços

peculiares da percepção do mundo que as crianças vão apreendendo. Tais inscrições,

por tentarem exprimir de alguma forma a perspectiva infantil, podem constituir uma rica

fonte para se escrever uma História Cultural da Criança (FREITAS; KUHLMANN

(org), 2002, p. 07), afinal, ao serem não apenas escritas, mas também publicadas,

tornam-se profundamente históricas (cf. SEVCENKO, 1998, p. XXI-XXV). Nesse

sentido, em uma das anedotas publicadas por Bloch, o autor fala de uma netinha de

Guimarães Rosa, que supomos ser Vera Tess, visto Bloch ter chegado a conhecê-la

pessoalmente, justamente quando ela ainda estava na primeira infância, experimentando

as primeiras formas verbais:

A NETINHA DO ROSAA netinha do grande Guimarães Rosa é um prodígio de serenidade,simpatia e discrição. Ela quase não fala mas quando o faz é comimensa graça e encanto. Rosa me disse uma vez, analisando-a:– Ela tem tanta coisa pra dizer que nem precisa falar.E a respeito de um indivíduo que falava demais sem nada dizer:-– Sabe Pedro? Ele é cheio de coisas vazias, não é? (BLOCH, 1970, p.27, grifo nosso).

Ainda que na esfera privada, ao desenhar com tanta frequência para as netinhas

na correspondência acerca da qual tratamos, o escritor Guimarães Rosa também

acabava, indiretamente, problematizando a crítica à História de seu tempo. Se a História

é cristalizada, legítima, linear, sua antípoda estória – reformulada por Rosa –, é

anedótica, inconstante, permeável a várias possibilidades. Acerca da tensão que pode ser

estabelecida entre esse binômio, no filme Narradores de Javé (2003), a narrativa centra-

se em um pequeno vilarejo que, para não desaparecer sob as águas de uma usina

hidroelétrica, precisava que seus habitantes produzissem urgentemente um documento

que narrasse os ‘acontecimentos históricos’ ocorridos no lugar no intuito de tentar

salvar sua existência. Mas como aquela vila vivia praticamente sem escrita

(HAVELOCK, 1996a, p. 12), apenas Antonio Biá arriscou-se a escrever as mais antigas

histórias que o povo contava acerca da vila, produzindo a legítima História de Javé. No

filme, ele assim disserta sobre suas práticas de escrita:

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 90

Não uso caneta, não me acostumo. Não sei se o senhor já viu, mas acaneta corre no papel sem freio, então se a gente erra e quer arrumar,aí emporcalha tudo, fica aquela disenteria de tinta. Agora o lápis não,o lápis é maravilhoso, porque ele agarra o papel, ele aceita a borracha,ele obedece à mão e ao pensamento da gente. Eu sou um homem quesó consegue pensar a lápis. (NARRADORES de Javé, 22’ 23’’ – 22’57’’)

De qualquer forma, nem mesmo a lápis Antonio Biá conseguiu narrar a História

de Javé, deixando a seguinte justificativa: “me exonero como escrivão, estou ausente

para manter a mente e o corpo são. Quanto às histórias tais, melhor ficar na boca do

povo, porque no papel não há mão que lhes dê razão” (NARRADORES de Javé, 1º 27’

27’’ – 1º 27’ 39’’). Mas será mesmo impossível escrever a História do povo não

letrado? Nem mesmo João Guimarães Rosa com sua escritura tão performativa – escrita

a lápis de cor – teria obtido sucesso nisso?

Antes de nomear o gênero literário único criado por Rosa, a palavra estória

também possuía seus significados, podendo denotar o ‘mesmo que história’ e também

‘narrativa ficcional de cunho popular’, lendas, causos etc. (HOUAISS, 2001). Então,

talvez, a melhor forma de se contar estória – fato e lenda –, seja mesmo cantando, via

encontrada por Rosa. Na “multicolorida” relação que estabeleceu com a pequena Vera

Tess, vovô Joãozinho recheava os versos dos postais com transcrições e desenhos de

muitas canções populares dos mais diversos lugares: da tradicional portuguesa Ora,

ponha aqui o seu pezinho, da latino-americana Cielito Lindo e, claro, da mineira Peixe

vivo. Em um dos cartões, exposto abaixo, o Vovô Joãozinho faz algumas referências ao

universo da canção:

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Ao compartilhar com a criança uma grande gama de possibilidades sonoras e

musicais, inserindo-a, assim, em sua tradição cultural, o Vovô não se mostra apenas

didático, já que, ao cantar para ela – e convidá-la a também cantar –, ele executaria

antes uma tentativa de, ainda que na forma escrita, continuar trocando afeto e

percepções com a pequena, em uma relação na qual cada lado participa sua percepção

do mundo e das coisas, em um processo legítimo de construção (para a neta) e

manutenção (para o avô) da subjetividade. Nesse mesmo sentido, além de desenhos e

canções, também no conteúdo dos postais encontramos registros de mensagens ou,

como Rosa os chamou, de “ditados exatos”, de Vera para a irmã Beatriz Helena, como

observamos abaixo:

Figura 2.14 – Postal enviado por Vovô Joãozinho a Vera Tess, de Guadalajara, com desenho de uma meninamexicana estilizada e um burrinho. No verso, Vovô declara sua imensa saudade pela menina, envia-lhe, emdesenho na parte direita, “um caminhão de beijinhos” e, na parte esquerda, também em desenho, lhe faz umaserenata de músicos mexicanos, tocando e cantando Cielito lindo. Para fechar, na parte reservada ao selo,desenha o “peixe vivo”, escrevendo a pergunta da cantiga: “Como pode o peixe vivo?”Fonte – (ROSA, 2003, p. 51)

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Se Rosa confessa que, como vimos, em sua infância, foi alimentado pela audição

constante das “narrativas multicoloridas dos velhos: mitos e lendas” (LORENZ, 1991,

p. 69-70) e que a única diferença entre ele e as outras crianças era que o autor, em vez

de contá-las depois, como pede a tradição oral, as escrevia, então talvez Rosa já

estivesse habituado à transcrição de expressões verbais. Mas aqui já não se trata apenas

de uma adaptação de linguagem, afinal na época da correspondência com as netinhas

pequenas, ele já era adulto, o que nos leva a questionar: com que legitimidade ele

poderia expressar os pensamentos de Vera? Ainda que fique claro que, embora a

comunicação do desejo de afagar até se materialize, nas cartas ditadas pelas crianças aos

adultos letrados, aquilo que está na cabeça dos pequenos, em suas cem linguagens

(EDWARDS et al., 1999), nunca poderia caber por completo nas palavras escritas.

Figura 2.15 – Verso do postal no qual o vovô Joãozinho transcreve a mensagem de Vera para a irmã BeatrizHelena: “(Ditado exato):/ Queída Biatiz Eêna, minha Imãzinha./ Catão bonito, com caçoinho, dois caçoinhos.Pa você./ Mamãe queída. Papai queído. Imãozinhos queídos./ Vovô fica tiste, e vovó, titia. Chora. O mar tápeando. (?) (Peando pa lá: toma banho.)/ Agora, eu quéo crever: sabonetinho dela, queído.) Bonita, Você.Bonequinha. Boneca. Bonitinha. Tou no (R)ío. O Joãozinho, Vovô, Vovó, Titita. Jesus. Cá-sás da Banha.../Cartão seu bonito. (O)b(r)igada./ Juana (empegada)./ Dois-Nenén, beijinhos./ Beijinhos Mamãe queída./ É.Edu bonito./ Imãozinhos./ Vovó Ima./ P(r)onto!/ a) Vera/ bichinho, jacaé, cobinha, bolinha, mãe da cobinhapequenininha/ (Pela cópia fiel, com lembranças, o Joãozinho - secretário de Vera?)”.Fonte – (ROSA, 2003, p. 38)

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A fim de romper as distâncias, impossibilidades e proibições, às quais os

infantes estão sempre submetidos, é comum que se tente expressar sua voz (ainda em

construção) nas linguagens mais livres e adequadas também a eles: desenhos, beijos,

silêncios etc.. No postal acima, no qual Vera exercita a comunicação com a irmã pela

via da transcrição do avô, também Joãozinho experimenta aproximar-se da perspectiva

peculiar da pequena neta, transformando as elocuções que ela conseguiu proferir (e ele

compreender) em claras palavras escritas. Contudo, como se soubesse do previsível

fracasso de tal empreitada, abre-se espaço para que ela mesma expresse sua própria

“voz”, através de produções gráficas infantis, permitindo que, dessa forma, Vera

“comente” com a irmã as novidades que percebeu no Rio de Janeiro, coisas muito

simples como: a bolinha, a cobrinha, a bala, o bichinho, o jacaré etc., tudo grafado de

forma bastante rudimentar, próximo de rabiscos que, por fugirem da lógica narrativa,

tornam-se quase que ilegíveis (MÈREDIEU, 2006, p. 23). Devido a tal fato, o Vovô é

obrigado a escrever uma legenda explicando o que “signifca” cada um daqueles

rabiscos, suprindo uma necessidade do adulto, visto que para a criança “a questão do

sentido ou não-sentido apresentam significado mínimo” (MÈREDIEU, 2006, p. 16-7).

Sublinhando os diálogos possíveis entre as crianças e por estarem expressos em

palavras escritas, postais como esse constituem momentos que abrem questionamentos

instigantes, pois podem funcionar como tentativa de comunicação entre a lógica adulta e

a infantil. Além disso, nossa atenção volta-se especificamnete a esse postal devido ao

fato de ele trazer na capa a imagem de dois cachorrinhos entre flores e no verso a

mensagem que apresentamos, terminando com a pergunta: tendo transcrito com

tamanha exatidão a mensagem da netinha, seria o vovô o secretário da Vera? Aqui fica

claro que a possibilidade mesma de expressão da linguagem dos pequenos, estabelecida

pela mediação da palavra escrita dos adultos é colocada em tensão.

Assim, sempre de forma atraente e criativa, os postais demonstram uma empatia

carinhosa e sensibilizadora, seja nos modos de tratamento ou nas lembranças, tanto que

acabaram se tornando um registro das importantes trocas estabelecidas entre avô e

netas. A fim de manter essa relação, em determinado momento, não bastava apenas

enviar o convite às meninas, especialmente a Verinha, já que, sendo as crianças

pequenas, era sempre necessária a autorização dos pais para que elas pudessem fazer a

viagem, fazendo com que Rosa também enviasse à sra. Beatriz Tess cartões de

agradecimento pela permissão, comprovando o valor positivo que o contato com

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crianças de tão pouca idade exerceram no casal de avós. Uma tabela recenseando tais

cartões está arrolada a seguir:

2.TAB 2 - Cartões postais para Beatriz Tess

No. Data

Remetente eorigem/

Destinatário edestino

Imagem/Conteúdo

Pg.

01 14/05/1967De Vera Lúcia

RJ/Para Queridamamãe Bia.

Imagem = “La Madonna degli Alberetti”, de GiovanniBellini.Conteúdo = A mensagem é da Vera para a Bia no dia damamãe em 1967 e para a família toda. Vera tambémdesenha “presentes” para Bia: flores, colar, pulseira, anel,bala.

54

02 27/05/1967De Joãozinho e

Vera RJ/Para Bia,linda e querida

Imagem = Imagem sacra, de San Juan em La Isla dePathmos.Conteúdo = Mensagem de agradecimento por Bia terconsentido que Vera passasse uma temporada no Rio comos avós: “você não imagina quanta alegria ela nos temdado. Perto dela a gente acredita mais em Deus e na vida.Que companheirinha maravilhosa, fadazinha!”. Veratambém rabisca seu nome.

55

Esses cartões enviados para a Sr. Beatriz Tess são muito interessantes,

especialmente no que concerne aos “presentes desenhados” que Vera envia a Bia no dia

das mães, na parte direita do seguinte postal:

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Nesse postal, Vovô Joãozinho possibilita que a pequena Ooó expresse à mãe Bia

as felicitações pelo dia da mamãe de 1967. O interessante é que, como mãe e filha

estavam em cidades diferentes naquele momento, tais votos são dados pela via da

correspondência – expressão diretamente ligada à comunicação escrita –, mas a menina,

que ainda não pode escrever belas palavras, se pôs a desenhar os objetos com os quais

ela gostaria de presentear a mamãe: flores, colar, pulseira, anel, bala. Se Walter

Benjamin já explicava que os pequenos, em contato com as ilustrações de livros

infantis, se comportam de forma peculiar, visto que, nessa situação, “não são as coisas

que saltam das páginas em direção à criança que as vai imaginando – a própria criança

penetra nas coisas durante o contemplar, como nuvem que se impregna do esplendor

colorido desse mundo pictórico” (BENJAMIN, 2002, p. 69), no caso em que é a própria

criança quem desenha, a representação ganha novos significados, pois tal produção faz

parte de um complexo estado de abstração mental a partir do qual as crianças enxergam

o mundo, no qual a realidade está em constante processo de se fazer e os desenhos

podem bem “representar” – no sentido efetivo de substituir – os presentes reais

(GOMBRICH, 1999, p. 04).

Figura 2.16 – Postal em que Vera manda “presentes desenhados” à mãe Bia na parte direita: flores, colar,pulseira, anel, bala, bolinha, que são didaticamente “legendados” pelas palavras do Vovô Joaãozinho.Fonte – (ROSA, 2003, João, p. 54).

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Apesar de os cartões serem a parte mais bela do livro, nele há também outros

materiais nos quais o escritor continuou experimentando estabelecer uma comunicação

escrita com meninas pequenas, mostrando um pouco a maneira pela qual isso refletiu

em seu trabalho como escritor. Uma síntese desses materiais presentes no livro segue-se

arrolado na tabela abaixo:

2.TAB 3 - Esquema de listas, cartas, desenhos, recados do livro Ooó do vovô

No. Data Autor/destinatário Conteúdo Pg.

01 S.D.O autor João Guimarães

Rosa.Desenho de Guimarães Rosa feito em lápis deduas cores (azul e vermelho).

15

02 S.D.Envelope decorado para asenhorita Vera Lúcia Tess.

Recortes de uma foto de um bebê e de ummenino com bola, de desenhos de cavalinhode pau verde, de crianças, de um boi e umamenina em meio a círculos coloridos.

18/19

03 S.D.

Cartão sem remetente oudestinatário, mas

provavelmente foi feitopor Guimarães Rosa para

as netinhas.

Um papelão cortado em forma de cartãocontendo na primeira página desenho e letrade uma versão da cantiga Teresinha de Jesus;na segunda página, uma carta desenhada dovovô para Vera; na terceira, desenhos de outraversão de Teresinha de Jesus e, na quarta, umrecorte de um coelhinho.

25

04

Meados dejulho e

agosto de1966

Três listinhas de registrosque Guimarães Rosa fezdas falas de Vera Tess, a

lápis, recortadas.

São listas de registros de enunciações de Vera.Na segunda, consta também a referência aMichéu bambéu, que depois aparecerá naestória Mechéu.

30

05 S.D.Carta do vovô à senhorita

Vera Lúcia.Na cartinha, o vovô promete contar váriasestórias à netinha e faz um desenho dela.

31

0617/12/196,

21/12/1966 e22/12/1966

Registros de Rosa dasfalas de Vera (Ooó).

Alguns saltos de linguagem surpreendidos emconversa com Verinha, como quando ela dizao vovô “não vou (mais) casar com você” ouque ele é um “Sato” (=chato).

34

0724/12/1966 e31/12/1966

Registros de Rosa dasfalas de Vera (Ooó).

Na semana das festas de fim de ano de 1966,Rosa registra alguns conflitos percebidos pelacriança em relação à cultura adulta dele, comoquando, em 24.11.1966, diz ao vovô: “– Éatinho. Ocê fala (ratinho) é porque vocêcresceu”.

35

08 1965/66Registros de Rosa dasfalas de Vera (Ooó).

Talvez os primeiros registros da comunicaçãode Vera, quando ela tinha entre dois e trêsanos (1965/6).

36

09 S.D.Registros de Rosa dasfalas de Vera (Ooó).

Os registros foram feitos no papel timbrado daSecretaria de Estado das Relações Exteriorese no topo ele começa com um grande M%.

37

1004/02/1967 e11/02/1967

De Beatriz Helena Tess(Dois Neném)

Dois desenhos de Beatriz Helena Tess, umdeles no papel timbrado da Secretaria deEstado das Relações Exteriores, mas escritoao avesso e ambos feitos a caneta azul epintados com lápis grafite ou lápis de duascores.

48

1111/02/1967 e04/03/1967

De Vera Lúcia TessDois desenhos de Vera Lúcia Tess, feitos alápis coloridos. O primeiro é abstrato e osegundo, de acordo com o registro do vovô, é

49

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uma aiânha (aranha) com olhos e boca.Contém ainda a fala da criança: “Ela é boa, Émá não”.

1207/05/1967 e03/06/1967

Registros de Rosa dasfalas de Vera (Ooó).

Dois momentos do diálogo com Vera. Noprimeiro, eles estão vendo, pela janela, a filade gente para ir ao programa do Chacrinha, naTV-Rio, e a menina diz: “Vovô olha (lá) todoo mundo!...”; depois ao telefone (ele noItamaraty) “– ...Beijinho para você, e umabraço e um beijo para todo-o-mundo...”.

52

13 17/08/1967 De Vera Lúcia/SP

Cartinha de Vera, com desenho colorido (comlápis de várias cores) e escrito a caneta, poralgum adulto não identificado, no modo defala da criança: “Carta da Vera: « Vovôqueído, beijo Vovô queído, abraço Vovôqueído. Tou com saudade de você. Não vouno Ío não. Você vem aqui. Beijo Vovó Aci.Abaço nas Amigas Monica, Angélica, Fátima,Patricia, Adriana. Beijo vovô queído. VeraÚcia. (em 17 de agosto de 1967).

53

14 29/09/1967De Joãozinho RJ/Para Bia

SP

Carta convidando a família Tess para a possena ABL e para o Natal. Relata algumasenunciações de Verinha, como: “Verinhadisse que ia me levar para São Paulo, earranjar aí para mim ‘um trabalho de Vovô’.Disse que ia mandar fazer uma casa para mim,pertinho da casa nova de vocês...”.

56/7

15 S.D. De Vera Lúcia para Vovô.

Desenho feito a lápis grafite, no verso de umpapel timbrado do Ministério de Educação eCultura. Registra o vovô, em uma lembrançade Vera, e o desenho é da “casa velha, domacaco que viu o tubi da velha!...”

58

16 14/11/1967Registros de Rosa sobre as

falas e interações comVera.

Um recorte com duas listas de sete frutas emcada uma (possivelmente uma brincadeiraentre avô e neta), além de mais registros defalas de Vera com M%.

59

17 12/08/67De Beatriz Helena para

vovô Joãozinho e de Vovôpara Beatriz Helena.

Desenho feito a lápis grafite e lápis de duascores por Beatriz Helena em papel timbradoda Secretaria de Estado das RelaçõesExteriores; abaixo uma cartinha onde o vovôpromete contar estórias a Beatriz Helena,inclusive a de uma menina chamadaNHINHINHA.

60

Retomando a abordagem dos temas musicais transcritos por Guimarães Rosa nas

mensagens às pequenas, lembramos que também nos fragmentos guardados para Vera

encontramos versões desenhadas de duas variantes da história tradicional Como a jovem

que teve que escolher entre três pretendentes, cuja origem se perde no tempo, mas que

na cultura ibérica ficou conhecida por meio da cantiga Teresinha de Jesus (CONTOS,

1986, p. 37-40). Na cultura brasileira, tal cantiga virou tema de rodas e brincadeiras

cantadas, nas quais a história é encenada pelas crianças, especialmente as pequenas,

como era o caso de Ooó na época, constituindo um momento lúdico que permite ajudar

as crianças a interagir e a falar. E para os infantes brincantes, não há diferença definida

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entre cantar e gracejar, já que, segundo uma criança, a Cantiga de Roda “É uma música,

uma dança, não é uma brincadeira, mas aí a gente faz uma brincadeira” (JARDIM,

2002, p. 31). As versões dessa cantiga escolhidas por vovô Joãozinho foram as

seguintes:

Nesses desenhos simples, todos traçados a lápis grafite e coloridos com o lápis

de duas pontas – que eram propriamente os instrumentos de trabalho do vovô

escritor/diplomata, que repentinamente se transformavam em jogos e brincadeiras para

ficcionalizar (cf. MÈREDIEU, p. 8-9) –, temos representadas duas variações da cantiga

de roda Teresinha de Jesus. Nota-se que as semelhanças entre as duas variantes se

mantêm pelo ritmo da melodia e as diferenças se operam nos modos de linguagem. No

caso da primeira variação, temos uma narrativa curta, na qual Teresinha de Jesus

aparece como uma criança – não necessariamente Vera –, para quem a mãe pede que se

Figura 2.17 – Fragmentos com variações da cantiga Teresinha de Jesus para Vera Tess Ooó. A primeiraversão, mais jocosa, fica assim: “Teresinha de Jesus/ – Abre a porta!/ Vê quem é/ – É um homempequenino.../ Que tem mêdo de moé!”; na segunda, temos o desenho de uma Teresinha cavaleira, que cai docavalo e é acudida por três cavaleiros (não três cavalheiros, como na canção popular): “Teresinha de Jesus/Deu um pulo, foi ao chão/ Acudiram três cavaleiros, todos três chapéu na mão”.Fonte – (ROSA, 2003, p.25).

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abra a porta para ver quem chama, ao que a menina então obedece e diz que é um

“homem pequenino que tem medo de moé”, transcrição exata de um modo de falar a

palavra mulher que, quando escrita, provoca estranhamento. Já na segunda variante,

temos a versão tradicional da menina que caiu e “acudiram três cavalheiros, todos os

três chapéu na mão”, sendo que aqui, no entanto, o Vovô Joãozinho desenha uma

Teresesinha de Jesus semelhante às caracterizações de Vera em outros cartões, que é

uma cavaleira, assim como seus salvadores, são “três cavaleiros”. Essa brincadeira com

as palavras cavalheiros e cavaleiros se opera na fala e na escrita, mas é na escrita que ela

fica mais sutil, visto ocorrer a partir da ausência ou presença de uma única letra – h –

modificadora de todo o sentido da mensagem.

Nos bilhetes do Vovô Joãozinho apresentados no livro, temos igualmente alguns

registros da visão peculiar que a criança vai apresentando das coisas, como, por

exemplo, o choque de linguagem entre crianças como Ooó e adultos como o avô:

Ainda nesses referidos bilhetes, destacamos outro no qual a posição da criança

em relação ao conflito cultural entre letrados e iletrados é colocada em mais de uma

forma, quando Ooó “fala” ao Vovô usando palavras ditadas e também quando ela

desenha rabiscos coloridos que constituem suas linguagens mais significativas:

Figura 2.18 – Fragmento com transcrição de enunciação de Vera Ooó. “Vera (Ooó)/ 24.XII.66/ – É‘atinho’. Ocê fala (‘ratinho’) é porque você cresceu...”.Fonte – (ROSA, 2003, p. 35)

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Em vez de representar figuras mais definidas, como quando desenhou presentes

para o dia da mamãe nos postais, esse desenho que Verinha fez como parte da carta ao

Vovô Joãozinho é abstrato e variado em cores... Nele não vemos mais os instrumentos

de trabalho de Rosa – como os lápis de duas pontas e os papéis timbrados –

transformados em brinquedo infantil. A gravura colorida nos oferece aqui outro tipo de

informação, afinal “por sua simples manifestação, a cor certifica, torna autêntica a

existência da ficção [...], ao desdobrar-se ela tem poder para convocar a totalidade dos

mundos sobre os quais ela pode colocar-se ou de onde, talvez, ela provém” (SCHÉRER,

2009, p. 112). Dessa forma, a cor constitui a expressão representativa mais importante

para a criança, já que ela legitima a ficcionalização, o faz de conta...

Figura 2.19 – Carta de Vera, com desenho abstrato colorido (com lápis de várias cores) e escrito a caneta poralgum adulto, segundo o modo de fala da criança: “Carta da Vera: « Vovô queído, beijo Vovô queído, abraçoVovô queído. Tou com saudade de você. Não vou no Ío não. Você vem aqui. Beijo Vovó Aci. Abaço nasAmigas Monica, Angélica, Fátima, Patricia, Adriana. Beijo vovô queído. Vera Úcia. (em 17 de agosto de 1967)”.Fonte – (ROSA, 2003, p. 53)

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Se o que primeiramente chama a atenção nessa correspondência é a atração

exercida pela beleza dos postais, lembramos que a faceta íntima e afetiva de Guimarães

Rosa constituiu, em certa medida, algo surpreendente até mesmo para alguns de seus

pesquisadores mais especializados e acostumados à extrema sensibilidade do escritor.

Antes da publicação do volume em 2003, a primeira aparição pública desses postais

ocorreu em 24 de agosto de 1998, durante a sessão de abertura do I Seminário

Internacional Guimarães Rosa, realizado na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de

Minas Gerais. No posfácio da edição da correspondência, o então reitor daquela

universidade, Pe. Geraldo Magela Teixeira, sublinha:

[quando] tivemos a oportunidade de conhecer alguns dos magníficoscartões que Rosa enviou a Vera, quando ela, criança ainda, sequerdominava a língua que o avô dissecava em seus livros magistrais. Afaceta lúdica e bem-humorada das experimentações criativas com que oescritor construiu o contato carinhoso com a neta encantou todos [...].Os cartões projetados no telão do teatro da PUC Minas exibiram, emprimeira mão, aos leitores e pesquisadores da obra de Guimarães Rosa,uma faceta da sua intimidade familiar talvez desconhecida da maioriado seu fiel público. Às imagens que a obra do escritor e os depoimentossobre ele criaram somou-se esta outra, carinhosa, espontânea e original.[...] além da delicadeza do material [...], outras estórias que se foramagregando desde que a existência dos cartões foi revelada a um públicomaior, ansioso por retomar as brincadeiras que o escritor mineirofez com palavras, desenhos, traços e outros sinais de magistralinventividade. (TEIXEIRA, 2003, p. 69, grifo nosso)

Ainda próximos da revelação pública do material em 1998, os postais escritos

por Rosa a Vera e Beatriz Helena Tess já foram tema de alguns poucos artigos

científicos na área de Letras, que apontaram diversos caminhos de leitura daquele

material. Em Brincando de ser criança, Sílvia Maria Azevedo sugere que o vovô

Joãozinho, ao falar com as netas de pouca idade, apresenta uma sensibilidade

semelhante àquela que Schiller defiviniu como a do “poeta ingênuo” (AZEVEDO,

2008, p. 4). Em Marcas de Ooó, João Batista Sobrinho propõe a possibilidade de

enxergar nos cartões perspectivas diferentes daquilo que ele chamou de “bastidores

rosianos”, visto o contato tão direto com elementos gráficos transparecer no texto

escrito, já que a palavra é algo para se ler, ver e ouvir (SOBRINHO, 2004, p. 281). Na

presente tese, porém, tais cartões constituem fontes que servem para desenhar faces de

como Guimarães Rosa pôde se interessar e inserir a infância em sua produção literária

da década de 1960, sendo uma das possíveis influências o contato estabelecido com as

pequenas irmãs Tess. Desse modo, além dos postais, interessa-nos igualmente destacar

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os bilhetes, cartas, desenhos, toda aquela gama de linguagens evocadas pelo Vovô para

falar às netinhas por meio da escrita.

Assim, em busca de mais elementos acerca desses postais, no dia 23 de setembro

de 2011 estabelecemos um diálogo com Vera Tess – que contava então com quarenta e

oito anos –, na casa de sua mãe, a Sra. Beatriz Tess, para que ela nos concedesse um

depoimento sobre aquela experiência. Em seu emocionado depoimento oral de cerca de

duas horas, Vera forneceu muitos elementos significativos para esta pesquisa.

Recortamos a seguir o seguinte trecho, no qual ela fala sobre o vovô Joãozinho:

Ele foi o único avô que eu conheci, que eu tive, porque meus doisbiológicos eu não conheci; enfim, a referência de avô, de afeto é totaldele. Ele faleceu e eu tinha quatro anos e pouquinho, então eu tenhouma memória... muito... tenho uma memória do afeto, tenho umamemória muito... assim, na verdade quando eu vejo, quando eu leio,toda vez que eu releio estes cartões aí, é uma coisa que tem umsentimento muito gostoso, muito... é como se eu voltasse a ser criançamesmo [...]. É mais do que se emocionar, me toca, tem uma... enfim, éum aconchego digamos, uma sensação muito boa de estar próxima, deficar mexendo, de lendo e tal... e ai, muito uma coisa infantil, debonitinho, de avô, disso eu tenho um sentimento forte. (TESS, 2011)

Já quando perguntada acerca das possíveis influências, durante toda sua vida, de

saber-se neta, e a favorita, de Guimarães Rosa, Vera respondeu:

Talvez o maior impacto, o que me mexe e me me toca, a importânciamaior foi ter tido um avô gostosinho como ele foi, então depois dever essas coisas, as que mamãe conta... a vovó conta... todas ashistorinhas super carinhosas: que ele me punha pra dormir, mecontava estória, ia no banheiro comigo, né... bonitinho [risos]. (TESS,2011)

Nesse momento, Sra. Bia comentou: “ela via televisão deitada do lado dele...”,

ao que Vera prosseguiu:

Essas coisas são de um afeto, de um carinho assim que é uma delíciaouvir, saber, bem coisa de afeto mesmo. Isso ultrapassa de muito oser neta do Guimarães Rosa; primeiro me vem como é ser neta doVovô Joãozinho. Primeiro porque, criança, eu nem sabia que ele eraescritor, né, até nessa idade nem sabia. E tem uma coisa interessantetambém, do tempo, porque o Guimarães Rosa, como escritor, naminha história pessoal, começou externamente, só no colegial, no finalda década de 1970 e começo da década de 1980, porque até então nãose falava de Guimarães Rosa, não se lia, então ele, como escritor, nãoexistiu na minha vida por muito tempo, era uma coisa completamentedissociada. Como não tinha exposição nenhuma na infância eadolescência, foi tudo muito tranquilo... (TESS, 2011 grifo nosso)

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 103

Na ocasião dessa conversa, pudemos consultar os cartões originais e os

envelopes e averiguar que todos foram publicados no livro, exceto um, enviado de Nova

York em junho de 1966, que não consistia no típico “bilhete postal” – composto de

frente com imagem e verso com mensagem –, mas sim em um cartão maior, dobrado,

no qual a mensagem escrita fica ao meio de um vasto espaço. Nesse cartão,

especificamente, não há desenhos nem mensagens mais longas efetivados pelo autor:

Com esse exemplo, sublinha-se que tal tipo de cartão – que supostamente

deveria valorizar mais a mensagem que a imagem –, paradoxalmente seguiu sem

nenhum escrito mais elaborado, ao contrário dos outros postais. Contudo, com o

depoimento de Vera, podemos dizer que, para ela, todos aqueles cartões abrem a porta

para o território da recordação – trazer de volta ao coração –, porque ao mexer com eles,

aquelas memórias ativam todo o seu campo afetivo e ela, por alguns instantes, pode

habitar novamente o território em mutação chamado infância, tanto que sua fala, ao

comentar sobre eles, apresentou-se repleta de silêncios densos e significativos, afinal ela

parecia estar tentando acessar a percepção daquela Verinha de três para quatro anos e

trazer à tona o que ainda permanece vivo na adulta que ela é agora.

Por saber que ela mesma não poderia fornecer maiores detalhes no tocante

àquele momento de sua vida, imerso em memórias difusas, Vera sugeriu a presença de

sua mãe Bia. A senhora Bia começou confirmando e ressaltando algo que é quase

Figura 2.20 – Foto de um cartão inédito enviado pelo Vovô Joãozinho a Vera Tess.Fonte – Fotografia de Camila Rodrigues, feita em 23 de setembro de 2011, em ocasião da entrevista realizadacom Vera e Beatriz Helena Tess.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 104

evidente para quem consulta o livro de cartões trocados entre o vovô Joãozinho e a neta

Vera:

Ele praticamente, desde bebê, se apaixonou por ela, quer dizer que eraassim uma coisa assim fora do normal, vamos assim dizer, não écomo você gosta de um bebê achar bonitinho, não, ele tinhaverdadeira paixão... ele falava que nunca pensou que fosse amar tantouma pessoa como ele amava ela. Eu acho que depois da literatura ousenão em primeiro lugar, estaria ela. Com isso, antes dos dois anos,ela já ia passar um tempo no Rio, quando ela já estava maisindependente, não dependendo tanto de cuidados, um pouquinhomaiorzinha, já ficava bastante no Rio [...]. (TESS, 2011a grifo nosso)

Nesse momento da entrevista, Vera, que então já era mãe, surpreendeu-se e

perguntou se ela, com dois anos, já ficava sozinha com os avós no Rio, ao que a mãe

confirmou que sim, continuando então o depoimento:

Devido ao problema de ele ser tão afetivo [com a Vera], a minha sograpuxava ela pra ficar com eles. Ele gostava das crianças, gostava detodos eles, todos os irmãos. O primeiro, por exemplo, ele [GuimarãesRosa] que queria comprar todos os bonezinhos para ele ir à praia,tipos assim, como o outro, não sei o que... sempre tinha umacaracterística com cada um, mas mais distante; agora com ela não,com ela era uma coisa presente mesmo. E aí quando ela foiinteragindo mais, claro que ele foi se apegando mais, não é? Daí,quando ela vinha pra São Paulo pra ficar com a gente, ele mandavaesses cartõezinhos morrendo de saudade. (TESS, 2011a)

Com essas declarações vemos outro tipo de memória, visto que, embora ainda

mantenha o clima afetivo, nas lembranças de Bia observamos outros conteúdos, tal

como a confirmação de qual teria sido a motivação daqueles postais: eles funcionavam

como convites para que as crianças visitassem os avós no Rio de Janeiro. Como já foi

dito, com a intenção de tornar o chamado às crianças irrecusável, o Vovô Joãozinho

utilizava linguagens caras ao mundo infantil – como cores, desenhos etc –, e verdadeiras

táticas de sedução, como promessas de interação, ao comprometer-se a contar estórias:

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Aqui, podemos observar que essas mensagens, além de mostrarem uma face

mais íntima e afetiva de Guimarães Rosa, também se apresentam como material de

caráter genealógico, já que são como a transmissão de um patrimônio cultural entre avô

e netas, com o objetivo de garantir certa continuidade de valores entre as gerações (cf.

BOLLE, 2000, p. 318). Mas, como não enxergamos as crianças como seres passivos,

simplesmente alocadas em determinado espaço cultural, mas sim como participantes e

engendradoras de culturas infantis (COHN, 2009, p. 28), julgamos que tal tipo de

transmissão, em vez de condicionar a criança, pode legitimar sua “autonomia cultural

em relação ao adulto”, autonomia que

deve ser reconhecida, mas também relativizada [...]. Os sentidos queelaboram partem de um sistema simbólico compartilhado com osadultos. Negá-lo seria ir de um extremo ao outro; seria afirmar aparticularidade da experiência infantil sob o custo de cunhar umanova, e dessa vez irredutível, cisão entre os mundos. Seria tornar essesmundos incomunicáveis. (COHN, 2009, p. 35)

Foi também durante a conversa com Bia que entrou em nosso campo de

interesse uma figura interessante para refletir acerca do universo das crianças na década

de 1960, o já citado Pedro Bloch. Procurado pelas famílias de crianças de todo Brasil na

Figura 2.21 - Cartão do vovô Joãozinho prometendo contar estórias a Vera, se ela fosse passar umatemporada com os avós no Rio de Janeiro.Fonte – (ROSA, 2003, p. 42)

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década 196061, Bloch, devido à necessidade profissional, comunicou-se com inúmeras

crianças, o que o permitiu perceber nelas uma percepção diferenciada da realidade, que

poderia ser ora engraçada, ora estranha, mas sempre lhe abria novas direções para a

reflexão. Atento a isso, o médico passou a registrar algumas das expressões que ouvia

de seus pequenos pacientes e a publicá-las em livros de anedotas infantis, que foram

muito lidos por seu amigo Guimarães Rosa, sendo até algumas de suas piadas

transcritas no prefácio Aletria e Hermenêutica, de Tutaméia (Terceiras Estórias), com a

seguinte apresentação: “deixemos vir os pequenos em geral notáveis intérpretes,

convocando-os do livro ‘Criança diz cada uma!’, de Pedro Bloch” (ROSA, 1967, p. 08-

09). Como era realmente reconhecido na época, Bloch também chegou a ser

mencionado por Vicente Guimarães ao falar sobre Joãozito “de sua verve infantil, do

pouco que dizia aquele menino caladão, quase nada anotado ficou na lembrança dos de

mais idade. Nenhum outro caso engraçado, nem resposta interessante, que figurar

pudesse na coleção de Pedro Bloch ‘Criança diz cada uma!’” (GUIMARÃES, 2006, p.

35).

Mas se o próprio Joãozito não teria marcado os adultos a seu redor com

colocações irreventes, ele foi exceção entre as crianças, tal como nos mostra a imensa

coleção de registros elaborada por Pedro Bloch, recolha que contém expressões que,

para a lógica adulta, ganham ares humorísticos, não de forma incomum, mas sim como

saltos de percepção libertadores advindos dos pequenos “aletrados”. Vejamos alguns

dos registros transcritos por Bloch que se relacionam diretamente com esta pesquisa,

começando por um que aborda a percepção e nomeação do tempo: “Eliane ouviu na

televisão uma mensagem religiosa que dizia ‘Em breve não haverá mais crime, nem

violência, nem tempestade’. Correu pra cozinha, e chorando pediu à mamãe: Mamãe,

me leva pra Breve. Eu quero ir pra Breve” (BLOCH, 1980, p. 32).

Já em relação a estranhamentos na hora de interligar a experiência e a

linguagem, o médico anota:

– Vovô, vem brincar com nós.– Não é com nós, é conosco.Débora, de repente, para não desequilibrar, segurou a orelha do avô eexplicou:– Eu segurei a orelha do vô de nosco. (BLOCH, p. 38)

61 Como se pode observar nas compilações de expressões infantis publicadas por Bloch, o autor mencionadizeres de infantes advindos de todo o país, que foram procurá-lo em seu consultório no Rio de Janeiro.

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Há outros casos relevantes em que, devido ao vocabulário em formação,

transparece a constante necessidade infantil de criar novas palavras, usando as formas

morfológicas mais simples, como o acréscimo de prefixos ou sufixos:

A netinha não sabia como dizer abrir e pediu:– Vovô, você quer desfechar a porta? (BLOCH, 1970, p. 29, grifo doautor)

Vemos, ainda, excertos nos quais as crianças aparecem expressando sua forma

sintética de “ler” o mundo62:

O filho do famoso locutor tinha pouco mais de dois anos quando, aoprovar uma laranja que o pai lhe comprara na praia, diante do azedoreclamou:– Pai, botaram limão nesta laranja. (BLOCH, 1970, p. 59)

Ou nos quais elas estabelecem associações mais simples que, porém, causam

bastante estranhamento nos adultos:

Nestorzinho, vendo passar um daqueles caminhões que jogam águapara lavar as ruas:– Papai, olha a chuva passeando de caminhão! (BLOCH, 1970, p.114)

Além desses casos, abordaremos outros aspectos observados por Bloch, a saber,

anedotas que demonstram a importância do desenho para o mundo infantil,

compreendido como forma de representar, (re)criar ou até mesmo fazer existir em

alguma instância o seu próprio mundo.

– O que é que você está desenhanho, meu filho?– Estou desenhando a cara de Deus.– Mas ninguém sabe como é a cara de Deus!E o pirralho:– Quando eu acabar... VÃO SABER. (BLOCH, 2001, p. 61).

O desenho também aparece como forma de comentar e suprir alguma carência

sentida:

Lucianinha ainda não tinha completado quatro anos. Via a mãe saindotodos os dias para trabalhar. Aquilo angustiava seu coraçãozinhoacelerado. Dava um aperto no peito por aqui assim, sabe como é?Pois bem. Um dia, já na hora de sair a menininha segura a mãe pelasaia e pede:

62 Acerca da leitura sintética e associativa das crianças, Gombrich alerta-nos que “a criança, antes deaprender a distinguir espécies diferentes e ‘formas’, chamarará (por exemplo) durante muito tempo de au-au todos os quadrúpedes de determinado porte” (GOMBRICH, 1999, p. 02).

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–Mãe, desenha um passarinho.Professora experiente, boa de traço, vai logo fazendo um passarinholindo, destes de dar inveja a gente que trabalhou com Walt Disney.Quando entrega sua obra de arte à filha ouve Lucianinha pedindo denovo:– Agora desenha a mãe do passarinho, porque ele está muito triste deficar sozinho. (BLOCH, 1980, p. 66).

E, finalmente, observamos como podem também ocorrer abalamentos na

percepção, algo que se dá com mais frequência com as crianças em relação a imagens

gráficas:

Haroldinho, de três anos, um dia ficou pedindo ao pai,insistentemente, uma bicicleta. Este já nem sabia mais o queresponder.– Tá bem, filho. Prometo que vou desenhar uma bicileta pra você,viu?E Haroldinho, mais que depressa:– Tá certo, pai. Mas recorta ela direitinho, porque eu quero pedalar,tá? (BLOCH, 2001, p. 20)

Nesse sentido, como uma espécie de posfácio de uma das compilações de Bloch,

o médico nos oferece uma explicação acerca do motivo pelo qual a comunicação com a

criança, tantas vezes, é tão transitória e dificultosa:

É curioso. Adulto, quando acaba de ler um de meus livros comhistórias de criança, nunca deixa de comentar:– Pois é. Mas o meu Serginho diz coisas muito bacanas, também! Quedúvida! Diz mesmo.E, ainda com um sorriso de pai realizado, começa a tentar recordar‘aquela’ que o menino havia soltado no outro dia. Quem disse que...?Nada. E o mais incrível é que, na hora em que o garoto tinha soltadoaquela todos eram capazes de jurar que jamais esqueceriam. Todosesqueceram. E sabem por quê?É que o humor infantil, o que a criança diz, tem características tãopróprias, tão originais, tão suas, que os referenciais do adulto nãoconseguem fixar com facilidade. Essa originalidade faz com que odiálogo de adulto e criança mixe tantas vezes. Falam línguasdiferentes. O grandalhão do pai quer dialogar dentro de seupróprio repertório, supondo que o do filho é muito inferior. Não éexatamente isso. É diferente. E o mais pitoresco e, por vezes,doloroso até, é que ao deparar com a dificuldade de se comunicar,seria lógico que o adulto tentasse aprender a falar com o filho.Sim, senhores. Aprender a falar com o filho.É que as palavras, as mesmas palavras, significam coisas diferentespara um e outro. A dose de imaginação não expressa, o turbilhão defantasia não verbalizada fazem com que duas crianças pequeninaspossam se comunicar bem melhor entre elas do que cada qual com seurespectivo pai.(BLOCH, 1980, p. 111-2, grifos nossos)

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Contextualizando essa longa mas precisa citação em relação ao pensamento

acerca da infância, lembramos que entre os séculos XII e XIX desenvolveu-se na cultura

ocidental diversas definições do termo, sendo apenas a partir do XIX, especialmente

depois do advento das ciências sociais, que os paradigmas em geral precisaram ser

revistos, o que aconteceu de forma lenta. Efetivamente, foi somente nos anos 1980 que

um grupo composto por sociólogos, psicólogos, antropólogos e geógrafos passaram a se

empenhar na revisão da ideia que ainda vigorava na maior parte do mundo: a de que a

criança era um ser passivo e incompleto. Com os esforços desse grupo, conhecido como

New Social Studies of Childhood, do qual emergiu a possibilidade de a infância ser

contemplada como um fenômeno social, em detrimento da explicação de natureza

biológica. Uma perspectiva crítica a essa posição surge nos anos 2000, com os trabalhos

de autores como Alain Prout (2005), nos quais se propõe que a dicotomia

biológico/social seja superada a partir do momento em que ela seja repensada pelas

ciências humanas, sociais e naturais em conjunto. Pensando-a como um processo de

construção, a infância aqui não aparece como algo exclusivamente relacionado a

crianças, ainda que seja nessa primeira fase da vida que o processo de subjetivação é

mais frequente, confundindo-se com a própria vida do ser humano, já que o pequeno

precisa criar sua subjetividade a fim de sobreviver no mundo. Assim, como já notamos

aqui, a publicação de Pedro Bloch constitui um importante trabalho que se coaduna com

tais perspectivas acerca da infância, competindo para a feitura de uma possível História

da Criança (FREITAS; KUHLMANN (org), 2002, p. 07).

No caso da publicada correspondência entre Guimarães Rosa e as netinhas –

especialmente no tocante às listas e bilhetes – é importante lembrar que Rosa também

escreveu enunciações de Vera Tess durante o período em que a menina estava entrando

na linguagem, sendo comum que ele registrasse a data exata de tais elocuções, como

que abrindo para a possibilidade de escrever uma história de quando a infante Ooó se

tornou uma falante, visto naqueles registros termos igualmente definido um recorte

cronológico.

Mas além das falas infantis, Pedro Bloch também publicou diversos livros

científicos acerca da questão da fala, sendo que um deles – a edição de 1958 do livro

Estudos da voz humana – consta da última biblioteca mantida por Guimarães Rosa,

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disponível em seu Fundo Arquivístico aos cuidados do IEB63. Por meio desse livro, que

muito provavelmente foi lido por Rosa, podemos nos aproximar um pouco mais do

pensamento do doutor Bloch, sintetizado na introdução do referido volume:

Vivemos numa época em que não basta olhar o laringe para explicar omilagre da VOZ. Devemos e podemos vêr muito além do que aaparência nos revela. Nos dias da medicina psicossomática é evidenteque não podemos nos contentar em examinar um laringe, mas umapessoa, um ser humano, portador de um problema que se reflete nolaringe. Só o equacionar, assim, a questão, a transformacompletamente. [...] Não podemos separar o laringe da voz [...] a vozestá sempre emocionalmente afinada e traduz um sem número deelementos que entram em sua formação, em seu acabamento, quese fundem, se completam, conferem colorido, emprestamcaracterísticas, trazem a marca da personalidade. (BLOCH, 1958,p.11-2, itálicos do autor e negrito nosso).

Se for mesmo verdade a hipótese proposta por alguns rosianos, suscitada aqui,

de que toda a escritura literária de Rosa se estrutura a partir da ficcionalização de

elementos da fala como a voz, o interesse do autor pelas ideias de Bloch seria evidente,

afinal, para o médico, a expressão da voz teria relação direta com a formação da própria

personalidade ou, se quisermos, constituiria uma forma de manter ativo o processo de

subjetivação que se inicia na infância e segue pelo resto da vida humana. Ademais, se o

vovô Joãozinho levou Ooó para que ele a examinasse, só poderia ser porque, em alguma

medida, ele concordava com a posição do amigo médico.

Apesar da destacada preferência por Vera, é preciso lembrar, novamente, que

Guimarães Rosa possuía mais quatro netas e, mais ou menos na mesma época da

correspondência com Ooó, outra netinha, Laura Beatriz, o presenteava com frases

recheadas de sua maravilhosa lógica infantil, que acabavam povoando as longas

conversas de Rosa com seu amigo Pedro Bloch nos anos 1960, vindo a aparecer nas

compilações infantis do foniatra, como ele mesmo explica ao afirmar que, no tocante a

Laura e suas falas, apenas tomava conhecimento através das narrativas do avô:

Laura Beatriz é a netinha de quem Rosa me conta frases para osmeus livros de bolso: “Sabe, mãe? A bola deve gostar muito de mimporque eu jogo ela longe e ela volta.” Olhando uma frigideiraempretecida: “Olha, mamãe, o de noite da panela.” Contemplando a

63 No que tange à Biblioteca disponível no Fundo Guimarães Rosa do IEB, o Guia do instituto,disponível no site, nos informa que “sua vida de diplomata, longos períodos no exterior e contínuosdeslocamentos, o teriam impedido de manter todos os seus livros. Sabe-se que fazia constantes doaçõespor ocasião de mudanças de posto. Esta coleção (disponível em seu fundo) foi a última que conservou”(GUIA IEB USP, 2010).

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chuva: “Mãe, a caminha da chuva é o saco de papel que está no chãoda rua.” (BLOCH, 1989, s/p, grifo nosso)64

Ao se preocupar com as primeiras expressões da linguagem de Verinha, o vovô

Joãozinho também estava recuperando algum resquício de sua própria perspectiva

infantil, resgatando, assim, outro modo de perceber o mundo – o da criança –, como se

estivesse defronte daquela renovada postura em relação à linguagem que sua escritura

buscava exercitar, como ele mesmo explicou em trecho já citado, por meio de seu

método de devolver o sentido original a cada palavra (LORENZ, 1983, p. 81). Tal

‘método’ pode ser lido como uma busca de um novo contato com o estranhamento,

podendo abrir as portas para que se habite novamente o tempo da palavra mágica, o qual

a pureza das expressões pode nos conduzir àquela espontaneidade com a qual lidam as

crianças, os primitivos etc. (cf., entre outros, GINZBURG, 2007d). Esses processos

parecem se aproximar daquele identificado por Willi Bolle na escritura da Infância em

Berlim por volta de 1900, de W. Benjamin, texto no qual “a língua tem indicado

inequivocamente que a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é,

antes, um meio” (BENJAMIN, 1987, p. 239), isso porque “Benjamin insiste

particularmente na escavação das palavras primitivas que jazem soterradas sob as

palavras dos adultos. Palavras tais como a criança as ouvia e entendeu pela primeira vez

e nas quais se condensa, como num mineral, o universo de sua percepção” (BOLLE,

2000, p. 318).

Atentar para essas primeiras percepções infantis da nossa realidade cultural

parece ser também uma porta de acesso a outro mundo, anterior a toda nossa lógica e

tradição, conforme já afirmamos aqui, implicando em uma desnaturalização dos modos

de sentir e de pensar. Talvez fosse pensando nisso que Bloch dava aos pais o importante

conselho de ouvir seus filhos, afinal

Só se aprende a falar ouvindo, participando do meio ambiente. [...]Hoje, mais do que nunca é preciso ouvir a criança, estabelecer diálogocom ela, mesmo que ela ainda não se comunique por palavras.Quando temos a sorte de lidar com criança sem maiores problemas,então, é indesculpável que não lhe faça brotar o que tem de maisimportante, mais rico, mais valioso: – a palavra, cada vez maissignificativa, cada vez dizendo mais, cada vez traduzindo melhor oque vai na mente, o que vai no sentir. (BLOCH, 1980, p. 04-5)

64 Esta anedota foi publicada também em (BLOCH; 1970, p. 81)

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Se, como Pedro Bloch e outros alertam frequentemente, é importante para o

desenvolvimento da linguagem oral da criança que os pais e outros adultos ao redor

participem iniciando diálogos, não podemos deixar de lembrar, mais uma vez, a

importância ao circuito ouvir/falar, que Rosa deixa transparecer em seus textos

terminados, visto ele mesmo ter sublinhado as influências de narrativas orais que ouviu

na infância, reforçando a importância das vivências, especialmente da oitiva infantil,

para esse autor. Partindo dessas considerações, certamente o fato de ter acompanhado de

perto e com tanto interesse a experiência de Vera Tess ao adentrar o universo da palavra

na década de 1960 deve igualmente ter apresentado alguma influência naquela escritura.

Se os postais pressupõem sempre a ideia de um distanciamento entre avô e neta

a ser superado, no volume também foram publicados outros documentos – algumas

cartas, alguns bilhetes, desenhos, registros de enunciações que se expressam como

registros de momentos de proximidade entre avô e neta e um momento no qual os dois

tipos de apontamentos se fundem – que dizem respeito, propriamente, a quando a

relação com Vera Tessa, efetivamente, contribuiu para a escritura das estórias. Isso

acontece quando a encantadora neta favorita Ooó aparece como personagem do conto

Mechéu, do livro Tutaméia (ROSA, 1967, p. 88-91), fazendo com que, então, “vida,

obra e arte misturam-se definitivamente” (SOBRINHO, 2004, p. 283). Tal estória

aborda a vida da personagem Mechéu – algumas vezes chamado de Michéu –, um

“semi-imbecil que trabalhava, vivia, moscamurro, raivancudo, senão se sei não

gostando de ninguém” (ROSA, 1967, p. 88), e de outra personagem que o admirava,

mas era por ele rejeitado: “bôbo, bem, meio idiota papudo era outro, o que de alcunha

Gango; tolo tanto, que cheirava as coisas, mas nem sabia temer as cobras e lagartos”

(ROSA, 1967, p. 89). Mechéu vivia autocentrado, já que não queria e nem conseguia

estabelecer contato com outras pessoas “de fora” – moços letrados. Até que

Também de fora viera a menina, neném, ooó, menina de inéditosgestos, olhava para ela o Gango só a apreciar e bater cabeça. Mechéupois disse: – Ele é um parente não! – e a Menininha disse: – Você ébobo não, você é bom... – e a Meninazinha formosa então cantou: –Michéu, bambéu... Michéu... bambéu... (ROSA, 1967, p. 89, grifonosso)

Para quem conhece o conteúdo do livro Ooó do vovô, é possível perceber a

inegável relação entre a personagem Menina e a netinha Vera Tess, começando pelas

alcunhas da personagem – ‘neném’ e ‘ooó’ –, as mesmas atribuídas à netinha naquela

correspondência, como comprovamos nesse postal:

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Além da importante questão dos nomes, lendo os conteúdos dos cartões escritos

para Vera Tess, é possível notar que, na construção da personagem menina, Guimarães

Rosa “parafraseia o discurso da neta” (SOBRINHO, 2004, p. 283), uma vez que, em

uma das listas de enunciações de Ooó nos bilhetes de Vovô Joãozinho publicados no

livro, o autor anotou:

Figura 2.22– Cartão enviado para Vera Tess. No lado esquerdo do cartão, escrito em novembro de 1966,identificamos os apelidos de Vera: Neném, Verinha, Ooó do vovô, Miss São Paulo. No lado direito, vemosreferências aos outros integrantes da família Tess: a mãe Bia, a irmã Beatriz Helena – a 2 neném, o pai Edu, osirmãos Eduardo, Luis Renato e Plinio e, por fim, os avós Aracy e Joãozinho – o Dodói.Fonte – (ROSA, 2003, p. 42)

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De acordo com essa nota, “Michéu bambéu” – cantiga que a menina canta na

estória (ROSA, 2003, p. 89) – já era um possível refrão musical que a própria Verinha

teria cantado. Na rica leitura da estória de Tutaméia desenvolvida por Vera Novis, a

pesquisadora aponta caminhos interpretativos escondidos em detalhes da própria

construção da narrativa rosiana, como o egocentrismo de Mechéu, indicado já na

construção se seu nome: “me, ich, eu”, reafirmando o “eu” em inglês, alemão e

português65. Novis lembra, também, que o “eu” ecoa igualmente na identificação

estabelecida entre Mechéu e a menina que lhe diz: “Você é bobo não, você é bom...”, já

que, em português, a palavra “eu” é também um prefixo que indica um adjetivo

referente à bondade – como se nota nas palavras euforia ou eufemismo (NOVIS, 1989,

p. 87). Ainda dentre os postais enviados pelo Vovô Joãozinho a Ooó, temos outro, no

qual tais temas aparecem como mote na relação entre avô e neta:

65 Novis explica que essa interpretação partiu da “explicação” do nome da personagem MOIMEICHEGO(moi, ich, ego) – da novela Cara de Bronze, de Corpo de Baile – tecida em carta de Guimarães Rosa aotradutor italiano, Edoardo Bizarri, que teria consistido em uma brincadeira para representar o eu do autor.No caso de Mechéu, como alerta a pesquisadora, o eu parece assumir aspecto mais genérico (NOVIS,1989, p. 84-5).

Figura 2.23 – Lista de enunciações de Ooó, anotadas pelo Vovô Joãozinho. “Agosto, meados/ 1966/papapo = sapato/ dusa = duas/ gato= gato/ Michéu bambéu (?) (uma música?)/ bito = (?) uma comida?/ não écabrito/ memé = colher/ sepéu = chapéu/ SAPATU! = sapato”.Fonte –(ROSA, 2003, p. 30)

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Cabe aqui um parêntese, trazendo a indagação de Franz Kafka contida em carta

a sua tradutora Milena Jesenká:

De onde terá surgido a ideia de que as pessoas podiam se comunicarpor cartas? Pode-se pensar em uma pessoa distante, poder agarrar-se auma pessoa próxima, tudo fica mais além das forças humanas.Escrever cartas, contudo, significa desnudar-se diante dos fantasmas,

Figura 2.24 – “Rio, 21.X.66/ Nenem, querida!/ Vovô atí, titia atí, [sic] Nenem vem atí?/ Súsi atí. E praia/Neném atí?/ Atí bôbo não. Atí bom, casa Vovô, casa Nenem. Casa 2./ Beijinho bom./ ‘Põe a-há,/ põe a-há oteu/ pèzinho,/ o teu pèzinho,/ põe a-há,/ põe a-há para o Vovô./ Ao tirar,/ ao tirar o teu pèzinho,/ um abraço,um abraço/ do Vovô.../ um abraço ‘de doeu’/ – Ciao!”Fonte –(ROSA, 2003, p.16)

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que esperam isso avidamente. Os beijos por escrito não chegam aoseu destino, são bebidos pelo caminho pelos fantasmas. Com esteabundante alimento se multiplicam, com efeito, enormemente. [...] Ascartas são um esplêndido remédio contra o sonho. Em que estadosão recebidas! Seco, vazio, provocativo, uma alegria momentâneaseguida por longos sofrimentos. Enquanto se lê, esquecido de simesmo, ergue-se o pouquíssimo sonho que se tinha, foge pela janelaaberta e não volta até muito depois. (KAFKA, 1987, p. 208-9, grifosnossos)

Se concordarmos com Kafka e considerarmos que as missivas escritas e sérias

como uma espécie de fuga do sonho, talvez a correspondência que Vovô Joãozinho

estabeleceu com Vera Tess tivesse tentado flexibilizar o quanto pôde tal estado de

coisas, não só pela escolha dos cartões postais, que já eram cartas ilustradas, que abriam

para novas percepções, mas também porque eles “oferecem um mapa com a geografia

das nossas lembranças. O ato de revisitá-los é uma oportunidade para surpreender as

centelhas do passado que evocam o cotidiano e emoções” (SCHAPOCHNIK, 2010, p.

427). E como se não bastasse isso, nas próprias mensagens estabelecia-se um balé de

linguagens interessantíssimo, visto que o remetente não apenas escrevia, mas também

desenhava, cantava, encenava, narrava e, na medida do possível, fazia ouvir a voz da

destinatária, em um experimento que, mesmo em nível privado, destacava e procurava

interagir com a linguagem não verbal, podendo, ainda que de forma indireta, ser

entendido como uma forma de pôr em xeque o andamento linear e direcionado da

mensagem escrita, com a qual se narra a História. No caso dessa correspondência, ela

era sustentada por um forte vínculo afetivo que parece ter se mantido, ganhando ainda

mais veracidade e profundidade, como está expresso na seguinte foto, arrolada ao final

da publicação (ROSA, 2003, p. 67):

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2.4 Infância como experiência cultural

Muito mais até do que um período cronológico, como já reiteramos nesta tese,

estamos pensando a infância como vivência cultural inicial da vida humana (cf. COHN,

2009, p. 14) e pelo que foi exposto neste capítulo, tentamos reforçar certa proximidade

do escritor com tal experiência, contemplada como registros de experiências culturais e

de linguagem de indivíduos ocidentais no século XX que puderam abrir maneiras

diversas de sentir e de pensar novas possibilidades de relação com crianças, com as

“aletradas”.

Podendo recordar certos momentos da experiência de Joãozito – infância de

Guimarães Rosa –, por meio dos relatos de seu tio Vicente, autor de livros infantis, foi

possível destacar que não houve nenhuma tentativa de Guimarães Rosa no sentido de

produzir literatura infantil, mas que ele apenas pediu ao tio que adaptasse um conto seu

à linguagem apropriada às crianças, como possibilidade de se comunicar com aquele

público especial.

Já no caso da correspondência desenhada que trocou com as netas Beatriz

Helena e Vera Tess, além de todo o conteúdo de valor pessoal, também flagramos

Figura 2.25 – Foto de Guimarães Rosa com a neta, Vera Tess.Fonte – (ROSA, 2003, p. 67)

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registros importantes para se discutir a história cultural e o choque de culturas

estabelecido entre crianças e adultos, assim como observamos importantes exercícios de

ficcionalidade na forma de produção de literatura.

Reforçando a importância dessas duas personagentes na vida e na escritura de

Guimarães Rosa, lembramos que tanto o tio Vicente, como a netinha Vera (Ooó), ainda

voltarão a aparecer nesta tese: o tio no quarto capítulo, através de uma carta que o

sobrinho lhe escreveu, e Vera Ooó já no terceiro, visto ela ser citada várias vezes nos

Cadernos manuscritos do autor.

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Capítulo 3: Os Cadernos e a escritura caleidoscópica de Rosa

Recentemente, observou-se em toda a esfera intelectual contemporânea a

necessidade de repensar perspectivas, doxas e procedimentos tidos como definitivos até

então, instaurando-se aquilo que se convencionou chamar de crise dos paradigmas, que

atingiu seu auge em todas as áreas do pensamento no século XX. Atentemos, pois, para

uma pequena virada metodológica, fruto desse contexto e observada na área de História.

Segundo Angela Castro Gomes (GOMES, 1998, p. 122), aproximadamente desde a

década de 1970 os historiadores passaram a buscar um alargamento para suas

perspectivas e métodos, assumindo o interesse em examinar diferenciados tipos de

arquivos. Algo que sempre estivera à margem e que então começou a ser repensado,

abrindo-se como uma fecunda possibilidade de promover uma expansão de abordagem,

funcionando como mais uma atitude em busca de um legítimo “descentramento da

história” (cf. BORDINI, 2005) foi a consulta aos arquivos privados de escritores. Nesse

tipo de arquivo, os historiadores encontram material minuciosamente fragmentado e

tantas vezes extremamente difícil de decifrar, pois

Eles representam sempre o vínculo pessoal que o titular mantém como mundo. O sentido monumental e histórico do arquivo privado não édescoberto pelo profissional de arquivo. Ele se encontra no próprio atointencional de acumular documentos. O arquivo passa a representaruma espécie de pirâmide. Guarda a memória do titular e a de seutempo para as gerações futuras, podendo contar muito mais do que seimagina.O movimento do titular é dominado por uma subjetividade querecorta, costura e prolonga percepções momentâneas. Sua lógicaemerge da região histórico-afetiva em que os mundos íntimo e públicose misturam. (SANTOS, 1999, p. 33)

Mesmo considerando tais características que tornam mais difícil o trabalho do

pesquisador, cabe não esquecer que, embora tal tipo de fonte possa sublinhar o foco em

determinados indivíduos e, em certa medida, deixar de lado o destaque em alguns temas

que até então eram considerados os mais nobres da disciplina – como economia e

política –, o advento da História Cultural veio abalar essa hierarquia temática (HUNT

(org), 1995) e abrir novas perspectivas, que promoveram uma movimentação na

disciplina.

Nesse contexto, propomos a consideração do acervo de Guimarães Rosa em

nova perspectiva: nosso objetivo inicial não é sondar sua posição como artista ou

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intelectual, já que isso já tem sido apreciado por historiadores (THEODOZIO, 2011),

mas nos centrar exatamente no processo de feitura daquilo que foi sua mais larga zona

de intervenção, tornando-o reconhecido, isto é, sua literatura. Em 2011, durante debate

posterior a uma conferência proferida na FFLCH/USP, Ettore Finazzi-Agrò (2011)

destacou que um dos méritos observáveis na escritura rosiana foi ter encontrado uma

eficiente maneira de falar não historicamente da História, fornecendo acesso a uma

verdade que não é propriamente histórica – como a conhecemos tradicionalmente –,

mas que consitui uma interpretação dela, o que justificaria o interesse do historiador por

tal literatura. Mas de que maneira, então, poderíamos ter um acesso mais estreito a essa

construção narrativa tão peculiar? Nossa proposta, tal qual a dos outros historiadores

interessados em narrar a posição pessoal e intelectual de Guimarães Rosa, também

consiste em abordar seu acervo, sendo que, em nosso caso, destacamos sobretudo os

seus manuscritos literários, ou seja, o próprio local no qual o escritor construiu sua

literatura, experimentando remodelar o tempo ao abrir outros canais de percepção,

introduzindo a própria ficcionalização da História. Com isso, podemos visualizar os

modos possíveis usados por Rosa para edificar um texto ficcional que poderá

“transformar o fato em significado” (CANDIDO, 1999, p. 09), aspecto da literatura já

sublinhado aqui.

Assim, objetivando tratar da escritura de Guimarães Rosa, em princípio,

consideramos que devemos tentar contemplá-la de forma ampla, ensejando ponderar

acerca de vários momentos do processo de escrever, atividade que, inicialmente, já

pressupõe alterações no e do tempo, assim como acontece com a infância e a História.

Para efetuar esse tipo de investigação, começamos procurando os acervos pessoais do

escritor. No entanto, devemos antes esclarecer como foi nossa passagem pelo arquivo de

João Guimarães Rosa, em busca de referências à infância que nos aproximassem da

contestação da História construída pelo autor (cf. CARVALHO, 1996; NASCIMENTO,

1998).

Contando com aproximadamente 20.000 documentos sobre as funções de

Guimarães Rosa na vida pública, como literato e como diplomata, no Fundo

Arquivístico do autor encontramos informações que registram o seu meticuloso trabalho

de criação literária, através de correspondências, anotações, diários, cadernos,

cadernetas, pastas com folhas avulsas, entre outros, somando um acervo de

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manuscritos66 a partir dos quais é possível tomar contato com faces de todas as etapas

de elaboração daquela literatura (LANNA et al. (org.), 2010). Embora seja perceptível a

relevância da consulta a esse material, sua extensão indica de imediato a necessidade de

se fazer algum recorte, sendo comum que os pesquisadores recomponham um conjunto

de documentos em grupos, o que se convencionou chamar de dossiê genético67. É

possível compor dossiês de vários tipos e com diversas finalidades, cabendo salientar

que, ao montá-lo, o pesquisador já está propondo uma linha interpretativa para aquele

material (PINO; ZULAR, p. 136-7).

Na consulta aos manuscritos rosianos, nosso objetivo foi sempre o de considerá-

los como fontes históricas primárias, que podem nos ajudar a desenhar a face de um

processo escritural ocorrido no século XX. Para tanto, procuramos enxergar tais

manuscritos como documentos autônomos, que podem dizer algo sobre si mesmos e

também sobre a escritura literária de Guimarães Rosa, podendo, portanto, originar uma

reflexão sobre a história literária e cultural do Brasil.

O recorte operado no material de Guimarães Rosa procurou iluminar os

momentos nos quais possam ser abordadas novas reflexões acerca da relação daquela

escritura com a infância e a História. Ainda que construir dossiês seja uma primeira

tentativa de nos ordenar diante do universo de informações que o arquivo nos oferece,

cabe esclarecer que nossa perspectiva é um pouco diferente da adotada pela maioria dos

pesquisadores de manuscritos literários – que buscam problematizar a relação entre os

manuscritos e determinada obra publicada, por exemplo –, isso porque, graças à própria

natureza do acervo rosiano, que se apresenta de forma peculiar, ali encontramos

manuscritos que “podem dar origem a muitas obras ao mesmo tempo, outros podem não

ter relação direta com nenhuma obra específica” (PINO; ZULAR, p. 137), o que

pressuporia a existência de um movimento constante no sistema manuscrito/obra

publicada, colocando-o em escala mais complexa. Nesse sentido, também vale para

pensar o universo da escritura de Rosa o que João Alexandre Barbosa escreveu acerca

66 ARQUIVO Nacional (Brasil). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística.Rio de Janeiro:Arquivo Nacional, 2005.1 CD-ROM O termo ‘manuscrito’ refere-se a “Texto escrito à mão. Termo que,utilizado genericamente, engloba textos datilografados e digitados” (ARQUIVO, 2005, p. 113). Comoaqui estamos tratando especificamente dos manuscritos do escritor João Guimarães Rosa,convencionamos usar o termo para nos referir a todo texto que recebeu qualquer intervenção do autor,tenha sido ele escrito à mão ou datilografado.67ARQUIVO Nacional (Brasil). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística.Rio de Janeiro:Arquivo Nacional, 2005.1 CD-ROM. O termo ‘dossiê’ refere-se a um “conjunto de documentosrelacionados entre si por assunto (ação, evento, pessoa, lugar, projeto), que constitui uma unidade dearquivamento” (ARQUIVO, 2005, p. 80).

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dos manuscritos de Paul Valéry: “entre a obra feita e aquela a fazer, a linguagem dos

Cahiers [cadernos] ocupa um espaço de tensão reflexiva para onde converge tudo o que

a mente busca traduzir como sinais da existência” (BARBOSA, 2002, p. 236).

Assim, inicialmente, nosso objetivo era consultar o acervo seguindo uma

trajetória linear, procurando os manuscritos referentes à primeira obra publicada por

Guimarães Rosa, Sagarana (1946). Um marco inicial no tocante a esse livro foi o

volume intitulado Contos, que, em 1937, ganhou o segundo lugar do Prêmio Humberto

de Campos, concurso para o qual Rosa o inscreveu adotando o pseudônimo Viator.

Antes da inscrição no concurso e do envio para publicação na José Olympio Editora,

tais textos haviam sido reunidos em um volume com o título Sezão. Nesse manuscrito –

consultado no Fundo JGR, no IEB-USP – encontramos muitas intervenções feitas com

lápis de duas pontas, uma vermelha e outra azul (ROSA, IEB JGR-Sezão M-01,01)68.

Em busca dos movimentos da escritura, era-nos interessante conferir as marcas

de mudanças ocorridas entre essas versões, sendo que de início nos deparamos com uma

que nos pareceu ser a mais importante: em Sezão havia um conto chamado

Envultamento, que depois na versão final em Sagarana (1946) passou a se chamar São

Marcos, mas que, em sua variante de 1937, ainda apresentava marcas claras de seu

processo de criação, como o verificado no seguinte trecho: “o pavor chegava ao auge;

mas, felizmente houve sons, e sons tinham fórma e tinham cor! Eu via agora todos os

sons” (ROSA, IEB JGR-Sezão M-01,01, p. 289). Aqui, Rosa propunha uma ligação

clara entre os sons e a visualização de imagens, talvez conforme o que ele tinha

percebido nas falas em sua infância, lembrando a declaração de que ouvia as “narrativas

multicoloridas dos velhos” (LORENZ, 1983, p. 69).

Ao entrar em contato com aquele trecho, percebemos estar defronte a um dos

aspectos mais interessantes que os manuscritos nos permitem visualizar: aquilo que em

algum momento pertenceu ao texto mas que, por algum motivo, foi ceifado ou

permaneceu escondido na criação literária final (WILLEMART, 1999). Será que aquela

frase tão clara e objetiva teria apenas permanecido ocultada ou teria sido ceifada

definitivamente? O próprio Guimarães Rosa nos deixa com a primeira opção, ao

explicar as mudanças que fez entre Sezão e Sagarana, em entrevista a Borba, em 1946:

“Fiz pouquíssimas alterações de forma ou estilo, limitando-me a suprimir em uma ou

68 Como neste e nos próximos capítulos citaremos muitos documentos de arquivo, convencionamosreferenciá-los no corpo do texto da seguinte maneira: autor, sigla do arquivo, indicação e/ou código dodocumento, página, lembrando que as indicações completas serão catalogadas nas referênciasbibliográficas, ao final da tese.

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duas histórias, parágrafos que me pareceram supérfluos para o público, embora tivessem

para mim uma grande importância” (BORBA, IEB JGR-R 02,214). Além dessa

supressão, havia outro aspecto que ia no mesmo sentido de tal ocorrência: sabendo que

o autor considerava existir uma relação direta entre cores e sons, não poderíamos deixar

de lado a forte presença de marcas de revisão azuis e vermelhas, naqueles manuscritos.

Será que o objetivo de tais intervenções ultrapassaria a revisão no texto e também

indicaria a tentativa de destacar a presença de sons naquelas palavras, ainda em sua

composição inicial?

Acerca de como interpretar marcas abstrusas tal como a presença de cores nos

manuscritos, lembramos o artigo As siglas em cores no Trabalho das passagens de

Walter Benjamin, de Willi Bolle, no qual se aborda a consulta aos manuscritos da obra

inacabada de Benjamim, na qual estavam as tais siglas em cores, para as quais se

demorou muito tempo até que se atribuísse algum valor que ultrapassasse o mero caráter

organizacional do arquivo. Porém, na interpretação de Bolle, as siglas seriam uma nova

forma de escrita da História, já que elas executam novas representações pictográficas e

literárias do tempo. De acordo com nossa abordagem, é grande o interesse em saber que

as tais siglas coloridas – tão desdenhadas pelos primeiros analistas dos arquivos de W.

Benjamin – puderam ser repensadas como elementos fundamentais para destacar uma

possível reflexão no tocante à História naquela obra (BOLLE, 1996). No entanto,

pareceu claro que não poderíamos simplesmente adaptar tal interpretação ao material de

Guimarães Rosa, afinal são manuscritos diferentes em diversos aspectos – autoria, data,

objetivo etc. – e sabemos que é imperativo respeitar as peculiaridades das fontes a fim

de que possamos construir uma metodologia de análise própria. Sendo nossa fonte

composta por manuscritos literários, visualizamos o fazer em literatura, que acreditamos

ser uma das mais complexas formas textuais, já que ela opera uma construção do

ficcional articulando a história e a literatura (LIMA, 2006), sem com isso transformar

uma na outra, mas abrindo portas comunicantes entre elas. Para nós, a consulta aos

manuscritos de Rosa serve como um dos acessos possíveis às formas e locais nos quais

estão se construindo os tempos e a História próprios àquelas narrativas literárias e não

para constatar partes já prontas, a serem meramente expressas naquela obra.

Como já foi dito nesta tese, mas cabe relembrar agora, nas análises críticas da

escrita de Rosa, muitas vezes foi destacado que aquela linguagem promovia uma

“ficcionalização da fala” (GALVÃO, 1986, p. 69-7). O próprio autor, em uma de suas

folhas manuscritas, registrou uma frase que atestava seu interesse em ouvir vozes:

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“silêncio são vozes que não chegam até aqui” (ROSA, IEB JGR-M-18,10).

Concordando com isso, tentamos encontrar marcas desse engenho em seus manuscritos

e propomos pensar nessas marcas coloridas como um artifício que pode ter um objetivo

para além da simples revisão dos textos, indicando a presença de sons da fala no próprio

ato da escrita. Consultar esses manuscritos em busca de conceber melhor tal mecanismo

é de total interesse a historiadores, uma vez que ali o que se visualiza é a própria

construção de uma máquina linguístico-literária que opera colocando em movimento a

cultura oral e escrita, podendo, como já dissemos, construir novos significados a um dos

conflitos mais importantes de nossa cultura, existente desde os tempos de colônia,

quando a divisão entre os que escrevem e os que falam já denotava uma violenta

separação que perdura até nossos dias (BOSI, 2003, p. 25).

Se Guimarães Rosa pretendia mesmo destacar com o lápis de duas pontas a

presença de heranças auditivas de experiências vocais, conforme estamos supondo, isso

também significa que ele estaria chamando a atenção para a construção de artifícios

composicionais da vocalidade que já foram usados em sua escritura e que transparecem

na escrita, como, por exemplo, o ritmo. Pensando na já citada importância da relação

entre ritmo e palavra, tão bem expressa por Paul Zumthor em seu estudo acerca da

Literatura Oral medieval, um dos primeiros impulsos humanos para se comunicar

constitui em pressentir os ritmos das vozes que se percebia ainda na fase intrauterina

(ZUMTHOR, 2010, p. 16). A ligação entre a escritura de Guimarães Rosa e as heranças

medievais foi comprovada na consulta que Cleuza Martins de Carvalho realizou em

alguns manuscritos avulsos do autor, revelando que ali, em certos momentos, podemos

encontrar “música e texto” conjugados na organização daquela escritura, tal como

acontecia na Idade Média, mostrando que

a musicalidade encontrada ou conquistada nos textos rosianos nãosurge somente do pleno domínio da língua e dos princípios estilísticosbuscados laboriosamente para conseguir seus objetos estéticos. É frutode trabalho ativo com a música formal. Associa o texto com suaestrutura, subjugando as palavras a um esquema musical previamenteestabelecido. Isso dificilmente seria percebido claramente em obraspublicadas. Só os registros pré-redacionais favorecem esta visão,abrindo-nos um novo campo de análise da obra de Guimarães Rosa.(CARVALHO, 1996, p. 196)

Ainda em meio à sondagem do processo de criação de Sagarana no Fundo IEB

JGR, consultamos o livro Guimarães Rosa: A Escritura de Sagarana, de Sônia Maria

van Dijck Lima, autora que experimentou compor um mapa genético daquela obra

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(LIMA, 2003). Foi no livro de Lima que voltamos a ler uma referência à conhecida

declaração de Rosa, retirada do posfácio de Sezão, de 1937, no qual o autor afirmava

que aquele livro estava pronto e já anunciava qual seria seu próximo: “chamar-se-á

Tutaméia, e virá logo depois deste. Benza-nos Deus!”. Porém, como vimos, as

modificações feitas nas diversas versões até resultarem em Sagarana estenderam-se por

anos e, mesmo após a primeira publicação, o livro foi sendo revisto e modificado a cada

edição enquanto Guimarães Rosa esteve vivo, como se o processo de criação não

chegasse nunca a seu fim. Acerca de tais edições modificadas Lima ainda destaca algo

significativo para esta pesquisa, levando-nos a refletir novamente sobre o gênero estória

reproposto por nosso autor: foi nos originais da 5ª. edição desse livro, publicada em

1957, que Guimarães Rosa se referiu a todos os seus textos em prosa como estórias

(LIMA, 2003, p. 25).

É interessante observar que, nesse momento, o termo “estória” já apareça para

designar os contos de Sagarana, de maneira que se torna possível pensar numa relação

entre seus livros, do primeiro ao último, como aquela apontada em Tutaméia (Terceiras

Estórias) (1967), no qual “a estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser

contra a História” (ROSA, 1967, p. 03). Essa colocação rosiana foi lida por intérpretes

como uma simples negação da História claramente expressa (RODRIGUES, 2009, p.

16-7), colocando Guimarães Rosa no grupo dos alienados ou conservadores de forma

definitiva. Nesse sentido, em outubro de 1967, nos dias seguintes a uma acalorada

discussão com Franklin de Oliveira acerca de uma possível alienação em suas duas

últimas obras, Rosa teria enviado a Oliveira um bilhete comentando sua colocação:

E, pois, mudando de prosao A estória contra a Históriavocê, perjuro de Glória,acho que não entendeu.A História, ali, é o fato passadoem reles concatenação;não se refere ao avanço da dialética, em futuro,na vastidão da amplidão.Traço e abraço. João. (OLIVEIRA, 1983, p. 185)

Considerando a ‘explicação’ rosiana, é possível perceber que a colocação do

autor é muito mais complexa do que foi lida primeiramente, já que ele esclarece que não

propôs uma negação completa da História, mas sim um indeferimento do que nela

poderia ser tomado como algo fechado e cristalizado, sem seguir os fluxos dos

movimentos do tempo, fazendo com que ele não apostasse em uma busca de alguma

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espécie de futuridade. Temos postulado aqui, então, uma primeira formulação de como

poderia ser uma História legítima para Guimarães Rosa, aspecto que demanda repensar

essa afirmação em relação à sinuosa trajetória que vai de Sagarana a Tutaméia – eixo

aqui considerado como a obra rosiana –, incluindo não somente os textos publicados em

vida pelo autor, mas também aquele conjunto de manuscritos pré-redacionais:

anotações, cadernos, cadernetas, sem deixar de considerar sua volumosa

correspondência, já editada ou não.

Se a escritura de Rosa produz sua escrita e esta acaba apresentando um novo

entendimento dos fluxos da história brasileira, entender que suas composições

linguísticas estabelecem uma relação entre diferentes temporalidades pode colocar em

xeque os significados da própria História. Dessa forma, ao considerar os manuscritos

literários, estamos tentando assumir a posição do ficcionista: aquele que aceita lidar

com o que ainda não existe, o desconhecido, o vir a ser, o nada que, ao “encontrar o

existir, cria o tempo” (WILLEMART, 1999, p. 154). Tal perspectiva, que considerava

as transformações e permanências, nos parecia interessante, já que “a escritura inventa o

seu tempo. Cada palavra escrita, mantida ou rasurada, é um tempo nascente, contínuo

ou abortado” (WILLEMART, 1999, p. 133). Os tempos criados nos manuscritos de

Rosa são tão complexos e imbricados entre si que qualquer porta de entrada que se

escolha usar para abordar aquela obra será também comunicante com tantas outras

(NUNES, 1998). Sendo assim, optamos por consultar aquilo que talvez pudesse ser o

próprio laboratório inicial da criação literária de Guimarães Rosa, a saber, os

documentos do autor definidos no IEB/USP como ‘Cadernos e Cadernetas’.

Já conhecíamos as declarações de Guimarães Rosa acerca de seus cadernos e

cadernetas, como naquela que talvez tenha sido sua última entrevista, concedida a

Arnaldo Saraiva para o jornal Diário de Notícias de Portugal, em 24 de novembro de

1966, na qual Rosa não apenas cita tais cadernos, como explica ligeiramente seu

manejo, a maneira como eles serviram a fim de que fossem feitos seus exercícios de

linguagem:

Escrever, para mim, é como um acto religioso. E prova está em quetenho montes de cadernos com relações de palavras, de expressões.Acompanhei muitas boiadas, a cavalo, e levei sempre um caderninho eum lápis preso ao bolso da camisa, para anotar o que fosse ouvido –até o cantar de pássaros. Talvez o meu trabalho seja um poucoarbitrário, mas se pegar, pegou. A verdade é que a tarefa que meimpus não pode ser só realizada por mim. (SARAIVA, 2000, [s.p.],grifo nosso)

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Lembramos que o próprio autor chegou a publicar uma descrição de um dos seus

momentos de vivência junto ao sertanejo Zito, que também anotava dados do sertão69 e

fazia poesias, no prefácio Sobre a escova e a dúvida:

Zito só observou: – O sr. está assinando aí a qualquer bobajada? Antesapreciara minha caderneta atada a botão da camisa por cordelque prendia igual o lápis de duas pontas: – Acho bom vossosistema... [...] Zito podia bem dar opinião, de escrevedor, forte modonascido, marcado. Lá, em ermo, rancharia longe entre capins eburitizais, agrestidão, soubera mesmo prover-se do pobrezinhomaterial usável. Mostrou-me, tirado da bolsa do arreio de campeio,um caderno em que alistava escolhidos nomes de vacas. Vi depois:que sendo entre os dali a um tempo o cozinheiro melhor mais o maiorguieiro – e dado em poeta. (ROSA, 1967, p. 161, grifo nosso)

Um último comentário concernente aos cadernos colhido por nós encontra-se

naquele perfil escrito por Pedro Bloch70, já citado aqui, no qual foram transcritas

algumas falas da netinha Laura Beatriz que foram contadas a Bloch pelo Vovô

Bacaninha (Guimarães Rosa). Nessa conversa, Bloch – que como vimos estava muito

acostumado a conversar com crianças – questiona Rosa sobre como seria possível, a um

homem que falava com tamanha simplicidade, escrever com tanto rebuscamento como

ele, ao que Rosa o esclarece:

Você conhece os meus cadernos, não conhece? Quando eu saio numcavalo, por Minas Gerais, vou tomando nota de coisas. O cadernofica impregnado de sangue de boi, suor de cavalo, folhamachucada. Cada pássaro que voa, cada espécie, tem voo diferente.Quero descobrir o que caracteriza o voo de cada pássaro, em cadamomento. Não quero palavra, mas coisa, movimento, vôo.(BLOCH, 1989, [s.p.], grifo nosso)

Mais uma vez flagramos uma declaração de Rosa atestando sua busca de

movimento permanente da linguagem, que chamamos de ‘palavra viva’, e desses

instantes pulsantes de vida, que como vimos foram estrategicamente utilizados de

diversas formas nos postais e bilhetes escritos às netas pequenas. Mas quando aparecem

diretamente em seu trabalho literário, tais artifícios também eram registrados – a lápis –

em cadernetas e cadernos.

69 Convém lembrar que, dos vinte e sete cadernos disponíveis no Fundo IEB JGR, o 27º foi inteiramenteescrito por Zito.70 Como Guimarães Rosa não gostava de entrevistas e não as fornecia, Pedro Bloch teve com ele umaconversa e produziu esse texto para a Revista Manchete, em 15 de junho de 1963, que chamo aqui deperfil.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 128

Esse material de Guimarães Rosa – com seus odores, marcas e manchas –

acabavam cheios da humanidade de seu dono, sendo esse o local que ele escolheu para

registrar e articular vida e escritura. Embora cadernos e cadernetas sejam materiais de

tipo muito semelhante e tantas vezes acabem sendo utilizados com o mesmo objetivo,

há algumas sutis diferenças entre eles, definindo-os como exemplares singulares (HAY,

1990, p. 09). Ainda que Louis Hay tenha alertado para o fato de as cadernetas serem um

dos tipos de registro menos aptos à publicação, todo escritor, mesmo secretamente,

deseja divulgar as marcas de seu processo de escritura (HAY, 1990, p. 19). No caso

específico da literatura rosiana, foram as cadernetas que ganharam maior visibilidade e

algumas delas até já foram publicadas71. Para esta pesquisa, foram consultadas as que

estão disponíveis no Fundo IEB JGR, onde constatamos que as primeiras datam da

década de 1940, constituindo cadernetas de viagem à Europa, sendo significativo

observar que nelas Rosa já utilizava a sigla M%72 – elemento que irá ser a marca

registrada de seus cadernos – e sempre exercitava seu olhar para o belo, o lúdico e o

lírico, como vai explicitar em sua obra literária.

Ao contrário do que se habituou dizer, nem todas as cadernetas foram utilizadas

nas anotações de viagens ao sertão, afinal, dentre as oito disponíveis no IEB, apenas a

de número seis foi utilizada na viagem com a comitiva do vaqueiro Manuelzão, em

1952. Nessa, podemos encontrar descrições do cotidiano rural, de plantas e de animais,

sendo que, em meio a seu espiral, encontramos até mesmo um barbante que lhe deve ter

servido para amarrá-la junto ao corpo enquanto cavalgava com os vaqueiros, o que fica

evidente quando observamos os garranchos mal executados, indicando a completa falta

de apoio para se executar a escritura, revelando, assim, um desejo intenso de registrar de

qualquer forma a experiência vista, ouvida e vivida no meio da boiada, junto aos

boiadeiros.

3.1 Caderno: Espaço Escritural do sec. XX

“Entre a obra feita e aquela a fazer, a linguagem dos Cahiers ocupa umespaço de tensão reflexiva para onde converge tudo o que a mente busca

traduzir como sinais da existência. [...] Uma espécie de desordemessencial que se recupera pela ordenação imposta pela imaginação.”

71 Das oito cadernetas de Rosa disponíveis para consulta no Fundo do IEB/USP, duas foram publicadasem belíssima edição comemorativa pela Editora Nova Fronteira, ao final de 2011. A publicação contémduas partes: a transcrição e uma versão fac-similar do manuscrito (ROSA, 2011a, 2001b).72 Em 2011, foram publicados quatro contos rosianos, até então inéditos, escritos entre 1929 e 1930, o quedemonstra que a intenção de tornar-se escritor existia em Rosa desde muito antes dessas cadernetas,justificando a existência dos M% nelas (ROSA, 2011c).

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 129

(João Alexandre Barbosa – Os Cadernos de Paul Valéry, p. 236)

A respeito das já comentadas cadernetas de anotações de Guimarães Rosa, por

elas serem ainda menores que os pequenos cadernos de estudantes, por isso permitindo

a mobilidade no registro de notas (HAY, 1990, p. 09) – elas eram os locais nos quais o

autor mais frequentemente anotava o que observava da vida –, já foram escritos artigos

bastante abrangentes, que discutem sua funcionalidade naquela escritura (cf., entre

outros, VASCONCELOS, 2000, p. 629-34; CAVALCANTE, 1996, p. 235-247). É

curioso que o mesmo ainda não tenha acontecido com os Cadernos de Estudos para a

Obra – que eram os locais nos quais Guimarães Rosa, além de gravar peculiaridades,

fazia exercícios de engenho literário. Para nós, que desejamos nos aproximar das

maneiras pelas quais aquela ficcionalização transformou “o fato em significado”73, eles

pareceram ser os ambientes mais relevantes, uma vez que os cadernos, certamente,

podem dizer muito acerca daquela escritura e também trazer em si uma referência ao

universo infantil.

Se a ideia do Brasil como uma Nação na infância estava presente no ideário

brasileiro do século XIX, não sendo sem motivo que ela reaparece nos símbolos

nacionais, como vimos no segundo capítulo, sua representação literária só viria depois,

com o modernismo dos anos 1920. Isso porque, ao se colocarem como arautos da

modernidade, os intelectuais dessa vertente artístico-literária passaram a prestar maior

atenção às crianças, seres sem projeções, espontâneos e ensimesmados que constituem o

perfil ideal ao imaginário daquele grupo, já que abrem o território da estranheza. Cabe

aqui um parágrafo para abordar um livro que, publicado em 1927, às vésperas do

advento da literatura rosiana, começou a traçar significativas representações literárias de

crianças na literatura brasileira: falamos do Primeiro Caderno do aluno de poesia

Oswald de Andrade. Vejamos do que se trata:

73 Segundo Antonio Candido, “[...] em literatura o que fala mais alto é a capacidade que tem o escritor dearranjar as palavras de maneira que elas suscitem uma ‘representação’, mais do que um ‘registro’. É oteor literário que faz a verdade da escrita, porque permite transformar o fato em significado. O resultado éum mundo além do nosso mundo, que no entanto nos faz compreendê-lo melhor” (CANDIDO, 1999, p.09).

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 130

Ao chamar seu livro de poesias de Primeiro Caderno e manter em sua

composição todos os símbolos nacionais que as crianças aprendiam nas escolas

primárias nos anos 1920, Oswald de Andrade traz à tona e questiona “a idade de ouro da

posse do conhecimento burguês” (MASSI, 2006). Segundo a leitura de Agamben das

concepções de Walter Benjamin acerca das crianças, a relação entre infância e História

ganha feições mais definidas no exato momento em que o infante usa seu primeiro

caderno e inicia a substituição da simples situação de “estar na vida” e narrá-la

oralmente por uma narrativa escrita e mais normatizada, resultante de uma reflexão que

já pode ser chamada de experiência (AGAMBEN, 2008 p. 111-28) e que, no futuro,

pode se transformar em livro. Entretanto, no final da década de 1920, Oswald, e também

a nação Brasil, ainda “não sonha com um Livro, mas rabisca um primeiro caderno que o

confirma como aluno” (ANTELO, 2006, p. 27-8).

Se pensarmos na linguagem do Primeiro Caderno, vale destacar a utilização da

oralidade – entendida como um modo de organização do discurso – que ali se apresenta

como uma emulação da enunciação infantil, pretendendo destacar – para causar o

estranhamento – os grandes espaços em branco que compõem os poemas e que não

podem, sem grande prejuízo, ser sintetizados em frases escritas, sintaticamente corretas,

Figura 3.1 - No lado esquerdo, temos a imagem de um caderno do curso primário dos anos 1920, a partir do qual olivro foi pensado; já no lado direito, o desenho da capa do livro, feito por Tarsila do Amaral, imitando a docaderno, com algumas modificações nos nomes dos Estados, mas mantendo-se as “Armas Nacionais” no topo.Fonte – (ANDRADE, 2006, p. 38-9)

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 131

o que dificulta imensamente sua possibilidade de citação em narrativas escritas como

esta, tornado obrigatória a reprodução total da página. Nesses poemas, produzidos por

uma nação na infância, enxergamos representações da dificuldade da criança sendo

obrigada a escrever sua experiência, como no poema intitulado Crônica:

Nesse poema, a tensão entre oralidade e escrita é posta claramente, visto o

próprio título “crônica” fazer referência a uma forma primitiva de historiografia, muito

ligada ao passado colonial, relembrando os cronistas dos reis de Portugal que, em

relação à nação ainda na infância, ocupariam o papel de adultos que indicavam as

tradições a serem seguidas. No entanto, no Caderno de Oswald, quem tenta exercitar a

função de cronista é o aluno de poesia do curso primário que, ao encetar escrever a

realidade da pátria, não sai do universo da criança, já que começa a narrativa com o

inexato ‘era uma vez’ – como se falasse de uma lenda perdida no tempo da eternidade –

e, em seguida, não consegue escrever a experiência vivida pela pátria, estendendo o

espaço abordado na narrativa para todo o planeta, como se a realidade do mundo fosse,

ela também, uma lenda. Mas se a escrita desse poema nos apresenta uma realidade

Figura 3.2 – Poema Crônica.Fonte – (ANDRADE, 2006, p. 70)

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 132

narrativa insatisfatória, o desenho do globo terrestre – como os que encontramos nas

escolas primárias – tenta preencher tal vazio, incorporando, assim, uma representação

adulta do que seria a perspectiva infantil.

Diferente disso é a relação com a linguagem infantil experimentada por

Guimarães Rosa, conforme discutimos em nosso segundo capítulo, pois nos parece que

para Rosa, antes de procurar emular, existe um desejo de estabelecer um diálogo entre

vozes dissonantes. Então, se o aluno Oswald de Andrade não conseguiu escrever sua

“crônica”, talvez Guimarães Rosa consiga escrever sua estória – que é a História pelo

seu revés –, sem propor uma emulação a lápis grafite de historiador, mas sim abrindo o

leque de linguagens tal qual uma caixa de lápis de cor, multiplicando-se, assim, as

possibilidades de interpretação. Dessa maneira, a escrita literária de Guimarães Rosa,

até pelo seu processo de feitura, aproxima-se bastante da infância, afinal deseja colocar

seus leitores adultos – aqueles que já passaram pela iniciação da escritura – na mesma

perspectiva da criança, ou seja, naquela que pressupõe um estranhamento de todo o

mundo a seu redor. Contudo, as crianças apresentam graus díspares de percepção da

realidade, sendo diferente pensar em uma criança na fase do letramento – como aparece

no modernismo dos anos 1920 que vimos acima – ou considerar um bebê vivendo suas

primeiras vivências de estranhamento no mundo – como devem se sentir os leitores

imersos na ficcionalização proposta pela obra de Rosa.

Fechando o parêntese no que concerne ao histórico da representação da infância

no modernismo na década de 1920, que aqui trazemos sintetizado na alegoria do

Primeiro Caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade (cf. ZULAR, 2000),

salientamos que, décadas depois, mas ainda no mesmo século XX, os cadernos voltaram

a aparecer no universo literário de Guimarães Rosa, não mais como representação, mas

sim como o próprio ambiente no qual se opera o processo de escritura. Tal diferença

instaura uma mudança de perspectiva significativa, pois passamos da consideração de

um texto já cristalizado a um material ainda em formação.

O fato de Guimarães Rosa ter utilizado cadernos para escrever é bastante

significativo, uma vez que marca o tempo em que ele escreveu. No fim do século XIX,

as práticas de escrita literária sofreram significativas mudanças, afinal os autores

passaram da situação de criar a partir do embate com a folha em branco para o uso de

novos utensílios, como a máquina de escrever, que então foram criados. Também nessa

época vimos surgir o hábito de reunir as tradicionais folhas avulsas e costurá-las, dando-

lhes o nome de caderno (ou cadernetas), o que veio consolidar a escritura como um

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 133

hábito cotidiano, marcando definitivamente a cultura literária do século XX (HAY,

1990, p. 09). Isso porque esses locais passaram a registrar melhor as marcas do processo

de escrita, não de forma cristalizada, mas em fragmentos em constante movimento,

fazendo com que seu conteúdo, na maioria das vezes, prime pela desordem e costume

rejeitar a lógica de seleção ou classificação, dificultando a interpretação. Estudiosos

como Louis Hay já fizeram esforços no sentido de tentar montar uma tipologia para a

explanação desses “espaços escriturais” (GALÍNDEZ-JORGE, 2009, p. 84), porém,

como alertou o próprio Hay, o material em criação, a partir de determinado momento,

acaba escorregando pelos dedos de seus analistas (HAY, 1990, p. 13).

Nesse sentido, Guimarães Rosa foi um dos escritores brasileiros do século XX

que mais utilizou os cadernos, de diversos tipos, e o fez de diferentes formas. Todos os

três grupos de Cadernos de Guimarães Rosa que estão disponíveis para exame em

arquivos públicos foram por nós consultados e neste capítulo trataremos deles, cuja

maior parte se encontra no fundo IEB JGR, contando com 27 exemplares manuscritos

que foram catalogados no Arquivo como “Cadernos de estudos para a obra”. No

mesmo instituto há também mais 3 exemplares que pertenceram a Rosa, mas que estão

catalogados no espólio de sua segunda esposa, Aracy de Carvalho Guimarães Rosa –

dois deles escritos de próprio punho pelo autor e o outro consistindo em uma cópia

xerográfica –, todos inventariados no Arquivo IEB como “Cadernos de anotações”,

mas, de acordo com nossa interpretação, os chamamos de “Cadernos de anedotas”. Por

fim, há ainda 5 fotocópias de Cadernos que também foram catalogados como

“Cadernos de anotações”, pertencentes ao acervo de Rosa que ficou guardado com sua

filha Vilma, responsável por sua disponibilização à consulta no arquivo da Fundação

Casa de Rui Barbosa (FCRB), no Rio de Janeiro.

Para esta pesquisa, convém sublinhar que, mesmo que os exemplares disponíveis

tenham número considerável, esses 35 cadernos não foram os únicos que Rosa manteve

– o que fica evidente nas fotocópias de cadernos cujos originais foram extraviados –,

implicando que nossa sondagem possibilite desenhar apenas algumas faces daquela

escritura, apesar de, ainda que lacunar, tal acervo ter podido revelar todo um universo

interessante daquele processo. Vejamos, pois, os Cadernos série a série.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 134

3.1.1 Cadernos de Estudo para a obra: Fundo JGR > IEB/USP74

“Sou eu que vou seguir vocêDo primeiro rabisco até o be-a-bá.

Em todos os desenhos coloridos vou estar [...]”(Toquinho e Mutinho – O Caderno)

Consultar os Cadernos de Rosa é uma experiência fascinante, pois ali é possível

tomar contato com a própria “poiética”75 rosiana: alguma espécie de nascimento, não

sabemos se de alguma narrativa, de um novo tempo ou de alguma escrita. Nesse

ambiente, um instinto interpelativo arrebata-nos e alerta-nos para o fato de que

adentramos o território especial dos espaços escriturais76 rosianos, no qual teremos de

lidar com o contexto próprio da criação literária e, por isso, entrar em contato com algo

desconhecido, que já está ali, só que em processo de formação, já que “ainda não existe

como ser, o que só ocorrerá quando o espírito lhe der ‘realidade’ e a fizer entrar em sua

luz” (WILLEMART, 2005, p. 147-8). Dessa forma, o engenho literário seria, desde seus

primeiros momentos, um apelo para que um Outro (um leitor) lhe dê contorno, dê forma

ao seu processo de se fazer, mais ou menos como acontece no processo de subjetivação

inicial: estamos no próprio território da indefinição e, consequentemente, das inúmeras

possibilidades. No caso dos Cadernos de Estudos para a Obra de Guimarães Rosa, um

estranhamento acontece logo no primeiro contato: eles constituem caderninhos de

estudante (espirais ou brochuras), medindo por volta de 21 x 15 cm.77, alguns com capas

trazendo desenhos bem infantis. Como esse material não possui clara classificação –

seja temporal ou temática –, uma forma possível de tentar organizá-los é pensar em uma

categorização através de suas descrições, uma vez que, certamente, a maior parte desses

Cadernos foi comprado – muitos na Papelaria Progresso situada na Av. Marechal

Deodoro, 158, no Rio de Janeiro – e pertenceram a alguma série de cadernos

comercializada junto aos estudantes da década de 1960. Vejamos um quadro com as

descrições dos cadernos de Rosa:

74 Uma análise destes Cadernos rosianos,está no artigo Poemas para ouvir: Uma interpretação doscadernos de estudos para a obra de Guimarães Rosa, publicado na edição 25 da Revista Manuscrítica(RODRIGUES, 2013-4)75 Referimo-nos à palavra de origem grega poiésis, que inicialmente significava criação, ação, confecção,fabricação e hoje passou a significar arte da poesia e faculdade poética.76 A expressão “espaços escriturais” é empregada na obra de Verónica Galíndez-Jorge (2009, p. 84)77 Ainda que de tamanhos diferentes, todos os Cadernos se enquadram aproximadamente nessasdimensões, excetuando-se um, que é um pouco maior – 27,0 x 21,0 cm..

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 135

3. TAB 1 - FUNDO IEB JGRCÓDIGO TAMANHO CAPA FOLHAS

IEB JGR-CADERNO 01

22,5 x 15,5BROCHURA

Caderno de estudante, escrito na capa em semicírculo “Demarço a dezembro”, abaixo um cículo com desenhos deestrelas e no centro estudantes uniformizados entrando naescola, com etiqueta preenchida “ALUNO Guimarães Rosa;ESCOLA Literatura; CLASSE animais”. Na contracapa,escrito no centro “Usamos nesse caderno o título e a ilustraçãodo livro “de março a dezembro”, leitura para a 4ª. sérieprimária da Professora Rita Amil de Rialva, cuja autorizaçãoobtivemos”.

31

IEB JGR-CADERNO 02

22,5 x 15,5ESPIRAL

Xadrez azul e branco, imitando o plástico usado pelosestudantes para encapar livros e cadernos. Tem etiqueta nãopreenchida. Na contracapa, o mesmo xadrez, sem nada escrito.

37

IEB JGR-CADERNO 03

22,0 x 15,5BROCHURA

Brochura, da série CADERNO EDUCATIVO ‘ROXI’, comdesenho da ave Lyra na capa e explicação sobre ela nacontracapa. Na capa tem ainda etiqueta “pertence a” nãopreenchida.

59

IEB JGR-CADERNO 04

22,0 x 15,5BROCHURA

Brochura, da série CADERNO EDUCATIVO ‘ROXI’, comdesenho de Peixe Borboleta na capa e explicação sobre ele nacontracapa. Na capa tem ainda etiqueta “pertence a” nãopreenchida.

96

IEB JGR-CADERNO 05

22,0 x 15,5BROCHURA

Brochura, da série CADERNO EDUCATIVO ‘ROXI’, comdesenho de Tigre da Sibéria na capa e explicação sobre ela nacontracapa. Na capa tem ainda etiqueta “pertence a” nãopreenchida. Também foi comprado na papelaria Progresso.Carimbo “PAPELARIA PROGRESSO Sant’ana Bilbulho,Papéis, S/A. Av. Marechal Deodoro etc”.

60

IEB JGR-CADERNO 06

22,5 x 15,5BROCHURA

Capa extraviada.90

IEB JGR-CADERNO 07

22,5 x 15,5BROCHURA

Caderno de estudante da série BRASILIDADE com retrato doDuque de Caxias fardado, acima e abaixo escrito CAXIAS emamarelo com fundo vermelho e, ao redor do escrito, desenhosde guerra e soldados. Letra do Hino Nacional na contracapa.Tem linhas em branco preenchidas “Geral! – Plotino –GERAL!”.

60

IEB JGR-CADERNO 08

22,5 x 16ESPIRAL

Caderno de estudante da série VISTAS DO BRASIL. Nacontracapa está escrito “coleção vistas do Brasil – CEARÁjangadas Ceará jangadas”, além do registro “Siqueira S.A. S.Paulo capa registrada”.

36

IEB JGR-CADERNO 09

22,5 x 16ESPIRAL

Caderno de estudante da série VISTAS DO BRASIL, comfoto do Viaduto do Chá em São Paulo. No verso da capavemos a referência à papelaria progresso. Na contracapa estáescrito “coleção vistas do Brasil – São Paulo – Viaduto doChá” e as mesmas indicações “Siqueira Capa registrada”.

36

IEB JGR-CADERNO 10

22,5 x 16ESPIRAL

Caderno de estudante da série VISTAS DO BRASIL, comfoto do Ceará – jangadas. Na contracapa está escrito “coleçãovistas do Brasil – Ceará jangadas”, igual ao caderno 08.

27

IEB JGR-CADERNO 11

22,0 x 15,5MONTADOPOR ROSA

Sem capa, apresentando apenas um aviso: “O Caderno deEstudos no. 11, originalmente montado por João GuimarãesRosa teve sua ferragem retirada para melhoracondicionamento e conservação do mesmo”. Algumaspáginas têm a indicação “SECRETARIA DE ESTADO DASRELAÇÕES EXTERIORES”.

53

IEB JGR-CADERNO 12

22,0 x 15,5BROCHURA

Brochura, da série CADERNO EDUCATIVO ‘ROXI’, comdesenho de Tucano na capa e explicação sobre ela nacontracapa. Comprado na Papelaria Progresso.

43

IEB JGR-CADERNO 13

22,5 x 16ESPIRAL

Caderno de estudante da série VISTAS DO BRASIL, comfoto de praia. Na contracapa, escrito “Alagoas praia do

96

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 136

Pajussara Gogó da Ema”.

IEB JGR-CADERNO 14

22,5 x 15,5BROCHURA

Caderno de estudante com desenho colorido de criançasentrando no colégio. Comprada na Papelaria Progresso, comHino Nacional da contracapa.

48

IEB JGR-CADERNO 15

22,5 x 16ESPIRAL

Caderno de estudante da série VISTAS DO BRASIL, comfoto do Edifício Banco do Estado, em São Paulo.

78

IEB JGR-CADERNO 16

22,5 x 15,5BROCHURA

Outro Caderno de estudante da série BRASILIDADE comdesenho de soldados e do Duque de Caxias, além da letra doHino Nacional na contracapa.

59

IEB JGR-CADERNO 17

22,5 x 15,5BROCHURA

Mais um Caderno de estudante da série BRASILIDADE comdesenho de um vulto histórico militar e etiqueta preenchidacom FILOSOFIA, mas rabiscada por cima. No verso da capatemos uma planilha do horário escolar de segunda a sábado eabaixo “peça os artigos escolares com a marca ‘brasilidade’ e‘papeleiro’”. Na contracapa, a letra do Hino Nacional.

95

IEB JGR-CADERNO 18

22,5 x 15,5BROCHURA

Outro Caderno de estudante, com a mesma capa do caderno01, com inscrição “De março a dezembro”. Capa com criançasentrando na escola.

30

IEB JGR-CADERNO 19

22,5 x 15,5BROCHURA

Caderno de estudante chamado Caderno São Jorge, na capauma enorme imagem do santo e ao fundo, menor, uma NossaSenhora e uma etiqueta em branco, contendo sobre ela umaetiqueta com o desenho de uma menina. Na contracapa temum mapa do Brasil.

40

IEB JGR-CADERNO 20

20,0 x 15,5BROCHURA

Capa extraviada.94

IEB JGR-CADERNO 21

22,0 x 15,5BROCHURA

Brochura, da série CADERNO EDUCATIVO ‘ROXI’, comdesenho do peixe Poraquê na capa e explicação sobre ele nacontracapa.

64

IEB JGR-CADERNO 22

22,5 x 15,5ESPIRAL

Caderno capa dura, na cor cinza. Na parte superior lemos emletra azul “Marca Regist. “DE LUXE” Ind. Brasileira – Proc.Pat. 29. 839” e na parte inferior, também impresso em azul,“NO. 4 – PAUTADO COLORIDO patente 39.4445 – DireitosAut. Reserv. Todas cores”.

86

IEB JGR-CADERNO 23

22,5 x 16ESPIRAL

Caderno de estudante da série VISTAS DO BRASIL, comfoto do Palácio Monroe, no Rio, mostrando um casal decostas, caminhando. No verso da contracapa há a indicação deque foi comprado na Papelaria Progresso.

74

IEB JGR-CADERNO 24

22,5 x 16ESPIRAL

Caderno de estudante da série VISTAS DO BRASIL, capacom foto da cidade de São Paulo, no verso indicação daPapelaria Progresso.

70

IEB JGR-CADERNO 25

22,0 x 15,5BROCHURA

Caderno com capa da ave Lyra e explicação sobre ela nacontracapa, exatamente como no Caderno 03, sendo que aqui,em vez de ser a linha de Cadernos educativos Roxi, trata-se daJOCOMAR, notando-se que esse caderno é mais novo que ooutro

24

IEB JGR-CADERNO 26

27,0 x 21,00BROCHURA

Capa extraviada.37

IEB JGR-CADERNO 27

22,0 x 15,7BROCHURA

Caderno com capa azul claro ao fundo e desenho de aves emum galho, além de uma etiqueta “pertence a”, não preenchida.O conteúdo do Caderno foi todo escrito pelo vaqueiro Zito,mas Rosa o guardou.

16

Acerca das capas dos Cadernos é interessante obsevar que algumas delas – as

que mostram imagens da cidade ou mesmo de animais – se assemelham à imagem de

alguns cartões-postais enviados a Ooó, manifestando um retrato construído dos cenários

e das ligações afetivas (cf. SCHAPOCHINIK, 2010, p. 426) que “corroboram para uma

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 137

compreensão redutiva da paisagem”. Segundo a descrição das capas dos Cadernos de

Estudos para a obra de Guimarães Rosa, sob a guarda do Arquivo do IEB/USP, três

tiveram suas capas extraviadas, sete são simples cadernos de estudante sem melhores

classificações, dezesseis pertencem a quatro coleções comerciais – Roxi, Brasilidade,

Vistas do Brasil e Jocomar –, além de um montado artesanalmente pelo autor, em um

total de vinte e sete cadernos. Daí começamos a cogitar que poderia existir um desejo do

autor de se imaginar como um estudante, aberto para aprender, exercitar e até mesmo

modificar com sua escritura as coisas do mundo a seu redor. Vejamos alguns exemplos

de capas das séries comerciais:

No arquivo do IEB, os cadernos ficam guardados em caixinhas, semelhante a

caixas de presente, tal qual essa:

Figura 3.3 – Exemplos de capas comericiais: da série Roxy, com o desenho da ave Lira; da série Brasilidade, com o vulto do Duquede Caxias; e da série Vistas do Brasil, com foto de jangadas no Ceará.Fonte – (ROSA, IEB JGR-CADERNO 03; CADERNO 07; CADERNO 10)

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 138

Ao abrir a caixinha, surpreendemente, podíamos também encontrar cadernos

com capas bem infantis, como as seguintes:

Figura 3.4 – Foto de uma das caixas nas quais os cadernos ficam armazenados no IEBFonte – (Arquivo do IEB/USP – Material de armazenamento)

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Quando encontramos capas como essas, podemos pensar que tais suportes e o

uso do lápis de cor servem apenas para ativar o processo de ficcionalização, no qual

Guimarães Rosa entraria propriamente no ato de fingir e os usasse como se (LIMA,

2006, p. 272) fosse um caderno de estudante, para também fazer seus exercícios que, na

verdade, acabam sendo quase que opostos aos das crianças educandas, já que Rosa não

deseja se adaptar às normas adultas, mas sim exercitar a criação literária e a apropriação

cultural, ou seja, a ficcionalização. Essa ideia se aprofunda ao entrarmos em contato

com seu conteúdo e percebermos a forma como eles se configuram: constituem trechos

que o autor teria ouvido ou pensado e em seguida anotado em breves citações, quase

sempre iniciando com a sigla “M%” (meu 100%), significando algo que Guimarães

Rosa teria criado ou se apropriado para ser usado em algum momento da sua escritura78,

reafirmando que já em seus textos iniciais, Rosa mantém em potência um processo de

significação constante, sendo, portanto, um artifício diretamente ligado ao próprio

processo da escritura, já que, mesmo nessa fase ainda de elaboração, mantém-se uma

oscilação entre o silêncio e as formas de dizer características dos textos escritos pelo

autor. Tal forma fragmentada de escrever abre a chance da criação de “entidades

78 Algumas vezes Rosa aponta, nas margens dos Cadernos, em qual texto utilizou ou utilizará aqueletrecho, o que nos permitiu sondar em que época tais cadernos foram escritos.

Figura 3.5 – Exemplos de capas estudantis dos Cadernos de Estudos de Guimarães Rosa nos. 14, 01 e 02, com referência aestudantes entrando na escola e à estampa xadrez usada nas brochuras e carteiras escolares.Fonte – (ROSA, IEB JGR-CADERNO 14; CADERNO 01; CADERNO 02.)

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fictícias” (LIMA, 2006, p. 264), visto o que se visualiza ali ser uma escritura que

combina a cultura oral e escrita, sublinhando os conflitos culturais inerentes ao

tensionamento de tal binômio, coforme já salientamos.

Lendo manuscritos fraturados, entramos em contato com um momento da

criação do texto em que ele ainda não é algo completo, mas apenas uma seleção

utilizada como atos de fingir: trata-se de uma espécie de literatura em estado bruto, que

ainda não se definiu literariamente. Ora, se “a ficção é uma forma sem realidade”

(LIMA, 2006, p. 280), igualmente enxergamos ali registros de enunciações expostos

sem qualquer norma que os oriente e imponha qualquer direção, nos levando, portanto,

a entrar no campo da criação ficcional poética, já que se visualiza, nas citações não

formuladas, a abertura para várias possibilidades de conexão (LIMA, 2006, p. 280).

Também devido a seu caráter fragmentário, o contato com o material de arquivos causa

uma sensação comum a todos os pesquisadores – sejam eles críticos literários ou

historiadores – pois, como nos alerta a historiadora Arlette Farge (2009) em seu livro O

sabor do arquivo, a falta de qualquer espécie de linearidade faz com que o consulente se

sinta em meio a um grande mar de informações que podem ser selecionadas ou

descartadas por ele, como se a ele tivesse sido dado o poder de optar por algumas dentre

as múltiplas possibilidades que o arquivo oferece.

Consultar manuscritos literários de um escritor com “vocação de cronista”

(VASCONCELOS, 2000, p. 630), tal como Guimarães Rosa, em busca de pegadas

deixadas por seu instinto de pesquisador, não poderia deixar de ser interessante,

especialmente para quem quisesse repensar as relações com a História que foram sendo

estabelecidas durante aquela escritura. Isso porque, nesse tipo de documento,

encontramos um campo aberto de probabilidades: tudo aquilo que o texto veio sendo,

ou não sendo mais, deixou ali as marcas de sua passagem, delimitando para sempre o

próprio processo da feitura daquelas mensagens questionadoras da História que ali se

mostram como algo em pleno processo de criação.

Ao manter, desde seu início, a tão desejada presença do ritmo através das pausas

constantes, essa escritura nos leva a destacar que seu processo é mesmo permeado pela

hesitação, como se o autor estivesse o tempo todo procurando pela mais perfeita forma

de situar sua escrita no melhor lugar intermediário em sua construída relação com a fala.

Nós, seres humanos, entendemos isso quando pensamos que, quando escrevemos,

selecionamos expressões, processo que não costuma ser tão transparente, já que, embora

não percebamos, ao falarmos também estamos constantemente oscilando entre as

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 141

expressões (BARROS, 2006, p. 57-77). No processo de escritura rosiana, o valor das

pausas, que se configuram como um grupo interminável de curtas menções retiradas da

experiência oral, acaba construindo, paradoxalmente, a mais segura base para a

construção daqueles textos.

Se o ritmo da escritura rosiana é marcado pela fragmentação, como salientamos

aqui, é interessante destacar que, ainda no Fundo IEB JGR, encontramos na série

denominada Fortuna Crítica o texto Plágio de Manuel Bandeira, publicado no Jornal do

Brasil, em 18 de junho de 1961, no qual o poeta comenta o alto grau de dificuldade da

leitura apresentado pela escrita rosiana: “Rosa inventa palavras, deforma-as, desintegra-

as, recompõe-nas, faz alquimia, cirurgia plástica, sei lá o que seja” (BANDEIRA, 1961).

Ao modo dos M%, Bandeira conta que, ao conhecer a expressão rosiana “aquém-

túmulo”, sentiu vontade de, ele próprio, tê-la criado, desejo que o leva a plagiá-la ao

inseri-la em um poema ao qual deu o significativo título Poema com uma linha de

Guimarães Rosa79, como se estivesse reconhecendo e atestando a importância do

fragmento para a própria poiésis do autor mineiro.

Embora estejamos considerando que a própria existência desses Cadernos de

Estudo para obra, configurados de forma fragmentária como os descrevemos, seja a

maior prova da preocupação com a formação de um ambiente de criação, também é

preciso destacar a possibilidade de observar alguma espécie de conteúdo existente

naqueles fragmentos, ainda que de forma difusa, ao que listamos uma série com alguns

temas de interesse francamente relacionados a esta pesquisa, acerca de cujo conteúdo

falaremos agora.

O primeiro tema a ser abordado é o mais diretamente relacionado a nossa

proposta, a saber, o TEMPO:

“M% A gente se enchendo de tempos vazios” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 04, p.0 2);“M% É profundo o futuro: é” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 04, p.68);“Trastempo – tempo decorrido” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 05, p.02);“M% = ... passado e futuro – trevas e névoas = Bogotá” (ROSA, IEBJGR-CADERNO 05, p. 02);“M%= Como se colhesse um caminho florido e se esboçasseImpossivelmente em repassa-lo em que? – paraDar-lhe ainda outra beleza – que fosse a um

79 Cabe destacar que Bandeira explica em seu texto que o título surgiu a partir de um leitor seu, que lheteria mandado um poema chamado Poema com uma linha de Manuel Brandeira (BANDEIRA, 1961).

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Tempo sempre nova e definitiva” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 17,p. 57);“O tempo, como sempre, fingia que passava” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 18, p. 05)

Além dessas citações, também foram encontradas outras diretamente

relacionadas à passagem do tempo e à História:

“M% tem agora futuro e agora passado” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 47);“M% de extremos tempos (velho)” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4,p. 85);“A gente se enchendo de tempos vazios” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 02);“M% = ... passado e futuro – trevas e névoas = Bogotá” (ROSA, IEBJGR-CADERNO 5, p. 02);“M% seus alegres sapatinhos realidade histórica (na)” (ROSA, IEBJGR-CADERNO 6, p. 60);“o tempo não é um relógio – é uma escalopendra” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 9, p. 03-verso);“M% o continuitar do tempo, do riacho e do relógio” (ROSA, IEBJGR-CADERNO 9, p. 18);“M% Tempo e silêncio, juntos não vão bem” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 9, p. 30);“M% = A vida é mortal compasso,curto é o tempo que se tem.A cada hora que passo, mais perto a morte me vem.Então, uma faço:Vivi mal, ou morri bem?[Em 28.I.58]” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 17, p. 14);“Quebrar o fio da históriaQuebrar a palavraQuebrar a relação com alguémQuebrar-se uma geração (passar da linha reta à bastarda)” (ROSA,IEB JGR-CADERNO 17, p. 57);“M% = O movimento do tempo” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 17, p.95);“M% = Como se colhesse um caminho florido e se esfoçasse” (sic) 80

(ROSA, IEB JGR-CADERNO 17, p. 95);“Impossivelmente em repassa-lo em que? – paraDar-lhe ainda outra beleza – que fosse a umTempo sempre nova e definitiva.” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 17,p. 95);“Ir-se com o tempo – contemporizar com as tendências da época, nãoser intransigente” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 19 p. 02);“M% - vou-me com o tempo.” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 19, p.02);“M% = sem liberdade de tempo” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 20, p.74);“M% tudo vem a outro tempo” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 22, p.22);“M% = o dito tempo do dito ano

80 A palavra ‘esfoçasse’ (sic) consistiu em leitura hipotética de palavra ilegível no manuscrito.

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Por espaço = por demora” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 23, p. 63);“M% = O movimento do tempo” (ROSA, IEB JGR- CADERNO 17,p. 95)

Outra forma de apresentar a reflexão acerca do tempo nos Cadernos é quando

nosso autor aborda a alegria, que é uma forma sinuosa de tratar dessa questão através da

imediata percepção temporal infantil, como nesses excertos:

“M% nos gradis de ouro da alegria” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4,p. 61);“M% toda saudade é um borrado de alegria” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 94);“TEMA = Céu, depois deste desterro. A morte. O corpo miserável.ANTITEMA = Céu, feito (crido, criado) através dos belosmovimentos da Terra. O corpo glorioso. A alegria” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 5, p. 11);“COCHICHOO canto é alegre e composto de titiris repetidos” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 23, p. 21)

A mesma reflexão aparece em momentos de inscrições de poemas como esse:

Figura 3.6 – O autor transcreve uma inscrição vista em quadros de veludo coloridos da Santa Casa de MontesClaros acerca da alegria, que consistiria no “tempo infinito” e estaria em oposição ao modo de vivermatemático (lógico?).Fonte - (ROSA, IEB JGR-CADERNO 06, p. 04)

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No livro História da alegria, Adam Potkay (2010) resgata uma explicação da

filósofa Martha Nussbam, que esclarece que uma das primeiras necessidades da criança

– ser que acabou de sair do útero, lugar onde todas as necessidades lhe eram atendidas

magicamente – é a de buscar, no mundo fora do corpo materno, meios pelos quais

‘[...] estímulos dolorosos ou invasivos sejam removidos e de que umacondição pacífica e serena seja restaurada’. Essa ‘agênciarestauradora’ (as ações da mãe, do pai ou de outras pessoas que delase ocupam) ‘será primeiramente percebida pela criança não tantocomo um objeto distinto, mas como um processo de transformaçãopelo qual o estado da própria criança está sendo alterado... Mesmoassim, em um estado de ‘dependência infantil’, a criança pode fazerpouco para controlar a chegada do processo de transformação, e suachegada e seu desaparecimento repentinos designam o mundo dacriança como um mundo marcado pelo acaso e pela imprevisibilidade,em que as melhores coisas acontecem em um flash, com repentinaspenetrações de luz e de alegria. (PORTKAY, 2010, p. 38-9.)

Sendo assim, encontramos aqui uma imagem da percepção infantil do tempo

como constituindo “flashs de luz e alegria” que tentam restabelecer uma situação de

conforto. Tempo, portanto, no qual ainda funcionam as “palavras mágicas”, aquelas que

quando ditas acionam a “agência restauradora” – que são os pais ou os cuidadores – e

fazem os desejos tornarem-se realidade em momentos rápidos. Essa deve ser a primeira

e única percepção temporal das crianças pequenas, que consiste no tempo sempre, o

agora.

Embora tais reflexões existam nos Cadernos de Estudos para a obra, ainda que

de forma fragmentada, também neles achamos exemplos de criação efetiva de novas

temporalidades, expressos nos exercícios de revitalização das palavras. Tal aspacto é de

suma importância para Guimarães Rosa, porque ele mesmo declarava que escrevia em

uma língua em formação, na qual seriam muitas as referências à procura de novas

formas de expressão:

no Brasil a linguagem ainda não se libertou. Está virgem. Há umcampo imenso para explorar, novas formas, maior flexibilidade. Emsuma: é preciso cultivar a expressividade da língua. [...] Eu não criopalavras. Elas todas estão nos clássicos, estão nos livros arcaicosportugueses. São expressões de muito valor que eu pretendo salvar.Em Sertão: veredas há palavras que nem em Portugal se fala mais.Mas existem. Para determinadas passagens, entretanto, nãoexistem palavras. Então é preciso criá-las, ou redescobri-lasatravés de sons que as correspondam. (ROSA, 2006c, p. 84, grifonosso)

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Como já citamos, no material permanente exposto no Museu da Língua

Portuguesa, em São Paulo, é possível ler a seguinte inscrição: “vários processos de

formação dos neologismos de Guimarães Rosa são encontrados na fala de crianças que

estão aprendendo o português como língua materna”. A fim de refletir sobre as causas

de esse fato ocorrer é preciso lembrar que, à época daquela escritura (primeira parte do

século XX), o idioma português falado no Brasil ainda poderia ser considerado como

estando em pleno processo de criação, sendo que Rosa destacou que tal idioma também

possuía um histórico muito antigo (quase primitivo?) a ser resgatado, implicando na

seguinte questão: nossa língua não poderia então apresentar-se como um instrumento

para melhor propor a discussão acerca da história da cultura desse país? Foi essa uma

das propostas iniciais da escritura de João Guimarães Rosa, a saber, considerar a

linguagem como um ente em frequente potência de criação e recriação de si mesmo. E

nesse intento, Rosa mostra-se um escritor preocupado em desenvolver seus próprios

instrumentos de trabalho, como Van Gogh que, para pintar, quis “saber como é que é a

tinta [...] Rosa estava mais interessado era na palavra” (cf. CALLADO, 2011, p. 15-6),

seja ela a falada, a escrita, em sua sintaxe, em sua semântica, em seus sotaques, sua

historicidade etc., sendo por isso importante destacar que ele não quis criar uma língua

própria, mas sim “desenvolver uma nova língua portuguesa. E isso ninguém fez como

ele, nem no Brasil nem em Portugal” (cf. CALLADO, 2011, p. 15-6). Algumas marcas,

ainda que fugazes, dessa empreitada aparecem em seus Cadernos de Estudos para a

obra, quando flagramos exemplos de criação de novas temporalidades, expressos por

exemplo nos seguintes exercícios de revitalização das palavras:

“M% extraordinarice” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 05);“M% personagente” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 07);“M% - balbucibeijos” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 08);“M% - bobifazer-se” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 08);“M% - ZOORDIMJARDIM /JANLÓGICO” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 08);“M% - estribilhir/estribilhindo” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p.08);“M% a aurorescência” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 30);“M% a juvertude” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 56);“M% abracadabraçar (o fantasma) (o esqueleto)”( ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 63);“M% Pergaminhesco” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 64);“M% grandes relâmpagos boi-tatando” (ROSA, IEB JGR-CADERNO4, p. 76);“M% pirilâmpadas” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 77);“M% a pomarar (pássaro)” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 78);

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“M% no melaçúcar/mel – e – açúcar” (ROSA, IEB JGR-CADERNO4, p. 78);“M% o alquimilicor” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 88);“Desfarçado = descorado m% que perdeu a face” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 9, p. 23);“M% SENSABORES” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 9, p. 23-verso);“Piolhar = criar piolhos” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 9, p. 24);“M% admiraflores” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 18, p. 06);“M% = silenciousadamente” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 20, p.47);“M% = elefantinamente” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 23, p. 10);“M% = maisoumenismo” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 23, p. 37);“M% = (riacho) o fliú fliú/Fliu-fliante/fliufliú” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 23, p. 48);

Nesse pequeno recorte do conteúdo dos Cadernos, encontramos diversos

exemplos de formação de neologismos rosianos, como onomatopeias, composições por

aglutinação, derivações prefixais, sufixais, parassintéticas etc., tudo em movimento para

preencher o espaço vazio de quando não se acha mais as palavras para o que se quer

dizer.

Também se destaca nesse material, especialmente para nós que desejamos

repensar os questionamentos da História ali executados, que, tal qual acontece na

experiência vocal, o tempo cronológico não é decisivo ali: na maioria dos Cadernos não

encontramos nenhuma data, embora esses documentos, ainda assim, possuam sua

historicidade (ZULAR, 2007, p. 37-40). De qualquer forma, também é possível

localizar neles algumas sutis marcas temporais, como quando Guimarães Rosa cita a

neta Ooó (Vera Tess) ou algum dos textos que escreveu para a revista Pulso, indicando

que aquelas inscrições foram feitas por volta da década de 1960, período no qual o autor

contribuiu para tal periódico. Mas esse tipo de referência não cristaliza o tempo no

manuscrito: não podemos dizer, por exemplo, que todo ou parte do Caderno no qual a

data aparece foi preenchido naquele mesmo período, porque não podemos nos esquecer

de que, na verdade, estamos defronte de um manuscrito literário e que seu tempo é

aquele não linear da criação. Como o escritor possuía grande quantidade de Cadernos e

poucos foram preenchidos até a última página, podemos cogitar que eles não eram

usados de forma contínua, mas sim que seu emprego obedecia a alguma regra de

utilização que desconhecemos. É justamente por causa de tal indeterminação temporal

do manuscrito que é possível que coexistam ali as várias temporalidades distorcidas do

processo de criação: a de quando a enunciação vocal foi ouvida, a de quando o autor a

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registrou, a de quando ele a reenunciou; a de quando ela foi revisada; e a de quando foi

reinventada pela escritura.

Além dos “M%” e das marcas em lápis de cor, nas margens dos Cadernos de

Estudos para a obra é possível ver a presença constante de símbolos como o do infinito

(lemniscata) e as estrelas de cinco pontas. Como exemplo, temos uma imagem na qual

eles aparecem imbricados um no outro81:

Esses símbolos já foram interpretados no universo de Guimarães Rosa, visto eles

terem sido inseridos em algumas edições de seus livros, sendo frequentemente

considerados como marcas místicas (cf., ALBERGARIA, 1976; SPERBER, 1976;

UTÉZA, 1994). Vejamos como eles apareceram desenhados na capa do livro Primeiras

Estórias, editadas pela José Olympio Editora:

81 Referências acerca desse tema podem ser encontradas nos trabalhos da historiadora Frances A. Yates,relacionadas ao iluminismo e ao esoterismo (YATES, 2001, 2002). Ainda na busca da decifração dessessímbolos, consultamos, via e-mail, a Fraternidade Rosacruz, na pessoa do Sr. Arthur de AlmeidaBerberian, que nos esclareceu não ter conhecimento sobre se Guimarães Rosa fazia uso dos ensinamentosrosa-cruzista. Sua resposta: “o que já se pode perceber é que os símbolos que você descreveu não sãorelacionados exclusivamente à Fraternidade Rosacruz, mas a verdades espirituais presentes em todas asescolas sérias de ocultismo” (BERBERIAN, 2011, informação pessoal).

Figura 3.7 – Exemplo de símbolos místicos que aparecem das margens dos Cadernos.Fonte – ROSA, IEB JGR-CADERNO 22, p. 29.

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Embora os símbolos sejam os mesmos, no livro eles foram desenhados por Luis

Jardim, escritor e pintor que na década de 1960 podia ser associado ao universo dos

livros infantis, já que ainda em 1940 o autor tinha publicado pelo menos dois livros

destinados às crianças: O tatu e o macaco – livro contendo apenas estampas – e O boi

uruá – no qual três textos fabulosos são ilustrados pelo autor, constituindo, segundo o

levantamento da literatura infantil brasileira de Leonardo Arroyo, uma “verdadeira obra

prima do gênero” (ARROYO, 2011, p. 328), pois Jardim “deixa transparecer nos traços

dos seus desenhos o mesmo sentido profundo de brasilidade” (ARROYO, 2011, p. 324),

visto que

na literatura infantil de Luís Jardim há um verdadeiro sentidodionisíaco da terra brasileira e de seus valores tradicionais. A históriado boi aruá é dessas que desafiam o tempo, pelo conteúdo e pelacomposição. Embora de narrativa simples, ao alcance de todo leitormiúdo, dele nasce, a cada nova leitura, um mistério e uma atmosferaque lhe dão frisos de obra prima. A referência a Luís Jardim faz-noslembrar dos autores de livro único e, apesar disso, livro de boadensidade estética e temática. (ARROYO, 2011, p. 324)

Note-se aqui que foi esse o homem que Guimarães Rosa escolheu para ilustrar as

suas estórias, o que não deixa de ser significativo para nossa pesquisa, uma vez que tal

fato demonstra certa atração do autor pelo universo infantil. As capas das primeiras

edições de Tutaméia e Primeiras Estórias foram ilustradas por Jardim e, no caso de

Primeiras Estórias, são dele também os desenhos do índice ilustrado do livro. À época,

a Livraria e Editora José Olympio destacou de forma elogiosa as peculiaridades quase

infantis das representações, que foram feitas a pedido de Guimarães Rosa, em aviso

encontrado no início daquelas edições:

Figura 3.8 – Pentagrama e Lemniscata desenhados por Luis Jardim para a capa do livro Primeiras Estórias, de1962.Fonte – (ROSA, 1978, capa)

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Guardemos essa associação de Jardim ao universo infantil, pois ela ainda será

lembrada algumas vezes nesta tese. Antes, porém, ainda há algo a comentar no que

tange aos símbolos nas margens dos Cadernos, pois eles, quando aparecem ali,

frequentemente são seguidos pela sigla “H.D.”, que não foi desenhada, não aparece em

nenhuma edição que conhecemos e nem foi comentada por nenhum intérprete rosiano

que lemos até agora, implicando em que tais letras permaneçam um mistério, apesar de

seu contexto frequente – sempre junto aos símbolos místicos – indicar ser possível que

elas também se refiram a esse universo de significação.

Embora estejamos considerando que a própria existência dos Cadernos de

Estudo para obra, configurados na forma fragmentária que descrevemos acima, seja

uma prova da preocupação com a formação de um ambiente de ficcionalização, a

consulta a tais Cadernos foi instigante e deleitosa, porém cansativa, já que a

inexistência de qualquer fio condutor que encadeasse uma narrativa em meio a tantos

fragmentos desconexos faz com que o consulente se sinta em contato com um material

ainda a ser moldado, exigindo por isso que acionemos o máximo de nossa capacidade

de ler, selecionar e organizar os fragmentos de forma a melhor compreendê-los.

Processo semelhante será observado na posterior escrita final das próprias obras de

Rosa.

Ainda que, conforme já salientamos, costumasse negar entrevistas a jornalistas

ou pesquisadores, seja em âmbito privado, seja para contribuir com trabalhos escolares,

parece que Rosa aceitava às vezes concedê-las. Dentre os documentos de Guimarães

Rosa disponíveis no Arquivo da FCRB existe uma folha datiloscrita, datada de 19 de

outubro de 1966, no Rio, contendo apenas nove respostas a um questionário escolar

para sua prima Lenice, de Cordisburgo. Dessas respostas simples sobre sua carreira de

escritor, seus conhecimentos de idiomas etc., três nos pareceram ser mais interessantes

no que concerne à presente investigação: a primeira, quando ele fala de algo que

começou na infância e que supomos ser o impulso de inventar e contar estórias:

Figura 3.9 – Destaque às ilustrações de Luís Jardim para o livro Primeiras Estórias.Fonte – (ROSA, 1978, p. IV.)

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Desde menino, muito pequeno, eu brincava de imaginar intermináveisestórias, verdadeiros romances; quando comecei a estudar Geografia –matéria de que sempre gostei – colocava as personagens e cenas nasmais variadas cidades e países: um faroleiro, na Grécia, que namoravauma moça no Japão, fugiam para a Noruega, depois iam passear noMéxico... coisas desse jeito, quase surrealistas. Mas, escrever, mesmo,só comecei foi em 1929, com alguns contos que, naturalmente, nãovalem nada. Até essa ocasião, eu só me interessava, e intensamente,pelo estudo da Medicina e da Biologia. (como nasci a 27 de junho de1908, eu tinha, então, 21 anos, mais ou menos.) (ROSA, FCRB, 19out 1966-Doc. 24)

Depois, provavelmente quando as estudantes pedem sugestões acerca da maneira

pela qual poderiam ler melhor seus livros, ele responde com sua opinião sobre a

(des)importância da biografia do autor no estudo de um livro:

Seu colégio é ótimo, e sei que aí procuram sempre melhorar o nívelcultural das alunas. Como poderia eu, afastado vivo desses problemas,dar sugestões nesse sentido? Diria apenas a Vocês que procurem ler oslivros. Vocês mesmas; os livros, em si, é que são importantes. Osautores, não. O autor é uma sombra, a serviço de coisas mais altas,que às vezes ele nem entende. O autor é sempre ‘bananeira que já deucacho’. (ROSA, FCRB, 19 out 1966-Doc. 24)

E, por último, a resposta sobre o que ele achava da juventude, na qual podemos

perceber grande crença mística, na confiança e na autossuperação, em detrimento de

maiores preocupações sociais:

A juventude? É uma maravilha. A juventude pode dar para melhorar asituação atual da sociedade? A meu ver, é estudar, aprender, aplicar-sea disciplina e paciência; e, principalmente, não pensar, por enquanto,em querer melhorar a situação atual da sociedade. Mas procurar,apenas, melhorar a si mesma. (ROSA, FCRB, 19 out 1966-Doc. 24)

Ainda acerca das contribuições rosianas com trabalhos de estudantes,

selecionamos uma resposta que ele concedeu a uma aluna do primeiro ano Clássico do

Colégio Brasileiro de Almeida, chamada Maria da Graça de Faria Coutinho, em 1965,

na qual podemos perceber o quanto a escritura era um processo constante em sua vida,

para além dos registros realizados nas viagens pelo sertão, conforme ele relata:

– Maria da Graça: – Gosta da vida social?– Guimarães Rosa : – Detesto. Gosto muito das pessoas, mas tenhohorror à vida social. Não tenho paciência para aturá-la. Não gosto defrequentar a vida social, pois se noto alguma coisa, tenho logo vontadede escrever. Quando ando de ônibus estou sempre planejando algumtrabalho. ‘Concatenando ideias’. (COUTINHO, 1966 e Arq.IEB JGR-IEB/USP R08,011)

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Para um processo de criação ininterrupto a tal ponto, a ideia do uso da caderneta

pareceu ser ideal para o registro do que fosse percebido a cada momento, porém, a

consulta aos Cadernos pareceu-nos mais promissora, já que neles se operava uma outra

atividade, o início da elaboração de um texto literário propriamente dito. O próprio ato

de usar um caderno escolar já estabelece uma relação com a infância tal como estamos

pensando aqui, uma vez que, nesses Cadernos de Rosa, o alto grau de inconstância

estabelece uma relação direta com a volubilidade da criança, afinal ela também muda o

tempo todo, assim como a vida, desenvolvendo-se simultaneamente em várias direções.

Acerca dessas questões de orientação, encontramos em uma página dos Cadernos algo

bastante relevante:

Tradicionalmente o caderno é o local no qual a criança estudante efetua seus

primeiros exercícios com números e letras, num aprendizado para começar a se situar e

participar do letrado adulto. Porém, no caso dos Cadernos literários de Rosa,

Figura 3.10 – Desenho de Rosa dos Ventos a lápis preto, verde, vermelho e azul, como que sugerindo queas cores podem oferecer orientações para sua escritura.Fonte – (ROSA, IEB JGR-CADERNO 23, p. 69-verso)

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observamos processo diverso, já que seus exercícios são de criação literária e

apropriação cultural, opostos aos das crianças educandas que experimentam trocar o

corpo pela escritura. Nos Cadernos de Rosa o que se experimenta é a valorização do

que resta do corpo nas palavras escritas (as palavras revitalizadas que mencionamos

anteriormente), o que supomos ser literalmente marcado pelo uso dos lápis de cor,

conforme foi referido e observado no trabalho com os manuscritos de Sezão.

Assim sendo, nesses Cadernos de Estudos para a obra, que se apresentam

bastante coloridos, o tema das cores também é abordado diretamente e muitas vezes o

flagramos, tal como nas seguintes menções:

“M% - Por entre os azuis e os verdes” (ROSA, IEB JGR-CADERNO01, p. 24);“M% - dos olhos das crianças ainda não cabem cinzas (a vela aodiabo)” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 04, p. 18);“M% - as misturas de cores outoniças” (ROSA, IEB JGR-CADERNO04, p. 26);“Cores: Diamante: incolor, amarelado, avermelhado, azulado,esverdeado, etcM% lapida-se o diamante com seu próprio pó” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 04, p. 33);“M% vadiação de cores” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 04, p. 61);“M% ..., variadas cores, flores.” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 04, p.82);“M% se é azul é belo, mas é monótono e vão.” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 04, p. 87);“M% Seu rosto foi do moreno ao verde e ao amarelo, e quase ao purobranco (Medo, susto)” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 04, p. 15);“M% amarelo de dentro da laranja” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 04,p. 40);“M% queres comer-me ainda verde? (fig)” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 04, p. 57);“M% o amarelo, que é o que veste melhor a luz” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 09, p. 75);“M% amarelo, a cor preferida das borboletas” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 09, p. 13 verso);“M% no azul estival” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 09, p. 14-verso);“M% o verde e o azul, transvasando-se” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 09, p. 24);“M% o azul/verde que veem os mergulhadores (madrugadores)”(ROSA, IEB JGR-CADERNO 09, p. 33);“Argila azul = rocha matriz, jazimento do DIAMANTE (kimberlita?)”(ROSA, IEB JGR-CADERNO 10, p. 23-verso);“M% = tom tópicoTom local é o próprio a cada objeto:O azul dum vestimento, o vermelho de uma maçã, a tês leitos abasamé dime figure nueEsse tom intrínseco do objeto...

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Uma seta é a base colorida sobre a qual devem ajustar-se (e a ele)retornar sempre para reorientar-se) as diversos elementos de tôda obrapictural.” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 16, p. 08);“Tresaventura - M% - grande verde com luzPalhaço - M% - o amarelo é agudo e fácil”82(ROSA, IEB JGR-CADERNO 20, p. 71);“O azul é cor sem agilidade” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 20, p.53);“M% = e o amarelo é a cor que abençoa” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 22, p. 49);“M% = como do amarelo extraem-se ideias sem matéria.” (ROSA,IEB JGR-CADERNO 23, p. 07);“M% = Era um amarelo mental” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 23, p.44);“M% = belo amarelo.M% = lindo vivo, amareladoM% = cor contagiadaM% = valor de corM% = azul como o céu do lugar do amorM% = em cinzenta simplicidade” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 23,p. 60);“M% o amarelo, alegre cores” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 23, p.62)

Ainda no que concerne às cores, observamos igualmente o estabelecimento de

relações diretas entre cores, sensações e as coisas do mundo:

Em outros momentos também flagramos fragmentos nos quais a relação entre

sons da fala e as cores é reafirmada, conforme é possível ver nos seguintes trechos:

82 Tresaventura e Palhaço (da boca verde) são títulos de estórias do livro (ROSA, 1967).

Figura 3.11 – Trecho de página de um dos Cadernos no qual Rosa escreve sobre possíveis significados para ascores. Lembramos que esses Cadernos são de estudos e que, como o autor parecia estar sempre fugindo denormatizações e regras para apostar no movimento, talvez esse não deva ser considerado como uma normageral, mas sim como um esboço de uma reflexão em um determinado momento do processo de criaçãoficcional.Fonte – (ROSA, IEB JGR-CADERNO 06, p. 45)

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“M% = de bocas a/em orelhas” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 23, p.06);“M% - conformes no ouvir e falar” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 04,p. 21);“M% Está-se ouvindo” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 04, p. 39)“M% = voz de harmônicos coloridíssimos, timbre...” (ROSA, IEBJGR-CADERNO 22, p. 05);“M% O amarelo é cor que se escuta muito” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 19, p. 13)

Portanto, é por essa via mais sensorial, sublinhada pela indicação cromática, que

tentamos repensar a importância da infância para Guimarães Rosa, pois, como já foi

dito, a criança é o ser que costuma ‘encorporar’83 cores e imagens do mundo a sua volta

(cf. SCHÉRER, 2009, p. 110-1). Se Rosa cria a partir de tal perspectiva, consistindo em

certa revivência de algum tipo de percepção infantil, como estamos sugerindo, a

infância também deve aparecer como tema nos Cadernos, como podemos contemplar

nas ricas menções abaixo:

“M% sou de provecta infância as materialidades da vida (Insatisfeitoscom...)” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 3, p. 7);“M% - O menino quer cantinhoSem espinhos;O menino é um passarinho:Tem seu ninho.” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 4, p. 6);“M% = Lembrança primoinfantil” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 22,p. 09);“M% = ..., na fala das fadas” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 23, p.10);“M% = seu passarinho-da-guarda” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 23,p. 66);“M% - dos olhos das crianças ainda não cabem cinzas” (ROSA, IEBJGR-CADERNO 4, p. 18);“M% - ∞:O menino, que só gostava de bichos enfiou o dedo na boca e (numcanto) chupava-o, para se consolar, porque o gatinho fora embora.O menino soltinho quieto na rua.O menino parecia fantasiado de caijeira” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 6, p. 70);“- (a criancinha)... era um rei, uma rosa, um leão, um ouro, umhomem” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 9, p. 21);“M% - cantar, brincar e passear já são atos sobrenaturais” (ROSA,IEB JGR-CADERNO 23, p. 63);“M% que entendia antes das palavras” (ROSA, IEB JGR-CADERNO2, p. 01);“M% = fruto ab-rupto (o menino, ao ser nascido)” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 17, p. 41);“M% = dez caixas de balas” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 20, p. 74);

83 A palavra ‘encorporar’ no sentido de “dar corpo a” foi utilizada por Guimarães Rosa no conto Os trêshomens e o boi dos três homens que inventaram um boi, no qual o mote da invenção do boi através daelocução de palavras faladas é ‘encorporado’ pelos vaqueiros (ROSA, 1967, p. 111).

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“Montes Claros: chove pouco.- Chuva aqui, tem menino de sete anos que não sabe o que é chuva(tem que pegar uma peneira e fazer assim...)” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 2, p. 07);“- passarinho laborento- criança laborenta(= barulhento)” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 2, p. 07)

Em resumo, nesse recorte de fragmentos, encontramos relações entre crianças e

pássaros, símbolos místicos, cores, o ensimesmamento infantil e uma constatação

fundamental que pode ter interessado Rosa: a criança entende antes da palavra. Ainda

acerca das crianças de Montes Claros, já citadas acima, há mais uma menção

interessante a ser destacada e, nesse caso, já se trata de uma estorinha:

Figura 3.12 – Anedota sobre menino de Montes Claros – “O menininho de três anos cruza os dois dedospolegares e diz: ‘Dia. (é o nome que dá a toda cruz). O Deus está aqui deitado com a cabeça assim (tomba acabecinha no ombro)./ Tem fascinação por tudo quanto é sino, canto de igreja. Fareja livros velhos de oração emuitas vezes é encontrado encarapitado na janela, à noitinha olhando a cruz iluminada da torre da igreja: Dia, vairepetindo./ Isto não o impede de xingar os nomes mais feios, que a gente pode repetir. Diz que a boca do priminhoé que é suja. A dele não, é limpa.”Fonte – (ROSA, IEB JGR-CADERNO 02, p. 33/34)

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Nessa anedota, é possível observar como é fácil para a criança lidar livremente

com as palavras, seja inventando novas ou atribuindo outros significados às já

existentes, como o menino faz ao usar o termo Dia para se referir a cruzes. Esse mesmo

vocábulo, no universo de Guimarães Rosa, pode aparecer como marca da ambiguidade,

afinal ele pode estar relacionado tanto à luminosidade do ‘dia’ como também ser ‘diá’

(um dos nomes dados ao Diabo). Lembramos aqui o aspecto apontado pelo poeta

Augusto de Campos, que escreveu em seu artigo Um lance de Dês do Grande Sertão

que no nome da personagem Diadorim é exatamente a partícula DIA que sintetiza toda a

ambivalência entre as coisas “de deus” e as coisas “do diabo”, já que Diadorim seria:

Dia + Dora} im

Diá + dor (CAMPOS, 1959, p. 28)

Mas se as palavras podem assumir um vasto campo de significados e as crianças

transitam livremente nessa ambiência, tal fato ocorre tão somente porque elas ainda não

estão completamente comprometidas com os sentidos pré-atribuídos aos vocábulos, que

depois lhes serão passados como designadores rígidos de seus significados e, a partir de

então, cada palavra passará a não dizer nada além desse sentido determinado. Assim, o

que nos parece interessar a Guimarães Rosa é mesmo a retomada desse período anterior

a tal cristalização: entre os 21 e 36 meses de idade, o ser humano começa a entrar em

contato com o encantamento em relação à linguagem, com o nomear o mundo,

constituindo o que chamamos de período adâmico (SACKS, 2010, p. 73-4). Tal fato é

relevante para a obra do autor, já que sua escritura nos aparece como uma possibilidade

de voltarmos a ter a liberdade de uma criança e de poder, efetivamente, encarar a

linguagem como uma atividade lúdica, na qual o jogo se constrói porque “a diferença de

significado é uma diferença do seu uso” (WITTGENSTEIN, 1999, p. 70-1).

Conforme já havíamos adiantado no segundo capítulo da tese, a infância ainda

aparece nos Cadernos através das citações a Vera Tess (Verinha Ooó). Devido ao grau

de intimidade entre Rosa e Ooó, talvez não seja de se estranhar que ela tenha sido citada

em dois exemplares dos Cadernos rosianos disponíveis no IEB, dois no Fundo IEB JGR

e um no Fundo IEB ACGR – o que nos autoriza a pensar que, além dos fortes vínculos

afetivos, ela também o influenciou em sua escrita literária. No caso do grupo de

cadernos do Fundo IEB JGR, encontramos pelo menos cinco menções diretas a Verinha

no Caderno 06, datando de 1967, e pelo menos uma no Caderno 11, sem datação:

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Nesse trecho, é importante destacar o interesse de Vovô Joãozinho na maneira

pela qual a neta pequenininha ouvia as palavras e depois as reproduzia de modo

peculiar. Outros registros referentes a Vera e a seu processo de entrada na linguagem,

efetuados nos Cadernos, seguem o mesmo rumo:

Figura 3.13 – Fragmento com citação de Vera Tess (Ooó) falando futebol: “xipidol = futebol (7.VI.66)/sipidol/ sitibol (citybol...)”Fonte – (ROSA, IEB JGR-CADERNO 06, p. 46)

Figura 3.14 – Fragmento com a citação de Vera Tess (Ooó), registro de Rosa sobre a neta. Nesse trecho, oregistro de uma ‘troca de letras’ clássica entre as crianças pequenas ao começar a falar: falar ‘degavarinho’,querendo dizer ‘devagarinho’.Fonte – (ROSA, IEB JGR-CADERNO 06, p. 55)

Figura 3.15 – Fragmento com citação de Vera Tess (Ooó). Como Verinha chamava guardanapo em 1967:gamamato!Fonte – (ROSA, IEB JGR-CADERNO 06, p. 80)

Figura 3.16 – Fragmentos com citação de Vera Tess (Ooó do Vovô) falando picoca: “picoca”, depois “Vera(Ooó) – Acende! (para abrir a torneira do bidé)”Fonte – (ROSA, IEB JGR-CADERNO 06, p. 51)

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No trecho acima, como se vê, Rosa destaca que Verinha teria dito ‘picoca’, para

significar ‘pipoca’, demonstrando mais uma maneira de dizer peculiar à criança às

voltas com a descoberta da linguagem. Mais abaixo dessa mesma anotação, vemos mais

duas inscrições acerca de outros temas, uma delas consistindo em outra referência a

Ooó, anotada em caneta azul, destacando-se que ela usou a palavra ‘acende’, para pedir

para ligar a torneira do bidê. Logo abaixo, a lápis, a uma inscrição, não diretamente

ligada a Vera, já mostra um tipo infantil de relação com a linguagem: a definição de

‘água mineral’ como sendo uma ‘água cheia de furinhos, com gosto de pé dormente’

(ROSA, IEB JGR-CADERNO 06, p. 51).

Na próxima ocorrência, temos a criação infantil de vocábulos estranhos.

Nesses fragmentos, Rosa parece ter se interessado especialmente pela

enunciação infantil de Verinha, com isso ele pode estar confirmando nossa hipótese de

que uma das forças motrizes de sua escritura era manter uma atenção especial para a

Figura 3.18 – Fragmento com registro de Rosa sobre a neta Vera Tess. Primeiro o universo infantil deVerinha: “Lápis. Casa. Bola. Brinquêdos (sic). Salão. Luz”. Depois um significativo ‘erro’ na concordância aofalar!Fonte – (ROSA, IEB JGR-CADERNO 06, p.59).

Figura 3.17 – Fragmento com citação de Vera Tess (Ooó) criando palavra estranha. Verinha Ooó diz: “Ah,qu’ingatidão é essa?!’ (Vera, 12.VIII.67)”Fonte – (ROSA, IEB JGR-CADERNO 06, p. 88)

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oitiva, observando as características da fala, tais como as sonoras, rítmicas etc. Outro

ponto que merece destaque é o fato de, algumas vezes, terem sido registradas

expressões da criança que, para um adulto letrado, são consideradas como errôneas, mas

que, se as olharmos sob outra perspectiva, constituem apenas um choque cultural, já que

essas enunciações mostram a forma diferente pela qual a criança está percebendo o

mundo a seu redor. Para a criança, tais expressões, que podemos classificar como

equivocadas, são fundamentais, visto que é através delas que o infante consegue não só

entrar na linguagem, mas também interagir nela, deixando de ficar paralisado como o

bebê da tirinha a seguir, usada por Steven Pinker para ilustrar uma das teorias acerca da

entrada do ser humano na linguagem:

Voltando aos registros que Rosa fez das elocuções de Verinha, lembramos que

tais anotações também são importantes em um outro nível de análise, já que, embora

sem intenção, elas acabam sendo uma tentativa de contar uma História que nunca foi

contada: a da experiência humana antes da entrada na linguagem, quando a

comunicação se efetivava “[...] na fala das fadas” (ROSA, IEB JGR-CADERNO 23, p.

10). Ainda sobre isso, vale destacar a indicação rosiana de um M% significativo: “M%

= O desejo de comunicar-se, às vezes (EM GERAL) não é cortês: é bárbaro” (ROSA,

IEB JGR-CADERNO 17, p. 56).

Já no Caderno de Estudos para a obra 11 a menção a Ooó que encontramos é

interessantíssima, pois não apenas retoma uma definição etimológica da palavra

infância, como a associa diretamente a Verinha:

Figura 3.19 – Tirinha de Marvin sobre a entrada humana na linguagem.Fonte – (PINKER, 2008, p. 54)

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Em todos esses fragmentos dos Cadernos de Estudos para a obra de Guimarães

Rosa nos quais Ooó é mencionada, flagramos ora registros da entrada de Vera na

linguagem, ora elementos do universo próprio de uma criança pequena. Considerando

tais referências dispostas lado a lado ao material produzido para o livro Ooó do vovô,

obtemos uma imagem mais clara do que o autor estaria pensando acerca da infância na

época da escritura das estórias na década de 1960: uma determinada relação que se

estabelece com a linguagem e a palavra, relacionada ao processo de construção da

subjetividade.

Ainda que o foco principal de nossa investigação com os Cadernos Manuscritos

de Guimarães Rosa esteja mesmo nos Cadernos armazenados no Fundo IEB JGR, como

já adiantamos, outras duas séries arquivísticas foram consultadas, mesmo em se tratando

de cópias xerográficas, e nelas também encontramos algumas informações relevantes

para problematizar algumas questões colocadas pelos cadernos originais. Falemos delas

agora.

3.1.2 Cadernos de anotações: Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB)

“Fui no Tororó beber água e não acheiAchei bela Morena

Que no Tororó deixei...”(Cantiga popular de domínio público – Fui no Tororó)

Numericamente, o material pertencente a Guimarães Rosa que a filha Vilma

Guimarães Rosa disponibilizou ao arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB),

no Rio de Janeiro, é bem menor que os disponíveis no Fundo do autor disponível no

IEB/USP. De qualquer forma, lá encontramos cinco Cadernos, todos reproduções

Figura 3.20 – Fragmento com citação a Vera Tess (Ooó). Aqui temos a definição de infante como ‘non-speaking’ e a referência a Ooó (Vera Tess): “A infanta”.Fonte – (ROSA,IB JGR-CADERNO 11, p. 52)

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 161

xerográficas de originais extraviados84, todos encadernados e montados como os

caderninhos estudantis, de tamanho aproximado de 23,0 x 17,0 cm. Vejamos o quadro

com a descrição completa:

3. TAB 2 - Arquivo FCRB

CÓDIGO TAMANHO CAPA FOLHAS

FCRBCADERNO

2300

17,5 x 11,5ESPIRAL

Encadernado com espiral preto e papelão verde escrito“Guimarães Rosa - cadernos” na parte inferior direita. Aspáginas desse caderno são cópias de um original quadriculadoque foi extraviado.

39

FCRBCADERNO

2301

23,0 x 16,0ESPIRAL

Encadernado com espiral preto e papelão verde escrito“Guimarães Rosa - cadernos” na parte inferior direita. Essecaderno é cópia, cujo original se encontra no Fundo IEB ACGR.

44

FCRBCADERNO

2302

21,5 x 16,0ESPIRAL

Encadernado com espiral branco e capa de acrílico transparente. 17

FCRBCADERNO

2303

21,5 x 17,0ESPIRAL

Encadernado com espiral branco e capa de acrílico transparente. 38

FCRBCADERNO

2304

22,0 x 16,5ESPIRAL

Encadernado com espiral branco e capa de acrílico transparente. 33

Como já salientamos, esses Cadernos constituem cópias xerográficas e, ao final

e cada um, encontramos a seguinte explicação, estabelecida por algum organizador da

FCRB, visando elucidar o fato de eles disponibilizarem cópias xerográficas e não

originais:

Contém este volume cópia de anotações lançadas de próprio punhopor Guimarães Rosa em quatro de seus Cadernos Literários. É feita areprodução xerográfica com permissão da viúva do Autor, em 5 vias,pelo Centro de Cópias Copicentro Rio LTDA. (ROSA, FCRBCADERNO 2300, s/p.)

Acerca do conteúdo, cabe destacar que tais Cadernos são mais parecidos com os

que estão disponíveis no Fundo IEB ACGR que com os Cadernos de Estudos para a

obra disponíveis no Fundo IEB JGR, já que neles quase não há composições próprias,

como observamos com frequência nos já analisados Cadernos, sendo muito comum que

o autor neles recortasse materiais recolhidos de outras fontes, colando-os naquelas

páginas. Dessa feita, pouquíssimos fragmentos puderam ser realçados como referentes a

nosso tema. Acerca do Tempo e da História, destacamos:

84 Como indicamos no quadro, apenas uma dessas cópias possui original disponível no acervo IEB ACGR(ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2258).

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“1) Não devemos desejar acontecimentos ou casos isolados,individesados85!(?)(isso é submissão ao Tempo)” (ROSA, FCRB-CADERNO 2300, p.06);“Medit. – O desejo (em casos, coisas, fatos isolados) é o que nosescraviza ao tempo.” (ROSA, FCRB-CADERNO 2300, p. 09)

Já sobre o tema alegria, encontramos o seguinte texto recortado e colado:

O Câncer pode ser vencido com a alegria.Um dos mais notáveis cientistas ingleses, o professor Griffith Evans,causou sensação nos meios médicos afirmando, depois de anos deestudo, que o mais terrível mal do século, o cancer, não derivaria dedisfunções no organismo, mas seria provocado simplesmente ‘porfatores psicológicos’, isto é, por um estado de infelicidade.‘Pelo menos em um caso sobre três’, disse o professor, ‘as pessoasdoentes de infelicidade crônica estão destinadas a morrer de câncer’.Explicou cientificamente que ‘um prolongado estado de tristeza,interrompendo o regular funcionamento da glândula pituitária(relacionada com o cérebro) vai perturbar a biles, e é justamente estaque provoca a formação dos tumores malignos’.Como prova das suas afirmações, o cientista citou o caso de quatropacientes incuráveis, que conseguindo libertar-se da melancolia econquistar a serenidade, alcançaram, pouco a pouco, a cura semqualquer outro remédio. (ROSA, FCRB-CADERNO 2300, p . 07)

Na página 18 do mesmo Caderno 2300, encontramos o conteúdo mais

importante para nossa pesquisa: três anedotas recortadas de uma publicação não

identificada, sendo duas delas de temática infantil e protagonizadas por uma mesma

menina, Maria Teresa Kopschitz de Barros86:

85 Leitura hipotética de palavra ilegível no manuscrito.86 Como não conseguimos autorização para reproduzir a imagem desse recorte, apenas o transcrevemos,tentando apresentá-lo de forma a mais semelhante possível ao recorte original, no tamanho 13,8 x 9,5 cm..

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 163

Começamos esse capítulo falando acerca de uma tendência ao anticientificismo

ou tradicionalismo nas perspectivas e metodologias da História, percebida no século

XX, que abriu a possibilidade para que os historiadores consultassem os arquivos

privados de escritores, tal como estamos fazendo aqui. Foi nesse mesmo contexto do

advento de um novo historicismo que os profissionais da História puderam igualmente

se interessar legitimamente pelas anedotas (cf. GALLAGHER; GREENBLATT, p. 15-

47), contempladas não apenas como ilustrações, mas já como fontes, uma vez que elas

são narrativas sucintas de casos jocosos ou curiosos que permitiriam abordar

irreverentes vivências no tempo, já que, se o conhecimento histórico é construído pelo

diálogo crítico que o historiador propõe com os fragmentos do passado retirados das

fontes (DIAS, 1998), é claro que tal material também pode ser moldado em narrativas

historiográficas, visto apresentarem diversificadas possibilidades de contar o vivido no

tempo.

Rio de Janeiro 27 28 de dezembro de 1952CABELO PRETO

Tirou

Maria Teresa Kopschitz de Barros tem A BANDEJAseis anos de idade, cabelos pretos e olhos

pretos, muito vivos. É a única pessoa

morena da família. Seus pais e seus irmãos

são louros.

Teresa se sentia meio estranha, de

cabelo preto em meio a tanta gente loura.

E vivia dizendo à sua mãe que, nas

famílias, todas as pessoas deveriam ser

iguais e ter os cabelos da mesma cor.

Mas, como não pode mudar a natureza,

ela encontrou uma compreensão. Agora

explica a todo mundo a vantagem de ser

morena:

-“Cabelo preto não suja!”

A BICICLETAO pai de Maria Teresa é capitão do Corpo de

Fuzileiros Navais. Na véspera do Natal, houve,

no cassino do Corpo, uma festa para os filhos

dos oficiais, com sorteio de prêmios.

Maria Tereza passou grande parte do tempo

de olho comprido a namorar uma grande

boneca que acabou saindo para outra menina.

Ela, depois, contou à sua mãe:

- “Na hora em que a outra menina tirou a

boneca eu senti uma dor horrível na barriga.

Então, rezei a Deus, com toda a força, para ver

se tirava a bicicleta.

O Sr. Barrocas, funcionário do Banco da

prefeitura, estava no lanche que a Associação dos

Funcionários do Banco promoveu, na véspera do

Natal.

Em determinado instante, quando ia tirar um

salgadinho, levou um empurrão e atirou a

bandeja pela janela. Todos correram para olhar.

A bandeja caiu, cinco andares abaixo, na cabeça

de um cidadão que ia passando.

De cima, Barrocas viu o homem, zonzo, a se

apoiar na parede e a passar a mão na cabeça.

Correu ao elevador e desceu. Na calçada, dirigiu-

se ao homem:

- O Sr. me desculpe. Eu derrubei a bandeja. Foi

um acidente.

E o homem, danado da vida, a esfregar a cabeça:

- A culpa não é sua. Eu, hoje, quando saindo de

casa, escorreguei numa casca de banana e caí.

Depois, quando saltava de um bonde, levei um

tombo. Agora, vou passeando pela avenida Rio

Branco e me cai uma bandeja na cabeça. A culpa

não é sua. O azar que é meu.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 164

Depois das consultas aos fragmentados Cadernos de Estudo para obra de

Guimarães Rosa, visualizamos a importância do investimento no movimento e no ritmo

para aquela escritura, pois já naqueles manuscritos é possível observar algo que

permanecerá explícito nos textos publicados: inscrições que não oferecem significados

prontos para serem aprendidos e assumidos, mas que exigem que o leitor adulto – que já

passou pela iniciação ao código letrado – volte a significar o mundo novamente, através

da percepção de timbres e ritmos, tal como fazia na infância (cf. FRANÇOIS, 2009;

MESCHONNIC, 2006). Um exemplo de como isso pode ser percebido está no já aqui

citado início do prefácio Aletria e Hermenêutica, no qual fica claro que o primeiro

estranhamento se dá pela aceleração do ritmo das frases:

A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra aHistória. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota. Aanedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechadoineditismo. Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. (ROSA, 1967, p. 3)

Em um texto como esse, que procura a graça o tempo todo, inclusive por meio

da utilização da lógica infantil, é preciso atentar para questões mais sutis, como a

análise dos ritmos das enunciações. Nesse sentido, retomando ideias de Henri Bergson,

Luiza Lobo esclarece que

A sensação de falta de sentido que há na disposição e no ritmoexagerados que se vê nas paradas de soldados marchando causa umriso irreprimível. A criança seria mais dada ao riso que o adulto, poispercebe nos eventos do mundo um mecanismo que o adulto já seacostumou a interpretar como sério. Daí a contradição em se escreverseriamente sobre humor. (LOBO, 1993, p. 165)

Aos historiadores, ter acesso a esses fluxos que respondem a outras lógicas, a

situações nas quais só “a temporalidade e a linguagem são possibilidades de acesso a

significação [...] o ser da linguagem, trabalhado pela sensibilidade do historiador, chega

a momentos de revelação, ‘eventos de compreensão’” (DIAS, 1998, p. 246-7). Essa

busca de um trabalhado com a linguagem, que pudesse revelar alguma verdade

escondida a olho nu, aparece diversas vezes no prefácio rosiano, especialmente quando

o autor presenteia seus leitores com anedotas retiradas da lógica mágica das crianças.

Então é possível ver aparecer novamente a discussão acerca da História, relacionando-a

à anedota, pois, como destacou o historiador Elias Thomé Saliba, o trecho inicial de

Aletria e Hermenêutica aponta

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 165

sucintamente para o caráter intrinsecamente efêmero das narrativashumorísticas na história brasileira. Afetadas pelos fluxos da vida epelos movimentos da história, tais narrativas, contudo, sóconseguiram revelar o impensado e o indizível ao surpreendê-lonaquele seu momento supremo de estranhamento que se realizavanum átimo, porque depois a história se movimenta novamente, osentido do novo se desvanecia, o riso se esgarçava, retraindo-se – ese ele insistir em prosseguir, começa a perceber-se caduco e senil, arepresentar apenas o universo entrópico da redundância e doarquiconhecido. (SALIBA, 2002, p. 305, grifo nosso)

Se cada estória rosiana, embora sendo todas escritas, pode levar seus leitores até

um universo mais primitivo, é porque todas são construídas com base nos princípios da

vocalidade, fator que causa grande estranhamento na leitura. Experimentar esse

sentimento deve ser parte fundamental da produção de efeitos do texto final, já que é

dessa forma que os vocábulos rosianos assumem caráter de “palavra mágica”, pois

reinstalam constantemente os sentidos do falar e, em sua relação com a significação,

reafirmam a predominância da melodia e do ritmo, principais características da cultura

brasileira e também da cultura infantil, como já vimos no segundo capítulo.

Assim, não nos parece ser de todo estranho que tenhamos encontrado registros

de anedotas protagonizadas por crianças nos manuscritos rosianos – desde os Cadernos

de Estudos para a obra até os Cadernos de Anotações –, afinal foi o próprio Guimarães

Rosa, antes até que os historiadores brasileiros, quem evocou as anedotas,

especialmente aquelas protagonizadas por crianças, como um tipo de perspectiva

narrativa peculiar que perfeitamente constituiria o oposto à História tradicional. Mas, ao

optar por abordar a irreverência da perspectiva infantil, Rosa o faz a partir da evocação

de um autor já conhecido nosso, o grande colecionador e divulgador de narrativas

protagonizadas por crianças, Pedro Bloch, que em seu Dicionário de anedotas infantis

para adultos, explica:

Não é um dicionário, a não ser pela ordem alfabética das dezenas edezenas de coisas divertidas, pensamentos, definições e mil coisasmais, que brotam da mente infantil e que divertem os adultos. Cadaum desses itens encerra o ponto de vista que a criança tem davida, dos pais, da escola, do comportamento, do mundo.Quase tudo que aí está faz rir, sentir e pensar.Não são coisas inventadas, mas vividas e proferidas por crianças.(BLOCH, 2001, s/p, grifo nosso)

Se as crianças, por suas simples existências, são anedóticas, dadas as suas

inerentes percepções da vida, devemos lembrar também que elas ainda não estão

completamente comprometidas com o tempo nem com a sua passagem e, portanto,

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 166

também estão livres das correntes temporais, sendo que é próximo a tal percepção que

as anedotas protagonizadas por elas desejam nos levar.

Recentemente, a ideia de anedota voltou a ser abordada pela historiografia, já

que em 2012 o historiador norte- americano Robert Darton publicou no Brasil mais um

de seus livros acerca da França do século XVIII, O Diabo na água benta ou a arte da

calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão, em cuja obra se abordam os

logogrifos87 franceses do século XVIII, nos quais foram encontradas muitas anedotas.

Darton ainda explica que

Uma palavra que surge em toda parte nos títulos e textos dos libelos éparticularmente desconcertante para o leitor do século XXI:anecdotes. Para nós, sugere uma história banal, não muito confiável,como na expressão ‘evidência anedótica’. Para os europeus do séculoXVIII, contudo, significava quase o oposto: uma anedota era umainformação fidedigna que havia sido ocultada e que precisava serdesencavada, descoberta ou desvelada. Diferentemente de outros tiposde informação, tinha um atrativo especial e tendia a ser escandalosa.O dicionário da Académie Française define anecdote como umaocorrência ou circunstância histórica secreta (particularité) quehistoriadores anteriores omitiram ou suprimiram. (DARTON, 2012, p.323).

Essa herança de significado para o termo anedota, relembrada por Darton,

também nos remete à discussão sobre a veracidade das facécias infantis comentadas na

citação de Pedro Bloch acima, uma vez que, como viemos apontando, uma fidedigna

história das vivências infantis nunca foi contada, permanecendo, então, omitida, como

se se tratasse de material extremamente desinteressante, o que definitivamente não pode

ser encarado como verdadeiro, dado toda a reflexão até aqui construída.

Lembrando que um dos estranhamentos percebidos na leitura dos Cadernos de

Estudos para a obra dizia respeito à presença constante de símbolos referentes a Deus,

como pentagramas e a lemniscata inscritos nas páginas, quase sempre acompanhados da

enigmática sigla H.D., observamos que nessas anedotas – assim como naquela sobre o

menino de Montes Claros –, vemos exemplificada a relação peculiar que as crianças

estabelecem com o metafísico, de uma intimidade muito profunda, que não peca pela

falta de respeito, mas se caracteriza pela pureza e espontaneidade características aos

infantes. Tentar recuperar de alguma forma tal conexão talvez seja, também, um dos

87 Logogrifo é uma espécie de charada que se constrói juntando letras e desenhos a fim de que o leitordecifre uma mensagem. Em certo sentido, esse tipo de mensagem, que mescla elementos gráficos apalavras, já foi abordada no segundo capítulo desta tese, através da carta-enigma que Guimarães Rosaescreveu a uma de suas irmãs, quando criança. Acerca de seu aparecimento na imprensa paulista,remetemos o leitor à obra de Janovitch (2006).

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 167

objetivos da escritura de Rosa. No prefácio Aletria e Hermenêutica, o autor explica seu

interesse pela anedota, visto que ela “sintetiza, em si, o próprio geral mecanismo dos

mitos – sua formulação sensificadora e concretizante, de malhas para capturar o

incognoscível” (ROSA, 1967, p. 05), funcionando como “movente importante símbolo,

porém, exprimindo possivelmente – e de modo original – a busca de Deus (ou de algum

Éden pré-prisco, ou da restituição de qualquer de nós à invulnerabilidade e plenitude

primordiais)...”, sendo como uma tentativa de se aproximar do mistério metafísico, uma

“busca de Deus” (ROSA, 1967, p. 04).

Parecia claro, portanto, que a escritura de Guimarães Rosa estava interessada em

tentar resgatar essa visada adâmica infantil – caracterizada pela falta de

comprometimento com os significados pré-atribuídos – que permite às crianças o acesso

a alguma inocência original (e metafísica) da palavra, buscando com isso recuperar seu

estado de “enigma formidável” pertencente a toda palavra cujo significado não

conhecemos, empreitada que, certamente, foi realizada pelo autor por meio do uso das

anedotas e do assíduo aparecimento de certa graça vocabular (BANDEIRA, 1997, p.

207-8).

3.1.3 Cadernos de anedotas: Fundo ACGR > IEB/USP

“Com este caderno meu Joãozinho passou as últimas horas da sua vida, aqui.Novembro 19-11-1967”

(Aracy de Carvalho Guimarães Rosa – IEB ACGR-CADERNO 2256.)

Conforme já adiantamos, além dos Cadernos de Estudos para a obra do Fundo

IEB JGR e dos Cadernos de anotações da Fundação Casa de Rui Barbosa, existem

ainda mais três caderninhos de Guimarães Rosa, que permaneceram guardados com a

sua segunda esposa, Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, e que por isso estão

armazenados em seu Fundo, no IEB/USP. Todos são caderninhos estudantis, em espiral

ou brochura, medindo entre 22,5 x 17,5 cm. Dentre os três, dois são escritos a mão e um

é cópia xerográfica de um original que se extraviou.

Consultar os cadernos de Rosa em meio aos elegantes álbuns de fotografia e

agendas de sua esposa chamou nossa atenção para a possibilidade de que Rosa, ao usar

os simples cadernos escolares, estava mesmo formando seu ambiente escritural,

operando como se ele fosse mesmo um menino usando o caderno para exercitar suas

linguagens:

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 168

Vejamos o quadro com a descrição material desses cadernos:

3. TAB 3 - IEB ACGR

CÓDIGO TAMANHO CAPA FOLHAS

IEB ACGR-CADERNO 2258

(Igrejas)22,5 x 15,7ESPIRAL

Capa dura cinza, sem desenho, com os seguintes escritosa caneta:“Pontes = 61 a 63Nomes 1 a 4Igrejas = 10 a 13Igrejas (detalhes) 14 a 23Capelas (das igrejas) =18”

100

IEB ACGR-CADERNO 2257

(fotocópia)

22,0 x 17,5ESPIRAL preto

e capatransparente

Encadernado com espiral preta e capa de acrílicotransparente escrito “Schola” em preto. Tem recortes dechistes e piadas, de jornal ou revista sem maioresreferências.

100

IEB ACGR-CADERNO 2256

(últimas horas)

22,0 x 15,5BROCHURA

Capa com uma professora sentada na mesa conversandocom os alunos, escrito na parte inferior MINHAESCOLA. Na etiqueta, Aracy preenche dizendo queRosa passou com ele suas últimas horas de vida.

49

Em relação ao conteúdo desses cadernos, cabe destacar que neles existem muitos

registros de enunciações e M%, como é recorrente nos Cadernos de Estudo para a obra.

Contudo, também neles encontramos muitos recortes de pequenos textos escritos por

Outros, que aqui chamaremos também de anedotas – no sentido de serem narrativas

Figura 3.21 – Fotografia de alguns cadernos escolares de Rosa, junto ao material elegante de sua esposa AracyGuimarães Rosa.Fonte – Fotografia disponibilizada pela Equipe do IEB, em 17 de outubro de 2012.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 169

curtas e de caráter peculiar. Vejamos mais detalhadamente os conteúdos que julgamos

interessantes, separados por temas de interesse.

Sobre o tema animais e natureza:

“M% o aerograma de um pássaro” (ROSA, IEB ACGR-CADERNO2256, p. 01);“M% melpõem (melflor): as abelhas” (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2256, p. 01);“M% era um santo que exigia tradução imediata (pássaro)(ou: uma flor que exigia tradução imediata)M% passarinho: só com um piar de chupar dentes” (ROSA, IEBACGR-CADERNO 2256, p. 02).

O tema da infância também é abordado em alguns fragmentos:

“M% Ao meio-dia, as garças revoam atôa,Brincam de voar de roda” (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2256, p.01);“M% As menininhas brincavam de ser gatos” (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2256, p. 08);“M% - as meninas na/da montanha: as estrelas em relevo...” (ROSA,IEB ACGR-CADERNO 2256, p. 09)

Ainda que em menor quantidade em relação aos Cadernos do Fundo IEB JGR,

os Cadernos desse Fundo também apresentam exercícios de revitalização das palavras:

“M% conflorir” (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2256, p. 01).“M% moçoilice” (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2256, p. 01).

No entanto, a grande peculiaridade desses Cadernos é que, como já

sublinhamos, encontramos, coladas às suas páginas, recortes de jornais, dos quais

selecionamos excertos de piadas que poderiam ser usados em prefácios do livro

Tutaméia:

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 170

Essa coleção de piadas, por terem feito parte da escritura dos prefácios daquele

volume derradeiro – que é considerado como uma síntese de todas as obras publicadas

anteriormente por Rosa –, servem para legitimar a colocação geral atribuída àqueles

textos nos quais

Questionam-se os modos de narrativa (estória versus história;estória/anedota; prefácio/ficção; oralidade/escrita etc.); a gêneseartística (inspiração/insight versus construção); a criação de

Figura 3.22 – Piadas – Página na qual estão colados recortes de periódicos com chistes e anedotas: “Conheceesta?/ A LINHA/ - Você está bêbado, vamos embora./ - Não estou não, seu guarda.../ - Então ande reto nesta linhado chão./ - Em qual das duas?/ Nel Cardoso / LOS CHASCARROS CENTENARISTAS/ - Concreto es aquelloque se puede ver. Abstracto es aquello que no se puede ver. A ver, Tinito, un ejemplo de algo concreto;/ - Mispantalones, señorita./ - Muy blen. Ahora deme un ejemplo de algo abstracto./ - Los suyos, señorita./ (Del concursode ‘Bogotá Cómico’)”.Fonte – (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2257, s.p.)

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 171

neologismos; o seu alinhamento a uma concepção metafísica darealidade, na qual a arte se engaja; a explicitação dos procedimentosdo cômico e sua função textual etc. (RAMOS, 2009, p. 17)

O maior recorte de textos alheios encontrados nas páginas dos Cadernos de

Guimarães Rosa é o da crônica “Poesia do não-senso”, de Vinícius de Moraes,

ocupando duas páginas do caderninho:

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 173

A partir dessa passagem pelo estranhamento de linguagem – tão típico quando o

assunto é o embate cultural estabelecido entre adulto e criança – proposto por Vinícius

de Moraes como propício ao ambiente poético, chegamos a outro recorte peculiar,

intitulado Coisas de Vitor Hugo, de Rubem Braga, cujo texto identifica o grande

escritor francês como um colecionador de piadas e gracejos:

Figura 3.23 – Crônica Poesia do não-senso, de Vinícius de Moraes. “A poesia do não-senso. Vinicius deMoraes. O ‘não-senso’, graças à carga de poesia que transmite, quando em circulação, neste nosso mundomecânico, se veio aos poucos fazendo categoria poética. Realmente, quando, em meio a um discurso lógico senos depara um grão de ‘não senso’, somos inconscientemente tocados ou pelo riso, que é tédio da lógica, oupela poesia, que é a lógica do mistério. Um nó qualquer se desfaz em nosso espírito e vivemos um instante deliberdade no seio de uma ordem sem nenhum dogma./ O não-senso’ não é em absoluto a falta de senso. Seuma pessoa disser que não quer ir à missa porque não gosta de dansar isso não quer dizer nada e não tem amenor graça. Mas se disser, como eu escutei uma vez, num jantar, que está... ligeiramente sem garfo, isso éengraçado, porque coloca em contato ideias que não se polarizam e no entanto provocam um tipo de cômicomuito especial./ Para isso a língua inglesa é formidável. A Inglaterra já possue toda uma literatura baseada no‘não-senso’, com seus volumes de ‘nonsense’, que fazem a delícia dos ‘livings’ e dos ‘lodgings’ ingleses. O‘Complete Book of Nonsenses’, de Elgar, é encontradíssimo em mãos de estudantes nas universidadesbritânicas. Confesso não saber de quando data, literariamente, a expressão – e aí está um bom tema a pedir acultura e o espírito de meu amigo Blackstone para um bom artigo. Mas sei que os há, e os há inclusivepuramente escatológicos, ou trocando em miúdos, pornográficos, profanos./ O ‘nonsense’, como instrumentopoético, já tem uma forma de expressão definida. Compõe-se em geral de cinco versos, rimados os doisprimeiros e o último (há exceções, naturalmente), e o terceiro e o quarto./ Eis aqui um exemplo em português,feito ao sabor da hora, sobre o primeiro motivo que me veio à cretina da cabeça:/ ‘Uma vez encontrei umfantasma/ Com uma cara tão triste e tão pasma/ Que eu com pena do ‘cara’/ Dei-lhe um soco na cara/ Quedeixou o fantasma com asma’./ E o outro, de forma diferente, traduzindo um correspondente inglês:/ ‘Sobreuma escada um dia eu vi/ Um homem que não estava ali;/ Hoje não estava à mesma hora/ Tomara que ele váembora.’/ O maior dos ‘nonsensers’ ingleses foi sem dúvida o genial Lewis Carrol, autor dessa joia que sechama ‘Alice no país das Maravilhas’, livrinho onde há bons poemas do gênero. Seu ‘Fantasmagoria’, poucoconhecido no Brasil, é uma maravilha de loucura. Belloc também, Hillaire Belloc, tem deliciosos livrosinfantis de ‘nonsense’, como as prodigiosas histórias em verso para meter medo em criança, as ‘CautionaryTales for Children’, com desenhos de B.C.B., onde meninas e meninos levados, morrem das piores mortesporque batem portas ou fazem coisas amolantes da mesma espécie. Como pai que sou – e apesar de meusgarotos serem uns amores – já tive vontade também de fazer versinhos de ninar, para horas de manha, assimcomo esse aqui:/ “Dorme filhinho/ Anjinho querido/ Dorme menininho/ Senão... EU TE TRUCIDO!”/ Os‘boners’ participam, naturalmente, do espírito do ‘nonsense’ mas são essencialmente outra coisa. Segundo meinformaram, a palavra vem de um determinado Mr. Bone, orador não sei se inglês ou americano, que tinha apropriedade de dizer calinadas sem parar, emitindo conceitos formados exclusivamente de ‘misinformations’respostas que a pessoa, por ignorância, pedantismo, ingenuidade ou vontade de se mostrar, lança pensandoque está fazendo bonito, e vai ver está dando patada. Os melhores ‘boners’ são os de meninos de colégio,recolhidos em aula, provas e exames. Essas mancadas fazem um dos mais engraçados livros que já me foidado a ler, o ‘Pocket Book of Boners’. E dessa coleção que hoje damos aqui, alguns, para divertimento dosleitores que tenham, pelo menos, um senso de humor.”Fonte – (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2257, s.p.)

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 174

Outra crônica interessante presente nesses recortes é de Fernando Sabino,

versando sobre as bolinhas de gude, que ele jogava quando menino em Belo Horizonte,

mas que agora tinha virado esporte de campeonato de homens adultos:

Figura 3.24 – Crônica Coisas de Vitor Hugo, de Rubem Braga – “Coisas de Vitor Hugo, Rubem Braga/ HenriGuillemin insurge-se dizer contra a mania de dizer que Vitor Hugo tinha gênio mas não tinha espírito, ecolecionava uma centena de frases dêle, trocadilhos, piadas, versos feitos de brincadeira, pensamentos, etc./ Dosversos anotei êstes: « Au bord du grand chemin, une vache couchée – Regardait les passants avec maternité./Uma cena de briga doméstica: « Enquanto ela falava assim furiosa e apaixonada ele se ocupava a ler em suacabeça algumas palavras de um artigo do « Constitucional com o qual ela fizera papelotes »./ Uma opinião sôbreLemmercier: « êle faz o bom e o mau, mas faz melhor o mau que o bom »./ A passagem de um Império a outro:« Cabronne, em Waterloo, enterrou o Primeiro Império com uma palavra da qual nasceu o Segundo »./ Sobre ummarido que agradecia enlevado os elogios feitos à beleza da mulher: « Fazia um ar modesto, como o de uma ostraa quem se elogiasse a pérola; e vejam que a comparação é justa sob qualquer ponto de vista: a mulher é aprisioneira, o ornamento e a doença do marido »./ Uma frase sôlta: « O cão tem o sorriso na cauda »./ Umpersonagem pergunta a outro quem é um sujeito que entra cambaleando. « Eu o conheço; é um bêbado noexercício de suas funções ».”Fonte – (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2257, s.p.)

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 175

Esse depoimento é interessante no que tange ao brincar, que em vez de constituir

uma atividade de crianças, permuta-se para se tornar um jogo de adultos, no qual as

crianças assumem papel de meros espectadores. No entanto, pensando nas três crônicas

juntas, destacamos que todas elas convidam a saltos de percepção, propostos a partir de

Figura 3.25 – Crônica (Sem título) de Fernando Sabino –“LONDRES – Em matéria de bola de gude, osinglêses que me desculpem, mas não recebo lições de ninguém. Modéstia à parte, fui dos bons. Minha coleção,conquistada em cricadas de estilo, antes de cair na birosca, era de fazer inveja a muito moleque de rua em BeloHorizonte. Eu sei tecar de fininho ou de cheio, no batizado, ninguém me faz morrer pagão./ O que eu não sabia éque os inglêses, que inventaram o críquete e o futebol, fôsses (sic) de praticar também êste esporte. A bela taçadisputada no campeonato realizado em Tinsley Green durante a Semana Santa é a prova da seriedade com queencaram o jôgo de bola de gude. Mas é levar a seriedade um pouco longe: aqui, os disputantes são homens feitos,de barba na cara – os meninos se limitam a ficar olhando de longe, feitos em simples espectadores./ Venceu ocampeonato e conquistou a taça a equipe dos Tucanos de Crawley. Orgulhosos com a vitória, manifestaram a suadisposição de sair para campeonatos internacionais, desafiando jogadores de outros países./ Pois se fôr assim,estou às ordens dos Tucanos. Quando chegar a vez do Brasil, é só me avisar.”Fonte – (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2257, s.p.)

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certo estranhamento, podendo, portanto, legitimamente ser chamadas de anedotas, afinal

também são curtas em sua extensão e exercem papel de narrativas questionadoras do

prolongamento e da linearidade exigida pelo discurso da História.

Em meio a tal contexto interessantíssimo, ressurgem nos Cadernos as já

conhecidas menções a Vera Tess, em quatro derradeiros registros. Primeiramente, duas

inscrições ainda abordando novamente a maneira da netinha cantar a cantiga Teresinha

de Jesus, que já foi assunto no livro Ooó do vovô, cuja primeira versão foi depois

desenhada pelo Vovô Joãozinho:

Nesse registro, duas viagens do adulto ao universo de percepção infantil: uma

operada pela conhecida cantiga popular e a outra pela expressão de um desejo de não

sair da divertida vigília, nem mesmo para dormir. Ainda acerca de Teresinha de Jesus,

flagramos uma derradeira marca de como a menina percebia os objetos culturais

compartilhados com o adulto:

Figura 3.26 – Nesse trechinho, Rosa registra a forma como Verinha canta a cantiga Teresinha de Jesus:“Verinha (Ooó) – 28.I.66. Canta:/ ‘Teesinha de Zesús/ abe a porta, vê quem é/ é um homem pequenino/ e temmêdo de moé...’/ ‘Vamos dormir acordado?’”Fonte – (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2257, p. 04.)

Figura 3.27 – Fragmento com citação de Vera Tess (Ooó): “– Fala com vovô para continuar... (a estória(canto) da Tersinha de Je.../ – Vovô, contila...”Fonte – (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2257, p. 10)

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Quando, nesse excerto, Vera pede ao vovô “contila”, a menina acaba unindo os

verbos contar e cantar para que o avô possa lhe transmitir novamente o objeto cultural

Teresinha de Jesus – que é uma canção, mas também uma estória e, sobretudo, tratava-

se de um lazer compartilhado entre avô (adulto) e neta (criança).

Já no fragmento seguinte, temos um registro da busca da interação pela menina,

situação que pode levá-la a começar a relacionar-se, performativamente, com a cultura

apresentada pelo avô.

Aqui, não só constatamos que a menina conhecia a relação estabelecida entre o

ato de ler e o de usar os óculos, como também nos defrontamos com várias

possibilidades de interpretração: ou Vera estaria brincando, fazendo uma birra infantil

ou ela quis expressar que estaria se sentindo apartada e triste quando o Vovô não mais

contava ou cantava para ela e com ela, ficando solitariamente entretido no ato da leitura

– atividade que não podiam compartilhar plenamente, já que ela ainda não podia ler.

Cabe aqui citar a fundamental colocação de Ítalo Calvino: “Vivemos num mundo onde

tudo já foi lido, antes mesmo de existir” (CALVINO, 1996, p. 143), talvez fosse mais

rico se o Vovô deixasse a segurança da palavra escrita e mergulhasse na experiência do

mundo sem direção pré-determinada, que é a via oferecida pela pequena.

Enfim, chegamos ao último fragmento sobre Ooó registrado pelo Vovô nos

Cadernos:

Figura 3.28 – Fragmento com citação de Vera Tess (Ooó). “Verinha (Ooó = – Eu vou tirar seu ócus, eu voudeixar você não ler...”. A menina mostra que sabe que sem os óculos o vovô não consegue ler.Fonte – (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2256, p. 09.)

Figura 3.29 – Fragmento com citação de Vera Tess (Ooó). Verinha ia dizer algo e esqueceu, então ela mesmaexplicou: “sumi”, querendo dizer “esqueci”.Fonte – (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2256, p. 17)

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Com esse registro, Verinha confunde sua existência com a capacidade (ou

incapacidade) de se expressar oralmente – numa reformulação sui generis da lógica

cartesiana em “falo, logo existo” – , como que comprovando que ela se encontra em

meio ao processo de formação da própria subjetividade.

Para terminar de abordar o tema dos Cadernos, cabe lembrar, novamente, que

dessa vez as menções aparecem em um exemplar que teria sido muito importante para o

autor, a saber, aquele que foi assinalado por sua esposa na capa, conforme se observa a

seguir:

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Figura 3.30 – Capa do Caderno ACGR 2256. Na etiqueta “pertence a”, a sra. Aracy escreveu em canetaazul: “Com este caderno meu Joãozinho passou as últimas horas da sua vida aqui. Novembro 19-11-1967”Fonte – (ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2256, capa)

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Ainda no dia da morte do autor, João Guimarães Rosa deixou um último apelo

em bilhete desenhado para que Vera Tess permanecesse mais uma semana com ele e

Aracy no Rio:

Analisando esse bilhete, é possível perceber momentos quase sem figuração –

que consistiriam em traços próprios das expressões de Vera na época, criança ainda tão

pequena –, além de algumas representações mais materializadas, constituindo talvez a

marca mesma da interação com Rosa. Anos depois, já adulta, com a publicação do livro

Ooó do vovô, Vera comenta esse último dia que passou com o Vovô Joãozinho:

Vovô Joãozinho não era meu avô biológico, mas meu avô de coraçãoe de fato, o único que conheci. [...] Quando ele morreu, num domingo,

Figura 3.31 – Bilhete desenhado do Vovô Joãozinho pedindo que Vera permanecesse no Rio por mais umasemana: “Roteiro do que fariam juntos naquela semana/ 20.11 – comprar bolsa e sapatinho/ 21 a 24.11 –passeios na praia, no Jardim Zoológico, nos parques.../ 25.11 – Guimarães Rosa ia viajar para o Paraguai peloItamaraty/ 26.11 –Vera voltaria para São Paulo com a avô Aracy, de ônibus.”Fonte – (ROSA, 2003, p. 63)

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19 de novembro de 1967, eu tinha quatro anos e três meses. Três diasdepois da posse na Academia Brasileira de Letras. Estávamos no Riopara a cerimônia, meus pais e eu. Meus pais voltaram para SãoPaulo na manhã do dia 19, e eu fiquei.Todos os domingos, quando eu estava no Rio, minha avó e eu íamos àmissa ao final da tarde, na igrejinha do Forte de Copacabana, eu ficavajusto ao lado do edifício. Na volta para casa, eu levava pipoca paraele. Naquele domingo, ao entrar no salão dos fundos, onde ficava seuescritório, encontrei-o parado em frente à escrivaninha echamando-me... “ooó”. Soube depois: estava tendo o enfarte.Em minha última lembrança, ele está deitado num dos quartos, vestidocom o fardão da Academia Brasileira de Letras, muita confusão noapartamento. (TESS, 2003, p. 12)

Partindo desse depoimento, conseguimos visualizar a cena vista por Ooó ao

entrar no escritório do avô, ele possivelmente defronte a esse Caderno sentado em sua

escrivaninha, pronunciando a sequência gutural de o’s, que ela entendeu como sendo

um chamamento, mas que na verdade poderia igualmente representar uma forma

derradeira de expressão, pré-verbal, desse homem que foi tão apaixonado pelas

palavras.

3.2 Escrita Caleidoscópica de Guimarães Rosa

“A linguagem é caderno.”(Katherine Ramírez, 7 anos. In: Javier NARANJO (org) – Casa das estrelas, 2013)

Concluindo essa passagem fascinante pelos Cadernos manuscritos de Guimarães

Rosa, vimos que eles são compostos por registros de discursos de Outros, caracterizados

por uma gama imensa de cores e sons, de diferente tamanhos, natureza e função,

propiciando exercícios vários de escrita que servirão de alimento para que aquela

criação literária se realize. Naquela estrutura fragmentada, as pausas marcam o ritmo

entre o silêncio e as formas de se expressar, como se ali Rosa brincasse de montar sua

escritura que é como um caleidoscópio, no qual cada fragmento ganha movimento ao

toque do autor ou de algum leitor que reaviva aquele processo de criação, formando-se

ali, então, imagens infinitas.

O que estrutura essas coleções de enunciações é um ritmo interno que lhes dá

corpo e faz com que o caleidoscópio não pare de girar, mantendo sempre o processo de

significação ativo: a cada vocábulo em processo de revitalização, a cada expressão do

impronunciável, a cada discurso recortado, a cada memória da infância, em cada

anedota recontada, em todos esses movimentos entrevemos uma nova possibilidade de

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dar um salto de percepção e atingir um estado de graça que nos libere das amarras do

tempo linear. Se esse arcabouço era importante para a escritura rosiana, ele também se

apresenta como uma forma ativa de questionamento da História tradicional, como

queria nosso autor, uma vez que, estando em constante processo de significação, o

tempo nunca estaria cristalizado, mas sim em permanente processo de recriação

ficcional.

Assim sendo, por fim, ficou-nos clara e evidente a estreita relação de Guimarães

Rosa com seus espaços escriturais: foi junto a um deles – justamente aquele no qual a

netinha Vera Tess foi tão citada – que ele passou suas últimas horas de vida. Deixamos

para o final uma imagem que por si só nos permite dizer que as crianças, e em especial

as meninas – figuradas no esboço de contornos quase que infantis na etiqueta desenhada

–, faziam parte daquele processo escritural:

Figura 3.32 – Brochura trazendo um grande São Jorge vencendo o dragão aos olhos de uma Nossa Senhora.O mais interessante é a etiqueta no lado esquerdo, com o desenho de uma menina.Fonte – (ROSA, IEB JGR-CADERNO 19, capa).

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Capítulo 4: As quatro meninas das estórias

“Menininha do meu coraçãoEu só quero você

A três palmos do chãoMenininha, não cresça mais não

Fique pequenininha na minha cançãoSenhorinha levadaBatendo palminha

Fingindo assustadaDo bicho-papão

Menininha, que graça é vocêUma coisinha assim

Começando a viver ...”(Vinícius de Moraes & Toquinho – Valsa para uma Menininha, 1980)

Na literatura de Guimarães Rosa o tema infância sempre foi associado pela

fortuna crítica à imagem da personagem criança do sexo masculino, ao menino, que

constituiria também uma espécie de resgate do menino Joãozito exercitado pelo autor

(cf. GUIMARÃES, 2006; FLORA, 2008):

Encontra-se na obra de Guimarães Rosa outros momentos em quereaparece o Menino ou surgem novos meninos e meninas. Porém naspáginas a que me refiro (as estórias Campo Geral e NenhumNenhuma), as de maior autenticidade, se resume o essencial. Reunidoso cândido Miguilim e o Menino saudoso, surpreende-se, em síntese(da infância?), toda uma extraordinária sensibilidade poética.(LISBOA, 1991, p. 178)

Entretanto, considerando especialmente todo o material consultado durante esta

pesquisa dedicada à presença da infância na escritura de Guimarães Rosa – com

especial destaque aos anos 1960 –, é marcante a presença da figura de meninas. Fossem

netas, personagens criadas ou lidas, o que parece relevante é que tal aspecto pode até

contrastar, em certa medida, com a propalada figura do Menino88, sempre lembrada

como símbolo do “motivo infantil na obra rosiana” (LISBOA, 1983).

Não deixando de reconhecer a importância da imagem da criança do sexo

masculino para o mundo rosiano, mas pretendendo igualmente salientar a existência de

outras imagens da infância presentes nas estórias de Guimarães Rosa, destacamos em

sua obra a presença de muitas personagens meninas. Ainda que elas já tenham sido

citadas em estudos que procuravam destacar a figura do Menino como principal

88 Apontando a figura dos meninos como imagem da infância na obra rosiana destacam-se alguns textosmais relevantes da fortuna crítica (RESENDE, 1988, p 25-46; HENRIQUE; HOLANDA, 2011, p. 63-76;PACHECO, 2006, p. 25- 70).

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símbolo da infância em determinada obra, apenas no trabalho de Irene Gilberto Simões

(SIMÕES, 1982) encontramos uma leitura mais atenta a essas personagens, tal como

estamos propondo executar aqui.

Estranha nos parece tal escassez crítica no tocante às meninas nas estórias, uma

vez que elas são personagens bastante complexas: nem sempre são crianças, podendo

ser mulheres adultas ou idosas que, em algum momento, foram caracterizadas por Rosa

como meninas.Isso pode indicar uma ideia de infância que já não estava mais centrada

apenas em definições de idade cronológica, marcando certa contemporaneidade na

acepção de infância nas estórias, muito embora, a partir da década de 1970 – logo em

seguida da morte de Guimarães Rosa em 1967 –, o movimento feminista passasse a

considerar uma infantilização ofensiva tratar mulheres adultas como meninas.

Em geral, podemos observar que a figura do menino aparece nos textos de Rosa

como uma criança sensível que, ainda que melancolicamente, tenta driblar a opressão do

mundo imposta pelo mundo adulto. Já as meninas das estórias, em sua maioria, são mais

libertas e irreverentes, sendo tantas vezes personagens anedóticas, representando

diferente face da infância. Apresentamos abaixo um esquema das Meninas encontradas

nos textos rosianos publicados na década de 1960.

Esquema: As 15 meninas das estórias de Guimarães Rosa publicadas nadécada de 1960

- Nas Primeira Estórias – (total no livro: 7 meninas) 4 meninas crianças, 1 meninaadulta, 1 menina idosa e 1 memória dos tempos de menina;

- Em Fita verde no cabelo: a nova velha estória – 1 menina criança;

- Em Tutaméia (Terceiras Estórias) – (total no livro: 7 meninas) 2 meninas criançaspersonagens das estórias, 3 meninas crianças personagens de anedota e 1 menina adultapersonagem de estória.

Em resumo, as caracterizações dessas 15 meninas presentes na produção literária

rosiana se apresentam da seguinte maneira:

A – As Meninas crianças (total de 10 na produção rosiana da década de 1960)

1. Nhinhinha (“meninha miúda e cabeçudota”) – Livro Primeira Estórias (1962),Estória A Menina de lá;

2. Brejeirinha (uma das 3 “meninas dos olhos de mamãe, que brincavam de boneca”) –Livro Primeira Estórias (1962), Estória Partida do audaz navegante;

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3. Ciganinha (outra das 3 “meninas dos olhos de mamãe, que brincavam de boneca”) –Livro Primeira Estórias (1962), Estória Partida do audaz navegante;

4. Pele (mais uma das 3 “meninas dos olhos de mamãe, que brincavam de boneca”) –Livro Primeira Estórias (1962), Estória Partida do audaz navegante;

5. Fita Verde (“Meninazinha, a que por enquanto” – não teria juízo) – Artigo Fita verdeno cabelo: a nova velha estória (1964);

6. Menina do sertão (a que propõe uma ‘adivinha’) – Livro Tutaméia (TerceirasEstórias) (1967), Anedota em Aletria e Hermenêutica;

7. O Viaduto (“guriazinha de quatro anos”) – Livro Tutaméia (Terceiras Estórias)(1967), Anedota em Aletria e Hermenêutica;

8. A Risada (“Menina em visita ao protético”) – Livro Tutaméia (Terceiras Estórias)(1967), Anedota em Aletria e Hermenêutica;

9. Djaiaí (“A menina, mão na boca, manhosos olhos... sua presença não dominava1/1.000 do ambiente) – Livro Tutaméia (Terceiras Estórias) (1967), EstóriaTresaventura;

10. Menina Ooó (“menina, neném, ooó, menininha de inéditos gestos”) – LivroTutaméia (Terceiras Estórias) (1967), Estória Mechéu.

B – As Meninas adultas (total de 2 na produção rosiana da década de 1960)

11. Menina Grande (“Nhinhinha costumava também dirigir-se à mãe desse jeito:Menina Grande”) – Livro Primeira Estórias (1962), Estória A Menina de lá;

12. Menina amante (“Ela, maternal com suas velhinhas, custódias, menina amante: avovozinha”) – Livro Tutaméia (Terceiras Estórias) (1967), Estória Arroio das Antas.

C– Menina idosa (total de 1 na produção rosiana da década de 1960)

13. Nenha (“ela também menina ancianíssima”) – Livro Primeira Estórias (1962),Estória Nenhum, nenhuma.

D – Meninas rememoradas (total de 2 na produção rosiana da década de 1960)

14. Maria Exita (“não lembrava a menina, feiosinha, magra, historiada de desgraças,trazida, havia muito, para servir na fazenda”) – Livro Primeira Estórias (1962), EstóriaSubstância;

15. Flausina (“Eu era menina, me via vestida de flores”) – Livro Primeira Estórias(1962), Estória Esses Lopes.

Se propusermos um recorte ainda mais específico nesse universo de 15 meninas,

é porque julgamos mais relevante atentar para as que são crianças e protagonistas das

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estórias nas quais aparecem, tendo, portanto, toda a narrativa montada a seu redor,

sustentando-lhe e construindo-lhe significados, além de apresentar outra configuração

da infância. Dessa forma, são quatro as personagens cujo perfil se coaduna com esse

filtro: Nhinhinha, Brejeirinha, Fita Verde e Djaiaí.

4.1 Nhinhinha

A caracterização dessa personagem protagonista primeiramente apontada pelo

título da estória A Menina de lá é assim tecida:

E ela, menininha, por nome Maria89, Nhinhinha dita, nascera já muitopara miúda, cabeçudota e com olhos enormes.Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, nãoqueria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde seachasse, pouco se mexia. (NHI, p. 17)90

Já a partir de tal descrição, traçamos um perfil essencial da personagem: ela era

uma criança filha de uma família católica, o que estaria expresso em seu próprio nome,

ainda que depois ela ficasse conhecida por outra designação, a saber, a

alcunha,“Nhinhinha”, apelido que parece concentrar simultaneamente uma delicadeza –

através da sua forma diminutiva que reforça sua condição de criança pequena – e as

alegrias da fala – que aparecem na sequência nasal de três nh91, carregando significados

sonoros e prosódicos essenciais para o português falado no Brasil.

Ela, apesar de ser pequenina, tinha olhos grandes para observar o mundo a seu

redor, mas parecia estar sempre concentrada em seu mundo interno, já que “quando

vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Não

se importava com os acontecimentos”, permanecendo sempre “tranquila, mas viçosa em

saúde” (NHI, p. 18), o que fazia com que ninguém tivesse “real poder sobre ela, não se

89 Na simbologia universal, Maria é um nome bíblico, muito popular em vários países, pois assim sechamava a mãe de Jesus, além de o nome muitas vezes indicar uma referência ao feminino.90 Para ressaltar que nosso interesse está focado na personagem menina Nhinhinha, enquanto estivermosanalisando ou interpretando A Menina de lá, convencionamos fazer a referência à estória por meio dasigla NHI, seguida da página do trecho, a fim de indicar que estamos citando a referida obra rosiana(ROSA, 1978).91 Em tupi, o termo nheê nheê nheê significa ‘falar’ ‘falar’ ‘falar’ (MARTINS, 2001, p. 352). Aindaacerca da forma nasal nh, cabe lembrar que “nhenhenhém, triplicação do verbo nativo, tão presentenaquele dispensável exercício de eloqüência. Nhenhenhém vale falar, falar, falar... Teria sido, nalinguagem usual dos povoadores europeus, um dos primeiros brasileirismos” (CASCUDO, 1986, p. 52).Para Mário de Andrade, a importância da pronúncia nasal do português usado no Brasil é umacaracterística capaz de condensar, na esfera da língua, as misturas culturais que se operaram no país (aeuropeia, a africana e a indígena), distinguindo-o de outras dicções do idioma português pelo mundo(ANDRADE, [1965], p. 121-141).

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sabiam suas preferências” (NHI, p. 18), tornando mais dificultoso puni-la: “bater-lhe,

não ousassem; nem havia motivo” (NHI, p. 18). De qualquer forma Nhinhinha guardava

muito respeito por seus progenitores, ainda que os enxergasse como vivendo em plena

meninice e que tal reverência “parecia mais uma engraçada espécie de tolerância”(NHI,

p. 18). Ainda acerca da relação com os pais, “Nada a intimidava. Ouvia o pai querendo

que a mãe coasse um café forte, e comentava, se sorrindo: - ‘Menino pidão... Menino

pidão..’” (NHI, p. 18). Aqui, nota-se que é a própria menina quem efetua uma virada

nas posições hierárquicas antes determinadas pela visão do adulto, quando ela é quem

caracteriza o pai como criança. Também a mãe entra em tal caracterização, já que ela

“costumava também dirigir-se à mãe desse jeito: - ‘Menina grande... Menina grande..’”

(NHI, p. 18). Percebendo essa reação da criança no embate, “pai e mãe davam de

zangar-se” (NHI, p. 18), mas sua resposta primava sempre pela doçura e suavidade:

“Nhinhinha murmurava só: - ‘Deixa... Deixa.. .’ - suasibilíssinia92, inábil como uma

flor” (NHI, p. 18).

Destacando o cenário do conflito cultural, lemos na estória que, se Nhinhinha

era minúscula e tinha cabeça grande, isso não era devido a uma má alimentação, afinal

“Botavam para ela a comida, ela continuava sentada, o prato de folha no colo, comia

logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse mais gostoso e atraente, e ia

consumindo depois o resto, feijão, angu, o arroz, abóbora, com artística lentidão” (NHI,

p. 17). Tal calma e passividade parecia ser sua característica mais estranha aos adultos,

já que eles diziam “a gente se assustava de repente. – ‘Nhinhinha, que é que você está

fazendo?’” (NHI, p. 18), e a resposta não vinha rápida ou completa, como se desejava:

“- ‘Eu... to-u... fa-a-zendo.’ Fazia vácuos” (NHI, p. 18).

Se pensarmos nesse ensimesmamento de Nhinhinha, a partir do título A Menina

de lá, podemos indagar: tal aspecto indicaria algum lugar exterior ao ambiente do texto

ou o seu mundo interior, o qual ela habitava com extrema tranquilidade? Se assim for,

poderíamos ler o nome da estória de outro jeito, podendo ser A menina “dela”, a que

“não incomodava ninguém, e não se fazia notada” a não ser pelos seus “silêncios” (NHI,

p. 17), o que reforçaria ainda mais o conflito entre a lógica operada pela linguagem

adulta e pela infantil, algo evidenciado no texto de Guimarães Rosa se atentarmos para

92 Suasibilíssima: “muito persuasiva, forma superlativa de virtual suasível, variação de suasivo, ‘própriopara persuadir’” (MARTINS, 2001, p. 470).

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o fato de que Nhinhinha, apesar de ser in-fante (ser que não fala), tem suas falas (voz

ativa) sublinhadas93.

De qualquer forma, apesar de ela falar, aos ouvidos dos adultos a seu redor a

menina nada dizia, já que, como disse o seu pai “- ‘Ninguém entende muita coisa que

ela fala’” (NHI, p. 17), ao que a personagem ainda segue explicando que isso ocorre

“Menos pela estranhez das palavras” que ela usava, afinal “só em raro ela perguntava,

por exemplo, - ‘Ele xurugou94?’”, ao que nunca se saberia “quem e o quê”. No entanto,

o que mais destacava o estranhamento da fala da menina era o “esquisito do juízo ou

enfeitado do sentido” (NHI, p. 17). Assim, se a sensibilidade adulta estava imune aos

“enfeitados” da linguagem infantil, os conteúdos da fala de Nhinhinha não eram usuais:

“- ‘Tatu não vê a lua..’ - ela falasse” (NHI, p. 17), demonstrando que não só os

vocábulos estranhavam, mas também o conteúdo e a forma de suas expressões: “referia

estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou ou para uma nuvem;

de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida,

comprida, por tempo que nem se acabava” (NHI, p. 17). Nesses curtos fragmentos de

narrativa, com os quais Nhinhinha se comunicava, não se deixava de tentar alertar para

coisas que importam, tais como “a precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia

por dia a gente vem perdendo” (NHI, p. 17). Se ela não caprichava no discurso, evocava

“só a pura vida” (NHI, p. 17).

Como já salientamos, apesar de causar estranhamentos pelo seu excesso de

lirismo, “em geral, Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e

não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios” (NHI, p. 17).

É nesse momento da narrativa, no qual é parcialmente revelada a sua idade, que

sabemos que se trata de uma menina na primeira infância, que não perturbava e nem

“parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma” (NHI, p. 17).

Seguindo adiante no texto, o narrador nos diz que “Nhinhinha gostava de mim.

Conversávamos, agora” (NHI, p. 18). Assim, nesses diálogos que estabelece com o

narrador – que atua nessa estória como um intermediador cultural entre a lógica adulta e

a infantil –, as conversas são encharcadas da perspectiva poética da menina, já que ela,

ao contrário do que lhe era de costume, ia mostrando algumas coisas de seu interesse ao

93 Esse destaque aparece como grifo no texto publicado no jornal em 1961 e também nas edições dePrimeiras Estória da José Olympio, transformando-se em itálico nas mais recentes edições da editoraNova Fronteira. Aqui, optamos pelo uso do itálico.94 Xurugar consiste em“vocábulo inventado de significado indeterminável e o autor revela com ele aestranheza da menina que o usou, dotada do poder de criar palavras” (MARTINS, 2001, p. 531).

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narrador: “Ela apreciava o casacão da noite – ‘Cheiinhas!’ - olhava as estrelas, deléveis,

sobre-humanas. Chamava-as de ‘estrelinhas pia-pia’. Repetia: - ‘Tudo nascendo!’ - essa

sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso” (NHI, p. 18).

A exposição de sua lógica particular prossegue: “E o ar. Dizia que o ar estava com

cheiro de lembrança – ‘A gente não vê quando o vento se acaba...’” (NHI, p. 18), Com

essa perspectiva tão poética, a menina alerta o adulto para como a luz das estrelas a

permitiram identificar a renovação do mundo ao redor, uma vez que tudo estava

pulsando como se fosse a primeira vez.

É o narrador adulto, depois de tantas conversas com a criança, quem consegue

indicar uma perspectiva crítica acerca da forma como Nhinhinha era vista e

especialmente ouvida pelos que estavam a seu redor, que se perguntavam: “Seria

mesmo seu tanto tolinha?” (NHI, p. 18), ao que o narrador então esclarece que “O que

falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: - ‘Alturas de urubuir...’

Não, dissera só: - ‘...altura de urubu não ir’” (NHI, p. 18). Ela, então, já nos aparece

como uma menina não mais tão estranha, pelo contrário, como uma criança até bastante

simples: “Estava no quintal, vestidinha de amarelo [...] O dedinho chegava quase no

céu” (NHI, p. 18). No entanto, é nesse momento da narrativa que suas reais

peculiaridades vão começar a aparecer: “Lembrou-se de: - ‘Jabuticaba de vem-me-ver..’

Suspirava depois:- ‘Eu quero ir para lá.’ Aonde? – ‘Não sei.’” (NHI, p. 18). Isso

porque a criança, tal qual um pássaro95, estava com as antenas ligadas para tudo o que

estabelecia o movimento entre a terra e o céu (o lá do título?). Aliás Nhinhinha

“observou – ‘O passarinho desapareceu de cantar...’ De fato, o passarinho tinha estado

cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele

se interrompera” (NHI, p. 18), mostrando que a sensibilidade infantil é mais aberta ao

que os adultos se acostumaram a ouvir. Em seguida, o narrador disse-lhe: “- ‘A

avezinha.’ De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de ‘Senhora Vizinha...’”

(NHI, p. 18), mostrando que para ela também podia acontecer ouvir algo difícil quando

se lhe fala algo comum.

Nhinhinha também “tinha respostas mais longas: - ‘E eu? Tou fazendo saudade.’

Outra hora, falava-se de parentes já mortos, ela riu: - ‘Vou visitar eles..’ Ralhei, dei

conselhos, disse que ela estava com a lua. Olhou-me, zombaz, seus olhos muito

95 O “vôo dos pássaros os predispõe, é claro, a servir de símbolos às relações entre céu e terra. Em grego aprópria palavra foi sinônimo de presságio e de mensagem do céu. [...] De modo ainda mais geral, ospássaros simbolizam os estados espirituais, os anjos, os estados superiores do ser” (CHEVALIER;GHEERBRANT, 1994, p. 687).

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perspectivos: - ‘Ele te xurugou?’” (NHI, p. 19), sendo a pergunta deixada ao narrador

na última vez que ele viu a menina. Só depois desse afastamento “ela começou a fazer

milagres96. Nem mãe nem pai acharam logo a maravilha, repentina. Mas Tiantônia”

(NHI, p. 19). Embora a estória indique que esses não foram os únicos, os atestados

milagres, que teriam sido realizados por Nhinhinha em vida, os narrados no texto

somam três desejos expressos por ela, que acabaram sendo concretizados, além de um

último possível prodígio:

Parece que foi de manhã. Nhinhinha, só, sentada olhando o nadadiante das pessoas:- “Eu queria o sapo97 vir aqui”. Se bem a ouviram,pensaram fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre.Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo. Mas, aí, reto, aospulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhínhinha - e não osapo de papo, mas bela rã98 brejeira, vinda do verduroso, a rãverdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: - “Estátrabalhando um feitiço...” Os outros se pasmaram; silenciaramdemais. (NHI, p. 19)

Esse primeiro milagre relatado, como vimos, veio amparado e legitimado pelo

aparecimento de sapos e rãs99, figuras tradicionais do ambiente mágico, sendo que o

anfíbio é que chegou até a menina que, segundo sua própria fala, estava em pleno

trabalho mágico. Mas os milagres não param nesse primeiro desejo, pois

96 Milagre: fenômeno interpretado como intervenção divina; algo extraordinário, que não se explica pelasleis da natureza e que causa admiração e espanto. (FERREIRA, 2010)97 Sapo: (Bufos spp), anfíbio vertebrado da família dos anurus de hábito crepuscular, que coachaprincipalmente ao anoitecer e talvez por isso apareça em tantos acalantos. Silvia Machado, psicóloga comprática em atendimento pós-natal, escreve em sua tese de doutorado sobre a canção de ninar: “Acrescentouma observação advinda da prática com gestantes e famílias de recém-nascidos: é comum pais, mães eirmãos pequenos, diante de imagens ultrassonográficas do útero em gestação, referirem-se ao embrião, ouposteriormente ao feto, como ‘sapinho’ ou com a expressão ‘parece um sapo’. Ouvimos esta expressãotambém dirigida para o próprio recém-nascido, especialmente quando nu, ou quando acomodado debruços, com as perninhas dobradas, sob o tórax de algum adulto. Além de semelhanças pelas aparências,o fato de o desenvolvimento deste anfíbio iniciar-se em meio aquático e evoluir para o terrestre, produz,talvez, essas associações com o desenvolvimento inicial do humano. (Associa-se frequentemente,também, a forma do espermatozoide à do girino)” (MACHADO, 2012, p. 237). Lembrando que o sapo éfigura constante dos Contos de Fadas, Camara Cascudo comenta: “o sapo é um personagem vivo emtodas as literaturas orais do mundo e em todos os estados de civilização. Desde as fábulas de Esopo aoscontos populares africanos, oceânicos, chineses ou hindus, europeus ou australianos, o sapo é umelemento de representação cômica, e, às vezes de astúcia solerte e vitoriosa” (CASCUDO, 1984, p. 696-7).98 “Rã: (Rana pipiens) é um anfíbio da família dos ranídeos. É, como o sapo, universalmente tida comoprotetora das nascenças d’água. Sua presença habitual nos lugares úmidos atraiu-lhe a fama que, de certomodo, a protege, pois quem a mata arrisca-se a ver diminuída a água da fonte ou mesmo secar. [...] Certasrãs, quando coaxam, estão chamando chuva. Outras aparecem coincidentemente nas épocas chuvosas. Osindígenas denominavam essa espécie mãe da chuva, Amana-manha (Stradelli)” (CASCUDO, 1984, p.657). Para a simbologia universal, “o sapo não se distingue sempre, aliás, tão perfeitamente da rã; e osapo velho, uma vez seco, chama a chuva como a rã” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, p. 803).99 Sapos e rãs são figuras indispensavelmente ligadas a bruxarias, já que atuam “servindo de paciente paraa transmissão mágica do feitiço” (CASCUDO, 1984, p. 696).

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Dias depois, com o mesmo sossego: - “Eu queria uma pamonhinhadegoiabada...” - sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, delonge, que trazia os pãezinhos da goiabada enrolada na palha. Aquilo,quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. Oque ela queria, que falava, súbito acontecia. (NHI, p. 19)

Mas os pais logo perceberam que esses desejos milagrosos obedeciam a uma

característica: o que ela queria sempre era “muito pouco, e sempre as coisas levianas e

descuidosas, o que não põe nem quita” (NHI, p. 19). Acontece que a criança permanecia

alheia a todos os fatos a seu redor, tanto que nem mesmo quando a mãe adoeceu e

pediram-lhe que desejasse a cura, a menina apenas sorriu “segredando seu – ‘Deixa...

Deixa..’ - não a podiam despersuadir. Mas veio, vagarosa, abraçou a mãe e a beijou,

quentinha. A mãe, que a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto.

Souberam que ela tinha também outros modos” (NHI, p. 19).

Percebendo que a menina era diferente de todos, seus pais e Tiantonia “sentiam

um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão” (NHI, p. 19). Então decidiram que

iam manter segredo, para que não corressem o risco de levarem-na a um convento ou a

outro lugar, ao que se calaram acerca do assunto,“O que ao pai, aos poucos, pegava a

aborrecer, era que de tudo não se tirasse o sensato proveito” (NHI, p. 19):

Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos, gentemaldosa e interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo,quisessem tomar conta da menina, levá-la para sério convento.Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber. Também, o pai,Tiantônia e a mãe, nem queriam versar conversas. (NHI, p. 19)

Até que veio a seca, o que deve ter assustado especialmente o pai, pequeno

sitiante, levando-os então a decidir: “Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a

chuva” (NHI, p. 19), mas ela continuou irredutível: “- ‘Mas, não pode, ué..’” (NHI, p.

19), mesmo que ameaçassem dizendo “senão, se acabava tudo, o leite, o arroz, a carne,

os doces, frutas, o melado” (NHI, p. 19). Contudo, como para ela, criança, a relação

entre a chuva e a comida não era clara e direta, ela continuava dizendo “- ‘Deixa...

Deixa...’ - se sorria, repousada, chegou a fechar os olhos, ao insistirem, no súbito

adormecer das andorinhas” (NHI, p. 19). Mas dali a duas manhãs, ela pôde efetuar seu

desejo, que não era simplesmente de ver a chuva, mas sim de, liricamente, ver o arco-

íris, e então choveu: “E logo aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o

vermelho - que era mais um vivo cor-de-rosa” (NHI, p. 20). Depois de tal milagre, a

menina passou a se comportar de forma diferente, conseguindo modificar até o

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comportamento das aves: “Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a

refrescação. Fez o que nunca se lhe vira, pular e correr por casa e quintal. – ‘Adivinhou

passarinho verde?’ – pai e mãe se perguntavam. Esses, os passarinhos, cantavam,

deputados de um reino.” (NHI, p. 20)

Foi então que Tiantonia, que já lhe acenara “com o dedo” (NHI, p. 19) na hora

do primeiro milagre e constituía a voz adulta mais repressiva, recriminou a menina

“muito brava, muito forte, sem usos, até a mãe e o pai não entenderam aquilo, não

gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a ficar sentadinha, inalterada que nem se

sonhasse, ainda mais imóvel, com seu passarinho-verde pensamento” (NHI, p. 20).

Além da repreensão de Tiantonia, o texto da estória conta ainda que os pais da menina

também sonhavam com o fim da sua infância: “Pai e mãe cochichavam, contentes: que,

quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à

Providência decerto prazia que fosse” (NHI, p. 20).

Só que não houve tempo suficiente: “E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-

se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais” (NHI, p.

20). Todos sentiram muito a perda repentina da menina “Desabado aquele feito, houve

muitas diversas dores, de todos, dos de casa: um de-repente enorme. A mãe, o pai, e

Tiantônia davam conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido

por metade” (NHI, p. 20). Em meio a essa dor, era o sofrimento dos pais o que mais

fazia apertar o coração:

quando a mãe desfiava o terço, mas em vez das ave-marias podendosó gemer aquilo de – “Menina grande... Menina grande...” - com todaferocidade. E o pai alisava com as mãos o tamboretinho em queNhinhínha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia,que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava.(NHI, p. 20)

De qualquer forma, era preciso resolver as questões práticas, “mandar recado, ao

arraial, para fazerem o caixão e aprontarem o enterro, com acompanhamento de virgens

e anjos” (NHI, p. 20). Foi então que

Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele dia, doarco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha faladodespropositado desatino, por isso com ela ralhara. O que fora: quequeria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes... Aagouraria! Agora, era para se encomendar o caixãozinho assim, suavontade? (NHI, p. 20-1)

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De início, o pai não queria, achava que seria como “estar ajudando ainda

Nhinhinha a morrer...” (NHI, p. 21), mas a mãe, ao contrário, discordava com ele,

começando-se uma discução em torno da questão, até que a mãe,

no mais choro, se serenou - o sorriso tão bom, tão grande - suspensãonum pensamento: que não era preciso encomendar, nem explicar, poishavia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos,porque era, tinha de ser! - pelo milagre, o de sua filhinha em glória,Santa Nhinhinha. (NHI, p. 21)

4.1.1 Outras representações de Nhinhinha

Quando a estória da Nhinhinha foi publicada em Primeiras Estórias, em 1962,

Luís Jardim – que era conhecido ilustrador e autor de livros infantis na época – fez, a

pedido de Guimarães Rosa, alguns desenhos a bico de pena para a capa, além de

“desenhos-miniaturas” (ROSA, 1978, p. IV) para compor o sumário ilustrado das 21

estórias do volume. Como tais representações foram feitas a pedido e sob a orientação

de Rosa, consideramos que também constituem caracterizações da personagem e, por

isso, também devem ser citadas aqui.

Para a capa, Luís Jardim desenhou da seguinte maneira a estória de Nhinhinha,

em fundo amarelo:

Figura 4.1 – Desenho representando A Menina de Lá, feito por Luís Jardim, para a capa do livro PrimeirasEstórias, de 1962.Fonte – (ROSA, 1978, capa).

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Nessa ilustração, temos desenhos em estilo simples, como se tivessem sido

desenhados por crianças e obedecessem a essas iniciais percepções estéticas do ser

humano. Primeiramente, vemos uma criança estilizada de corpo inteiro, com um

vestidinho enfeitado de bolinhas escuras – que, com o fundo monocromático da capa do

livro, se encaixa perfeitamente na caracterização que a menina recebe no texto,

“vestidinha de amarelo” – e um enorme laço de fita no cabelo. Em seguida, vê-se a

imagem do rosto da menina “cabeçudota e com olhos enormes” em zoom, e, atrás de

tudo, a imagem da rã “trabalhanhado um feitiço”.

Para compor o sumário ilustrado do livro, Luís Jardim representou assim a

Menina de lá:

Nessa ilustração, além do aspecto minimalista dos pequenos desenhinhos,

podemos ver dois emblemas místicos: no início da ilustração, ♋, símbolo do signo de

câncer (caranguejo), o mesmo de Guimarães Rosa, e, na outra ponta, a lemniscata ∞,

símbolo do infinito que constitui igualmente uma referência à busca do mundo

espiritual, de um equilíbrio na vida. Além dessas imagens, podemos ver cinco

pequeninas iluminuras circulares dentro das quais são representados instantes vividos na

estória de Nhinhinha: no primeiro, “Ela apreciava o casacão da noite – ‘Cheiinhas!’ -

olhava as estrelas, deléveis, sobre-humanas. Chamava-as de ‘estrelinhas pia-pia’.

Repetia: - ‘Tudo nascendo!’” (NHI, p. 18); no segundo, o ambiente do sítio onde

morava: “O pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a mãe, urucuiana nunca

tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em

alguém” (NHI, p. 17); o terceiro, círculo central, traz apenas a imagem da menina

miúda; no quarto, a vemos perto da “bela rã brejeira [...] trabalhando um feitiço” (NHI,

p. 19) e, no quinto e último círculo, encontra-se representada uma de suas falas que

Figura 4.2 – Desenho-miniatura sobre A Menina de Lá, feito por Luís Jardim, para o sumário ilustrado do livroPrimeiras Estórias, de 1962.Fonte – (ROSA, 1978, p. IV).

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causou estranhamento nos adultos: “- ‘Alturas de urubuir...’”, frase que o narrador

depois explicou como sendo má interpretada pelos adultos, ouvindo-a erroneamente, já

que o que a menina tinha dito era apenas: “‘altura de urubu não ir’” (NHI, p. 18. Com

essa ilustração, temos reforçadas as características descontínuas e instantâneas do

mundo da criança, uma vez que o que nos apresenta são iluminuras, miniaturas,

desenhos, que são como as estórias que Nhinhinha contava: “absurdas, vagas, tudo

muito curto” (NHI, p. 17). Tais características, tão caras ao universo infantil, também

podem ser destacadas nas anedotas, já que devido a sua curta extensão, seus elementos

fundamentais acabam sendo destacados por serem aprofundados e sintetizados. Se

lembrarmos aqui dos já citados postulados de Rosa, presentes em seu prefácio Aletria e

hermenêutica, segundo os quais a estória, contemplada como uma anedota, relaciona-se

ao mecanisno mítico, visto que ela “sintetiza, em si, o próprio geral mecanismo dos

mitos – sua formulação sensificadora e concretizante, de malhas para capturar o

incognoscível” (ROSA, 1967, p. 05), podemos igualmente aproximar estória, anedota,

mito e a busca de Deus, mistério atemporal metafísico por excelência: “movente

importante símbolo, porém, exprimindo possivelmente – e de modo original – a busca

de Deus (ou de algum Éden pré-prisco, ou da restituição de qualquer de nós à

invulnerabilidade e plenitude primordiais)” (ROSA, 1967, p. 04).

4.1.2 Fortuninha crítica de A Menina de lá

Foi em 06 de maio de 1961 que, no jornal O Globo do Rio de Janeiro, publicou-

se pela primeira vez a estória A Menina de lá, constituindo, então, o pontapé inicial da

publicação de um projeto de construção da representação da infância na obra de

Guimarães Rosa, encetado durante a década de 1960, cujos ditames escolheria como

protagonistas as personagens meninas. A primeira delas, como vimos, foi Nhinhinha, a

“menina de lá”, protagonista que começa ganhando uma estória só para ela, fato

indicado pelo título, que nos revela também que ali se falará de uma criança do sexo

feminino.

No contexto geral da crítica aos textos escritos por Guimarães Rosa, suas

estórias dos anos 1960 foram menos abordadas que os primeiros textos escritos pelo

autor. Sobre elas, constam apenas comentários rápidos em meio a outros temas, fato que

nos levou, visando inclusive destacar sua peculiaridade, a chamar o levantamento dos

comentários críticos acerca delas de Fortuninha critica, até porque eles também são

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poucos em quantidade. Pensando então na Fortuninha critica das quatro estórias

protagonizadas por meninas que selecionamos abordar aqui, a de A Menina de Lá é, sem

dúvida, a maior, visto ela ser lembrada tanto em textos sobre o livro Primeiras Estórias

(1962) como também em estudos sobre a escrita rosiana. Dentre eles, selecionamos sete

comentários que destacam a maneira como Guimarães Rosa executa a representação

infantil, seja ela operada através da relação peculiar com a linguagem que a menina

executa, os conflitos culturais estabelecidos ou mesmo comentando suas prováveis

relações místicas ou míticas. Na sequência, vamos elencá-los detalhadamente.

Segundo Micheliny Verunsck, destaca-se nessa estória a relação íntima entre a

palavra e a vida, estabelecida pela criança, constituindo motivo de espanto para os

adultos:

No conto A Menina de Lá, Nhinhinha, de menos de 4 anos, vive apalavra em estado poético, espantando os adultos que não sabem queviver e fazer poesias são mesmo uma coisa só. Basta falar que amenina tem qualquer desejo magicamente realizado, numaradicalização tanto da força da palavra selvagem e limpa de vícioscomo a onipotência infantil. [...] Nhinhinha como poesia natural,anímica, não é desse mundo, é de lá, de outra lógica, de outra relaçãocom a linguagem e com a natureza. Ela não se diferencia dessasinstâncias.” (VERUNSCK, 2008, p. 42)

Já de acordo com os estudos de Irene Gilberto Simões, os desejos realizados de

Nhinhinha consistiam em caminhos abertos pela sua original lida com a linguagem, pois

para ela a palavra estava realmente carregada de magia e, por isso, tornava-se

realização:

Nininha [sic], a menina quieta e estranha, cuja linguagem ninguémentendia, formulava pequenas estórias incompreensíveis. Movendo-senum pequeno mundo ilimitado, mágico, a menina consegue captaruma outra dimensão, daí a estranheza da sua linguagem e a insistênciaem se fazer ‘listas das coisas que no dia-a-dia a gente vem perdendo’.(SIMÕES, 1982, p. 76)

Claro que tal relação soa ao adulto, não habituado em decifrar discursos dessa

ordem em seu cotidiano, como “enfeitados de sentido”, já que,

Para Nininha [sic], a palavra é carregada de magia, o querer identifica-se com o realizar. Isso ocorre principalmente no plano do desejo, masé possível estabelecer uma ponte com o plano da criação, pois emalgumas passagens sua fala dirige-se para o não-pronunciado: ‘o arestá cheio de lembranças’ e ‘precisão de se fazer lista das coisas todasque no dia-a-dia a gente vem perdendo’. (SIMÕES, 1982, p. 77)

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Talvez seja esse o interesse de Guimarães Rosa em se aproximar do universo e

da linguagem infantil: abrir caminhos para a criação a partir de uma visão renovada da

linguagem, expressada pelas palavras mágicas. Outra leitura que propõe de alguma

forma uma ligação entre a criação literária de Guimarães Rosa e os fenômenos

realizados por Nhinhinha, a menina que ouve melhor que os adultos os sons do mundo,

é a de Gabriela Reinaldo, cujos estudos postulam que

Nhinhinha é a menina da linguagem poética, no sentido grego poiesis,de fazer: ‘o que ela queria, falava, súbito acontecia’. [...] Neste contode Primeiras estórias, há um passarinho que canta e que o narradorno escorregar do tempo não percebe que escuta. Só Nhinhinha, dada aimobilidade e ao silêncio o ouve. [...] Nhinhinha é aquela que está aptaa ouvir o que é mudo para os ouvidos fechados aos pequenos milagresdos acontecimentos cotidianos. (REINALDO, 2005, p. 181)

Em uma leitura que envereda pela psicanálise, Yudith Rosembaum também

parte da especificidade da expressão infantil como sendo uma maneira de estilizar a

língua portuguesa utilizada no Brasil, operada na escrita literária de Guimarães Rosa:

Com a graça da linguagem, Rosa nos apresenta um ser que está noaqui e no agora do seu presente, o que o gerúndio confirma (o verbo‘fazendo’ no modo intransitivo). Ela representa uma totalidade quenão foi rompida pela civilização. É uma espécie de unidade perdidapara onde queremos voltar. (ROSEMBAUM, 2008, p. 149-50)

Esse artifício é possível ao escritor porque ele cria uma personagem que é

vida pura, não maculada, não contaminada pela finalidade dos atos.[...] Ela nos ensina uma entrega à vida que só o desapego possibilita.Sua palavra, de tão intensamente colada às coisas que evoca, passa arealizar desejos como a magia de um ‘abre-te Sésamo.’ Essa palavramágica, como não poderia deixar de ser, é também a palavra poética, ‘palavra coisa’ no dizer de Sartre, palavra que não se submete aoreferente externo, palavra autônoma, que aponta para si mesma, parasua origem. (ROSEMBAUM, 2008, p. 158)

Um dos elementos que mais chama a atenção na estória de Nhinhinha é que a

sua católica mãe, em um transe no contexto de pós-morte da menina e aventando a

possibilidade de seu último milagre, a chama de Santa Nhinhinha. Esse momento é

muito bem comentado por críticos como Paulo Rónai, que assim o resume:

Alhures, Nhinhinha, crescida no isolamento da roça, é, por isso, isentada visão convencional dos fenômenos, vislumbra-lhes os segredos emacenos que, para a testemunha culta, são manifestações elementares de

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lirismo, e, para ao parentes simplórios, emanações de santidade.(RÓNAI, 1978, p. XXVII)

Acerca desse mesmo fenômeno, também comenta algo semelhante a crítica

literária Ana Paula Pacheco:

Em A menina de lá, o milagre, tal como é visto pela família e, depois,pela comunidade, é uma narrativa do desejo que lança ao âmbito dosobrenatural a invenção poética (com efeitos empíricos) desatisfações, entretanto quase sempre sem dar conta das necessidades.[...] Jamais o milagre ou a narrativa do desejo engendra uma mudançaque remende de vez o universo de pobreza em que vivem, que sóNhinhinha conhece, matriz a partir da qual recria o que ali, para ela, écontentamento e beleza. (PACHECO, 2006, p. 43)

Um último comentário por nós selecionado é o de Benedito Nunes, em cuja

análise da estória tenta encaixar Nhinhinha na ideia de ‘personagem mítica’:

pelos seus dons divinatórios, e encantatórios, a esquisita Nhinhinha,pode ser filiada à estirpe do Menino [...]. Esses personagens – oMenino , a Menina, o Jovem – dados a encantamentos e sortilégios,munidos de dons extraordinários, e que podem ter das coisas umavisão mais completa do que a comum, pertencem a uma só famíliamítica. A infância ou a juventude é neles um estado de receptividade,de sabedoria inata. (NUNES, 1983, p. 161)

Nesse sentido, lembramos que Rosa tinha muito interesse em abordar as

questões místicas, especialmente nas Primeiras Estórias, livro sobre o qual ele próprio

comentou em carta ao seu tradutor para o francês J. J. Villard, em 14 de outubro de

1963:

Primeiras Estórias é, ou pretende ser, um manual de metafísica e umasérie de poemas modernos. Quase cada palavra, nele, assumepluralidade de direções e sentidos, tem uma dinâmica espiritual,filosófica, disfarçada.Tem de ser tomado de um ângulo poético, anti-racionalista e anti-realista [...]. É um livro contra a lógica comum, etudo nele parte disso. Só se apoia na lógica para transcendê-la, paradestruí-la. (ROSA, 2006c, p. 79)

Nas representações literárias de meninos, construídas pelo escritor nos anos

1960, as crianças do sexo masculino são chamadas simplesmente de menino ou Menino.

No caso das representações de meninas, no entanto, elas se apresentam de forma mais

abstrusa, pois, como já observamos, além de serem crianças do sexo feminino, também

podem ser meninas mulheres adultas ou mesmo meninas idosas. Além disso, no caso

das meninas crianças, elas são personagens mais bem construídas, possuindo mais

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 199

subjetividade: cada uma tem um nome que a distingue de outras personagens meninas,

por exemplo.

Depois de passarmos por um panorama de como a crítica rosiana veio lendo essa

primeira estória escrita por Guimarães Rosa e protagonizada por uma menina, chegou a

hora de construirmos nossa própria leitura de A Menina de Lá.

4.1.3 Interpretação: Passarinho-verde pensamento

“Isso é Língua de brincar e é idiotice de criança. [...]É língua de Faz-de-contaÉ língua de brincar! [...]

É coisa-nada.”(Manoel de Barros – “Poeminha em Língua de brincar”, 2007)

Através da estória da “suasibilíssima” personagem menina Nhinhinha, de menos

de quatro anos de idade, Guimarães Rosa constrói um cenário repleto de referências

simbólicas ao mundo infantil: bichos, sapos, feitiços, passarinhos coloridos, doces etc.

Estando nesse momento ainda tão inicial, é natural que a menina, única infante

apresentada na estória, apareça para o adulto como um ser ininteligível, já que

“Ninguém entende muita coisa que ela fala” (NHI, p. 17). No entanto, ela também

apresenta seus estranhamentos em relação ao mundo adulto, como na passagem em que

o narrador lhe diz “a avezinha” e ela entende “a vizinha”.

Para uma criança pequena, o mundo a seu redor é extraordinário, o que a obriga

a ativar um processo constante de significação, numa permanente busca por sentidos

para a realidade que está presente em todas as atividades infantis, já que quando brinca

o pequeno reconstrói seu universo, mesmo que seja a partir de suas concepções, ainda

em desenvolvimento, de tempo e espaço, mas sempre usando livremente seu corpo –

gestos, formas e, sobretudo, a voz – como instrumentos de linguagem que ainda não

estão submetidos a regras.

A fala de Nhinhinha – a menina que “vazia vácuos” (NHI, p. 18) – é uma típica

representação da comunicação pré-verbal infantil, visto que se enuncia no contexto da

bizarrice absoluta do mundo, ao que se está sempre buscando alguma espécie de

segurança, fato identificado em suas expressões vocais pela reprodução das

“regularidades do sistema da língua, do tipo comi, bebi, fazi” que, em relação a uma

narrativa sintaticamente correta, apresentam “problemas de natureza fônica, gráfica,

mórfica, sintática, etc.” (SIMÕES, 2006, p. 49). Entretanto, essas são ocorrências

carregadas de sentido se as considerarmos como fenômenos que estão ligados a uma

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 200

vivência da criança, que ainda não está totalmente envolvida com a construção de um

discurso que deveria submeter-se às regras gramaticais, mas que responde perfeitamente

à função básica de uma linguagem, que é falar a vida – antes de falar sobre a vida. A

questão levantada no contexto de Nhinhinha é que ela está vivendo um momento de

enamoramento inicial com a linguagem, no qual as palavras podem assumir um vasto

campo de significados, antes da já comentada fase de fixação dos sentidos, responsável

pela cristalização da palavra que se sucede ao encantamento com a linguagem, aspecto

retomado por Rosa em sua escritura.

Nesse sentido, em já citada passagem, a pesquisadora da obra rosiana Adélia

Bezerra de Meneses afirma que “nomear algo significa convocar, criar realidade da

coisa, ou antes, reconhecer essa realidade. Trata-se do valor mágico da palavra, do

poder da palavra, da palavra eficaz”(MENESES, 2010, p. 233). Nesse momento da vida,

de forma incrível, as palavras simples podem, milagrosamente, se transmutar em

palavras mágicas – que constituem termos que determinam o centro das primeiras

palavras utilizadas pelo infante e que já lhe permitem reconhecer sua função no domínio

dos discursos, conforme já salientamos nesta tese:

A criança maneja incessantemente a linguagem mágica. ‘A criançachama a mãe, a ama, o pai, a pessoa aparece. Quando ela pedecomida, é como se formulasse uma encantação mágica’ [...] Aocrescer, ela não é coagida a modificar esse hábito, pois as palavras lheasseguram sempre o domínio das coisas. (TODOROV, 1980, p. 242.)

Pensar melhor acerca dessas ideias tão libertadoras em relação à sabedoria

infantil consiste em um recurso muito utilizado entre os pensadores dos séculos XIX e

XX, quando se procurou retomar os usos criativos que as crianças fazem da linguagem,

como os movimentos das suas falas e dos seus corpos. Um interessante exemplo disso

pode ser encontrado no ideário do filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951), que

durante toda a vida esteve interessado em refletir sobre as relações entre o mundo, a

linguagem e o pensamento. Segundo Bortolo Valle, é graças às reflexões de

Wittgenstein no tocante à linguagem ordinária e aos jogos de linguagem que podemos

compreendê-los como fenômenos da nossa vida cultural:

No século XX, é forçoso reconhecer o papel desempenhado pelotrabalho filosófico de Ludwig Wittgenstein. Conseguimos reconhecersua decisiva contribuição quando da elaboração de uma Teoria doSignificado, conforme expressa na sua primeira e mais conhecida obrao Tractatus lógico-philosophicus, bem como a revisão elaborada destamesma teoria por ocasião da reunião de seus escritos tardios que

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 201

culminaram no livro Investigações filosóficas. Embora não sejaevidente a afirmação de que o modo de significação presente nasInvestigações tenha precedido a uma superação qualitativa do modoapresentado no Tractatus, é inevitável reconhecer que asconsequências acabam por determinar diferentes rumos quanto a suapossível aplicação na análise de categorias para pensar a cultura.(VALLE, 2012, p. 164)

A nós interessa destacar que, na trajetória do filósofo, foi no período

intermediário das publicações do Tractatus (1918) e das Investigações (obra publicada

postumamente em 1953), mais especificamente entre 1920 e 1926, que Wittgenstein

trabalhou como professor de crianças em fase de alfabetização na escola de uma aldeia

na Áustria e, com a participação ativa dos alunos, compôs um inovador Dicionário

Ortográfico para Escolas Primárias, no qual foram elencadas as palavras mais

utilizadas no cotidiano dos alunos. Para desenvolver esse glossário, Wittgenstein

recebia dos estudantes listas de termos comumente utilizados no cotidiano e muitas

vezes essas palavras chegavam ao professor escritas de maneira incorreta, até porque,

como já afirmamos, os alunos ainda estavam em fase de alfabetização, ao que elas eram

então corrigidas e recebiam uma acepção, aspecto no qual residia o diferencial do

léxico: as definições dadas procuravam incentivar a análise do seu contexto de

utilização no cotidiano, não se apresentando como um glossário de termos com

significados rígidos (cf. PERLOFF, 2008). Segundo a dissertação de mestrado de Maria

Fernanda de Moura Reis acerca do dicionário wittgensteiniano, seria bem provável

cogitar que tal experiência e o contato próximo com crianças, além de seu instinto em

sempre questionar os motivos e os modos pelos quais as coisas aconteciam – tal qual

sua relação mais livre com a linguagem, que tantas vezes se desenvolvia através de

jogos (cf. BAGGINI, 2006, p. 74-77) –, tenham incentivado o filósofo na elaboração da

revisão do seu ideário entre uma obra e outra (REIS, 2010, p. 106-20), até que se

chegasse a uma de suas mais conhecidas proposições, a saber, a de que “significado é

uso”, já que as palavras denotam aquilo que nós lhes atribuímos.

Mas como essa possível aproximação entre o filósofo e o mundo infantil pode

iluminar a estória de Nhinhinha? Lembramos que foi em 1929 que o pensador

apresentou a sua conhecida Conferência sobre ética, em Cambridge. Nela, disse

Wittgenstein:

E agora descreverei a experiência de maravilhar-se pela existência domundo, dizendo: é a experiência de ver o mundo como um milagre.Sou então tentado a dizer que a expressão justa na língua para o

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milagre da existência do mundo, ainda que não seja nenhumaproposição na língua, é a existência da própria linguagem.(WITTGENSTEIN, 1929 apud AGAMBEN, 2008, p. 17)

Ora, sabemos que quem se maravilha constantemente com a existência do

mundo é a criança que, como acontece com Nhinhinha, está iniciando suas vivências da

linguagem e, iluminada pela luz das estrelas, consegue enxergar “tudo nascendo”,

ouvindo sons do mundo que os adultos já não ouvem mais. A fala da silenciosa

Nhinhinha nos lembra aquilo que, em outro conto de Primeiras Estórias, o próprio

Guimarães Rosa afirmou, a saber, que, “quando nada acontece, há um milagre que não

estamos vendo” (ROSA, 1978, p. 61), advertindo que criancinhas como ela estão

naturalmente aptas a perceber o mundo como um milagre. E como estamos falando da

representação de uma criança pequena, ela também maneja incessantemente a

linguagem como se fosse um feitiço, uma vez que, quando deseja algo, é “como se

formulasse uma encantação mágica” (MALINOWSKI, 1922 apud TODOROV, 1980, p.

242). Tal fato é o que vemos acontecendo em A Menina de lá, parecendo-nos ser

também o cenário que Rosa busca resgatar em todo o livro Primeiras Estórias, no qual,

como explicou o semioticista Charles S. Pierce, se deve atentar para tudo o que

fala do mundo dos poetas e das crianças como telos privilegiado desseestado de consciência despoliciada. Quando os limites entre o eu e onão eu, quando as fronteiras entre o eu e o outro, entre os meussentimentos e o mundo estão borrados, diluídos. [...] Dizer daprimeiridade é silenciar. (PIERCE, 1958 apud REINALDO, 2005, p.210, grifo nosso)100

Se Nhinhinha está mais próxima da vivência de um recém-nascido, cujos desejos

se resumem apenas aos mais fundamentais como “comer” e “dormir”, o que a

menininha queria também não tinha maior profundidade aos olhos de um adulto, afinal

ela mesma estava imersa no tempo contínuo da palavra mágica, não estando ainda

enredada com o mundo adulto, visto que seus desejos são realizados até mesmo por

serem simples de se suprir. Por isso, quando o narrador a descreve no quintal,

“vestidinha de amarelo”, e seu “dedinho chegava quase no céu” (NHI, p. 18), podemos

lembrar o poema Céu, de Manuel Bandeira:

A criança olhaPara o céu azul.Levanta a mãozinha.Quer tocar o céu.

100 Gabriela Reinaldo cita “PIERCE, C. Colleted Papers, 1958.

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Não sente a criançaQue o céu é ilusão:Crê que o não alcança,Quando o tem na mão. (BANDEIRA, 1993, p. 200)

E Nhinhinha parece mesmo carregar dentro de si o céu, já que é ela quem tem

ponderações de “passarinho-verde”. Nesse sentido, segundo a expressão popular usada

no Brasil, quem interroga “viu passarinho verde?” expressa a

denúncia de novidade feliz, ventura, alegria. A fisionomia de quem‘viu passarinho verde’ é indisfarçável. Irradia contentamento. A corverde é atributo da Esperança, e assim denominam a um insetoLocustídeo, arauto de boas notícias [...]. ‘Ver passarinho verde’ seriaidentificar o alado pajem confidencial dos segredos. (CASCUDO,1984, p. 195)

Se ver passarinho verde carrega tão curiosa simbologia, também podemos

lembrar que os pássaros, assim como também os anjos, tal como já afirmamos aqui,

representam a intermediação entre a terra e o céu, aspecto que implica na seguinte

indagação: o que podemos então dizer sobre Nhinhinha, que não só viu um deles, mas

que o carrega em seu próprio pensamento? Além disso, essa ave, característica da

personagem, também é verde, ao que lembramos que, de acordo com a tradição

esotérica há “estabelecido um jogo de correspondências entre os pássaros, as cores, as

pulsões psíquicas” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, p. 690).

Ainda lembrando o fato de que Nhinhinha, ao tentar se comunicar, “fazia

vácuos” (NHI, p. 18), nos reaproximamos das curtas memórias de infância deixadas

pelo menino Joãozito a partir das quais sabemos, por meio da narrativa de seu tio

Vicente Guimarães sobre como teria sido o menino João Rosa, que o autor foi

igualmente um “menino quieto” e ensimesmado, ainda que em fase já maior que a

personagem Nhinhinha, tendo passado por conflitos com o mundo adulto, uma vez que

“Seu pai era bom de coração, mas rude, não compreendia o menino, no seu entender já

marmanjo, que só vivesse de livros nas mãos, vagabundo assim sendo, sem procurar o

de-que-fazer. Muitas vezes, Joãozito foi punido pelo pai para deixar livro e caçar

serviço” (GUIMARÃES, 2006, p. 39).

No caso de Nhinhinha, que era ainda bem pequenina, sua família estranhava

suas primeiras elocuções e a linguagem “enfeitada de sentido” que utilizava, como

sendo algo muito fora do normal, num conflito cultural com o mundo adulto que

também o autor da estória teria vivido em sua infância, sendo-lhe talvez interessante

tentar retomar aquela primeira intensa relação com a linguagem, de quando criança, em

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 204

seu trabalho literário, aspecto que retoma uma visão anterior à lógica cristalizada de

nosso mundo, permitindo que as coisas sejam contempladas “como se fosse a primeira

vez”. É assim, portanto, que já a primeira estória, escrita por João Guimarães Rosa e

protagonizada por uma personagem criança menina, começa operando uma

“radicalização tanto da força da palavra selvagem e limpa de vícios como a onipotência

infantil” (VERUNSCK, 2008, p. 42).

4.2 Brejeirinha

Ao contrário do que acontece com Nhinhinha, a estória Partida do Audaz

navegante não começa destacando aquela que depois será sua protagonista, a

personagem menina Brejeirinha, mas se inicia com o narrador sondando uma “pequena

casa” (BRE101, p. 100) do campo, em uma manhã “que brumava e chuviscava, parecia

não acontecer coisa nenhuma” (BRE, p. 100). Nesse ambiente de sonho, ele se volta

primeiro a Mamãe, “a mais bela” (BRE, p. 100), que “ainda de roupão” dava comandos

a Maria Eva, mulher que era uma espécie de cozinheira da casa, sobre como “estrelar

ovos com torresmos e descascar os mamões maduros” (BRE, p. 100), sendo essa a

responsável por indicar as personagens mais importantes da narrativa: suas filhas, “Suas

meninas-dos-olhos102 brincavam com bonecas. Ciganinha103, Pele e Brejeirinha104”

(BRE, p. 100). Nessa mesma manhã chuvosa, também estava no grupo o primo Zito e a

cachorra Nurka, que dormia. “Mamãe cuida com orgulhos e olhares as três meninas e o

menino. Da Brejeirinha, menor, muito mais. Porque Brejeirinha, às vezes, formava

muitas artes105” (BRE, p. 100). Destacada dessa forma pela mãe, naturalmente o

narrador também passou a se ocupar da menina menor, a fim de ver que artes ela estava

então formando, mas “nesta hora, não, Brejeirinha se instituíra, um azougue de quieta,

sentada no caixote de batatas. Toda cruzadinha, traçadas as pernocas, ocupava-se com

caixa de fósforos” (BRE, p. 100). Será que o narrador a flagrou em um raro momento de

101 Continuando a ressaltar as personagens meninas nas estórias, enquanto estivermos analisando ouinterpretando Partida do audaz Navegante, convencionamos fazer a referência à estória por meio da siglaBRE, seguida da página do trecho, a fim de indicar que estamos citando a referida obra rosiana (ROSA,1978).102 “Menina dos olhos”: “coisa ou pessoa muito estimada, preferida” (FERREIRA, 2010). Sobre o usodessa expressão nessa estória, Guimarães Rosa explica: “No texto original, há um jogo poético: menina-do-olho = pupila; daí o ‘brincar com bonecas’ – isto é, a ternura, com que a Mãe olhava as filhas”(ROSA, 2003a, p. 314).103 “Ciganinha: (flor roxa)” (ROSA, FCRB-CADERNO 2304, p. 11).104 Brejeirice: “Brincadeira, jeito divertido// não há no passo a ideia de vadiagem, patifaria, malícia,despudor, não chega a ser pejorativa. Já Brejeiro: Travesso, zombeteiro” (MARTINS, 2001, p. 80).105 “Fazer arte”: interpretamos como fazer travessura.

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calma ou estaria a menina planejando alguma arte com a caixinha? Contudo, ao atentar

para ela, o narrador pôde nos fornecer sua primeira descrição:

A gente via Brejeirinha: primeiro, os cabelos, compridos, lisos, louro-cobre; e, no meio deles, coisicas diminutas: a carinha não-comprida, operfilzinho agudo, um narizinho que-carícia106. Aos tantos, nãoparava, andorinhava107, espiava agora - o xíxixi108 e o empapar-se dapaisagem - as pestanas til-til109. (BRE, p. 100)

Foi então que a menina, enfim, fez sua arte:

esticou-se para cima, dando com os pés em diversos objetos. – “Ui,ui-te!”110 - rolara nos cachos de bananas, seu umbigo sempreaparecendo. Pele ajudava-a a se endireitar. – “... E o cajueiro aindafaz flores...” - acrescentou, observava da árvore não se interrompermesmo assim, com essas aguaceirices, de durante dias, a chuvinha nobruaar111 e a pálida manhã do céu. (BRE, p. 100-1)

Enquanto Brejeirinha assistia e participava a seu modo do espetáculo natural que

constituía a chuva, “Mamãe dosava açúcares e farinhas, para um bolo. Pele tentava

ajudar, diligentil112. Ciganinha lia um livro; para ler ela não precisava virar página”

(BRE, p. 101). O narrador, por sua vez, nos conta que Ciganinha e o primo Zito estavam

de briga de amor desde a véspera, por isso “Ciganinha e Zito nem muito um do outro se

aproximavam, antes paravam meio brigados, de da véspera, de uma briguinha grande e

feia” (BRE, p. 101). Foi então que a menina voltou a chamar a atenção para si, dizendo

um enigma: “Brejeirinha pulou, por pirueta. – ‘Eu sei por que é que o ovo se parece

com um espeto!’ -; ela vivia em álgebra113. Mas não ia contar a ninguém” (BRE, p. 101).

106 Elocução do autor que caracteriza o nariz de Brejeirinha como sendo um afago, uma expressão deafeto ou carinho.107 Andorinhar: figurativo = “saltar, correr à semelhança de andorinha; andar como andorinhas; mudar deresidência conforme a estação” (MARTINS, 2001, p. 531). Andorinha: ave migratória, que sempre chegana primavera (mesma estação em que foi publicado Primeiras Estórias em 1962) e está associada à luz, àfecundidade e à ressurreição. É também um símbolo de pureza, pois a andorinha não costuma pousar nochão e assim ela não suja os seus pés. Simbolicamente, remete à infância.108 Xixixi: “onomatopeia da linguagem infantil que quer dizer chuva” (MARTINS, 2001, p. 531).109 Pestanas til-til: “Aqui funcionam a onomatopeia sutil, a imagem visual das pestanas (cílios) e os ~ ~~

~~ (til)” (ROSA, 2003a, p. 315).110 Aqui, optamos novamente por manter o grifo do texto original nas falas, indicado com o itálico.111 Bruaar: Termo não dicionarizado que significa “Produzir ruído// v. (substantivado) formado daonomatopeia bruaá” (MARTINS, 2001, p. 82). Segundo o próprio Rosa, “no bruar” refere-se ao barulhoda chuvinha. Tirei do francês (BROUHAHA...) Daí fiz ‘obruaá’ e ‘bruaar’. Não é bela e sugestivapalavra?” (ROSA, 2003a, p. 315).112 Diligentil: “Diligente e gentil – Amálgama de dois adjetivos, com efeito expressivo gracioso”(MARTINS, 2001, p. 170).113 Álgebra: Ramo da matemática que trata do cálculo das grandezas representadas por letras e dotadas devalor positivou ou negativo (FERREIRA, 2010). O termo aqui parece querer dizer que Brejeirinha estavasempre pensando acerca dos acontecimentos a seu redor.

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Aqui, ficamos sabendo do primeiro segredo de Brejeirinha, já que ela é: “assim,

não de siso débil; seus segredos são sem acabar. Tem porém infimículas114 inquietações:

- ‘Eu hoje estou com a cabeça muito quente...’ - Isso por não querer estudar. Então

ajunta: - ‘Eu vou saber geografia115.’ Ou: - ‘Eu queria saber o amor...’” (BRE, p. 101).

Nesse momento da trama é que houve a reação: “Ciganinha e Zito erguem olhos, só

quase assustados. Quase, quase, se entrefitaram, num não encontrar-se. Mas, Ciganinha,

que se crê com a razão, muxoxa. Zito, também, não quer durar mais brigado, viera ao

ponto de não agüentar” (BRE, p. 101). Assim ficamos sabendo qual arte Brejeirinha

estava armando: ela queria ajudar a paixão da irmã e do primo, já por ela percebida,

dizendo apenas: “- ‘Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes?’” (BRE,

p. 101). Então é Pele quem a provoca: “- ‘É, hem? Você não sabe ler nem o

catecismo...’” (BRE, p. 101), ao que a travessa responde: “- ‘Engraçada!... Pois eu li as

35 palavras no rótulo da caixa de fósforos...’” (BRE, p. 101), e o narrador, conhecedor

da ‘arte’ da personagem, assim prossegue a estória:

Por isso, queria avançar afirmações, com superior modo e calor deexpressão, deduzidos de babinhas116 – ‘Zito, tubarão é desvairado, oué explícito ou demagogo?’ Porque gostava, poetista117, de importardesses sérios nomes, que lampejam longo clarão no escuro de nossaignorância. (BRE, p. 101)

Mas Zito “não respondia, desesperado de repente, controversioso-culposo,

sonhava ir-se embora, teatral, debaixo de chuva que chuva, ele estalava numa raiva”

(BRE, p. 102). Mas como Brejeirinha estava sempre atenta, “tinha o dom de apreender

as tenuidades118: delas apropriava-se e refletia-as em si - a coisa das coisas e a pessoa

das pessoas” (BRE, p. 102). É então que ela, narradora voraz, começa a contar de outro

jeito a história de amor dos enamorados que está presenciando. A partir dessa narrativa,

e por diversas vezes no conto, a menina toma para si o papel do narrador, sempre em

reação aos acontecimentos do momento. Vejamos a primeira estória que ela conta: “-

114 Infimículas: “É mínima” (MARTINS, 2001, p. 273). O próprio Guimarães Rosa explica: “Diminutivoque criei para ‘ínfimas’, que por si já é um diminutivo. Note a formação sobre o erudito, para efeito decontraste” (ROSA, 2003a, p. 317).115 “Eu vou saber geografia”: Rosa explica: “Não é maneira usual de dizer, mas linguagem da Brejeirinha.‘Eu vou saber’ = elimina a fase intermediária, a de ‘estudar’. ‘Eu vou saber’ = é uma aquisição futura,mas sem esforço algum” (ROSA, 2003a, p. 315).116 Deduzido de babinhas: “literal. Note a combinação do erudito, ou elevado, com o pueril (coisa quealiás se repete em todo o curso da estória. (babinha= cuspe de menina)” (ROSA, 2003a, p. 317).117 Poetista: “O termo se aplica, em tom gracioso, à Brejeirinha, a menina imaginosa, dotada de talentopoético” (MARTINS, 2001, p. 390).118 “Apreender as tenuidades”: “Ela capta o que os outros sentem, mesmo com eles calados. Intuição”(ROSA, 2003a, p. 315).

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‘Zito, você podia ser o pirata inglório marujo, num navio muito intato, para longe, lo-

õ-onge no mar, navegante que o nunca-mais, de todos?’” (BRE, p. 102). Naquele

instante, como houve reação do casal à estorinha inventada, visto que Zito sorriu e

Ciganinha agarrou com mais força o livro que segurava, Brejeirinha se empolgou e,

“Não detendo em si o jacto de contar” (BRE, p. 102), recomeçou:

- ‘O ‘‘Aldaz’’119 Navegante, que foi descobrir os outros lugaresvaletudinário120. Ele foi num navio, também, falcatruas121. Foi desozinho. Os lugares eram longe, e o mar. O ‘‘Aldaz’’ Naveganteestava com saudade, antes, da mãe dele, dos irmãos, do pai. Ele nãochorava. Ele precisava respectivo de ir. Disse: - ‘Vocês vão seesquecer muito de mim?’ O navio dele, chegou o dia de ir. O‘‘Aldaz’’ Navegante ficou batendo o lenço branco, extrínseco122,dentro do indo-se embora do navio. O navio foi saindo do perto parao longe, mas o ‘‘Aldaz’’ navegante não dava as costas para a gente,para trás. A gente também inclusive batia as lenços brancos. Por fim,não tinha mais navio para se ver, só tinha o resto de mar. Então, umpensou e disse: - ‘Ele vai descobrir os lugares, que nós não vamosnunca descobrir...’ Então e então123, outro disse: - ‘Ele vai descobriros lugares, depois ele nunca vai voltar...’ Então, mais, outro pensou,pensou, esférico124, e disse: - ‘Ele deve de ter, então, a alguma raivade nós, dentro dele, sem saber...’ Então, todos choraram, muitíssimos,e voltaram tristes para casa, para jantar...’ (BRE, p. 102)

Foi quando Pele a interrompeu, levantando-lhe uma colher e dizendo “- ‘Você é

uma analfabetinha ‘‘Aldaz’’’ ”(BRE, p. 102), ao que Brejeirinha respondeu malcriado

“- ‘Falsa a beatinha é tu!’” (BRE, p. 102). E Ciganinha, talvez por perceber ser um dos

alvos da narrativa, perguntou brava: “- ‘Por que você inventa essa história de tolice,

boba, boba?’” (BRE, p. 102), seguindo-se, então, a justificativa da pequena narradora:

“- ‘Porque depois pode ficar bonito, uê!’ [...] Disse ainda, reflexiva: - ‘Antes falar

bobagens, que calar besteiras..’ Agora, fechou os olhos que verdes, solene arrependida

de seu desalinho de conduta.” (BRE, p. 102).

119 ‘Aldaz’: “Variação ortográfica de valor estilístico relacionado ao teor da linguagem da personagemBrejeirinha” (MARTINS, 2001, p. 19). Interessante observar que o ‘Aldaz’ Navegante é personagem oral,criado pela criança, mas tal variação só pode ser percebida exatamente na forma escrita.120 Valetudinário: Segundo Guimarães Rosa: “muito velho, já sem poder trabalhar. (o que importa, é ocontrasenso, e ser palavra difícil, que por isto mesmo Brejeirinha incorpora ao seu vocabulário” (ROSA,2003a, p. 317).121 Falcatruas: artifício de burlar, fraude, logro. Mas, na narrativa de Brejeirinha, é outro termo “difícil”escolhido por ela.122 Extrínseco: que vai de fora para dentro ou que não pertence à essência de uma coisa. Apesar de fazersentido ser usado conscientemente na narrativa de Brejeirinha, acreditamos que se trata de mais um termodifícil empregado pela menina.123 A repetição reforça que a estória era criada instantaneamente e narrada oralmente por Brejeirinha.124 Esférico: Em forma de esfera. Certamente é outro termo abstruso escolhido pela criança.

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Em meio a seu arrependimento, a menina “Só ouvirá o rumorejo da chuvinha,

que estarão fritando125. A manhã é uma esponja” (BRE, p. 102-3). Então, a menina

pensou que, certamente, “Pele rezara os dez responsos a Santo Antônio, tão quanto batia

os ovos. Porque estourou manso o milagre. O tempo temperou” (BRE, p. 103).

Preocupada com a sorte dos enamorados, Brejeirinha acredita que o tempo se abriu por

obra de rezas de Pele ao santo casamenteiro: “Soltavam-se as galinhas do galinheiro, e o

peru. Saía-se, ao largo, Nurka. O céu tornava a azul?” (BRE, p. 103). Com a diminuição

da força da chuva, Mamãe sairia para “visitar a doente, mulher do colono Zé Pavio”

(BRE, p. 103) e Brejeirinha então lhe pergunta: “ – ‘Ah, e você vai conosco ou sem-

nosco126?’ – Brejeirinha perguntava. Mamãe, por não rir nem se dar de alheada, desferia

chufas127 meigas: - ‘Que nossa vergonha128 ...’ - e a dela era uma voz de vogais

doçuras” (BRE, p. 103). E como o tempo realmente parecia estar melhor, “Então, pediu-

se licença de ir espiar o riachinho cheio. Mamãe deixava, elas não eram mais meninas

de agarra-a-saia” (BRE, p. 103). Ainda assim, sendo as águas do rio perigosas, era

preciso alguém para acompanhar as três meninas e “o Zito não seria, próprio, essa

pessoa de acompanhar, um meiozinho-homem, leal de responsabilidades?” (BRE, p.

103). Tudo acertado, mas as meninas ainda tinham de vestir agasalhos, obrigação da

qual Brejeirinha reclamou: “- ‘Oh, as grogrolas!’129” (BRE, p. 103), seguindo-se, então,

uma excelente definição da nossa personagem, associando-a a animais, ofertada pelo

narrador: “Brejeirinha de alegria ante todas, feliz como se, se, se: menina só ave” (BRE,

p. 103), e “ágil ia Brejeirinha, com seu casaquinho coleóptero130. Ela andava pés-para-

dentro, feito um periquitinho, impávido131” (BRE, p. 103).

Nesse caminho ao riachinho, “descia-se agora a outra ladeira, pegando cuidado,

pelo enlameável e escorregoso, poças, mas também para não pisar no que Brejeirinha

125 “Que estarão fritando”: Explica o autor: “É a própria chuva, pelo barulho peculiar que faz. Maneiramais elegante de dizer, do que seria, por exemplo: um rumor que parecia de panela com fritura” (ROSA,2003, p. 317).126 Sem-nosco: Refere-se à locução pronominal “conosco”, formada pelo pronome nós precedido dapreposição com. Segundo o Léxico do autor, Sem-nosco seria “Forma pronominal analógica criada pelapersonagem menina” (MARTINS, 2001, p. 449).127 Chufas: “Remoque, caçoada, troça, zombaria; brincadeira” (MARTINS, 2001, p. 117).128 “Que nossa vergonha”: “Mamãe, de propósito, adota a maneira errada de falar de Brejeirinha” (ROSA,2003a, p. 317).129 Grogrolas:“Palavra que Brejeirinha inventa no momento, pejorativa, contra as roupas de agasalho, queela detesta vestir” (ROSA, 200 a, p. 317).130 Casaquinho coleóptero: “visto por detrás, parece um coleóptero (besouro, Kaefer), porque tem umafenda ou racha” (ROSA, 2003a, p. 315)131 Periquitinho, impávido: “Este ‘impávido’, apesar de dito pelo narrador, é um ‘rappel’ ao estilo verbalde Brejeirinha: que gosta de empregar palavras eruditas, absurdamente, sem entender-lhes o significado”(ROSA, 2003, p. 316).

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chamava de ‘o bovino’ – altas rodelas de esterco cogumeleiro”132 (BRE, p. 104),

expressão cunhada pois a menina percebe que ali “andavam bois”. Em seguida,

“Brejeirinha levou um tombo” (BRE, p. 104) e então concluiu “- ‘Agora, já me sujei,

então agora posso não ter cuidado...’” (BRE, p. 104), ao que Pele ainda ralhou: “-

‘Você vai buscar um audaz navegante?’” (BRE, p. 104). A partir daí, a menina começa

uma inspeção pela natureza do local: “O que se queria, aqui, era a pequena angra, onde

o riachinho faz foz. [...] porque, o rio, grossoso, se descomporta, e o riachinho porém

também, seu estuário já feio cheio, refuso, represado, encapelado - pororoqueja” (BRE,

p. 104). Seu entusiamo é tanto que

Lamentava-se de não ter trazido pão para os peixes. – ‘Peixe, assim, aesta hora?’ - Pele duvidava. Divagava Brejeirinha: - ‘A cachoeirinhaé uma parede de água...’ Falou que aquela, ali, no rio, em frente, era aIlhazinha dos Jacarés. – ‘Você já viu jacaré lá?’ - caçoava Pele. –‘Não. Mas você também nunca viu o jacaré-não-estar-lá. Você vê é ailha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar...’ (BRE, p. 104)

O grupo estava ali reunido, sentados em troncos secos no chão, “Ciganinha e

Zito, numa pedra, que dava só para dois, podiam horas infinitas; apenas, conversando

ainda feito gente trivial” (BRE, p. 104). “Brejeirinha não gostando de mar: - mar não

tem desenho. O vento não deixa. O tamanho...” (BRE, p. 104). Pele saiu então para

colher flores e Brejeirinha voltou a pular, e tanto, que era possível já que estivesse

calçada com um sapatinho só, querendo que Ciganinha e Zito a ouvissem narrar a sua

estória:

- ‘O ‘‘Aldaz’’ Navegante não gostava de mar! Ele tinha assim mesmode partir? Ele amava uma moça, magra. Mas o mar veio, em vento, elevou o navio dele, com ele dentro, escrutínio. O ‘‘Aldaz’’ navegantenão podia nada, só o mar, danado de ao redor, preliminar. O‘‘Aldaz’’ navegante se lembrava muito da moça. O amor é original.’(BRE, p. 105)

E embora o casal tenha respondido sorrindo, tal como a menina desejava, Pele

voltou da colheita de flores e reclamou: “- ‘Nossa! O assunto ainda não parou?’ - era

Pele voltada, numa porção de flores se escudando” (BRE, p. 105), mas Brejeirinha não se

intimidou e continuou a contar:

- ‘... Envém a tripulação... Então, não. Depois, choveu, choveu. Omar se encheu, o esquema, amestrador... O ‘‘Aldaz’’ Navegante nãotinha caminho para correr e fugir, perante, e o navio espedaçado. O

132 Cogumeleiro: Literalmente “onde costumam crescer cogumelos” (ROSA, 2003, p. 316).

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navio parambulava... Ele, com o medo, intato, quase nem tinha tempode tornar a pensar demais na moça que amava, circunspectos. Ele sóa prevaricar... O amor é singular...’- ‘E daí?’- ‘A moça estava paralela, lá, longe, sozinha, ficada, inclusive, elesdois estavam nas duas pontinhas da saudade... O amor, isto é... O‘‘Aldaz’’ Navegante, o perigo era total, titular... nao tinha salvação...O ‘‘Aldaz’’... O ‘‘Aldaz’’...’- ‘Sim. E agora? E daí?’ - Pele intimava-a.- ‘Aí? Então.., então... Vou fazer explicação! Pronto. Então, eleacendeu a luz do mar. E pronto. Ele estava combinado com o homemdo farol... Pronto. E...’- ‘Na-ão. Não vale! Não pode inventar personagem novo, no fim daestória, fu! E - olha o seu '‘‘Aldaz’’ navegante', ali. É aquele...’Olhou-se. Era: aquele - a coisa vacum, atamanhada, embatumada,semi-ressequida, obra pastoril no chão de limugem, e às pontas doscapins - chato, deixado. Sobre sua eminência, crescera um cogumelode haste fina e flexuosa, muito longa: o chapeuzinho branco, lá emcima, petulante se bamboleava. O embate e orla da água, enchente, jáo atingiam, quase. (BRE, p. 105)

Mesmo que entretida com seu “jacto de contar” (BRE, p. 102), por um momento

Brejeirinha se deu conta de que estava lidando com fedido e feio esterco seco, acidente

que a fez esboçar uma careta. No entanto, nessa mesma hora, o ramalhete colhido por

Pele se desmanchou e caiu no chão, circunstância que ocasionou que a menina tivesse

uma ideia para continuar a narrativa:

- ‘Ah! Pois é, é mesmo!’ - e Brejeirinha saltava e agia, rápida no valer-se das ocasiões. Apanhara aquelas florinhas amarelas - josés-moleques, douradinhas e margaridinhas - e veio espetá-las no concrôodo objeto. – ‘Hoje não tem nenhuma flor azul?’ - ainda indagou. Arisada foi de todos, Ciganinha e Zito bateram palmas. ‘Pronto. É o‘‘Aldaz’’ Navegante...’ - e Brejeirinha criava-o de mais coisas - folhasde bambu, raminhos, gravetos. Já aquela matéria, o ‘bovino’, setransformava. (BRE, p. 106)

Depois de enfeitar o esterco do boi e transformá-lo em outro objeto simbólico –

o ‘‘Aldaz’’ Navegante, “Deu-se, aí, porém, longe rumor: um trovão arrasta seus trastes.

Brejeirinha teme demais os trovões. Vem para perto de Zito e Ciganinha. E de Pele.

Pele, a meiga. Que: - ‘Então? A estória não vai mais? Mixou?’” (BRE, p. 106). Como

Pele, a irmã “diligentil”, sabia que esse era o incentivo para fazer Brejeirinha esquecer o

medo, a menina torna a recomeçar a narrativa:

- ‘Então, pronto. Vou tornar a começar. O ‘‘Aldaz’’ Navegante, eleamava a moça, recomeçado. Pronto. Ele, de repente, se envergonhoude ter medo, deu um valor, desassustado. Deu um pulo onipotente...Agarrou, de longe, a moça, em seus abraços... Então, pronto. O mar

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foi que se aparvolhou-se.133 Arres! O ‘‘Aldaz’’ Navegante, pronto.Agora, acabou-se mesmo: eu escrevi – ‘Fim’!’ (BRE, p. 106)

Realmente, a água atacava o “Aldaz Navegante-esterco” e já ia fazê-lo

naufragar: “- ‘Ele vai para o mar?’- perguntava, ansiosa, Brejeirinha. Ficara muito de

pé. Um ventinho faz nela bilo-bilo134 - acarinha-lhe o rosto, os lábios, sim, e os ouvidos,

os cabelos” (BRE, p. 106).

Secretamente, Ciganinha e Zito “se consideram, nas pontinhas da realidade”.

Vejamos seu interessante diálogo, no qual “dizem coisas grandes em palavras

pequenas” (BRE, p. 106-7):

- ’Hoje está tão bonito, não é? Tudo, todos, tão bem, a gente alegre...Eu gosto deste tempo.. .’ E: - ‘Eu também, Zito. Você vai voltarsempre aqui, muitas vezes?’ E: - ‘Se Deus quiser, eu venho...’ E: -‘Zito, você era capaz de fazer como o Audaz Navegante? Ir descobriros outros lugares?’ E: - ‘Ele foi, porque os outros lugares ainda sãomais bonitos, quem sabe?...’135 (BRE, p. 107)

Assim, parece que o engenho ‘namoradeiro’ das irmãs, em especial o da

narradora Brejeirinha, tinha dado certo e que o casal de primos não estavam mais

brigados, estando então, pelo contrário, felizes e “alguma outra coisa se agitava neles,

confusa - assim rosa-amor-espinhos-Saudades” (BRE, p. 107). Todos percebem o

sucesso da empreitada afetiva que viveram com a ajuda do “‘‘Aldaz’’ Navegante”, que

agora está começando a naufragar:

Ei-lo circunavegável, conquanto em firme terrestreidade136: o chãoainda o amarrava de romper e partir. Brejeirinha aumenta-lhe osadornos. Até Ciganinha e Zito pegam a ajudar. E Pele. Ele é outro,colorido, estrambótico, folhas, flores. – ‘Ele vai descobrir os outroslugares...’ – ‘Não, Brejeirinha. Não brinca com coisas sérias!’ – ‘Uê?O quê?’ Então, Ciganinha, cismosa, propõe: - ‘Vamos mandar, porele, um recado?’ (BRE, p. 107)

Com o consentimento de todos, cada um foi destinando a sua mensagem: “Zito

põe uma moeda. Ciganinha, um grampo. Pele, um chicle. Brejeirinha - um cuspinho; é o

‘seu estilo’” (BRE, p. 107). Dessa feita, o narrador reanima a “narradorazinha audaz”

133 Aparvolhou-se: “Há uma intencional corruptela: o certo seria ‘aparvalhou-se’” (ROSA, 2003a, p. 316).134 Bilo-bilo: “Borbular. Emprego figurado do vocábulo onomatopeico que designa o brinquedo de movercom os dedos os lábios de uma criança” (MARTINS, 2001, p. 72).135 Cabe destacar que aqui, como acontece algumas vezes nesse texto de Rosa, também as falas dodiálogo aparecem juntas no parágrafo, de forma linear, ainda que ditas por vozes diferentes, como quesugerindo maior harmonia entre os interlocutores.136 Terrestreidade: “Qualidade de terrestre, de corpo preso a terra” (MARTINS, 2001, p. 488).

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Brejeirinha, ao perguntar: “E a estória? Haverá, ainda, tempo para recontar a verdadeira

estória?” (BRE, p. 107). Brejeirinha recomeça novamente:

- ‘Agora, eu sei. O ‘‘‘Aldaz’’ Navegante’ não foi sozinho; pronto!Mas ele embarcou com a moça que ele amavam-se, entraram nonavio, estricto. E pronto. O mar foi indo com eles, estético. Eles iamsem sozinhos, no navio, que ficando cada vez mais bonito, maisbonito, o navio... pronto: e virou vaga-lumes...’ (BRE, p. 107)

Como vimos, o esterco se transformou em ‘‘‘Aldaz’’ Navegante’ e este, depois,

transmutou-se em vaga-lume, tudo realizado por meio da imaginação de Brejeirinha,

que voltava a se “engasgar com o trovão” (BRE, p. 107):

Ela iria cair num abismo ‘intato’ - o vão do trovão? Nurka latiu, emseu socorro. Ciganinha, e Pele e Zito, também, vêm para a amparar.Antes, porém, outra, fada, inesperada, surgia, ali, de contraflor.‘Mamãe!’Deitou-se-lhe ao pescoço. Mamãe aparava-lhe a cabecinha, como umesquilo pega uma noz. Brejeirinha ri sem til. E, Pele:- ‘Olha! Agora! Lá se vai o ‘‘‘Aldaz’’ Navegante’!’- ‘Ei!’- ‘Ali!’O ‘‘‘Aldaz’’’! Ele partia. Oscilado, só se dançandoando137, espumas eáguas o levavam, ao aldaz navegante, para sempre, viabundo138,abaixo, abaixo. Suas folhagens, suas flores e o airoso cogumelo,comprido, que uma gota orvalha, uma gotinha, que perluz - nopináculo de uma trampa seca de vaca. (BRE, p. 107-8)

Brejeirinha até se emocionou com a despedida, mas logo voltou à razão e tornou

a se lembrar da adivinha que tinha proposto mais cedo: “- ‘Mamãe, agora eu sei, mais:

que o ovo só se parece, mesmo, é com um espeto!’”139 (BRE, p. 108).

A chuva recomeçou e “se abriram, asados, os guarda-chuvas” (BRE, p. 108).

137 Dançandoando: “Dançando, balançando. A repetição do sufixo de gerúndio (-ando) enfatiza osmovimentos de oscilação” (MARTINS, 2001, p. 148). Segundo Rosa, a palavra significa “dançar + doar-se” (ROSA, 2003a, p. 316).138 Viabundo: “Vagante, errante. De “via + bundo”, por analogia a vagabundo” (MARTINS, 2001, p.522).139 Espeto: “Literal, literalíssimo. Há no português, a expressão ‘Tão parecidos como um ovo e umespeto’, para dizer que duas coisas, ou duas pessoas, são muito diferentes uma da outra. Aqui Brejeirinhadescobre uma profunda verdade metafísica, desmoralizadora da nossa concepção idiota da ‘realidadeestática’: as coisas aparentemente mais diferentes, são em verdade, às vezes, as mais próximas uma daoutra.Veja a respeito o título, e o próprio tema da estória” (ROSA, 2003a, p. 317).

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4.2.1 Outras representações de Brejeirinha

Brejeirinha, como personagem menina, não possui outras representações visuais,

muito embora no texto mesmo de Guimarães Rosa ela se apresente rica e saborosamente

descrita em vários momentos. A narrativa informa-nos que ela tinha cabelos lisos e

louros, olhos verdes, mas, apesar de descrição tão detalhada, nas ilustrações de Luís

Jardim para a capa e o sumário ilustrado das Primeiras Estórias, Brejeirinha não

aparece corporalmente desenhada, talvez porque sua principal caracterização seja

mesmo a própria estória do ‘‘‘Aldaz’’’ Navegante que ela criou, narrou e encenou

durante toda aquela manhã chuvosa no campo. Esse cenário, que é tão representativo de

Brejeirinha, foi desenhado por Luiz Jardim na capa e no desenho-miniatura sobre

Partida do Audaz Navegante, conforme vemos na imagem a seguir:

Nessa ilustração, temos o tradicional traço simples do bico de pena de Luís

Jardim no alegre fundo amarelo da capa do livro. Ali vemos também aquilo que

Brejeirinha duvidou não existir: o desenho do mar! No desenho, em meio às ondas do

Figura 4.3 – Desenho representando Partida do audaz Navegante, feito por Luís Jardim, para a capa do livroPrimeiras Estórias, de 1962.Fonte – (ROSA, 1978, capa).

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mar e aos navios, observamos, a partir do alto, a representação do ‘‘‘Aldaz’’’

Navegante:

a coisa vacum, atamanhada, embatumada, semi-ressequida, obrapastoril no chão de limugem, e às pontas dos capins – chato, deixado.Sobre sua eminência, crescera um cogumelo de haste fina e flexuosa,muito longa: o chapeuzinho branco, lá em cima, petulante sebamboleava. O embate e orla da água, enchente, já o atingiam, quase.(BRE, p. 106).

Abaixo, ao redor dele, observamos os mesmos símbolos místicos – a estrela com

cinco pontas (pentagrama) e o símbolo do infinito (lemniscata) –, exatamente os que são

fartamente desenhados por Guimarães Rosa nas margens dos seus Cadernos. Vejamos

como ficou o “desenho miniatura” do sumário de Luís Jardim:

Aqui, Jardim mantém o mesmo tema da ilustração da capa, uma vez que ainda

notamos uma cena marítima, com coqueiros e ondas do mar, observando-se que o

desenho é também aqui rodeado por dois símbolos, um em cada ponta – o de Netuno

(tridente) e a Lemnisca. Sobre a Lemniscata, tal como nos explica Consuelo Albergaria,

sabemos que é uma imagem gráfica que aparece muitas vezes nas obras do autor e, em

se tratando de Primeiras Estórias, vale notar que este signo -∞-apareça em 20 dos 21 desenhos do índice [...]. Em todos, ele aparece,quer iniciando a sequência gráfica, quer fechando-a, numa alternaçãorítmica regular. Assim como em Grande Sertão: Veredas, o índice dePrimeiras Estórias tem, como última marca gráfica, o símbolo emquestão. (ALBERGARIA, 1976, p. 68)

Na representação da estória propriamente dita, vemos o desenho de uma

embarcação no mar, não mais no oceano profundo, mas em um ambiente mais próximo

à costa, já que aparecem coqueiros emoldurando a cena. Dentro do navio do ‘‘‘Aldaz’’’

Navegante, foram desenhadas duas figuras, representando o navegante com a moça que

Figura 4.4 – Desenho-miniatura sobre Partida do Audaz Navegante, feito por Luís Jardim, para o sumárioilustrado do livro Primeiras Estórias, de 1962.Fonte – (ROSA, 1978, p. VII).

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ele amava, a que “‘[...] estava paralela, lá, longe, sozinha, ficada, inclusive, eles dois

estavam nas duas pontinhas da saudade... O amor, isto é... O ‘‘‘Aldaz’’’ Navegante, o

perigo era total, titular... não tinha salvação... O ‘‘‘Aldaz’’’... O ‘‘‘Aldaz’’’” (BRE, p.

105.

4.2.2 Fortuninha crítica de Partida do audaz navegante

Partida do Audaz Navegante foi uma estória publicada no livro Primeiras

Estórias, trazendo a personagem menina Brejeirinha que, como apontou a crítica, em

certa medida, veio a se opor a Nhinhinha. Como ainda são poucos os trabalhos a

respeito das Primeiras Estórias – especialmente se confrontarmos com a maior

quantidade de trabalhos dedicados à primeira parte da obra do autor – podemos dizer

que a pequena Fortuninha crítica de Partida do Audaz Navegante é composta por

comentários que propõem uma comparação com a Menina de lá. Tal cotejo é realmente

rico, uma vez que, embora ambas sejam meninas, elas e também as estórias que

protagonizam são muito distintas: “Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam”

(ROSA, 1978, p. 14). No entanto, ambas fazem parte de um possível projeto de

caracterização da infância encetado pela literatura de Guimarães Rosa, na qual, além do

Menino, são introduzidas também personagens crianças meninas.

Pensando na Fortuninha crítica que encontramos acerca da estória de

Brejeirinha, pode-se afirmar que ela é menos numerosa que a de Nhinhinha, levando-

nos a dela selecionar apenas quatro comentadores que apontam para a peculiaridade das

relações de Brejerinha – uma criança começando a entrar no mundo da palavra escrita –

e para o modo de composição literária de Guimarães Rosa, escritor que nunca negou a

importância da herança da linguagem não escrita para sua obra. Como veremos, ainda

que todos esses estudos, inicialmente, partam da tentativa de estabelecer uma relação

com Nhinhinha, alguns excelentes comentários sobre Brejeirinha e sua estória foram

desenvolvidos.

A primeira comparação selecionada é levada a cabo por Micheliny Verunsck,

que destaca que, enquanto Nhinhinha é mais natural, Brejeirinha seria mais cerebral,

visto ela ser a dona da narrativa, enredando a todos ao redor dos fios das suas estórias:

Ao contrário de Nhinhinha, a personagem do conto “Partida do audaznavegante”, irmã mais nova de Pele e Ciganinha, Brejeirinha éliteratura inaugurada, “formadora de artes”, para usar uma expressãodo narrador. Embora ainda não domine de todo os significantes, ela os

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toma para seu uso sem medo, apodera-se deles a seu modo, dando-lhes forma com uma plasticidade infantil. Ao contar a história doAudaz Navegante, que ela chama de ‘Aldaz’, Brejeirinha brinca com ovocabulário, o flexibiliza. A palavra reveste-se, então, de novossignificados, é reinventada.Brejeirinha é dona da narrativa e faz poesia de caso pensado, elabora-a. É uma menina cerebral, com inquietações mentais. “Sem saber oamor, a gente pode ler os romances grandes?”, indaga ela. As irmãs eo primo, Zito, orbitam em torno da contadora de histórias, vivem osdramas que ela inventa. Mesmo Pele, que a confronta continuamente,não é capaz de se desvencilhar do fio de suas histórias:“O ‘Aldaz’ Navegante não gostava de mar! Ele tinha assim mesmo departir? Ele amava uma moça, magra. Mas o mar veio, em vento, elevou o navio dele, com ele dentro,escrutínio. O ‘Aldaz’ Navegantenão podia nada, só o mar, danado de ao redor, preliminar. O ‘Aldaz’Navegante se lembrava muito da moça. O amor é original...”(VERUNSCK, 2008, p. 42)

Já Paulo Rónai tece sagazes observações no que tange à nova fase da escrita de

Guimarães Rosa nas estórias, destacando suas personagens crianças que se unem ao

autor na atividade lúdica de lidar com novas linguagens:

Brejeirinha é o oposto [de Nhinhinha] na vivacidade e inteligência,mas sua parenta no frescor da imaginação associativa, encontra tantodivertimento nas palavras como nos objetos, utilizando umas e outroscomo brinquedos. (Poder-se-iam ver nas duas meninas as encarnaçõesda poesia popular e erudita). (RONAI, 1978, p. XXVII)

Novamente, essa observação sobre a maneira pela qual Brejeirinha se apropria

da linguagem, como se ela fosse uma possibilidade de brincadeira fecunda, nos faz

pensar em alguma aproximação com as formas de escritura de Guimarães Rosa. Mais

adiante no artigo, Rónai explicita tal relação em uma colocação importante para a

abordagem preconizada na presente tese:

Guimarães Rosa, autor das Primeiras Estórias, usa com o mesmointento, ou como simples intermezzo lúdico, palavras pomposas egrandiloquentes, que ganham graça pelo emprego pernóstico: “Sóvivo no supracitado”; “os Noivos [...] satisfatórios”; “aquele senhor[...] provisoriamente impoluto”. Há muitos outros exemplos,sobretudo ao longo de Partida do audaz navegante, onde o autorconfirma implicitamente a ampla contribuição da linguagem infantilpara seus processos de inovação mais ousados. (RONAI, 1978, p.XXXVI)

Acerca do mesmo fenômeno também comenta algo muito semelhante a crítica

literária Ana Paula Pacheco:

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Na Partida do audaz navegante, uma narradora ainda “analfabetinha”,ao que tudo indica de classe média, conta a grande aventura de seuherói. A estória é várias vezes reformulada ao sabor de um sensoestético que se apura em ato (logo que começa a narrar, Pele, sua irmã,pergunta: “- Por que você inventa essa estória de de tolice, boba,boba?”, e ela responde: “‘Porque depois pode ficar bonito, uê!’” Amenina, além disso, não duvida das possibilidades que a imaginaçãofranqueia: [Brejeirinha] Falou que aquela, ali, no rio, em frente, era aIlhazinha dos Jacarés. – “Você já viu jacaré lá?” - caçoava Pele. –“Não. Mas você também nunca viu o jacaré-não-estar-lá. Você vê é ailha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar...” (PACHECO,2006, p. 42-3)

Exercitando sua “outra lógica” infantil, Brejeirinha aproveita todo e qualquer

acontecimento ou elemento do cotidiano para reinventar as realidades, sendo que o

importante aqui é criar novas narrativas a fim de construir sua própria subjetividade:

O dia chuvoso é um convite a devaneios, enigmas, especulações. Aestória de Brejeirinha refaz a realidade, com pitadas romanescas: oprimo Zito, de fora, passa ali uma temporada, e quem veio há departir. Ela então inventa o ‘Aldaz’ Navegante que irá conhecer outroslugares, deixando a moça que ama, buscando-a, “onipotente”, e,noutra versão, levando-a consigo desde o começo (Ciganinha, outrairmã da narradora, e Zito estão de fato apaixonados). Pele, para fazertroça da irmã, aponta no quintal, quando a chuva pára, o AldazNavegante: um fino cogumelo branco sobre um cocô de vaca que vêno terreno limoso, prestes a ser atingido pela orla do riachinho. MasBrejeirinha, depois de se zangar, vê caírem no chão algumas flores egosta da ideia de enfeitar a “embarcação” de seu herói; coloca-se emata o personagem. (PACHECO, 2006, p. 42-3)

Além disso, a análise de Pacheco sublinha, ainda, que, na aventura da manhã

fabulosa, Brejeiirinha adquiriu aprendizados fundamentais e ficcionais:

Após a aventura, ela diz à mãe, que chega para salvá-los dos trovões: -“‘- Mamãe, agora eu sei, mais: que o ovo só se parece, mesmo é comum espeto!’” A retomada do enigma proposto no começo do dia,quando todos ainda estavam no alpendre, condensa o aprendizado dapequena narradora. Lançando uma adivinha, ela provocara: - “‘Eu seipor que é que o ovo se parece com um espeto!’. Mas não ia contar aninguém”. O parentesco entre coisas dípares é engenhosamenteconfirmado após toda a jornada narrativa, respondendo ao enigma nosseus próprios termos. Brejeirinha agora sabe, convicta da verdade daimaginação: o ovo só se parece mesmo com um espeto. A ficçãoimanta personagens e narrador, e se instala mais verdadeira que arealidade. (PACHECO, 2006, p. 42-3)

Concluindo esse levantamento, segundo Irene Gilberto Simões, a permanente

narrativa de Brejeirinha é capaz de enredar de tal forma suas irmãs mais velhas e o

primo que, apesar da rejeição inicial, em breve todas elas, mais o primo de fora, estão

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participando de sua construção ficcional, reforçando mais uma vez a inegável crença de

Guimarães Rosa no poder da palavra:

A menina Brejeirinha (A Partida do Audaz Navegante) [sic] éportadora de uma linguagem especial, cuja “desarticulação” criaimagens expressivas e inesperadas do ponto de vista dos mais velhos[...] os irmãos [sic] que riem de suas palavras. Ela responde, em tomsentencioso, usando uma frase que corresponde ao avesso do ditado:“Antes falar bobagem do que calar besteiras.” Contudo, começamtambém a participar do jogo e a inventar a estória do “audaznavegante.” [sic] Na fala de Brejeirinha, a estória, apesar de virpontuada pela expressão “e pronto” é sempre interminável e mesmo acolocação da palavra “fim” não corresponde ao final da estória, que,como uma corrente, pode ser acrescida de mais um elo. (SIMÕES,1982, p. 77-8)

Em seguida, Simões passa a abordar aquilo que ela entende como a discussão

fundamental da estória rosiana, a saber, a composição narrativa estória, seu poder e o

que há de mágico, de encantatório em seu fabular:

O que se discute nesse texto, como em muitos outros de GuimarãesRosa, é a estória em si. Os mais velhos funcionam como críticosmordazes que procuram a verossimilhança e a coerência interna. Oconto chega ao clímax quando os irmãos [sic] de Brejeirinha aceitamo jogo e começam também a “fabular”. Em determinado momento, onarrador pergunta: “E a estória? Haverá, ainda, tempo para recontar averdadeira estória?”O mundo mágico envolve a realidade e as pessoas. Para sair dele énecessário quebrar o “encanto” [...]. (SIMÕES, 1982, p. 77-8)

Tendo percorrido a rápida fortuna crítica dessa estória rosiana e caminhando

para nossa própria reflexão, nos indagamos: Como podemos, agora, pensar em

Brejeirinha e em sua estória?

4.2.3 Interpretação: Deduzidos de babinhas

“Agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês...”(Sivuca & Chico Buarque – João e Maria, 1977)

Na deliciosa estória protagonizada pela menina Brejeirinha, reencontramos a

imagem da criança que é testemunha ocular dos acontecimentos a sua volta e que, em

vez de guardar para si sua impressão acerca do mundo, a reelabora em narrativas

travessas: ela “formava muitas artes”, com sua linguagem construída por meio de

“guspe de menina”, numa combinação entre expressões adultas eruditas letradas e as

pueris expressões infantis. Nesse sentido, é interessante notar que, muitas vezes, alguns

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personagens da estória – como as irmãs, a Mamãe e até mesmo o próprio narrador –,

ainda que seja para fazer troça das enunciações de Brejeirinha, tentam imitar seu modo

de falar.

Se compararmos Brejeirinha a Nhinhinha, vemos que todo o cenário de

Brejeirinha parece ser muito mais denso que o da Menina de lá. É preciso começar

esclarecendo que elas estão em diferentes fases da infância: se de Nhinhinha sabemos

que ela tem menos de quatro anos, ou seja, está em plena primeira infância, aprendendo

ainda a falar, sobre Brejeirinha ignoramos ao certo a idade, mas temos o conhecimento

de que ela não só já fala, como também conta estórias, sendo que o texto sugere que a

menina está entrando no universo da palavra escrita, já que ela ainda não consegue ler

“nem o catecismo”, mas pôde ler, com muita atenção, as diminutas “35 palavras no

rótulo da caixa de fósforos” (BRE, p. 101).

Em Partida do audaz navegante, estabelece-se também um conflito cultural

entre crianças e adultos, e o mais interessante é que isso acontece em meio às vivências

da própria Brejeirinha, que está no exato momento de passagem entre expressar-se

totalmente pela cultura oral corporal e a cultura escrita, a qual as palavras seduzem por

seu grau de dificuldade, mesmo que a criança ainda não atribua àquele vocabulário

nenhum significado rígido. Toda a estrutura de linguagem dessa estória é construída a

partir desse conflito estabelecido entre o erudito e o pueril, que Rosa definiu como

sendo uma linguagem “deduzida de babinhas”, significando, literalmente, “babinha =

cuspe de menina” (ROSA, 2003a, p. 317). Tal conflito é vivido por todos os humanos

em suas primeiras experiências de linguagem e é também força motriz claramente

identificável no processo escritural de Guimarães Rosa.

Voltando à comparação entre as duas personagens meninas, quando pensamos

na estória de Nhinhinha, aquela que ainda não aprendeu a falar, lembramos que a

criança que diz suas primeiras palavras já falava (FRANÇOIS, 2006) e que tal momento

estabelece uma relação clara com o desenvolvimento da noção de tempo que ocorre

com o amadurecimento infantil (PIAGET, 2002). Essa passagem para o verbal não é tão

abrupta a ponto de apagar de imediato toda a articulação estabelecida pelos sentidos da

linguagem corporal, o que fica bastante claro na estória de Brejeirinha, menina que

queria se expressar com palavras difíceis, das quais desconhecia o significado, mas que

não conseguia conter as expressões de seu corpo, já que “aos tantos, não parava,

andorinhava”, fazendo muitas artes: “rolou no cacho de bananas, mostrou o umbigo”

(BRE, p. 100), perdeu um sapatinho, levou um tombo e se sujou, bateu os pés em

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cafeteiras, pulou por piruetas, reclamou por ter que se agasalhar, teve medo de trovão,

sentiu “ alegria ante todas, feliz como se, se, se: menina só ave” (BRE, p. 103), e,

sobretudo, não conteve o “jacto de contar”, ainda que com termos “deduzidos de

babinhas”, afinal era “poetista”.

Então, o instrumental aberto pelo letramento estava começando a instalar-se na

vida da menina, abrindo-se também novas possibilidades temporais, permitindo que a

infante narre e recrie seu mundo (GAGNEBIN, 1999, p. 81), em discursos peculiares,

acessíveis só àqueles capazes de reconhecer uma espécie singularíssima de “sabedoria

infantil” (HUINZINGA, 2001, p. 133), que constitui o que a estória A partida do audaz

navegante nos conta, uma vez que, apesar dos maiores começarem menosprezando as

graças da menina, ao final todos acabam presos aos fios de sua narrativa infantil.

Brejeirinha, como toda criança, é um ser que, embora esteja na sociedade, tem dela uma

percepção diferente, já que “sua história pode ser a mesma dos pais, mas elas vivenciam

– e contam-na de outro jeito” (SALGADO, 1999, p. 08). Isso acontece porque a criança

ainda não está totalmente comprometida com a lógica e a linguagem adulta, sendo livre

para viver tudo como se fosse a primeira vez, pois para ela os significados do mundo

são mesmo novos, não havendo a necessidade de ressignificações.

De modo semelhante também parece funcionar a escritura de Guimarães Rosa,

um artista que pode se assemelhar ao que Freud (1976, p. 149-158) chamou de “escritor

criativo”, isto é, aquele cujo pensamento está diretamente relacionado ao tipo de

fantasia produzida pela criança ao brincar, aspecto que, no ato da escritura, seria

substituído pela própria criação . Em estórias como A Partida do audaz navegante,

temos um exemplo claro de que na ficção rosiana “não é raro depararmo-nos com uma

inversão de papéis em que o adulto passa a ser guiado pela sabedoria da criança, cujos

gestos e palavras tornam-se fundadores de novas realidades” (SILVA, 2000, p. 42).

Assim sendo, postulamos que Guimarães Rosa escreve movido por aquilo que nos

aparece claramente identificável em Brejeirinha: “a absoluta confiança na liberdade de

inventar” (CANDIDO, 1983, p. 121).

Como vimos, na obra rosiana em geral, tantas vezes, as personagens também se

põem a narrar estórias, roubando por momentos o fio da narrativa das mãos do narrador.

No caso específico das estórias, lembramos que em Tutaméia, há um momento no qual

a própria ideia da materialização do mundo pela palavra falada é expressada diretamente

na estória Os Três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi (ROSA,

1967, p. 111-4), na qual um dos três vaqueiros decide inventar um boi a partir de

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palavras faladas, sendo que o lugar de origem dessa narrativa, segundo a explicação do

narrador é a infância: “citava caso de sua infância, do mundo das inventações” (ROSA,

1967, p. 111). Aqui tocamos novamente na força motriz da estória de Brejeirinha, das

crianças em geral e também da escritura de Guimarães Rosa que, como é sabido,

exarava uma aproximação com o Divino na relação com a palavra, tal como ele mesmo

explicou:

O Homem ao dizer: eu quero, eu posso, eu devo, ao se impor isso a simesmo, domina a realidade da criação. [...] Disseram-me que isto erablasfemo, mas eu sustento o contrário. Sim! A língua dá ao escritor apossibilidade de servir a Deus corrigindo-o, de servir ao homem e devencer o diabo, inimigo de Deus e do Homem. (LORENZ, 1983, p.83)

Ou seja, a linguagem daria ao Homem a possibilidade de narrar a história de um

jeito diferente, o que pode ser “um dos procedimentos roubados da sabedoria infantil,

pois a criança, em sua superioridade em relação às ideias adultas, faz aquilo que só é

permitido a ela e aos artistas: acreditar na possibilidade de uma nova criação do mundo

através do recurso da palavra” (RODRIGUES, 2009, p. 71).

No caso de Brejeirinha e de sua linguagem, além dos “deduzidos de babinhas”, é

bom salientar outras características visíveis a partir de sua estória, tal como o fato de

que a menina, apesar de já conseguir ler algumas palavras, ainda é capaz de fechar os

olhos e manter os ouvidos abertos para os sons do mundo natural a seu redor, como

quando “só ouvirá o rumorejo da chuvinha, que estarão fritando. A manhã é uma

esponja” (BRE, p. 102), exemplos indicadores de que, como já adiantamos, nessa

estória, é permanente o destaque da passagem de uma vivência cultural para outra.

Outro exemplo aparece na própria linguagem empregada nessa estória, visto que

nela o autor Guimarães Rosa permite que o narrador da estória escrita – e não somente a

narradora oral Brejeirinha – faça uso de muitas onomatopeias, como as já comentadas

“til-til” ou “bilo-bilo”. Segundo Alfredo Bosi, a onomatopeia é uma forma de expressão

linguística na qual a coisa é igual ao som da coisa, criado devido ao fato de ela ainda

não dar conta de um discurso verbal mais elaborado e abstrato. Até por ser uma

representação da realidade ainda bastante rudimentar e procurar resolver a comunicação

de forma mais imediata, tal recurso é bastante utilizado por crianças que ainda não

possuem amplo conhecimento vocabular (BOSI, 2000, p. 49-53). Cabe destacar o fato

de que não é apenas a menina ainda ‘analfabetinha aldaz’ que usa onomatopeias, mas

também o narrador da estória escrita que tantas vezes lança mão desse recurso de

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linguagem tão ligado ao tronco primitivo, indicando que o conflito entre o oral e o

letrado é um dos que mais se destacam na estória.

Na estória de Brejeirinha, embora ela não fosse mais “menina de agarra-a-saia”,

observamos todo um universo muito ligado à perspectiva diminuta da criança

pequena140, com muitos diminutivos – tal como o próprio nome da personagem,

“Brejeirinha”, ou como as “margarinhas”, a “ladeirinha”, a “gentezinha” etc.. Como que

sintetizando essa ânsia pelo diminuto, a primeira distração da menina descrita na estória

é com uma caixa de fósforos, espaço extremamente reduzido que, na perspectiva da

criança, pode sintetizar todo o universo infantil. Nesse sentido, em 2011, foi publicado

um livro infantil intitulado Um universo numa caixa de fósforos, do autor paulistano

Alexandre Rampazo, com ilustrações de Cátia Chien, no qual é contada a história do

menino Maximiliano, o Max, que guardava em uma caixa de fósforos todas as coisas de

que ele mais gostava e que queria guardar só para si: a casa mais linda da rua, a

montanha mais alta, o carro mais rápido, a menina mais bonita do colégio, o parque de

diversões com a montanha russa e o castelo do rei Artur... tudo isso guardado na palma

de sua mão141.

Como Brejeirinha vivia “no campo”, em uma fazenda longe do mar, ela foi

levada por sua imaginação infantil a inventar uma estória sobre um “Aldaz” Navegante

que terá de seguir viagem pelo mar, lugar para onde se vai tradicionalmente em busca

140 Rosa explicou: “‘menina de agarra a saia’ refere-se a uma perspectiva de visão adotada pelaspersonagens” (ROSA, 2003a, p. 315).141 Sobre a criança e sua relação com pequenos brinquedos, um texto escrito nas paredes da Mostra Maisde Mil Brinquedos para a Criança Brasileira, realizada no SESC Pompéia (2013), assim postulava: “OMínimo e as mãos: Brinquedos em miniaturas são espécie de cofres. Guardam segredos de imensidão, sãocomo abrigos seguros no brincar. Panelinhas, objetos de bonecas, boizinhos e cavalos de fazendinha sãobrinquedos que conduzem a criança a reconhecer o mundo pela intimidade. Exigem envolvência,proximidade e maior atenção. São como um convite para a introversão. Como uma chave pequenina queabre uma porta imensa”.

Figura 4.5 – Detalhe da ilustração de Cátia Chien, representando uma caixa de fósforos contendo todo ouniverso do desejo infantil.Fonte – (RAMPAZO, 2011, Capa).

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de aventuras e trocas (GALVÃO, 2008). Não sabemos se a menina, efetivamente,

conhece ou não o mar, nem se ele era apenas mais uma ideia “deduzida de babinha”, no

entanto, o que sabemos é que, por um momento, ela ficou “não gostando de mar: - ‘O

mar não tem desenho. O vento não deixa. O tamanho...’” (BRE, p. 104). Além do mar,

Brejeirinha também não gostava de estudar – isso a deixava com a “cabeça muito

quente” –, mas ela queria logo “saber geografia”. Tal afirmação, certamente, nos lembra

da declaração de Guimarães Rosa de que, em sua infância, gostava mesmo era de

“estudar sozinho e de brincar de geografia” (LIMA, 1997, p. 39). Ora, talvez também

para Brejeirinha, geografia não era coisa para se estudar, visto que também se poderia

aprender brincando com ela, reinventando-a.

Segundo o geógrafo Jader Janer Moreira Lopes, especialista nas relações entre

geografia e infância: “as formas de olhar o espaço interferem na nossa compreensão

deste [...] se a criança é um sujeito histórico, como vem sendo alardeado nos discursos

mais contemporâneos, podemos afirmar que ela também é um sujeito geográfico”.

Lopes propõe, ainda, uma reflexão sobre a

História do um menino que vivia do infinito do espaço, até queganhou uma régua para medi-lo, riscar limites, fronteiras e barreiras eo fez, mas para quem vive no espaço como infinitude, comopossibilidade, os riscos, que a princípio podem parecer barreiras,servem para ampliar, para criar, reinventar... (LOPES, 2009, p. 131)

No que se refere à questão da história, há algum tempo que cientistas de diversas

áreas têm se dedicado a refletir acerca das narrativas, sendo cada vez mais aventada a

possibilidade de o ser humano ser, biologicamente, um ser narrativo, visto que,

conforme já salientamos nesta tese, embora sejamos semelhantes, cada um de nós

possui uma história singular que deve ser contada de alguma forma (cf. RODRIGUES,

2009, p. 119). Para as crianças, grupo representado pela personagem Brejeirinha, a

primeira construção de narrativa começa a partir da leitura peculiar que ela, que é uma

“analfabetinha ‘aldaz’”, faz do

pequeno mundo em que se move, onde os ‘textos’, ‘as palavras’, as‘letras’ se encarnavam no canto dos pássaros – o do sanhaçu, o doolha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dançadas copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavamtempestades, trovões, relâmpagos; as águas da chuva brincando degeografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos. Os ‘textos’, as‘palavras’, as ‘letras’ se encarnavam também no assobio do vento, nasnuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos. (FREIRE, 1988,p. 13, grifo nosso)

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Realmente, embora Brejeirinha estivesse no limiar da escrita, tal como está

estruturada toda a Cultura Brasileira, segundo Alfredo Bosi (2003, p. 46), é necessário

lembrar que a estória nos conta que é possível que ela tivesse, efetivamente, lido as 35

palavras escritas na caixa de fósforos como ela afirmou ter feito. Assim, se pensarmos

em leituras da “palavramundo”142, sabemos com certeza que ela leu de infindáveis

formas, durante todo o texto, visto que a realidade era, para ela, um laboratório de

criação de novas narrativas inventadas, sendo que quem narra pode igualmente fazer

História. Pensando nas narrativas criadas por Brejeirinha sobre o ‘Aldaz’ navegante, é

fundamental destacar que primeiramente a menina, em sua leitura do mundo, percebe

que naquele lugar no qual se viam “altas rodelas de esterco cogumeleiro” certamente

“andavam bois”, daí chamar o esterco de “Bovino”. Note-se que, nessa brincadeira, a

menina já começou a unir pistas e pegadas sobre possíveis acontecimentos no tempo,

como se ela fosse uma “historiadorazinha “aldaz” (GINZBURG, 1989). No entanto,

depois, em um novo rompante estético, ela se põe a enfeitar o “Bovino”: “‘É o ‘‘Aldaz’’

Navegante...’ - e Brejeirinha criava-o de mais coisas - folhas de bambu, raminhos,

gravetos. Já aquela matéria, o ‘bovino’, se transformava” (BRE, p. 104) em outro

“colorido, estrambótico, folhas, flores” (BRE, p. 104), que ganhou o “mar”. Acerca

desse aspecto relacionado ao brincar, Walter Benjamin afirma que

É ocioso ficar meditando febrilmente na produção de objetos –material ilustrado, brinquedos ou livros – que seriam apropriados àscrianças. Desde o Iluminismo é esta uma das mais rançosasespeculações do pedagogo. Em sua unilateralidade, ele não vê que aTerra está repleta dos mais puros e infalsificáveis objetos da atençãoinfantil. E objetos dos mais específicos. É que crianças sãoespecialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde aatuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-seirresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam daconstrução, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade doalfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elasreconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente paraelas, e somente para elas. Neles estão menos empenhadas emreproduzir as obras dos adultos do que estabelecer uma relação novae incoerente entre esses restos e materiais residuais. Com isso ascrianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequenomundo inserido no grande. (BENJAMIN, 2002, p. 57-8, grifo nosso)

142 Segundo Paulo Freire, “ao ir escrevendo este texto [sobre a importância do ato de ler], ia ‘tomandodistância’ dos momentos em que o ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a‘leitura’ do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre,ao longo de minha escolarização, foi a leitura da ‘palavra mundo’”. (FREIRE, 1988, p. 12-3, grifo nosso).

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Pensando na estória rosiana, logo no início, o narrador nos diz que estamos no

campo e, no decorrer do texto, vamos sabendo de mais elementos da trama – ali

passavam bois, havia famílias de colonos –, desenhando-se um cenário no qual o

trabalho era a lida com o gado, ao que, consequentemente, os detritos para a criança

reinventar não poderiam ser outros que não o esterco de boi. Talvez seja através desses

brinquedos que a brincadeira possa, tal como disse Benjamin citando Boehn, lograr

“fazer história dos detritos da História. E isso é e sempre será algo louvável” (Boehn,

1929 apud BENJAMIN, 2002, p. 138)143. Nesse sentido, segundo escreveu Sonia

Kramer: “Walter Benjamin já nos alertava para o fato de que o homem faz história, de

que existe a possibilidade de fazer história, porque temos a infância” (KRAMER, 2006,

p. 08), reiterando-se o estado de contínuo formular de novos sentidos para o mundo,

próprio da infância.

Ainda sobre Brejeirinha, não lhe bastou transformar aquela “matéria” no herói

da sua aventura – aquele que vai conhecer os lugares onde ninguém que permanece em

terra conhecerá nunca –, pois, logo após a partida, estando já longe, a personagem sabe

que ele, em seu navio, se transformará em “vagalumes”, ganhando outros destinos

jamais sonhados. Talvez por saber que aquela partida fosse definitiva, Ciganinha sugere

que todos insiram no ‘Aldaz’ Navegante alguns recados, para que ele os leve ao “mar”:

“Zito põe uma moeda. Ciganinha, um grampo. Pele, um chicle. Brejeirinha - um

cuspinho; é o ‘seu estilo’” (BRE, p. 107, grifo nosso). Ora, tal estilo cuspido de

Brejeirinha – consistindo em uma forma de denominar sua linguagem – não pode

constituir as próprias narrativas das estórias inventadas sobre o “Aldaz navegante”?

4.3 Fita Verde

Quando Guimarães Rosa pensou em parafrasear em uma de suas estórias, por

meio da forma escrita, uma história tradicional do repertório oral, não deve ter sido à toa

que ele tenha escolhido Chapeuzinho Vermelho, relevando talvez o fato de essa ser uma

estória protagonizada por uma menina, tipo de personagem que Guimarães Rosa se

empenhou em construir em sua literatura da década de 1960.

143 Walter Benjamin cita BOEHN, Max Von. Puppen und Puppenspiele [Bonecas e teatro de marionetes],Munique, 1929, 2 vol.

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Contando as aventuras da menina que vivia numa aldeia “nem maior nem

menor” (FIT144, p. 72) que as outras, com uma população composta por “velhos e velhas

que velhavam”145 (FIT, p. 72) – em uma expressão bastante infantil: velhos = velham –,

“homens e mulheres que esperavam” – esperavam a velhice chegar? –, e meninos e

meninas que nasciam e cresciam. Em tal ambiente, as crianças eram as únicas que,

como que encantadas, viviam ativamente, sendo que todos tinham certo juízo, “menos

uma meninazinha, a que por enquanto” (FIT, p. 72) ainda não possuía siso. “Aquela, um

dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo” (FIT, p. 72), mas ela não saiu

aleatoriamente, foi para obedecer a uma ordem: “sua mãe mandara-a, com cesto e pote,

à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. Fita verde146 partiu, sobre

logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha doce em calda e o cesto estava

vazio, que era para buscar framboesas147” (FIT, p. 72).

Ao atravessar o bosque, Fita Verde só viu “os lenhadores, que por lá lenhavam”

(FIT, p. 72) – construindo-se novamente uma expressão de acordo com o raciocínio

imediato como o infantil: se velhos velhavam, lenhadores lenhavam –, sem ver “mas o

lobo nenhum, desconhecido nem peludo” (FIT, p. 72). Nesse ponto da trama, temos

uma resposta a um alerta para que ela tomasse cuidado com o lobo, aviso que não foi

dado diretamente pela mãe, mas que consistia em uma preocupação (ou desejo?) dela

mesma de encontrar o lobo, fato que logo a seguir se explicou “pois os lenhadores

tinham exterminado o lobo” (FIT, p. 72). Sem conflitos aparentes, ela mesma se

justificava : “– ‘Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a

144 Para ressaltar que nosso interesse está focado na personagem menina Fita Verde, enquanto estivermosanalisando ou interpretando Fita verde no cabelo a nova velha estória, convencionamos fazer a referênciaà estória por meio da sigla FIT, seguida da página do trecho, a fim de indicar que estamos citando areferida obra rosiana (ROSA, 2006b).145 Velhar: “viver a velhice. Termo derivado de velho, mas sem a noção incoativa/progressiva deenvelhecer” (MARTINS, 2001, p. 519).146 Essa é a primeira vez que, no texto, vemos o nome Fita Verde sendo usado para denominar a meninaque ainda não tinha juízo suficientemente formado. Manter a nomeação da personagem por umaexpressão metonímica, tal como se utilizou nas matrizes de Perrault e dos irmãos Grimm com a suaChapeuzinho Vermelho, mas modifica-la simbolicamente passando de um chapéu vermelho a uma fitaverde, é algo a ser destacado, visto que, ainda que estabeleça um diálogo com a literatura universal, comisso Rosa destaca seu desejo de introduzir o imaginário brasileiro na estória e destacar a perda dainfância, em detrimento de um destaque da afloração da sexualidade na puberdade, que é como ochapeuzinho vermelho tem sido tradicionalmente interpretado.147 Framboesa: é fruta comestível muito apreciada, constituída de pequenas drupas vermelhas; 2:vermelho de tonalidade framboesa. (BORBA, 2002, p. 737). A framboeseira é frequentemente confundidacom a amora silvestre (Morus sp), sendo que uma diferença entre elas é que a framboesa é um fruto oco eo seu cultivo é mais delicado, pois é necessário que a framboeseira seja submetida a pelo menos 700horas por ano a temperatura inferior a 7°C.

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mamãe me mandou’” (FIT, p. 72)148. A menina dizia isso a si própria visto saber que a

aldeia e a casa da avó a estavam esperando alhures, “depois daquele moinho, que a

gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são” (FIT, p. 72).

Para chegar até o destino, “ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de

cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso” (FIT, p. 72), sendo que a opção pelo

caminho “louco e longo” e não pelo “encurtoso” possivelmente indica um desejo de

vivenciar tal travessia, ao que a menina então “saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua

sombra também vindo-lhe correndo, em pós” (FIT, p. 72). Nesse caminho, “Divertia-se

com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em

buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeiinhas flores,

princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa. Vinha sobejadamente”

(FIT, p. 72).

Mas, enfim, chegou à casa da avó e “quando ela, toque, toque, bateu” (FIT, p.

72), a vó perguntou quem era. A resposta dada lhe era conhecida, já que a menina veio

ensaiando-a o caminho todo: “- ‘Sou eu…’ – e Fita-Verde descansou a voz. – ‘Sou sua

linda netinha, com cesto e pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou’”

(FIT, p. 72). Mas a avó, que estava com dificuldade de responder, fez um esforço e

orientou-a: “‘Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te abençõe’” (FIT, p.

73). Fita Verde assim fez, entrou e olhou: “A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia,

para falar agagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo: –

‘Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo.’” (FIT, p.

73).

Tanto pela imagem debilitada da avó, como pelo esforço que ela fazia para se

expressar, apontavam para o fato de o tempo disponível parecer pouco, mas “Fita-Verde

se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita

verde no cabelo atada” (FIT, p. 73). Vemos que nesse instante da narrativa, em meio a

tanta tristeza, a menina teve um lapso de consciência – da perda da fita verde que ela

tinha inventado e atado a seu cabelo –, levando-a a igualmente perceber que estava

“suada, com enorme fome de almoço” (FIT, p. 73). Nota-se, então, que chegamos às

148 O texto Fita Verde no cabelo foi publicado pelo menos por duas vezes, primeiramente no jornal em1964, depois no livro póstumo Ave, palavra em 1970, além de também ter saído como livro infanto-juvenil em 1992. Nessas publicações, o destaque das falas aparece como grifo no texto publicado nojornal e em itálico na versão publicada em Ave, Palavra, sendo que somente no livro infanto-juvenil daNova Fronteira o texto aparece de forma contínua. Aqui, mais uma vez, adotamos o itálico.

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perguntas características de todas as versões da história: as perguntas que a menina faz à

avó, no seguinte diálogo:

- “Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tãotrementes!”- “É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta…” – aavó murmurou.- “Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!”- “É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta…” – aavó suspirou.- “Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rostoencovado, pálido!”- “É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha netinha…” – aavó ainda gemeu. (FIT, p. 73)

Tal conversa assustou Fita-Verde, num átimo de consciência que para a menina

foi “como se fosse ter juízo pela primeira vez” (FIT, 73), sendo então que ela gritou, em

um rompante de desespero: “– ‘Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!…’” (FIT, p. 73).

Contudo, era tarde demais, porque “a avó não estava mais lá, sendo que demasiado

ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo” (FIT, p. 73).

Foi assim que, por obra de Guimarães Rosa, “pôs-se a fábula em ata” (ROSA,

1967, p. 40).

4.3.1 Outras representações de Fita Verde

Dando continuidade a seu possível desejo de construir uma mais bem elaborada

representação da infância em sua literatura, através de personagens infantis do sexo

feminino, de meninas, no dia 08 de fevereiro de 1964, no Suplemento Literário do

Estado de São Paulo, João Guimarães Rosa publica a sua releitura escrita do conto

popular Chapeuzinho Vermelho, intitulada Fita Verde no Cabelo – a Nova Velha

Estória, texto acima apresentado. Conforme já foi dito, tal texto nunca chegou a ser

publicado novamente durante toda a vida de Guimarães Rosa, fato ocorrido somente em

seu livro póstumo, Ave Palavra (1970). Em 1992, no contexto das homenagens pelos

vinte e cinco anos da morte do autor, o texto de Fita Verde no cabelo ganhou uma

edição individual em livro pela Editora Nova Fronteira:

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Dessa vez, o público-alvo era o juvenil, aspecto claramente expresso pelas

ilustrações de Roger Mello, que não só mostram Fita Verde como uma menina em plena

puberdade, como também representam as figuras masculinas do Lobo e dos lenhadores

que, no texto rosiano, acabaram recebendo menor destaque. Vejamos um exemplo de

duas páginas do livro:

Figura 4.7 – Páginas ilustradas por Roger Mello pertencentes ao livro Fita Verde no Cabelo, de GuimarãesRosa, no qual podemos ver a caracterização de Fita Verde como uma jovem na puberdade e a dos caçadores,representados como lobos.Fonte – (ROSA, 1992, s/p.)

Figura 4.6 – Capa de Fita Verde no cabeloFonte – (ROSA, 1992, capa).

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Nessa representação não é ressaltado o caráter mais infantil de Fita Verde,

chamada no texto rosiano de “a meninazinha”, mas sim sua relação com o universo

masculino, com os lenhadores que acabaram virando lobos e acercam a garota para

ameaçá-la. Para além das ilustrações, o volume apresenta também outra leitura crítica

do texto rosiano em sua contracapa, produzida pela professora e pesquisadora de

literatura Glória Pondé:

Fita verde no cabelo apresenta uma nova leitura de ChapeuzinhoVermelho, história em que a personagem experimenta sentimentoscomo a alegria, o desejo, o medo e a solidão. Guimarães Rosa mostraa trajetória de fantasias de uma menina, até o confronto com a mortede sua avó, “quando mais se assustou, como fosse ter juízo pelaprimeira vez”.O conto, rico por si mesmo, escrito com um ritmo e uma forma deapresentação de cenas e imagens que muito o aproximam da poesia,encanta o público de qualquer idade. (PONDÉ, 1992, contracapa)

Caracterizando novamente Fita Verde como uma menina e descrevendo a

maneira de narrar do conto de forma a aproximá-lo de um poema, Pondé parece

questionar a leitura apresentada pelas ilustrações do livro.

4.3.2 Fortuninha crítica de Fita Verde no cabelo: a nova velha estória

Como vimos, Fita Verde no Cabelo – a Nova Velha Estória foi publicada em

periódico no dia 08 de fevereiro de 1964. Talvez por se tratar de um texto que não foi

publicado em livro durante a vida do autor – constituindo algo, portanto, quase que

equivalente a um manuscrito –, ele tenha recebido pouquíssimos comentários críticos.

De qualquer forma, para o presente levantamento, foram lidos dois textos e um

comentário, escritos por pesquisadoras da obra rosiana e publicados em revista de

literatura ou em capítulo de livro reunindo artigos sobre Guimarães Rosa. Nesses

artigos, as pesquisadoras apontam elementos importantes a serem observados por quem

deseja repensar a questão da infância na produção literária rosiana durante os anos 1960.

Pela ordem de publicação dos comentários, começamos pelo artigo A resistência

possível – ou, quem espera está vivendo (1987), de Suzi Sperber (1987). Sperber

começa seu texto nos lembrando de que a estória original de Guimarães Rosa havia sido

publicada por Guimarães Rosa no jornal de São Paulo apenas dois meses antes do golpe

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militar de 1 de abril de 1964149, três anos antes da publicação de Tutaméia (Terceiras

Estórias) (1967). Para nossa leitura, cabe destacar, também, que essa estória foi

publicada dois anos depois do lançamento das Primeiras estórias (1962), assumindo

assim posição intermediária entre os dois livros publicados por Rosa na década de 1960.

No decorrer de sua análise literária, a autora debruça-se demoradamente sobre o

texto de Guimarães Rosa, relacionando-o a toda a Literatura universal, ao destacar a

relação com clássicos como D. Quixote de La Macha (1915) de Miguel de Cervantes,

obra mencionada na estória por meio da citação a moinhos imaginários, e, visando tecer

aquela que consideramos como a melhor leitura do texto, a autora compara a estória a

sua matriz popular e também às versões escritas posteriormente por Charles Perrault

(1697) e pelos irmãos Grimm (1812), mostrando que o texto rosiano se refere, sim, a

um elemento que hoje reconhecemos como parte do repertório infantil. Na leitura de

Sperber,

A aldeia é o quadro de referência para Fita Verde. Aí estão os pares:velhos e velhas, homens e mulheres, meninos e meninas. O mundo(caminho entre aldeias) tem grupos de homens, os lenhadores.Individualizadas, tanto em Fita Verde no cabelo como emChapeuzinho vermelho, foram três mulheres, a vó, mãe, filha, reunidaspelo amor. Só Fita Verde é ímpar.A distância geográfica entre uma aldeia e outra é percorrida comdificuldade. Em Fita Verde os perigos inexistentes não interferem naescolha do caminho longo e louco. [...] a diferença entre Fita Verde eos outros moradores da aldeia consiste em ‘não ter juízo’. (SPERBER,1987, p. 75)

Nessa sagaz leitura, Sperber destaca a opção de Rosa em escrever uma paráfrase

de uma história popular protagonizada pela menina Chapeuzinho Vermelho, já que a

menina, como vemos, começa a estória ainda sem ‘juízo’, sem estar imersa no mundo

da razão, ou seja, tratando-se ainda de uma criança. Mas não é qualquer criança, é uma

do sexo feminino. Mais adiante no texto voltamos a ler acerca dessa opção:

[Comparando às versões de Chapeuzinho Vermelho escritas porPerrault e pelos irmãos Grimm] Guimarães Rosa opera algumasmudanças substantivas, como a mudança do nome próprio, aeliminação do lobo, e, pois, de uma função e necessidade de caçadores(figura masculinha, também, como as dos lenhadores, que perdem

149 Ainda que não concordemos com as leituras que procuram construir uma relação direta entre asestórias de Guimarães Rosa e a História do Brasil, não podemos deixar de lembrar que alguns críticosleram Fita verde no cabelo como um protesto contra o golpe militar de 1964, ainda que tal fato só fosseacontecer meses depois da publicação do texto no jornal. Acerca desse aspecto, remetemos nosso leitor àfala da professora Marisa Gama-Khalil, disponível em vídeo on-line (cf. http://vimeo.com/6414100).

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espaço na forma roseana). (Deste modo, ele atribui função apenas àsmulheres: mãe, filha, avó). (SPERBER, 1987, p. 75, grifo nosso)

Para nossa leitura, que se volta para as personagens meninas nas estórias de

Rosa, tal colocação tem importância capital, visto que, para Sperber, dentre as

destacadas personagens femininas, a personagem “ímpar” da estória é Fita Verde,

aquela cujo juízo está ainda a se formar, destacando que essa estória enaltece não

apenas as figuras femininas – que constituem as agentes do enredo –, mas também as

crianças – que trabalham lentamente na construção do próprio juízo através de múltiplas

vivências.

Já no que respeita à leitura dessa estória tecida por Adélia B. de Meseses (2010)

mais de vinte anos depois, em cuja análise o texto de Sperber também é citado,

envereda-se por caminho diferente, já que a autora propõe um um trabalho de Literatura

comparada, lendo Fita Verde no cabelo (1964) – que não é propriamente um texto

destinado ao público infantil, embora narre acontecimentos simbólicos na vida de uma

“meninazinha” – a partir de uma comparação com outros dois textos: Chapeuzinho

Vermelho (1967), escrito por Charles Perrault, texto que faz parte do grupo dos

chamados Contos de Fadas – narrativa maravilhosa que tradicionalmente auxilia a

criança a organizar melhor suas vivências (MENESES, 2010, p. 211) –, e Chapeuzinho

amarelo (1979), escrita por Chico Buarque. Meneses assim justifica sua opção:

“Embora as três narrativas tratem da questão do desenvolvimento infantil, dos percalços

e sofrimentos da criança para crescer, e também da questão do enfrentamento do MEDO

(medo infantil, mas também medo da criança que habita cada um de nós)” (MENESES,

2010, p. 212).

Ainda acerca de Fita Verde no cabelo, a autora chama a atenção para seu

subtítulo: Nova velha estória, destacado como consistindo em uma atitude de ousadia da

parte de Guimarães Rosa, pois ao reescrever a conhecida história da Chapeuzinho

Vermelho, ainda que

Mantendo quase o mesmo enredo e aparentemente as mesmaspersonagens, ele a recriará. Essa ruptura de um paradigma consagradoterá o efeito de atrair o olhar para o que surgia desatentamente nonosso campo de visão, de desautomatizar a percepção, e, assim, forçara atenção, ou melhor, nos forçar a prestar atenção. (MENESES, 2010,p. 219)

Esse desejo de, por meio da linguagem que emprega em sua literatura, causar

alguma espécie de estranhamento revelador, ao mostrar algo que nos parece tão

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conhecido em princípio, e fazer com que os leitores ativem novas veredas de percepção,

passando a ver o mundo como se fosse a primeira vez, tal como faz cotidianamente uma

criança, é, inquestionavelmente, uma das principais e mais relevantes empreitadas que

foram assumidas por Guimarães Rosa.

Embora os dois textos acima expostos apresentem leituras mais complexas da

estória de Fita verde, encontramos ainda um rápido comentário acerca do texto de

Guimarães Rosa no instigante livro Guimarães Rosa: do feminino e suas estórias,

escrito por Cleusa Rios P. Passos. Nele, a crítica literária estabelece uma sagaz leitura

das figuras femininas do universo rosiano, ainda que, dentre as quatro personagens que

destacamos aqui, apenas Fita Verde seja citada no livro todo. Para Cleusa, um dos

destaques do texto encontra-se no paradoxo do subtítulo – a nova, velha estória –,

enfatizando que ele já sublinha a importância do conflito como força motriz das

narrativas, seja ele entre homem/mulher, adulto/criança, escrito/falado, uma vez que

Reelaborando o conhecido, o narrador introduz o ‘novo’, a alteridade,seja como estranheza ou questionamento. Rosa enfoca o avesso davida, o que literalmente ela ‘remenda’ para depois ‘rasgar’, apoiando-se em desarticulações de linguagem e trama composicional de ‘velhaestória’. (PASSOS, 2000, p. 50)

Passemos, então, para nossa própria leitura desse texto rosiano.

4.3.3 Interpretação: Fome de Almoço

“Alface! Ó Alface!Faça-se, ó faça-se.

Ó alface, afinal,Faça-se o nosso al-Moço, face a face,

Ó Alface!”(Edward Lear, tradução Augusto de Campos – The History of the

Seven Families of the Lake Pipple-popple, Cap. IX, 1865)150

Em Fita Verde no cabelo, a narrativa se desenvolve em uma aldeia normal,

“com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e

meninas que nasciam e cresciam” (FIT, p. 72), sendo que, tal como já salientamos e

150 Edward Lear (1812-1888) foi um escritor e ilustrador inglês, considerado o criador do gênero“nonsense”. No texto original de Lear, a letra da canção, traduzida para o português por Augusto deCampos, é “Lettuce! O Lettuce!/ 'Let us, O let us,/ 'O Lettuce leaves,/ 'O let us leave this tree and eat/'Lettuce, O let us, Lettuce leaves!”. O livro original, em inglês, está disponível emhttp://www.nonsenselit.org/Lear/ns/pp.html. O interesse de Guimarães Rosa pelo universo nonsense e aligação disso com o mundo infantil está claramente expresso nas anedotas (que tantas vezes abordam alógica da criança), cujas reflexões se encontram no prefácio Aletria e Hermenêutica (ROSA, 1967).

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como destaca a leitura de Adélia Bezerra de Menezes: “da população desta aldeia e suas

ações fundamentais – pois o verbo indica a ação – os únicos seres que agem de fato,

são os meninos e meninas, que nasciam e cresciam – não foram (ainda)

neutralizados pela ação do tempo” (MENESES, 2010, p. 220, grifo nosso), talvez

devido a esse descomprometimento com as questões da vida adulta – expresso pelo

referido “algum juízo” – que no conto está alegorizado pela “fita verde inventada no

cabelo”, sendo trazido pela criança que pode agir em seu mundo e, efetivamente, olhar

tudo de forma realmente inovadora. Todavia, embora as crianças da aldeia reajam dessa

forma, só a personagem Fita Verde carrega o enfeite fantasiado na cabeça – fita verde

que, como o “passarinho verde pensamento” de Nhinhinha, concentra alguma ideia de

infância –, ela que na aldeia era apenas mais uma “meninazinha”, “a que por enquanto”

não tinha juízo algum e que, visando ultrapassar a floresta, escolhe trilhar o caminho

mais “louco e longo”.

Como que destacando o ambiente da ficção, já que “tudo era uma vez”, “aquela,

um dia, saiu de lá” da aldeiazinha, a mando de mamãe, “ela a linda”, com adorno

inventado no cabelo. O caminho foi percorrido “sobejadamente”, ela “saiu, atrás de suas

asas ligeiras, sua sombra também vindo-lhe correndo, em pós” (FIT, p. 72), e Fita Verde

deparou-se com muitas coisas reais, nada imaginado: “Divertia-se com ver as avelãs do

chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e

com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeiinhas flores, princesinhas e incomuns,

quando a gente tanto por elas passa” (FIT, p. 72), como se estivesse deixando de lado a

atividade infantil de fantasiar o mundo. Cabe destacar, entretanto, que no caminho ela

“viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem

peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo” (FIT, p. 72), o que fez com que

a menina permanecesse segura em sua travessia o tempo todo. Mas, apesar de tantos

elementos reais que ela viu em sua travessia, ela percebe que só chegará ao seu destino

depois que ultrapassar o “moinho que a gente pensa que vê”, moinhos ilusórios,

(SPERBER, 1987, p. 80) e as “horas que a gente não vê que não são” (FIT, p. 72), ou

seja, depois de adentrar plenamente o ficcional, como uma maneira de destacar que

aquele era um caminho de ficcionalização, sobretudo por meio da referência implícita a

Dom Quixote de Cervantes.

Foi então no caminho da floresta que Fita Verde perdeu seu adorno – elemento

que caracterizava a menina sem juízo da aldeia, fato que ela descobriu com tristeza só

quando chegou ao seu destino, “suada e com fome de almoço”. Aqui, as marcas

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deixadas por um processo de iniciação já aparecem claramente: ela transpirou e ficou

faminta ao fim de um grande esforço, como se tivesse mesmo passado por um ritual

iniciático, ainda que não tenha sido devido a perigo algum no caminho, sendo o esforço

interno151. É importante também sublinhar que tal fome, com a qual ela chegou à casa

da “avó que amava”, não era de qualquer alimento, mas “de almoço”, a primeira das

duas refeições substanciais do dia, marcando o fim da manhã e o começo da tarde.

Como se vê, na estória o almoço aparece ao fim do processo no qual a menina perdeu

sua fita verde. Dessa forma, se tomarmos o almoço, que marca o ponto central do dia,

como uma metáfora do desejo instintivo da criança de amadurecer, tal fome pode ser

vista como uma fome de vida, de novas coisas que, pequenina naquela aldeia, a menina

não pôde vivenciar. Falamos então de um ponto central, a saber, o ritual de crescimento

que tem lugar ali. No que concerne à transitoriedade da infância, contemplada como

elemento fundamental do projeto de Monteiro Lobato para o desenvolvimento de uma

Literatura Infantil que viesse a formar melhores brasileiros, nos fala Patricia Tavares

Raffaini:

A transitoriedade da infância: ela está destinada a não mais ser, a setornar adulta. [...] é nesta característica efêmera da criança que Lobatoaposta suas fichas. Seu projeto era tornar a literatura palatável àscrianças para que elas, gostando de ler, se tornassem ao crescer umpúblico leitor. A constituição de um público leitor era, desde o séculoXIX, um sonho almejado por literatos e intelectuais, sem o qual não sevia a constituição de uma nação. Desta forma, durante os anos deformação do público leitor, Lobato pretendia despertar a crítica, aautonomia de pensamento, a irreverência e também o humor nesseindivíduo em formação. (RAFFAINI, 2008, p. 16)

Dessa forma, quando Fita Verde enfim termina de percorrer seu caminho “louco

e longo” e chega a seu destino, encontrando a avó bastante debilitada, ainda lhe resta

algum tempinho para que a menina possa ouvir que a avó já não consegue mais vê-la.

Isso a assustou profundamente, causando na menina uma mudança profunda, como se

ela – já sem a fita inventada no cabelo – “fosse ter juízo pela primeira vez”, levando-a a

então expressar algum comprometimento: “Gritou: – ‘Vovozinha, eu tenho medo do

Lobo!…’”, só que era tarde demais, pois a avó já “estava demasiado ausente” (FIT, p.

73) em seu frio corpo.

Com essa estória, corrobora-se a hipótese aqui levantada de que o espaço do

periódico constituiu um dos lugares utilizados para experimentações literárias de

151 Também Adélia Bezerra de Meneses destaca essa fome como parte de um ritual iniciático em busca deexperiência, mas sem fazer a alusão ao almoço, como encetamos aqui (MENESES, 2010, p. 220).

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 236

Guimarães Rosa, sendo em um deles que o autor primeiro publicou sua bela versão

escrita de um conto popular de origem europeia do século XIV, narrativa sobre a

história de uma menina que atravessa a floresta, enfrentando vários perigos, a fim de

levar uma encomenda a sua avó, passando assim por um momento iniciático de

crescimento. Foi somente no século XVII, quando foi incluída no livro Histórias ou

contos do tempo passado com moralidades: Contos da mamãe gansa, do escritor

francês Charles Perrault (PERRAULT, [1697] 2012) que a fábula ganha o repertório

simbólico e alegórico que a caracterizam mundialmente até hoje: foi Perrault quem a

imaginou usando o pequeno chapéu rubro, detalhe descritivo que passou a definir

também o seu nome e a intitular essa que é uma das histórias mais conhecidas até hoje.

Bem depois, já no século XIX, a estória será reescrita e publicada novamente pelos

irmãos germâmicos Jacob e Wilhelm Grimm – ainda que já carregando muito na

simbologia imaginada por Perrault.

Em relação à história popular dos camponeses europeus e a sua passagem para o

mundo letrado, muitas interpretações vieram sendo feitas. Uma das mais conhecidas e

discutidas foi a proposta pelo psicólogo austríaco Bruno Bettelheim, em A Psicanálise

dos contos de fadas, que apresenta uma interpretação dos contos populares a partir do

repertório pscicanalítico. Problematizando a legitimidade de tal proposta interpretativa,

o historiador Robert Darton (1986) – que como dissemos é especialista na cultura

francesa da época da Revolução ocorrida no século XVIII – escreveu seu questionador

artigo Histórias que os camponeses contam: o Significado de Mamãe Ganso, no qual o

estudioso tenta resgatar o fato de aqueles contos serem representações culturais de um

grupo humano que viveu na França no século XVIII. Incomoda a Darton que

Bettelheim lê Chapeuzinho Vermelho e os outros contos como se nãotivessem história alguma. Aborda-os, por assim dizer,horizontalmente, como pacientes num divã, numa contemporaneidadeatemporal. Não questiona suas origens nem se preocupa com outroscontextos, porque sabe como a alma funciona e sempre funcionou. Naverdade, no entanto, os contos populares são documentos históricos.Surgiram ao longo de muitos séculos e sofreram diferentestransformações, em diferentes tradições culturais. Longe deexpressarem as imutáveis operações do ser interno do homem,sugerem que as próprias mentalidades mudaram. Podemos avaliar adistância entre nosso universo mental e o dos nossos ancestraiss se nosimaginarmos pondo para dormir um filho nosso contando-lhe aprimitiva versão camponesa do Chapeuzinho vermelho. Talvez, então,a moral da história devesse ser: cuidado com os psicanalistas – ecuidado com o uso das fontes. Parece que voltamos ao historicismo.(DARTON, 1986, p. 26)

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Por sua vez, em 2012, foi traduzido para o português e publicado no Brasil um

artigo escrito pelo antropólogo britânico Jack Goody, no qual são postas em questão

diversas proposições utilizadas por Robert Darton nesse artigo da década de 1980.

Goody comenta que

Darton é crítico das perspectivas de interpretar contos populares,especialmente da interpretação de Chapeuzinho Vermelho, de Fromm,que ele considera como uma tentativa de decodificar as linguagenssimbólicas do inconsciente coletivo na sociedade primitiva. Elecomenta que a versão de Fromm do texto foi “baseada em detalhesque não existiam nas versões conhecidas pelos camponeses nosséculos XVII e XVIII”. A psicanálise nos leva para um “universomental que nunca existiu”, que não aparecia “no conto popularoriginal”. Mas tenho dúvidas se é possível falar de um conto popularoriginal. Essa ideia volta à origem de formas orais das quaiscertamente não podemos ter nenhum conhecimento, ao contrário dotexto escrito, com seu estema construído deliberadamente. (GOODY,2012, p. 75-6)

Em importante nota de rodapé arrolada no texto de Darton, o historiador finaliza

seu raciocínio acerca da importância de se considerar a diferença entre as sociedades e

culturas, mostrando com isso um alinhamento com as perspectivas historiográficas de

seu tempo, quando se começa a repensar as ideias de historiografia e se determina que a

“historiografia moderna distingue-se da tradicional pelo diálogo com as ciências

sociais” (NOVAIS; SILVA (org), 2012, p. 14), sendo que, nesse caso específico, o

diálogo mais estreito parece ser com a antropologia, que se mostra capaz de desvendar

temporalidades diferentes atuando simultaneamente, aspecto que também é elogiado

pelo antropólogo Goody. Darton teria ainda apontado quatro questionamentos

fundamentais para um historiador cultural problematizar a partir da leitura psicanalítica

de Chapeuzinho Vermelho:

A interpretação dos contos populares feita por Bettelheim pode serreduzida a quatro falsas proposições: 1- de que os contos usualmenteeram dirigidos às crianças; 2 - que precisam ter sempre final feliz; 3-que são atemporais; 4- que eles podem ser aplicados, em versõesfamiliares aos norte-americanos modernos, a ‘qualquer sociedade’. Aocriticar a leitura psicanalítica dos contos populares, não pretendosugerir que os contos não contém nenhum elemento subconsciente ouirracional. Pretendo, sim, questionar o emprego anacrônico ereducionista das ideias de Freud. (DARTON, 1986, p. 338)

Visando problematizar o primeiro desses pontos, Goody cita S. Thompson, em

The Folktale, autor com quem o antropólogo já debatia:

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 238

Em nossa civilização são primordialmente as crianças pequenas quecontinuam a ter interesse pelo conto popular. Apesar dos esforços decertos educadores, esses contos continuam a ser narrados nos jardinsde infância e mais tarde a serem lidos em versões mais fáceis. Naverdade, essa situação é tão bem reconhecida que editoras ebibliotecas normalmente classificam todos os contos populares comoliteratura juvenil. Como uma medida prática essa atitude é justificada,pois adultos em um mundo de livros abandonaram essas velhasestórias considerando-as coisas de criança. E, no entanto, vimos queem um determinado momento, em todas as partes, esses contos nãoeram considerados infantis. (THOMPSON, 1951 apud GOODY,2012, p. 77)152

Realmente, até hoje, a apropriação das narrativas poéticas experimentadas pelas

crianças desde as cantigas de ninar é tão intensa que não dá para não dizer que essa não

constitui uma paisagem cultural que a criança habita e que nos conduz pelos caminhos

da narrativa. Ainda a partir do artigo de Jack Goody, o antropólogo começa o texto

afimando que ele “gostaria de ver incluída na história cultural a discussão da

significância das mudanças nos meios de comunicação (em particular, a capacidade de

ler e escrever)” (GOODY, 2012, p. 69). Ora, neste nosso trabalho, inserido na área de

História Cultural, estamos propondo justamente uma reflexão acerca das mudanças

ocorridas quando o ser humano iletrado (no caso, a criança) adquire a capacidade de ler

e escrever, questionando como um letrado escritor (no caso, Guimarães Rosa) pôde

retrabalhar esses conflitos em sua escritura, indo ao encontro das considerações

propostas para se chegar ao que Goody gostaria de ver surgir no âmbito da

historiografia cultural.

Para nós, é importante esclarecer que estudar a versão que Guimarães Rosa

escreveu do conto popular Chapeuzinho Vermelho dá conta de iluminar múltiplas

questões culturais envolvidas, afinal é claro que, para Rosa, ao se propor a tarefa de

escrever uma versão de Chapeuzinho Vermelho, tanto ou mais importante que repensar

as “realidades” populares na Europa Moderna, foi o diálogo estabelecido com os textos

escritos por Perrault e Grimm, porque foram eles que introduziram as narrativas

populares na literatura universal. Na introdução aos contos dos irmãos Grimm, Marcus

Mazzari escreve:

Em seu primoroso ensaio O narrador, Walter Benjamin vislumbra nogênero consolidado pelos irmãos Grimm uma célula primordial dasformas literárias ligadas à tradição oral e popular. Com o postulado de

152 Jack Goody cita THOMPSON, S. The Folktale, Nova York, 1951.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 239

que todos os autênticos representantes da arte narrativa trazem dentrode si o narrador de contos maravilhosos, Benjamin levanta umafecunda hipótese, que poderia ser pensada até mesmo à luz douniverso ficcional das Primeiras Estórias e de outras narrativas deGuimarães Rosa que colocam os personagens em sintonia anímicacom a ‘voz da naureza’. (MAZZARI, 2012, p. 16)

Em 27 de março de 1966 – mais de dois anos depois da publicação rosiana em

São Paulo, mas ainda antes do texto sair em Ave, Palavra (1970) –, foi publicado no

periódico O Jornal, de Manaus, um poema escrito pelo poeta e jornalista Jorge Tufic,

dialogando diretamente com a estória rosiana:

REINVENÇÃO DO CHAPEUZINHOO que alerta a meninaé a dor de não ser -o que manda seu corpodebaixo do pote,onde amarra sua fitade há muito vertidano verde caminho.

E vai. Pela aldeiacolada no agreste.Seu tempo é nenhum,de vê-la, falenaa caminho do bosquetangida se vão:nuvens, passa redorditosa giestas.

Direis a meninaavocando seu mêdoque, pleno, dialogacom a fome de ser .

Direis em seu mêdoque bons lenhadoreso lobo extinguiram,que bosque onde haviasecou.

Direis como falamsimples as de maioonde flores vulgaresmedem nossa ausência.

E que acima de tudolhe resta o vaziodo mêdo, o lobo a fomea casasomados ao quando -era verde o silêncio

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 240

em pós a menina:e a lenda, que sendo,breve, nos penetra. (TUFIC, 1966, s/p., grifo nosso. Arq. IEB/USP>JGR>> Literatura > Fortuna > JGR-R09,123 )

Como vemos, inicialmente, o poema de Tufic alinha-se bastante com a leitura

aqui apresentada, o que fica evidente nos trechos grifados, além do fato de em ambos a

figura principal da estória ser uma menina – grupo que tomamos aqui como uma

importante forma de caracterização da infância na produção literária de Rosa na década

de 1960 –, cabendo igualmente lembrar que os textos vieram a público pela primeira

vez nas páginas de um jornal e que eles assim mantiveram diálogo, usando também as

páginas dos periódicos, o que nos leva a pensar que os periódicos – talvez por seu

caráter temporário – fosse realmente um espaço legítimo para diálogos literários

naquele período.

Na estória escrita por Rosa, abordando a passagem da infância para a

maturidade, nos parece ser de fundamental interesse que a fita inventada da

meninazinha seja da cor verde, logrando assim simbolizar “os verdes anos da sua

infância e de esperança”, implicando em que, ao perdê-la, a menina amadurece e “deixa

de ser verde – como se fosse ter juízo pela primeira vez” (MENESES, 2010, p. 223).

Além disso, a troca do acessório vermelho – simbolizando o despertar da sexualidade

adulta –, pela ingênua fita verde pode indicar o abandono do destaque da questão da

sexualidade madura, privilegiando a percepção do mundo infantil.

Uma leitura que começou a ser desenvolvida por Sperber, posteriormente

prolongada por Meneses, sobre a qual ainda não comentamos, diz respeito aos possíveis

significados dos objetos que a menina leva para a avó:

Todas as abordagens críticas153 ressaltam aquilo que, por sinal, não dápara a gente não ver na sintaxe estranhada de Guimarães Rosa: “otanto que a mamãe me mandou”, não é especificamente o pote de doceem calda e o cesto (vazio) que a mãe manda à avó, mas a mãe mandaa neta: “me mandou”. Pote e cesto figurações de receptáculo, emetaforicamente, mas também metonicamente, eu diria, femininos:são ‘continentes.’ E o cesto estava simbolicamente vazio – apto paravoltar... preenchido? (MENESES, 2010, p. 222)

Se no conto popular Chapeuzinho Vermelho, primeiramente escrito por Perrault,

a mãe diz à menininha: “- Vá ver como a avó está passando, porque me disseram que

153 Ao falar em “todas as abordagens críticas” sobre Fita verde no cabelo, Meneses cita apenas o trabalhode Sperber, sugerindo que seus dois textos compõem a única referência crítica dessa estória, ainda quetenhamos apresentado também o rápido comentário tecido por Cleusa Rios P. Passos.

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ela está doente e leve uma torta e este potinho de manteiga” (PERRAULT, 2012, p. 37),

na versão escrita pelos irmãos Grimm, a ordem da mãe fica sendo: “Pegue esta fatia de

bolo e esta garrafa de vinho e leve até a casa da vovó que está fraca e doente” (GRIMM,

2012, p. 137). Em ambas as versões, notamos que os recipientes levados pela menina

estão preenchidos por alimentos, preferencialmente doces (um bolo, uma torta) e mais

outro elemento (potinho cheio de manteiga ou uma garrafa cheia de vinho). Quando

Guimarães Rosa reescreve a aventura vivida pela menina, o que a mãe manda para a avó

não são as tigelas ou garrafas cheias de algo para ser consumido, mas sim a própria neta

e, junto a ela, vão também um cesto de compota e um pote desocupado. Ainda que nas

três versões possamos observar o aparecimento de recipientes preenchidos com doces,

ao contrário das duas primeiras versões, na escrita por Guimarães Rosa a menina

também leva duas cunhas, sendo que uma delas está vazia. Um recipiente vazio, como

vimos, é um receptáculo e, esotericamente, também representa o local no qual ocorre a

fertilização, o nascimento de uma nova vida, constituindo assim um símbolo feminino.

Também o vazio está contido na ideia da framboesa vermelha – fruto que a mamãe a

mandou colher no caminho a fim de preencher o pote vazio. Todos esses elementos

bastante caros ao ideário de Guimarães Rosa, segundo as hipóteses aventadas por

Sperber e Meneses, operam ativamente no texto rosiano, ratificando evidentemente a

exaltação das experiências simbólicas e naturais femininas.

Olhando para a posição central de Fita Verde no cabelo: Nova velha estória no

quadro das estórias protagonizadas por meninas crianças, escritas por Guimarães Rosa

na década de 1960, e lembrando as temáticas nele sublinhadas que aqui destacamos,

parece bem possível que houvesse, sim, um maior interesse no universo feminino, até

mesmo em se tratando de crianças, tal como é nossa hipótese.

4.4 Djaiaí

Djaiaí154 é a protagonista da estória Tresaventura, do livro Tutaméia. Acerca do

significado do título da estória, falaremos mais adiante, por ora cabe lembrar que, das

quatro estórias selecionadas aqui, essa é a única que possui epígrafe: “... no não perdido,

no além passado...” (DJA, p. 174), citação que estaria em MNEMÔNICUM, que pode

154 Para ressaltar que nosso interesse está focado na personagem menina Djaiaí, enquanto estivermosanalisando ou interpretando Tresaventura, convencionamos fazer a referência à estória por meio da siglaDJA, seguida da página do trecho, a fim de indicar que estamos citando a referida obra rosiana (ROSA,1967).

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ser uma referência real, por nós desconhecida, ou mesmo uma invenção de Guimarães

Rosa, visto que nas estórias de Tutaméia ele quase sempre usa epígrafes. Essa parece

nos querer levar a um longínquo passado, que ainda está em alguma parte de nós.

Assim como em A Menina de lá, essa estória começa com a descrição do cenário

no qual o enredo vai se desenvolver: “Terra de arroz. Tendo ali vestígios de pré-

idade155?” (DJA, p. 174), mostrando-nos logo de início indícios de qual passado distante

se está falando: seria onde ainda restam (não está perdido) vestígios pré-históricos156?

Desse contexto primitivo, como nos indica o texto rosiano, fazia parte dois elementos

fundamentais: o cultivo de arroz157 e uma menina pequena.

No que respeita à menina, personagem que aqui nos interessa, não conhecemos o

nome por enquanto, somente os apelidos pelos quais a chamavam: “Dja ou Iaí” (DJA, p.

174). Acerca de sua caracterização, o narrador nos conta um pouquinho mais a seguir:

“mão na boca, manhosos olhos de tinta clara, as pupilas bem pingadas [...]”, era

“menininha de babar em travesseiro. Sua presença não dominava 1/1.000 do ambiente”

(DJA, p. 174). Sobre si mesma, como que destacando estar em pleno estado de

formação da subjetividade – na infância –, a menina “De ser, se inventava: - ‘Maria

155 “Idade: “4- cada um dos períodos em que se costuma dividir a vida do homem; época, tempo; [...] 7-geol. Unidade geocronológica formal de categoria hierárquica mais inferior, abaixo de época, durante aqual as rochas do estágio correspondente foram formadas [...] – i. da pedra ARQ GEOL primeira divisãodo sistema de três idades, subsequentemente dividido em Paleolítico, Mesolítico e Neolítico(caracterizada pelo uso de outros materiais além do metal, como pedra, madeira ou ossos, com propósitostécnicos) – i. da pedra lascada ARQ GEOL m.q. PALEOLÍTICO – i. da pedra polida ARQ GEOL m.q.NEOLÍTICO [...]”. HOUAISS, 2001, p. 2778.156 Em 2013, o fotógrafo Sebastião Salgado publicou o livro de fotografias Gênesis, no qual ele explica:“Nossa missão consistia em encontrar paisagens terrestres e marinhas, animais e comunidades antigas quetinham escapado do braço comprido – e frequentemente destrutivo – do ser humano moderno. Demos aoprojeto o nome de Gênesis porque imaginamos uma viagem no tempo, às erupções e aos terremotos quemoldaram a terra; à atmosfera e ao fogo que originaram a vida; às espécies mais antigas de animais queainda resistem à domesticação; às tribos remotas cujo estilo de vida se mantém em grande parteinalterado; e às ancestrais formas de organização humana ainda existentes” (SALGADO, 2013, p. 06-7).Nas imagens de Salgado, podemos ver algo semelhante ao que Rosa teria chamado de “vestígios de pré-idade” em Tresaventura.157 “Alimento tradicional de vários países da Ásia, hoje se considera esta planta como proveniente daChina” ( BAO-RONG; DUNCAN; TOMOOKA, 2011). Estudos arqueológicos apontam sua existência naÁsia há milhões de anos a.c. (HARRIS, 1996, p. 565). Simbolicamente, “O arroz é de origem divina. Nãoapenas encontrado na abóbora divina. Não apenas é encontrado na abóbora primordial, da mesma formaque as espécies humanas, mas, como o maná no deserto, cresce e enche os celeiros espontaneamente. [...]A laboriosa cultura do arroz é consecutiva à ruptura das relações entre o céu e a terra” (CHEVALIER;GHEERBRANT, 1994, p. 82). “Fundamento alimentar asiático, tem no Japão uma deusa, Inari, égide doarroz” (CASCUDO, 1984, p. 117). Segundo a História da Alimentação no Brasil, o arroz foi herançatrazida pelos portugueses, que o cutivavam pelo menos desde o medieval século XIII (CASCUDO, 1968,p .96), e já aparece nas crônicas dos primeiros viajantes como alimento utilizados pelos indígenas(CASCUDO, 1968, p. 94). Ainda que o feijão – alimento mais tradiconal do país – costume seracompanhado pela farinha nas mesas mais pobres, e o arroz só seja utilizado pelos mais abastados, elecontinua sendo um dos mais conhecidos acompanhantes do feijão e esta dupla vem sendo responsávelpela alimentação das populações migrantes brasileiras desde a colônia (CASCUDO, 1968, p. 100).

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Euzinha...’ - voz158 menor que uma trova159, os cabelos cacho, cacho” (DJA, p. 174).

Por ser assim tão pequenina, a menina também era ensimesmada, uma menina quieta,

como Nhinhinha: “Ficava no intato mundo das ideiazinhas ainda. Esquivava o

movimento em torno, gente e perturbação, o bramido do lar. – ‘Eu não sei o quê.’

Suspirinhos” (DJA, p. 174). Mas ela, bem como as outras três meninas, também tinha

sua própria fé, sigilos e sabedoria infantil: “Sabia rezar entusiasmada e recordar o que

valia. A abelha é que é filha do mel; os segredos a guardavam” (DJA, p. 174).

Dentre as meninas que protagonizam estórias, essa é a única que tinha opinião

sobre si mesma: “Via-se e vivia de desusado modo, inquieta como um nariz de

coelhinho, feliz feito narina que hábil dedo esgravata. – ‘Dó de mim, meu sono?’ -

gostava, destriste, de recuar do acordado” (DJA, p. 174). Depois dessa caracterização

tão em processo, a estória nos revela aquilo que talvez seja o mais importante sobre essa

menininha: “antes e antes, queria o arrozal, o grande verde com luz, depois amarelo

ondeante, o ar que lá. Um arrozal é sempre belo. Sonhava-o lembrado, de trazer

admiração, de admirar amor” (DJA, p. 174). Como veremos, será esse desejo que fará

com que a menina ative a força motriz da narrativa da estória, afinal ele não era

satisfeito nunca: “Lá não a levavam: longe de casa, terra baixa e molhada, do mato onde

árvores se assombram - ralhavam-lhe; e perigos, o brejo em brenha - vento e nada, no ir

a ver...” (DJA, p. 174). No entanto, para os argumentos dos adultos, a criancinha “Não

dava fé; não o coração” (DJA, p. 174), ela sabia e “segredava-se, da caixeta de uma

sabedoria: o arrozal lindo, por cima do mundo, no miolo da luz - o relembramento160”.

Escondida na caixinha de sabedoria de Maria Euzinha, “mentirinhas brancas”

que pintavam os três dedinhos com que ela tapava os olhos (DJA, p. 174), regida por

esse conhecimento instintivo, ela “precisava de ir; sem limites. Não cedia desse desejo,

de quem me dera. Opunha o de-cor de si, fervor sem miudeio, contra tintim de tintim”

(DJA, p. 174), enquanto que o irmão contava terríveis estórias sobre o “– ‘O ror...’ ”

(DJA, p. 175), que era o arrozal, pois ele ali tinha de “agitar os pássaros, mixordiosos,

158 Voz: Segundo o dicionário da língua portuguesa, o termo tem mais de dez acepções, sendo as maissignificativas para o uso na leitura de Tresaventura, estória que fala sobre uma criança pequena, asseguintes: “1- Som ou conjunto de sons emitidos pelo aparelho fonador; 2- Faculdade de falar, fala; [...]6- Manifestação vebal da palavra; 7- Direito de falar; 8- Sugestão íntima; [...] 10- Som resultante davibração das cordas vocais” (FERREIRA, 2010).159 “Trova – 1- Lit na Idade Média, composição poética acompanhada de música; cantiga 2- Lit quadrinha3- quadra musicada, cantiga, canção” (HOUAISS, 2001, p. 2778).160 Relembramento: Neologismo criado por Guimarães Rosa. Sugerimos que ele venha do verbo quesignifica o ato ou processo de lembrar(-se) de novo de algo ou de alguém. Como no texto o termo éprecedido pelo artigo o, Rosa operou sua substantivação e então passou a poder nomear um ser ou umobjeto, ou ainda uma ação, um evento, qualidade ou estado, ou, se quisermos, a duração da memória.

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que tudo espevitam, a tremeter-se, faziam o demônio. Pior, o vira-bosta161. Nem se

davam do espantalho..” (DJA, p. 175). “Dja fechava-se sob o instante: careta por laranja

azeda. Negava ver” (DJA, p. 175). Ocorre que, para ela, a realidade do arrozal sonhado

– rememorado? – era outra: “Todo negava o espantalho - de amordaçar os passarinhos,

que eram só do céu, seus alicercinhos. Rezava aquilo. O passarinho que vem, que vem,

para se pousar no ninho, parece que abrevia até o tamanho das asas... Devia fazer o

ninho no bolso velho do espantalho!” (DJA, p. 175).

Mas não adiantava, o irmão continuava tentando assustá-la: “- ‘A água é feia,

quente, choca, dá febre, com lodo de meio palmo...’ ” (DJA, p. 175), mas ela negava

aceitar e dizia: “- ‘Não-me, não!’ - ela repetia, no descer dos cílios, ao narizinho de

rebeldias. Renegava. Reza-e-rezava. A água fria, clara, dada da luz, viva igual à sede da

gente... Até o sol nela se refrescava” (DJA, p. 175). O irmão então arrisca um

argumento mais pesado e envolve animais assustadores na tentativa de desconstruir o

sonho infantil da menina: “– ‘Tem o jararacuçu162, a urutu-boi163...’ - que picavam. O

sapo, mansinho de morte, a cobra chupava-o com os olhos, enfeitiço: e bote e nhaque...”

(DJA, p. 175). Mas a menina continuava irredutível frente à desconstrução do discurso

do irmão, ela: “psiquepiscava. Arrenegava. Apagava aquilo: avesso, antojo. Sapos,

cobras, rãs, eram para ser de enfeite, de paz, sem amalucamentos, do modo são,

figuradio. E ria que rezava” (DJA, p. 175). Ela conseguia assim reverter os alertas que

lhe eram colocados porque seu desejo era sempre mais forte: “sempre a ver, rever em

ideia o arrozal, inquietinha, dada à doença de crescer. – ‘Hei-de, hei-de, que vou!’ -

agora mesmo e logo, enquanto o gato se lambia” (DJA, p. 175). Tomada essa decisão,

foi preciso que algum acontecimento desse início à aventura, um novo dia, um novo

tempo: “Saíra o dia, a lápis vermelho - pipocas de liberdade” (DJA, p. 175). E ela,

pequenina, “soltou-se Iaí, Dja, de rompida, à manhã belfazeja, quando o gato se

englobava” (DJA, p. 175).

A travessia da pequenina foi assim: “Sus, passou a grande abóbora amarela, os

sisudos porcos, os cajus, nus, o pato do bico chato, o pato com a peninha no bico, a flor

que parecia flor, outras flores que para cima pulavam, as plantas idiotas, o cão, seus

161 Vira-bosta: (Molothrus bonariensis) é uma ave parasita que na Paraíba é conhecido como “papa arrozescuro”, considerado uma praga agrícola, especialmente nas culturas de arroz, porque ele costuma sealimentar desses grãos.162 Jararacuçu: (Bothrops jararacussu) é uma serpente venenosa, também conhecida como surucucu.163 Urutu boi: (Bothrops alternus) é uma serpente venenosa, da família Viperidae, a mesma da jararaca,cascavel e surucucu.

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dislates164”(DJA, p. 175). Se compararmos as primeiras narrativas da aventura

empreendida por Maria Euzinha ao ritual de amadurecimento vivido por Fita Verde,

elas começam se alinhando bastante, visto que ambas observam a realidade e tiram suas

próprias conclusões sobre ela. Mas, como que destacando o fato de ela ser uma criança,

a pequenina Iaí ainda não tinha definido o senso de direção: “Virou para um lado, para o

outro, para o outro - lépida, indecisa, decisa. Tomou direitidão. Vinha um vento

vividinho, ela era mimo adejo de ir com intento” (DJA, p. 175).

De repente, Iaí se lembra dos pássaros: “Na fina pressa, não os via, o passarinho

cala-se por astúcia e arte. Trabalhavam catando o de comer, não tinham folga para

festejo. Fingiam que não a abençoavam?” (DJA, p. 175). E a reconstrução onírica da

realidade efetuada pela menina segue: “Eis que a água! A poça de água cor de doce-de-

leite, o límpido se formava. A água era a mãe-d’água165” (DJA, p. 176). Subitamente,

“aqui o caminho revira – no chão florzinhas em frol – dali a estrada vê a montanha”

(DJA, p. 176). Então, os instintos da menina manifestam-se de forma mais rápida do

que até então: “Iaí pegou do ar um chamado: de ninguém, mais veloz que uma voz,

ziguezagues de pensamentos. Olhou para trás, não-sei-por-quê, à indominada surpresa,

de pôr prontos olhos” (DJA, p. 176). O aviso materializou-se na significativa cena

vivenciada pela menina: “O mal assombro! Uma cobra, grande com um sapo na boca,

estrebuchado... os dois, marrons, da cor da terra. O sapo quase já todo engolido, aos

porpuxos: só se via dele a traseirinha com uma perna espichada para trás...” (DJA, p.

176). Era a realidade já adiantada pelo irmão, que Dja vinha negando e se esforçando

para descontruir, frente à qual ela teve de se posicionar:

tornou sobre si, de trabuz166, por pau ou pedra, cuspiu na cobra.Atirou-lhe uma pedradada paleolítica, veloz como o amor. Aquilodesconcebeu-se. O círculo ab-rupto, o deslance: a cobra largara osapo, e fugia-se assaz, às moitas folhuscas, lefe-lefe-lhepte, comomais as cobras fazem. De outro lado, o sapo, na relvagem, a rojo sesafando, só até com pouquinho pontinho de sangue, sobrevivo. O sapotinha pedido socorro? Sapos rezam também – por força, hão-de! Osapo rezara. (DJA, p. 176)

164 Dislate: Asneira (MARTINS, 2001, p. 171).165 Mãe-d’água: É o ser que corresponde àquilo que o mito europeu chamou de sereia: “No Brasil dos sécsXVI e XVII na cultura brasileira, não havia a mãe-d’água atual. [...] O mito das águas compreendia a umaexpressão misteriosa, não defensiva ou protetora, mas sempre contrária e assassina: a cobra-d’água,cobra-grande, mboiaçu, a cobra-preta, boituva” (CASCUDO, 1984, p. 455).166 Trabuz: No caso específico de Tresaventura, significa “Em movimento súbito, brusco” (MARTINS,2001, p. 495).

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 246

Esses acontecimentos não foram tranquilos para a menina e, tal como se ela

tivesse saído de um ritual de amadurecimento, seu nome completo aparece pela primeira

vez na estória:“Djaiaí167, sustou-se e palpou-se – só a violência do coração bater” (DJA,

p. 176). Mas foi socorrida, assim como aconteceu com Brejeirinha no fim de sua

estória, já que aparece a “mãe, de lá gritando, brava ralhava” (DJA, p. 176) e ela então

“Volveu. Travestia o garbo tímido, já de perninhas para casa” (DJA, p. 176).

Ao final, o “arrozal não chegara a ver,” (DJA, p. 176), continuava apenas

sonhando-o: “lugar tão vistoso: neblinuvens. – ‘A bela coisa!’ – mais e mais, se disse,

de devoção, maiormente instruída” (DJA, p. 176). Então volta à cena o irmão,

zombando da tentativa da menina: “- ‘Você não é você, e eu queria falar com você...’ –

Maria Euzinha” (DJA, p. 176). Mas já era tempo de voltar a lidar com o sono, pois os

momentos de vigília tinham sido bastante ricos: “Ia dali a pouco adormecer – ‘Devagar,

meu sono...’ – dona em mãozinha de chave dourada, entre os gradis de ouro da alegria”

(DJA, p. 176).

4.4.1 Fortuninha crítica de Tresaventura

Acerca de Tresaventura foram encontrados artigos críticos maiores e mais

elaborados do que aqueles dedicados às três primeiras estórias aqui apresentadas,

fazendo com que essa Fortuninha Crítica se componha de forma um pouco diferente,

mas ainda sendo uma curta seleção de textos críticos que tentaram indicar algumas

perspectivas de leitura da estória. Dos quatro que foram elencados por nossa pesquisa,

167 A sagaz leitura dos nomes dados a essa personagem construída por Giselle Madureira Bueno é aseguinte: “Djaiaí ou Dja ou Iaí; são três charadas da onomastoteca rosiana. O significado da formaencompridada, em que as duas sílabas são adjungidas, poderia ser auferido de dicionário: Jaíra, femininodo hebraico Iaír, de étimo controverso: ‘que Deus anima, desperta’; ‘o iluminado de Deus’; ‘habitante dafloresta’ (AZEVEDO, 1993, p. 319). O ‘D’ (supostamente protético) dessa invenção rosiana trariasugestões divinais, truque já deslindado pelos críticos em outros nomes e casos, como o de Diadorim.Hipóteses em algum grau convergentes são desembrulhadas diretamente do texto e, por conseguinte, maisconvincentes: Dja remeteria a ‘dia’ com toda sua carga simbólica de atualidade e solaridade divina; já aparelha Dja/Iaí, de maneira similar, se soldaria com o modus vivendi do agora, da prontidão e datravessia: o ‘já’ e o ‘aí’, tão próprios desse personagem. Com efeito, seu nome tende a confundir-se,sistematicamente, com esses dois advérbios, por força de uma fonética oculta que parece estar sempre aevocar tempo imediato e/ou transitivo. Às vezes paralelos, ambos se acoplam na última sentença em quesurgem: ‘Dja fechava-se sob o instante: careta por laranja azeda.’ (= ‘Já fechava-se sob o instante: caretapor laranja azeda.’) ‘Iaí psiquepiscava.’ (= ‘E aí psiquepiscava’) ‘Soltou-se Iaí, Dja, de rompida, àmanhã belfazeja, quando o gato se englobava.’ (= ‘Soltou-se [e] aí, já, de rompida, à manhã belfazeja,quando o gato se englobava.’) ‘Iaí pegou do ar um chamado: de ninguém, mais veloz que uma voz,ziguezagues de pensamento.’ (= ‘E aí pegou do ar um chamado: de ninguém, mais veloz que uma voz,ziguezagues de pensamento.’) ‘Dja tornou sobre si, de trabuz, por pau ou pedra, cuspiu na cobra.’ (= ‘Játornou sobre si, de trabuz, por pau ou pedra, cuspiu na cobra.’) ‘Djaiaí, sustou-se e palpou-se só aviolência do coração bater.’ (= ‘Já-e-aí, sustou-se e palpou-se só a violência do coração bater.’) (osnegritos na estória de Rosa são meus)” (BUENO, 2012, p. 29-31).

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 247

apenas um texto já apareceu em outras Fortuninhas Críticas (SIMÕES, 1982), sendo

que os outros três textos se apresentam em formatos distintos entre si: um é um trecho

de uma tese de doutoramento que, embora trate da estória, tem como objetivo discutir

mais aprofundadamente outros temas (BUENO, 2012), o outro é um artigo publicado no

livro dos anais de um congresso de literatura (SIMÕES, 2002) e o último é um artigo

escrito para uma revista de cultura (PARO, 2008). Vejamos, um a um, uma síntese dos

conteúdos desses textos.

Em sua tese de doutoramento defendida na USP em 2012, Giselle Madureira

Bueno pretendia discutir a presença dos temas humor e alegria no livro Tutaméia.

Visando tal objetivo, em determinado momento, a pesquisadora destaca a estória de

Djaiaí. Nessa interpretação,

Tresaventura é menos um conto sobre uma sapeca que, por estro e porventura, resgata um sapo do que sobre um sapo que, por encanto e poracaso, resgata uma sapeca. [...] Graças aos gritos da mãe e àconvergência serendipitosa de sapo e sapeca na virada do caminho, écumprida não a proeza temerária que ela mesma se havia proposto aopôr-se em viagem, mas outra, surgida de repente. Com o excitamentoe trescontento de grande empreita realizada, a garotinha, até entãoobstinada, distrai-se da excursão perigosa em meio a cobrascomedoras e resolve, inopinadamente, reconverter-se ao lar. E ela nemse dá por nada disso; nem de longe desconfia do furdunço de que selivrou. O [citando e estória de Rosa] “brejo em brenha”, sendorealmente isto o que é para os adultos, continua sempre a ser o paraísoque um dia foi imaginado pela pequenina. Quero dizer, para ela, ele é,de fato, isso. Eis talvez, na lente de Rosa, exemplum de uma certeiraobjetividade que um ponto de vista profundamente subjetivo podealcançar. (BUENO, 2012, p. 31)

Assumindo essa leitura original da estória, Bueno ainda justifica que a estrutura

da estória também traz marcada algumas heranças relacionadas à História da cultura

universal:

O namoro do texto com as narrativas do maravilhoso é flagrante [...]Mas não é, veja-se bem, que esse personagem meio lobatianodesconheça totalmente o mundo tal como os adultos e parentes oretratam: ele não vinga é botar fé nele, conformar-se com ele a partirde seu coraçãozinho [...]. O ato mágico trans-formador posto emprática ritualiza a visão: ela pisca os olhos ou tapa-os com os dedos(cujas unhas estão pintadas de mentirinhas brancas), toda vez que avida se prova como uma laranja azeda o que, ao cabo de contas,denuncia que a contrariedade do estragoso mundo foi ao menosintuída como tal. [...] Maria Euzinha psiquepisca: busca (re)centrar-se,fecha-se e interioriza-se; coloca-se a si mesma e ao mundo nas trevaspara voltar a ver, “rever”, com outra luz: a da sua ideiazinha interior.(BUENO, 2012, p. 31-2)

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Para além desses fatores, Bueno destaca também a importância da religiosidade

e a diferenciação do olhar infantil na construção da personagem:

O olhar, já, em si, atuante, não se confunde com a recepção passiva doque está lá fora. A realidade é, para ela, antes coisa que se reza do quecoisa que, simplesmente, se vê. É daí, enfim, que nasce toda a suarenitente negaça... infantil? Sim, há algo disto, certa e explicitamente;mas não é este o aroma da estória. Descartado o enfoque de umrealismo puro e ingênuo, fica difícil para o leitor demarcar um cenárioverdadeiro: o dela ou o dos pais? A pilantrinha, pelo menos, parece terum bom pressentimento da porção de fantasia que há em suasrepresentações. (BUENO, 2012, p. 32)

Já de acordo com a leitura de Sandra Regina Paro, Tresaventura é uma narrativa

que aponta para uma “interpretação do mundo infantil, artístico, mágico, o mundo ideal

pensado, ao devaneio poético do leitor” (PARO, 2008, p. 799). Embora Paro identifique

a sensibilidade de Guimarães Rosa ao retratar o universo infantil através de Djaiaí, por

meio de “vários símbolos da vida e do amor suscitados nesse conto de Rosa: o arroz, a

água, a reza, o sapo, a cobra; todos eles convergindo para um mesmo ponto, o da vida,

da criação, da transcendência, do mundo superior, o infantil, o artístico” (PARO, 2008,

p. 800), de todos esses símbolos apontados pela pesquisadora, talvez o mais interessante

seja mesmo o arroz, visto ela mesma explicar que

A simbologia trazida pelo grão é antiga, é da pré-idade e traduzatravés dos “vestígios” deixados pelo narrador de que se trata de umaterra além, da recordação [...] ao arroz, um grão, uma ‘ninharia’associada em sua história à existência humana. O arrozal, simbolizadopelo alimento da vida e da imortalidade, da felicidade e da fertilidade.Localizado o espaço, diga-se de passagem, absolutamente impreciso, anão ser pela referência ao cultivo, o que nos leva a inferir o ambienterural, temos a apresentação da protagonista, “Só a tratavam de Dja ouIaí, menininha de babar em travesseiro. Sua presença não dominava1/1000 do ambiente”. Uma criança, pequena, um milésimo depresença, ou seja, “ninharia”, “quase nada”, praticamenteimperceptível. (PARO, 2008, p. 801-2)

O relevante a se destacar nessa leitura é a importância dada ao arroz, afinal, a

partir dele, em um grão tão pequenino, podemos encontrar simbolizada uma referência

concentrada a eras e idades da História humana, ao que nos indagamos: também seria

assim com as crianças pequenas?

De maneira semelhante, na leitura de Darcília Simões, temos a explanação da

ideia de que, em Tresaventura, Rosa tenta representar o mundo infantil. Na estória de

Djaiaí,

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O mundo pensado do tempo infantil confunde-se com a ficção. É ummundo quase sempre fantástico, maravilhoso. E as descriçõescaptáveis em Tresaventura conduzem a esse tipo de mundo. Osneologismos arrolados, além de funcionarem como ícones da falainfantil – na qual o sistema linguístico se presta ao uso e ao ‘abuso’ –também servem de índices para a formulação de um mundohipotético, possivelmente existente na mente infantil. Nesse mundo, ascoisas se apresentam mais vivas, mais ricas que as percebidas pelosolhos adultos, quase sempre embaçados pelo desencanto.O mundo infantil, mágico, belamente possível, viabiliza astransformações, a criação do mundo ideal pensado. (SIMÕES, 2002,p. 28)

Claro que esse tipo de encenação não deve ser fácil de ser pensada por um

adulto, ainda que seja por um artista da palavra como Guimarães Rosa. Para executá-la,

ele aposta em algumas referências inegavelmente infantis:

um primeiro modelo de mundo se anuncia: a infância, o das coisaspequeninas e singelas. Das ideiazinhas virgens e férteis.A maestria de Guimarães Rosa empresta ao personagem narrador deTresaventura a capacidade de relatar a estória por meio de umaseleção lexical muito particular. O léxico vernáculo é acrescido deformas novas (neologia), e unidades preexistentes são enriquecidas emseu espaço significativo em função do uso extravagante de que vêm aparticipar durante a aventura do então narrado.O mundo de Dja ou Iaí (a menininha) é construído com diminutivos,com neologismos típicos das experiências linguísticas infantis, na fasede aquisição da língua. (SIMÕES, 2002, p. 27)

Prosseguindo nessa toada, Darcília Simões identifica na estória de Rosa não

apenas um conflito entre a lógica da criança Djaiaí e a do mundo adulto e trabalhoso do

irmão e da mãe, mas também a existência de uma terceira instância, tal como ela nos

explica no excerto a seguir:

Dois mundos se confrontam no cenário de Tresaventura. No entanto,o título provoca uma reflexão: o que quererá dizer tres+aventura? Seráum ícone neológico de uma aventura a três ou em três tempos? Ouserá uma aventura tão especial que precisa de vocabulário novo pararepresentá-la? Terá o elemento três – valor do numeral três ou doprefixo tres – (=trans) que significa locomoção para além de? Por umlado ou por outro, uma aventura é uma aventura! Logo, convém nelaentrarmos e seguir-lhe o percurso.A epígrafe do conto já traz à tona uma ideia de que a narrativa vaicuidar de lembranças, de tempos já vividos, seja na vida real, seja naimaginada. São tempos memoráveis. (SIMÕES, 2002, p. 26)

Essa descrição nos parece bastante interessante, uma vez que, se concordarmos

com ela, estamos assumindo que esse mundo “relembrável”, tão acessível às ideiazinhas

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 250

e às palavras das crianças pequenas, conteria em sua síntese tempos e tempos da

humanindade, sendo que a aventura vivida pela menina, que atira a “pedra paleolítica”

na cobra para salvar o sapo encantado, constituiria uma referência à longa aventura

humana nos tempos ou, em outras palavras, uma aventura no limiar da História. Ou,

ainda, como diz o texto da estória, na “pré-idade”. Outra personagem/menina de Rosa

que toca nesse tipo de limiar temporal é a Nenha – da estória Nenhum, nenhuma do

livro Primeiras Estórias –, aquela de quem já nem se contava mais a idade, já que,

embora viva entre todos, ela mesma já estava do outro lado tempo, no qual se acaba de

nascer – remetendo-se às crianças – e também no qual o tempo perece – remetendo aos

idosos. Talvez por isso, Guimarães Rosa a caracteriza como sendo uma “menina

ancianíssima” (ROSA, 1978, p. 47). Ao assumir direcionamentos do tempo assim

transcendentes, Guimarães Rosa parece justificar seu incômodo em relação ao tempo

proposto pela História linear.

Deixamos para o final a interpretação de Irene Gilberto Simões, destacando que

tal leitura, como já apontamos na introdução do capítulo, foi a primeira a experimentar

uma comparação entre as personagens femininas crianças nas estórias publicadas por

Guimarães Rosa. Comecemos com uma sítese de sua leitura da estória de Djaiaí:

“Tresaventura retoma o mito da origem, a busca de um tempo paradisíaco, conforme se

lê na epígrafe inicial “no não perdido tempo, no além passado”. Narra a estória de Dja

ou Iaí, a menina que sonha com o arrozal que nunca viu, impedida pela proibição dos

adultos” (SIMÕES, 1982, p. 76). Em seguida Irene Simões propõe uma sofisticada

comparação dos conflitos estabelecidos entre a racionalidade infantil (a de Djaiaí) e a

adulta (a de sua mãe e irmão), mesmo embate que já aparecia, só que de formas

diferentes, em A Menina de Lá e em Partida do Audaz Navegante – permutadas pela

expressão do narrador, que estrutura toda a estória a partir disso:

Narra-se (em Tresaventura) a estória da menina que “ficava no mundodas ideiazinhas ainda”. Diferentemente de Brejeirinha, que se‘atropela’ nas palavras, mas busca uma coerência para a composição,refazendo a estória sempre que necessário, a menina Dja não consegueverbalizar aquilo que sente e expressa-se por termos indefiníveis,como “não sei que.” Neste caso, cabe ao narrador “traduzir” osdesejos da menina, utilizando-se de uma linguagem que exprime opensamento fragmentado. Mesmo os comentários, também presentesneste conto, surgem paralelos ao pensamento da menina, isto é,transmitem uma visão não automatizada das coisas. (SIMÕES, 1982,p. 78-9)

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Ainda que a primeira tentativa de Irene G. Simões seja a de estabelecer uma

análise da relação das personagens crianças com a linguagem, a intérprete não cogita

uma hipótese importante, da qual procuramos não nos esquecer na presente tese: a de

que essas quatro meninas não tenham todas a mesma idade, o que implicaria na

pertinência de que Nhinhinha – menininha de menos de quatro anos, em plena primeira

infância – se expresse verbalmente menos que Brejeirinha – que já vai à escola e lê

algumas palavras. Nessa direção de leitura, talvez Djaiaí esteja entre ambas, mas muito

mais próxima de Nhinhinha que de Brejeirinha. Voltando ao texto de Irene G. Simões,

ao final de sua comparação entre as estórias protagonizadas por personagens meninas, a

pesquisadora tece aquela que talvez seja a ideia mais interessante para nossa

abordagem:

Esses três contos [A Menina de Lá, Partida do Aldaz Navegante eTresaventura] representam facetas composicionais que, vistas noconjunto, marcam etapas evolutivas do processo narrativo deGuimarães Rosa. Se em A Menina de Lá, o narrador ainda está ‘defora’ em relação a uma linguagem completamente nova que eleprocura decodificar, em Partida do Aldaz Navegante deixa-seencantar pela palavra e entrega-se ao jogo da linguagem. A síntesedesse processo pode ser encontrada no conto Tresaventura, pois onarrador persegue a fala não pronunciada da personagem e procuratraduzir o intraduzível. Seu papel aqui é o de criador da mensagem,cujo código é representação de uma particular visão do mundo.(SIMÕES, 1982, p. 85-6)

Apresentada essa instigante e reveladora comparação, destacamos que nossa

proposta aqui é fazer algo semelhante, havendo, entretanto, uma primeira diferenciação

em nossas perspectivas: enquanto a crítica citada compara personagens levando em

conta as obras publicadas em livro, para nós é mais interessante destacar o próprio

processo de escritura e composição de Guimarães Rosa durante a década de 1960.

Devido a tal diferença no enfoque, para nós é relevante abordar também a personagem

Fita Verde – que só foi aparecer em livro póstumo de Rosa –, cuja estória nem chega a

ser cogitada na comparação entre as personagens crianças meninas proposta por Irene

G. Simões.

4.4.2 Interpretação: A doença de crescer

“Os sonhos são ainda rabiscos de crianças desatordoadas.”(Guimarães Rosa – Tutaméia, 1967)

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Na narrativa da transcendente aventura de Iaí, Guimarães Rosa realiza aquela

que talvez seja a mais interessante figuração da infância dentre as aqui apresentadas,

isso porque, em alguma medida, o tema aparece desde a estruturação da personagem

protagonista, até a eleição de símbolos significativos. Em resumo, temos contada a

estória a partir de dois artefatos literários fundamentais: o cultivo de arroz e as vivências

de uma menina pequena. Desde o primeiro parágrafo, constrói-se certo alinhamento

entre essa dupla de elementos, visto que começamos sendo inseridos em uma “terra de

arroz”, com a possibilidade de persistir existindo ali “vestígios de pré-idade”. Tais

resquícios poderiam estar simbolicamente contidos não só no próprio cultivo do arroz –

cultura cuja origem se perde na trajetória do Homem no tempo –, mas também na

existência de uma menina cheia de primitivismo infantil, que também havia nascido

naquele chão.

A Maria Euzinha, como ela mesma se apresenta, é chamada pelos outros através

de locuções sonoramente breves “Dja” ou “Iaí”. Se até seu chamamento se apresentada

de forma fragmentada, também ela era um serzinho ainda em formação: “menina, mão

na boca, manhosos olhos de tinta clara, as pupilas pingadas” (DJA, p. 174), como se

nem a coloração da íris tivesse ainda se concluído, sendo tão pequenina que “sua

presença não dominava 1/1000 do ambiente”. Um fator importante dessa personagem é

que sua “voz” era “menor que uma trova” (DJA, p. 174), ou seja, falamos aqui,

propriamente, de uma infante – ente que (ainda) não fala. Se a infância é o período em

que o ser humano ainda é pequeno e tenta construir sua própria fala a partir da criação

de elementos composicionais como a própria voz, é preciso aqui novamente lembrar dos

postulados de Paul Zumthor, que nos esclarece que esse processo começa antes de

nascermos, quando ouvimos e “esboçamos os ritmos da palavra futura, uma

comunicação feita de afetividade modulada, de uma música uterina” (ZUMTHOR,

2010, p. 16). Pensar acerca desses campos é regressarmos no tempo até chegarmos a

épocas nas quais as formas culturais eram ainda mais primevas. Segundo o raciocínio de

Nicolau Sevcenko, trazer tais domínios à reflexão sobre a História Cultural é

interessante porque

as culturas das civilizações históricas, dentro das quais nós nosreconhecemos, aparecem já como planos acabados. Interessa-mesobretudo observar um momento anterior, que, obviamente, é omomento mais profundo dessa que hoje nos parece ser a históriaacabada dessas formas. (SEVCENKO, 1988, p. 120)

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Isso pode ser notado na estória escrita por Guimarães Rosa, uma vez que, já no

arranjo da personagem Maria Euzinha, um dos primeiros destaques levantados é que há

uma forte característica minimalista: ela é pequenina, sua expressão vocal – ainda em

construção – não chega a completar nem uma trova – composição lírica, quadrinha

popular e ligeira, tal como uma anedota. Aqui, como constantemente flagramos em seus

textos, Guimarães Rosa estaria alinhando sua estória à tradição de ouvir mitos cantados

– legado não apenas herdado da Grécia antiga (SEVCENKO, 1998, p. XXIII; 1988, p.

126) –, mas também vivenciado por ele e seu tio Vicente Guimarães durante suas

infâncias em Cordisburgo, nas duas primeiras décadas do século XX. Ao abordar

execuções de cantatas expressas pela voz – trovas –, Rosa também nos coloca frente à

própria expressão cultural da criança: a canção infantil, forma primeira do ser humano

entrar em contato com a cultura, aspecto que interpretaremos nessa estória.

Para tentar tentar visualizar melhor como seria a voz de uma criancinha de voz

pequenininha, como é o caso de Iaí, tomemos como exemplo uma trova bastante

conhecida pelas crianças brasileiras, desde muitos séculos, que também fala de uma

garotinha:

Sou/ pe/que/ni/ni/nha (5)Do/ ta/ma/nho/ de um/ bo/tão/ (7)Ca/rre/go/ pa/pai/ no/ bol/so (7)E/ ma/mãe/ no/ co/ra/ção/ (7)

Nessa quadrinha, que constitui uma composição poética em quatro versos

prosaicos e ligeiros ou, mais precisamente, uma cantiga composta de um verso em

redondilha menor (com cinco sílabas poéticas), seguindo de três versos em redondilhas

maiores (com sete sílabas poéticas), ainda que a composição seja das mais simples,

talvez Dja ainda não conseguisse recitá-la plenamente, uma vez que era sua “voz menor

que uma trova”. Se imaginarmos que Maria Euzinha pudesse exprimir também a voz

menor dessa trova, sua expressão íntima – voz – seria apenas a redondilha menor, “Sou

pequenininha”, e com isso se confirmaria a pequenez da garota, aquela que preenchia

ínfima parte do ambiente168.

168 Na busca de mais exemplos de “vozes menores que uma trova”, achamos na internet um vídeo públicode uma criança recitando essa quadrinha. É muito interessante perceber que, como se trata de uma meninade pouca idade, ela não consegue ainda reproduzir plenamente a simples mensagem, levando-a a“traduzir” a quadrinha para uma língua própria, sendo que a original permanece apenas sugerida peloritmo e melodia (cf. http://www.youtube.com/watch?v=9B1V5LEKg-g).

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Se, como dissemos, a infância é o período inicial no qual o ser humano começa a

construir sua individualidade, começando quando ouve a “música uterina”, é relevante

destacar que a subjetividade infantil continua se formando através de expressões

musicais, afinal “o primeiro contato que o homem tem com a poesia vem do

nascimento, através das cantigas de ninar. A iniciação à linguagem poética principia

com o folclore infantil sob a forma de acalantos” (COUTINHO, 2001, p. 855). Para

além das canções de ninar – que servem para levar o bebê ao sono –, outros tipos de

cantatas feitas para crianças são importantes marcos de ingresso na cultura. Em 2009, a

dupla de músicos Sandra Peres e Paulo Tatit, da Palavra Cantada – grupo que se dedica

ao público infantil – lançou um CD e DVD intitulado Canções do Brasil, resultado de

uma pesquisa na qual eles percorreram vinte e seis estados do país com um gravador

durante dois anos, perguntando que músicas as crianças brasileiras mais gostavam de

cantar. Explica Sandra Peres que

Nosso objetivo era poder gravar crianças que estão expostas àtelevisão, ou seja, que assistem televisão todo dia, que ouvem rádio,mas que mesmo assim procuram cantar músicas dos seus pais, dosseus avós, ou até mesmo músicas de domínio público.É que quando a gente ia gravar a gente falava “qual a música que vocêmais gosta de cantar?” E por causa disso esta canção vinhaimpregnada de um outro sentimento, né, de um carinho especial, deuma espontaneidade generosa até. [...] Eu acho que a arte tem essepoder de colocar todo mundo numa sintonia onde não importa nada, oque importa é que cada um faça a sua parte no momento apropriado eeu acredito profundamente que isso ajuda muito as crianças a sedesenvolverem, os adultos também, principalmente na relaçãohumana, porque uma criança para tocar com outra ela tem que ouvir,ela tem que esperar a hora dela, ela tem que respeitar o colega e isso jáé um exercício de cidadania maravilhoso. (PALAVRA CANTADA,2009, “Extras”, 01’ 17” - 01’ 31”)

O resultado sonoro final é surpreendente e emocionante, visto ouvirmos as vozes

de brasileirinhos entoando sons antigos e modernos, numa justaposição de tempos e

sons da cultura brasileira que resiste à massificação, já que a incorpora e modifica. A

dupla explica ainda que, como resultado do projeto, eles lograram fazer com que as

crianças pudessem se ouvir cantando, experiência pela qual a maior parte delas nunca

tinha passado, como explica Sandra Perez:

É interessante que inclusive no Canções do Brasil, nas fotografias queeu fiz, tem um plano de foto que a gente faz que é das crianças seouvindo logo depois que elas acabam de gravar e noventa e cinco porcento das crianças nunca se ouviram, então quando elas – nas fotosantes do disco ficar pronto e depois quando elas estão se ouvindo na

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casa delas quando a gente vai entregar – é muito bonito de ver,porque elas... é uma outra linguagem, pra elas é uma coisa muitointeressante, muito engraçada, muitos deles começam a darrisada. (PALAVRA CANTADA, 2009, “Extras”, 05’ 58” - 06’ 30”,grifos nossos)

Nas fotos das crianças ouvindo o registro das suas próprias vozes pela primeira

vez, podemos entrever a face da infância miscigenada do Brasil:

A partir dos resultados desse projeto, podemos visualizar novas perspectivas

para se encarar a criança, já que é possível que se pense nelas como atuantes na

manutenção e divulgação da própria cultura. Segundo os mais recentes estudos da

Antropologia, se entendermos a Cultura como um sistema simbólico que vai sendo

produzido e colocado em circulação através de seus artefatos, visualizamos a criança

não mais como alguém apenas produzido pela cultura, mas como alguém que formula

outros sentidos e os fazem circular, ou seja, alguém que atua na produção da cultura de

onde vive. Refletindo de tal forma, assumimos a postura da antropóloga Clarice Cohen,

para quem a “criança não sabe menos, ela sabe outra coisa” (COHEN, 2009, p. 33).

Nesse sentido, pode-se também propor a existência de um sistema simbólico que as

crianças compartilham o tempo todo com os adultos, relação na qual elas possuem

relativa autonomia cultural. Ainda sobre a canção infantil, nos esclarece Paul Zumthor:

a despeito das grandes diferenças que de cultura a cultura afetam omodo de inserção das crianças nos grupos humanos, não há sociedadeno mundo sem canções funcionalmente apropriadas para essa idade[infância]. [...] Esta poesia representa entre nós uma das principaismanifestações de oralidade infantil: modulação da linguagem, ritmadapelos sopros do corpo, pelos movimentos do sono e do despertar, pelofluxo fantasmagórico do sono e das próprias palavras. (ZUMTHOR,2010, p. 97)

Figura 4.8 – Crianças ouvindo registros de seus cantos no projeto Canções do Brasil da dupla Palavra Cantada.Fonte – (PALAVRA CANTADA, 2009, Segunda Capa do CD+DVD)

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 256

Tal estruturação pensada para a canção infantil pode ser interessante também

para refletir sobre Tresaventura, porque essa estória se manifesta ritmicamente pelos

compassos do corpo de Djaiaí que “Via-se e vivia de desusado modo, inquieta como um

nariz de coelhinho, feliz feito narina que hábil dedo esgravata”, estando sempre no

limite do sono e da vigília, tanto que várias vezes interrogava: “‘Dó de mim, meu sono?’

- gostava, destriste, de recuar do acordado” (DJA, p. 174).

Acordada ou dormindo, Djaiaí era movida por um grande desejo: queria (re)ver

o arrozal, que era-lhe um lugar maravilhoso. Ainda que a pequena tivesse nascido ali,

não conhecia o local no qual se plantava arroz, visto que “lá não a levavam: longe de

casa, terra baixa e molhada, do mato onde árvores se assombram - ralhavam-lhe; e

perigos, o brejo em brenha – vento e nada, no ir a ver” (DJA, p. 174). O que os outros

não sabiam era que aquele lugar ela “relembrava” e desejava não conhecer, mas sim

voltar a ver: “Antes e antes, queria o arrozal, o grande verde com luz, depois amarelo

ondeante, o ar que lá. Um arrozal é sempre belo”, como se aquele sítio fizesse parte de

alguma memória primitiva que a menina conservasse: “sonhava-o lembrado, de trazer

admiração, de admirar amor” (DJA, p. 174).

Contrastando diretamente com essa percepção mítica de Djaiaí, temos o discurso

do irmão, que se expressa como se ele tivesse algum contato mais real com o arrozal,

talvez até adquirido pela via do trabalho ali executado e do qual, possivelmente, ele

participava. O fato é que o rapaz tinha da arrozeira um julgamento oposto ao da

garotinha, por isso passa o tempo todo tentando alertá-la para os perigos existentes ali:

as cobras que picavam, os sapos do brejo e os passarinhos parasitários, que comiam

toda a cultura do arroz sem se assustar com o espantalho. Mas, ao discurso do irmão, Iaí

“não dava fé; não o coração”, porque ela tinha a chave da “caixeta de uma sabedoria”

(infantil?) na qual o arrozal pairava “lindo, acima do mundo, miolo da luz” (DJA, p.

174), constituindo o lugar da reminiscência.

Nesse ponto da reflexão, cabe um parágrafo para sublinhar o substantivo que

Guimarães Rosa criou para chamar essa memória de Dja: relembramento. De acordo

com nossa hipótese, ele se remete ao tempo “não-perdido, além passado” da epígrafe da

estória, que espacialmente se concretizaria na arrozeira. Nessa estória, o espaço-tempo

do arrozal rememorado é, a um só tempo, o mítico local das origens da humanidade

recordado pela criança e o campo do trabalho na cultura do alimento que sustenta as

gentes e que é resguardado de forma tenaz pelo irmão de Djaiaí. Mas esses dois sítios

opostos se interpenetram nas paragens do relembramento – como duração da

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 257

reminiscência –, no qual se opera a ficcionalização: a percepção e (re)invenção de novas

realidades.

Se buscarmos interpretar a narrativa aos olhos da História Cultural e das ideias,

o espaço (arrozal)/tempo (relembramento) seria o próprio lugar da utopia, uma vez que,

como a define Gregory Claeys:

A utopia não é o domínio do impossível. No terreno dos mitos, quasetudo é possível, [...] a utopia explora o espaço entre o possível e oimpossível. Embora admitidamente tingida com o desejo porfinalidade, por absoluto e por perfeição, a utopia não é ‘impossível’,nem mesmo está ‘em lugar nenhum’. Esteve ‘em algum lugar’ aolongo da história, mesmo antes de o próprio conceito existir. É umlugar onde estivemos e de onde às vezes saímos, assim como olocal ainda desconhecido que almejamos visitar. Sem ele ahumanidade nunca teria se esforçado para melhorar. É uma estrelapolar, um guia, um ponto de referência do mapa comum de uma eternabusca pela melhora da condição humana. (CLAYES, 2013, p. 15,grifo nosso)

Do ponto de vista da criança, porém, esse fluxo, que aproximamos à ideia de

utopia, estaria no tempo-espaço do brincar, consistindo no próprio “espaço transacional”

de Winnicott, aquele ambiente intermédio entre realidade e não realidade, no qual se

edifica a subjetivação infantil (WINNICOTT, 1975). Passando pelo filtro da meninice,

todo o discurso censor do irmão só serviria para ativar o processo incessante de

(re)atribuição de sentidos na menina: para ela, os passarinhos eram “só dos céus, seus

alicercinhos”, os sapos e cobras não picavam, eram “de enfeite”, a água não era “feia e

choca”, pelo contrário, era “cor de doce de leite”, clara, era a “mãe d’água”... Todo o

cenário do “‘O ror’” montado pelo irmão com o objetivo de amedrontá-la, ela

“renegava. Reza-e-rezava” (DJA, p. 175), criava outros significados culturais, já que, tal

qual são os trazidos pela canção infantil, as quadrinhas e os acalantos, também as

orações podem ser expressões da produção cultural infantil (cf. COHN, 2009, p. 43-4).

Através das rezas de Iaí, Rosa aborda em sua estória aquela relação expressa nas

já citadas anedotas infantis que ele colecionava, que se caracterizam por uma intimidade

muito profunda, pela pureza e espontaneidade típica dos infantes169. Relembramos aqui

que, na tradição popular brasileira, existe uma oração ensinada às crianças rezarem

antes de dormir:

169 Acerca da complexidade filosófica expressa pela espontaneidade infantil ao se comunicar com omundo imaginário ou metafísico, remetemos nosso leitor ao estudo de Saliba (2008).

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 258

Santo anjo do Senhormeu zeloso guardador.Se a ti me confiou a piedade divina,sempre me rege,me guarde,me governe,me ilumine.Amém.170

Nessa oração, temos a figura de um anjo mensageiro do Senhor, a quem cabe a

função de zelar pela criança, mesma imagem que volta a aparecer na narrativa da Lenda

do Arroz, escrita por Vicente Guimarães, na qual a imagem mítica e fértil do arrozal,

sonhada pela menina, possui longuíssima tradição no mundo das estórias orais e dos

mitos. Como dissemos, o arroz – alimento importante para várias culturas no mundo, no

Oriente é tido como símbolo sagrado, ligado à fecundidade (PARO, 2008, p. 801),

sendo que seu cultivo é tão importante naquela região, desde muitos séculos, ao ponto

de se ter uma deusa que o rege – chamada Guanyin na China e Kuan Yin no Japão –,

gerando muitas narrativas e lendas, sendo uma delas escrita por Vicente Guimarães em

um dos seus livros para crianças.

Na Lenda do Arroz, Vovô Felício conta a seus netinhos a estória de uma

pequena aldeia chamada Ling-Sing, na China, que vivia da “cultura e exportação do

chá” (GUIMARÃES, [1970?], p. 56) e que, certa vez, tendo passado por muitos dias de

chuva, a água “arrasou as plantações de chá e a cidadezinha sofreu a maior enchente já

vista ali [...] e os moradores, desesperados, procurando salvar a vida, fugiram,

lastimando a sorte” (GUIMARÃES, [1970?], p. 57). Mas o velho Fu-Chu-Shen não quis

abandonar o lugar onde viveram seus antepassados, assumindo-se merecedor de tal

castigo e pedindo a Deus forças para retomar a lavoura. Contudo, mesmo dias depois de

encerrada a tempestade, a terra continuava encharcada e era impossível voltar a plantar

chá ali, ao que o fiel agricultor não se desesperou e continuou suplicando clemência ao

Criador:

Ao terminar sua prece, um clarão surgiu na janela e um anjo doSenhor apareceu, entregando-lhe um punhado de sementes (de arroz) edizendo-lhe:- O Senhor está satisfeito com sua resignação e quer premiá-lo pelasua fé, que não morreu. Manda-lhe estas sementinhas que devem serplantadas nos terrenos encharcados. Novo alimento e nova fonte derenda surgirão daí. Sua fé salvou-o. Reaproveitadas serão as terras deseus antepassados. (GUIMARÃES, [1970?], p. 58-9)

170 Oração de domínio público.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 259

Quando o velho chinês semeou na terra alagada de Ling-Sing as sementes

divinas que havia recebido do anjo do Senhor, a produção foi bem sucedida e, a partir

de então, a cultura do arroz “se estendeu por toda a China e se tornou o alimento básico

do povo chinês, como até hoje é” (GUIMARÃES, [1970?], p. 62).

Ainda que essa constitua uma adaptação da narrativa oriental que tenta

incorporar a visão cristã assumida pela religiosidade popular brasileira, tal lenda

continua sendo uma versão escrita de uma estória oriunda da literatura oral, o que,

possivelmente, a tornaria mais acessível para a compreensão das crianças, que são seres

tão próximos a tal tipo de expressão narrativa. Além do tio Vicente, também o sobrinho

João Guimarães Rosa mantinha grande interesse pela milenar cultura chinesa, o que

poderia estar relacionado às suas maneiras de escrever, como ficou claro ao lermos uma

carta que João escreveu a Vicente em 03 de junho de 1939, quando ambos ainda

estavam em início de suas carreiras de escritores, na qual Rosa expõe uma comparação

entre seus modos de escrever. De acordo com as palavras da carta de Rosa, enquanto

Vicente, ao escrever, “extrai todo o seu material de si mesmo: concebe ou capta uma

ideia sua (sempre original, às vezes luminosa, frequentemente corajosa, não raro

ousada, mas infalivelmente apropriada) e desenvolve-a, com crença e entusiasmo, numa

linha de lucro e de sucesso” (ROSA, FCRB, 03 jun 1939), o próprio Rosa, quando

escreve, teria comportamento diverso:

à minha maneira, senti, desde muito cedo, instintivamente, quais asestradas em que meus pés caberiam; e adotei naturalmente o processo

Figura 4.9 – Ilustração de Joselito representando o Anjo mensageiro do Senhor, trazendo ao agricultor chinêsas sementes de arroz.Fonte – (GUIMARÃES, [1970?], p. 59).

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 260

de acumular material e afiar as ferramentas, à espera de momentospropícios e decisivos, quando a oportunidade passa perto e a gente temde segurá-la com mão firme, doidamente, como um louco que seagarrasse ao rabo de um cavalo a galope. (ROSA, FCRB, 03 jun 1939)

Ao final da comparação, Rosa sintetiza a ideia em uma analogia

interessantíssima: “não fosse demasiadamente pitoresca a comparação, eu classificaria:

eu- typo abelha; você typo bicho da seda. Eu sou mais asiático, quase chinês, ao passo

que você tem mais do norte americano” (ROSA, FCRB, 03 jun 1939, grifo nosso). Se

Vicente escrevia como o bicho-da-seda que produz seda a partir de saberes acumulados

em si mesmo, precisando apenas de uma crisálida para que nela a produção fosse

completada, no caso de João era diferente, já que seu ‘método de escrita’ partia do

acúmulo de enunciações de Outros: Rosa escreve como as abelhas produzem mel, em

colônia. Vale salientar que tal ‘método’ de acumular elocuções, é o que viemos

sublinhando em alguns materiais, selecionados pelo próprio autor, que abordam o tema

infância e que constituiriam, para ele, uma espécie de substância bruta. Mas também é

interessante destacar que o caminho escolhido por Rosa para construir sua escrita já se

assemelharia ao modo das crianças aprenderem a se comunicar: para construir a sua

voz, elas ouvem, misturam-se, apropriam-se das vozes de outros. Para além disso, essa

carta ainda retoma o atestado interesse de Guimarães Rosa pela milenar cultura chinesa

(cf. GALVÃO, 2000, 2008; CASTRO, 2009), por suas crenças místicas (UTÉZA, 1994,

p. 41-6), suas tradições etc., o que poderia justificar o interesse em escrever uma estória

tendo como protagonista uma criança que vivia em terra de arroz.

No enredo de Tresaventura, como apontamos, o acontecimento mais importante

é a aventura superlativa vivida pela ensimesmada Maria Euzinha. Muito ao modo do

enredo de Fita Verde no cabelo, em um dia infantilmente “nascido à lápis vermelho –

pipocas de liberdade”, a menina sentiu que não podia mais conter sua “doença de

crescer” e “virou para um lado, para o outro, para o outro - lépida, indecisa, decisa”,

partindo a pé em direção ao tão sonhado arrozal, observando como as flores e os

passarinhos “fingiam que não a abençoavam” (DJA, p. 175). Nesse caminho onírico, a

criança começa a rabiscar seu sonho de, enfim, ver o arrozal e por isso não cessa de dar

outros sentidos a tudo o que estava ao seu redor, sempre procurando alinhar o que via na

natureza ao conteúdo da sua “caixeta de sabedoria” infantil.

Eis que em um momento “o caminho revira” e ela ouve um chamado “de

ninguém, mas mais veloz que uma voz” que a fez olhar para trás: o “mal assombro!

Uma cobra grande com um sapo na boca, estrebuchado...” (DJA, p. 176), e em sua

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sensibilidade de criança ela ainda consegue reparar que ambos os animais estavam da

cor da terra. Era preciso tomar uma atitude, e ela fez um movimento rápido, cuspiu na

cobra e atirou-lhe uma “pedrada paleolítica”, salvando, então, a vida do sapo. A partir

desse momento, a descrição da cena é feita de forma ainda primeva: “a cobra largara o

sapo, e fugia-se assaz, às moitas folhuscas, lefe-lefe-lherepte” (DJA, p. 176); e do outro

lado o sapo se safando, “sobrevivo”. Ao atirar a pedrada de forma tão ancestral, a

menina encenou, por um instante “ab-rupto” séculos e séculos da história humana e

sentiu o coração bater violentamente.

Mas a mãe já gritava por ela e, embora ela não tenha chegado a ver o arrozal,

timidamente a garota voltou “já de perninhas para casa”, afinal a grande aventura, a

viagem transcendente através dos séculos, ela já vinha vivenciado, restando-lhe voltar a

sonhar com a arrozeira: “neblinuvens – ‘A bela coisa’”. E, ao final, atentando que ela

tivesse vivenciado um rito de passagem e emadurecido, a menina recebe uma insígnia,

que é o seu nome completo, Djaiaí, completando assim a figuração inicial da

personagem, que veio sendo construída durante toda a narrativa. Nesse nome, se

encaixam, harmoniosamente, os fragmentos de locuções sonoramente breves pelas quais

ela era chamada. E então, por mérito, a guerreirinha, que continuava dona da chave da

alegria, “dali a pouco ia adormecer” (DJA, p. 176).

Acerca dessa estória ainda há um aspecto interessante a ser comentado, que

aborda justamente o processo escritural de Guimarães Rosa. Em uma página

xerocopiada de um dos Cadernos de Anotações de Guimarães Rosa, encontramos o

seguinte recorte datilografado e colado na página:

Ali era bom para o arroz. Era preciso defender o arrozal, quandomaduro, contra os pássaros, por mês e mais. Vigiar desde o diaclareando, o sol saindo, e até pelas nove horas, pelo menos; Depois, deduas da tarde até às cinco, quando não adiante, recomeçar a guarda. Amenina irmã de Miguilim corria de lá para cá, um chapéu de palha nacabeça, e armada de bodoque, ou atirava pedras à mão. Os pássarosfugiam, mas logo voltavam, aos gritos – periquitos, passopre-(ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2257, s.p.)

Nesse trecho, lemos um pedaço da narrativa centrada em uma menina que vive

em terra de arroz, como em Tresaventura, e que também tem um irmão. O trecho

manuscrito inicia-se: “ali era bom para o arroz”, sendo que a estória publicada em

Tutaméia começa de forma bastante semelhante: “Terra de arroz”. A criança descrita no

fragmento maneja pedras, passarinhos e cuida do arrrozal, mas o faz de forma contrária

a Djaiaí, pois ela é quem toma parte do ambiente de trabalho no cultivo do arroz,

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vigiando e espantando os pássaros parasitas até de forma violenta – atirando pedras ou

atirando com bodoque –, no mesmo anseio em conservar aquela produção que vemos no

irmão de Dja. A fim de problematizar o recorte, selecionamos uma canção de domínio

público, chamada Essa Menina:

Essa meninanão dorme na camadorme na limeiradebaixo na rama.Xô, xô passarinhonão me coma esse arrozesse arroz é de Iaiáque me mandou apanhar171

No recorte do caderno e também na cantiga, encontramos crianças às voltas com

o mundo do trabalho adulto. Em seu trabalho acerca da canção de ninar brasileira, Silvia

Ambrosis Pinheiro Machado estabelece a seguinte análise dessa música:

O texto da canção expressa o dinamismo das relações femininas detrabalho e de poder, na sociedade brasileira dividida em camadasdesiguais e distantes umas das outras desde o tempo da escravidão. Aestruturação de classes, estabelecida pelo critério simples de quemmanda (“me mandou”) e quem trabalha (apanhar arroz), ficaevidenciada nesta canção, através das figuras femininas que apresenta:uma mulher, que trabalha na lavoura a mando de outra (Iáiá), protegea colheita do avanço do passarinho e, simultaneamente, acalenta umamenina que “não dorme na cama”, podendo ser sua própria filha emtratamento distanciado (“essa menina”) – que não tem o privilégio detrabalho no campo, sinalizando um acúmulo de tarefas. (MACHADO,2012, p. 32)

Mas na literatura de Guimarães Rosa, com todo seu assumido desejo de

questionar a História, cria-se a personagem Djaiaí, aquela que, usando sua criatividade e

sabedoria infantil, “psiquepiscava”, expressão que sinaliza a internalização e

transformação dentro de si própria dessas duras realidades da cultura do arroz,

apresentadas pelo seu irmão. Também no fragmento, a tal personagem possui um irmão,

já que ela é “menina, irmã de Miguilim”.

Com essa menção, cabe abrir um parêntese para falar um pouco da estória

protagonizada por Miguilim (ROSA, 1972), um dos personagens infantis meninos mais

conhecidos da literatura de Rosa. Em sua estória, aborda-se o cotidiano de uma família

que mora no interior de Minas Gerais e vive sob o regime da sociedade patriarcal.

171 A canção é de domínio público, mas aqui estamos citando o arranjo gravado no disco Brincadeira deviola (FREIRE, 2003), dicponível on-line (cf. http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/paulo-freire/essa-menina/2425622).

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Embora um filho ainda mais velho, Liovaldo, seja citado no início da narrativa, ele não

morava mais com a família no Mutum e “ninguém se lembrava mais de que ele fosse de

feições” (ROSA, 1972, p. 09), ao que a narrativa se centra nos cinco irmãozinhos

menores. Miguel Cessim Caz (Miguilim) é o segundo deles, tendo como irmã mais

velha a Drelina e sendo seguido por uma escadinha de irmãozinhos: Dito, Chica e

Thomezinho. Sobre a idade dessas personagens, o texto, narrado a partir da perspectiva

de Miguilim, fornece-nos poucas informações. A respeito de Drelina não há pistas mais

concretas, apenas é exposto que se trata de uma senhorita quase na puberdade, que é

bonita e que de vez em quando ajuda a mãe a cuidar dos irmãozinhos172. Já acerca da

idade de Miguilim e Dito, só sabemos algo através de uma informação extratextual, já

que existe um pedido que Guimarães Rosa chegou a fazer para o ilustrador da estória

quando ela ia ser editada pela José Olympio:

A partir disso, podemos imaginar que Miguilim teria 8 e Dito 7 anos quando a

estória aconteceu, sendo a idade de Chica, bem como a de Drelina, não divulgada.

Apenas a de Tomezinho, que teria 4 anos, nos é revelada e, com isso, podemos supor

que Maria Francisca (Chica) – personagem que parece ser a mais alinhada às quatro

figuras meninas que analisamos aqui – teria entre cinco e seis anos durante o enredo,

consistindo em uma criança que, assim como todas as personagens meninas por nós

172 No texto rosiano: “Drelina era bonita: tinha cabelos compridos, louros” (ROSA, 1972, p. 09).

Figura 4.10 – Curioso recado que Guimarães Rosa envia ao ilustrador de Campo Geral para que eledesenhasse uma capa com: “Dois meninos, um deles de 7 e outro de 8 anos, e uma cachorra”. Depois eledesistiu e essa ilustração nunca chegou a figurar em capa de nenhuma edição dos livros do autor.Fonte – (ROSA, 1972, p. 1)

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abordadas (e em especial Djaiaí), não participa do trabalho rural, só se ocupando de

brincadeiras infantis173.

Trazemos essas figurações das meninas da primeira fase da escrita de Rosa

destacando que, nem em sua primeira fase de escritura ele representou aquelas crianças

tendo sua força de trabalho sendo explorada na lida do campo, mas que, ainda assim,

houve uma mudança significativa entre aquelas representações e as que aqui

analisamos: aquelas meninas – que antes eram personagens coadjuvantes e cujas idades

só ficamos sabendo a partir da identificação do número de anos que tinham vivido os

meninos –, passaram depois a poder protagonizar as estórias. Ainda sobre o processo de

criação de Campo Geral, o próprio Rosa explica, no prefácio Sobre a escova e a dúvida,

que

Campo Geral (Manuelzão e Miguilim) foi caindo já feita no papel,quando eu brincava com a máquina, por preguiça e receio decomeçar de fato um conto, para o qual só soubesse um meninomorador à borda da mata e duas ou três caçadas de tamanduás etatus; entretanto, logo me moveu e apertou, e, chegada ao fim,espantou-me a simetria e ligação de suas partes. (ROSA, 1967, p. 157-8, grifo nosso)

Ora, se a estória de Miguilim começou a se formar a partir de uma síntese de

elementos – “um menino morador da borda da mata” –, será que a menina cuidadora da

lavoura de arroz chegou a fazer parte dela? Seria o trecho recortado que encontramos

um resultado dessas brincadeiras com a máquina naquele momento escritural anterior,

tendo sido literalmente recortado e colado de uma outra página de um dos Cadernos,

como se ele fosse um elemento retirado de um primeiro momento de escritura e

recolocado naquele espaço escritural das estórias? Tal como levanta Verónica Galíndez-

Jorge,

os espaços escriturais, em suma, são uma tentativa teórica deobservação de constantes em uma atividade caracterizada pelomovimento, mas não hierarquizável. Ao pensarmos na escritura não sócomo odisséia, mas incluindo outras faces aqui delineadas, como apermeabilidade, a retroalimentação, a polifonia, essa não cessa de seescrever, de se reinventar, de explodir em mil peças. (GALÍNDEZ-JORGE, 2009, p. 84).

173 No texto rosiano: “Chica vinha passando, com a boneca – nem era boneca, era uma mandioquinhaenrolada nos trapos, dizia que era filhinha dela, dava de mamar” (ROSA, 1972, p. 14). Ela também erabem infantil: “Chica era tão engraçadinha, clara, mariolinha, muito menor do que Drelina, mas era a quesabia mais brinquedos, botava todos a rodar de roda, ela cantava tirando completas cantigas, dançavamocinha” (ROSA, 1972, p. 15).

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 265

Resumindo, o processo de escritura, especialmente no caso de Guimarães Rosa,

funcionaria como um caleidoscópio, no qual as imagens começam a se formar a partir

da projeção de diversos elementos. Passeando por essas quatro estórias protagonizadas

por meninas crianças das estórias de Guimarães Rosa, vimos que cada uma delas tem

seu nome próprio, diferentemente das crianças do sexo masculino dessa fase do autor,

que são chamadas de “menino” ou “Menino”, como se fossem mito ou arquétipo. As

meninas relacionam-se de forma peculiar com o lugar onde vivem, tal contexto nos

autorizando a pensar que cada uma dessas as narrativas existe porque cada uma

daquelas personagens existe e vice-versa, afinal são as meninas que sustentam as

estórias, construindo outros significados para toda a narrativa. Lembramos também que,

diferentemente do tom de encantamento e melancolia dos meninos de Rosa, suas

meninas parecem ser mais irreverentes, sendo quase personagens anedóticas,

desenhando nova face da infância.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 266

Capítulo 5: Os periódicos e a escritura rosiana: Laboratório erecepção

Para investigar a escritura de Guimarães Rosa e suas possíveis conexões com a

História e a infância, consultamos seus Cadernos manuscritos, nos quais destacamos

alguns registros de como teria ocorrido aquele ato de escrita, em formulações e ritmos

assumidos por aquela coleção de fragmentos dispostos de maneira aleatória, indicando,

em alguma medida, a gênese do projeto literário daquilo que Guimarães Rosa chamou

de estória, ao colocá-la como o próprio contraponto da História. Em outro momento da

investigação, sublinhamos algumas personagens crianças das estórias já publicadas, nas

quais a representação da infância – que constituiria um ícone de inconstância e

indeterminação e atuaria em oposição à linearidade historiográfica – aparece de forma

mais significativa. Entretanto, a escritura não é apenas uma complementação entre o

próprio ato de escrever e o texto concluído, ela contempla também expressões mais

amplas, como toda a preparação anterior – com pesquisas, levantamentos, exercícios e

discussões – e aquilo que advém à obra, isto é, a posterior recepção daquela escrita.

Com essa ampliação do conceito de escritura e pensando especificamente nas

estórias rosianas, além dos Cadernos, destacamos um outro espaço que se mostrou

bastante significativo para aquele processo escritural: os periódicos. A relação que

Guimarães Rosa manteve com os jornais e revistas na década de 1960 foi bastante

intensa, visto que neles é possível flagrar momentos fugazes dessas fases anteriores e

posteriores ao efetivo fazer literário, como, por exemplo, quando o autor escreve e

publica seus próprios textos pela primeira vez ou quando coleciona textos críticos

acerca de seus livros. É sobre essa interação entre um escritor de textos para livros,

como foi Guimarães Rosa, e os jornais da década de 1960 que tratará este capítulo.

Mesmo publicando seu primeiro livro de prosa em 1946, já desde a década de

1930 o escritor iniciante João Guimarães Rosa tinha escrito e assinado um livro de

poemas chamado Magma, no qual flagramos uma destacada preocupação com o

questionamento dos fluxos e percepções temporais lineares. Quando Rosa, em sua obra

literária, discute as direções temporais, ele acaba levando seu leitor a sentir-se como se

fosse uma criança pequena, que ainda não está totalmente consciente ou atenta às

direções do tempo cronológico, fato que pode ser observado nesse poema escrito para o

referido livro:

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 267

Para AlmanaquesNo meu relógio, de uma para outra hora,quando o ponteiro menor sai a levar lembranças,passa-lhe à frente o grande, transportando intrigas... (ROSA, 1997, p.74)

Embora pouco conhecido atualmente, o volume de poesias de Rosa foi inscrito

no Concurso de Poesia da Academia Brasileira de Letras em 1936, tendo obtido o

primeiro lugar. Em 22 de novembro daquele ano, saiu publicado na Revista da ABL o

parecer que a obra recebeu, escrito pelo poeta Guilherme de Almeida, então relator do

concurso, que justifica a opção por aquele livro, pois nele teríamos acesso a uma

Pura, esplêndida poesia. Descobre-se aí um verdadeiro poeta: poeta,talvez, de que nosso instante precisava. Nativa, espontânea, legítima,saída da terra com uma naturalidade livre de vegetal em ascensão,Magma é poesia centrífuga, universalizadora, capaz de dar ao resto domundo uma síntese perfeita do que somos. Há aí, vivo de beleza, todoo Brasil: a sua terra, a sua gente, a sua alma, o seu bem e o seu mal.(ALMEIDA, 1936, p. 234-236)

Mesmo com tão elevada apreciação, o autor mantinha certa resistência em

assumir-se como poeta tradicional, já que nunca manifestou desejo de publicar em livro

tais poemas, o que acabou acontecendo somente mais de sessenta anos depois, quando

em 1997 a editora Nova Fronteira os publicou, juntamente com desenhos de Poty. Tal

hesitação na divulgação de seus iniciais passeios pela poesia tradicional teria um sentido

definido, já que o próprio autor assim declarou, em 1965:

Escrevi um livro não muito pequeno de poemas, que até foi elogiado.Mas logo, e eu quase diria que por sorte, minha carreira profissionalcomeçou a ocupar meu tempo. Viajei pelo mundo, conheci muitacoisa, aprendi idiomas, recebi tudo isso em mim; mas de escreversimplesmente não me ocupava mais. Assim se passaram quase dezanos, até eu poder me dedicar novamente à literatura. E revisandomeus exercícios líricos, não os achei totalmente maus, mas tampoucomuito convincentes. Principalmente, descobri que a poesiaprofissional, tal como se deve manejá-la na elaboração de poemas,pode ser a morte da poesia verdadeira. Por isso, retornei à “saga”, àlenda, ao conto simples, pois quem escreve estes assuntos é a vida enão a lei das regras chamadas poéticas. Então comecei a escreverSagarana. Nesse meio tempo haviam transcorrido dez anos, como jálhe disse; e desde então não me interesso pelas minhas poesias, eraramente pelas dos outros. Naturalmente digo isso, porque é um dadobiográfico, pois não aconteceu que, um belo dia, eu simplesmentedecidisse me tornar escritor; isto só fazem certos políticos. Não,veio por si mesmo; cresceu em mim o sentimento, a necessidade deescrever e, tempos depois, convenci-me de que era possuidor de

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uma receita para fazer verdadeira poesia. (LORENZ, 1983, p. 70,grifo nosso)

Ao optar por retomar a poesia em seus consagrados textos em prosa, o autor

assumiu sua livre busca por momentos em que as expressões mantivessem processos de

significação constantes, sustentados pela expressão rítmica, constituindo, portanto,

poemas, já que, mesmo longe da rigidez formal, seus textos executam o que Henri

Meschonnic chamou de “Trabalho do poema” – processo constante de significação e

ressignificação – e, assim, em vez de consistirem em letras a serem apenas lidas, passam

a “inaugurar uma oralidade”, logrando construir uma crítica ferrenha da poesia

tradicional (MESCHONNIC, 2006, p. 05-06).

Até atingir esse estágio, e mesmo depois disso, como um possível treinamento

para a prática lírica, a escritura rosiana precisou executar vários desses exercícios com

palavras que estamos considerando como poéticas. Por tantas vezes isso não foi feito

apenas em esfera totalmente privada: lembramos-nos da carta profissional que escreveu

ao diplomata Jorge Kirchhofer Cabral – seu colega de trabalho no Itamaraty – na qual

Rosa exercita a prática poética, usando apenas palavras iniciadas com a letra C (cf.

ARAÚJO, 1987, p. 160-2).

No que tange a essa questão, em um momento da entrevista a Güinter Lorenz,

em 1965, o entrevistador comentou com Rosa: “Você falou anteriormente do escritor

como descobridor, e no seu caso isso vale também com relação à língua. [...] Acho que

é como todos os descobrimentos: estão no ar, mas apenas um os encontra. Não

esqueçamos o aspecto da genialidade...” (LORENZ, 1983, p. 82, grifo nosso), ao que

o autor então responde taxativamente: “Genialidade, sei... Eu diria: trabalho,

trabalho e trabalho!” (LORENZ, 1983, p. 82, grifo nosso). Por tudo que vimos até

aqui, esse trabalho seria marcado por um constante exercício da prática poética que era

executado em diversos lugares na vida do autor. Um desses espaços, entretanto, parecia

ser privilegiado no sentido de que esses exercícios pudessem se desenvolver mais

livremente: os periódicos.

5.1 Guimarães Rosa como autor de periódicos na década de 1960

No período entre 1957 e 1967, o retrato do autor João Guimarães Rosa figurou

em páginas de jornais e revistas, ilustrando seja textos por ele escritos, seja resenhas de

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 269

alguma obra literária, como podemos conferir nessa seleção de flagras encontradas em

seu Fundo no IEB/USP:

5.1.1 “Guimarães Rosa conta”, em O Globo em 1961

Ainda que saibamos que “quase todas as narrativas que integram Primeiras

Estórias foram publicadas antes em vários números de dois periódicos cariocas: no

jornal O Globo, e na revista Senhor” (BOLLE, 1973, p. 84), segundo Walnice Nogueira

Galvão, já desde 1929 Guimarães Rosa publicava textos em periódicos (GALVÃO,

1997-98, p. 20), a prática tendo sido apenas intensificada na década de 1960. Em seu

acervo pessoal no IEB/USP, encontramos alguns textos dele, publicados em periódicos

avulsos, sendo que o grosso das produções de textos de periódico disponível foi

publicado em Pulso – dando origem a Tutaméia – e em O Globo, mais especificamente

no período entre 07/01/1961 e 21/08/1961, quando o autor chegou a contribuir

semanalmente com textos que foram o berço das Primeiras Estórias:

Figura 5.1 – Retratos de Guimarães Rosa, ilustrando textos sobre o autor e sua obra, publicados em jornaise revistas entre 1957 e 1967.Fonte – Da esquerda para a direita: 1) JORNAL DO BRASIL, 1967, IEB JGR-R 12,03,063; 2) REVISTAINTIMIDADE, 1967, IEB JGR-R 07,032; 3) O GLOBO, 1957, IEB JGR-RT 02,004; 4) FOLHA DE SÃOPAULO, 1963, IEB JGR-R 07,031; 5) O GLOBO, 1967, IEB JGR-R 12,03,069.

Figura 5.2 – Manchete da coluna “Guimarães Rosa conta”, publicada em O Globo, em 1961.Fonte – ROSA, 1961, IEB JGR-R 19.02,33.q.IEB/USP/ JGR/ Séries Literatura/ Produção do autor publicada emperiódico/Publicações em O Globo/Outras coisas de poesia/ JGR-R 19,01, p.1. sem data.

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Das quatro estórias protagonizadas por meninas sobre as quais nos debruçamos,

três delas foram publicadas em periódicos174, sendo que a primeira, A Menina de lá, saiu

justamente nesse espaço rosiano do jornal O Globo, em 1961. No volume Em Memória

de Guimarães Rosa, publicado pela Editora José Olympio em 1968 – poucos meses

após a morte do autor ocorrida em novembro de 1967 –, foi traçado um levantamento

dos poemas escritos por Guimarães Rosa e assinados por seus heterônimos,

especialmente destacando-se a participação de Manuel Bandeira na divulgação dos

poemas rosianos na década de 1960:

A descoberta dos poemas de Guimarães Rosa [...] merece ser aquicontada. Manuel Bandeira, na 2ª. Ed da Antologia de PoetasBrasileiros Bissextos Contemporâneos, organização Simões, s/d.,incluiu seis poemas, com o pseudônimo de SOARES GUILAMARinformando ainda Bandeira que se tratava de um anagrama do escritor.Como o anagrama não estava perfeito, havia troca de l por i, voltamosà consulta de O Globo e constatamos que o anagrama é SOARESGUIAMAR, e que os poemas foram publicados em 25-2; 1-4 e 20-5de 1961, entre outros incluídos nos mesmos artigos, Outras Coisas dePoesia e Novas Coisas de Poesia. Manuel Bandeira divulgou seis dospoemas. Soares Guiamar foi apresentado por G.R. no primeiro artigocomo “personalíssimo amigo meu, não de infância, apenas, porque êleé meio mais velho”. (ROSA et al., p. 211)

Ainda que o primeiro grupo de poemas, Coisas de poesia, não tenha sido

encontrado no Fundo IEB JGR, outros dois artigos escritos pelos heterônimos de

Guimarães Rosa foram encontrados no seu fundo, comprovando que o jornal foi

utilizado pelo autor como espaço para exercitar sua personalidade de poeta bissexto –

como o teria chamado o poeta Manuel Bandeira (GALVÃO, 1997-98, p. 21) –, que

apostava em práticas de heteronímia ao assinar seus poemas com os pseudônimos

Soares Guiamar, Meuriss Aragão (ambos anagramas de Guimarães Rosa) e Sá Araújo

Ségrim (anagrama de J. Guimarães Rosa) (GALVÃO, 1997-98, p. 21), nomes que

apareceram nas seguintes matérias do autor: Coisas de poesia (25/02/1961), Outras

coisas de poesia (01/04/1961), Novas coisas de poesia (20/05/1961) e Sempre coisas de

poesia (22/07/1961).

Se a escritura de Rosa opera-se a partir da constante ficcionalização do mundo,

tal processo de significação constante também vale para o próprio autor, que certa vez

pediu: “não me busquem onde não estou, mas onde minha estória de vida só apresenta

174 Das quatro estórias selecionadas e analisadas no quarto capítulo desta tese, somente Partida do Audaznavegante não foi publicada em periódicos antes de sair em livro. Além de A menina de lá, que saiu em“Guimarães Rosa conta” no Globo de 06 de maio de 1961, Fita Verde no cabelo saiu em O Estado deSão Paulo de 08 de fevereiro de 1964 e Tresaventura saiu em Pulso de 04 de maio de 1965.

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algum valor pelo crivo da ficção” (ROSA, 2002 apud. FLORA, 2008, p. 13)175. Por isso,

ao depararmo-nos com seus exercícios de heteronímia, estamos acessando outras

invenções do autor, nas quais ele cria uma forma complexa de inserir a si próprio e

também seu processo de criação no jogo entre o verdadeiro, o falso e o fictício, que

constituiria uma das formas mais interessantes de se encarar as relações entre realidade

e ficção ou, se quisermos, entre História e Literatura (cf. GINZBURG, 2007, p. 311-38).

No Fundo de Guimarães Rosa no arquivo do IEB/USP, foram encontradas duas

dessas matérias, contendo poemas assinados por heterônimos. Na matéria Outras coisas

de poesia, o autor “apresenta” seu próprio pseudônimo Soares Guiamar e comenta sua

recepção em tom extremamente informal, como se estivesse mantendo uma conversa

com os leitores: “Soares Guiamar vem com mais poemas. Alguns gostaram dele; e os

outros nos culparão. Pensa-se, mesmo, que toda poesia é uma espécie de perdão pedido”

(ROSA, 1961). Com essa declaração, Guimarães Rosa afirma a construção do

personagem imaginário que inventa para assinar algumas de suas poesias, no sentido de

operar a sua própria ficcionalização. Dentre os cinco poemas expostos ali, destacamos

um que dialoga diretamente com esta pesquisa:

175 Fabio Flora cita Souza, Maria Eneida de. Rosa entre duas margens. BH: Margens, 2002, p. 14.

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Ao intitular seu poema Motivo, Rosa começa alertando que, a partir daquelas

linhas, tomaremos contato com alguma causa ou razão de algo que é expresso em

pequenos trechos, como se fossem fragmentos de alguma composição musical ou

unidades de assunto em textos literários. Nos versos, nos deparamos com uma das

imagens poéticas mais usadas por Rosa para se referir à infância: a figura do menino.

Aqui, como toda criança, ele não está comprometido com nenhuma lógica ou direção,

apresentando, então, extrema facilidade em acionar sua imaginação para (re)inventar o

mundo a seu redor: ao adentrar o elevador, “a casa virou montanha” e “o luar partiu-a

em três”, para que ele começasse sua aventura pelas selvas, de onde saiu “montado no

gurupês” – objeto mais frequente em embarcações –, até que “adormeceu sobre neve” e,

ainda “antes de despertar” – portanto imerso no plano onírico –, percebeu que podia

“regressar ao porquê; ao onde; ao quando; a causa; tempo e lugar” das coisas. Como se

questionando a própria ideia de duração dos acontecimentos, toda essa reflexão

concernente à direção e à lógica das coisas acontece durante uma breve viagem de

elevador durante a qual o menino visita vários momentos de sua vida. Ainda que de

forma transversal, o menino, personagem desse poema, poderia ser relacionado a outro

Figura 5.3 – Poema Motivo, do pseudônimo Soares Guiamar: “O menino foi andando/ entrou num elevador/ acasa virou montanha/ o luar partiu-a em três/ o menino saiu de selvas/ montado no gurupês/ adormeceu sobreneve/ despertou noutro cantar/ mas deu-se que envelhecera/ bem antes de despertar/ então ele veio andando/ sópodia regressar/ ao porquê, ao onde, ao quando/ – a causa, tempo e lugar.”Fonte – (ROSA, 1961a, IEB JGR-R 19,01, p. 1)

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Menino (que assim é denominado no texto) da ficção rosiana: o personagem principal

da estória Nenhum nenhuma, do livro Primeiras Estórias, aquele cuja infância serve de

busca para regressar à origem, que procura lembrar “ultramuito176 [...] o que há por

aquela parte, até aonde o luar do meu mais - longe, o que certifico e sei”, numa travessia

na qual ele queria “adivinhar o verdadeiro e real, já havido” (ROSA, 1978, p. 44).

Em outra matéria publicada em O Globo, Novas coisas de poesia, o autor volta a

dialogar com os leitores no sentido de apresentar seus heterônimos poetas:

Perguntam-me por mais versos de Soares Guiamar. Não são possíveis.Este agora para longe, certo à beira do Riachinho Sirimim, lugar de sequerer bem. Tenho, porém, outro poeta de bolso: MEURISSARAGÃO. Jovem, sem jeito, em sua primeira fase, provavelmenteextinta. Vejam se serve. (ROSA, 1961)

Dos cinco poemas dessa matéria de autoria do “poeta de bolso” de Guimarães

Rosa, o seguinte destaca-se:

176 “Ultramuito: termo não dicionarizado que pode significar que “muito além” ou há muitíssimo tempo,determinando de forma enfática” (MARTINS, 2001, p. 512), podendo referir-se ao caráter impreciso dotempo infantil.

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Nesse poema, nos chama a atenção, novamente, o questionamento em torno do

tempo cronológico e linear, dessa vez de forma mais clara, através da comparação do

relógio a um crustáceo – como um determinador de direções –, em movimentos

monótonos e mecânicos. Alguns anos depois, nas primeiras edições de seu livro

Tutaméia (Terceiras Estórias) (1967), ao fim de algumas estórias contamos com a

representação gráfica de um crustáceo, um caranguejo:

Figura 5.4 – Poema A Espantada estória, do pseudônimo Meuris Aragão: “O relógio o/ crustáceo/ de dentro depolo-norte/ e escudos de vidro/ em dar remedido/ desfechos indivisos/ cirúrgicas mandíbulas/ desoras antenas;//ele entranha e em torno e erra/ o milagre monótono/ intacto em colmeias;/ nem e sempre outro adeus/ me não-usa,gasta o/ fim não fim:/ repete antecipadamente/ meu único momento?/ ...nêle/ eternizo/ agonizo/ metalicamente/maquinalmente/ sobressaltada-/ mente/ ciente.”Fonte – (ROSA, IEB JGR-R 19.01,13, s.p.)

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O desenho representa “o signo do Caranguejo, sob o qual nasceu Rosa”, sendo

que ele foi um autor que acreditava na influência dos astros “de maneira poeticamente

supersticiosa” (cf. ROSA et. al., p. 77), tanto que chegou até a comentar sobre o assunto

em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (ROSA, 1967 apud ROSA,

1999, p. 498). Para além de tal fato, é interessante destacar que, embora esse animal

possa se locomover para os lados, isto é, de maneira não linear, ele é tradicionalmente

conhecido, e até simbolicamente, como um animal que se locomove para trás. O

caranguejo também aparece em uma das tiras cômicas protagonizadas pela personagem

Mafalda, do cartunista argentino Quino, na qual a menina observa um caranguejo na

praia:

Figura 5.5 – Caranguejo – Desenho que ilustra algumas páginas do livro Tutaméia (terceiras estórias), nasedições da José Olympio dos anos 1960.Fonte – (ROSA, 1967, p. 20)

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As colocações de Mafalda acerca do deslocamento do caranguejo também

remetem ao ideário sobre os deslocamentos do tempo proposto no poema do heterônimo

de Guimarães Rosa, que também cita o caranguejo. Na tirinha, quando a menina

percebe que o bicho está se deslocando para trás, logo o toma como reacionário.

Também Guimarães Rosa, em sua entrevista de 1965 é questionado sobre os limites da

“revolução literária” que teria promovido, ao que responde:

Não sou um revolucionário da língua. Quem afirme isto não temqualquer sentido da língua, pois julga segundo as aparências. Se temde haver uma frase feita, eu preferia que me chamassem dereacionário da língua, pois quero voltar cada dia à origem da língua, láonde a palavra ainda está nas entranhas da alma, para poder lhe dar luzsegundo a minha imagem. Veja como se tornam insensatas as frasesfeitas, tais como “revolucionário” ou “reacionário” quando as

Figura 5.6 – Mafalda e o caranguejo - A menina discute sobre direcionamento e tempo com um caranguejo napraia: “O futuro é para frente! Você não ouviu? O futuro é para frente! Reacionário! Que mania de andar paratrás! Que bicho mais sem futuro! Você é um bicho estúpido, sem futuro! Ou será que o futuro é tão ruim que eleestá voltando?”.Fonte – (QUINO, 2010, p. 62-3)

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examinamos em função de sua utilidade, quando a gente as toma beimWort nimmt 177, como dizem os alemães. (LORENZ, 1983, p. 84)

Com essa afirmação de Rosa acerca de seus modos de aplicar a linguagem em

sua literatura, também o flagramos postular uma das bases de seu projeto literário, que

propunha, através da recolocação de expressões de linguagem, representar aquele

questionamento a respeito da concepção de tempo e da história europeias advindas do

século XIX, que já não cabiam nas concepções temporais do novo século. Na literatura

rosiana, essas questões eram postas em discussão através da própria linguagem

utilizada, visto nela o autor procurar sempre “desenvolver a sensação para a língua,

como algo que está ainda se construindo, algo que não está pronto” (BOLLE, 2010, 18’

35”) e, com isso, alvitrava a ideia de um tempo descompassado e não cronológico que

veio a ser a marca fundamental do projeto histórico do século XX, marca que, no Brasil

do século de Rosa, se afirmou especialmente em sua obra – que sempre repensou os

limites de uma modernidade que não deu certo no país (cf. RODRIGUES, 2009).

Esse tipo de ideia, como vimos, também é proposto pelo poema A Espantada

Estória, do heterônimo de Rosa, no qual a perspectiva linear fecha as possibilidades de

futuro, aparecendo sempre como aquela direção que “gasta o/ fim não fim:/ repete

antecipadamente/ meu único momento”. A linearidade seria o grande questionamento

de Rosa em relação à História compreendida como narrativa, já que ela acabaria

tornando tudo tão previsível que até mesmo acontecimentos insólitos tais como os

“milagres”, se existirem, se tornariam “monótonos”, como um “fósforo riscado” ou uma

anedota explicada: “foi-se a serventia” (ROSA, 1967, p. 03), porque o que a

“espantada” estória proporia seria a genuína surpresa, o inesperado.

Se, para discutir esses assuntos, partimos de uma tira cômica da personagem

Mafalda, é preciso lembrar que ela constituiu uma das mais significativas

representações infantis na década de 1960, especialmente no que respeita à

representação das menininhas. Como é sabido, foi em setembro de 1964 que o mais

importante semanário argentino na época, o Primeira Plana publica a primeira tira

cômica protagonizada pela menina Mafalda, do cartunista argentino Quino (QUINO,

2010, p. X). Mafalda é uma menina de seis anos de idade, que odeia sopa, gosta da

música dos Beatles e do Pica Pau, mas sua característica mais marcante é que ela

177 Na edição consultada, a expressão é assim traduzida: “‘Toma literalmente’, citado em alemão porGuimarães Rosa” (LORENZ, 1983, p. 84).

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sempre exercita reflexões críticas acerca do mundo a seu redor. Segundo o prefácio de

Umberto Eco para o livro Mafalda La Contestaria, de 1969,

Mafalda não é apenas um novo personagem das histórias emquadrinhos: é o personagem dos anos sessenta. Se para defini-lausamos o adjetivo ‘contestadora’ não foi para seguirmos a qualquerpreço a moda do anticonformismo: Mafalda é realmente uma heroína‘enraivecida’ que recusa o mundo tal como ele é. [...] Na verdadeMafalda tem ideias confusas em questão de política. Não consegueentender o que acontece no Vietnã, não sabe porque existem pobres,desconfia do Estado e tem receio dos chineses. De uma coisa ela temcerteza: não está satisfeita. [...] O universo de Mafalda não é apenas ode uma América Latina urbana e desenvolvida; é também, de modogeral e em muitos aspectos, um universo latino, o que a torna maiscompreensível do que muitos personagens de quadrinhos norteamericanos; enfim, Mafalda, em todas as situações, é um ‘herói donosso tempo’, o que não parece uma qualificação exagerada para opequeno personagem de papel e tinta que Quino propõe. Ninguémnega que as histórias em quadrinhos (quando atingem certo nível dequalidade) assumam a função de questionadoras de costumes – eMafalda reflete as tendências de uma juventude inquieta, queassumem aqui a forma paradoxal de dissidência infantil, de esquemaspsicológicos de reação aos veículos da comunicação de massa, deurticária moral provocada pela lógica dos blocos, de asma intelectualprovocada pelo cogumelo atômico. Já que nossos filhos vão se tornar– por escolha nossa – outras tantas Mafaldas, será prudente tratarmosMafalda com o respeito que merece um personagem real. (ECO, 2010,p. XVI)

Como a personagem Mafalda é ainda uma criança – e o mundo para ela constitui

um grande estranhamento que ela vai tendo de significar constantemente –, mas como

ela já está mais crescida que um bebê, tantas vezes os seus questionamentos oscilam

entre a dúvida e a certeza, tornando-a salutar para o público adulto que, contudo, nem

sempre pode se alinhar às preocupações de uma criança, mostrando que para abordar a

infância é preciso manter as fronteiras frouxas, já que estamos tratando de um momento

de indeterminação, no qual um vir-a-ser reage dialeticamente a um já-sendo (QUINO,

2010, p. 62)178. De qualquer forma, é preciso lembrar que a representação do humor

gráfico carrega na hipérbole de uma menina que provoca estranhamento cômico

exatamente porque reage, surpreendentemente, como um adulto engajado. O cômico de

Quino surge, pois, desse contraste.

Fechando esse parêntese, gostaríamos de retomar as questões concernentes à

produção rosiana nos periódicos e, visando problematizar Guimarães Rosa como autor

178 Uma excelente representação de como as crianças podem ver com estranhamento inicial a política eoutras ideias do mundo adulto para, depois, terem dele nova compreensão está no filme de Julie Gavras, ACulpa é do Fidel, de 2006.

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de textos para O Globo, lembramos que, em crônica de 22 de janeiro de 1961, o poeta

Manuel Bandeira escreve o que Rosa respondeu quando ele perguntou sobre como se

sentia escrevendo semanalmente para tal periódico:

A resposta veio pronta: Angústia. [...] Rosa nunca escreve senãocaprichado. Por isso mal entrega a colaboração da semana, já começaa trabalhar na da semana seguinte. Ora, uma semana não dá para Rosacaprichar nas suas invenções verbais (há sempre invenções verbais emtudo o que Rosa escreve). Daí a angústia. Rosa confidenciou-me:– Começo a escrever, um mundo de coisas, ideias, imagens,reminiscências, me acodem. Escrevo cinco, dez, quinze páginas. Épreciso reduzir a três. Começo a cortar, começo a corrigir. Aí tomogosto. Nunca se acaba de corrigir. O meu desejo é então continuar acorrigir até o fim da minha vida. Mas há que entregar os originais. Eno dia seguinte recomeçar coisa nova. (BANDEIRA, 1997, p. 278)

Bandeira ainda arremata: “Escrever para jornal é como escrever na areia. Rosa

não escreve na areia: Rosa grava na pedra. Para a eternidade. Assim o que Rosa está

fazendo em O Globo é, capítulo a capítulo, mais um livro...” (BANDEIRA, 1997, p.

279). Rosa estava mesmo interessado no eterno, no contínuo, mas para atingi-lo,

também para ele, era necessária a prática de alguns rascunhos, modus operandi que

pôde realizar nas páginas dos jornais.

Com a publicação de seu livro Primeiras Estórias, em 1962, a escrita rosiana

abriu-se a novas configurações: a diminuição do tamanho dos textos, o foco narrativo

reduzido, o enfraquecimento do teor regional etc. A essa nova forma o autor intitulou

estória, que, para as formulações teóricas de sua época, estaria ligada apenas àquilo que

a crítica literária chamou de short story, ou seja, uma modalidade de conto nascida no

século XIX, no qual se investe na condensação extrema dos enredos em poucas páginas,

mas sempre concluídos com um desfecho impensado. Essa aposta literária teria surgido

para

Satisfazer às necessidades de uma literatura de consumo em constantecrescimento, ligada à expansão de jornais, revistas e outros periódicos.Não é por mera coincidência que quase todas as narrativas queintegram Primeiras Estórias foram publicadas antes, em váriosnúmeros de periódicos cariocas: no jornal O Globo e na revistaSenhor. (BOLLE, 1973, p. 84)

Retomando essas informações acerca do contexto editorial da escritura das

estórias rosianas (FAGUNDES, 2010, p. 110-20), é preciso destacar que de forma

alguma as necessidades do consumo e a presença de Guimarães Rosa nos periódicos o

fizeram descuidar do intenso trabalho com a linguagem em sua literatura, visto que essa

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parece ter sido a sua profissão de fé, como homem e como escritor: “considero a língua

como meu elemento metafísico, o que sem dúvida tem suas consequências” (LORENZ,

1983, p. 80).

Seguindo o fluxo das publicações rosianas, em 1967, foi editado seu último livro

de estórias, todas já publicadas anteriormente em um periódico para médicos, intitulado

Pulso. Em seu texto de despedida daquelas publicações quinzenais, vindas à luz entre

1965 e 1967, Rosa escreveu em 29 de julho de 1967 o texto Rogo e aceno que constitui

uma rara oportunidade de sabermos, pelas palavras do próprio autor, como foi sua

relação com a publicação serial de textos em periódicos, envolvendo os motivos de ter

aceitado o convite de Pulso, seus resultados e a maneira como essa produção se

relacionava com sua vida de escritor de livros. Assim sendo, transcrevemos o texto

quase que integralmente, numa longa mas importantíssima citação:

Faz dois anos, aqui venho contar estórias. De que com sério afinco eatencioso esforço, não duvidem. Tomo à honra escrever para PULSO,e não se brinque quando no serviço literário. Antes que tudo, porém,pareceu-me esta simpática, confraterna maneira de entrar em presençacom os médicos, meus colegas, de todo o Brasil: remediada um poucoassim em íntimo a nostalgia da Medicina, que a vida me levou a naprática desertar. De coração, nunca se é ex-médico, comigo acho.Devo dizer, aliás, saldam-se-me bem os resultados. Os leitoresgostaram. Uns, muito. Outros, pouquinho, por enquanto. Outros,ainda, nada e não, vocês sabem; mas a isto estamos, os do ofício,acostumados. E, afinal, muitos médicos, tomados pelo fino árduoministério de cada hora, demais próxima sempre da dor humana,precisam em geral é de qualquer breve leitura, pausa amena, recreio edistensão que de algum modo os distraia; do que me dou conta emtempo. [...]Aos amigos comunico, principalmente, que os 24 meses decolaboração deram livro Tutaméia/terceiras estórias, em véspera desair pela Livraria José Olympio Editora, compreendendo 40 contos –dos quais um apenas não estampado prévio nesta coluna – mais 4Prefácios do autor. Sem desmodéstia, declaro-me com ele satisfeito.Gostaria que o lessem: os já favoráveis e os ainda contrários; sejaporque são médicos, e, pois, de minha natural estima; não faço aquianúncio comercial. Tenho é sincera a confiança em que, muitos, com amoda minha de linguagem toquem título de ‘facilitário’, já de si acoisa, em páginas, fica mais descomprimida e clara, menos travada.Sempre é tempo para a boa vontade de se reexperimentar.Digo, devo ao convite de PULSO, a realização da obra. Para minhaespecial sorte: porquanto os temas de alguns dos contos andavam-mesem solução na cabeça, uns há cerca de vinte anos; até que, só nestaforma curta, forçada pela limitação do espaço, encontraram comocompor-se.Por outra, porém, sucede que a mesma válida razão impõe-me agoraaqui interromper o comparecimento, até quando nem sei. Gravam-mecompromissos excessivos, e o tempo que me resta preciso de

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 281

empregá-lo, sem mais adiamento possível, na terminação de umlivro. Outro. Mas, este, de novelas ou contos longos. Do jeito, nãoconseguiria num saco fazer caber todos os proveitos.Decerto, definitivamente de PULSO não desgarro; provável e fácil éque retorne, como dito, mais tarde. Sendo, pois, por isto que bem meagradaria poder em todo tempo receber – desde que objetivas –críticas, opiniões, comentários quaisquer a meus textos. Pormenos que pareça, penso que a gente escreve é para entendimentoe comunicação; e que, sem abdicar de si em frouxas concessõesilegítimas, deve o artista estimar palpites do povo e de seusdesejáveis leitores, mais perto deles se pondo. Aos que assim seinteressarem em ajudar-me, serei muito reconhecido.Fazendo outro pedido ainda: que é quanto ao título do livro, a palavramesma TUTAMÉIA. Se bem os dicionários deem apenas ‘tuta-e-meia’, sempre e desde menino em Minas ouvi falar “tutaméia” –correndo por ninharia, nonada, um quase-nada, bagatela. Mas, comovale a pena conhecer a ocorrência e forma do termo, nas diversasáreas do país, e os colegas e assinantes de PULSO situam-sefelizmente em todos os pontos do território nacional, pergunto se queralguém cordialmente, a esse respeito informar-me.E: vivos votos. Tolerem-me a meia palavra desta semi-despedida.Obrigado. Guimarães Rosa (ROSA, 1967a, grifos nossos)

Conforme assinalado em negrito, nesse texto, Rosa reforça a necessidade da

releitura daquelas suas estórias, a fim de que elas possam ser compreendidas e

assimiladas de forma mais plena, ou seja, para que voltem a tornar ativo o processo de

significação. Em seguida, o autor pede repostas dos leitores, mostrando seu desejo de

fortalecer aquele diálogo quinzenal que certamente alimentou a criação das estórias de

Tutaméia. Lembrando-nos do que já foi dito em nosso terceiro capítulo, é em um dos

prefácios desse mesmo livro que Rosa define o que ele está chamando de estória,

colocando-a como antípoda direta da História, no texto Aletria e Hermenêutica, já aqui

tantas vezes citado:

A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra aHistória. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota. Aanedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechadoineditismo. Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. (ROSA, 1967, p. 03)

Embora nessa definição possamos reconhecer algumas daquelas características

da short story, elencadas acima, parece que o autor lhes atribui uma outra direção de

sentido ainda mais complexa, uma vez que aponta para um deslocamento de percepção

característico do anedótico, propondo questionamentos mais efetivos aos fluxos lineares

da grande narrativa História. Ainda que as estórias de Tutaméia tenham saído antes no

periódico Pulso, o prefácio que definia o gênero só foi publicado no livro, mostrando

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 282

que nos periódicos, apesar da imensa visibilidade, o autor poderia tanto realizar

exercícios de composição, como quando foi poeta bissexto, como configurar um gênero

narrativo próprio. Mas o espaço dos periódicos não foi usado por Guimarães Rosa

apenas como local para a realização de treinamentos nos usos com a linguagem: eles

também serviram de palco para grandes diálogos com seus leitores, como veremos a

seguir.

5.2. Faces da recepção publicada em periódicos e selecionada porGuimarães Rosa

“Há três classes de leitores: o primeiro, o que gozasem julgamento, o terceiro, o que julga sem gozar, ointermediário, que julga gozando e goza julgando, éo que propriamente recria a obra de arte”(H.D. Zimmermann – Sobre a utilidade da literatura:observações preliminares para uma teoria dacomunicação literária)

Ainda acerca da relação de Rosa com os periódicos, compreendidos como o

ambiente específico para certa fase de seu processo de escritura, nos defrontamos com

um material curioso: os recortes que o próprio autor selecionou dos periódicos, cujos

excertos continham as primeiras recepções críticas de suas estórias, logo após o

lançamento dos livros Primeiras Estórias em 1962 e Tutaméia (Terceiras Estórias) em

1967.

5.2.1 Faces da recepção de Primeiras Estórias (1962), selecionadas por Rosa

“[...] são as Primeiras Estórias de um Brasil novo no começo do surgir. [...]Agora, Guimarães Rosa nota que seus Gerais estão em mudança e,

longe de tremer pela novidade, porfia por incorporá-la ao seu universo”.(Luiz Costa Lima – Mundo em perspectiva: Guimarães Rosa)

O volume Primeiras Estórias (1962) apresenta vinte e uma estórias mais curtas

que as novelas de Corpo de Baile e o romance Grande Sertão: Veredas, ambos

pulicados em 1956, e nele vemos surgir diversas personagens crianças, meninos e

meninas pipocando no livro todo. No arquivo de Guimarães Rosa do IEB/USP, os

textos de recepção crítica do livro Primeiras Estórias, todos selecionados e

encadernados pelo autor, somam 136 entradas.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 283

Na encadernação não encontramos apenas artigos de periódico, mas também

cartões, telegramas, cartas e outros tipos de material que, em princípio, parecem não

possuir uma ligação muito evidente com os textos de recepção, mas que também são

importantes se pensarmos que eles tecem uma espécie de comentário acerca da vida do

autor, em seus diversos aspectos, durante o período em que as estórias foram recebidas

pelos leitores.

No que tange especificamente aos textos de periódicos encadernados no referido

volume, cabe destacar que são, notadamente, anônimos, sendo que alguns aparecem

várias vezes, republicados em diferentes periódicos por todo o país, todos tendo sido

guardados por Rosa, movido por alguma motivação escusa. Por terem sido assim

selecionados, supomos que eles constituem, inequivocamente, aqueles com os quais o

autor escolheu dialogar, fato que ele efetivou em muitos momentos. A conversa fica

marcada quando o autor expressa suas marcas de leitura nos textos: ora cola o escrito de

cabeça para baixo em uma folha, ora rabisca ou traça um imenso X em lápis vermelho

sobre ele, mostrando uma possível insatisfação com aquela opinião. Em seu livro

Relembramentos, Vilma Guimarães Rosa nos fala sobre um álbum de artigos do mesmo

tipo, mas com textos concernentes a Grande Sertão: Veredas (1956), que seu pai havia

montado, no qual o autor desafiava os ataques violentos recortando e colando-os no

álbum, de cabeça para baixo. Acerca dos comentários negativos sobre suas obras, Rosa

lhe teria dito:

Se um crítico gasta tempo lendo e depois comentando (ainda queatacando) uma obra, esta pode ser gigantesca em qualidade. Dealguma forma, impressionou-o. Se fosse medíocre, ninguém perderiatempo e trabalho com ela. Quando criticarem seus livros, Vilminha,não perca a fé. Vá adiante, confiando na sua criatividade. Você devetemer apenas um crítico: você mesma. Se tiver achando tudo o queescreve ótimo, cuidado. Descanse o material numa gaveta e depoisreleia, com outro espírito. Sem pressa. Lembre-se, não se fabricalivros como se faz macarrão. Qualidade é sempre mais importante doque quantidade. E se você algum dia quiser destruir o que escreveu,achando tudo horrível, atenção! Você talvez já esteja atingindo aperfeição! (ROSA, 1999, p. 65)

Para um conjunto de notas de divulgação de lançamento, como aquele, com

chamadas em sua maioria produzidas por jornalistas e não por estudiosos ou

especialistas, não espanta que ali poucas vezes se exercitasse algum comentário crítico

mais substancial, para além de resenhas, porém é de se destacar que, ainda assim, o

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 284

tema infância foi levantado várias vezes e das mais diferentes formas em tais textos,

conforme discutiremos agora.

5.2.1.1 Tema infância na recepção das Primeiras Estórias

“Propriamente eu sou Durango KidEu vim trazer, eu vim mostrarNovo jornal, novo sorriso[...]

Propriamente dizer o só exatoPois hoje eu sou o que eu fuiNão desmenti o meu passadoEsse jornal é o meu revólverEsse jornal é o meu sorriso.”

(Toninho Horta & Fernando Brant – Durango Kid)

Atendendo ao tema proposto por esta investigação, destacamos que, no caso da

recepção publicada em periódicos e selecionada pelo autor acerca das Primeiras

Estórias, dentre os mais de 130 artigos, identificamos em 42 deles – dos quais 6 são

duplicatas –, alguma indicação relacionada ao tema infância, conforme é possível

visualizar na tabela a seguir179:

5. TAB 1 - Artigos sobre infância em Primeiras Estórias

No CÓD. TÍTULO AUTOR PERIÓDICO LOCAL DATA OBS

01IEB JGRR 7,01

João Guimarães Rosa“Primeiras Estórias” J. C. O. T. A Ordem

Rio deJaneiro,RJ, BRA

01/02/1963

02IEB JGRR 7,02

História (de bolso) deum prêmio literário

ValdemarCavalcanti Correio da Manhã

Rio deJaneiro,RJ, BRA

07/03/1964

03IEB JGRR 7,05

O Mundo emperspectiva: Guimarães

Rosa

Luiz CostaLima

Tempo BrasileiroRevista de Cultura

Rio deJaneiro,RJ, BRA

Dez. 1963Publicado em(LIMA, 1983)

04IEB JGRR 7,07

Substância deGuimarães Rosa

SebastiãoUchoa Leite Correio da Manhã

Recife, PE,BR

06/07/1963

05IEB JGRR 7,17

Primeiras EstóriasDirce Cortes

RiedelCadernosbrasileiros

Rio deJaneiro,RJ, BRA

05/1962 a06/1962

06IEB JGRR 7,19

As Primeiras EstóriasNewtonBelleza

Jornal doComércio

Rio deJaneiro,RJ, BRA

05/05/1963

179 Os seis textos republicados em periódicos diferentes, mas que foram guardados por Guimarães Rosa(duplicatas) estão marcados pelas linhas em destaque cinza na tabela.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 285

07IEB JGRR 7,20

Primeiras EstóriasManuel

Machado dosSantos

VozesPetrópolis,RJ, BRA

Maio 1963

08IEB JGRR 7,25

Receita de nostalgiaDinah

Silveira deQueiroz

Jornal doComércio

Rio deJaneiro,RJ, BRA

18/04/1963

09IEB JGRR 7,28

Novas estórias? Anônimo

Estado de Minas –Roda Gigante(comentários

literários)

BeloHorizonte,MG, BRA

17/03/1963

10IEB JGRR 7,32

Primeiras Estórias deJoão Guimarães

Anônimo RevistaIntimidade

s.l. Dez. 1962

11IEB JGRR 7,33

Primeiras Estórias Anônimo Jornal doComércio

Rio deJaneiro,RJ, BRA

20/02/1963

12IEB JGRR 7,34

O MeninoBenedito

Nunes

SuplementoLiterário de OEstado de São

Paulo

São Paulo,SP, BRA

02/02/1963

13IEB JGRR 7,35

Livros Novos Anônimo O GloboRio de

Janeiro,RJ, BRA

29/01/1963

14IEB JGRR 7,37

Os caminhos da ficçãoII

WilsonMartins

O Estado de SãoPaulo

São Paulo,SP, BRA

26/01/1963

15IEB JGRR 7,40

Primeiras EstóriasJoão Camillode Oliveira

TorresJornal do Dia RS, BRA 12/01/1963

Duplicata deIEB JGR R-7,01

16IEB JGRR 7,41

1962Raquel deQueiroz O Cruzeiro

Rio deJaneiro,RJ, BRA

19/01/1963

17IEB JGRR 7,43

Substância deGuimarães Rosa

SebastiãoUchoa Leite

Revista de Culturada Universidade

de Recife

Recife, PE,BRA

06/07/1963Duplicata deIEB JGR R-7,7

18IEB JGRR 7,44

João Guimarães Rosa eas Primeiras Estórias

EduardoPrado Vieira Revista Leitura

Rio deJaneiro,RJ, BRA

Dez. 1962

19IEB JGRR 7,46

Painel Literário Raul Lima Revista PainelBrasileiro

s.l. 1962

20IEB JGRR 7,47

Guimarães Rosa emveredas da invenção

ValdemarCavalcanti

O Jornal – Jornalliterário

s.l.23/12/1962

21IEB JGRR 7,48

Primeiras EstóriasJoão Camilode Oliveira

TorresO Diário

MinasGerais, BR

22/12/1962Duplicata deIEB JGR R-7,1

22IEB JGRR 7,49

Primeiras Estórias /Apreciações literárias

StellaLeonardos Diário de Notícias

Rio deJaneiro,RJ, BRA

9/12/1962

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 286

23IEB JGRR 7,50

Cartão de boas festas

EnciclopédiaInfantil:

Andorinha-da-casa-Flávia

- s.l.[1962]

24IEB JGRR 7,54

“Primeiras Estórias” deGuimarães Rosa

ChristianoFraga Diário de Notícias

EspíritoSanto,BRA

2/12/1962

25IEB JGRR 7,57

No Praia clube deAraruama (II)

MarcosAndré O Globo

Rio deJaneiro,RJ, BRA

26/10/1962

26IEB JGRR 7,58

Best Sellers daquinzena

MarcosAndré O Globo

Rio deJaneiro,RJ, BRA

26/10/1962

Duplicata deIEB JGR R-7,57

27IEB JGRR 7,59

O homem e a fábula:Algumas ideias

confusas

José CarlosOliveira O Globo

Rio deJaneiro,RJ, BRA

22/11/1962

28IEB JGRR 7,62

O Mago GuimarãesRosa

Luiz M.Rodrigues

Filho

Comércio deFranca-Diário

Matutino

Franca, SP,BRA

20/11/1962

29IEB JGRR 7,64

Primeiras Estórias(Parte I)

NogueiraMoutinho

Folha de SãoPaulo

São Paulo,SP, BRA

25/11/1962

30IEB JGRR 7,65

Primeiras Estórias(Parte II)

NogueiraMoutinho

Folha de SãoPaulo

São Paulo,SP, BRA

25/11/1962

31IEB JGRR 7,66

Estórias J. H. Pires Diário da NoiteSão Paulo,SP, BRA

14/11/1962

32IEB JGRR 7,68

Momento Cultural Carlos Pontes O PovoFortaleza,CE, BRA

10/11/1962

33IEB JGRR 7,70

Três lançamentosGilberto

Cavalcanti Gazeta de AlagoasAlagoas,

BRA11/11/1962

34IEB JGRR 7,71

Três lançamentos Carlos Pontes Correio PaulistanoSão Paulo,SP, BRA

25/11/1962

Duplicata deIEB JGR R-7,68

35IEB JGRR 7,72

Bilhete a GuimarãesRosa

Eneida Diário de NotíciasRio de

Janeiro,RJ, BRA

01/11/1962

36IEB JGRR 7,85

A Semana e os livrosRolmesBarbosa

O Estado de SãoPaulo

São Paulo,SP, BRA

13/10/1962

37IEB JGRR 7,88

Guimarães Rosa. Omesmo

Helle Alves Diário de SãoPaulo

São Paulo,SP, BRA

07/10/1962

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 287

38IEB JGRR 7,100

Primeiras EstóriasWalmirAyala

Jornal doComércio

Rio deJaneiro,RJ, BRA

02/10/1962

39IEB JGRR 7,102

Primeiras Estórias:Novo livro de

Guimarães RosaAnônimo Tribuna de

PetrópolisPetrópoolisRJ, BRA

02/10/1962Duplicata deIEB JGR R-7,33

40IEB JGRR 7,103

Primeiras Estórias Anônimo Jornal de LetrasRio de

Janeiro,RJ, BRA

10/1962

41IEB JGRR 7,106

Guimarães Rosa contasuas Primeiras estórias

Carlos Osmar Gazeta de notíciasRio de

Janeiro,RJ, BRA

30/9/1962

42IEB JGRR 7,111

Carta a GuimarãesRosa

GilbertoAmado s.l. s.l. s.d.

Na intenção de destacar o recorte inédito desse material, aspecto que, de certa

forma, justifica a proposta desta investigação, optamos por comentar os textos um a um,

seguindo a ordem pela qual Rosa os organizou, respeitada também na catalogação do

arquivo IEB/USP, motivo pelo qual começamos indicando seu código no Fundo do

autor, seguido das outras informações bibliográficas. Lembramos também que, anexos à

tese, disponibilizamos 40 desses textos transcritos e reproduções fotográficas de alguns

deles.180

1. IEB JGR-R 7,01 – Título: João Guimarães Rosa “PrimeirasEstórias” - Autor: J. C. O. T. – Periódico: A Ordem – Local e data:Rio de Janeiro, RJ, BRA, 01/02/1963181.

O texto começa apontando como um elemento fundamental para a escrita

rosiana algo que também acontece com as crianças quando estão se inserindo na

linguagem, a saber, o fato de que Rosa “faz sua própria língua”, para com ela compor

narrativas. A partir disso, são elencados alguns limites dessa confecção complexa que se

apresenta como uma “operação terrivelmente difícil, em virtude dos problemas por

assim dizer linguísticos e filológicos, sem falar nos estilísticos, que a redação de suas

novelas provocam”182. Em seguida, pergunta-se se o “Primeiras” do título do livro

indicaria que aquelas teriam sido as primeiras narrativas escritas pelo autor, ao que o

180 Todos os textos transcritos são inéditos.181 Visto estarmos comentando individualmente cada texto selecionado por Rosa, convencionamos, nestecapítulo, não referenciá-los segundo o sistema autor-data, mas de forma completa, no corpo do texto.182 Nesse levantamento de textos de periódico, em todas as citações dos artigos que apareceremdestacadas, o grifo é nosso.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 288

próprio articulista responde que não, argumentando que se apresentam de forma muito

elaboradas para terem sido as primeiras, sendo que o importante não seria saber se são

as “primeiras ou as segundas”, mas que não sejam as últimas, visto serem boas.

Posteriormente, faz um comentário geral acerca do volume e termina destacando

diretamente que “seriam ‘primeiras’ estas ‘estórias’, já que nelas as crianças atuam de

maneira mais direta... Não em todas, mas em muitas. Principalmente no clima geral do

livro, a refletir a visão geral do mundo infantil”. Por fim, sugere o motivo dessa escolha:

talvez porque o autor não opte por usar a Língua que todos usam, mas sim a que ele

mesmo cria em seu processo de escritura.

2. IEB JGR-R 7,02 – Título: História (de bolso) de um prêmio literário– Autor: Valdemar Cavalcanti – Periódico: Correio da Manhã –Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 07/03/1964.

Aqui temos um comentário sobre o Prêmio Pen Clube de 1963, no qual

Primeiras Estórias foi considerado o melhor na modalidade contos, destacando

Guimarães Rosa, sempre surpresa em tudo, inesperado sempre, igual ediferente a um tempo. Escritor que, mágico no compor sua renda,veio, além do mais, liquidar aquela falsa ideia de que nossa língua épobre e rala; pode ser um túmulo – e até certo ponto o é –, mas umtúmulo de luxo.

Quem aposta sempre em surpresas e desvenda a face mais pura da Língua não

seriam as crianças que, como reiteradamente sublinhamos neste trabalho, sempre a

enxergam como se fosse a primeira vez?

3. IEB JGR-R 7,05 – Título: O Mundo em perspectiva: GuimarãesRosa – Autor: Luiz Costa Lima – Periódico: Tempo BrasileiroRevista de Cultura – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, Dez.1963183.

Nesse texto, que já é referência nos estudos sobre Primeiras Estórias, Lima tenta

uma interpretação do fluxo de mudanças da obra de Rosa, associando o período da

escritura das estórias (década de 1960) a um momento de muita expectativa por

renovação, sugerindo assim que o próprio país dos anos 1960 estivesse (re)nascendo na

ficção de Rosa, afinal aquelas seriam as “Primeiras Estórias de um Brasil novo no

começo do surgir. [...] Agora, Guimarães Rosa nota que os seus Gerais estão em

183 Esse texto não foi transcrito por ser o único desse nosso recorte que já foi publicado (LIMA, 1983).

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 289

mudança e, longe de tremer pela novidade, porfia por incorporá-la ao seu universo”.

Essa relação estabelecida entre as estórias rosianas e o início de um ‘Brasil novo’

proposta por Lima foi fortemente aceita pela fortuna crítica das Primeiras Estórias,

mas, de acordo com nossa leitura, esse texto parece também constituir mais um

destaque à infância, que é o período comumente considerado como aquele no qual tudo

é novo.

4. IEB JGR-R 7,07 – Título: Substância de Guimarães Rosa – Autor:Sebastião Uchoa Leite – Periódico: Correio da Manhã – Local edata: Recife, PE, BR, 06/07/1963.

Nesse texto, o poeta Sebastião Uchoa Leite experimenta uma leitura crítica do

livro, embora alertando que

quanto a Guimarães o certo é que se esbarra no óbvio: está vendo queo escritor é dono de uma linguagem inédita, aparentemente inóspita, ea única maneira de se comemorar o fato é a análise detalhada dosprocessos dessa linguagem. Alguns desses processos são dos maisevidentes e quase todo escritor que realmente pretende uma novacriação se utiliza deles: variações morfológicas, invenções sintáticas,extensões categoriais. Apesar disso permanece na prosa de Guimarãesum sabor raro de inevidência que o distingue dos outros ficcionistasbrasileiros: alguns chegamos a não suportar mais depois da leitura deGuimarães Rosa, principalmente os que enveredaram pela trilha dalinguagem regional, sem reduzi-la suficientemente artístico (comexceção de Graciliano Ramos, mestre da prosa direta lúcida, emboralimitada pelos seus fins).

Ao destacar essa busca pelo novo, Leite acaba propondo uma relação entre a

escritura de Rosa e a infância, já que a criança, tantas vezes, se utiliza desses mesmos

processos elencados por ele quando trabalha com a linguagem. Assim, tal qual a

criança, Guimarães Rosa

torna-se dono da sua linguagem, isto significa que se afirma em umaliberdade superior: não há peias lógicas nem tradições estéticas que oimpeçam de explorar dissonâncias possíveis dentro da linguagem.Guimarães Rosa é dos que forçam um aspecto novo de receptividadeestética no leitor ou do contrário seu reino se fecha as portas aosacomodados.

Ora, então não são as crianças que partem dessa não filiação com estruturas de

expressão exteriores? Nesse sentido, Leite continua a reflexão: “Em Guimarães Rosa a

linguagem atinge um estado de tensão contínua: ele diz da forma mais inesperada o que

esperamos dele. Isto é ser o mestre da inevidência”, aspecto que lhe permite “dar às suas

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 290

‘estórias’ um sabor durável. A linguagem parece ser utilizada nelas com o sentido de

criar um tempo interno suficiente no espírito do leitor para afastar efemeridades do

elemento anedótico. Esse é, portanto, transcendido pelo seu “dizer”. Dessa maneira, o

ensaio todo aborda os processos de feitura da escritura das estórias e, mesmo que de

forma indireta, sugere o estabelecimento de uma relação direta entre a escrita de Rosa e

a comunicação da criança.

5. IEB JGR-R 7,17 – Título: Primeiras Estórias – Autor: Dirce CortesRiedel – Periódico: Cadernos brasileiros – Local e Data: Rio deJaneiro, RJ, BRA, 05/1962 a 06/1962.

No artigo acerca das Primeiras Estórias escrito pela professora de literatura

Dirce Cortes Riedel, a autora começa destacando a presença de muitas personagens

infantis – especialmente em comparação com as obras anteriores de Rosa. A partir da

estória Nenhum, nenhuma, ela ainda tece o seguinte comentário (com muitas citações

diretas ao texto do Rosa, que mantemos entre aspas simples):

A busca do tempo perdido tem uma nova organização artística em‘Nenhum, nenhuma’ – tentativa do narrador de religar-se, adivinhando‘o verdadeiro e real, já havido’: o passado que vem como uma nuvem,vem para ser reconhecido, mas o protagonista não sabe decifrá-lo. Aluta com a memória é configurada por uma forma estranhamentesugestiva: ‘reperdia a remembrança, a representação de tudo sedesordena: é uma ponte, uma ponte, – mas que, a certa hora, seacabou, parece que. Luta-se com a memória.’ Neste conto (Nenhum,nenhuma), como em outros, aproveitam-se recursos gráficos, naimpressão: caracteres mais fortes ressaltam o trabalho da memória, natentativa da reconstituição do passado, destacando-o do presente, deonde ele emerge e do qual é parte integrante. Mas esta angústiatemporal não é típica do mundo da ficção rosiana. O que ela nosapresenta, em geral, é o tempo estático do sertão dos Gerais, olongo tempo da espera (A gente se mexendo, tranquilos, e o tempocrescendo, parado). A visão do mundo da criança, como em ‘Campogeral’, de ‘Corpo de Baile’, tem um lirismo sem pieguice em ‘Asmargens da alegria’, ‘ A menina de lá’, ‘Os cimos’ – contemplaçãodesinteressada, visão das coisas puras, com pureza e poesia. A criançaque, quando feliz, é ‘alegre de se rir para si’, ‘com um jeito de folha acair’: o menino que, quando contemplou, extasiado, o peru de roda,‘riu, com todo o coração e, quando, na véspera do ‘dia de anos dodoutor’, só viu do animal umas penas, restos, no chão, sentiu que‘tudo perdia a eternidade e a clareza; num lufo, num átimo, da genteas mais belas coisas se roubaram’. A tristeza infantil, tristeza semtragédia, tristeza que não conhece o ‘envelhecimento da esperança’leva o Menino a não acreditar que estivesse perdido o‘companheirinho Macaquinho’ ‘no sem-fundo escuro do mundo, semnunca – De certo ele só passeava lá porventuroso e porvindouro, nooutra-parte, aonde as pessoas e as coisas iam e voltam.’

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 291

Apesar de não concordarmos com Riedel quando ela defende que o tempo nas

narrativas rosianas anteriores às Primeiras Estórias seria totalmente paralisado, também

defendemos que, a partir desse livro de 1962, as perspectivas mudaram muito e, de

repente, puderam ter se aproximado mais da visada desvairada da criança, carregada de

alegria e frescor.

6. IEB JGR-R 7,19 – Título: As primeiras estórias – Autor: NewtonBelleza – Periódico: Jornal do Comércio – Local e data: Rio deJaneiro, RJ, BRA, 05/05/1963.

Comentando Primeiras Estórias, livro que visualmente se apresenta mais alegre,

com uma capa amarela cheia de desenhos a bico de pena feitos pelo ilustrador e autor de

livros infantis Luís Jardim, Newton Belleza publica sua apreciação em 5 de maio de

1963 e assim postula:

Algumas das Primeiras Estórias de Guimarães Rosa (como se dátambém no poema sinfônico dos cangaceiros – Grande Sertão:Veredas) incluem-se entre as poucas obras literárias que, pelagrandeza de sua criação, me tem comunicado esta sensação deconforto absoluto, de reconciliação com tudo e com todos, delibertação de inconformados desejos. Em qualquer uma delas, aí está,como é do conhecimento de todos, um pujante e fértil criador delinguagens, salvando-se sempre pelo delicioso agrado que essebrinquedo de criação nos transmite quando resultam emseriedade as realizações desse brinquedo. E em muitas delasaceitamos, e enlevados, a plena adequação da linguagem à estóriacontada.

Contar uma estória que, por seus usos livres de linguagem, restaurasse uma

“reconciliação com tudo e com todos” é também atividade comum às crianças, que não

estão comprometidas com nenhuma categoria exterior, tal como tempo e direção, já que

elas aprendem e consolidam suas percepções do mundo através da brincadeira que,

segundo a sugestão de Belleza, poderia aproximar-se da realização do “brinquedo da

criação” que é a escritura rosiana.

7. IEB JGR-R 7,20 – Título: Primeiras Estórias – Autor: ManuelMachado dos Santos – Periódico: Vozes – Local e data: Petrópolis,RJ, BRA, Maio de 1963.

Nesse texto, encontramos mais uma imagem excelente, aqui destacada em

negrito, que propõe uma ligação entre o próprio estranhamento gerado pela leitura do

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 292

texto rosiano e os processos que ocorrem com os bebês ainda no parto, momento no

qual o primeiro choro humano é também a primeira enunciação humana:

Em suma, o estilo de G.R. apropria-se aos temas. Com eles, setransforma. Por nosso gosto, desejaríamos que páginas intimistas,onde se atinge até o onírico, fossem menos densas e menosenigmáticas. Tendem a cansar o leitor, principalmente quando exigepor longo tempo a tensão interpretativa. Em outros passos, isto é, emoutros contos, a narrativa torna-se límpida e fácil, não obstante osvocábulos em seu primeiro choro...

8. IEB JGR-R 7,25 – Título: Receita para nostalgia – Autor: DinahSilveira de Queiroz – Periódico: Jornal do Comércio – Local e data:Rio de Janeiro, RJ, BRA, 18/04/1963.

Dinah Silveira de Queiroz escreveu esse texto em Moscou, dizendo que a leitura

de Primeiras Estórias pôde aliviar suas saudades do Brasil, visto que, com aquela

leitura, era possível sentir novamente o país, mesmo estando tão longe, pois:

Convém que se peça a algum amigo de boa voz para ir lendo.Então Guimarães Rosa se faz canto da Pátria. Seus bandidos, suassantinhas, seus personagens cercados de mistérios – e vai ver tudo istoé encantamento simples – pertencem aos ‘causos’, isto é, às ‘Estórias’contadas e não lidas. Tudo tem graça, tudo é apetitoso, tudo faznascer em mim a longínqua menina que ainda sem saber lerchupava a ficção por um canudo: ‘Conta mais!’ – e se tornava ummonstrinho devorador de histórias.

Nesse depoimento versando sobre um efeito da leitura das Primeiras Estórias,

Queiroz nos conta que aquelas estórias a levaram a retomar a sensação que tinha

quando, ainda sem saber ler, teve sua imaginação nutrida pelas histórias orais que

alimentaram seu imaginário. Tal efeito só pode ter sido ocasionado porque o próprio

Rosa e seu tio Vicente viveram intensamente o mesmo contato com a audição de mitos

em suas infâncias passadas em Cordisburgo. Esse tipo de efeito que relaciona o leitor

adulto a certa percepção infantil faz parte da construção da escritura, visto que:

a escrita não consiste numa simples retranscrição, pelo adulto, daslembranças da infância, nem que fosse pela necessidade de ‘organizá-las’ para serem utilizadas numa ficção, assim também a arte,relativamente à sensibilidade da infância, não consiste na sua‘sublimação’. [...] a criação do gênio não é lembrança, masressurgência, emergência de um fundo comum, que a criança – ou ainfância – anima com sua sensibilidade e que o artista consegueexprimir. Então, além de se servir de suas lembranças e de se deixarimpelir por forças obscuras, ele é banhado – ao pintar, escrever oucompor – pela infância. Ele é, ou melhor, ‘torna-se’ criança.(SCHÉRER, 2009, p. 192)

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A relação entre a escritura rosiana e certa percepção infantil colocada no

depoimento de Queiroz justifica-se para além dessa revivência da infância do autor que

é refletida na leitora, já que, se lembrarmos que as estórias exigem de seus leitores um

constante trabalho mental de significação, tal qual acontece com a criança quando chega

a um mundo que lhe é totalmente estranho, compreenderemos que elas acabam

permitindo que seus leitores assumam, por um momento, um “estado de infância” – que

é quando nós, leitores adultos, tocamos não só a criança que já fomos, mas a que ainda

continua viva em nós –, instalando-nos na distância em relação às estruturas que

sustentam o pensamento normativo do adulto. A hipótese de que as estórias rosianas

recolocariam o leitor na perspectiva da infância se sustenta no depoimento de Queiroz,

já que ela ainda propõe a necessidade de ouvi-las em voz alta, a fim de reforçar o

intenso trabalho do autor com a Língua portuguesa falada no Brasil, resgatando uma

sonoridade dessa nossa língua materna como uma nova forma de ouvir alguma voz do

Brasil.

9. IEB JGR-R 7,28 – Título: Novas estórias? – Autor: Anônimo –Periódico: Estado de Minas – Local e Data: Belo Horizonte, MG,BRA, 17/03/1963.

Novamente temos mais um texto que relaciona o processo de escritura de Rosa à

infância de maneira poética e sutil, aqui destacada em negrito:

‘Primeiras Estórias’, eis como ambiguamente o nomeou GuimarãesRosa. Donde inferir que se tratam de primeiras estórias mesmo,cronologicamente falando, escritas antes de quaisquer de seus livros jápublicados. Ou como entendem outros, primeiras porque puras,íntimas, antigas pelo perfume de infância que passeia nessaspáginas. Primeiras, porque da fonte, da origem, vago tom demadrugada. Notem-se inúmeros contos que tem por tema o menino, acriança: ‘As margens da alegria’, ‘A menina de lá’,‘Pirlimpsiquice’,‘Nenhum Nenhuma’, etc . Contos de descoberta, emque uma abertura se faz para o mundo, sem aquele contexto barroco(no bom sentido) dos contos anteriores (?) De fato ficamos boiandonum lirismo a que nem a estrutura formal dá uma pressão maisviolenta.

10. IEB JGR-R 7,32 – Título: Primeiras Estórias de João GuimarãesRosa – Autor: Anônimo – Periódico: Revista Intimidade – Data: Dez.1962.

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Esse texto de autoria anônima apresenta um comentário destacando o trabalho

literário do autor:

estórias curtas, que deslumbram o leitor pela sequência dos fatosnarrados, pelo estilo e linguagem desse extraordinário escritor que,desde o aparecimento de Sagarana, afirmou-se como uma das maioresexpressões da literatura brasileira em todos os tempos [...] o que éenriquecido com a capa e desenhos de Luís Jardim.

Ao realçar o trabalho de Luís Jardim nas ilustrações, o articulista também está

destacando as marcas de uma perspectiva infantil naquela obra, pela produção de Jardim

junto a esse público, como já foi comentado. Nas primeiras edições das Primeiras

Estórias, pela editora José Olympio, levadas a cabo durante a década de 1960, podemos

ver amostras de seu trabalho nos desenhos das capas e do sumário. Nas belas capas, em

fundo monocromático amarelo, observamos os seguintes traços simples:

Nos belos desenhos de Jardim, que bem possivelmente foram construídos a

partir de uma devida orientação de Rosa, flagramos símbolos místicos, imagens

Figura 5.7 – Capas da 11ª ed. de Primeiras Estórias (1962), com desenhos de Luís Jardim em fundoamarelo.Fonte – (Rosa, 1978, capas)

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narrativas que podemos reconhecer claramente no texto das estórias. Em estilo

semelhante, mas de maneira mais sintética, temos no volume o sumário ilustrado, no

qual cada uma das 21 estórias do volume é devidamente representada por desenhos e

assim sintetizada:

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 296

Ao serem publicadas em um livro dedicado ao público adulto, como o são as

Primeiras Estórias, as delicadas ilustrações de Jardim não poderiam deixar de remeter à

presença de certo apelo ao mundo infantil.

Figura 5.8 – Sumário de Primeiras Estórias, ilustrado por Luís Jardim.Fonte – (ROSA, 1978, p.V-VII)

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11. IEB JGR-R 7,33 – Título: Primeiras Estórias – Autor: Anônimo –Periódico: Jornal do Comércio – Local e data: Rio de Janeiro, RJ,BRA, 20/02/1963.

Nesse texto anônimo, o autor sugere que a escrita de Rosa incentiva o leitor a

reagir como se fosse uma criança, começando a ver tudo como se fosse a primeira vez,

tentando alinhar as estórias à obra anteriormente publicada por Rosa, especialmente

quando afirma que, naquelas 21 estórias, a temática seria mais ampla:

o que faz com que uma página como Pirlimpsiquice, por exemplo,abra novas perspectivas ao leitor quando comparada a qualquer outrade Sagarana ou de Corpo de Baile, oferecendo, umas e outras,entretanto, a mesma poderosa sensação do nunca visto masentrevisto, nesse pélago da natureza humana rude, primitiva esecreta, que sentimos palpitar ao longe na obra desse autênticocriador, que é João Guimarães Rosa.

12. IEB JGR-R 7,34 – Título: O Menino – Autor: Benedito Nunes –Periódico: Suplemento Literário OESP - Local e data: São Paulo,SP, BRA, 02/02/1963.

De acordo com a proposta de análise crítica que Nunes defende nesse texto, o

Menino, personagem da primeira e da última estória do livro, constituiria a

Imagem poética e ancestralidade [...] e se damos a esse menino, umadimensão simbólica – que é a infância da alma, a perene descobertadas harmonias ocultas da natureza e da simpatia entre os seres, éporque ele pode ser encontrado em outros momentos da obra deGuimarães Rosa.

Em Primeiras Estórias, o Menino como imagem, apareceria também

Em Nhinhinha (Personagem da estória A menina de lá), nãoimporta o sexo. É criança, menino-menina, um arquétipo. Acriança simboliza a renovação da vida, a altitude, a luminosidade, oeterno renascer, no seu significado mítico de Deus-solar, de Criança –divina. No seu significado psicológico profundo é um arquétipo daexperiência comum da humanidade, que a linguagem de GuimarãesRosa pôde recriar com a potência evocativa dos símbolos poéticos,erguidos na sutil fronteira movediça que mal separa o profano dosagrado.

Ao enxergar menino/menina como arquétipos – que consistem em

“representações das forças ou impulsos da alma humana” (COELHO, 2008, p. 98) –,

Benedito Nunes está autorizando-nos a pensar que esses entes responderiam por

qualquer coisa que estejamos denominando como infância. Porém, como estamos

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falando de uma produção literária, embora desejasse resgatar certo teor mítico e entrar

na esfera do atemporal, o que ali se expressa é uma produção ficcional das crianças, não

se podendo desconsiderar que Rosa não constrói personagens meninos da mesma

maneira que construiu as personagens meninas. Se ele mesmo diferencia as personagens

crianças do sexo masculino das do sexo feminino, automaticamente as coloca em

processos de significação diferentes, sendo então que não se pode mais deixar de tocar o

histórico, tal como procuramos discutir no quarto capítulo. Ao contrário de Nunes, não

defendemos que seja indiferente o fato de esse autor escolher o sexo das suas

personagens crianças, até porque não era a mesma coisa “ser menino” ou “ser menina”

no sertão das Minas Gerais184 à época da escrita de Guimarães Rosa. Então, ao escolher

o sexo das crianças, mesmo que não fosse seu desejo, Rosa está inserido suas

personagens na História, determinando sua participação ou não participação nela.

13. IEB JGR-R 7,35 – Título: Livros Novos – Autor: Anônimo – Periódico:O Globo – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 29/o1/1963.

Nesse texto, embora o autor se engane ao dizer que as Primeiras Estórias foram

escritas antes dos contos de Sagarana, encontramos depois um comentário indireto

acerca da referência à visada infantil, quando se indica que aquela narrativa suscita o

mundo “mágico”, “onírico”, “maravilhoso”, “primitivo”, delineando um campo

semântico facilmente correlacionado à infância:

Primeiras Estórias, o título, como já foi exaustivamente explicado,são as primeiras estórias do autor, na sua maneira (única,inconfundível, inimitável) nova de narrativa, pessoalíssima e, além defascinante, participando do encantatório, do mágico, do onírico, domaravilhoso. Variedade temática. Criaturas singulares e vivas. Climasvários. Atmosferas perturbadoras. O civilizado e o primitivo, mitos,assombros, supertições – eis o que compõe, com muito mais deindefinível, de friável, de escorregadio, de inconsútil, deimponderável, o mundo de Primeiras Estórias.

14. IEB JGR-R 7,37 – Título: Os caminhos da ficção II – Autor: WilsonMartins – Periódico: OESP – Local e data: São Paulo, SP, BRA,26/01/1963.

184 Ser menino/homem ou menina/mulher são aspectos muito diferentes na cultura popular e na literaturade Rosa, sendo exemplo disso Diadorim, personagem que apresenta o grau máximo de tensão entre serfeminina ou masculina, já que ela é uma donzela guerreira – aquela que teve de deixar de sermenina/mulher e se tornar menino/homem para fazer parte da sociedade de jagunços (cf. GALVÃO,1998).

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Em determinado momento desse texto dedicado à ficção, Wilson Martins

experimenta evocar o tema da infância para abordar as Primeiras Estórias, que

apresentariam uma sistematização mais apurada da técnica do autor em relação às

primeiras obras publicadas, aspecto que dá lugar a um longo comentário acerca de

algumas personagens infantis de Rosa:

Estas Primeiras Estórias são preciosas não apenas por ser precioso(nos dois sentidos da palavra) tudo o que sai da pena de GuimarãesRosa, mas ainda, porque no-lo expõem num momento em que asistematização da sua técnica ainda não havia alcançado o paroxismode que Grande Sertão: Veredas é, até agora, o exemplo supremo. [...]Caso expressivo é o da menina que dizia: “Alturas de urubuir”, o quesignifica, segundo esclarece o Autor, “altura de urubu não ir”. A idadeliterária relativamente primitiva destes contos admite, ainda, nãosomente as glosas do Autor, como no caso, mas também, a inegávelsimplicidade das invenções: “Ela beladormeceu?” Mais um passo, ealcançamos, para além da jogralidade puramente vocabular, queserá uma das constantes mais salientes desse estilo, a jogralidadenarrativa: “O Aldaz navegante, que foi descobrir os outros lugaresvaletudinário. Ele foi num navio também, falcatruas. Foi de sozinho.Os lugares em um longe, e o mar. O “Aldaz” navegante estava comsaudade, antes da mãe dele, dos irmãos, do pai. Ele não chorava. Eleprecisava respectivo de ir. Disse”. Se um dos personagens diz a outro:“você é uma analfabetinha aldaz”, o interlocutor responde: “Falsa abeatinha é tu”. Até aqui, são trechos de diálogos típicos do Sr.Guimarães Rosa.

15. IEB JGR-R 7,40 – Título: Primeiras estórias – Autor: João Camillo deOliveira Torres – Periódico: Jornal do Dia – Local e data: Rio Grandedo Sul, BRA, 12/01/1963.

É duplicata do texto IEB JGR-R 7,01, então publicado em outro periódico de

outro Estado do país, apresentado no número 01 do presente levantamento.

16. IEB JGR-R 7,41 – Título: “1962” – Autor: Raquel de Queiroz –Periódico: O Cruzeiro – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA,19/01/1963.

Comentando os lançamentos editoriais de 1962, Raquel de Queiroz aponta

Primeiras Estórias como um dos melhores títulos do ano, destacando que:

João Guimarães Rosa – aquele João! – sempre estrela de primeiragrandeza, ande por céu, terra ou água; mas no seu amarelinho (comoRosa chamava o Primeiras Estórias) não esquecer os bichos ebonecos de Luis Jardim, que fazem o livro tão bonito por dentroquanto por fora.

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Com esse comentário, novamente, vemos salientado o trabalho de Luís Jardim

naqueles desenhos que emanavam tanto a percepção infantil, visto que, conforme já foi

dito, Jardim habitava facilmente o universo da infância trazido pela herança do

imaginário das histórias orais, tornando com isso o livro mais bonito “por dentro e por

fora”.

17. IEB JGR-R 7,43 – Título: Substância de Guimarães Rosa – Autor:Sebastião Uchoa Leite – Periódico: Revista de Cultura da Universidadede Recife – Local e data: Recife, PE, BRA, 06/07/1963.

É duplicata do texto IEB JGR-R 7,01, então publicado em outro periódico de

outro Estado do país, apresentado no número 07 do presente levantamento.

18. IEB JGR-R 7,44 – Título: João Guimarães Rosa e as Primeiras Estórias– Autor: Eduardo Prado Vieira – Periódico Revista Leitura – Local edata: Rio de Janeiro, RJ, BRA, Dez. 1962.

Nesse texto, Vieira faz uma interpretação interessante sobre a estória Terceira

Margem do Rio, numa leitura que, se for ampliada ao livro todo, ainda que

indiretamente, pode se referir à infância, especialmente nos trechos grifados:

A Terceira Margem do Rio: tentaremos interpretá-la, especialmentecom a intenção de mostrar a seus leitores mais descuidados, algumacoisa que eles deixaram passar. Antes de mais nada, devemos dizerque o título dado ao livro, quer significar os primeiros problemasda humanidade, suas angústias inatas.Pois bem, a terceira margem do rio é a margem ideal. O rio é aeternidade. Para alcançá-la, é preciso ‘uma canoa especial, de pau devinhático, pequena, mal com a tabuinha da proa, como para caberjusto o remador’: é preciso a oração, individual e solitária. Um homem– ‘nosso pai’ – depois de um longo quietismo, decide se afastar detudo e de todos, indo para ‘aqueles espaços do rio’. Lá ele fica para oresto da vida, o ‘doido’ o ‘aloprado’. Que ‘desde amar, pode ir maisfundo, nunca voltar’. Permanece ‘ dentro da canoa, para dela nãosaltar, nunca mais’ – não abandona mais a oração. Então, ‘aquilo quenão havia, acontecia’: a revelação do Deus. Agora, ele ‘se desertavapara outra sina de existir’: agora ele tinha a evidência, a salvação, poisconsentia em morrer.Em seguida, depois do espanto das pessoas, o cotidiano voltou paraelas – ‘a gente teve de se acostumar com aquilo’. E aquilo, ‘jogavapara trás meus pensamentos’ – dizia o filho, o narrador – isto é, olimite da razão, a personalidade, foram ultrapassados. Um dia,‘minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar paraele o neto. Viemos todos, no barranco. A gente chamou, esperou.Nosso pai não apreceu. Minha irmã chorou, todos nós choramos,abraçados.’

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Assim, a família se mudou e ‘eu fiquei aqui, de resto – continua ofilho – e apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos; estavida era só o desmoronamento’. E o filho resolveu ir lá. Da margemde cá, acenou, esperou. E ‘ele o escutou’, ‘ficou em pé’, remou. Ofilho fugiu, ‘num procedimento desatinado, porquanto que ele pareceuvir: da parte de além’ – o pai agora era o Pai.É claro que todos os personagens desta estória são um só; que‘sofre o grave frio dos medos, adoece’. Que ‘depois dessefalescimento’ se pergunta: ‘sou homem? Que ‘é o que não foi, que vaificar calado’. Que ‘teme abreviar com a vida’, e que pede que ‘noartigo da morte, o peguem, e o depositem também numa canoinha denada, nessa água, que não pára, de longas beiras’. Um só personagem,que não é personagem, que não é nada, como na vez de AugustoMatraga. Um só personagem dizendo ‘e eu rio abaixo, rio a fora, rioadentro – o rio’. Algo que repressa à Unidade, que é retirado dotempo, algo que, como Plotino, diria ‘Estava te esperando, antes que oque há em mim de divino parta unir-se ao que há de divino noUniverso.’Ficamos por aqui, lembrando que há interpretações einterpretações. Esta diversidade, nos parece, é que diferencia aArte de tudo o que a circunda. Um poema, como disse um poetafrancês, sempre casa com alguém, e é sempre umdescongelamento do intelecto.

Ao apresentar uma interpretação da estória, destacando nela as “primeiras

angústias inatas da humanidade”, a delimitação das fronteiras da personalidade e do

relevo dos processos poéticos de “descongelamento do intelecto”, podemos pensar que

estamos também falando de infância, especialmente se concordarmos com Giorgio

Agamben e a encararmos como o estabelecimento de certa relação com a linguagem

(AGAMBEN, 2008, p. 64-5).

19. IEB JGR-R 7,46 – Título: Painel Literário – Autor: Raul Lima –Periódico: Revista Painel Brasileiro no. 42 – Local e data: s.l., 1962.

Nesse texto, o intelectual alagoano Raul Lima fez um balanço dos lançamentos

editorais do ano de 1962. O trecho sobre Primeiras Estórias foi destacado a lápis azul

por Rosa, no qual Raul Lima sublinha:

É que Guimarães Rosa é um inovador. Inovador não somente emestilo, em concepções, mas sobretudo um inovador no emprego dalinguagem autêntica do povo sertanejo, a qual ele apresenta elaborada,enriquecida, submetida a um processo que é seu, ao mesmo tempo deobservador fiel e erudito.Tendo ultimamente escrito uma série de contos, reuniu-a em novolivro sob o Título Primeiras Estórias. O sumo, o denso leite humano,umedece-lhes as páginas.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 302

Dizer que as páginas do livro desse autor tão inovador estavam umedecidas pelo

“leite humano” é destacar nelas certa evocação à primeira infância humana ou, se

quisermos especificar, a seu primeiro alimento cultural que, segundo defendeu Afrânio

Coutinho, consistia na cultura oral, por ele denominada de “o primeiro leite da cultura

humana” (Apud SANDRONI, 2011) 185, que desde os primórdios vem nos alimentando

com mitos, lendas, arquétipos, epopeias, elementos que, inquestionavelmente, se

encontram na escritura das estórias rosianas.

20. IEB JGR-R 7,47 – Título: Guimarães Rosa em veredas da invenção –Autor: Valdemar Cavalcanti – Periódico: O Jornal – Jornal literário –Local e data: s.l., 23/12/1962.

Nesse texto, o intelectual alagoano Valdemar Cavalcanti igualmente comenta os

lançamentos do ano de 1962, destacando Primeiras Estórias como o livro no qual Rosa

se apresenta

no melhor de sua forma, renovado e maduro na intenção e naexecução, fixando fatos, episódios e figuras humanas com o máximode beleza excepcional, com riqueza de cor e vida. Não é de se destacaruma ou algumas de suas histórias: todas são do mesmo timbre, ofrescor de invenção é o mesmo em todas. Há um elemento mágico naprosa de GR: o seu encanto barroco personalíssimo – no melhorsentido que se possa empregar a expressão. Quando ele fala de gente,ou de bichos, ou de árvores, ou de coisas, fala sempre com uma paixãominuciosa e paciente, dizendo tudo o que é essencial, revelando a faceautêntica com a sua arte inimitável.

Ao destacar as peculiaridades da escritura de Rosa nas estórias, o autor aponta

que sua leitura invoca um “frescor de invenção”, abrindo o olhar do leitor para o

“elemento mágico”, como se fosse também um portal para o mundo infantil.

21. IEB JGR-R 7,48 – Título: Primeiras Estórias – Autor: J. C. O. T. –Periódico: O Diário – Local e data: Belo Horizonte, MG, BRA,22/12/1962.

É duplicata do texto IEB JGR-R 7,01, então publicado em outro periódico de

outro Estado do país, apresentado no número 01 do presente levantamento. O fato de

esse texto ter voltado a aparecer tantas vezes no inventário selecionado por Rosa pode

185 Laura Sandroni cita (COUTINHO (dir), 2001, p. 855)

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 303

mostrar que ele gostou do seu conteúdo, sendo relevante que nesse artigo o autor

destaca a presença da infância.

22. IEB JGR-R 7,49 – Título: Primeiras Estórias – Autor: Stella Leonardos– Periódico: Diário de Notícias – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA,09/12/1962.

Stella Leonardo tece um comentário crítico dizendo sobretudo que a infância é o

primeiro aspecto que se levanta no livro, tanto pelos desenhos de Luís Jardim como pela

primeira estória sobre o menino, que reaparece algumas vezes depois, havendo também

mais textos acerca da infância no livro, especialmente os protagonizados pelas

personagens meninas Nhinhinha e Brejeirinha:

O livro, interessantíssima edição de José Olímpio nos desenhos deLuis Jardim, abre com As margens da Alegria perspectivas de olhos-meninos. De O Menino que vai passar “ no lugar onde se construía agrande cidade”. Viagem produzida no pequeno, poeta inato, “em casade sonho” (toda essa mescla de busca, êxtase, e aquele doer súbita“circuntristeza”, aquela alegria gratuita do belo revelado: o imponente,colorido peru no meio do terreiro; a luzinha verde do primeirovagalume. Sempre que O Menino aparece (e torna a aparecer emNenhum, Nenhuma, perguntando: ‘- Ela beladormeceu?’) é numaatmosfera de estranha beleza. E Os Cimos (Ei-lo, outra vez, o Meninobem-chegado à nossa simpatia, às voltas com um comoventemacaquinho de brinquedo e um tucano ‘senhorzinho vermelho’ emadrugador fecha o livro: ‘sorriso fechado: sorrisos e enigmas, seus.’Aliás, sobre crianças, há mais três contos, eminentemente psicológicose dos melhores que conhecemos em nossa literatura: A Menina de Lámais poesia, passarinho-verde pensamento; Pirlimpsiquiceinesquecível, de ‘personagens personificantes, de morrer de rir;Partida do audaz navegante da Brejeirinha que ‘andorinhava’, da Pele‘diligentil’, de Ciganinha e Zito da alguma outra coisa se agitandoneles, confusa – ‘assim rosa-mor espinhos-saudade’. Linguagem tãode fabulável e de novo-supresa a de Guimarães Rosa como se ele‘apanhasse com o olhar cada sílaba do horizonte’ expressão.

23. IEB JGR-R 7,50 – Cartão de boas festas de Flavia, da EnciclopédiaInfantil: Andorinha-da-casa

Não se trata aqui de um texto crítico ou de divulgação do lançamento de

Primeiras Estórias, mas sim de um cartão com votos de boas festas enviado em 1962,

com uma enorme foto de andorinha-da-casa (nome popular da ave Progne chalybea),

remetido por Flávia, da Enciclopédia infantil Andorinha-da-casa:

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 304

Além de ter sido enviado por uma Enciclopédia infantil, o que indica um

possível interesse de Rosa pelo universo infantil na época da publicação das Primeiras

Estóras, com a imagem da andorinha reforçamos o teor simbólico dessa colocação,

afinal lembramos que se trata de uma ave migratória, que sempre chega na primavera –

sendo nessa estação do ano de 1962 que o livro foi publicado – e está diretamente

associada à luz, à fecundidade e à ressurreição. É também um símbolo de pureza, pois a

andorinha nunca pousa no chão e assim ela não suja os seus pés, simbolicamente

remetendo à infância. Diz o seguinte a mensagem do cartão:

Rosa:Todo mundo fala na sua língua. Deixe que eu fale na tua ternura, noseu calor humano. Obrigadíssima pelas suas Primeiras Estórias. Epelas palavras generosas e amigas que a dedicatória trouxe para mim.Fiquei emocionada e muito grata.Abraço afetuoso, para você e para a querida Aracy, da velhaadmiradora.Flavia.

Encontrar esse enorme cartão encadernado junto aos recortes de periódicos

despertou uma sensação estética bastante forte: era como se todo o simbolismo da

andorinha, seus voos de renovação e alegria, tivessem se despregado da encadernação e

sobrevoado os recortes, trazendo a sensação viva da infância naquela seleção de textos

Figura 5.9 – Cartão de Boas Festas enviado pela Enciclopédia Infantil Andorinha-da-Casa, em dezembro de1962.Fonte – ENCICLOPÉDIA INFANTIL Andorinha-da-Casa, 1962, IEB JGR-R 07,050.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 305

de recepção, extrapolando-se, assim, os limites de um levantamento de recepção crítica

para ganhar contornos de recepção de fruição estética.

24. IEB JGR-R 7,54 – Título: ‘Primeiras Estórias’ Guimarães Rosa –Autor: Christiano Fraga – Periódico: O diário – Local e data: Vitória,ES, BRA, 06/12/1962.

Nesse texto, o folclorista capixaba Christiano Fraga defende que Rosa dá voz

aos personagens, como se, com as estórias, se abrissem veredas nas grandes narrativas,

como o que ocorre no romance Grande Sertão:

São 21 contos breves, narrados no inimitável jeito rosiano, versandotemas geralmente sertanejos, onde tomam a palavra os respectivospersonagens. Parece-nos por vezes que o próprio Riobaldo, saiudo Grande Sertão, para nos vir contar mais estas estórias.

Adiante indica que os textos de Rosa seriam registros de instantes – como nos

desenhos infantis? – que dariam conta não de reproduzir a verdade, mas uma

interpretação dela visando a uma melhor compreensão do que se pode entender como

verdade: “cada qual desses contos muito se teria a dizer, e sempre coisas diferentes,

conforme a impressão ou a direção do estudo de cada leitor”.

E, enfim, ao interpretar uma das estórias, o autor estabelece uma relação direta

entre aquela estória e a infância:

Nenhum nenhuma suavemente expressando o extraordinário esforçode arrancar aos longes do passado uma vivência da infância: sem a‘tournure’ rosiana seria apenas um desfiar de reticências. E o ciúmeinfantil ali tão surpreendido e revelado, sem recorrer a qualquermágica psicanalítica. [...]

25. IEB JGR-R 7,57 – Título: No Praia clube de Araruama (II) – Autor:Marcos André – Periódico: O Globo – Local e data: Rio de Janeiro, RJ,BRA. 2610/1962.

Marco André comenta o livro de Rosa destacando a força da presença do

“menino sensível” na primeira e na última estória:

E me atiro às Primeiras Estórias de Guimarães Rosa, o grande escritorde Grande Sertão : Veredas. Esse notável ‘fazedor’ (quando se lê esseautor fica-se tentado a tomar liberdades com a língua portuguesa ecom a pontuação, como faz ele de uma maneira tão fascinante elógica), digo, ‘fazedor’ de obras primas para a literatura brasileira.Meu Deus! Que delícia de livro! É um cofre de pequenas joias(pequenas porque a história, perdão, estórias, são todas curtinhas)

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 306

preciosas que ficam para sempre brilhando intensamente na nossaimaginação. Quem poderá esquecer o menino da primeira ‘estória’no avião e no terreiro com o peru imperial [...] até a última estóriacom o menino no avião, que devia ser o mesmo menino sensível daprimeira estória. E fecho o livro comovido, com pena de tê-lo acabadoassim com tanta sofreguidão, e fico pensando naqueles personagenstodos que já amo, criados pelo talento...

26. IEBJGR-R 7,58 – Título: Best Sellers da quinzena – Autor: MarcosAndré – Periódico: O Globo – Local e Data: Rio de Janeiro, RJ, BRA,26/10/1962.

É duplicata do texto IEB JGR-R 7,57, apresentado no número 25 do presente

levantamento.

27. IEB JGR-R 7,59 – Título: O homem e a fábula: Algumas ideias confusas– Autor: José Carlos Oliveira – Periódico: O Globo – Local e data: Riode Janeiro, RJ, BRA, 22/11/1962.

Oliveira começa lamentando a opção de Rosa pelo termo estória:

Quando reflito sobre literatura brasileira atual, considero irremediávela minha solidão; em consequência, o ressentimento é que me move.Tenho manias de perseguição curiosas: - considero, por exemplo, quefoi para me amolar a vida que João Guimarães Rosa pôs em circulaçãoessa detestável palavra estória que todos agora usam. E os demais?

A seguir continua falando acerca da “infância mutilada” (como imagem de uma

realidade sofrida para a criança) como tema para escritores, mas não associa às

Primeiras estórias, refletindo também sobre a questão política para os escritores:

é preciso escrever sobre aquela criança que morre de fome numapalhoça no Rio Grande do Norte – como se a queda da alma noterritório minado da dúvida, da raiva, das contradições que dilacerame na própria degradação – como se essa queda não fosse umarepresentação equivalente da mesma tragédia institucional emoral que destrói aquela criança. Eu acuso todos aqueles queseparam uma coisa da outra, e me preparo para demonstrar que oespírito consome a infância mutilada, que o espírito é antropófago eque a digestão sinistra produz sonhos capazes de aterrorizar o burguêstranquilo (incluindo, sem ironia, os nossos esquerdistas...). Aindignação objetiva, bem como a ação prática, é o dever do político,enquanto o artista se compromete a representar existencialmente afarsa trágica do cotidiano, fazendo a apologia de todas as corrupções àdisposição dos ricos e dos próprios intelectuais.

28. IEB JGR-R 7,62 – Título: O Mago Guimarães Rosa – Autor: Luiz M.Rodrigues Filho - Periódico: Comércio da Franca – Diário Matutino –Local e data: Franca, SP, BRA, 20/11/1962.

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O articulista também não simpatiza com o uso do termo estória, defendendo que

a experiência com a linguagem que procura resgatar a via oral e causar estranhamento –

como as aglutinações e o reavivamento das palavras – resultam em uma originalidade

que pode parecer forçada, mas que, no caso, ninguém fica imune ao sentimento poético.

Para falar poeticamente, destacam-se os momentos em que se representa a infância (por

meio de Nhinhinha e Brejeirinha), nos quais surgem as melhores caracterizações desse

período de encanto com as palavras e com as perturbações da vida, de acordo com o

ponto de vista do autor:

Mas onde o narrador excele em qualidades elevadas ao mais finolirismo é quando trata de crianças. Vale a pena desbastar o cipoalda sintaxe rosiana para entrar em contacto com essas duas joias deintacta pureza que são ‘A menina de lá’ e ‘Partida do audaznavegante’. Aí se encontra a infância em toda sua selváticaautenticidade, em todo o seu ‘nonsense’ e todo o seu encanto.Não há dúvida: Primeiras Estórias é um dos maiores lançamentos doano. Trata-se de obra de seiva e do maravilhamento, de ficção e depoesia. É o escritor deslumbrado pelas palavras, mas também éamoroso perscrutador do mistério da vida e do amor.

29. IEB JGR-R 7,64 – Título: Primeiras Estórias (Parte I) – Autor:Nogueira Moutinho – Periódico: Folha de São Paulo – Local e data: SãoPaulo, SP, BRA, 25/11/1962.

Nesse texto, o intelectual paulista Nogueira Moutinho aborda as diferenciadas

posturas de Rosa em relação à linguagem, destacando que tais usos não transformam

seu texto em um simples laboratório de pesquisa, mas em um veículo rigoroso através

do qual surge uma literatura inventiva, em pleno processo de ficcionalização:

A linguagem não é para ele, como para tantos, campo de pesquisa,mas sim o veículo rigoroso através do qual seu gênio inventivo fluiobrigatoriamente. Não lhe seria possível, por isso, abandonar poroutros, os temas no tratamento dos quais se revelou o grande escritorque é, nem a linguagem extremamente pessoal que criou e utiliza.Duplo criador, poderíamos chamá-lo: de ficções e de linguagem.

Se Guimarães Rosa foi um dos poucos criadores que conseguiu “introduzir-nos,

por meio de palavras, num clima mágico”, ele também cultivou tão bem sua “arte que

suas criações estão inteiramente despidas da falsa e superficial aparência puramente

‘literária’, conferida a seus livros pelos autores que imaginam ser a grande literatura

artifício e divórcio do cotidiano” ou das memórias da infância:

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É a própria vida, às vezes a mais rude existência, os meios maispobres, as circunstâncias mais antiliterárias, que sua sensibilidadetransforma. Não lhe são necessárias realidades maiores que as da vidasertaneja ou das recorações da infância para criar o mundotransfigurado de Primeiras Estórias.

Assim Moutinho enfatiza, na composição do livro, a abertura de uma espécie de

portal mágico que Rosa franqueia a uma nova fase, a uma primeiridade.

30. IEB JGR-R 7,65 – Título: Primeiras Estórias (Parte II) – Autor:Nogueira Moutinho – Periódico: Folha de São Paulo – Local e data: SãoPaulo, SP, BRA, 25/11/1962

Nessa continuação de seu texto, Moutinho começa revelando que, em sua

opinião, os dois primeiros contos do livro (As Margens da Alegria e Famigerado) não

revelariam a magnitude de Rosa. Entretanto, percebe a presença de alguma revelação de

mistérios, de iniciação: fatos e ausência de fatos, que equivaleriam a um mistério,

constituindo uma chave para começar a desvendar os mistérios do autor. O articulista

termina destacando:

E, sobretudo, ressalta neste livro de Guimarães Rosa a suaprofunda ternura dos humildes, pelos pobres, pelas crianças, pelosanimais. Há um halo de grandeza envolvendo certas personagens dasestórias, que revela o profundo respeito do autor pela pessoa humana.O agreste é seu campo de eleição. Mas o agreste sem monotonia, sembanalidade. Penetrando a fundo no drama do homem, Guimarães Rosasabe discernir e demonstrar, até nas suas mais broncas personagens, agrandeza da criatura humana.

31. IEB JGR-R 7,66 –Título: Estórias – Autor: J. H. Pires – Periódico:Diário da noite – Local e data: São Paulo, SP, BRA, 14/11/1962.

A fim de pensarmos em infância e lembrarmos dos pequenos a partir desse

artigo acerca das Primeiras Estórias, ressaltamos que Pires começa enfatizando que a

obra é ilustrada com “desenhos à beça” de Luís Jardim”. Adiante, faz um comentário

interessante sobre a forma do livro:

Ao contrário dos outros [livros de Guimarães Rosa anteriormentepublicados], este é um livro pequeno, em pequeno formato, compouco mais de cento e setenta páginas. As estórias, porém, são vintee uma. O que mostra que são, também, pequenas estórias. Maspequenas somente na forma, que por dentro elas se alongam, sealargam e se afundam. A magia de Guimarães Rosa está agora sendoaplicada neste sentido.

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A infância então aparece na associação estabelecida entre o livro – na maneira

como ele foi primeiro editado pela José Olympio em 1962 – e a própria imagem de uma

criança: apesar da pequenez, “se alongam e se alargam”. O articulista assim prossegue:

Basta isso, aliás, para mostrar que não se pode falar por completodeste livro em apenas uma coluninha de comentário. Seja o que Deusquiser. A verdade é que não podemos deixar o leitor sem algunstoques informativos sobre mais esta inventiva do mago do SãoFrancisco. Há quem não goste dessas estórias, que são muitainvenção. Mas isso acontece por não perceberem que a invençãonão é mais que a arte literária de passar a realidade a limpo.Guimarães Rosa, neste pequeno livro, dá um passo de gigante em seuprocesso inventivo. Já tivemos ocasião de assinalar que há nele todoum desenrolar de fases, todo um desenvolvimento literário, que vai deSagarana a Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. Pensávamosque o processo estava completo, e vem agora este livrinho,mostrar que nada disso. Há ainda muito o que esperar.

Ao trazer a invenção como forma literária, se Rosa “passaria a realidade a

limpo” porque criaria ficções? De qualquer forma, Pires também experimenta visualizar

o lançamento no cenário das obras rosianas, contemplando o volume como a

inauguração de uma nova fase na escritura do autor.

32. IEB JGR-R 7,68 – Título: Momento Cultural – Autor: Carlos Pontes –Periódico: O Povo – Local e data: Fortaleza, CE, 10/11/1962.

O crítico literário cearense Carlos Pontes retoma o texto de Paulo Rónai,

publicado na Revista Comentário, no qual se afirma que as Primeiras Estórias do título

não seriam textos escritos na mocidade de Rosa, como pode sugerir o título, mas

apontam para o nascimento de uma nova fase naquela escritura, como se inaugurasse a

infância dela:

Não se trata, como se poderia julgar pelo título, PrimeirasEstórias, de escritos da mocidade ou de trabalhos anteriores aosvolumes já publicados do escritor, mas sim da primeira leva dosprodutos de sua fase mais nova. Nele encontramos o poderosonovelista de Sagarana e Corpo de Baile, o romancista audaz deGrande Sertão: Veredas, perfeitamente à vontade em mais um gênero,o da ‘short story’, a que soube dar, dentro de uma variedadesurpreendente significações e perspectivas profundas. No momentoem que para sua obra converge a atenção da mais categorizada críticainternacional e se anunciam traduções de seus livros em váriaslínguas, o volume novo há de confirmar sua posição única em nossaliteratura moderna. De mostrar também quão errados andam os queveem no inventor um estilo pessoal: na verdade nele a expressão e o

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conteúdo, inseparáveis e igualmente revolucionários, são modalidadesde uma visão mítica, pela qual episódios miúdos e corriqueiros setransformam em acontecimentos de relevo, de sentido múltiplo.

33. IEB JGR-R 7,70 – Título: Três lançamentos (trecho) – Autor: GilbertoCavalcanti – Periódico: Gazeta de Alagoas – Local e data: Alagoas, BR,11/11/1962.

O texto aponta que o livro de Rosa apresenta contos mais fáceis de serem

digeridos que o romance Grande Sertão: Veredas, destacando-se momentos nos quais a

infância ali aparece, como na estória de Nhinhinha – da qual cita longo trecho –,

começando pela referência aos desenhos de Luis Jardim:

Em Primeiras Estórias, apresentando numa apreciável feiçãográfica, com capa e desenhos de Luis Jardim, Guimarães Rosareuniu vinte e um contos. Todos da melhor qualidade, pequenos,fáceis portanto de serem ingeridos.Eis o nome de alguns deles: As margens da alegria; Sorôco sua mãesua filha; A Menina de lá (“chamava-se Nhinhinha, “nascera já paramiúda, cabeçudota e com olhos enormes”. “Nada a intimidava. Ouviao pai querendo que a mãe coasse um café forte, e comentava, sesorrindo: - ‘Menino pidão... Menino pidão.. .’ Costumava tambémdirigir-se à mãe desse jeito: - ‘Menina grande... Menina grande.. .’Com isso pai e mãe davam de zangar-se. Em vão. Nhinhinhamurmurava só: - ‘Deixa... Deixa.. .’ - suasibilíssima, inábil como umaflor.”).

34. IEB JGR-R 7,71 – Título: Guimarães Rosa e Paulo Rónai – Autor:Carlos Pontes – Periódico: Correio Paulistano – Local e data: São Paulo,SP, BRA, 25/11/1962.

É uma duplicata do texto IEB JGR-R 7,68, então publicado em outro periódico

de outro Estado do país e com outro título, apresentado no número 32 do presente

levantamento.

35. IEB JGR-R 7,72 – Título: Bilhete a Guimarães Rosa – Autor: Eneida –Periódico: Diário de Notícias – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA,01/11/1962.

Em um texto em forma de bilhete endereçado a Guimarães Rosa, Eneida lembra

que, quando da publicação de sua resenha do livro Corpo de Baile em 1956, recebera

carta de uma leitora lamentando que a crítica não tinha escrito sobre Miguilim,

personagem que a havia envolvido tanto. Eneida assume que poderia ter dado mais

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atenção àquela personagem infantil na época, implicando em que, naquele momento em

1962, ela não iria mais desprezar as personagens infantis do livro Primeiras Estórias:

Te digo que Primeiras Estórias ficaram em mim. Vou lá poderesquecer a personagem menina Brejeirinha quando ela olhou tudode cor com olhos de passarinho? Posso esquecer Nhinhinha amenina de lá se ela me ensinou inclusive que ‘a gente não vêquando o vento se acaba?’ [...] Aqui estou eu, Guimarães Rosa, eu omeu gato José encantados, comovidos com a dedicatória que pusestepara nós dois, ambos lúcidos, principalmente quando saímos de umlivro como o teu.

Adiante, no artigo/bilhete, destacam-se também os desenhos de Jardim,

contando-se que, por causa deles, Eneida chegou a mostrar o volume a uma criança,

ainda que o livro não fosse destinado ao público infantil:

Mostrei teu livro a um menininho que viajava comigo num avião.Ele olhou muito os desenhos de Jardim, olhou e perguntou: é demuitas estórias? Bonitas? Contei-lhe então pelo índice que tu ésem dúvida um contador de estórias para a gente se orgulhar deser de tua época e de ser teu amigo. O menininho entendeu bem,mas era muito pequeno para que eu deixasse em suas mãos olivro. Vai um abraço; lembranças para Brejeirinha e nada paraDuarte Dias: conheço muita gente igual a ele, pessoas tão ruins queem seus corações não caiu nunca uma chuvinha. No teu coração chovesempre. Outro abraço e mil abraços pelas Primeiras Estórias.

As ilustrações de Luis Jardim, tão comentadas neste levantamento de artigos,

marcam claramente alguma ligação do livro com o universo infantil, afinal elas,

especialmente por meio do sumário ilustrado do volume, podem chamar a atenção de

crianças pequenas, até mesmo das que ainda não sabem ler, como no caso do episódio

com o menino relatado por Eneida. Mas, à época de sua publicação, as Primeiras

Estórias também chegaram a chamar a atenção de crianças, como vemos na anedota

publicada por Pedro Bloch:

Selminha é uma pirralha que já lê muitíssimo bem.No outro dia pegou uma edição muito antiga de Julio Verne e, depoisde se formar com tanto phy e th e mil coisas da ortografia antiga, dissepara a mãe:– Êste livro é muito velho para mim.Logo a seguir, resolveu catar um outro livro na estante. Seus olhinhosinquietos e vivos depararam com um volume intitulado PrimeirasEstórias. Ora, pela sua lógica infantil, nada mais infantil que um livrode primeiras estórias. É como se fôsse coisa de principiante, coisa deprimeiro ano.E se debruçou na leitura. De vez em quando perguntava uma palavra àmamãe. Mamãe explicava.

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Ao fim de alguns minutos a menininha olhou o livro de GuimarãesRosa com respeito, fechou-o com a maior consideração e explicou:– É bonito, mamãe. Mas êste livro é muito nôvo para mim. (BLOCH,1970, p. 97)

Com essas anedotinhas ficamos sabendo de duas opiniões infantis sobre a obra

de Guimarães Rosa na década de 1960. Conforme já dissemos, as opiniões tão

espontâneas das crianças foram muito desejadas por Rosa186. No caso dessas duas

apreciações, destacamos sobretudo que elas expressam momentos mais originais, sem a

presença de adaptações ou amoldamentos, o que permite o surgimento da plena

possibilidade de instauração de um forte estranhamento entre as lógicas e as linguagens

do adulto e da criança. No caso do menino abordado por Eneida, ele pareceu ter ficado

mais ligado aos desenhos de Jardim, que devem ter florescido em sua imaginação,

sendo que, no caso da leitora Selminha, observamos uma experiência inicial de recepção

de literatura: a garota leu (ou tentou ler) as estórias escritas, conseguiu até compará-las a

outros textos literários e a conclusão final à qual chegou sublinha ideias semelhantes a

outros textos apontados neste levantamento, a saber, de que se trata de um texto

complexo e inovador, muito “nôvo” até para ela, que ainda era uma criança.

36. IEB JGR-R 7,85 – Título: A Semana e os livros – Autor: RolmesBarbosa – Periódico: O Estado de São Paulo – Local e data: São Paulo,SP, BRA, 13/10/1962.

Rolmes Barbosa comenta a importância incontestável da publicação de

Primeiras Estórias, ressaltando o colorido das tradições nas páginas:

O volume enfeixa narrativas que constituem, em conjunto, um tour-de-force de malabarismo linguístico. Ao mesmo tempo, representamautênticas lições da arte de transposição literária de temas, tipos emodismos regionais brasileiros, expostos nos seus aspectos universais.Além disso, parece-nos desnecessário, também, realçar a riqueza doacervo de ‘causos’ aqui referidos, da galeria de tipos e o colorido dastradições reunidos nestas páginas com extraordinária segurança naescolha dos ângulos, no ‘corte’ das narrativas e na ironia das situaçõesapresentadas. Com estas ‘estórias’ voltamos, de novo, ao fabulosomundo das Gerais, ao mundo de Grande Sertão: Veredas e de Corpode Baile, com sua variada fauna humana, seus sertanejos, vaqueiros,‘iluminados’, cangaceiros, padres, fazendeiros, mulheres-damas,tropeiros mendigos de beira-caminho, cantadores de feira, molequesintrigantes, matadores profissionais, sinhás donas, etc, que semovimentam impelidos pelo virtuosismo do ficcionista. Por outro

186 Relembramos o citado interesse de Rosa em receber apreciações de crianças sobre seus textos, quelevaram ao livro Última aventura do Sete-de Ouros (GUIMARÃES, [196-?]).

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lado, não é possível deixar de aludir, aqui, à arte de composição de‘mestre João’. Como sempre, o ‘tratamento’ estilístico de cada umadas narrativas é de excepcional importância, fazendo parte integranteda própria concepção e da caracterização dos protagonistas. De fato, alinguagem toma corpo e se desenvolve com a ação.

Como observamos nesse trecho, Barbosa tece um substancial comentário sobre o

livro, destacando as representações de crianças – meninos e meninas – como

protagonistas do livro, além do extenso trabalho de coletor de expressões da cultura

popular executado por Rosa, destacando, por fim, o que chamamos de “performance da

linguagem” – ocorrida quando, nas palavras de Barbosa, o escrito “toma corpo e se

desenvolve com a ação” –, sublinhando assim a atuação da própria escritura rosiana.

37. IEB JGR-R 7,88 – Título: Guimarães Rosa. O mesmo – Autor: HelleAlves – Periódico: Diário de São Paulo – Local e data: São Paulo, SP,BRA, 07/10/1962.

O recorte do texto da jornalista Helle Alves foi todo marcado por Rosa com

grandes X’s em vermelho, mostrando que, provavelmente, nosso autor tenha discordado

de alguma colocação expressa na crítica. No texto, Alves destaca que, apesar do próprio

nome do livro, que assumiria uma intenção de renovação, não haveria renovação

substancial na temática em relação às obras anteriores de Rosa:

É evidente a intenção do autor de Sagarana de renovar-se. Opróprio nome do livro nos informa disto. Mas, embora continueostentando todas as qualidades que fizeram dele um dos vultos maisaltos da moderna literatura de ficção brasileira, o que PrimeirasEstórias nos traz de novo é a dimensão e o apuramento da penetraçãopsicológica de algumas de suas páginas. A temática continua amesma de seus romances e pequenas novelas, pois Guimarães Rosase mantém fiel aos sertões dos Gerais, fonte de inspiração também daquase totalidade dos contos de seu novo livro, quer pelo clima de suashistórias, quer pelos personagens e vivência.

Em seguida a articulista volta a destacar a falta de uma efetiva renovação, mas

dessa vez em relação à linguagem, enfatizando o “ritmo tatibitate” que já caracterizaria

o estilo do autor anteriormente. Mesmo assim, a autora ainda comenta três estórias de

especial brilho no volume, sendo que duas delas tratam da temática da infância:

Também a linguagem segue o mesmo ritmo inconfundível, quase‘tatibitate’ e o emprego de palavras e imagens inusitadas,adaptadas ou criadas, que caracterizam toda a obra do autor deCorpo de Baile. Isto não quer dizer, entretanto, que PrimeirasEstórias não seria um livro digno de figurar entre as mais primorosas

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coletâneas de contos publicadas ultimamente. Algumas de suaspáginas, como As margens da Alegria, A Menina de lá, Substância eoutras, são de rara beleza, conseguindo o autor uma penetraçãoímpar, causando impacto e emoção com o retrato vivo de seuspersonagens. Admiramos Guimarães Rosa, sua temática, seu estilo,sua capacidade criadora e a observação das coisas e das pessoas,embora sintamos que ele é mais capaz e transmitir emoções quandonão exagera a sua natural tendência gongórica. E quando dizemos queem Primeiras Estórias ainda continua completamente GuimarãesRosa e apenas ampliou seu campo de ação, não queremos com istoafirmar que o autor se repetiu ou é desinteressante, mas apenas queestá tão preso à sua temática –admiráveis, dissemos – que, mesmotentando um novo gênero, não conseguiu renovar-se inteiramente.

Ainda que não possamos concordar plenamente com a articulista quando ela

aponta que, nas estórias, Rosa “continuaria o mesmo” das primeiras publicações, já que

acreditamos que naquele novo momento sua escritura apresentava tantas especificidades

e diferenciais, observamos que elas, por outro lado, também continuaram respondendo

aos objetivos do mesmo projeto literário do autor, só que então se utilizando de

diferentes formas. Umas dessas diferenças está, justamente, na mais larga e profunda

consideração do tema infância. Nas estórias, essa proximidade fica explicitada na

utilização de alguns artifícios de linguagem caros à comunicação infantil, como, por

exemplo, o uso de onomatopeias – palavras cujo som reproduz os ruídos na forma que

eles ocorrem na natureza –, os neologismos – palavras inventadas, complemente novas

– e o, já citado por Alves, falar tatibitate – expressões sonoras bastante elementares, que

comunicam a palavra, não de forma acabada, mas como se não tivessem sido

completamente assimiladas, fazendo com que as consoantes e sílabas nem sempre

apareçam na forma adequada, abrindo um leque de possibilidades de novos sons e

sentidos para os vocábulos. Esses tipos de expressão estão todos correlacionados às

primeiras fonações infantis e, aos ouvidos mais elaborados dos adultos, podem soar

estranhas e primárias ou então remeter a uma comunicação mais pura, com grande

encantamento, visto que ali tudo está em pleno processo de começar a existir.

38. IEB JGR-R 7,100 – Título: Primeiras Estórias – Autor: Walmir Ayala –Periódico: Jornal do Comércio – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA,02/10/1962.

Na bela resenha crítica escrita por Walmir Ayala – autor de livros infantis

bastante vendidos e lidos até o século XXI –, somos levados a uma reflexão acerca da

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dificuldade de ler o texto de Rosa, já que sua escrita considera constantemente a

existência de uma tensão com a fala, quando o autor

cria um “falar” que nos comunica a entonação certa da regiãoonde é falado; restitui-nos aquele viço popular da formação depalavras a partir de outras, fundindo duas numa só, e o faz deforma a passar logo para os dicionários, isto é, certo, científico,inegável. Palavras como: ‘diligentil’, ‘brumava’, se multiplicam,mas todas perdidas (ou achadas) num discurso de alta poesia emrigorosa prosa, num constante depoimento humano que nosconduz ao inevitável suspiro de concordância e pena. [...] Depoisde tanto atravessar suas selvas, seguimos enfim, quase emtotalidade, apreciar o frescor das águas que nos derrama. E éassim, como um verídico hausto de amor que nos chega. Sabercontar uma história é assunto superado em Guimarães Rosa. Istoainda advoga mais a seu favor, no terreno de lhe acusarem decomplicado, porque a ‘estória’ sobrenada à experiência, aolaboratório, e nos fica o seu forte incenso humano, seu sangue esua doçura de flor silvestre, impregnando nosso atribuladoinstante. [...] Seus personagens são sempre simples, os que nadaleram, nada mais ouviram falar do que de sucedimento espontâneo emágico da vida. Geralmente em sertões que são dissimuladas Bagdás.Delicia-se no entrosamento das onomatopeias para discriminar oinstante ou o animal. Tem a permanente visão da paisagem, dando-lhealma, comprometendo a gente com a verdura e o panorama. Descrevecom uma riqueza em que a imaginação vem servida de umcaprichoso vocabulário, trançando verdadeiras filigramasplásticas [...].

Em um momento mais especial para esta pesquisa, Ayala liga Rosa ao mundo

infantil quando destaca que

O sentido de acesso de Guimarães Rosa ao mundo que o rodeia éde extremada inocência. Pega pelo sentido da criança, toda amatéria de que necessita. Fala preferencialmente de crianças e aofalar delas vai escorrendo um pensamento multifacetado einventivo, de bom pueril. Faz sua sabedoria do arrepanhado desensações de quem vê o mundo pela primeira vez, acrescenta a istouma cultura que apenas sedimenta as impressões e as legaliza.Pesquisa a linguagem infantil (vide o conto “A menina de lá”)ressaltando a pureza poética dos seus vestígios, fazendo disso acertospara sempre.

39. IEB JGR-R 7,102 – Título: Primeiras Estórias: Novo livro deGuimarães Rosa – Autor: Anônimo – Periódico: Tribuna de Petrópolis –Local e data: Petrópolis, RJ, BRA, 02/10/1962.

É duplicata do texto IEB JGR-R 7,33, então publicado em outro periódico de

outro município do Rio de Janeiro, apresentado no número 11 do presente

levantamento.

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40. IEB JGR-R 7,103 – Título: Primeiras estórias – Autor: Anônimo –Periódico: Jornal de Letras – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA,02/10/1962.

Essa nota curtinha, que destaca os desenhos de Luís Jardim e aponta A Partida

do Audaz navegante – estória cuja protagonista é a menina Brejeirinha – dentre as

estórias “fadadas a ficar antológicas”, assim resenha o livro rosiano:

Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa – Novo livro do grandeescritor de Sagarana e de Corpo de Baile. São vinte e um contosnaquele estilo bem seu, saboroso, surpreendentes, vertiginosamentehumanos. Numerosas destas histórias estão fadadas a ficarantológicas, como Famigerado, Soroco sua mãe e sua filha ou aPartida do audaz navegante. Neste, Guimarães Rosa tira inesperadoefeito de uma letra, como o “famigerado” repousa numa palavra. Olivro traz capa e desenhos de Luís Jardim.

Nesse fragmento, além de Partida do audaz navegante, o articulista chama a

atenção para Famigerado, estória que, cerca de quarenta anos depois de sua publicação,

também foi amplamente analisada pelo crítico José Miguel Wisnik, em cujo estudo

destaca que nas narrativas curtas das Primeiras Estórias são apresentados

questionamentos importantes no que concerne ao processo de modernização do país:

Guimarães Rosa quer mergulhar no coração intratável e miraculoso doBrasil e mergulhar nele, para elaborar através da sua escritura, umtrabalho simbólico de superação do carma, que não é umindivíduo que faz, ou uma geração: é um processo. Como setrabalhar esse conteúdo, transformado no objeto de uma escrituraque significa, de algum modo, viajar por dentro dele. (cf. WISNIK,2011, 5’ 49” -5’ 43”)

41. IEB JGR-R 7,106 – Título: Guimarães Rosa contas suas Primeirasestórias – Autor: Carlos Osmar – Periódico: Gazeta de notícias – Local edata: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 30/09/1962.

Em outra nota curtíssima, Carlos Osmar destaca um panorama da leitura do

livro, chamando a atenção para os aspectos sonoros da narrativa e para seus exercícios

linguísticos que, da maneira como o autor os descreve, se assemelham bastante às

primeiras experiências das crianças com a linguagem e a seus encantamentos iniciais,

ouvindo o mundo como composições musicais:

Reedita o grande estilista e ficcionista, aquela mesma linguagemriquíssima de novos sons e de novas formas, com que compõe suasgrandes sinfonias orquestrais ou suas suítes já conhecidas, através de

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seus primeiros grandes livros. Ninguém se iluda, porém. A obra deGuimarães Rosa, com seu trabalho do mais fino lavor artístico é,também, elemento fascinante para o exercício mental, graças àmaneira inovadora com que constrói suas frases e, mais do que isso, oprocesso genial e revolucionário com que forma suas palavras,centenas, milhares, belas, sonoras, esquisitas, meio loucas, na suabusca incessante de melodias verbais, busca que nenhum outroescritor brasileiro (ou de língua portuguesa), desde o surgimentodo idioma nas castas romanas, jamais intentou.

42. IEB JGR-R 7,111 – Título: Carta a Guimarães Rosa – Autor: GilbertoAmado – Periódico: Folha de São Paulo – Local e data – 12 de janeirode 1963

Essa carta foi transcrita por Leonardo Arroyo na Folha de São Paulo, em 12 de

janeiro de 1963:

A primeira observação que me cumpre registrar é que em nenhuminstante ou em nenhuma instância a linguagem me separa da realidadedo viver das figuras. Obra literária grande – sei bem – é aquela quese relê, que se sente necessidade de ler de novo. [...] No seu livro[Primeiras Estórias], reler é avançar por novas estradas; é seratraído por novos encantos. A poesia das suas realizações da vida éimensa, e é toda baseada no concreto das coisas, poesia-fato, poesiapolpa, poesia de dentro, célula, núcleo, protoplasma, genética,telúrica, anímica.

Em geral, nesses recortes de textos da recepção crítica das Primeiras Estórias

(1962), que foram selecionados por Rosa e abordam de alguma forma a infância, é de se

destacar que muitas das vezes tal tema aparece associado ao próprio processo escritural

de Rosa e ao clima de ambivalente sentido no Brasil no começo daquela década.

Percebe-se no livro, e nas leituras críticas a ele dedicadas, uma expectativa com relação

às possibilidades de construção de uma nova realidade, que viria com a modernidade,

tal como a nova capital Brasília, que surgiu avassaladoramente, em meio à realidade

mais arcaica do país de então: o sertão central. Na formatação da obra rosiana,

percebemos ainda que o autor não se poupava de propor um olhar crítico para esses

fluxos (cf., entre outros, PACHECO, 2006, p. 15-21; RODRIGUES, 2009, p. 10-4 e

111-3).

Em 1967, ainda na mesma década de 60 do século XX, mas alguns anos

decisivos depois, Guimarães Rosa publicou Tutaméia, também com capa e ilustrações

de Luis Jardim. Será que toda a expectativa e crítica à modernidade percebida em

Primeiras Estórias continuou sendo sentida? E o tema infância continuou aparecendo

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como um aspecto ligado ao processo de criação da obra? Vejamos o que nos dizem os

textos selecionados por Rosa acerca daquela obra.

5.2.2 Recepção selecionada de Tutaméia (Terceiras Estórias) (1967)

“Em Tutaméia o Brasil nasce e renasce. Começa e já está além.É um mundo brasileiro nôvo. Mais: é mundologia. Tratado de resumo de, mapa.”

Antonio Olinto – Tutaméia: Tutameemos, O Globo, 26/08/1967

Os textos de recepção do livro Tutaméia (Terceiras estórias) que foram

selecionados pelo autor somam 101 e, dessa vez, eles não chegaram a ser encadernados,

mas Guimarães Rosa guardou avulsamente em seu acervo os comentários que lhe

interessaram, igualmente fazendo sobre eles intervenções de leitura a lápis de cor. Como

aquele foi o último livro publicado em vida por Rosa, é interessante destacar que, desde

sua publicação, ele foi recebido como sendo uma espécie de síntese de toda a obra

publicada anteriormente, até porque seu conteúdo se apresenta como um dos mais

herméticos textos rosianos. O volume apresenta quatro prefácios e quarenta estórias

curtíssimas, nas quais quase não vemos surgir personagens crianças. Entretanto, nos

primeiros textos críticos também foram encontrados cinco autores que citam a infância,

quase sempre associando-a diretamente ao processo escritural de Rosa, de forma

bastante significativa.

5.2.2.1 Tema infância na recepção de Tutaméia (Terceiras Estórias)

“Leio Guimarães Rosa como as crianças comem doce:devagarinho, com medo de acabar, querendo sentir tudo.”

(Eneida, Diário de Notícias do Rio de Janeiro, 05/08/1967)

Ainda que a maior parte dos textos de recepção selecionados tenha sido

transcrita durante nossa investigação, para comentá-los aqui recortamos os trechos que

se referem à infância, que é nosso tema de interesse primordial.

Vejamos uma tabela com os cinco textos que abordam o aparecimento do tema

infância no volume de estórias de Rosa:

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5. TAB 2 - Artigos sobre infância em Tutaméia

No CÓD TÍTULO AUTOR PERIÓDICO LOCAL DATA

01IEB JGR R

12,3,39Arte Pura José Condé Correio da

manhã

Rio deJaneiro,RJ, BRA

01/08/1967

02IEB JGR R

12,3,40Tutaméia Eneida Diário de

notícias

Rio deJaneiro,RJ, BRA

05/08/1967

03IEB JGR R

12,3,041Tutaméia, tutameemos

AntonioOlinto O Globo

Rio deJaneiro,RJ, BRA

26/08/1967

04IEB JGR R

12,3,063Fabulógico Guimarães Rosa

Tristão deAthaíde

Jornal doBrasil

Rio deJaneiro,RJ, BRA

19/08/1967

05IEB JGR R12,03,090

Tutaméia são as terceirasestórias de Guimarães

Rosa Mariade Lourdes

Costa

GazetaComercial

s.l. 10/9/1967

Continuando na intenção de destacar o recorte inédito desse material recolhido

por Rosa, comentaremos um a um os cinco textos.

1. IEB JGR-R 12,3,39 – Título: Arte pura – Autor: José Condé –Periódico: Correio da manhã – Local e data: Rio de Janeiro, RJ,BRA, 01/08/1967.

No intrigante texto escrito por Condé, o autor comenta o estranhamento da

recepção em relação ao volume então lançado, afirmando que a “crítica miúda dos

jornais anda espichando as canelas” para falar de Tutaméia. O ponto máximo ao qual se

teria chegado foi destacar a importância da oralidade, mas “dia virá em que

descobriremos o tutano”. José Condé arrisca uma interpretação, que conversa com a

nossa proposta, visto ver uma ligação direta entre aquela escritura e a infância:

Se eu fosse professor de literatura, chamaria a atenção dos meus alunospara as traquinices de léxico do Autor, tão bem boladas, que até um caraerudito, lá um momento, ficará com a dúvida, tão natural brota ovocábulo, às vezes sem nenhuma alteração, sem exerto de prefixo ousufixo, apenas destorcido, com uma imprevista e cabalzinha significação.Que eles reparassem na audácia graciosa e dinâmica de dois adjetivosantepostos ao substantivo. Arcaísmos. Dengues. Artimanhas. Adorávelfeiticeiro e bruxo, João Guimarães Rosa. Com ele voltamos ao reinoda palavra encantada. Sua obra tem que ser lida com muita pausapara ruminações. A cada leitura salta algo novo. Diria aos alunosque, além da riqueza visível a olho nu, há outra escondida, o processode criação artística, uma ansiosa busca da voz da sua infância – quedigo! – no momento mesmo de nascer. A esta altura alguma alunaespevitadinha, Clarice, por exemplo, lá no André Maurois, me espetaria apergunta:

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– Este seu Rosa é só proeza verbal? Suas estórias não têm história?– Tem, constituem aliás a nossa saga. Mas a graça está em como o Autornos conta. A sua visão. Estória por estória, você, menina, fique com obom Valdomiro Silveira.Terminaria sugerindo que João Guimarães Rosa amacia bolinhas depalavras na ponta dos dedos. De quando em quando, prova. O saborresultou bom? Vão para o texto no lugar certo.

Dessa fala, além da ligação entre a escritura e o parto, delineada pela imagem do

“momento mesmo de nascer”, em trecho destacado em negrito – o que constitui

propriamente uma das hipóteses mais importantes desta investigação –, sobressaem-se

na resenha belas imagens poéticas, como a de “pedacinhos macios de palavras” que o

autor seguia provando para usar no melhor momento. Lembrando que foi na mesma

década, especificamente em 1964, que o escritor britânico Roald Dahl publicou o seu

livro Charlie and the Chocolate Factory, um verdadeiro sucesso entre as crianças, com

suas personagens maravilhosas, dentre as quais, e em especial, Willy Wonka, o inventor

de doces e dono da Fantástica Fábrica de Chocolate, na qual “tudo é de chocolate”, até

mesmo o líquido movido pela cachoeira de chocolate cremoso. Tal cascata era

a parte mais importante de tudo! Ela mistura chocolate! Ela bate,amassa, mexe e remexe! Faz o chocolate ficar leve, espumoso!Nenhuma outra fábrica no mundo mistura o chocolate em cachoeira!Mas esse é o único jeito certo de fazer isso! O único! [...] [NestaFábrica de doces] Cada coisa é feita de algo diferente, delicioso!(DAHL, 1989, p. 72)

Se a escrita de Rosa desperta no leitor a certeza de que aquilo é fruto de um

intenso trabalho de composição, palavra por palavra, até que se formasse o todo pleno,

podemos afirmar que tal aspecto, inquestionavelmente, consistia em tarefa a ser

executada pelo sentido do gosto, do paladar literário do autor, não se podendo esquecer

que o desejo de deglutir o mundo, de experimentá-lo, também é caro aos infantes,

conforme sugerimos em nossa leitura dos Cadernos, desenvolvida em nosso terceiro

capítulo (cf. SCHERÉR, 2009, p. 110). Quando lembramos Roald Dahl e sua fábrica de

doces, associando seu engenho à escritura de Guimarães Rosa, não estamos nos

esquecendo de que essas leituras fazem parte do imaginário da década de 1960.

2. IEB JGR-R 12,3,40 – Título: Tutaméia – Autor: Eneida – Periódico:Diário de notícias – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA,05/08/1967.

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No texto escrito por Eneida acerca de Tutaméia, no Diário de Notícias do Rio de

Janeiro, no dia 05 de agosto de 1967, a jornalista comenta:

Havia na minha terra um rapaz que usava muito essa palavra –tutaméia – em suas conversas, mas logo traduzia: ‘Vocês sabem,ninharia, bagatela’. Naturalmente que pronunciava como manda oAulete ou o Aurélio: tuta-e-meia. Agora, sim, a palavra se vestiu comroupas dignas. É Tutaméia o título de livro desse fabuloso JoãoGuimarães Rosa, que assim a explica, o termo, no quarto prefácio:“nonada, baga, ninha, inânias, ossos de borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório. Chorumela, nica, quase-nada; meia omnia.” [...]Leio Guimarães Rosa como as crianças comem doce:devagarinho, com medo de acabar, querendo sentir tudo.

Ainda que Tutaméia apresente quatro prefácios, Eneida afirma que apenas

Aletria e Hermenêutica assumiria realmente esse papel. Mas o que seria então um

prefácio? Em geral, esse tipo de texto direcionaria a leitura dos livros, elencando temas

abordados, seus objetivos e estrutura. Segundo Gérard Genette teorizou já nos anos

2000, tal elemento faz parte do grupo que ele denominou de paratextos editoriais –

elementos limítrofes, mas que possuem força discursiva para dialogar com o texto

central e complementá-lo. Como paratextos também podemos listar o título, subtítulo,

epígrafes etc. (GENETTE, 2009, p. 10). O fato de Eneida apontar apenas o primeiro

texto do volume como prefácio nos parece especialmente interessante, afinal, apesar de

o livro contar com poucas personagens crianças, a maioria delas está citada nesse

prefácio, visto serem figuras protagonistas de várias anedotas destacadas ali. Considerar

Aletria e Hermenêutica como o grande prefácio do livro equivaleria a dizer que o

volume consiste em uma coleção de anedotas, trata de irreverência e é permeado pela

percepção cheia de estranhamentos que a criança vai tendo do mundo.

Contudo, o texto de Eneida segue lembrando a leitura de Grande Sertão:

Veredas escrita por Cavalcante Proença, cujo estudo a permitiu concluir que a

linguagem de Rosa conseguiu se constituir em uma fala capaz de refletir a “enorme

carga afetiva de seu discurso”. Pensando na ideia da tentativa de um resgate de certo

“sabor de infância”, despertado pelo trabalho poético de Rosa, como comentamos

acima, ao fim do texto Eneida apresenta uma imagem sobre como seria a leitura daquele

texto, referindo-se diretamente ao universo infantil, uma vez que aquele texto podia ter

para o leitor o mesmo gosto de um doce para uma criança. Aqui, a associação entre

escrever e ler os textos rosianos não está apenas sugerida, mas proposta de forma clara,

surpreendente e inequívoca.

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3. IEB JGR-R 12,03,041 – Título: Tutaméia, tutameemos – Autor:Antonio Olinto – Periódico: O Globo RJ – Local e data: Rio deJaneiro, RJ, BRA, 26/08/1967.

A belíssima e sonora leitura de Antonio Olinto destaca:

Tutaméia, tutameemos, que João Guimarães Rosa chega às terceirassem passar pelas segundas e, para júbilo derramado, se explica emquatro prefácios. Prefácios? O primeiro? Hei que ele é. Os outros,mais entrefácios. Contudo, também prefácios do que vem depois. Edas palavras de invenção, nascendo do nada, de tudo. As vogais seabraçam a si mesmas, em murucututu do Amazonas, nos sons quese repetem repetidos e se fazem coisas através da repetição.Tutaméia, tutameemos, que as coisas também se fazem palavras enelas se ganham completitude, voltando ao estado de coisas assimque as palavras se sentem dominadas. Nessa interação, a mais fortenovidade de João Guimarães Rosa, cujas palavras saltam. Comopeixes?

Aqui, além da retomada da importância do primeiro prefácio como sendo o

único definitivo, temos definidas as próprias leituras das estórias que já apontamos antes

ao comentar esse levantamento: a renovação daquela linguagem encontra-se, também,

na atitude libertária que o autor assume em relação às palavras, já que sua escritura se

mostra muito atenta ao som que elas exprimem, primando pela repetição para

determinar o ritmo das locuções e, a partir daí, exprimir seus múltiplos significados

possíveis, exatamente como elas são para as crianças pequenas, para as quais todas as

palavras repetem uma evocação mágica, como já foi comentado largamente,

especialmente em nosso segundo capítulo (cf. HUIZINGA, 2001, p. 133-4).

Olinto prossegue comentando os processos da escritura rosiana:

Vai se falar da vida das palavras, e ei-las vindo. Vem da distância,dos quandos, da penetração pelo Do Chico, Bahia adentro até ossertões dos Gerais. Dois séculos? Talvez bem mais, ninharam os delá as palavras. E de lá teriam elas ficado, mortas, sem saltos, nãoapanhasse João para sua grande aventura e tresaventura.

Para Olinto, na escritura de Rosa, as palavras voltariam ao seu estado pleno de

possibilidades de interação, como as que se pronunciam em espaços primitivos tal como

o Urucuia, lugar onde “ainda ninharam palavras, uma referência quase que direta ao

método rosiano de fazer as palavras voltarem a ser como eram quando nasceram Esse

empreendimento, derivado de uma atenção maior para o aspecto sonoro, poderia ter

uma abrangência superior:

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Fazendo em sons e sentidos, João Guimarães Rosa também faz oBrasil. Faz um Brasil que hoje é palavra e coisa. Faz uma língua,dá uma língua ao Brasil, uma língua estruturalmente João,estruturalmente Do Chico, síntese fransciscana dos diversosBrasis. Estruturalisticamente, não compomos: decompomos,recompomos. João Guimarães Rosa decompõe, recompõe. Pegapalavra, decompõe. Por necessitar, não por curiosidade.Decompõe e recompõe. Entre um e outro agir, a palavra sai nãorecomposta, mas composta, nova coisa, quididade, objeto, meaomnia, tutameia.Tutaméia, tutameemos, que a expressividade da língua, agorabrasileira, ganhou estacadas e estacatos. Não apenas para que ostermos engenhados venham ‘tapar um vazio’, mas para que a línguatoda venha esvaziar um cheio e tapar um vazio, substituindo o idopelo vindo.

“Fazendo-se em sons e sentidos”, ou seja, em constante processo de

significação, Rosa também fez o país em sua escritura, o que consistiria em demonstrar

ações com palavras e também seus resultados. No movimento daqueles textos, o

Indo e vindo, não se repete repetindo, faz língua que não se precisaaprender, que ela está no estar-aí, no estar-no-mundo, no DoChico, no Brasil resumido. Faz língua em poesia como toda línguaque nasce. Sem brusqueza. Palavras de outras palavras, coisas deoutras coisas, sons que continuam soando depois que tudoterminou. (cf. SALIBA, 2008)

Nessa passagem, Olinto conclui que os sons daquela escrita tentariam trazer à

tona até mesmo o que já nem mais existe e, assim, reinventariam o Brasil em todos os

seus tempos – ou, como teríamos dito, criando e (re)criando tudo como se fosse uma

criança?

4. IEB JGR-R 12,3,63 - Título: Fabulógico Guimarães Rosa – Autor:Tristão de Athaíde – Periódico: Jornal do Brasil – Local e data: Riode Janeiro, RJ, BRA, 19/08/1967.

Assim como no texto de Antonio Olinto, comentado acima, Tristão de Athaíde

também destaca nas estórias a perceptível importância do material que se ouve para a

escritura de Rosa, experimentando justificar tal aspecto pelo fato de ele ter sido um

poliglota:

Tomou da matéria plástica Brasil em suas mãos de bruxo, tantopaisagem como gente e linguagem, e com ela está modelando umaimagem de nossa cultura absolutamente inédita. Não seguiu o modelode ninguém, olhou para dentro de si próprio e com a experiência

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de oitiva (especialmente de oitiva, pois os poliglotas sãoprincipalmente meta-auditivos) absolutamente singular, vai nosdando uma imagem da nossa vivência, ao mesmo tempo oceânicae telúrica, tão diferente de tudo e ao mesmo tempo tão objetiva,que realmente o colocará em uma ilha cercada de vazio por todosos lados.

Com isso, poderíamos igualmente afirmar que Rosa destacaria suas heranças

mais íntimas em sua escritura, inclusive as da infância, período da vida no qual a oitiva

é mais fundamental para a linguagem?

5. IEB JGR-R 12,03,090 – Título: Tutaméia são as terceiras estórias deGuimarães – Autor: Rosa Maria de Lourdes Costa – Periódico:Gazeta Comercial – Data: 10/09/1967.

Rosa Maria de Lourdes Costa começa destacando a segunda epígrafe do livro.

Cabe lembrar que, além dos quatro prefácios, em Tutaméia também encontramos dois

sumários – o primeiro convidando à leitura das estórias –, e o segundo convidando à

releitura delas (cf. RODRIGUES, 2009, p.34-5). Para cada sumário, Rosa selecionou

uma epígrafe geral diferente, ambas citações de Schopenhauer:

daí, pois, como já se disse, exigir a primeira leitura paciência, fundadaem certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá sobluz inteiramente outra. (SCHOPENHAUER, apud ROSA, 1967, p.1)187

Insistindo na ideia da releitura, a segunda citação reafirma a colocação inicial:

Já a construção, orgânica e não emendada, do conjunto, terá feitonecessário por vezes ler-se duas vezes a mesma passagem.(SCHOPENHAUER, apud ROSA, 1967, p. 193) 188

Costa destaca então que esses artifícios são empregados por Rosa para “conduzir

o leitor ao sentido oculto de suas estórias onde a aparente simplicidade do fio condutor,

ou o tema, não esconde a complexidade de pensamento vinculada ao caráter específico

da prosa rosiana”.

Para nós, Costa expõe aqui uma colocação acertada, já que estamos de acordo

em que esses estratagemas são usados por Rosa para tentar conduzir de alguma forma a

187 Rosa usa as citações de A. Schopenhauer (ROSA,1967, p. 1 e p. 193), mas não indica as referênciasexatas das publicações citadas, entretanto Ana Maria Bernardes de Andrade nos esclarece que se trata deuma menção ao prefácio da obra SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. (cf.ANDRADE, 2004, p. 53).188 Idem.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 325

leitura daquelas estórias, porém é de se notar que todo esse direcionamento espera levar

o leitor a um novo processo de significação de suas mensagens, o que está expresso

especialmente na citação destacada por Costa – o que chama a atenção é a possibilidade

de que uma releitura venha trazer novo entendimento. Nesse momento de sua reflexão,

a articulista comenta que essa condução do leitor pode levar a um processo de

significação sem fim ou, como gostaria nosso autor, ao infinito processo da criação – ∞.

Perguntamo-nos se tudo isso não pode remeter igualmente à própria situação da criança

e a sua necessidade de ler e reler para melhor absorver, compreender e (re)criar o

mundo o tempo todo?

Dessa forma, de maneira abrangente, nos recortes selecionados por Rosa sobre

seu livro Tutaméia (1967), um dos aspectos mais interessantes que se observa é a

percepção de que a obra compunha uma espécie de síntese de toda a obra rosiana

anteriormente publicada. Ainda nesses recortes, embora o então novo volume de Rosa

também contasse com desenhos de Luís Jardim, eles não foram comentados nenhuma

vez nos artigos.

Figura 5.10 – Capa de Tutaméia - terceiras estórias (1967), com desenhos de Luís Jardim em fundo vermelho.Fonte – (ROSA, 1967, capa)

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 326

Há sutis diferenças entre os desenhos da capa de Primeiras Estórias e os da capa

de Tutaméia: se aqueles eram muito mais numerosos e se referiam quase sempre a

trechos de enredos das estórias, nos da capa do livro de 1967 eles se tornam mais

minimalistas e “aparecem em quantidade menor, pois optam por focar figuras mais

simbólicas – como dados, bois, vela acesa, entre outras –, como que tentando indicar o

tom lúdico e hermético da narrativa” (RODRIGUES, 2009, p. 32).

Acreditamos que os belos desenhos de Jardim não foram mais comentados

porque não eram mais novidade e também porque as estórias, e a percepção dos leitores,

já não estavam mais tão declaradamente abertas à perspectiva infantil. Em relação aos

recortes selecionados por Rosa, sobretudo aos que apontam uma ligação com o tema da

infância, assim como nos textos acerca de Primeiras Estórias, percebemos que não é

apenas o número de artigos que diminuiu bastante – de 42 artigos selecionados, para o

volume de 1962, para apenas 05 relacionados ao de 67 –, sendo que a substancial

mudança se fez perceber no tom da crítica: se no livro de 1962 comentou-se muito sobre

os processos escriturais do autor, sendo cogitado diversas vezes que seu modo escritural

se assemelhava aos modos das crianças se comunicarem, já sobre o livro de 1967 as

associações baseavam-se mais nas peculiaridades sonoras das estórias e até mesmo em

uma relação entre as leituras do texto de Rosa e a sensação da criança ao comer doces.

Também o estranhamento causado por aquela linguagem foi associado ao choro de um

bebê no momento em que nasce e começa a construir sua própria subjetividade.

5.3 A formação de um imaginário de escritura e de leitura das estóriasque Guimarães Rosa publicou nos anos 1960

Lembrando a proposta de Wolfgang Iser quando o teórico atenta para a relação

autor/texto/leitor como um jogo que termina de conceber o material textual a partir de

uma “dupla operação de imaginar e interpretar”, vista como outra forma de conceber o

processo de significação de um texto. Parece ser bastante claro o motivo pelo qual Rosa

se interessava tanto pelas recepções críticas das suas estórias, uma vez que só a partir

delas é que as palavras poderiam vir a expressar um outro mundo, como se então fossem

a realidade. Essa intervenção definitiva do leitor – como agente da significação do texto

– passou a tornar seu papel quase tão importante como o do autor no que tange à criação

do texto (ISER, 2002, p. 07).

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 327

Nesse material de recepção, podemos perceber e destacar um diálogo constante

estabelecido diretamente entre o autor e aquelas percepções de Outros. Cabe lembrar,

entretanto, que essas não ficaram restritas apenas à percepção daqueles leitores, mas

foram publicadas em periódicos – meio propício para a formação de opiniões e de

imaginários –, ou seja, tais textos são parte legítima da construção de um imaginário

coletivo de leitura de Rosa na década de 1960. Quando tantos articulistas apontaram

ligações entre as estórias e a infância, é de se destacar que essa relação já fazia parte da

construção daqueles textos e que tal aspecto estaria atuando como mais uma forma de

questionar a grande narrativa da História.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 328

Um último giro no caleidoscópio

“Eu vou te contar uma estória, agora atençãoQue começa aqui no meio da palma da tua mãoBem no meio tem uma linha ligada ao coraçãoQue sabia desta estória antes mesmo da canção

Dá tua mão, dá tua mão, dá tua mão...”(Paulo Tatit & Zé Tatit – Uma estória)

Desde a década de 1950, estimulado pelo convívio com os cinco filhos

pequenos, Vinícius de Moraes, o Poetinha, esporadicamente escrevia poemas para

crianças, que em sua maioria estavam centrados na história bíblica de Noé e na arca que

abrigou os animais durante o dilúvio, garantindo a permanência da vida na Terra (cf.

ARCA, 2013, 02’00” – 02’ 27”). Ainda que o poeta não tivesse a intenção inicial de

publicar esses poemas em livro, eles foram ocasionalmente divulgados em jornais ou

revistas, justamente por constituírem textos nos quais se destacavam “o humor, e a

exploração lúdica das sonoridades do discurso poético, recurso que leva o pequeno

leitor ou ouvinte a sentir os sons independentemente do que eles significam”

(COELHO, 1995, p. 1124). Ainda que fossem escritos, eles já atendiam ao chamado do

ritmo, antes de expressarem algum conteúdo lógico, e apresentavam alto potencial

comunicativo, se comportando como se fossem canções, linguagem que atravessa a

história da comunicação e da cultura humana (cf. DARTON, 2013, p. 2014, p. 71-83).

Partindo desse contexto, não surpreende, portanto, que na medida em que foram sendo

lançados ao conhecimento público, os poemas do Poetinha fossem sendo musicados,

paulatinamente, como nos conta Paulo Soledade, um dos primeiros compositores a

musicar aqueles textos:

A Arca de Noé já havia na cabeça do Vinícius, só que ela não tinhasido divulgada, e ele estava na esperança de que o Ministério daEducação financiasse as ilustrações do Manuel Bandeira189, cearense,falecido há pouco tempo e quem viveu na Europa [...] que eram tãolindos [sic] e tal e coisa, mas o Vinícius não conseguiu que oMinistério da Educação financiasse, então não tendo financiado, eleficou desencantado e entregou para o Rubem Braga e FernandoSabino que tinham fundado a Editora Sabiá, estes poemas. RubemBraga, de posse desses poemas, publicou numa página da ‘RevistaManchete’, aquela ‘Poesia é Necessária’, e eu li, gostei e musiquei.(SOLEDADE, 2013, 11’ 13” – 12’00”)

189 Provavelmente, ao citar o nome do poeta pernambucano Manuel Bandeira, Paulo Soledade confundiu-se, estando, na verdade, referindo-se ao artista plástico cearense Antonio Bandeira, que havia feitosucesso em Paris na década de 1950 e 1960.

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 329

A partir desse depoimento, observamos inicialmente um elemento diretamente

ligado a esta tese: envolvidos na história do livro A Arca de Noé, temos uma tríade de

figuras de destaque no cenário editorial brasileiro da segunda metade do século XX, que

também aparece unida em um dos Cadernos de Guimarães Rosa, no qual encontramos

três crônicas anedóticas – escritas justamente por Vinícius de Moraes, Fernando Sabino

e Rubem Braga – que, portanto, fizeram parte do processo escritural das estórias

rosianas. Conforme comentamos no terceiro capítulo, os três textos convidam a ligeiros

saltos de percepção, por isso os chamamos de anedotas, que abordam diferentes

aspectos: a de Vinícius de Moraes versa sobre o lirismo do não-senso, a de Rubem

Braga sobre a coleção de piadas e gracejos de Victor Hugo e a de Fernando Sabino

sobre a seriedade da relação do homem (menino e adulto) com o jogo de bolinha de

gude. No texto do Poetinha, encontramos uma definição interessante desses momentos

de certa epifania emotiva da percepção, que nos tira do “tédio da lógica” e nos

presenteia com um “instante de liberdade no seio de uma ordem sem nenhum dogma”

(MORAES,apud ROSA, IEB ACGR-CADERNO 2257, s.p.). A busca desses instantes

fugazes e libertadores, certamente, é uma das mais fortes procuras percebidas a partir da

consulta aos registros da escritura das estórias.

Contudo, para além das crônicas, o diálogo estabelecido entre esses três

escritores dizia igualmente respeito à produção e divulgação de um objeto de cultura

envolvendo as crianças, objeto que primeiramente foi pensado para só depois ser

escrito. No entanto, embora o Poetinha fosse prestigiado, talvez a poesia para crianças

não fizesse parte da linha editorial da Sabiá, acarretando que os poemas só saíssem em

livro no ano de 1970, dessa vez com belíssimas ilustrações de Marie Louise Nery,

artista suíça radicada no Brasil e com larga experiência em trabalhar para o público

infantil. Nas ilustrações que Nery fez para A Arca de Noé, vemos belíssimos desenhos

em preto e branco, vazados, como se fossem destinados a um livro para colorir,

convidando a criança a também interagir com aquele objeto cultural que foi pensado e

executado para ela. Depois de 1968, quando a editora Sabiá foi vendida para a José

Olympio, que era a então responsável pelas edições da obra de Guimarães Rosa, o livro

A Arca de Noé continuou sendo editado com a mesma configuração e as mesmas

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ilustrações. Consultamos um desses volumes190 editados pela José Olympio em 1980,

no qual vimos executado aquilo que os desenhos de Nery apenas sugeriam: eles foram

coloridos a lápis de cor, como muito provavelmente teria sido a intenção da ilustradora:

Não há como saber se quem coloriu esse desenho foi uma criança ou não, uma

vez que, embora os traços sejam rabiscados e não tenham muita definição, as cores

cumprem seu papel de preencher o desenho de forma tradicional. De qualquer forma, ao

encontrarmos essa gravura colorida, percebemos estar diante de um registro cultural

ligado ao universo infantil, visto que, segundo a visada crítico-teórica exposta na

presente tese, a infância consiste em uma experiência cultural de interação vivida pela

criança, pois “onde quer que esteja, ela interage ativamente com os adultos e as outras

crianças, com o mundo” (COHN, 2009, p. 28). Esse tipo de convite, desenvolvido no

sentido de que a criança interaja na efetiva produção do objeto cultural iniciado pelos

poemas de Vinícius, reverberou mais tarde, quando “entre 1980 e 1982 esse trabalho

transformou-se num dos maiores sucessos de disco infantil no Brasil. [...] tanto que foi

190 O referido livro está disponível no acervo da Biblioteca Florestan Fernandes, da FFLCH/USP, no qualconsta a informação de que o volume havia sido doado pela biblioteca do CELIJU (Centro de Estudos deLiteratura Infantil e Juvenil).

Figura 6.1 – Ilustração colorida de Marie Louise Nery, para o livro A Arca de Noé.Fonte – (MORAES, 1980, p. 75)

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repetido em 1981, com A Arca de Noé 2. Desde o seu lançamento, somados, os discos

venderam mais de 3 milhões de cópias” (HOMEM; ROSA, 2013, p. 169). Naqueles

discos, a capa do artista paulista Elifas Andreato trazia uma sugestão que impelia a

criança a continuar criando o disco, já que o LP trazia duas capas, uma com animais

feitos de recortes de papel colado e outra em branco, para que cada criança pudesse

recortar, colar e criar sua própria capa, com a arca de animais que quisesse, permitindo

que, com tanta interação, ajudasse a formar um imaginário musical sobre a infância,

ultrapassando gerações, ainda que o próprio Vinícius de Moraes não tenha vivido para

ver a notoriedade dessa empreitada, já que o autor morreu em 9 de julho de 1980

(HOMEM; ROSA, 2013, p. 179).

Ainda acerca do conteúdo desses poemas/canções, gostaríamos de destacar a

história de um deles, retomando o que alguns comentadores falaram sobre o tão famoso

poema intitulado A Casa:

Tudo começou durante o período em que Vinícius de Moraestrabalhou na embaixada brasileira em Montevidéu e tornou-se amigodo artista uruguaio Carlos Vilaró, que, em 1958, havia começado umaconstrução pouco convencional. Inicialmente era apenas uma casa delata. Com o tempo foi acrescentando novas partes, todas com formasarredondas e pintadas de branco para contrastar com o azul do céu. Oespaço, conhecido como Casapueblo, tornou-se um hotel com mais desetenta quartos, que levam os nomes de seus hóspedes mais ilustres.[....] Nas suas estadias na Casapueblo, Vinícius brincava com as filhasdo anfitrião dizendo, “Era uma casa muito engraçada, não tinha tetonão tinha nada” e terminava com os versos “Mas era feita com pororó[termo indígena que significa palavras ocas; lega-lega]/ Era a casa diVilaró”. Os versos finais da letra foram substituídos na gravação por“Mas era feita com muito esmero/ na rua dos bobos, número zero”.(HOMEM; ROSA, 2013, p. 172-3)

Nesse poema, interpretado pela analogia da tal Casa, temos a exposição de uma

síntese de muito do que estivemos falando sobre a infância e o ser criança: no caso do

poema, a casa seria já alguma coisa, embora ainda não tivesse quase nada de concreto

ou de completo, sendo esse algo marcado por uma imensidão de possibilidades, mesma

abertura de possíveis encontrada no universo infantil.

Assim, contando, ainda que sumariamente, a história de A Arca de Noé, também

estamos abordando, por dentro, o processo pelo qual o Poetinha é mais conhecido: o da

migração assumida entre ser um poeta exclusivamente do livro, restrito à palavra

escrita, e ser também um poeta da canção, linguagem mais ampla que é “totalidade de

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sentido composta por melodia, letra e arranjo” (TATIT, 2007, p. 131-2), na qual a

palavra é plena manifestação rítmica.

Ainda é incerto se A Arca de Noé foi mesmo um projeto pensado e desenvolvido

por Vinícius de Moraes ou se foi um conjunto de manifestações livres, sempre ligadas à

ideia da criança, que ao final resultou em um disco importante para a discografia

brasileira. Contudo, é interessante tentar observar essa iniciativa no contexto histórico

cultural da década de 1960, repleto de temporalidades distintas, tal como Wisnik nos

apresenta:

A partir do momento em que Vinícius de Moraes, poeta líricoreconhecido desde a década de 30, migrou do livro para a canção, nofinal dos anos 1950 e início dos 1960, a fronteira entre poesia escrita epoesia cantada foi devassada por gerações de compositores letristasleitores dos grandes poetas modernos [...] em seus desdobramentos, abossa nova deu elementos musicais e poéticos para a fermentaçãopolítica e cultural dos anos 1960, em que a democracia e a ditaduramilitar, a modernização e o atraso, o desenvolvimentismo e a miséria,as bases arcaicas da cultura colonizada e o processo deindustrialização, a cultura de massas internacional e as ‘raízes’ nativasnão podiam ser compreendidas simplesmente como oposiçõesdualistas mas como integrantes de uma lógica paradoxal oucompletamente contraditória, que nos distinguia e ao mesmo temponos incluía no mundo. (WISNIK, 2001, p. 183-4)

Tal contexto parece-nos justificar a importância da produção de canções nesse

país, elevando-se o grau de significação de A Arca de Noé, projeto cuja feitura

ultrapassa a vida do próprio autor. Somados os primeiros momentos da escritura dos

poemas nos anos 1950 ao apogeu dos discos póstumos em 1980, o tempo de produção

dessa obra acabou durando longos trinta anos, período muito mais extenso que a ideia

de qualquer infância, ao que nos indagamos: então por que alguém demoraria tanto na

execução desse objeto? Ainda que Vinícius tivesse interesse no mundo infantil, tal

aspecto chama menos a atenção que a duração que esse interesse levou até ser

executado: nenhuma infância dura trinta anos. Parece-nos, na verdade, que todo esse

tempo foi o necessário para que o Poetinha assumisse “a passagem do livro para a

música popular” (HOMEM; ROSA, 2013, p. 16). Se A Arca de Noé pode funcionar

como uma alegoria para esse longo e difícil processo, torna-se interessante destacar que

o objeto final é destinado a crianças, seres que vivem na própria maleabilidade entre o

letramento e o iletramento, o que, como vimos, também constitui uma característica da

escrita de Guimarães Rosa.

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Além disso, esse cancioneiro não encerrou sua produção de significados na

década de 1960, mas entrou no século XXI reverberando-se como herança no projeto de

música infantil da cantora Adriana Calcanhotto, que, entre 2004 e 2012, assumiu o

heterônimo infantil Partimpim – que era como ela gostava de ser chamada na infância –

e em três discos e shows revisitou suas possíveis perspectivas infantis, fazendo com que

a criança que ela foi deixasse de existir apenas como lembrança, para ressurgir como

um devir na orientação criadora, sobrevindo então uma sonoridade renovada

(SCHÉRER, 2009, p. 191-93). O repertório de Partimpim procura registrar momentos

de delicada beleza na produção musical para crianças, sempre mesclados com belas

sonoridades do cancioneiro brasileiro, em gravações nas quais se procuram inserir nos

arranjos alguns sons característicos da paisagem sonora infantil, ainda que de forma

discreta, fazendo com que, dessa forma, ela tenha conseguido agradar mais aquelas

crianças que ainda vivem internamente nos adultos e um pouco menos as próprias

crianças, trazendo, de qualquer forma, à tona novamente a importância de deixar soar a

voz infantil. Em um dos melhores momentos do show do primeiro disco, cuja

apresentação podemos ver no DVD, é apresentada uma versão musicada por Toquinho

do poema O Poeta aprendiz, de Vinícius de Moraes, tal como citamos a seguir:

Boa tarde! Tem crianças na plateia? É um prazer muito grande estarcantando aqui mais uma vez, e vocês devem achar que eu digo isso emtodos os lugares, em todas as tardes, e eu digo mesmo, mas aqui éverdade! A gente vai fazer uma canção que conta a história de ummenino que sonhava em se tornar poeta e ele não só sonhou em setornar um poeta, como de fato se tornou um grande, um imenso poeta,e ele não só se tornou um imenso poeta, como modificou a maneirade se escrever poesia e de se escrever canções no Brasil, entremuitas outras coisas que ele modificou no Brasil. Só é possível queeste espetáculo exista porque ele existiu. O nome dele era Vinícius,e a história dele é assim. (PARTIMPIM, 2004, 11’ 25’’ até 16’ 40’’,grifo nosso)

Nesse excerto está assumida a herança cultural deixada por Vinícius de Moraes,

resultante em outra série de discos que fez e ainda faz bastante sucesso entre as crianças,

também acabando por render frutos, já que, em 2010, o grupo de música pop Pato Fu

também enveredou por uma experiência de produção musical utilizando sonoridades

retiradas diretamente da chamada Paisagem Sonora (SCHAFER, 2001) infantil, por

meio de uma mudança realmente significativa, uma vez que o grupo não apenas usou

sons infantis nos arranjos, mas os próprios instrumentos eram todos de brinquedo ou em

miniaturas. O repertório do projeto Música de brinquedo consiste simplesmente naquele

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advindo da música pop, que provavelmente constitui o que as crianças mais ouvem na

vida, em conjunto com seus pais, sendo que o grande diferencial desse disco parece ser

o fato de o grupo ter usado, quase sem filtro algum, o som mais característico da

Paisagem Sonora infantil, a saber, o barulho das próprias crianças brincando, cantando,

rindo, gritando, sendo entrevistadas e expressando opiniões. No DVD, vemos uma

imagem significativa que sintetiza toda essa ideia de derrubar a hierarquia estabelecida

entre adulto e criança: os músicos encurvando-se para tentar tocar mini-instrumentos ao

vivo, como se estivessem brincando e fossem crianças novamente, tal como na crônica

escrita por Fernando Sabino, guardada por Rosa em seu caderninho.

Contudo, tal resgate da inclusão da criança na produção cultural infantil não

ficou sem um contraponto. Em 2011, a dupla de músicos gaúchos Kleiton e Kledir

lançou o projeto Par ou ímpar, que objetiva retornar às composições de “músicas para

crianças” – ou seja, músicas para que as crianças ouçam e consumam, sem participarem

em nenhum grau mais elaborado da sua composição. Comparando-se com o projeto de

Partimpim e com o Música de Brinquedo, que apresentaram novas faces de Adriana

Calcanhotto e do grupo Pato Fu aos ouvidos de seus fãs, o disco de Kleiton e Kledir

para crianças apresenta apenas uma seleção de músicas infantis de forma tradicional,

sem o toque da criativa sonoridade infantil, fazendo parecer ser apenas mais um disco

da dupla. Depois de experiências tão radicais, é interessante destacar que o disco de

Kleiton e Kledir apresenta uma sonoridade que soa tão peculiar à dupla, que se nota

que, ali, todo o potencial criativo trazido pela criatividade infantil não foi utilizado em

sua melhor forma, fazendo com que a criança volte a ser percebida como uma eterna

reprodutora de um sistema de símbolos existente anteriormente a ela (cf. COHN, 2009,

p. 28).

Como vimos, em um último giro no caleidoscópio da tese, a imagem das

crônicas nos cadernos de Rosa não nos levou a um caminho conclusivo, acenando, ao

contrário, para uma continuidade na produção cultural compartilhada entre adultos e

crianças, que, se foi sublinhada na década de 1960, continuou reverberando depois em

nossa História Cultural no século XXI e pode ser assunto de interesse para próximos

trabalhos na ainda não formulada área de História Cultural da criança. Assim sendo, no

ritmo da escritura rosiana, a gente “ia até aonde ia aquela cantiga”(ROSA, 1978, p. 16).

.

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Referências e listasListas DA TESE

TABELAS

No capítulo 22. TAB 1 Postais do vovô Joãozinho para Beatris Helena e Vera Tess p. 812.TAB 2 postais de Joãozinho para Betriz tess p. 942.TAB 3 mensagens do vovô Joãozinho sobre Vera Tess p. 96-7

No capítulo 33. TAB 1 Cadernos Fundo JGR IEB/USP p. 135-63. TAB 2 Cadernos FCRB p. 1613.TAB 3 Cadernos FUNDO ACGR IEB/USP p. 168

No capítulo 55. TAB 1 Artigos sobre Infância em Primeiras estórias p. 276-95. TAB 2 Artigos sobre infância em Tutaméia p. 311

IMAGENS

No capítulo 11.1 Desenhos de escritura p.30No capítulo 22.1 Desenhos do nome da rua p. 432.2 Estranhamento das letras p. 442.3 Sebastian Brant p.472.4 Carta Enigma p.552.5 Brinquedos de sabugo p.652.6 Dez palavras bonitas Vicente Guimarães p.692.7 Dez palavras bonitas Guimarães Rosa p. 712.8 Última aventura do Sete-de Ouros p. 752.9 Autorização para Vicente adaptar conto às crianças p.762.10 João Bolinha p. 772.11 Ooó do vovô p. 812.12 Cartão Verinha p. 852.13 Envelopes p. 872.14 Postal de Guadalajara p. 912.15 Postal Ditado Exato p. 922.16 Dia da mamãe p. 952.17 Teresinhas de Jesus p. 982.18 Atinho/ratinho p. 992.19 Rabiscos p. 1002.20 Cartão inédito p. 1032.21 Promessa de contar estórias p. 1052.22 Apelidos de Vera Tess p.1132.23 Michéu Bambéu p. 1142.24 Pezinho p.1152.25 Sempre neném no coração do Vovô p.117

No capítulo 33.1 Primeiro Caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade p.1303.2 Crônica de Oswald de Andrade p.1313.3 Exemplos de Capas das séries comerciais dos Cadernos de Rosa p.137

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3.4 Caixinha de armazenamento dos Cadernos de Rosa p. 1383.5 Capas infantis dos Cadernos de Rosa p. 1393.6 Poema sobre alegria p.1433.7 Símbolos místicos nos Cadernos de Rosa p.1473.8 Símbolos místicos na capa das Primeiras Estórias p. 1483.9 Pedido do autor para Luiz Jardim ilustrar Primeiras Estórias p. 1493.10 Rosa dos ventos p.1513.11 Teoria das cores nos Cadernos de Rosa p.1533.12 Anedota da cruz que chamava DIA p.1553.13 Verinha fala futebol p. 1573.14 Verinha fala devagarinho p.1573.15 Verinha fala guardanapo p. 1573.16 Verinha fala pipoca p. 1573.17 Verinha fala q’ingatidão p. 1583.18 Universo infantil de Verinha p. 1583.19 Tirinha de Marvin p. 1593.20 Definição da palavra Infante p. 1603.21 Cadernos junto ao material da Sra. Aracy Guimarães p.1683.22 Piadas nos Cadernos de Rosa p. 1703.23a A poesia do não senso de Vinicius de Moraes p.1723.23b A poesia do não senso de Vinicius de Moraes continuação p.1723.24 Coisas de Victor Hugo Rubem Braga p.1743.25 Crônica de Fernando Sabino p. 1763.26 Verinha canta Teesinha de Jesus p. 1763.27 Verinha pede : vovô “contila” Teesinha de Jesus p. 1763.28 Verinha ameaça tirar os “ócus” do Vovô p. 1773.29 Verinha fala “sumi” querendo dizer “esqueci” p. 1773.30 Capa do caderno das últimas horas de vida de Rosa p. 1793.31 Último bilhete do vovô a Verinha p.1803.32 Capa de Caderno com desenho de menina p. 182

No capítulo 44.1 Caracterização de Nhinhinha na capa das Primeiras Estórias p.1934.2 A Menina de lá no Sumário das Primeiras Estórias p.1944.3 Partida do audaz navegante na capa das Primeiras Estórias p. 2134.4 Partida do audaz navegante no sumário das Primeiras Estórias p. 2144.5 Detalhe da capa de Universo num caixa de fósforos de Alexandre Rampazo p. 2224.6 Capa de Fita Verde no cabelo 2294.7 Ilustração de Fita Verde no cabelo p. 2294.8 Crianças se ouvindo cantar no disco Canções do Brasil p. 2554.9 Anjo do Senhor na ilustração da Lenda do Arroz p. 2594.10 Recomendação de Rosa para representação de Dito e Miguilim p. 263

No capítulo 55.1 Perfis de Rosa nos jornais na década de 1960 p. 2695.2 Manchete : “Guimarães Rosa conta:” p. p. 2695.3 Poema Motivo, de Guimarães Rosa em o Globo p.2725.4 Poema A Espantada Estória, de Guimarães Rosa em o Globo p.2745.5 Crustáceo nas páginas de Tutaméia p. 2755.6 Tirinha da Mafalda e o caranguejo p. 2765.7 Capas das Primeiras Estórias p.2945.8 Sumário das Primeiras Estórias p. 2965.9 Cartão com andorinha p. 3045.10 Capa de Tutaméia: Terceiras Estórias p. 325

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Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa 337

No Último giro do caleidoscópio6.1 p. 330

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191 Como estamos citando os recortes de jornal selecionados Guimarães Rosa e disponíveis em seuacervo, não dispomos dos números das páginas, então convencionamos substituir esta informação pelocódigo do texto no arquivo de Rosa IEB/USP.

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VÍDEO –WISNIK, José Miguel. O Famigerado 3 .https://www.youtube.com/watch?v=5LHhtBf24Nk (Último Acesso 09/05/2014)

ANEXOS192

ANEXO A – ARTIGOS SOBRE INFÂNCIA EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS

1. IEB JGR-R 7,01 – Título: João Guimarães Rosa “Primeiras Estórias” - Autor:J. C. O. T. – Periódico: A Ordem – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 1962.

192 Os anexos seguem a ordem das listas de recorte de jonal analisadas no capítulo 5 e quando não haviaimagem disponível o texto foi transcrito, excetuando as duplicatas e o texto já publicado.

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2. IEB JGR-R 7,02 – Título: História (de bolso) de um prêmio literário – Autor:Valdemar Cavalcanti – Periódico: Correio da Manhã – Local e data: Rio deJaneiro, RJ, BRA, 07/03/1964.

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1963 : NOVAS DIMENSÕESNo ano passado, o Pen Clube resolveu dar outra dimensão ao Prêmio: em vez de um só, para

qualquer gêneros – era assim –, quatro, para quatro diferentes gêneros, que observarão um sistemade rodízio. E em vez de um de 30 mil cruzeiros, quatro de 50 mil. Feita a convocação dos críticos ecolunistas especializados, 43 deles responderam prontamente à chamada. O balanço de opiniões foidevidamente organizado e deu certo, a meu ver: os melhores de 63 teriam sido, na poesia, ’Lição decoisas’, de Carlos Drummond de Andrade, em matéria de contos; ‘Primeiras Estórias’, de JoãoGuimarães Rosa; no campo da novela, ‘Vento do amanhecer em Macambira’, de José Condé, e naárea da crônica, ‘A mulher do vizinho, de Fernando Sabino.’

O resultado do plebiscito tradicional foi apreciado por uma comissão do Pen Clube, assimconstituída: Ana Amélia Queiroz Carneiro de Mendonça, Elano Cardi, Homero Senna, Jaime Adourda Câmara, Marcos Almir Madeira, Paschoal Carlos Magno, Peregrino Junior, Reis Perdigão,Rodrigo Otávio Filho e, para sua qualidade de diretor de concursos do Pen Clube, este repórter.

Haverá o que discutir? É lícito que alguém discorde, neste ou naquele ponto, de taljulgamento, por pura questão de gosto – ou falta de gosto – pessoal. Da minha parte, julgo queCarlos Drummond de Andrade atingiu , em ‘Lição de coisas’ uma condição excepcional dematuridade ai está o poeta no melhor de sua forma, íntegro e perfeito, mas afoito emexperimentações, com riqueza de invenção e de imagística que o faz privilegiado, sabendo lidar comas palavras como nenhum outro, soberano naquele reino – o das palavras – onde os poemas esperamser escritos, paralisados, sem desespero, ‘sós e musos, em estado de dicionário’. Maduro também – ecomo! –, no conto, Guimarães Rosa, sempre surpresa em tudo, inesperado sempre, igual e diferente aum tempo. Escritor que, mágico no compor sua renda, veio, além do mais, liquidar aquela falsa ideiade que nossa língua é pobre e rala; pode ser um túmulo – e até certo ponto o é –, mas um túmulo deluxo.

03. IEB JGR-R 7,05 – Título: O Mundo em perspectiva: Guimarães Rosa – Autor:Luiz Costa Lima – Periódico: Tempo Brasileiro Revista de Cultura – Local e data:Rio de Janeiro, RJ, BRA, Dez. 1963.

Publicado em O mundo em perspectiva: Guimarães Rosa. IN: COUTINHO, Eduardo (org).Guimarães Rosa. 2a. edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, (SérieFortuna Crítica), p.500-13.

4. IEB JGR-R 7,07 – Título: Substância de Guimarães Rosa – Autor: SebastiãoUchoa Leite – Periódico: Correio da Manhã – Local e data: Recife, PE, BR,06/07/1963.

João Guimarães Rosa, um dos monstros mitológicos da nossa literatura, sugere nasPrimeiras Estórias o começo de uma nova viagem. Tem sido ele o pasto, por excelência, dasdissecações estilísticas, isto é, o pretexto para uma superestrutura da crítica. Transforma-se a sualiteratura numa espécie muito interessante de metaliteratura (e com ele Drummond, Cabral,Lispector), cujo sentido de unidade continua indefinido. Quanto a Guimarães principalmente, o certoé que se esbarra no óbvio: está vendo que o escritor é dono de uma linguagem inédita, aparentementeinóspita, e a única maneira de se comemorar o fato é a análise detalhada dos processos dessalinguagem.

Alguns desses processos são dos mais evidentes e quase todo escritor que realmentepretende uma nova criação se utiliza deles: variações morfológicas, invenções sintáticas, extensõescategoriais. Apesar disso permanece na prosa de Guimarães um sabor raro de inevidência que odistingue dos outros ficcionistas brasileiros: alguns chegamos a não suportar mais depois da leiturade Guimarães Rosa, principalmente os que enveredaram pela trilha da linguagem regional, semreduzi-la suficientemente artístico (com exceção de Graciliano Ramos, mestre da prosa direta lúcida,embora limitada pelos seus fins). Encontramos em Mário de Andrade tentativas semelhantes, masforam noutra direção. Guimarães é dono da sua linguagem, isto significa que se afirma em umaliberdade superior: não há peias lógicas nem tradições estéticas que o impeçam de explorar

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dissonâncias possíveis dentro da linguagem. Guimarães Rosa é dos que forçam um aspecto novo dereceptividade estética no leitor ou do contrário seu reino se fecha as portas aos acomodados.

Um dos contos deste livro, Substância, ao ser publicado numa revista, trouxe o subtítulo –dado pelos redatores, não pelo autor –, de ‘a linguagem é The Thing. Isto pode criar umainterpretação duvidosa. Não se pense que o narrado nesse conto seja algo etéreo, puro pretexto paracriação verbal. É que não acreditamos nesta só como uma suprestrutura, sob a qual se coloca um‘conteúdo’, uma ‘mensagem’ ou mesmo uma invenção predeterminada. Afastamos essa hipótese degratuidade e nisso concordamos com Augusto de Campos sobre a linguagem de Guimarães: “Asmais ousadas invenções estilísticas estão em relação isomórfica com o conteúdo.” Vimos que alinguagem em Guimarães é tão substancial, como indica mesmo o título do conto citado,‘Substância’. Seria contudo ingenuidade crer que se entende por linguagem a pura especulaçãovocabular ou sintática . O seu sentido é mais amplo e podemos estudar (o que excede as nossasintenções) na obra de Guimarães, como fenômeno de linguagem, a própria estrutura lógica em quese constroem as narrações. Esse último livro é mesmo um bom exemplo disso, pois certamente nãoé à toa que foram incluídos nele vinte e um contos, número aparentemente não-fechado, mas que é otriplo de sete, número cabalístico. Essa curiosa especulação fica contudo para os entendidos. Nãodizemos que a linguagem seja acidental nos outros escritores brasileiros, pois assim nenhummereceria a nossa atenção. Mas em Guimarães Rosa ela atinge um estado de tensão contínua: ele dizda forma mais inesperada o que esperamos dele. Isto é ser o mestre da inevidência. Substancial,portanto, entendermos no sentido de que a linguagem funda a criação fictícia e o assunto desta só o éatravés dela. Se esta relação é mais evidente ou palpável em alguns contos do que noutros, isto nãose deve a uma dose maior de invenção temática, mas a tipos diversos de estruturação a partir daintuição fundamental de cada peça.

Primeiras Estórias é uma obra mais acessível do que Grande Sertão: Veredas. Não seencontra no conto a mesma complexidade de relações que é possível no romance. Assim mesmoGuimarães Rosa consegue dar as suas ‘estórias’ um sabor durável. A linguagem parece ser utilizadanelas com o sentido de criar um tempo interno suficiente no espírito do leitor para afastar eefemeridades do elemento anedótico. Esse é, portanto, transcendido pelo seu “dizer”. E entendamosesse “dizer” no sentido daquele “fundar” holderliniano que era para ele o único elemento depermanência da realidade. Compreendeu Guimarães Rosa o que nunca tinha sido compreendidoantes por autores preocupados em exprimir um mundo regional: a linguagem tomada como elementode integração formal, única possibilidade de traduzir o significado interno de uma região. Aindamais: aqui o termo se elastece em sua compreensão. Não se entende como relativo a uma dimensãoespacial, mas como algo mais absoluto, uma província do espírito. Equivaleria quase dizer o mesmoda obra poética de João Cabral de Melo Neto, embora esta se coloque dentro de princípios racionaiscom os quais se choca a fluência verbal de Guimarães Rosa.

Notamos que há uma grande diversidade de elementos anedóticos integrando o conjuntodesses contos. Dissemos que a unidade dessa criação não deve ser procurada nos elementosanedóticos e sim na linguagem que é a sua substância. Não significa que esses elementos sejamdesprezíveis, algo eles significam. Dissemos que são acidentais porque não se encontra neles aunidade nem a natureza peculiar do escritor. Mas são eles que diversificam a obra, que lhe dãoriqueza e variedade como as cores, que também são acidentes, dão variedade a objetos semelhantes.Nesse sentido de acidentalidade o último livro de Guimarães Rosa é o mais variado em matizesentre os que publicou, o mais susceptível de interessar aos leitores indiferentes a novidade criadora.Para dar uma ideia da diversidade desses elementos citemos os contos que vão desde a sensaçãomais inefável até o acontecimento mais equívoco. “As margens da alegria”, “Nenhum, nenhuma”,“Substância”, “Os Cimos”, estão no primeiro caso. “Famigerado”, “Os irmãos Dagobé”,“Pirlimpsiquice”, “Fatalidade”, “Luas de mel”, “Tarantão, meu patrão”, são exemplos do anedóticoacontecimento, pendendo para o grotesco. “Sorôco, sua mãe e sua filha”, “Nada e a nossa condição”,“A Benfazeja”, são poucos exemplos do anedótico – trágico. O alegórico poderia ser representadopor contos como “A menina de lá”, “A terceira margem do rio”, “Um moço muito branco” e“Darandina”. E assim por diante. Esta catalogação é claro, não se pretende exética do pensamento doautor, É puramente arbitrária, como é tudo suscetível de interpretação e não de constatação.

Talvez se possa especular sobre uma constante que se encontra nesses contos. Assim porexemplo a constante da fuga está presente em vários deles, embora se manifeste em maneirasdiversas. Observa-se, por exemplo, os seguintes dados: no conto “Fatalidade” um homem foge deoutro que corteja a sua mulher; em “Luas de mel”, um casal de noivos empreende uma fuga; em “A

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terceira margem do rio”o personagem se exila de sua família; em “Darandina”, um homem éperseguido e se refugia no alto de uma palmeira; em “Partida do audaz navegante”, o próprio títuloexpressa uma mitologia da fuga; e finalmente “O Espelho” é um estudo da fuga de si mesmo. Emcompensação encontramos, também elementos que chamamos de antifuga: em “Os irmãos Dagobé”,um assassino resolve ir ao encontro dos irmãos do assassinado; em “Fatalidade”, o homem resolve irao encontro do conquistador; em “Tarantão, meu patrão”, um velho se decide a se libertar da tiraniade sua velhice; em “Sequencia”, um jovem em plena gratuidade, se atira à perseguição de um animalem fuga; em “Sorôco, sua mãe e sua filha”, o personagem se solidariza com a loucura de seusparentes; etc. Esses dados podem ser gratuitos e nada indicarem, mas podem também constituirelementos de interpretação. Verdade que a fuga é uma constante encontrável em toda literaturamoderna, consciente de sua posição sem equilíbrio dentro da situação humana atual (por exemplo, ainsistência deste tema em Drummond e outros poetas de hoje. Portanto não é nada específico deGuimarães Rosa.

Mas temos de chamar a atenção para o que é básico nele: a linguagem em certa medidarepresenta uma espécie de fuga, pois é um esforço inominável de integração em uma realidade que jánão é totalmente sua. Melhor diríamos um esforço de reintegração que ele sente como sendo sua,verdadeira, apesar de perdida. Nesse caso a fuga já não seria tanto fuga e sim justamente antifugacomo a dos seus personagens. E na consciência desse poder reintegrar-se talvez o escritor sinta que oBrasil possa adquirir consciência de suas verdades secretas. Pelo menos tenta redimi-lo na ficção, nomito, na invenção poética. A linguagem é assim fuga e antifuga ao mesmo tempo, com um poderdialético.

Estabelecida que seja a linguagem como poder na ficção de Guimarães Rosa, conclui-se quenão é possível valorizá-lo apenas porque tal ou qual anedota seja mais interessante. Só podemosaceitá-lo ao negá-lo totalmente, com todas as suas monstruosidades. Terrivelmente crítico essepoder, cada obra de Guimarães Rosa, inclusive Primeiras Estórias, representa forçosamente umfator de consciência em nossa literatura.

5. IEB JGR-R 7,17 – Título: Primeiras Estórias – Autor: Dirce Cortes Riedel –Periódico: Cadernos brasileiros – Local e Data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 05/1962a 06/1962.

Guimarães Rosa oferece-nos, nestes contos, vinte e um instantâneos, visão poetizada domundo do sertão dos Gerais.

Quase sempre o personagem é apresentado logo no início da narrativa: o menino que viaja,‘uma viagem inventada no feliz’, ‘alegre de se rir para si’; a menina de lá, ‘perpétua e imperturbada,que a tudo respondia ‘alongada, sorrida, moduladamente’; a vaca que viajava e ‘vinha pelo meio docaminho como uma criatura cristã; a mulher ‘malandraja’, suja de si, misericordiada, tão em velha efeia, feito tonta...’ Ou é a imagem condutora da narrativa que de início logo sugere a ‘carnação’ daheroína, e vai sustentar o clima da estória, como a do alvo polvilho, em ‘Substância’.

Prolonga-se o suspense, como em ‘Luas de mel’, ‘Pirlimpsiquice’ ou ‘O cavalo que bebiacerveja’, e o clímax da narrativa quase se confunde com uma solução inesperada, geralmenteesperançosa, como nas outras obras do autor, em que sentimos diluída uma temática existencialcristã. Solução dupla em ‘Sequencia’, em que a vaca que viajava chega ao pasto da fazenda, e para amoça da casa grande, que se “desescondia”, o rapaz que perseguia o animal era o ‘bem chegado’.Solução que, quando trazida pela morte do protagonista, é organizada numa sintaxe expressiva dovácuo deixado pelas grandes coisas que se acabam: “Ele cintilava ausente, aconteceu. Pois. E maisnada.’

A busca do tempo perdido tem uma nova organização artística em ‘Nenhum, nenhuma’ –tentativa do narrador de religar-se, adivinhando ‘o verdadeiro e real, já havido’: o passado que vemcomo uma nuvem, vem para ser reconhecido, mas o protagonista não sabe decifrá-lo. A luta com amemória é configurada por uma forma estranhamente sugestiva: ‘reperdia a remembrança, arepresentação de tudo se desordena: é uma ponte, uma ponte, – mas que, a certa hora, se acabou,parece que. Luta-se com a memória.’

Neste conto (Nenhum, nenhuma), como em outros, aproveitam-se recursos gráficos, naimpressão : caracteres mais fortes ressaltam o trabalho da memória, na tentativa da reconstituição dopassado, destacando-o do presente, de onde ele emerge e do qual é parte integrante.

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Mas esta angústia temporal não é típica do mundo da ficção rosiana. O que ela nos apresenta, emgeral, é o tempo estático do sertão dos Gerais, o longo tempo da espera (A gente se mexendo,tranquilos, e o tempo crescendo, parado).

A visão do mundo da criança, como em ‘Campo geral’, de ‘Corpo de Baile’, tem um lirismosem pieguice em ‘As margens da alegria’, ‘ A menina de lá’, ‘Os cimos’ – contemplaçãodesinteressada, visão das coisas puras, com pureza e poesia. A criança que, quando feliz, é ‘alegre dese rir para si’, ‘com um jeito de folha a cair’: o menino que, quando contemplou, extasiado, o perude roda, ‘riu, com todo o coração e, quando, na véspera do ‘dia de anos do doutor’, só viu do animalumas penas, restos, no chão, sentiu que ‘tudo perdia a eternidade e a clareza; num lufo, num átimo,da gente as mais belas coisas se roubaram’. A tristeza infantil,tristeza sem tragédia tristeza que nãoconhece o ‘envelhecimento da esperança’ leva o Menino a não acreditar que estivesse perdido o‘companheirinho Macaquinho’ ‘no sem-fundo escuro do mundo, sem nunca – De certo ele sópasseava lá porventuroso e porvindouro, no outra-parte, aonde as pessoas e as coisas iam e voltam.’

Não é menos feliz a reorganização das perplexidades e afirmações da adolescência, em‘Pirlimpsiquice.’

Em ‘Primeiras Estórias’, Guimarães Rosa mostra-se fiel aos processos empregados emSagarana, Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. Nele se sente, como em geral no regionalismomoderno, o mundo despido: a fonte das imagens é muitas vezes a natureza ‘olhos sacis’; umaiàzinha, moça feita em cachoeira’, a ‘ imagem do ‘polvilho, coisa sem fim’, ‘o refulgir, o todobranco’, sugerindo o êxtase prolongado da felicidade: ‘o não- fato, o não tempo, o viver em pontosem parar, coraçãomente; pensamento, pensamor. Alvor.’

A mesma expressiva motivação fônica dos outros livros do autor: jogos verbais, riqueza dacriação vocabular numa língua da qual se aproveitam todas as virtualidades (‘vale o valível), dasquais o autor parece às vezes abusar. Sugestão das metáforas fônicas (‘fúfio fino borrifo’). Jogosfônicos com assonâncias em ritmo binário: ‘reto, presto’; ‘reclamava, clamava’, ‘mouxe-trouxe e‘trouxe-moxe’; desintuído, desinfluído. Esquemas sintáticos e pontuação afetiva que servem àsexigências do ritmo que organiza o pensamento.

Muito expressiva em Primeiras estórias, como nas outras obras do autor, os processos decondesação: pela fusão de duas ou mais palavras numa (‘sussurruído’, ‘beladormeceu’,’urubuir’,‘pesamor’, ‘cabismeditado’) ou pela sintaxe embrionária ou arbitrária, com grande carga poética.

Como no restante de sua obra, o autor tem sempre uma visão dinâmica das coisas, que sãoapresentadas em movimento. Formas em movimento, que parece revelar-se em sua realização. Noconto ‘O Espelho’, o narrador quer captar o ‘movimento deceptivo constante do rosto. Em outros, omovimento dos animais: o peru de roda, ‘todo em esferas e planos’, o vagalume, ‘um instante só,ato, distante, indo-se’ a vaquinha cujo salto ‘queria ser vôo’; o tucano ‘em vôo e pouso e vôo’. Ousão frases curtas que se precipitam configurando o movimento rápido, como no enterro de DamastorDagobé ou na disparada louca da vaquinha e do rapaz de ‘Sequência’.

6. IEB JGR-R 7,19 – Título: As primeiras estórias – Autor: Newton Belleza –Periódico: Jornal do Comércio – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA,05/05/1963.

Quando observo as discussões sobre maneiras de apreciação da arte eu me pergunto quevantagens lhe advirão de ser o seu julgamento de preferência ‘pensados’ em vez de ‘sentidos’. Seráque a preponderância do racional pode encerrar maiores dimensões do que as do mundo afetivo?Em filosofia, ao contrário, a tendência é substituir, por exemplo, a ideia de substância pelosentimento de substância, sob a suposição de que o ‘sentido’ está mais perto do absoluto do que o‘pensado’. Por que marcharia a estética em sentido oposto?

Sabemos que uma simples laranja escapa sempre à nossa apreensão em sua totalidade. Paravê-la, simplesmente vê-la, em seu suposto conjunto, temos de valer-nos da imaginação, da soma dasexperiências anteriores no exame das partes. E o que acaba nos ficando da laranja nunca seráevidentemente aquela laranja com que nos defrontamos. A imagem que dela fazemos hoje não será aimagem de amanhã, proteiforme como é no funcionamento em constante ebulição de nossaconsciência.

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De outro lado, duas laranjas podem perfeitamente ser igualadas na caracterização de umaanálise minuciosa sem que tenham o mesmo gosto, sem que nos despertem o mesmo agrado. Semque as aceitamos em pé de igualdade para nosso paladar.

Como esmiuçar, definir portanto a multivalência dos contornos, da escritura, da matériaprima e, sobretudo, dos enchimentos humanos de uma criação artítica? Como definir o indefinívelque é um dos componentes maiores dessa criação? O indefinível está para além do infinito, paraalém do incomensurável.

As acrobacias da interpretação, sem regra, não passam no exame de superfície, não podendotraduzir uma obra cujas dimensões são inativeis. Não terão correspondência com a secreta aceitaçãode todos aqueles que poderão fazê-la sobreviver. Ninguém, com os caprichos de sua formaçãopessoal, dispõe da propriedade do bom gosto coletivo, que só a longo prazo se revela.

Uma obra vive, em última instância, de seu poder de repercusão, mas ou menos anônima.A arte é experiência da vida transfigurada pela experiência estética. E, como produto da

experiência, só pelos caminhos da própria experiência pode ser aferida. À base de verificaçõespessoais para um conjunto de valências, em que se destacam força de comunicação, durabilidade,cunho pessoal, tamanho do conteúdo e interesse do tema, – como acontece a muita gente, sem dissome aperceber, tenho seguido um critério empírico para o seu julgamento.

Para mim, já é alguma coisa, por exemplo, que um trabalho literário consiga prender aatenção até o fim. Agrada-me, diverte-me, satisfaz-me, correspondendo assim, de qualquer forma, àsminhas necessidades daquele momento. Se não possui todas aquelas valências, traz alguma delas emquantidade suficiente para entreter-me. Quanto durará esse interesse?

Nas mesmas condições, cresce de importância a obra que, portadora de germes úteis, exerceuma ação fecundante. Após a sua leitura, não me sinto mais o mesmo. Acrescentou-me qualquercoisa, desenvolveu minhas faculdades, multiplicou o meu eu, descobriu-me novos rumos. E podeentretanto ser assim fecunda sem ter o acabamento desejado...

Ainda há aquelas que, além de fecundantes, nos trazem a sensibilidade de plenitude, aimpressão de haverem esgotado os mananciais da criação pelas suas desconhecidas dimensões.Ficamos intranquilos, sobrevém-nos o desânimo e qualquer tentativa de elaboração semelhante. É decerta forma a satisfação, momentânea, ou a longo termo? Teremos impressões análogas todas asvezes que a elas voltarmos?

É que aquelas raríssimas que encerram o dom supremo do recolher-nos dos naufrágios nomaremoto de nossas descrenças e desesperos. Quando em angustiada solidão para elas apelamos ouque com elas nos encontramos, encontramos refúgio certo, a reconciliação com a vida. Sobrevém-nos o prazer inefável da convalescença de nossos estados esplinéticos. Pela multivalênciapromissória da vida.

De certa forma, sob a graça do êxtase que nos despertam sentimo-nos donos das coisas domundo, das coisas boas do mundo. De um mundo novo, palpitante, diferente, que surge por milagreaos nossos olhos.

Algumas das Primeiras Estórias de Guimarães Rosa (como se dá também no poemasinfônico dos cangaceiros – ‘Grande sertão: veredas’) incluem-se entre as poucas obras literáriasque, pela grandeza de sua criação, me tem comunicado esta sensação de conforto absoluto, dereconciliação com tudo e com todos, de libertação de inconformados desejos.

Em qualquer uma delas, ai está, como é do conhecimento de todos, um pujante e fértilcriador de linguagens, salvando-se sempre pelo delicioso agrado que esse brinquedo de criação nostransmite quando resultam em seriedade as realizações desse brinquedo. E em muitas delasaceitamos, surpreendidos e enlevados, a plena adequação da linguagem à estória contada.

Os irmãos Dagobé, A terceira margem do rio, Sequência, O Cavalo que bebia cerveja, ummoço muito branco, Luas de Mel, Substância, com características invulgares do escritor GuimarãesRosa, têm todas as qualidades do conto, gênero em que, a meu ver, com este livro estreia. (Sempresenti restrições quanto ao gênero para Sagarana).

Na categoria especial dos melhores já escritos em da loucura, Nada e a nossa condição coma ...figura impressionante desse silencioso profeta Man’antonio, A Benfazeja – um dramabrechitiano símbolo da própria humanidade (bem ou mal servida de seus guias de cego?), Tarantão,meu patrão num humor quixotesco em que o cavaleiro faz a sua boa figura na companhia de umaescolta crescente em vez de um solitário Sancho, Nenhum”

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7. IEB JGR-R 7,20 – Título: Primeiras Estórias – Autor: Manuel Machado dosSantos – Periódico: Vozes – Local e data: Petrópolis, RJ, BRA, Maio de 1963.

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8. IEB JGR-R 7,25 – Título: Receita para nostalgia – Autor: Dinah Silveira deQueiroz – Periódico: Jornal do Comércio – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA,18/04/1963.

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9. IEB JGR-R 7,28 – Título: Novas estórias? – Autor: Anônimo – Periódico:Estado de Minas – Local e Data: Belo Horizonte, MG, BRA, 17/03/1963.

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10. IEB JGR-R 7,32 – Título: Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa – Autor:Anônimo – Periódico: Revista Intimidade – Data: Dez. 1962.

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11. IEB JGR-R 7,33 – Título: Primeiras Estórias – Autor: Anônimo – Periódico:Jornal do Comércio – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 20/02/1963.

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12. IEB JGR-R 7,34 – Título: O Menino – Autor: Benedito Nunes – Periódico:Suplemento Literário OESP - Local e data: São Paulo, SP, BRA, 02/02/1963.

Nas Primeiras estórias, de Guimarães Rosa redespontam os temas essenciais de Grandesertão: Veredas e de Corpo de Baile – temas que ganham a dimensão de símbolos que têm o podersujestivo e a sedução mágica sempre renovaveis, dessas imagens arquetípicas, que unem a criaçãopoetica com a linguagem mítica, o mundo da poesia com o mundo ancestral dos mitos. Um dêssessímbolos é o Menino, de que trataremos ligeiramente, neste artigo.

O Miguilim de O Corpo de Baile reaparece na primeira das Primeiras Estórias – “AsMargens da Alegria”. Reconhecemo-lo pela mesma ternura que se espraia por sobre as coisas, pelamesma vida interior em processo de crescimento – a igual descoberta, lenta, sofrida, conquantoradiosa, do mundo em que a alegria e pesar se misturam. Mas a criança de Campo Geral é, agora,simplesmente, o Menino, dotado de uma sabedoria infusa que se vai manifestando, passo a passo,como por degraus de iniciação, estágios de uma aprendizagem (o menino viaja), a começar de cimapara baixo, da quietude dos ares durante a viagem de avião, onde nada altera a proximidade da alma,satisfeita consigo mesma, às primeiras desilusões da vida terrena no lugar onde se erguerá a grandeCidade. No alto “as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia previa, benfazeja, emmovimentos concordantes”; já embaixo, espaço para a cidade em construção, a discórdia, adesarmonia irrompem. A beleza do peru, avistado pelo Menino, no centro do terreiro, é só uminstante de deslumbramento. Tanta imponência – “ríspida grandeza tonitruante”, “colorida empáfia”– não dura senão um átimo. O belo e imperial peru cai sob a faca da cozinha, sacrificando à trivialocorrência do dia-de-anos do doutor. Então o menino descobre que “entre o contentamento e adesilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia”. Descobre também algo hostil, que escapa àsua inteira compreensão e que lhe traz a presença do mal e da crueldade. Pois outro peru, denenhuma beleza, bicava a cabeça da vítima imponente da véspera, “O menino não entendia. A mata,as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo.” Ao menino aturde, por um momento, anegrura em que o mundo parece mergulhar. Mas já do outro lado da tristeza e da ferocidade, noreverso da mesma vida que enegrecera, esplende a luzinha verde do primeiro vagalume – devoluçãoda claridade, da alegria triunfante, recuperando a fealdade, mas a ela unida, como a luz às trevas e ocontentamento ao pesar.

Em “Grande sertão:Veredas”, Riobaldo, o jagunço, reclama uma separação entre o bem e omal: que esses opostos se excluíssem e que de um deles nada permanecesse no outro. “Ao que,concluía ele, vendo que pedia o impossível, este mundo é muito misturado”. No Menino os opostosse conciliam, e deles, por uma espécie de transubstanciação alquímica da alma, ao cabo da qual avida se renova, ganhando inéditos esplendores, nasce a harmonia superlativa de que falavaHeráclito. O Menino tem a ambiguidade dos símbolos: é uma criança qualquer a brincar com o seumacaquinho e é a criança mítica através de quem tudo se ordena, tudo se corresponde, tudo secompleta. Em “Os Cimos”, última história do volume, a iniciação se completa. É a segunda viagem.Mais sábio, passando por uma provação (afastaram-no da mãe enferma, que ficara na outra cidade),o Menino assume o que há de passageiro, de efêmero, de contraste na existência. Plana acima domundo, acima do tempo confundidos, vendo-os fluírem juntos, qual rio em crescimento, ondevogam, decompanhia, coisas boas e más, coisas que ainda não se completaram, e outras que “a gentesabiaque elas já estavam caminhando para se acabar, roídas pelas horas desmanchadas”. A unidadede tudo, a bondade natural das coisas, no sentido que lhe deu Plotino, revela-se no trabalho matinalde um pássaro – o tucano- que visita a árvore fronteira à casa, em horário certo, conseguindoafugentar a mágoa que ele sentia pela mãe enferma, distante. O sol, o dia, a luz, se unificam nopássaro. É impossível separar, tão grande é o poder poético da linguagem ajustada à visão mística domundo, o vôo do tucano do despontar do dia, e a aurora se funde, com a emoção do menino, com assaudades do lar materno e com a renovação que nele se opera ao saber que a mãe estava curada. Ofinal dessa narrativa-poema é uma glorificação das coisas e dos seres, um acesso repentino àplenitude do mundo, um êxtase, um rapto da alma. “Eera o inesquecível de repente, de que podiatranspassar-se, e a calma, inclusa. Durou um nem-nada, como a palha se desfaz, e, no comum, nagente não cabe; paisagem, e tudo, fora das molduras. Como se ele estivesse com a Mãe, sã, salva,sorridente, e todos, e o Macaquinho com uma bonita gravata verde – no alpendre do terreirinho dasaltas árvores...() e no jeep aos bons solavancos... e em toda a parte... no mesmoinstante só...o

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primeiro ponto do dia... donde assistiam, em tempo-sobre-tempo, ao sol no renascer e ao vôoo,ainda muito mais vivo, entoante e existente- parado que não acabava – do tucano, que vem comerfrutinhas na dourada copa, nos altos vales da aurora, ali junto de casa”.

Se damos a esse menino, uma dimensão simbólica – que é a infância da alma, a perenedescoberta das harmonias ocultas da natureza e da simpatia entre os seres, é por que ele pode serencontrado em outros momentos da obra de Guimarães Rosa. Assim, em Grande sertão: Veredas, adescoberta do Rio, por Riobaldo, deve-se à intercessão de Diadorim, nessa passagem apenas menino– menino dissemelhante dos outros e que parecia igualar-se ao rio em sua força, em seus segredos eem seu conhecimento do mistério das coisas, incluindo os pássaros. “Um pássaro cantou. Nhambu. Eperiquitos, bandos passavam voando por cima de nós. Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquelemenino, como eu ia poder deslembrar? ()”

13. IEB JGR-R 7,35 – Título: Livros Novos – Autor: Anônimo – Periódico: OGlobo – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 29/01/1963.

14. IEB JGR-R 7,37 – Título: Os caminhos da ficção II – Autor: Wilson Martins –Periódico: OESP – Local e data: São Paulo, SP, BRA, 26/01/1963.

“...com João Guimarães Rosa, que se define, antes de mais nada, pelo estilo, quero dizer, por seuestilo. Mais do que um estilo literário, trata-se de um estilo pessoal: o Sr. Guimarães Rosa renova amatéria regional exclusivamente pela palavra, o que é, no fundo, a definição de toda literatura.Acontece, apenas, que esse estilo não é uma forma de expressão: é um artifício de linguagem. Umapágina do Sr. Guimarães Rosa é inconfundível, mas é facilmente imitável (conforme já se tem visto),fundando-se, como se funda, não em ‘maneiras de pensar’ ou de ver o mundo, mas em processospuramente mecânicos. Ora, já se disse, e com razão, que o grande escritor não é o que imita

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ninguém, mas aquele que ninguém pode imitar. Nesse caso, o ‘drama’ da ficção não se passa aonível das psicologias individuais: passa-se ao nível do vocabulário. Estas Primeiras Estórias sãopreciosas não apenas por ser precioso (nos dois sentidos da palavra) tudo o que sai da pena deGuimarães Rosa, mas ainda, porque no-lo expõem num momento em que a sistematização da suatécnica ainda não havia alcançado o paroxismo de que Grande Sertão: Veredasé, até agora, oexemplo supremo.Podemos, dessa forma, surpreender ao vivo os segredos, afinal de contas muitosimples, do seu estilo. Assim, por exemplo, o caboclo que deseja saber a significação do‘famigerado’:

- Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é : fasmigerado... faz-me-gerado... falmis-geraldo... familhasgerado...?

Caso ainda mais expressivo é o da menina que dizia : “Alturas de urubuir”, o que significa,segundo esclarece o Autor, ‘altura de urubu não ir”. A idade literária relativamente primitiva destescontos admite, ainda, não somente as glosas do Autor, como no caso, mas também, a inegávelsimplicidade das invenções:’ Ela beladormeceu?’ Mais um passo, e alcançamos, para além dajogralidade puramente vocabular, que será uma das constantes mais salientes desse estilo, ajogralidade narrativa: O Aldaz navegante, que foi descobrir os outros lugares valetudinário. Ele foinum navio também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares em um longe, e o mar. O Aldaz naveganteestava com saudade, antes da mãe dele, dos irmãos, do pai. Ele não chorava. Ele precisavarespectivo de ir. Disse’. Se um dos personagens diz a outro : ‘ você é uma analfabetinha aldaz, ointerlocutor responde: Falsa a beatinha é tu. Até aqui, são trechos de diálogos típicos do Sr.Guimarães Rosa. Mas é possível lembrar, igualmente, como em Grande Sertão: Veredas, excertos dasua própria prosa narrativa (embora através de um protagonista):

‘- Parecer-se cada um de nós com determinado bicho, relembrar seu fácies, é fato. Constato-o, apenas; longe de mim puxa à bimbalha temas de metempsicose ou teorias biogenéricas. De ummestre, aliás, na ciência de Lavater, eu me inteirara no assunto. Que acha? Com caras e cabeçasovinos ou equinas, por exemplo, basta-lhe relancear a multidão ou atentar no conhecidos, parareconhecer que os há, muitos. Meu sósia inferior na escala era, porém – a onça. Confirmei-me disso.E então, eu teria que, após dissociá-los meticulosamente,aprender a não ver, no espelho, os traçosque em mim recordavam o grande felino. Atirei-me a tanto...’”

15. IEB JGR-R 7,40 – Título: Primeiras estórias – Autor: João Camillo de OliveiraTorres – Periódico: Jornal do Dia – Local e data: Rio Grande do Sul, BRA,12/01/1963. Duplicata de IEB JGR-R 7,01.

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16. IEB JGR-R 7,41 – Título: “1962” – Autor: Raquel de Queiroz – Periódico: OCruzeiro – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 19/01/1963.

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17. IEB JGR-R 7,43 – Título: Substância de Guimarães Rosa – Autor: SebastiãoUchoa Leite – Periódico: Revista de Cultura da Universidade de Recife – Local edata: Recife, PE, BRA, 06/07/1963. Duplicata do texto IEB JGR-R 7,01.

18. IEB JGR-R 7,44 – Título: João Guimarães Rosa e as Primeiras Estórias –Autor: Eduardo Prado Vieira – Periódico Revista Leitura – Local e data: Rio deJaneiro, RJ, BRA, Dez. 1962.

19. IEB JGR-R 7,46 – Título: Painel Literário – Autor: Raul Lima – Periódico:Revista Painel Brasileiro no. 42 – Local e data: s.l., 1962.

PRIMEIRAS ESTÓRIAS. João Guimarães Rosa é o que se pode considerar um importantefenômeno no momento literário brasileiro. Sua estreia com Sagarana foi um acontecimento algorevolucionário. Sua prosa passou a ser intensamente discutida. Seus livros posteriores, não tendo amesma acessibilidade – que naquele romance era, aliás, também limitada – chegaram a ter o seuvalor negado, contestado.

É que Guimarães Rosa é um inovador. Inovador não somente em estilo, em concepções,mas sobretudo um inovador no emprego da linguagem autêntica do povo sertanejo, a qual ele

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apresenta elaborada, enriquecida, submetida a um processo que é seu, ao mesmo tempo deobservador fiel e erudito.Tendo ultimamente escrito uma série de contos, reuniu-a em novo livro sobre o Título PrimeirasEstórias. O sumo, o denso leite humano, umedece-lhes as páginas.

20. IEB JGR-R 7,47 – Título: Guimarães Rosa em veredas da invenção – Autor:Valdemar Cavalcanti – Periódico: O Jornal – Jornal literário – Local e data: s.l.,23/12/1962.

CONTOS – Fazendo, há dias, uma pequena relação dos livros importantes do ano – livrosque são, digamos logo, ótimos presentes de Natal – inclui, necessariamente, o Primeiras Estórias, deGuimarães Rosa. Temos ali, neste conjunto de 21 histórias curtas, o contista de Sagarana e Corpo deBaile no melhor de sua forma, renovado e maduro na intenção e na execução, fixando fatos,episódios e figuras humanas com o máximo de beleza excepcional, com riqueza de cor e vida. Não éde se destacar uma ou algumas de suas histórias: todas são do mesmo timbre, o frescor de invençãoé o mesmo em todas. Há um elemento mágico na prosa de GR: o seu encanto barroco personalíssimo–no melhor sentido que se possa empregar a expressão. Quando ele fala de gente, ou de bichos, oude árvores, ou de coisas, fala sempre com uma paixão minuciosa e paciente, dizendo tudo o que éessencial, revelando a face autêntica com a sua arte inimitável.

21. IEB JGR-R 7,48 – Título: Primeiras Estórias – Autor: J. C. O. T. – Periódico:O Diário – Local e data: Belo Horizonte, MG, BRA, 22/12/1962. Duplicata do textoIEB JGR-R 7,01.

22. IEB JGR-R 7,49 – Título: Primeiras Estórias – Autor: Stella Leonardos –Periódico: Diário de Notícias – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 09/12/1962.

Usando do estilo de Guimarães Rosa gostaríamos de dizer-lhe de viva letra:- Queremos agradecer, muito no alegre, ao muitamente escritor suas Primeiras Estórias – um

constado de descrevivências ora milmaravilhosas ora espantantes. Se belas, se! Vinte e uma estóriassão, de tons castiços e porvirem, (havidos e vindouros melhor dito) cujas convidam à leitura, o quefácil se faz, no deslumbrável.‘Entrequanto” à elas.

O livro, interessantíssima edição de José Olímpio nos desenhos de Luis Jardim, abre com Asmargens da Alegria perspectivas de olhos-meninos.

De O Menino que vai passar ‘no lugar onde se conntruía a grande cidade’. Viagemproduzida no pequeno, poeta inato, ‘em casa de sonho’ (toda essa mescla de busca, êxtase, e aqueledoer súbita ‘circuntristeza’, aquela alegria gratuita do belo revelado: o imponente, colorido peru nomeio do terreiro; a luzinha verde do primeiro vagalume. Sempre que O Menino aparece ( e torna aaparecer em Nenhum, Nenhuma, perguntando : ‘- Ela beladormeceu?’) é numa atmosfera deestranha beleza. E Os Cimos (Ei-lo, outra vez, o Menino bem-chegado à nossa simpatia, às voltascom um comovente macaquinho de brinquedo e um tucano ‘senhorzinho vermelho’ e madrugadorfecha o livro : ‘sorriso fechado: sorrisos e enigmas, seus.’

Aliás, sobre crianças, há mais três contos, eminentemente psicológicos e dos melhores queconhecemos em nossa literatura: A Menina de Lá mais poesia, passarinho-verde pensamento;Pirlimpsiquice inesquecível, de ‘personagens personificantes, de morrer de rir; Partida do audaznavegante da Brejeirinha que ‘andorinhava’, da Pele ‘diligentil’, de Ciganinha e Zito da algumaoutra coisa se agitando neles, confusa – ‘assim rosa-mor espinhos-saudade’.

Linguagem tão de fabulável e de novo-supresa a de Guimarães Rosa como se ele ‘apanhassecom o olhar cada sílaba do horizonte’ expressão. Evidentemente não nos custaria estudá-la nalgunsaspectos inconfundíveis. Ao contrário: Guimarães Rosa é dos autores que mais tentam aos que

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gostam de semântica. Mas por que desvendar indescobertos rumos quando há sensibilidade de sobrano leitor inteligente?

Muitas estórias dramáticas, de magistral emprevisto : Famigerado, Soroco sua mãe sua filha,Os irmãos Dagobé Fatalidade A Terceira margem do rio toca terra-assombração e O Cavalo quebebia cerveja e A Benfazeja raiam pelo trágico. Há O Espelho reflexos metafísicos. E páginas domelhor grotesco (Darandina) sem falar no velho quixotesco de Taratão,meu patrão.

Várias nuances temáticas em Primeiras Estórias, inclusive de encantamento. Aquele moçoUm Moço muito branco: ‘Tão branquicelo, senão que de um branco leve, semidourado de luz;figurando ter por dentro da pele uma segunda claridade.’ Aquele. Nada e a nossa condição do TioMan’Antonio que ‘podia ter sido velho rei ou príncipe mais moço, nas futuras estórias de fada’.‘Sim, se os cimos – onde a montanha abre asas – e as infernas grotas abismáticas, profundíssimas.Tanto contemplava-os, feito se, a elas, algo, algum modo, de si, votivo, o melhor, ofertasse:esperança e expiação, sacrifícios, esforços – à flor. Seria, por isso, um dia topasse, ao favorável, pelotributo gratos, o Rei dos Montes ou o Rei das Grotas – que de tudo há e tudo a gente encontra?’

Há, também, estórias irreais mas de tocante lirismo. Luas de Mel, jamais ideia mesmice,jamais ‘nãoeza’. Sequencia aventura da valorosa vaquinha pitanga. E, em especial, Substânciaromance de Sionésio e Maria Exita dos ‘olhos sacis’, quebradora, à mão, de polvinho nas lajes:‘"Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar? Você, comigo, vem e vai?"Disse, e viu. O polvilho, coisa sem fim. Ela tinha respondido:

- "Vou, demais". Desatou um sorriso. Ele nem viu. Estavam lado a lado, olhavam para afrente. Nem viam a sombra da Nhatiaga, que quieta e calada, lá, no espaço do dia.

Sionésio e Maria Exita - a meios-olhos, perante o refulgir, o todo branco. Acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Só o um-e-outra, um emsi-juntos,o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamor. Alvor. Avançavam, parados,dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássaros.’

Do João Guimarães Rosa de Primeiras Estórias se pode dizer, sobretudo, que é escritorcoraçãomente. Guimarães Rosa da arraigada ternura humana, cheirando ‘ a vem de verde e a rosa,mais meigo que as rosas cheiram, mais grave.’

23. IEB JGR-R 7,50 – Cartão de boas festas de Flavia, da Enciclopédia Infantil:Andorinha-da-casa.

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24. IEB JGR-R 7,54 – Título: ‘Primeiras Estórias’ Guimarães Rosa – Autor:Christiano Fraga – Periódico: O diário – Local e data: Vitória, ES, BRA,06/12/1962.

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Desde 1946, no Espírito Santo, começaram a ser lidos e comentados os livros de Guimarães Rosa,escritor que logo adquiriu renome universal. (...)Acaba de sair a edição brasileira de PrimeirasEstórias, cujo êxito começa a ser divulgado pela crítica. A editora José Olympio esmerou-se naapresentação material, aspecto artístico, impressão, papel, desenhos. São 21 contos breves, narradosno inimitável jeito rosiano, versando temas geralmente sertanejos, onde tomam a palavra osrespectivos personagens. Parece-nos por vezes que o próprio Riobaldo, saiu do Grande Sertão, paranos vir contar mais estas estórias. O amor ao sertão brasileiro está no sangue desse novelista:chegado à possibilidade de Embaixador, especializou-se em questões de fronteiras, o que lhe permiteestar sempre varando florestas, rios e montanhas e tratando com populações agrestes e remotas.Como em todos os trabalhos de Guimarães Rosa, aqui vamos de surpresa em surpresa, desde aoriginalidade do tema, desde o modo de tratá-lo, até o extraordinário desfecho. São temasimprevistos, casos estranhos,mas que a outros passam despercebidos e se desvaneceriam no nada, senão fossem surpreendidos pela visada do autor, sempre atento em registrá-los e tazê-los adivinhadosà curiosidade humana.São breves contos mas não contos ligeiros, ricos de mensagens espirituais e sociais, cujainterpretação aguça de tal modo a imaginação do leitor, que este se julga capaz de desenvolvê-losem outras tantas novelas. Cada estória merece um estudo à parte.Nestas cenas de Sorôco sua mãe sua filha, em simples palavras pitorescas mas de intensa expressão,surgem, evidentes, situações dramáticas desses treis graus de loucura, que não encontraríamos tãobem caracterizados em qualquer tratado de psiquiatria.A terceira margem do rio corresponde ao ‘outro lado do mistério’, para empregarmos a expressão deMachado de Assis, o que é revelado no último lance da narrativa. A estranheza mesma de cada umadessas estórias, mostram que seus lances mais poderosos se estruturam sobre fatos reais. Aimaginação do escritor vem apenas realçar o valor humano de cada um desses fatos, ora parasimplesmente deleitar a curiosidade do leitor, ora para levá-lo a meditar sobre o segredo dosdestinos. Os artistas que não souberam compreender e transmitir as originais e inesgotáveismensagens da vida real, fugiram para concepções estéreis e estrambóticas do abstrato.Nenhum nenhuma suavemente expressando o extraordinário esforço de arrancar aos longes dopassado uma vivência da infância : sem a ‘tournure’ rosiana seria apenas um desfiar de reticências. Eo ciúme infantil ali tão surpreendido e revelado, sem recorrer a qualquer mágica psicanalítica.Sequencia , com tal solicitude narrativa e esse maravilhoso desfecho.Enfim, cada qual desses contos muito se teria a dizer, e sempre coisas diferentes, conforme aimpressão ou a direção do estudo de cada leitor. É puro simplismo falar de crítica e nova crítica. Poisa crítica é arte-ciência em constante evolução , e sempre submetida a súbitos avanços e renovadosesforços de expressão diante de certos grandes sucessos literários, como acontece, por exemplo, coma produção de Guimarães Rosa, que não pode ser comparada a qualquer outro escritor. Para o leitorsobram ali novas e diferentes revelações. A críticos editores e leitores bastaria dizer: acaba de sairum novo livro de Guimarães Rosa. Tudo mais seriam alvíssaras para todos os espíritos.

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25. IEB JGR-R 7,57 – Título: No Praia clube de Araruama (II) – Autor: MarcosAndré – Periódico: O Globo – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA. 2610/1962.

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26. IEBJGR-R 7,58 – Título: Best Sellers da quinzena – Autor: Marcos André –Periódico: O Globo – Local e Data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 26/10/1962.Duplicatado texto IEB JGR-R 7,57.

27. IEB JGR-R 7,59 – Título: O homem e a fábula: Algumas ideias confusas –Autor: José Carlos Oliveira – Periódico: O Globo – Local e data: Rio de Janeiro,RJ, BRA, 22/11/1962.

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28. IEB JGR-R 7,62 – Título: O Mago Guimarães Rosa – Autor: Luiz M.Rodrigues Filho - Periódico: Comércio da Franca – Diário Matutino – Local edata: Franca, SP, BRA, 20/11/1962.

Fazia tempo, muito tempo, que não me encontrava com o Guimarães Rosa. Desde Sagarana.Confesso que sua sintaxe me assustava um tanto, ainda mais agora, que a sabia apurada, no máximode estilização. Pois estes dias me resolvi a enfrentar o mineiro. Li o último volume que publicou –Primeiras Estórias. Não simpatizo muito com isso de estórias, mas quem ler o livro semconhecimento do autor é que vai ficar estupefacto. Afinal, estória é nome consagrado, mas não o sãoe nunca o serão ‘entrequanto’, ‘invisto’ (não visto), poetista. Sem falar da sintaxe sua, inimitável‘copyright’ de Guimarães Rosa. É um estilizador da linguagem dos campos das Gerais como Mariode Andrade foi de toda a região brasileira, com seus tipismos, seus vários modos de ser e de dizer.Pode-se, claro, não concordar com muitas de suas soluções, achar inclusive muita coisa estapafúrdia,mas ninguém pode negar a grande contribuição estilística que Mario de Andrade e Guimarães Rosatrouxeram às nossas letras. Não são (este mais do que o paulista) escritores para contactorápido,corrente de repouso e refrigério. Porque de vez em quando algo surge que nos obriga a sustara leitura e a decifrar o negócio . Mas o homem tem, no respeitante à língua, algumas soluçõesinteressantes: quando, por exemplo, nos sai com um ‘diligentil’ (tentava audar diligentil), ondevemos a aglutinações de diligente e gentil. Ou quando nos fala que ele ‘continuava descrevivendo-as’ (descrever e viver, ao mesmo tempo).

Muitos acharão essas coisas desassisadas, originalidade forçada e abusiva. Mas ninguémficará imune ao sentimento poético que nos comunicam imagens novas, intensamente lírica,distribuídas pelo autor em seus contos. Nhinhinha, a menina de lá do conto do mesmo nome, é‘inábil como uma flor’. E a mesma chegou a fechar os olhos ‘no súbito adormecer das andorinhas’.A personalidade estilística do autor estará mais em certas expressões pitorescas do que emarrevezamentos sintáticos. Expressões como eram dois irmãos ‘absolutamente facinoras’, o que dizsuficientemente de sua maldade. Falando de um homem muito idoso, vem com esta: ‘estará lá apósde velho’. São achados excelentes, novos e sugestivos, marca de um autêntico escritor, a abrir o seupróprio caminho, desajudado de cômodas influências.

Bem. Mas também não está certo reduzir Guimarães Rosa a simples achador de girossintáticos novos e expressões estuantes de pitoresco. Isso vale muito, mas não é tudo, nem o maisimportante do autor. O que urge é reconhecer a altíssima arte de contista, o fabuloso ( não há outrotermo) captador da vida humilde e sensível. No livro desfilam personagens toscos apanhados comgrande exatidão em sua ambiência, de que resultam histórias (ou estórias) como ‘Sorôco,sua mãe,sua filha”, “Os irmãos Dagobé”, e essa obra-prima de simbolismo e sugestão, envolta em densomistério, que é incontestavelmente ‘a Terceira margem Don rio”. Mas onde o narrador excele emqualidades elevadas ao mais fino lirismo é quando trata de crianças. Vale a pena desbastar o cipoalda sintaxe rosiana para entrar em contacto com essas duas joias de intacta pureza que são ‘A meninade lá’ e ‘ Partida do audaz navegante’. Ai se encontra a infância em toda sua selvática autenticidade,em todo o seu ‘nonsense’ e todo o seu encanto.

Não há dúvida: Primeiras Estórias é um dos maiores lançamentos do ano. Trata-se de obrade seiva e do maravilhamento, de ficção e de poesia. É o escritor deslumbrado pelas palavras, mastambém é amoroso perscrutador do mistério da vida e do amor.

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29. IEB JGR-R 7,64 – Título: Primeiras Estórias (Parte I) – Autor: NogueiraMoutinho – Periódico: Folha de São Paulo – Local e data: São Paulo, SP, BRA,25/11/1962

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30. IEB JGR-R 7,65 – Título: Primeiras Estórias (Parte II) – Autor: NogueiraMoutinho – Periódico: Folha de São Paulo – Local e data: São Paulo, SP, BRA,25/11/1962.

Se um critério de julgamento quanto à maior ou menos qualidade dessas estórias deGuimarães Rosa fosse aceitável, eu diria que o primeiro impacto sofrido pelo leitor na leitura dolivro sucede no terceiro capítulo, Sorôco sua mãe sua filha. Os dois primeiros temas tratados, aevocação da reminiscência infantil e o relato de um episódio de covardia não chegam a dar a medidareal de Guimarães Rosa. Seriam grandes estórias, todavia, se não levassem o nome do escritor. Este,porém, só se revela plenamente a partir do referido Sorôco, relato em que o grotesco se tornagrandioso,amargo, dolorido.

Depois, o leitor é assaltado pelo maravilhoso em A menina de lá, um dos ápices do volume,das mais belas paginas de Guimarães Rosa, o irracional tomando violentamente a dianteira. Oepisódio é quase a reedição cabocla de uma das sequencias impressionantes da Dolce Vita de Fellini,embora a cupidez dos pais da menina milagrosa, no conto, não atinja os limites com que éapresentada no filme.

O maravilhoso em Um moço muito branco, o qual cintilava ausente. A santidade, agrandeza do despojamento, os seres tocados pela loucura, pela exceção, eis os temas mais do agradode Guimarães Rosa, eis os momentos em que a evocação de escritor encontra os veios mais férteis efecundos da criação literária.

Em A Benfazeja, reencontramos o mesmo clima de tragédia agreste, primitiva, que há emSorôco. A requintada técnica de escritor de Guimarães Rosa o torna um narrador perfeito,principalmente nesses relatos, nos quais nem uma só vez ele interfere alertando o leitor às intençõesda estória ou forçando efeitos.

A matéria de que os relatos são construídos é que é comovente, trágica, alegre, dramática.No artista Guimarães Rosa, verifica-se o ‘longo esquecimento’ que Eliot exige do poeta. Ele limita-se a criar através da linguagem. E, assim fazendo, atinge um plano de absoluta pureza poética.

Nenhum nenhuma é uma estória barroca, na qual os temas do amor, do tempo perdido, damemória da infância se entrelaçam num clima de supra-realismo. O mesmo clima reaparece em OEspelho e em Nada e a nossa condição.

Essas três estórias sutilmente trazem a revelação de mistérios destinada a não sei queiniciação.

“Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida?Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.” Nessa afirmação feita pelo narradorou por um dos vários narradores de Primeiras Estórias, encontra-se, talvez, a chave não só do livro,mas de toda a obra restante do autor.

A Terceira Margem do Rio emana de outra vertente da sensibilidade criadora de GuimarãesRosa, que talvez pudesse ser caracterizada como recusa ao banal cotidiano. A Terceira Margem seriaa margem real, a margem transcendente às duas que firmemente acolhem o navegante para devolvê-lo às contradições pobres do cotidiano sem grandeza.

Finalmente, e repetindo o que já disse no artigo anterior, a temática amorosa é versada emalguns dos mais bem realizados contos desse livro, com uma grandeza poética raramente atingidapelos nossos romancistas.

O rapaz e a moça de Sequencia, os noivos de Luas de Mel, Sionésio e Maria Exita deSubstância, o moço e a moça de Nenhum nenhuma serão para sempre figuras exemplares devivencia amorosa, na literatura brasileira. E, sobretudo, ressalta neste livro de Guimarães Rosa a suaprofunda ternura dos humildes, pelos pobres, pelas crianças, pelos animais. Há um halo de grandezaenvolvendo certas personagens das estórias, que revela o profundo respeito do autor pela pessoahumana.

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O agreste é seu campo de eleição. Mas o agreste sem monotonia, sem banalidade.Penetrando a fundo no drama do homem, Guimarães Rosa sabe discernir e demonstrar, até nas suasmais broncas personagens, a grandeza da criatura humana.

31. IEB JGR-R 7,66 –Título: Estórias – Autor: J. H. Pires – Periódico: Diário danoite – Local e data: São Paulo, SP, BRA, 14/11/1962.

Não vamos falar por completo das Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa, que naverdade são as últimas (últimas no sentido de mais recentes, que muitas últimas ainda ele nos dará).Vamos apenas registrar para o leitor o aparecimento desse novo livro do autor de Grande Sertão:Veredas, lançamento da Livraria José Olimpio, capa e desenhos (desenhos à bessa) de Luís Jardim.Ao contrário dos outros, este é um livro pequeno, em pequeno formato, com pouco mais de cento esetenta páginas. As estórias, porém, são vinte e uma. O que mostra que são, também, pequenasestórias. Mas pequenas somente na forma, que por dentro elas se alongam, se alargam e se afundam.A magia de Guimarães Rosa está agora sendo aplicada neste sentido.

Basta isso, aliás, para mostrar que não se pode falar por completo deste livro em apenas umacoluninha de comentário. Seja o que Deus quiser. A verdade é que não podemos deixar o leitor semalguns toques informativos sobre mais esta inventiva do mago do São Francisco. Há quem não gostedessas estórias, que são muita invenção. Mas isso acontece por não perceberem que a invenção não émais que a arte literária de passar a realidade a limpo.

Guimarães Rosa, neste pequeno livro, dá um passo de gigante em seu processo inventivo. Játivemos ocasião de assinalar que há nele todo um desenrolar de fases, todo um desenvolvimentoliterário, que vai de Sagarana a Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. Pensávamos que oprocesso estava completo, e vem agora este livrinho, mostrar que nada disso. Há ainda muito o queesperar.

Primeiras Estórias é a aplicação da linguagem transfigurada do São Francisco a toda ahumanidade. É a universalização do dialeto. A prova provada de que a revolução da sintaxe, de quefalou Osorio Alves de Castro, o correntinho de Porto Calendário (que por comodidade chamamos deurucuiano) não é um motim local, mas uma rebelião nacional. Basta ver como Guimarães Rosaaplica a sua linguagem sertaneja nestas estórias para tratar de casos de introversão e de extroversão,estes últimos na visagem do largo mundo. E com firmeza de piloto.

32. IEB JGR-R 7,68 – Título: Momento Cultural – Autor: Carlos Pontes –Periódico: O Povo – Local e data: Fortaleza, CE, 10/11/1962.

Guimarães Rosa e Paulo Rónai – ao publicar na revista Comentário, número 3, um doscontos do novo livro de Guimarães Rosa, Primeiras Estórias, o escritor Paulo Rónai assim semanifestou sobre o criador de Riobaldo e Diadorim: ‘Não se trata, como se poderia julgar pelo título,Primeiras Estórias, de escritos da mocidade ou de trabalhos anteriores aos volumes já publicados doescritor, mas sim da primeira leva dos produtos de sua fase mais nova. Nele encontramos o poderosonovelista de Sagarana e Corpo de Baile, o romancista audaz de Grande Sertão: Veredas,perfeitamente à vontade em mais um gênero, o da ‘short story’, a que soube dar, dentro de umavariedade surpreedente significações e perspectivas profundas. No momento em que para sua obraconverge a atenção da mais categorizada crítica internacional e se anunciam traduções de sés livrosem várias línguas, o volume novo há de confirmar sua posição única em nossa literatura moderna.De mostrar também quão errados andam os que veem no inventor um estilo pessoal: na verdadenGle a expressão e o conteúdo, inseparáveis e igualmente revolucionários, são modalidades de umavisão mítica, pela qual episódios miúdos e corriqueiros se transformam em acontecimentos derelevo, de sentido múltiplo.Para remessa de livros e de informações culturais: redação de O Povo.

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33. IEB JGR-R 7,70 – Título: Três lançamentos (trecho) – Autor: GilbertoCavalcanti – Periódico: Gazeta de Alagoas – Local e data: Alagoas, BR,11/11/1962.

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34. IEB JGR-R 7,71 – Título: Guimarães Rosa e Paulo Rónai – Autor: CarlosPontes – Periódico: Correio Paulistano – Local e data: São Paulo, SP, BRA,25/11/1962. Duplicata do texto IEB JGR-R 7,68.

35. IEB JGR-R 7,72 – Título: Bilhete a Guimarães Rosa – Autor: Eneida –Periódico: Diário de Notícias – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 01/11/1962.

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36. IEB JGR-R 7,85 – Título: A Semana e os livros – Autor: Rolmes Barbosa –Periódico: O Estado de São Paulo – Local e data: São Paulo, SP, BRA, 13/10/1962.

Seria ocioso ressaltar a importância da publicação de Primeiras Estórias de J. Guimarães Rosa.O volume enfeixa narrativas que constituem, em conjunto, um tour-de-force de malabarismolinguístico. Ao mesmo tempo, representam autenticas lições da arte de transposição literária detemas, tipos e modismos regionais brasileiros, expostos nos seus aspectos universais. Além disso,parece-nos desnecessário, também, realçar a riqueza do acervo de ‘causos’ aqui referidos, da galeriade tipos e o colorido das tradições reunidos nestas páginas com extraordinária segurança na escolhados ângulos, no ‘corte’ das narrativas e na ironia das situações apresentadas. Com estas ‘estórias’voltamos, de novo, ao fabuloso mundo das Gerais, ao mundo de Grande Sertão: Veredas e de Corpode Baile, com sua variada fauna humana, seus sertanejos, vaqueiros, ‘iluminados’, cangaceiros,padres, fazendeiros, mulheres-damas, tropeiros mendigos de beira-caminho, cantadores de feira,moleques intrigantes, matadores profissionais, sinhás donas, etc, que se movimentam impelidos pelovirtuosismo do ficcionista. Por outro lado, não é possível deixar de aludir, aqui, à arte de composiçãode ‘mestre João’. Como sempre, o ‘tratamento’ estilístico de cada uma das narrativas é deexcepcional importância, fazendo parte integrante da própria concepção e da caracterização dosprotagonistas. De fato, a linguagem toma corpo e se desenvolve com a ação. Expressivo exemplotemo-lo no conto Os irmãos Dagobé, essa pequena joia em que somos apresentados aos ‘quatroirmãos absolutamente fascinoras’. Nesta página, a inversão das categorias gramaticais, os modismosda gente do sertão de Minas, a utilização de onomatopeias cada qual mais sonora, formamcontraponto com o ritmo da narrativa propriamente dita, enervando-a de parágrafo em paragrafo, docomeço à sequencia do velório e à da marcha para o cemitério. A essa altura, porém, o ritmo dalinguagem e da ação se fundem numa sutil reviravolta. O compasso torna-se, num instante, maislento, a fim de, com certeza, dar ao leitor tempo de ganhar fôlego para a gargalhada do desfecho. Éuma página de mestre, como todas, aliás, as coligidas neste livro. Um reparo, apenas a este de ordemsecundária: é de lamentar a falta de nota de apresentação no que diz respeito ao sentido do título dovolume. O público em geral e os estudiosos da obra do escritor terão motivo paracisma: PrimeirasEstórias? Serão estes os primeiros contos de Guimarães Rosa? Anteriores aos de Sagarana? Caberia,neste pormenor, uma explicação na ‘orelha’ do volume – explicação justificável em se tratando deautor de tamanha importância na história da literatura brasileira dos dias atuais. É o que teremos,com certeza, nas futuras edições do livro. (Editora José Olimpio. Capa e desenhos de Luiz Jardim).

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37. IEB JGR-R 7,88 – Título: Guimarães Rosa. O mesmo – Autor: Helle Alves –Periódico: Diário de São Paulo – Local e data: São Paulo, SP, BRA, 07/10/1962.

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38. IEB JGR-R 7,100 – Título: Primeiras Estórias – Autor: Walmir Ayala –Periódico: Jornal do Comércio – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA,02/10/1962.

Guimarães Rosa volta à praça surpreendentemente. E nos dando a lição de que, comfidelidade à sua linguagem, logo seremos dono dela. E se é difícil? Difícil é. Pois não regate-a onovo em instante nenhum, e cria um “falar” que nos comunica a entonação certa da região onde éfalado; restitui-nos aquele viço popular da formação de palavras a partir de outras, fundindo duasnuma só, e o faz de forma a passar logo para os dicionários, isto é, certo, científico, inegável.Palavras como: ‘diligentil’, ‘brumava’, se multiplicam, mas todas perdidas (ou achadas) numdiscurso de alta poesia em rigorosa prosa, num constante depoimento humano que nos conduz aoinevitável suspiro de concordância e pena:

“Mas, a mãe, sendo só a alegria de momentos. Soubesse que um dia a mãe tinha de adoecer,então teria ficado sempre junto dela, espiando para ela, com força, sabendo muito que estava e queespiava com tanta força, ah.” Depois de tanto atravessar suas selvas, seguimos enfim, quase emtotalidade, apreciar o frescor das águas que nos derrama. E é assim, como um verídico hausto deamor que nos chega. Saber contar uma história é assunto superado em Guimarães Rosa. Isto aindaadvogar mais a seu favor, no terreno de lhe acusarem de complicado, porque a ‘estória’ sobrenada àexperiência, ao laboratório, e nos fica o seu forte incenso humano, seu sangue e sua doçura de florsilvestre, impregnando nosso atribulado instante:

“De repente, a velha se desapareceu do braço de Soroco, foi se sentar no degrau daescadinha do carro. -"Ela não faz nada, seo Agente... – a voz do Soroco estava muito branda: - Elanão acode quando a gente chama...” A moça, aí, tornou a cantar, virada para, o povo, o ao ar, a cara.dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outrorasgrandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimentomuito antigo - um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, elapegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia.Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.”

Seus personagens são sempre simples, os que nada leram, nada mais ouviram falar do quede sucedimento espontâneo e mágico da vida.Geralmente em sertões que são dissimuladas Bagdás.Delicia-se no entrosamento das onomatopeias para discriminar o instante ou o animal. Tem apermanente visão da paisagem, dando-lhe alma, comprometendo a gente com a verdura e opanorama. Descreve com uma riqueza em que a imaginação vem servida de um caprichosovocabulário, trançando verdadeiras filigramas plásticas.

“Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as árvores da mata. Operu, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou,fazendo roda: o rapar das asas no chão brusco, rijo se proclamara. Grugulejou, sacudindo o abotoadogrosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele,completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto - o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, umtransbordamento. Sua ríspida grandeza tonltriante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era dese tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruzlou outro gluglo. O menino riu, com todo ocoração. Mas só bis-viu. Já o chamavam, para o passeio.”

O sentido de acesso de Guimarães Rosa ao mundo que o rodeia é de extremada inocência.Pega pelo sentido da criança, toda a matória de que necessita. Fala preferencialmente de crianças eao falar delas vai escorrendo um pensamento multifacetado e inventivo, de bom pueril. Faz suasabedoria do arrepanhado de sensações de quem vê o mundo pela primeira vez, acrescenta a istouma cultura que apenas sedimenta as impressões e as legaliza. Pesquisa a linguagem infantil (vide oconto “A menina de lá”) ressaltando a pureza poética dos seus vestígios, fazendo disso acertos parasempre.

Sobretudo, em cada conto começado temos uma história perfeita, sem palavra a mais, quenos dá, acima do conflito sempre positivo pelo movimento emocional de rara beleza e humanidadeem que se interpreta, uma definição completamente nova de sombra, do raio, do animal, do verdor,da água, e de mil elementos naturais pelos quais passamos cotidianamente e que nossos olhos nãomais distinguem sob o pó do hábito e de nossa nublada solidão. Então temos em Guimarães Rosa omilagre de ver-o-mundo, nisto reside seu dom efetivamente divino: ele cria inelutavelmente a partir

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de um material estritamente seu, inimitável. Como contista só lhe encontro paralelo em ClariceLispector, diferentemente, é claro. Clarice é menos panorâmica, é mais restritiva e febril em suapaixão penumbrosa. Guimarães Rosa faz um exercício rente permanente de saltimbanco e nostransmite lugares inesquecíveis, coloca as pessoas em paisagens certas, reflete costumes tribais deextrema fatalidade, tem muito sol, e uma saudade indefinível em cada alma posta ali em terreiros,matagais, ambientes de intima pobreza. A morte sobrevoa suas histórias-estórias, não podia ser deoutra forma em se tratando de um poeta de raro acento. Mas há uma contante para a vida queemoldura seus enredos: para o menino que viajou enquanto a mãe sarava, e que ia perseguido pelaideia dos tucanos, disso tudo criando uma fábula dramática e forte, para este menino ele reserva afrase final do conto assim: “Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida”; para o outromenino num simples passeio onde vê tantas coisas, inclusive a estreanheza de um peru e sua morte,um menino perplexo diante das coisas inexplicáveis para um menino, para este menino ele reservaoutra frase final, ou seja: “Era, outra vez em quando, a Alegria”; para Sorôco, acabado de levar a umtrem de partida a filha e a mãe, loucas, o contista reserva aquele abrigo:” A gente estava levandoagora o Soroco para a casa dele, de verdade. A ,gente, com ele, ia até aonde que ia aquelacantiga.”Assim prossegue, abraçando todos os personagens numa emoção de lágrimas, este grandeprosador, sobre o qual é muito perigoso falar com armas de técnica literária, de estilística ou coisasmais. Um prosador para estar nas escolas e na afeição singela do povo, pois o povo as que ele quercomunicar. Difícil, já o dissemos no princípio deste artigo. Mas como atingirmos esta outrafacilidade de sua música, se não nos debatermos no difícil de sua cartilha.

E depois, aprendidos em ler, como nos são dadas delícias com seu desenho primitivo egritante. Quantos revoos para nossa alma vazia, quanta cor para nossa solidão brumosa, quanto amorpara o nosso momento de apatia.

Prosseguimos o livro: de repente se adensa em considerações sobre o espelho, bem menoseficientes, a meu ver, do que as considerações sobre a vaquinha fugida. Mas é no Espelho que vamossurpreender por um momento a exigentíssima oficina de Guimarães Rosa. Ao confessar-se umperquiridor, surpreendido num determinado ângulo de um espelho, e desconhecendo-se repelindo-sesob esta visão, ele começa a praticar o seu ‘urgir científicos de surpreender outros estágios defisionomia, então: Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes deesguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luzde-repente acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma Inembotável paciência.Mirava-me, também, em marcados momentos - de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado, extremaalegria ou tristeza. Sobreabriam-se-me enigmas. Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhorenfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e osenhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mesmo. Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos dagente não têm fim.”

Eis o homem. Astucioso, incansável, lúcido. Com as palavras o mesmo. Sobretudo sabedorde que os olhos da gente não tem fim. Os olhos de sua inteligência literária são dessa natureza:indefinidos. Mergulhadores incansáveis de um caos enumerável, ordenadores de sequencias latentesde gramática, simplificador de complexidades. Que mais dizer de um alquimista tão inevitável?Nada. Apenas convidar, insistir, impelir, a ler seus contos de “primeiras estórias” onde encontramosos mais belos momentos desse gênero literário no Brasil. E podemos entender melhor o que é onovo. E a quem isso não interessar He servirá o eterno, inerente e claro na narrativa de JoãoGuimarães Rosa.

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39. IEB JGR-R 7,102 – Título: Primeiras Estórias: Novo livro de Guimarães Rosa– Autor: Anônimo – Periódico: Tribuna de Petrópolis – Local e data: Petrópolis,RJ, BRA, 02/10/1962.

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40. IEB JGR-R 7,103 – Título: Primeiras estórias – Autor: Anônimo – Periódico:Jornal de Letras – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 02/10/1962.

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41. IEB JGR-R 7,106 – Título: Guimarães Rosa conta as suas Primeiras estórias –Autor: Carlos Osmar – Periódico: Gazeta de notícias – Local e data: Rio deJaneiro, RJ, BRA, 30/09/1962.

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42. IEB JGR-R 7,111 – Título: Carta a Guimarães Rosa – Autor: Gilberto Amado– Periódico: s.l. – Local e data - Sem local ou data indicados.

Tenho estado engrossed, empenhado na leitura minuciosa do ‘Primeiras estórias’ –documento único do poder criador do maior artista literário do Brasil do nosso tempo, criador deseres humanos, de pessoas vivas, e de uma língua transcendente de todos os cânones usuais,destinada a superexprimir o inexprimível em todas as suas nuanças. A leitura se desdobra em doismovimentos do espírito – o de seguir os personagens na sua apresentação e no seu existir e o deapanhar na linguagem os achados, as novidades, osrequintes e os triunfos da ação ousada epolivante. Dou-me a essa dupla tarefa com inebriamento. A primeira observação que me cumpreregistrar é que em nenhum instante ou em nenhuma instância a linguagem me separa da realidadedo viver das figuras. Obra literária grande – sei bem – é aquela que se relê, que se sente necessidadede ler de novo. O romance policial, mesmo de um Simenon, não demanda releitura – os episódios seesgotam nos entrechos e desenlaces. Não se volta ao já lido; não há interesse que nos empurre paraeles. Acabaram com o ter sido; foram; deram-nos tudo em sendo, como você diria. No seu livro,reler é avançar por novas estradas; é ser atraído por novos encantos. A poesia das suas realizações davida é imensa, e é toda baseada no concreto das coisas, poesia-fato, poesia polpa, poesia de dentro,célula, núcleo, protoplasma, genética, telúrica, anímica. Abro ao acaso: ‘sim, na roça o polvilho sefaz a coisa mais alva; mais que o algodão, a garça, a roupa na corda’. A noção alvura toma corpo emformas varias, alargadoras dela, noção e todas fortes de matéria: o algodão alvorecente no capullo, agarça iridescente no voo, a roupa crua balançando alta sobre o terreiro. Bem haja, Joãozinho, o seupoder. Escrevo às pressas. Reescreverei. Reconversarei. Quando nos reveremos? Para o ano, espero.Receba a expressão do amor autentico, vasto, do fundo submarino da minha alma e ao mesmo tempoescumante em flores de carinho do seu a) Gilberto Amado.

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ANEXO B - ARTIGOS SOBRE INFÂNCIA EM TUTAMÉIA (TERCEIRASESTÓRIAS)

01. IEB JGR-R 12,3,39 – Título: Arte pura – Autor: José Condé – Periódico:Correio da manhã – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 01/08/1967

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02. IEB JGR-R 12,3,40 – Título: Tutaméia – Autor: Eneida – Periódico: Diário denotícias – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 05/08/1967

03. IEB JGR-R 12,03,041 – Título: Tutaméia, tutameemos – Autor: Antonio Olinto– Periódico: O Globo RJ – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA, 26/08/1967.

Acho, sempre achei: a estrutura da crítica não se que afastada da obra que este analisa; àsvezes, quer-se mesmo, estruturalmente, integrada nela. Num abreviado de tudo, crítica seráentendimento, uso da ferramenta sem niilificação da obra, vindo do imaginário ao real, do que nãoexiste ao que existe.Tutaméia, tutameemos, que João Guimarães Rosa chega às terceiras sem passar pelas segundas e,para júbilo derramado, se explica em quatro prefácios. Prefácios? O primeiro? Hei que ele é. Osoutros, mais entrefácios. Contudo, também prefácios do que vem depois. E das palavras de invenção,nascendo do nada, de tudo. As vogais se abraçam a si mesmas, em murucututu do Amazonas, nossons que se repetem repetidos e se fazem coisas através da repetição.

Tutaméia, tutameemos, que as coisas também se fazem palavras e nelas se ganhamcompletitude, voltando ao estado de coisas assim que as palavras se sentem dominadas. Nessainteração, a mais forte novidade de João Guimarães Rosa, cujas palavras saltam. Como peixes?Metáfora velha. As palavrasreminisção

tremulentostrapiiraiauara

sozinhidãodesenredo

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estoriinhanão se sozinham nem se assozinham, juntam-se em sintaxes

novidadeiras como as gentes do Urucuia ou do Do Chico. Vai se falar da vida das palavras, e ei-lasvindo. Vem da distância, dos quandos, da penetração pelo Do Chico, Bahia adentro até os sertõesdos Gerais. Dois séculos? Talvez bem mais, ninharam os de lá as palavras. E de lá teriam elas ficado,mortas, sem saltos, não apanhasse João para sua grande aventura e tresaventura.

Tutameia, tutameemos, em tuta-e-meia, em macuta e meia, em bagatelas, ninharia, quasenada, tudo- nada, que em tutaméia começamos as escaladas e de tutameias arrancamos reminisçõesdo passado e do futuro.

O que antes não fora dito, dito agora está; o que não fora palavra, palavra agora é. Palavraergida de tuta-e-meia, com amor gamado, com detalhação amorosa e paciente. Fazendo em sons esentidos, João Guimarães Rosa também faz o Brasil. Faz um Brasil que hoje é palavra e coisa. Fazuma língua, dá uma língua ao Brasil, uma língua estruturalmente João, estruturalmente Do Chico,síntese fransciscana dos diversos Brasis. Estruturalisticamente, não compomos: decompomos,recompomos. João Guimarães Rosa decompõe, recompõe. Pega palavra, decompõe. Por necessitar,não por curiosidade. Decompõe e recompõe. Entre um e outro agir, a palavra sai não recomposta,mas composta, nova coisa, quididade, objeto, mea omnia, tutameia.

Tutameia, tutameemos, que a expressividade da língua, agora brasileira, ganhou estacadas eestacatos. Não apenas para que os termos engenhados venham ‘tapar um vazio’, mas para que alíngua toda venha esvaziar um cheio e tapar um vazio, substituindo o ido pelo vindo.

Tutameia, tutameemos: no quarto prefácio, subdividido em sete, a história/estória dos livrosrosianos se conta e se planta. Buriti, Conversa de bois, a Terceira margem do rio, apanhada no arcomo bola vinda ao gol, Campo Geral, O Recado do morro. Em Grande sertão: veredas, ditado ,sustentado e protegido – por forças ou correntes muito estranhas?

E A Fazedora de velas, ‘inventado fazendo realidade?De Mecheu,dizia um moço: Ele faz demais questão de continuar sempre ele mesmo... Rosa

faz demais questão de continuar sendo ele mesmo, e faz demais questão se sem sempre outro.Decompondo, recompondo. Inventado pleonaticamente o novo, inventando realisticamente o antigo,pegando as palavras como bolas lançadas ao gol, tutameando as grandezas para que estas caiam nosmenores sons, dando a monossílabos a grandeza de quietas narrativas. Indo e vindo, não se repeterepetindo, faz língua qe não se precisa aprender, que ela está no estar-ai, no estar-no-mundo, no DoChico, no Brasil resumido. Faz língua em poesia como toda língua que nasce. Sem brusqueza.Palavras de outras palavras, coisas de outras coisas, sons que continuam soando depois que tudoterminou.

Em Tutaméia o Brasil nasce e renasce. Começa e já está além. O volume de 3as. Estóriasque José Olímpio lançou é um mundo brasileiro nôvo. Mais: é mundologia. Tratado de resumo de,mapa. De Pero Vaz de Caminha, através dos habitantes do Urucuia e dos geralistas dos largosvazios, até à implantação de Guimarães Rosa, a distância é muita. A linha revela, porém, umafidelidade. Não existe revolução sem realidades. Sem aceitação de realidades. Tampouco existe elasem a ousadia da novidade, juntos, sintaxes. A revolução de João Guimarães Rosa está em todos ospontos. Estruturada e estrutural, abre rumos e inventa mundos: promove uma, que agorareconhecemos, invenção do Brasil. Por isso temos, por Rosa, chão e ar.Temos arredores. Firmes enítidos. Que de tutaméias se fazem os mundos. Tutaméia, tutameemos.

04. IEB JGR-R 12,3,63 - Título: Fabulógico Guimarães Rosa – Autor: Tristão deAthaíde – Periódico: Jornal do Brasil – Local e data: Rio de Janeiro, RJ, BRA,19/08/1967.

O mais recente livro de Guimarães Rosa nos confirma no juízo, praticamente unânime, deque o autor de Sagarana é escritor absolutamente singular em nossas letras. Não só em nossas letrascontemporâneas, mas ainda em toda a história de nossa literatura. Está sozinho. É um solitáriocomo esse inglês, Christherton, hoje Lord, que foi à Austrália e voltou, sozinho em sua pequenaembarcação, afrontando mares outrora nunca dantes navegados e fazendo uma proeza nunca dantesoperada. Assim o nosso Guimarães Rosa. Tomou da matéria plástica Brasil em suas mãos de bruxo,tanto paisagem como gente e linguagem, e com ela está modelando uma imagem de nossa cultuaabsolutamente inédita. Não seguiu o modelo de ninguém, Olhou para dentro de si próprio e com aexperiência de oitiva (principalmente de oitiva, pois os poliglotas são principalmente metaauditivos)

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absolutamente singular, vai nos dando uma imagem da nossa vivência, ao mesmo tempo oceânica etelúrica, tão diferente de tudo e ao mesmo tempo tão objetiva, que realmente o colocará em uma ilhacercada de vazio por todos os lados. Não imitou ninguém e todos que procuraram imitá-lodificilmente fugirão ao mais ridículo pastiche. Pois nada mais fácil do que fazer um à la manière deGuimarães Rosa. Por isso mesmo mais difícil de fazer como êle, sem cair no mimetismo primário.Suas novas estórias se integram com perfeita naturalidade no tecido estranho e suntuoso dessaadmirável e incomparável tapeçaria que está tecendo com a fibra mais tipicamente nacional, quepodemos fornecer, e ao mesmo tempo, com uma nota de humanismo universal. Tão completa, queexplica o mistério de sua repercussão no exterior (é hoje o escritor mais universal de nossas letras,junto com Jorge Amado e de modo mais exclusivamente literário do que êle), e de suas traduções,embora escreva numa linguagem que, até mesmo para nós, exige, por vezes, um glossário ou umacolaboração intuitiva do leitor. Por que o chamo J. Guimarães Rosa de fabulógico? É que todarealidade tem três estágios ou três planos: o ontológico; o lógico e o fabulógico ou mágico. O planoontológico é aquilo que é independente do nosso conhecer ou da nossa expressão. Sou, naturalmente,um realista e não um idealista. O mundo, para mim, tem uma consistência concreta, em si, queprecede, excede e sucede o nosso conhecimento. O mundo exterior a nós, como existirá depois denós. E possui uma realidade ontológica, estranha a nós. O plano lógico é o conhecimento que temosdas coisas e das pessoas, através delas. Não é sua realidade independente. É a sua realidadetransmitida a nós através dos nossos sentidos e da elaboração, em nós, dos dados que elas nosoferecem. É o mundo como nossa representação, na palavra de Shopenhauer. O plano fabulógico oumágico é a realidade criada por nós e projetada sobre o mundo exterior, independente dêle ou comele combinado. É o ser que comunicamos às coisas, que pode ou não corresponder à realidadeontológica ou lógica. Êsse mundo mágico ou fabulógico ainda pode subdividir-se em subjetivo,quando totalmente criado por nós (é a fábula pura) ou adjetivo, quando essa magia ainda provém domundo exterior através de nossa intuição e de nossa expressão paralógica. O mundo expressivo deGuimarães Rosa é ao mesmo tempo ontológico, lógico e fabulógico, mas com primazia natural davertente mágica. Começa sua originalidade por ser expressão pura. Sua arte é absolutamenteautônoma. Raros os autores brasileiros cuja obra não esteja tão separada de sua própria vida. Nãocomo fonte isolada (pois, pelo contrário, se trata de uma expressão literária tôda ela bebida nocontato mais íntimo, na infância e na adolescência, e hoje pela memória, com a realidade exteriorbrasileira brasileira. Popular, rústica e sertaneja, mais autêntica), mas como expressão. Uma vezexpressa, como nos vem dando desde Sagarana, está ali, no seu dasein heideggeriano, absolutamenteintegrada em si própria. O autor se torna absolutamente indiferente. Basta ver que nos seus contosnunca fala por si e raramente dialoga. Quem fala é um personagem, o outro, o autor real doraciocinante. Daí a importância capital que tem a linguagem na obra de Guimarães Rosa. Tudo ali éverbo. E verbo que nasce realmente do prólogo de S. João em seu Evangelho: ‘In princípio eratverbum”. Goethe na linha hegeliana, ou Hegel, na linha goethiana, pois ali o filósofo e o poeta seconfundem, tentaram substituir a ação, ‘die tat’, ao Verbo. Guimarães Rosa é um joanino. Deus éPalavra. E como Deus está sempre presente em sua obra – pois não há obra literária brasileira maisontologicamente teocêntrica (sem o mais leve vislumbre de proproselitismo edificante) que a deGuimarães Rosa –, - é na palavra, isto é, no estilo que sua obra se realiza, do modo mais autônomo.Rosa -, é na palavra isto é, no estilo. Porque seu estilo é realmente a vida traduzida em verbo. Ou,como êle próprio diz: “Toda ação principia mesmo por uma palavra pensada”. Para compreenderêsse estilo digamos antropológico, já que o próprio autor é tragado por ele, é mister lembrar que avelha divisão da análise lógica, precisa ser completada por um terceiro termo: a análise mágica oufabulógica Se não tripartirmos a análise lingüística, como deve ser, não podemos aceitar o estiloGuimarães Rosa. É no plano da análise fabulógica que êle se torna... fabuloso. Não digo que sejasempre fácil. Nunca o é, Nem mesmo repousadamente. Longe disso. Rosa é por tal forma elepróprio, que torna sua obra, realmente, algo de absolutamente extraordinário em nossas letras. Éaliás como um uísque: precisa ser do bom e tomado em doses limitadas, para que realmente é.Ninguém, creio eu, tomará de um livro de Guimarães Rosa para se divertir, no sentido daquela‘literatura de cadeira de balanço’ de que falava o nosso Ronald de Carvalho. Guimarães Rosa é, porvêzes exaustivo. E até irritante. Mas é sempre extraordinário e empolgante. Essa coexistência doontológico, do lógico e do fabulógico , na sua patente em cada uma dessas manchas ou desses ‘nonsenses’, ou dessas pedrinhas coloridas de que é feita a tapeçaria, o quadro ou o mosaico de suaficção. Tomemos de um conto como Umas formas do seu último livro e o comparemos aos contoAssombramento de Afonso Arinos. O tema é o mesmo: uma assombração. Mas ao passo que em

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Arinos temos um relato absolutamente lógico – e nada ontológico ou fabulógico, no de GuimarãesRosa as três realidades se interpentram. Trata-se realmente de um monstro demoníaco, a ‘porcapreta’? Trata-se de uma visagem? Trata-se de um terror superticioso coletivo? Tudo é possível. Ostrês homens tão deferentes entre si - o padre crente, o sacristão curioso e o ‘maçon’ incrédulo, todostrês viram. Ontologicamente houve ou não uma manifestação demoníaca? Logicamente, havia ounão uma concretização ordenada e comum às três testemunhas do fato? Fabulógicamente, há aexpressão literária perfeita, mas sem nada dos atavios e da concantenação lógica que lhe deu AfonsoArinos, num relato semelhante. E assim poderíamos analisar cada um dos seus contos, todos ligadosentre si, não como um colar, como vemos em Machado de Assis, mas como aspectos de uma sórealidade consistente e confusa, a dos nossos costumes sertanejos e populares, que transcendem deum lugar, de uma região, ou mesmo do próprio sertanismo (isto é, do Brasil telúrico) para assumir,como dissemos, um caráter transoceânico. Até mesmo o capricho, um tanto catita, com que noprefácio entrelaça as anedotas mais simples e pitorescas, com seu sentido mais seu sentido maismetafísico e a expressão mais vulgar das mesmas, com a citação de Píndaro e Dostoiéwski, em gregoou russo, tudo isso mostra um autor absolutamente inclassificável, a não ser nas categorias do gênio,isto é, dos grandes isolados.

05. IEB JGR-R 12,03,090 – Título: Tutaméia são as terceiras estórias deGuimarães – Autor: Rosa Maria de Lourdes Costa – Periódico: Gazeta Comercial– Data: 10/09/1967.