escravidão e liberdade no sertão das umburanas

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Aline Santana dos Santos Rocha Escravidão e Liberdade no “sertão das Umburanas(1850/1888) Feira de Santana-Ba 2011

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Page 1: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

Aline Santana dos Santos Rocha

Escravidão e Liberdade no

“sertão das Umburanas” (1850/1888)

Feira de Santana-Ba

2011

Page 2: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

2

Aline Santana dos Santos Rocha

Escravidão e Liberdade no

“sertão das Umburanas” (1850/1888)

Dissertação apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

História da Universidade Estadual

de Feira de Santana para a obtenção

do título de Mestre em História.

Professora orientadora: Dra.

Lucilene Reginaldo.

Feira de Santana

2011

Page 3: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

3

Escravidão e Liberdade

no “sertão das Umburanas” (1850/1888)

Aline Santana dos Santos Rocha

Banca Examinadora:

_____________________________________________

Profa. Dra. Orientadora Lucilene Reginaldo

__________________________________________

Prof .Dra. Elciene Azevedo

_____________________________________________

Profa. Dra. Sharize Piroupo do Amaral

____________________________________________

Prof. Dr. Erivaldo Fagundes Neves

_____________________________________________

Profa. Dra. Sharize Piroupo do Amaral

Feira de Santana, 29 de agosto de 2011.

Page 4: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

4

Agradecimentos

Foram muitas as pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram para esta

dissertação. Espero que minha memória não me traia no esquecimento de alguém.

Reservo um agradecimento muito especial à minha orientadora, profa. Dra.

Lucilene Reginaldo. Ela conseguiu amalgamar a extrema e notória competência

acadêmica, com uma peculiar generosidade. Certamente a Universidade ganha em

potencial de pesquisa, discussão e analise com pessoas como você, comprometida, que

emanam prazer pelo que faz. Obrigada por compartilhar comigo cada momento desta

dissertação, dos quais em nada os meus possíveis equívocos devam lhe ser imputados;

suas valiosas sugestões, sua calma em meio aos meus momentos de desânimo, os longos

telefonemas, os livros emprestados, os conselhos, sua sempre disponibilidade – tudo

certamente foi mais do que eu podia esperar; tê-la como orientadora foi realmente um

privilégio.

Sharize Piroupo do Amaral e Elciene Rizzato, que compuseram a minha banca

de qualificação, fizeram leituras cuidadosas do meu trabalho, além de criticas e

sugestões relevantes. Espero enormemente ter sido sensível a estas. Ao professor

Erivaldo Neves, sem dúvida um marco importante e necessário para os debates que

norteiam questões centrais desse trabalho, agradeço as valiosas referências, bem como

nossas discussões sobre história regional e local, esperando ter feito bom uso destas.

Luis Cleber Freire, nos bastidores da minha orientação no CEDOC, sempre tinha uma

observação pertinente e indicações de leitura.

Penso em outros professores do Mestrado da UEFS cujo destaque é necessário:

Eurelino Coelho, Iranneidson Costa, Ione Celeste, cada um ao seu modo deu uma

contribuição significativa em torno de conceitos e metodologia fundamentais para o

formato desta pesquisa. Com certeza a participação de vocês foi fundamental. Agradeço

também a professora Nacelice Barbosa pelos textos e indicações. Ah... e como não falar

na Prof. Elizete, sempre me lembrando dos prazos a serem cumpridos (rs.)! Todos vocês

foram sempre gentis e calorosos. Meu muito Obrigada!

Também foi imprescindível pessoas como Maria Ferraz, pesquisadora que, no

meu momento de gestação, impossibilitada de ir aos arquivos, ajudou-me bastante na

coleta de dados e fotografias de documentos; agradeço aos funcionários do cartório de

Antonio Cardoso, Ana Rita e Luciana que já reservavam “ meu lugar” improvisado no

Page 5: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

5

fundo do cartório para que não atrapalhassem “ a escritora” rs como me chamava ;

Enfatizo ainda a educação e presteza dos funcionários da secretaria do Mestrado, Julival

e Andrei.

Agradeço também a comunidade Gavião pelo acolhimento, informações

prestadas e gentileza de seus moradores. Espero contribuir um pouco, para o

conhecimento da História de todos vocês.

Agradecimentos especiais devem caber igualmente à minha família: minha mãe,

abundante no seu amor, espectro de determinação e força de vontade, que me instigou o

fascínio da Clio, no seu ofício de professora de História; ao meu pai, in memorian, cuja

presença eu consigo sentir em cada conquista!; ao meu esposo, incansável incentivador,

companheiro em muitas das viagens a Antonio Cardoso e leitor atento dos meus

escritos, muitas vezes informes, ouvindo demasiadamente minhas inquietações e

conhecendo de perto esse apaixonante tema da “Escravidão e liberdade nas Umburanas”

(quem sabe a filosofia em você não tenha se irmanado doravante com a história?).

Muito Obrigada, amor!

Por fim, peço “desculpas” ao meu Filho Davi pelas ausências inevitáveis nesses

dois anos de pesquisa e escrita onde, a portas fechadas, dizia: “mamãe está

trabalhando!” O resultado deste trabalho eu dedico a você: o maior, eterno e

incondicional amor da minha vida...

Page 6: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

6

Resumo

O presente estudo pretende contribuir com os debates em torno da escravidão no sertão

da Bahia, no século XIX. A pesquisa investiga a experiência da escravidão e o padrão

das alforrias na Freguesia de Umburanas, no período compreendido entre 1850 a 1888,

utilizando-se, sobretudo, de escrituras públicas de compra e venda de escravos,

processos crimes, cartas de alforria e registro eclesiástico de terras. Tendo como foco a

escravidão numa comunidade sertaneja, buscamos identificar suas características

próprias e, sobretudo, perceber a tensão existente entre escravidão e liberdade, nas

décadas que antecederam a abolição.

Abstract

This study aims to contribute towards the debates over slavery in the nineteenth century

countryside. The research investigates the experience of slavery and manumission in the

pattern of the Town of Umburanas, in the period 1850-1888 using mainly public deeds

of sale for slaves, criminal cases, letters of manumission and ecclesiastical registration

of land. Focusing on slavery in a backwoods community, we seek to identify their

characteristics and especially understand the tension between freedom and slavery, in

those last decade before abolition.

Page 7: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

7

Lista de abreviaturas

APB – Arquivo Público do Estado da Bahia

CPAC – Cartório Público de Antonio Cardoso

NSAC – Notas sobre Antonio Cardoso

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana

Page 8: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

8

Índice dos Mapas, Tabelas, Gráficos e Figuras

Mapa hidrográfico de Antonio Cardoso 19

Mapa de Antonio Cardoso (Antiga Umburanas) I 21

Mapa de Antonio Cardoso (Antiga Umburanas) II 24

Tabela I: Principais propriedades da Freguesia das Umburanas 36

Tabela II: Tráfico intraprovincial de escravos em Umburanas

através de poderes constituídos por Procurações 46

Tabela III: Relação de Homens e Mulheres por “Raça”

no Censo de 1872 55

Tabela IV: variação dos preços dos escravos e dos preços do açúcar

e do café na Bahia em Réis 67

Gráfico 1- Percentual relativo ao tamanho das propriedades 35

Gráfico II: Percentual de homens e mulheres proprietários de terra

nas Umburanas 37

Gráfico III: Padrão Racial nas Escrituras de Compra e Venda por Décadas 54

Gráfico IV: Percentual da idade dos escravos nas negociações 62

Gráfico V: Percentual dos Escravos Negociados por década

e Gênero (1850-1888) 63

Gráfico VI: Preço médio em Réis dos escravos das Umburana por gênero 67

Gráfico VII: Percentual das Modalidades de Alforria 73

Gráfico VIII: Padrão Sexual das Alforrias 88

Figura I: Carregando a mandioca, 1858 55

Figura II: Descascando mandioca, 1858 59

Page 9: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

9

Índice

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10

1.0 Capítulo I – Umburanas: sociedade e conjuntura ............................................... 18

1.1 Localização e formação de Umburanas.................................................................18

1.2 Economia e sociedade..............................................................................................25

1.2.1 As propriedades ........................................................................................ 31 1.2.2 Os proprietários ........................................................................................ 36

2.0- Capítulo II – Quem eram os escravos nas Umburanas? ................................... 42

2.1- O Tráfico inter e intraprovincial: faces de uma mesma moeda?.......................42

2.2- Origem: Africanos, Crioulos, Pardos e Pretos:...................................................50

2.3-A mão-de-obra escrava.........................................................................................56

2.3.1 – Crianças, Homens e mulheres .................................................................... 61

2.4 Preços dos escravos e seus condicionantes............................................................67

3.0- Capítulo III – Ser escravo nas Umburanas: escravidão e liberdade................71

3.1 Os Caminhos da Liberdade nas Umburanas........................................................71

3.1.1 A Liberdade “sem preço”: alforrias gratuitas incondicionais ........................ 75 3.1.2 Alforrias gratuitas condicionais ..................................................................... 79

3.1.3 Alforrias compradas: onerosas incondicionais e condicionais ...................... 81 3.1.4 Alforria comprada por terceiros .................................................................... 87

4. Padrão sexual das alforrias ...................................................................................... 89

5- A libertação pela fuga .............................................................................................. 90

Considerações Finais .................................................................................................... 97

Referências...................................................................................................................100

Fontes impressas..........................................................................................................100

Fontes Manuscritas.....................................................................................................100

Referências Bibliográficas..........................................................................................100

Apêndice I - Tabela de disposição de alguns dos registros: .................................... 108

Apêndice II – Entrevista ............................................................................................ 112

Anexo I: Certificação de autodefinição da Fazenda Gavião como remanescente

quilombola ................................................................................................................... 113

Anexo II: Lei de Terras n. 601 de 18 de setembro de 1850 (que dispõe sobre as

terras devolutas e as adquiridas por posse ou sesmaria) ........................................ 113

Page 10: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

10

INTRODUÇÃO

O estudo aqui proposto busca compreender o fenômeno da escravidão,

juntamente com as estratégias de conquista da liberdade, numa localidade baiana

chamada Freguesia de Umburanas. O recorte temporal que trabalhamos (1850 a 1888)

se justifica pela nova dinâmica que a escravidão apresenta no período referido. O fim do

tráfico Atlântico, em 1850, levou a uma redução considerável do número de escravos

traficados para o Brasil, dando início, pois, a uma nova organização social. Isso vai

modificar as redes da escravidão no país, e ensejar a necessidade de novas pesquisas em

torno do problema. Em razão disso começa a se intensificar o tráfico interno1. O

objetivo deste estudo é pesquisar como se estruturava a escravidão nas Umburanas,

investigando a experiência do cativeiro, o padrão das alforrias e os caminhos para se

alcançar a liberdade nessa freguesia. Tentaremos perceber, ainda, a tensão existente

entre escravidão e liberdade, nesses últimos anos antes da abolição.

A Freguesia de Umburanas corresponde ao que atualmente é a cidade de

Antônio Cardoso, situada no polígono das secas, a 22 km de Feira de Santana-Ba.

Umburanas conheceu um “verdadeiro rodízio de domínios e jurisdições”: Cachoeira,

Santo Estevão, Feira de Santana e São Gonçalo dos Campos .2 A investigação proposta

basear-se-á nas cartas de alforria3, registros de compra e venda de terras, escrituras

1Ou seja, o deslocamento dos escravos entre regiões “centrais e periféricas”, em um fluxo do Nordeste

para o Sudeste do Brasil. Cf. “A participação da Bahia no tráfico interprovincial de escravos (1851-

1881)”, de Ricardo Tadeu Caires Silva, III Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional,

Florianópolis, UFSC, maio/2007. Além do clássico de R. Conrad, Os últimos anos da escravatura no

Brasil (1850-1888). 2. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. 2 Segundo dados obtidos no Arquivo Paroquial da cidade de Antonio Cardoso, através das “Notas sobre

Antonio Cardoso”, do Monsenhor Renato de Andrade Galvão, p 3. O Monsenhor Galvão ordenou-se

sacerdote em 1942. Foi relevante a sua atuação também como pesquisador, incansável na procura de

documentos, muitas vezes raros, em cartórios públicos e privados, além de ter coletados documentos

através de doações em bibliotecas particulares. Foi professor no Departamento de Ciências Humanas e

Filosofia, na UEFS, da extinta disciplina Estudo dos Problemas Brasileiros, e vice-reitor entre 1979 e

1987. Uma das suas mais importantes idealizações foi o Centro de Estudos Feirenses (CENEF). 3 Para registrar uma carta de alforria, o senhor ou seu procurador chamava o tabelião para a sua residência

ou ia ao cartório e ditava os termos da carta para um escrivão. Se a carta já existisse, como no caso de

alforriados vindos de outro município e querendo documentar sua condição na nova residência, era só

copiá-la. O cartório entregava a original para o senhor ou para o ex-escravo e transcrevia uma cópia para

o livro de notas. Essa carta era datada, assinada e atestada por duas testemunhas e pelo próprio tabelião, e

pagava-se uma pequena importância em selos, para oficializar o ato (EISENBERG, 1989, p. 246-247).

Page 11: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

11

públicas de compra e venda de escravos 4 e processos-crimes. A disponibilidade destes

registros no Cartório Público de Antonio Cardoso, bem como no Arquivo Publico da

Bahia, que definiram objetivamente a periodização da pesquisa.

Utilizaremos também registros eclesiásticos de terras localizados no APEB,

tendo em conta que,

Entre 1855 e 1860 foi realizado o primeiro cadastramento

imobiliário do domínio privado no Brasil, determinado pelo já referido

decreto que regulamentou a „Lei das Terras‟. Como o Estado

brasileiro não dispunha de aparelho burocrático capaz de executá-lo,

incumbiu, em 1854, os párocos – então subordinados ao poder civil,

remunerados pelas côngruas dos governos provinciais para

responderem pelas estatísticas populacionais – desse encaro nas

respectivas freguesias, em todo o Império. Em consequência,

originou-se a imprópria denominação de „registros eclesiásticos ou

paroquiais‟ para os lançamentos que definiram as terras devolutas ao

delimitar o domínio privado e, por extensão, o público.5

Assim, utilizando como foco a escravidão numa “comunidade sertaneja‟,

buscamos identificar características próprias do fenômeno, não exclusivamente

relacionadas com a mão de obra, mas principalmente atenta à experiência de vida dos

escravizados. Há de se notar que a história da escravidão na Bahia se limitou em grande

parte à capital baiana e ao Recôncavo, evidenciando a necessidade de estudos sobre

regiões distantes do “circuito modelo” agro-exportador. Quiçá revés da tão anunciada

plantation, que caracterizou o Brasil colônia e a maior parte do século XIX, sem

perceber, contudo, que “a agricultura de exportação não dominava todo o Brasil rural”.6

Em um país de grande dimensão como o Brasil, a escravidão foi construída de forma

bem diferenciada nas diversas localidades e realidades possíveis.

Nessa perspectiva, urge a necessidade de estudos sobre a história da escravidão

em Antonio Cardoso, antiga Umburanas, tendo em vista suas características próprias:

situada no polígono das secas, longe dos grandes centros, destacava-se como a

4 Clóvis Beviláqua, no Código Civil, define a Escritura Pública como um ato notarial, isto é, um contrato

formal de compra e venda lavrado por um escrivão público: tabelião, à vista de declarações das partes ou

do interessado, e dos documentos exigidos por lei. 5 NEVES, Erivaldo. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história

regional e local). Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS, 2008, p. 16. 6 Cf. Barickman B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no recôncavo, de

1780 a 1860. Tradução de Maria Luíza Borges. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.27.

Page 12: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

12

produtora de fumo de melhor qualidade da Bahia, juntamente com São Gonçalo, e

conhecida também por sua feira de carne verde, aos sábados.

É lamentável não haver nenhum trabalho sobre o passado escravista nessa

localidade, que possui população predominantemente formada por negros e algumas

“comunidades quilombolas”, com reconhecimento e certificação da Fundação

Palmares.7 Compreender a dinâmica da escravidão nas Umburanas é, sobretudo,

redimensionar a sua história local, uma vez que, mesmo nos livros de memorialistas da

região, não há destaque sobre a escravidão na localidade, camuflando um preconceito

evidente relativo a esse passado, escondendo aspectos inalienáveis e constituintes da

história do seu povo. 8

A metodologia da pesquisa é centrada na investigação e interpretação de fontes

documentais. Foram fichados e analisados os livros notariais manuscritos de número 6,

7, 8 e 10, ou seja, 100% dos livros encontrados9 no Cartório Público de Antônio

Cardoso, entre o período de 1850 e 1888. Ao mesmo tempo foi feita uma varredura em

outros acervos pertencentes à antiga sede de jurisdição da Freguesia de Umburanas,

bem como no APB, onde localizamos o registro eclesiástico de terras e alguns

processos-crime. Neste sentido, procuramos constantemente estabelecer um diálogo

entre tais fontes com a produção historiográfica sobre a escravidão no país, sobretudo

em sua dimensão social.

Este trabalho seria inviável sem a interlocução empreendida com autores da

chamada “nova história da escravidão” no pós 1980, onde se destacam os estudos de

Kátia Mattoso10

que, analisando a Bahia do século XIX, permitiu compreender “o

enigma baiano”, sobretudo os aspectos sociais e econômicos. Neste ínterim ela aponta a

metodologia adequada para as investigações cartoriais, na perspectiva de manter um

7 O Artigo 68 do ato das disposições constitucionais transitórias (ADCT) diz que: “Aos remanescentes

das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,

devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos.” Atualmente, a legislação brasileira já adota este

conceito de comunidade quilombola e reconhece que a determinação da condição quilombola advém da

auto-identificação. Temos no anexo I a certificação da Fazenda Gavião e Paus-altos como remanescente

de quilombo. 8 Cf. dos memorialistas locais Carlos Mello e Telito Rodrigues: ”Das Umburanas à Cidade“: Antonio

Cardoso, 2002. 9 Infelizmente esses livros encontram-se em péssimas condições, além de estarem todos juntos como se

fosse um grande livro.Inicialmente foi feito este processo de separação e organização da seqüência dos

livros, em visita posterior já estava da mesma maneira que fora encontrado a priori. Existem muitos

livros que estão desaparecidos, entre estes o livro de número 9 (que abarca o período estudado). 10

Cito aqui os mais relevantes para o estudo: Kátia Queirós Mattoso, A Bahia do século XIX: uma

província no império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992; “À propósito das cartas de alforria – Bahia,

1779 - 1850”. In: Da Revolução dos Alfaiates à riqueza dos baianos no século XIX – itinerário de uma

historiadora”, 2004; Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990.

Page 13: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

13

diálogo com as fontes. É importante mencionar, ainda, os estudos de João Reis, Robert

Slenes, Sidney Chalhoub, Maria Helena Machado, Hebe Castro, e Sílvia Lara.11

Esses

pesquisadores, entre outros expoentes dessa geração, enfatizaram o escravo como o

agente das negociações, sujeito e capaz de reivindicar e produzir a sua história,

independentemente da vontade do senhor, resistindo aos desígnios estabelecidos. Essa é

a escravidão “sob o olhar do próprio escravo”, evidenciando sutilezas, anseios, malícias

e destacando muito da complexidade que permeia o sistema escravista.12

A partir do século XIX o sistema judiciário aparece mais atuante a nível local

como “regulador de propriedade e mediador entre pessoas”.13

Os escravos vão cada vez

mais se destacando nos cartórios de todo Brasil. Nos livros de registro de notas,

escrituras dos tabeliães são registradas: cartas de alforria, inventários, hipotecas,

escritura de compra e venda, penhor, enfim, uma série de fontes que permitem obter

informações riquíssimas sobre a dinâmica escravista, tanto para um tratamento serial e

quantitativo, quanto para uma reconstituição qualitativa das redes sociais e do cotidiano

dos escravos, apesar da geral precariedade de conservação desses documentos.14

Com

base nestes registros pode-se resgatar as experiências de vida dos muitos escravos que

fizeram parte da nossa história do Brasil, e cujo viés interpretativo vale-se muito da obra

de Thompson.15

Silvia Lara bem apresenta a importância do historiador inglês para a

historiografia da escravidão.16

Como associar tal autor com a experiência negra no

11

Destaco, sobretudo, de João REIS (org.), Escravidão e invenção da liberdade: estudo sobre o negro no

Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; Brasília: CNPQ, 2008; de Robert Slenes, Na senzala uma flor:

Esperanças e recordações na formação da família escrava no Brasil Sudeste, séc. XIX (1999); de Sílvia

Lara, Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro (1750-1808). Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1988. 12

Os autores citados acima vão de encontro à perspectiva historiográfica das décadas de 1930 a 1960, no

qual o escravo era percebido apenas como coisa ou mercadoria, uma peça no sistema capitalista,

desprovido de qualquer tipo de papel como sujeito no processo histórico. Pode-se citar como arautos

desta proposta Caio Prado Junior (Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2004);

Fernando Novais (Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1977-1808). São Paulo: Hucitec,

2000), Fernando Henrique Cardoso (Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo: Paz e

Terra, 1962); Roberto Simonsen (História econômica do Brasil: 1500-1820. São Paulo: C. E. Nacional,

1962). 13

SLENES, “Escravos, cartórios e desburocratização”, p. 172. 14

No artigo citado acima Slenes aponta, de forma pertinente, para uma preocupação com a documentação

cartorial, no sentido de conservar essa valiosa fonte de importância histórica, e denuncia as péssimas

condições de abandono e descaso na qual se encontram os arquivos: “armazéns”. Enfim, o que Rui

Barbosa não queimou pode ser destruído em virtude da indiferença com esse Patrimônio histórico. 15

Thompson percebe o campo jurídico como um lugar em que diferentes sujeitos históricos expressam

seus interesses conflitantes. Ver Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1987 e Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das

Letras, 1998. 16

Cf. “E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil”. Projeto História, São Paulo, (12), out. 1995.

Page 14: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

14

nosso país, uma vez que ele estava preocupado com a sociedade inglesa do século

XVIII? Apesar das tentativas de autores como Peter Linebaugh a este respeito,17

o “bom

caminho” para tal junção estaria em textos thompsonianos como “La sociedad inglesa

del siglo XVIII”. Para ela, “não se trata apenas e simplesmente de passar a estudar o

modo de vida dos escravos ou a visão escrava da escravidão”.18

Trata-se antes de

perceber “a escravidão como uma relação permeada de „direitos‟ e „deveres‟

recíprocos”.19

A documentação sobre a escravidão deve ser percebida como uma arena

de conflitos, sem que se privilegie um ou outro agente do embate. Desse modo, o

caráter de “sujeito” do escravo é restituído, ao tempo em que a totalidade da sua

experiência ganha razão de ser.

No horizonte da nossa pesquisa ressalta-se também a perspectiva da história

regional e local. Erivaldo Fagundes Neves foi um dos pioneiros a utilizar fontes

primárias para evidenciar o caráter dinâmico da escravidão no sertão. De forma

pertinente ele apresenta possibilidades para o estudo da história regional e local.

Evidencia a importância desse método de pesquisa para o revelar de pequenos mundos e

sujeitos, desmistificando modelos explicativos que não levam em conta a pluralidade da

Bahia, aparecendo muitas vezes na História do Brasil como um denominador comum.

O autor alerta que a história do Brasil não deve ser o “somatório das histórias regionais

e locais”, mas enfatiza que esses estudos indicam as variáveis necessárias para

compreensão do “conjunto multifacetário da história nacional”. E completa: “As

relações de um sistema global e as formações locais deveriam ser vistas como um

problema histórico, porque essas vinculações, apesar de inerentemente contraditórias e

desiguais, seriam universalmente articuladas e intercomplementares”.20

Ele chama ainda a atenção para os dados quantitativos que evidenciam o

minifúndio e o trabalho familiar como traços marcantes da economia sertaneja.21

Revela, em seu estudo, uma Bahia rica em diversidade, onde destaca o papel da

pecuária, sua relação com o trabalho escravo e a importância da policultura para

acumulação de riqueza. Os estudos de Albertina Vasconcelos e Mônica Dantas22

são

17

Sílvia Lara cita deste autor “Todas as montanhas atlânticas estremeceram”. Cf. LARA, “Thompson e a

experiência negra no Brasil”, p. 44, nota n. 3. 18

Ibidem, p. 46, grifo nosso. 19

Ibidem, p. 47. 20

NEVES, História regional e local, p. 59. 21

Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local).

Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS, 2008. 22

De Mônica Dantas fazemos menção ao texto “Povoamento e ocupação do sertão de dentro baiano

(Itapicuru, 1549-1822)”, artigo apresentado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP,

Page 15: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

15

referenciais importantes para dilatação da imagem do escravo no sertão; suas pesquisas

demonstram uma quantidade imensa desses escravos distribuídos nas mais diversas

ocupações. No caso de Vasconcelos, centrando suas pesquisas nas zonas de mineração,

identifica a diversidade de ocupações. Dantas, analisando três inventários da década de

30 no século XIX, igualmente constata a existência de escravos em muitas e distintas

profissões: “São 10 carreiros, 8 vaqueiros, 2 oleiros, 2 ferreiros, 1 feitor , 1 sapateiro, 1

alambiqueiro, 1 cozinheiro, 1 carpina, 1 pastora e 1 parteira”.23

Demonstrando que os

proprietários do sertão não só podiam adquirir bens de alto valor, no caso, trabalhadores

escravos, como também destiná-los para as mais diversas ocupações.

Os livros de Maria de Fátima Pires, O Crime na cor e Fios da vida - Tráfico

interprovincial e alforrias nos sertoins de sima, são menções importantes para esta

pesquisa; no primeiro livro a autora investigou e denunciou as condições de vida e

trabalho de escravos situados no sertão; no segundo ela interpreta a inserção dos

escravos e forros no alto sertão baiano na segunda metade do XIX,24

perseguindo a

trajetória de escravos, forros e ex-escravos, e de forma muito prazerosa nos aproxima

das relações sociais desses sujeitos e das vicissitudes da economia local. Em ambos os

trabalhos Pires alarga os horizontes da historiografia baiana voltados para o sertão,

deslocando o foco da análise de Salvador e Recôncavo, trazendo contribuição inovadora

para a história social da escravidão na Bahia.

Ricardo Moreno Pinho, em “Escravos, quilombolas ou meeiros?”,25

revela a

importância da escravidão no Médio do São Francisco e de forma muito sagaz traz as

estratégias adotadas pelos escravos para se inserirem na sociedade. É digno de nota

igualmente a importante dissertação de mestrado de Luís Cleber Freire, que teve como

objeto a fazenda de gado, o trabalho escravo e a riqueza em Feira de Santana e região.26

O autor demonstra quão diversificado foi o setor produtivo, o dinamismo na produção e

comercialização de culturas como tabaco, algodão e mandioca ao lado da monocultura

s/d. De Albertina Vasconcelos destacamos “Ouro, conquistas, tensões, poder. Mineração e escravidão na

Bahia no século XVIII”. Dissertação de mestrado em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas, UNICAMP, 1998. 23

DANTAS, “Povoamento e ocupação do sertão de dentro baiano (Itapicuru, 1549-1822)”, p. 17. 24

Por alto sertão baiano a autora toma de empréstimo a classificação de Erivaldo Neves, na qual

compreende o alto sertão da Bahia como ”‟referenciada na posição relativa ao curso do Rio São Francisco

na Bahia e ao relevo baiano, que ali projeta as maiores altitudes‟” (NEVES apud PIRES, Fios da vida, p.

15, nota 01). 25

José Ricardo Moreno Pinho. “Escravos, quilombolas ou meeiros? Escravidão e cultura política no

médio do São Francisco (1830-1888)”. Dissertação do Mestrado em História – Faculdade de Filosofia e

Ciências Humanas-UFBA, 2001. 26

Luis Cleber Freire, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: agropecuária, escravidão e riqueza em Feira

de Santana, 1850-1888”. Dissertação de mestrado. Salvador: UFBA, 2007.

Page 16: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

16

da cana de açúcar e pecuária,27

demonstrando ser Feira e região uma localidade de

“transição geográfica”, haja vista possuir clima, solo e vegetação peculiares, nem

tipicamente característicos do litoral e nem do sertão.

A estruturação dos capítulos desta dissertação foi feita do seguinte modo: no

primeiro capítulo é feita a caracterização e localização do universo de estudo, a

Freguesia de Umburanas (1850-1888), evidenciando o contexto da escravidão nesta

localidade, tendo em vista a sua estrutura produtiva e seus circuitos comerciais. É

importante destacar que, a partir do registro eclesiástico e dos registros de compra e

venda de terras, pudemos identificar nomes dos proprietários, fazendas e produção, e se

observaram quais eram as fazendas mais importantes dentro do circuito comercial.

Buscamos situar o leitor acerca dos limites e entorno da Freguesia e a dinâmica do seu

comércio local. Autores que trabalham com a história da estrutura fundiária no Brasil

foram referenciais importantes neste capítulo.28

No segundo capítulo priorizamos conhecer mais o escravo; utilizando os

registros de compra e venda, observamos as variáveis sexo, idade, preço, referência

étnica, cor, qualificação, ocupação etc., o tráfico intra e interprovincial, localizando nos

registros as regiões para as quais mais se vendia os escravos, e as peculiaridades da

escravidão nas Umburanas. No decorrer do capítulo, e especialmente ao tratar do tema

do tráfico interno, buscamos dialogar e referenciar nossa interpretação na bibliografia

clássica e mais recente, tendo como autores importantes R. Conrad, Graham, Marcondes

e Motta, Neves, Caíres, Barickman e Maria de Fátima Pires.29

27

Luis Cleber Freire, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p 40. 28

Hermínia Maricato, Habitação e cidade. São Paulo: Atual Editora, 1997; Helen Osório. Terras

devolutas e latifúndios: efeito da lei de 1850. São Paulo: Editora Unicamp, 1996, o próprio Erivaldo

Neves, com “Sobre o agrário e o regional na perspectiva sócio-econômica. In: “Posseiros, rendeiros e

proprietários: estrutura fundiária e dinâmica agro-mercantil no alto sertão da Bahia (1750-1850)”, Tese de

doutorado em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife 2003; e “Sertão como recorte

espacial e como imaginário cultural”, Revista Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 3, n.

1, p. 153, 2003, além de João Sette W. Ferreira, “A cidade para poucos: breve história da propriedade

urbana no Brasil”, p. 01, publicado nos Anais do Simpósio “Interfaces das representações urbanas em

tempos de globalização”, UNESP, Bauru, 21 a 26 de Agosto de 2005. 29

CONRAD, Robert E. Os últimos anos da escravatura no Brasil (1850-1888); GRAHAM, Richard.

“Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil”, Afro-Ásia, n. 027,

2002; MARCONDES, Renato Leite e MOTTA, José Flávio. “Duas fontes documentais para o estudo dos

preços dos escravos no vale do paraíba paulista”. in: Revista Brasileira de história.vol. 21, n. 42. São

Paulo, 2001; SILVA, Tadeu Caires. “A participação da Bahia no tráfico interprovincial de escravos

(1851-1881)”, III Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis, UFSC,

maio/2007; NEVES, “Sampauleiros Traficantes: comércio de escravos do alto sertão da Bahia para o

oeste cafeeiro paulista”. In: Afro Ásia, n.° 24, 2000; BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano:

açúcar, fumo, mandioca e escravidão no recôncavo, de 1780 a 1860. Tradução de Maria Luíza Borges.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Page 17: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

17

O terceiro capítulo trabalhará o tema “Ser escravo nas Umburanas”, buscando os

“caminhos da liberdade” dos cativos. Articulando informações qualitativas da

documentação cartorial, intentamos perceber as tensões entre a escravidão e a liberdade.

Assim, como se processou a mudança do cativeiro à liberdade? Como poderíamos

definir um padrão para as alforrias? Os estudos de Stuart Schwartz, Lígia Bellini, Peter

Eisemberg, Sharyze Piroupo e Fátima Pires30

propõem uma analise conjuntural desses

documentos, extraindo informações atinentes ao cotidiano escravista. Avaliando esse

padrão das alforrias e suas variáveis, percebemos os escravos como autores interessados

na negociação da sua liberdade; enfim, uma liberdade nascida como conquista. E uma

conquista que “deve ser analisada como o resultado dos esforços bem-sucedidos de um

negro no sentido de arrancar a liberdade a seu senhor”.31

Como diz Chalhoub em outro

momento,

Os negros tinham suas próprias concepções sobre o que era o cativeiro

justo, ou pelo menos tolerável: suas relações afetivas mereciam algum

tipo de consideração; os castigos físicos precisavam ser moderados e

aplicados por motivo justo; havia maneiras mais ou menos

estabelecidas de os cativos manifestarem sua opinião no momento

decisivo da venda.32

Outra forma de se alcançar a liberdade, para além dos processos de alforria, foi a

fuga. E, embora este fenômeno tenha se estendido por todo o período da escravidão, nas

Umburanas, como é comum em diferentes regiões do Brasil, destaca-se a presença

histórica de comunidades de escravos fugidos e libertos, que sobrevivem até os dias de

hoje. Buscamos, assim, no final do trabalho, “puxar fios” antigos que nos levam até a

comunidade quilombola, situada na Fazenda Gavião, fundada por Zé Pedro. Nesta

Fazenda inúmeros escravos fugitivos, além de outros já libertos, buscavam refúgio e

recebiam abrigo, engendrando novas formas de vida.

30

Cf. SCHWART, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo:

Companhia das Letras, 1998; BELLINI, Lígia. “Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em

cartas de alforria”. In REIS, João (org). Escravidão e invenção da liberdade: estudo sobre o negro no

Brasil. São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPQ, 1988; EISENBERG, Peter. Ficando livre: as alforrias em

Campinas no séc. XIX. São Paulo: Unicamp, 1989; PIROUPO, Sharyse. “Escravidão, liberdade e

resistência em Sergipe: Cotinguiba, 1860-1888”. UFBA, 2007; PIRES, Maria de F. Fios da vida - Tráfico

interprovincial e alforrias nos sertoins de sima (2009). 31

CHALHOUB, Visões da liberdade, p. 23. 32

Ibidem, p. 27.

Page 18: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

18

1.0 Capítulo I – Umburanas: sociedade e conjuntura

Não sei bem se vou falar de problemas

de método ou de conceitos. É claro que

são coisas diferentes. De toda maneira,

não invoco nenhum sistema

interpretativo, nenhuma filosofia. (...)

Parto, mesmo, da atitude vivencial do

homem perante o mundo, a terra, o

espaço.33

1.1 Localização e formação de Umburanas

A freguesia Nossa Senhora do Resgate das Umburanas ”ficava à margem da

estrada de penetração desde o porto de Cachoeira para Camisão, hoje Ipirá, e o alto

sertão da margem esquerda do rio Paraguaçu”.34

Nesta rota baiana, chamada de Estrada

Real, circulavam escravos, tropas de burros com tabacos e outras mercadorias,

chegando a ser conhecida como “descaminho” do ouro e do diamante no século XIII,

uma vez que era cenário de um intenso contrabando desses minérios. Limitava-se a

Sudoeste com Cabaceiras do Paraguaçu, ao Sul com Conceição de Feira e São Gonçalo

dos Campos, a Oeste com Ipecaetá e Santo Estevão, e ao Norte e Leste com Feira de

Santana.35

Em razão de sua localização à margem dessa estrada, Umburanas tornou-se

locus de um significativo fluxo comercial, servindo de entreposto que interligava as

comunidades circunvizinhas ao porto de Cachoeira, cuja importância nacional foi

significativa nos séculos XVIII e XIX, uma vez que era utilizado para o escoamento de

boa parte da produção agrícola do Recôncavo Baiano. A localização entre os rios

33

Cf. MATTOSO, José. A escrita da história: teoria e métodos. Portugal: editorial Estampa, 1997. 34

GALVÃO, Renato (monsenhor), “Notas sobre Antonio Cardoso” (Texto mimeografado), p. 01. s/d.,

Localizado no arquivo paroquial da cidade de Antonio Cardoso. 35

ALMEIDA SANTOS, Ozeias de, “A Produção do espaço rural no Estado da Bahia: uma leitura da

concentração fundiária de comunidades quilombolas do município de Antonio Cardoso”. Anais do “XVI

Encontro Nacional dos Geógrafos. Crise, Práxis e Autonomia: Espaços de Resistência e de Esforços.

Espaço de Diálogos e Práticas”. Porto Alegre: ENG, julho/2010, p. 2.

Page 19: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

19

Paraguaçu e seu afluente, o rio Jacuípe, o porto de Cachoeira e a Estrada Real foram

fundamentais para a ocupação e dinâmica escravista da Freguesia.36

Fonte: CEI – Base Cartográfica da SUDENE

36

SANTOS, “A produção do espaço rural do Estado da Bahia”, p. 6.

Page 20: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

20

Sobre a sua formação mais recente, tendo em vista o período inicial do nosso

estudo (1850), cabe destacar o dia 12 de agosto de 1823, data em que o Vigário de

Santo Estevão do Jacuípe enviou ofício ao Vigário Capitular do Arcebispado da Bahia,

pedindo “autorizaçao para erigir uma capela dedicada a N. S. Do Resgate das

Umburanas”. Esta capela ficaria no terreno correspondente às doações do Sargento Mor

Francisco Almeida e D. Antonia Francisca de Almeida, sua esposa, correspondente à

Fazenda Cavaco: o “casal hemérito teria [assim] lançado o marco da futura cidade”. No

dia 10 de abril de 1843 é criada a Freguesia de Nossa Senhora do Resgate das

Umburanas, desmembrada da Freguesia de Santo Estevão.37

Em 1876 passou a ser administrada pela cidade de Feira de Santana através da

lei provincial nº 804/76 e, em 1884, foi anexada ao território da Vila de São Gonçalo

dos Campos. De forma despótica e abusiva passou a se chamar Uberlândia em 1938

(em apologia a uma cidade mineira), Tinguatiba (1943) e Antônio Cardoso, pelo

Decreto Lei Estadual n° 141 de 31 de dezembro de 1943, ocorrendo a sua emancipação

em 1963. Tais nomenclaturas cambiantes estiveram diretamente relacionadas com as

intervenções de representantes políticos e seus interesses imediatos. No seu derradeiro

nome, por exemplo, vê-se uma homenagem concedida pelo interventor federal na Bahia,

Renato Aleixo, ao coronel latifundiário Antonio Cardoso, nascido em 1848.

Segundo Monsenhor Galvão, “Todos os caminhos do sertão levariam o homem

ao Porto da Cachoeira. O massapê da orla do recôncavo não favoreceria, por muito

tempo, o mercado para as velhas metrópoles. A própria posição geográfica definiu os

rumos e as bases do povoamento”. Raramente se dissocia a história das coordenadas

geográficas.38

Observemos o mapa abaixo:

37

Ibidem, p. 02. 38

GALVÃO, Renato de Andrade.” Os povoadores da região de Feira de Santana” in : Sitientibus: revista

da Universidade Estadual de Feira de Santana. ano 1, nº n1, jul-dez 1982, p. 30.

Page 21: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

21

Mapa I: Antonio Cardoso (antiga Umburanas)

Fonte: Elaborado por Maurílio Nepomuceno

O fenômeno da escravidão nas Umburanas não pode ser dissociado do conjunto

de suas peculiaridades regionais e econômicas, o que implicou na instauração de

relações específicas com os escravos e seu labor. Obviamente estar situado em uma

“região sertaneja” era ponto relevante, apesar de ainda hoje a própria definição de

“sertão” ser objeto de questionamentos. Para Ivone Cordeiro Barbosa, o “sertão guarda

um enorme poder de evocação de imagens, sentimentos, raciocínios e sentidos (...). A

categoria sertão não guarda nenhuma essencialidade fora das experiências sociais dos

sujeitos que o nomeiam”.39

A autora identifica o espaço não como categoria meramente geográfica, mas,

sobretudo, social e cultural. Ela recorre a Certau, quando discute a bipolaridade entre as

categorias, tentando realizar uma “hermenêutica do espaço, historicizando a sua

construção a partir de e ao mesmo tempo em que historiciza as experiências dos sujeitos

históricos”.40

Neste sentido, percebe-se o “sertão” como conceito carregado de

dificuldades, cuja “característica maior talvez seja a indeterminação dos referenciais”.41

39

BARBOSA, “Sertão: o espaço do outro”. In: ______. Sertão: um lugar incomum: o sertão do Ceará na

literatura do século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 33. 40

Ibidem, p. 34. 41

Ibidem, p. 34.

Page 22: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

22

Neste sentido, a beleza da definição/indefinição de Guimarães Rosa, algures, tem muita

propriedade: o sertão é onde os pastos carecem de cercas...

Erivaldo Neves, em uma perspectiva similar, considera que o sertão é portador

de grande carga de sentidos que vai do histórico ao antropológico.

Em sua obscuridade etimológica, tanto na condição de categoria

geográfica como na perspectiva sócio-antropológica, “sertão” revela-

se polissêmico, carregado de novos e velhos sentidos. Mais que uma

alteridade negativa de litoral, firma-se como referente do regional e se

expressa como representação da cultura nacional. 42

O mesmo autor, porém, tenta esclarecer o seu conceito, recorrendo à gênese ou

etimologia da palavra sertão. Assim, escreve ele,

Etimólogos atribuem a gênese de „sertão‟ à „forma aferética de

desertão‟ (Antenor Nascimento), a referências „controversa ou

desconhecida‟ (José Pedro Machado) ou a „etimologia obscura‟

(Antonio Geraldo da Cunha). Já Gustavo Barroso (1888-1959),

apoiado no „dicionário da Língua Bunda de Angola‟, de Bernardo

Maria de Carnecatim, publicado em Lisboa, em 1804, conferiu sua

origem ao vocábulo muceltão, corrompido para celtão e depois,

certão, cujo significado, em latim, seria lócus mediterraneus, ou lugar

entre terras, interior, sítio longe do mar, mato distante da costa.

Transposta para Portugal dera-se, indevidamente, a essa significação

africana, a equivalência de „desertão‟, deserto grande, de onde surgira

„sertão‟, como forma contraída. Apesar de equivocada essa suposição

influenciara a grafia da palavra, na troca da consoante inicial.43

Dos sentidos possíveis que carrega a palavra sertão, talvez o mais fundamental

seja o político. O lugar sertanejo é o lugar “do outro” – retomando ainda uma expressão

de Barbosa; ou seja, “daquele que não participa da racionalidade da colonização: o

índio, o aventureiro caçador de metais e predador de índios, o branco e os mestiços

pobres, dedicados às roças de subsistência, os negros quilombolas”.44

Um caminho

interessante é o conceito de Jacqueline Hermann, trazendo o sertão com duplo viés:

42

NEVES, “Caminhos do sertão: vias da ocupação territorial, de interação cultural e de intercâmbios

coloniais”, p. 24. Muito se deve à arte a contribuição no sentido de propor imagens relevantes acerca do

espaço e homem sertanejos, como foi o caso de Luiz Gonzaga, compositor e cantor que talvez tenha

melhor traduzido o sertão, para além de uma caracterização tão-somente geoclimática. A hermenêutica

acerca dos modos de vida do homem sertanejo, em canções como “Sertão de aço”, é revelada de forma

bastante apropriada. 43

Cf. NEVES, “Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural”, Revista Politeia: História e

Sociedade. Vitória da Conquista, v. 3, n. 1, p. 153, 2003. 44

BARBOSA. Sertão: o espaço do outro, p. 35, grifo nosso.

Page 23: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

23

“Lugar desconhecido, atraente e misterioso a um só tempo, despertava o ímpeto do

desbravamento, o sonho de enriquecimento rápido e fácil”45

Umburanas possuía a característica de conviver tanto com a produção do fumo,

quanto com o minifúndio e suas policulturas; de qualquer modo, é sine qua non

levarmos em consideração que no século XIX a acepção sertão ou certão configurou

como oposição a costa, ao marítimo, ou seja, o sertão é tomado como interior, mato

longe da costa. Uma expressão, pois, que se consolidou durante a “colonização”, e que

guardou com a palavra “litoral” uma relação complementar: “porque, como em um jogo

de espelhos, uma foi sendo construída em função da outra, refletindo a outra de forma

invertida, a tal ponto que, sem seu principal referente (litoral, costa), „sertão‟ esvaziava-

se de sentido, tornando-se ininteligível, e vice-versa”. Segundo Janaína Amado o século

XIX denotava ainda, com a palavra sertão, conotações negativas, a saber, “‟terras sem

fé, lei ou rei‟, áreas extensas afastadas do litoral, de natureza ainda indomada, habitadas

por índios „selvagens‟ e animais bravios, sobre as quais as autoridades portuguesas,

leigas ou religiosas, detinham pouca informação e controle insuficiente”.46

Apesar do seu solo fértil, em algumas localidades da região, sobretudo próximas

do rio Paraguaçu,47

observadores não titubearam em definir Umburanas como parte do

“sertão”; marcada pela presença dos “velhos chefes sertanejos”, pessoas “em geral

inteligentes, corajosos, homens de lideranças, fortes, cheios de bom senso, força moral e

equilibrados”.48

Memorialistas locais, como Carlos Mello e Telito Rodrigues, argumentando em

favor da memória histórica do município de Antonio Cardoso, desde os tempos cuja

denominação era Nossa Senhora do Resgate das Umburanas, localizam o município no

polígono das secas do semi-árido baiano, com um clima sub-úmido a seco, possuindo

uma variação pluviométrica em torno de 800 a 1000 / ano. Sua temperatura fica na casa

dos 23,84ºC em média, com a máxima e mínima entre 27,32º e 18,41º e com uma

vegetação predominantemente de “caatinga com arbustos espinhosos (mandacaru e

xique-xique)”, resultado dos longos períodos de estiagem, exceto os meses de maio a

45

HERMANN, Jacqueline. Sertão (verbete) In: VAINFAS, Ronaldo. (Org.) Dicionário do Brasil

Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001. p. 528-529 46

AMADO, J. “Região, Sertão, Nação. Estudos Históricos”. Rio de Janeiro, v. 8, n. 5, 1995, p. 149. 47

O próprio Neves (op. cit., p. 1), citando ainda filólogos contemporâneos, realça que o sertão não precisa

ser “necessariamente árido”, embora conote uma “região agreste, despovoada, lugar recôndito, distante do

litoral (...); enfim, o interior do país”. 48

GALVÃO, Renato M. Notas sobre Antonio Cardoso, p. 3.

Page 24: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

24

julho, quando ocorrem as chuvas.49

O município situa-se num planalto em uma área de

191m de altitude.

Enfim, ”Umburanas” está situada, permitindo-nos fazer um trocadilho plausível,

na agreste paisagem sertaneja. Ou seja, ela apresenta características geomorfológicas

plurais, pois, apesar de estar situada no semi-árido baiano, no polígono das secas, e as

fontes a tratarem como região sertaneja, está localizada em uma zona de transição, com

mais características de agreste.50

O mapa abaixo ilustra a região.

Mapa II: Antonio Cardoso (antiga Umburanas) Fonte: http://antoniocardoso.com/imagens/coiland/jpg

49

Carlos Mello e Telito Rodrigues, Das Umburanas, p. 11. 50

Entende-se por agreste uma “zona intermediária entre o sertão e a mata” cujo clima, um pouco mais

ameno, favorece o desenvolvimento de “culturas alimentares, além do gado” (VERSIANI; Vergolino,

“Posse de escravos e estrutura de ativos no agreste e sertão de Pernanbuco”,

http://www.scielo.br/pdf/ee/v33n2/v33n2a05.pdf, p. 05.

Page 25: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

25

Eurico Alves Boaventura,51

ao tratar dos grupos constituintes da população

sertaneja, destaca a intensa miscigenação de brancos e indígenas e a ínfima presença de

negros. Acreditamos que na “civilização do pastoreio” havia mais escravos do que

Boaventura conseguia imaginar, fato que revela que a sua ideia diretriz de um sertão

sem escravos estava equivocada. Em todo caso, seu pensamento era mesmo este, como

demonstra a citação abaixo:

Morre o recôncavo, quando as espátulas do canavial cedem lugar ao

flácido flabelar festivo do capinzal, das capineiras. Além do horizonte

descrito, já não se ouvem gritos histéricos de feitores sádicos, mas sim

da melopopéia do aboiado, conduzindo a vida e o rebanho para a

alegria do sertão imenso. Imenso como o coração.52

Tal ideia não vê, ao contrário, uma presença escrava inalienável e importante no

interior das localidades sertanejas, a busca de “modelos” da escravidão impede que

conheçamos o fenômeno na sua real configuração e camufla algumas questões centrais

relativas à natureza do escravismo brasileiro.

1.2 Economia e sociedade

Não havia escravos no agreste e no sertão? Será que sua existência foi mesmo

incipiente e pouco significativa? Como estava inserida a mão de obra escrava não ligada

à produção intensiva da cana de açúcar? Quem eram os proprietários? De que viviam?

Quem efetivamente eram esses cativos? Estas questões norteiam nossa investigação

sobre Umburanas.

A historiografia em muito insistiu em tratar da escravidão nas Américas a partir

de sistemas que exploravam as áreas de “Plantation” e a escravidão urbana. No livro O

negro na Bahia, Luiz Viana Filho53

elege o urbano como área que efetivamente

expressou a complexidade das relações escravistas; ele ressalta ainda que era nesta área

51

BOAVENTURA, Eurico Alves. Fidalgos e vaqueiros, Salvador: Centro editorial e didático da UFBA,

1989. 52

Ibidem, p. 17. 53

VIANA FILHO, Luiz Vianna Filho, O negro na Bahia, um ensaio clássico sobre a escravidão.

Salvador: EDUFBA, Fundação Gregório de Mattos, 2008.

Page 26: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

26

que se projetava todo e qualquer tipo de insurreição, revolta e indisciplina, pois os

escravos urbanos eram possuidores de uma ‟consciência de espécie‟ – entendida como

“espécie” cultural,54

e capacidade de insubordinação. De outra parte, a escravidão nas

áreas rurais, dos grandes plantéis, sustentáculo da economia de exportação – a

plantation – foi o cenário privilegiado dos estudos sobre a escravidão na colônia.55

Inclusive, na visão da Caio Prado:

A grande lavoura representa o nervo da agricultura colonial; a

produção de gêneros de consumo interno – a mandioca,o milho,o

feijão que são os principais – foi um apêndice dela,de expressão

puramente subsidiária. Este papel subsidiário se verifica, aliás, quase

sempre, na própria estrutura da produção agrícola. Aqueles gêneros de

consumo são produzidos, na maior parte dos casos, nos mesmos

estabelecimentos rurais organizados e estabelecidos para cuidar da

grande lavoura.56

Esta analise do autor deixa evidente que essa “economia subsidiária”- não

exportadora, exerceu pouca importância no cenário brasileiro. Em vista do exposto,

pouca atenção foi dada para a escravidão nas denominadas áreas “marginais” ao sistema

hegemônico. Os novos estudos sobre a escravidão no sertão57

em muito tem contribuído

na analise e conhecimento das experiências dos escravizados que outrora estavam

afônicos nos arquivos e cartórios do “interior de dentro.” Estes estudos clarificam,

portanto, dinâmicas sociais e econômicas diferentes, nem por isso, menos importantes.

54

Interpretação dada por Gilberto Freire no Prefácio na primeira edição do livro de Luiz Vianna Filho, O

negro na Bahia, um ensaio clássico sobre a escravidão, 2008. 55

“Nos últimos anos, o foco dos estudos a respeito da escravidão no Brasil tem se deslocado da excessiva

preocupação com a conceituação teórica e generalizante do tema. Se, até pelo menos a década de 70,

importantes estudos acerca da gênese e reprodução da sociedade colonial brasileira e, concomitantemente

do escravismo, privilegiaram o atrelamento do mundo colonial tanto a modelos teóricos provenientes da

economia política quanto a vicissitudes da expansão do capitalismo europeu, é também verdade que na

última década os estudiosos têm buscado redirecionar suas análises, delimitando a dinâmica interna da

sociedade como ponto nodal das transformações históricas. Em artigo de 1980, Barros de Castro,

espelhando estas novas tendências propunha, através de uma acirrada crítica aos modelos explicativos da

realidade colonial, a inversão das perspectivas analíticas e o enfoque da conformação interior da

sociedade em suas transformações, ajustes, improvisos e choque de vontades como foco central dos

estudos”. Cf. MACHADO, Maria Helena P. T. “Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a

história social da escravidão”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.8, n.16, mar.-ago. 1988, p.

144. 56

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação econômica do Brasil. 23º. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 143. 57

Citamos aqui alguns deles: José Ricardo Moreno Pinho (2001), PIRES (2010), NEVES (1998), Taiane

Martins (“Da enxada ao clavinote: experiências, liberdade e relações familiares de escravizados no sertão

baiano, Xique-xique 1850-1888”. Dissertação de Mestrado – UNEB, 2010), VIEIRA FILHO (Os negros

em Jacobina – Bahia – no século XIX. São Paulo: Annablume, 2009).

Page 27: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

27

A escravidão se fez presente primordialmente em regiões de monocultura e

latifúndio.58

Essa premissa esconde a complexidade da escravidão e a diversificação da

economia baiana. Essa invisibilidade tem uma intencionalidade, as regiões mais

afastadas dos grandes circuitos comerciais foram durante muito tempo negligenciadas.

O que precisamos constatar, ao contrário, é que outra Bahia escravagista existiu, para

além das visões generalistas.59

A Freguesia das Umburanas estava integrada em uma

economia regional e interprovincial, não tão distante ou dissociada dos grandes centros

comerciais. Assim, apesar de terem elegido protótipos de escravidão, tendo como

referência a capital da província e o Recôncavo baiano, é preciso atentar para a

peculiaridade que criou o contorno de cada região.

Pretendeu-se descrever o Brasil a partir de um modelo – patriarcado

do Nordeste – e aplicá-lo de maneira quase absoluta, em todos os

lugares. Evidentemente isto conduziu a erros, até que os historiadores

começassem a compreender a utilidade de trabalhar não mais de

maneira geral, como haviam feito seus predecessores, mas a partir dos

arquivos regionais e por tema, de modo a apreender as sutilezas e a

captar ao máximo possível as singularidades.60

Daí a pergunta acerca dos aspectos singulares em relação à escravidão nas

Umburanas. Segundo a tese defendida por Stuart Schwartz,

Historicamente, no Brasil, a produção de roceiros e escravos, ou, com

maior exatidão, a agricultura de subsistência e a de exportação,

estavam intimamente ligadas numa relação complexa,

multidimensional e em mutação histórica. Eram de fato duas faces da

mesma moeda.61

Uma parte daquela vida rural nas Umburanas se dava nas feiras livres. A Feira

livre de Umburanas nasceu da aglutinação da comunidade em espaços abertos e

próximos da Igreja matriz. Para este centro comercial as comunidades circunvizinhas se

58

NOVAIS, Fernando A. Estrutura e funcionamento do antigo sistema colonial. 6.ed, São Paulo:

Brasiliense. 59

Preocupados com a dinâmica interna e não generalista da escravidão, é importante destacar a

contribuição e relevância do trabalho de autores como Barros de Castro, Erivaldo Fagundes Neves,

Barrickman, dentre outros, já mencionados na Introdução desta dissertação. 60

MATTOSO, “A carta de alforria como fonte complementar para o estudo da rentabilidade da mão-de-

obra”, p. 27-28. 61

SCHWARTZ, Escravos, roceiros e rebeldes, p. 125.

Page 28: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

28

deslocavam semanalmente, a fim de comercializarem produtos agrícolas e as carnes

verdes.62

Sua proximidade da estrada real favoreceu o fluxo de pessoas e das

mercadorias comercializadas. Ainda sobre os negócios desenvolvidos na feira,

destacam-se as policulturas produzidas nas fazendas, a partir dos excedentes que eram

gerados, para depois serem vendidos. Acerca das práticas rotineiras do comércio nessas

feiras, como escreveu Kátia Mattoso, também o escravo, algumas vezes, por concessão

do seu senhor, podia fazer plantações em pequenos lotes, e vender o excedente da

colheita nas feiras livres, dinheiro que servia, em alguns casos, para a compra de sua

alforria:

No campo, o „costume do Brasil‟ – expressão empregada pelos

antilhanos da época – era o do escravo utilizar um trato de terra para

plantar sua mandioca e suas hortaliças. Com bastante freqüência, ele

vende o excedente de sua colheita a seu senhor, ou no mercado do

povoado vizinho.63

Embora não tenhamos documentos suficientes para compreender a dinâmica,

flutuações e características mais precisas acerca das feiras livres das Umburanas, é

possível identificar uma certa semelhança com a feira livre de Feira de Santana, tendo

em vista que as regiões são bastante próximas, e guardam semelhanças quanto ao clima

e posição geográfica. Claro, levando-se em conta algumas dessemelhanças, como a

grande força econômica de Feira de Santana, que aos poucos a fez tornar-se a “porta do

sertão, o seu entreposto comercial e seu canal de comunicações” no caminho para a capital da

Bahia.64

O trabalho de Pacheco, tendo como foco o “trabalho e costume dos feirantes de

alimentos” em Feira de Santana, aborda aspectos relevantes que se fazem presentes em

uma feira livre. Um desses aspectos é constituir-se como espaço de sociabilidade: “A

feira promovia o choque e encontros entre estas pessoas e mais muitas outras

estabelecidas na zona rural dos arredores do Município”. É verdade que muitas famílias

“dependiam deste [comércio] para suprir a dispensa, vendendo ou comprando”

mercadorias. Mas, para além deste aspecto comercial, as feiras também entravam em

62

Cf. Monsenhor GALVÃO, NSAC, p. 05. 63

MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 119. 64

POPPINO. Rollie E. Feira de Santana. Bahia [Salvador]: Itapuã, 1968. p. 21-25.

Page 29: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

29

um “circuito de lazer e festa atrelado também às vivências dos demais usuários da

urbe”.65

Grande destaque na feira das Umburanas era o intenso fluxo de mercadorias,

proporcionada também por produtos diversificados oriundo das viagens de boiadas

conduzidas por vaqueiros e tropas de burros.

Carregados de fumo, ovos de galinha e outros animais de pequeno

porte para serem comercializados na Vila de Cachoeira e

circunvizinhanças. Quando voltavam traziam carne de sol, farinha de

mandioca e outros artigos alimentícios (mantimentos) para serem

vendidos nos arraias do interior ou surtir os pequenos negócios das

comunidades do sertão. 66

Além da feira livre havia igualmente um manejo e comércio ligados à criação

de gado. Lycurgo dos Santos Filho, estudando o livro de contas da Fazenda Campo

Seco, demonstra a utilização de vaqueiros escravos na região do alto do São Francisco.

O gado servia tanto para o consumo quanto para trabalhos pesados na lavoura e no

engenho. A comercialização do couro não transparece nos documentos, mas é provável

que houvesse, caso levarmos em conta que na Bahia boa parte deste subproduto era

destinado à exportação e para o acondicionamento do fumo remetido para a Metrópole e

para a África.67

Em suas labutas cotidianas, o criatório de gado envolveu a presença

indispensável do vaqueiro. O processo-crime datado de 1852 mostra como o “serviço de

vaqueiro” era uma profissão ”estável” nas Umburanas. Na Síntese do processo

envolvendo os escravos Pedro e Paulina, verifica-se o seguinte:

Pedro, crioulo, escravo de Francisco Viera de Souza, vive na Fazenda

amarela onde há mais de vinte anos se ocupa do serviço de vaqueiro,

plantação e lavoura, foi preso por ser acusado de atirar e matar em

Paulina de tal, escrava, crioula da Fazenda gameleira na Freguesia de

Nossa Senhora do Resgates das Umburanas , mãe de Manoel.68

65

Cf. PACHECO, Larissa Penelu Bitencourt. “Trabalho e costume de feirantes de alimentos: pequenos

comerciantes e regulamentações do mercado em Feira de Santana (1960/1990)”, dissertação de mestrado,

UEFS/2009. 66

http://santoestevaodoparaguacu.blogspot.com/2010/03/antonio-cardosemancipacao. 67

FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 45. 68

APEB. Seção judiciária. Processo crime/série homicídio. Estante número 27, caixa número 960,

documento número 05, de 1852, grifo nosso.

Page 30: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

30

Possuir escravos nas Umburanas era algo muito valoroso na região. No entanto,

não cabia apenas às grandes fazendas ou aos grandes proprietários possuí-los. Os

senhores (as) menos abastados financeiramente também conseguiam o privilégio da

mão de obra escrava, utilizando-se de estratégias diversas, às vezes curiosas. Uma

destas, como aparece nos registros de compra e venda de escravos de 1874, que fazem

como comprador o Sr. Thomé da Costa e Almeida e como vendedor Sr. Jorge Ambrósio

da Costa, foi a quitação do meio-escravo Caetano Crioulo, de 29 anos, por trezentos mil

reis.69

O escravo foi consorciado, a fim de se fazer possível a negociação.

Outra forma de adquirir, pelo menos por um tempo determinado, a força de

trabalho de um escravo, sem ter que desembolsar o valor total da sua compra foi o

penhor, como aconteceu com o “escravo Domingos, preto, [que] fazia parte da mesma

dívida negociada com Salustiano Alves Sampaio (...) cedendo todos os direitos por esse

instrumento de escritura (...) para que possa o cedenário dela usufruir como sua”...70

A importância do trabalho escravo para além do litoral era, pois, inegável, tendo

tal valor relação direta com as inúmeras possibilidades de afazeres no interior das

fazendas. Como observou Luis Cleber Freire acerca do problema da ocupação escrava,

O trabalho escravo em uma unidade agrária era diversificado. Embora

a ocupação exercida por eles não fosse obrigatoriamente registrada

nos inventários – principalmente os anteriores a 1872 –, quando

aparece, fica evidente a diversidade dos trabalhos, variando de

atividades ligadas à agropecuária, até aos serviços domésticos e os

oficiais mecânicos e de serviços.71

Com efeito, segundo Fátima Pires, a necessidade de adquirir e manter um

escravo, ou melhor, de “preservar o „sistema escravista‟” era comum entre “os pequenos

proprietários e ricos senhores de engenho”. E isso justamente em função da lida diária

na “roça”, do seu pesado fardo que deveria, quando pudesse, ser delegado a algum

mancípio. Ou pelo menos deixar para este o trabalho mais penoso. Daí a escravidão ter

continuado vigorosa mesmo próxima da abolição.72

69

CPAC. Seção Judiciária. Livro de notas do tabelionato n. 8, Escrituras públicas de compra e venda.

1874, p. 75. 70

CPAC. Seção Judiciária. Livro de notas do tabelionato n. 8, Escrituras públicas de compra e venda.

1874, p. 85. 71

FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 75. 72

PIRES, Fios da vida, p. 118.

Page 31: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

31

Taiane Dantas, estudando a “experiência dos escravizados e escravizadas no

sertão do São Francisco, Vila do Senhor do Bonfim e Bom Jesus de Xique-Xique

(1850-1888)” corrobora igualmente a tese segundo a qual as tarefas empreendidas no

sertão eram, sobretudo, tarefas de “sobrevivência”.73

Daí, de um lado, a importância do

trabalho escravo e, de outro, a não existência de “diferenças radicais entre as ocupações

desses dois grupos [pessoas livres e escravizadas]”. Com predominância do serviço da

lavoura. Salientando-se, entretanto, que para algumas tarefas os escravos estavam

“invariavelmente excluídos”, como professores, guardadores de livros, caixeiros,

religiosos, capitalistas e proprietários.74

1.2.1 As propriedades

O inverno tá maneiro/ Tem riacho dando nado/ cartoze vacas

das minhas/ Dero cria mês passado/ A fartura tá matando/

Sertanejo impanzinado.75

A propriedade se constitui “Um direito próprio, perpétuo e hereditário de pessoa

física ou jurídica, sobre determinado bem. Caracteriza-se pela legitimidade que a

sociedade lhe conferiu e pela legalidade que as instituições jurídicas e políticas lhe

outorgaram”.76

Até meados do século XIX, no Brasil, a terra era concedida pela coroa

portuguesa, a sesmaria.77

Sua distribuição acompanhava os fluxos e os interesses do

73

Esta constatação foi também feita por Flaviane Ribeiro Nascimento (“E as mulheres da Terra de Lucas?

Quotidiano e resistência de mulheres negras escravizadas (Feira de Santana, 1850-1888)”. Monografia de

graduação. Universidade Estadual de Feira de Santana, 2009) e Luis Cleber Freire (2007), apontando,

talvez, para uma realidade presente e comum dos escravos em Feira de Santana e região circunvizinha. 74

Taiane Dantas Martins, “Da enxada ao clavinote: experiências, liberdade e relações familiares de

escravizados no sertão baiano, Xique-Xique (1850-1888)”. Dissertação de Mestrado. UNEB, 2010. 75

Trecho de autoria de Antonio Ribeiro da Conceição, conhecido como Bule-Bule, natural de Antonio

Cardoso, um cordelista, repentista e escritor, que realiza um trabalho de rica produção poética e musical,

cujas raízes estão fincadas em gêneros musicais nordestinos, como as Chulas do Sertão, Cocos, Martelos,

Agalopados, Xote e Marche de Pé-de-Serra. 76

NEVES, “Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural”, p. 01. 77

As sesmarias, instituição de origem portuguesa, foram desde o início o meio, por excelência, de

alienação da terra. Sua distribuição acompanhava os fluxos e os interesses do povoamento. Primeiramente

foram requisitadas as áreas próximas de Salvador. Cf. DANTAS, “Povoamento e ocupação do sertão de

Page 32: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

32

povoamento. Os municípios tinham o Rocio, terras em que se construíam as casas em

pequenas áreas de produção, sem custo. A riqueza dos latifundiários era medida pela

quantidade de escravos que possuíam, já que a terra, ainda, não estava agregada o seu

valor comercial.

A Lei de Terras (601/1850), aprovada no Senado e publicada em 20 de setembro

de 1850,78

buscou regulamentar o domínio de terras no Brasil, uma vez que isso era uma

exigência premente do governo imperial: construir mecanismos para o domínio da

estrutura fundiária brasileira. Em vista disso, todos os proprietários eram obrigados a

registrar suas posses nas paróquias, o que restringiu o acesso às terras que eram

devolutas somente por meio da compra. É preciso destacar que esse processo de

promulgação da lei se deu logo após a Lei Eusébio de Queiroz; dessa forma, grande

parte do capital que outrora era investido na escravidão passara a ser investido em

terras.79

Segundo Hermínia Maricato,80

a lei de Terras transforma a terra em mercadoria

nas mãos de quem já detinha as “cartas de sesmarias”:

Nas décadas anteriores á aprovação entre 1822 e 1850, que se

consolidou de fato o latifúndio brasileiro, através de ampla e

indiscriminada ocupação das terras, e a expulsão de pequenos

posseiros pelos grandes (...) tal processo se deu em função da

indefinição do Estado em impor regras.81

Mas isso não foi sem propósito: “a demorada tramitação do projeto de lei que

iria definir regras para comercialização e propriedade da terra se devia ao medo dos

latifundiários em não ver suas terras confirmadas”.82

Em conseqüência surgem os

registros eclesiástico de terras.

dentro baiano (Itapicuru, 1549-1822)”, artigo apresentado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da USP, s/d. Instituído no reinado de D. Fernando (1367-1383) o sistema de sesmarias foi um

recurso para se distribuir as terras e estimular o povoamento de áreas incultas ou conquistadas dos árabes

que ocupavam a península ibérica, para desenvolver a agricultura e dinamizar a produção de alimentos

em Portugal.Ver NEVES, Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história

regional e local). Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS, 2008 p. 64. 78

Cf. Anexo II. 79

Ver SILVA, Hélem Osório. Terras devolutas e latifúndios: efeito da lei de 1850. São Paulo: Editora

Unicamp, 1996. 80

Sobre Lei de terras ver MARICATO, Hermínia, Habitação e cidade. 81

Cf. João Sette W. Ferreira, “A cidade para poucos”, p.45. 82

MARICATO, 1997, apud FERREIRA, “A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no

Brasil”, p. 01.

Page 33: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

33

Para se entender um pouco a estrutura fundiária83

das Umburanas, conseguimos

catalogar 126 registros de terras no APB. A partir de tais registros, que fazem menção à

“sorte de terras”, é possível encontrar inúmeros aspectos, como: tamanho, forma de

aquisição, local da propriedade, limites das terras e nome das partes envolvidas. Foi

importante o cruzamento com os registros de compra e venda das terras que

complementavam as informações.

As Umburanas do séc. XIX era um povoado típico do interior da Bahia:

“simples e humilde”. Para sermos específicos, em termo de arquitetura e distribuição

geral do espaço,

A maioria das casas era feita de vara trançada com enchimento de

barro amassado, o piso era terra batida, a iluminação das casas eram

feitas de velas de sebo, candeeiros e lamparinas alimentadas por

querosene, azeite de peixe ou óleo de mamona”. As ruas eram

iluminadas por lampiões alimentados por querosene. A água [...vinha]

dos rios e tanques alternativos dos fazendeiros, e pequenos

proprietários que existiam próximos da povoação. 84

Com efeito, só “os fazendeiros mais abastados edificavam suas casas com

alicerces de pedra, paredes de adobes de argila crua e cobertura de telhas vãs. Portas e

janelas de espessas vergas” fechadas com trancas.85

Relativamente à forma de aquisição

é preciso ressaltar que “A titularidade fundiária surgiu como perpétua, hereditária e

inviolável, com a organização jurídica e política do Estado, em paralelo à propriedade

do escravo, antes pública, privatizada na sequência evolutiva”.86

No caso das

propriedades das Umburanas a maioria das terras era passada de pai para filho; ou seja,

através de herança, como no caso das terras da Fazenda Candeal Verde, adquirida por

Francisco Fernandes Serra “através de herança de seo pai, finado coronel Manoel

83

Em “História agrária na perspectiva socioeconômica” (NEVES, 2003, p. 11) podemos encontrar

observações interessantes sobre a vinculação de uma história agrária a uma história regional e local,

verificando-se aí „o estudo das estruturas e das organizações do espaço rural‟, e não simplesmente um

estudo do “crescimento da produção, da inovação das técnicas, dinâmicas dos sistemas de cultivo e

incremento da produtividade”. 84

Carlos Mello e Telito Rodrigues, Das Umburanas, p. 6. 85

NEVES, Uma comunidade sertaneja, p. 102. 86

NEVES, “Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural”, p. 01. Acrescentamos aqui que,

em 1917, o Código Civil Brasileiro, no seu Capítulo II, seção I, artigo 550, iria dispor sobre as formas de

aquisição de terras, discriminando quatro maneiras: transcrição do título de transferência no registro

imóvel, acessão, usucapião e direito hereditário.

Page 34: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

34

Fernandes Serra”.87

Embora devamos também realçar que, em outros momentos, a

“família agregada” participava igualmente desta transferência de bens. Reportamo-nos

aqui ao caso de parte de terra da Fazenda da Tapera, 85 braças de fundo que em 1858

foi adquirida por Francisca Gomes do Livramento através de herança de sua sogra,

Francisca Maria de Paula. 88

Quanto às partes envolvidas nas negociações, observamos uma considerável

participação de mulheres no processo da compra e vendas de terras, como veremos no

tópico seguinte que, obviamente, vai reservar também espaço para os proprietários do

sexo masculino, maioria no quesito de proprietários de terras.

Por fim, relativamente aos preços das propriedades, era preciso observar

aspectos que condicionavam as suas oscilações; acerca deste segundo aspecto, sabe-se

que as extensões das terras, as condições do solo, localização e disponibilidade de água

(como a proximidade dos rios Jacuípe e Paraguaçu), eram fatores condicionantes do

preço de mercado. Vicente Ferreira da Silva, que apresentou para registrar uma sorte de

terras à beira do Rio Jacuípe, no lugar denominado Jenipapo, com 404 braças e meia

larga e 800 de fundo, e houve por compra a viúva de Pedro Ribeiro, tendo como limites

pela parte nascente do Rio Jacuípe pelo Norte os marcos enfincados e pela parte do Sul

a Fazenda Mocó: poente com o Capitão Inocêncio de Almeida e Sul com terras de

Mateus de Almeida Lima. As terras adquiridas por Vicente Ferreira certamente

alcançaram altos preços em razão dos benefícios naturais que abarcavam.

A existência de benfeitorias no interior das propriedades (casas, cercas, tanques

etc.) e inexistência de ônus fiscais, como foi o caso da Fazenda Curumatahi, de

propriedade, em 1880, de Antonio Dias Lopes, era outro fator de valorização das

propriedades rurais. A fazenda, que foi comprada por João Augusto Ferreira pela

quantia de 1:500$000 (um conto e quinhentos mil réis), é bem possível que alcançou o

considerável preço por possuir tais atributos.

Para efeito de catalogação dividimos as propriedades das Umburanas, com

referência ao tamanho, em: pequenas (até 399 braças), médias (de 400 até 849 braças) e

grandes, com porte acima de 850 braças. Os registros de terras fazem referência à

nomenclatura de “braças de terra” e a légua para designar o lado frontal da propriedade

87

Registro Eclesiástico de Terras da Freguesia de N. Senhora dos Resgates das Umburanas, 1858, APB,

Colonial, maço 4823, p. 28. 88

Registro Eclesiástico de Terras da Freguesia de N. Senhora dos Resgates das Umburanas, 1858, APB,

Colonial, maço 4823, p. 23.

Page 35: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

35

e o “fundo” da mesma. 89

Como mostra o gráfico abaixo, a maior parte das propriedades

das Umburanas é de pequeno porte e uma parte ínfima de grande porte, o que nos leva a

crer que em Umburanas do século XIX predominavam os pequenos proprietários com

um número reduzido de escravos, e sendo as fazendas bem próximas umas das outras.

Gráfico 1- Percentual relativo ao tamanho das propriedades

Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia (APB), Colonial maço 4823, Registro

Eclesiástico de Terras.

A tabela I apresenta as principais fazendas das Umburanas:

1. Areal 21. Morro Talhado

2. Barra do Corumathaí 22. Coqueiro

3. Cabana 23. Candeal

4. Cavaco 24. Morro Pombo

5. Campinhos 25. Olhos D‟água

6. Caldeirão 26. Olheiros

7. Candeal Verde 27. Paus d‟arco

8. Cansanção 28. Perí

89

Braça - do latim brachia - plural de brachin (braço). Antiga unidade de medida de comprimento,

equivalente a 10 palmos, ou seja, 2,2ms (Brasil). Uma légua equivale a 6.000 metros.

PEQUENO55%

MÉDIO30%

GRANDE15%

Propriedades:

Page 36: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

36

9. Corimataí 29. Poço Grande

10. Caroá 30. Rôco

11. Ervadoce Verde 31. Porteiras

12. Facão 32. Patrimônio da Matriz

13. Genipapo 33. Queimado

14. Gerde 34. Riacho de Areia

15. Ladeira 35. Ribeirão

16. Lagoa Comprida 36. Santa Cruz

17. Mangabeira 37. Santa Bárbara

18. Mata do Rio Cavaco 38. Santa Tereza

19. Mocó 39. Santo Antônio

20. Mariana 40. Amarela

Tabela I: Principais propriedades da Freguesia das Umburanas

Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia (APB), Colonial maço 4823, Registro Eclesiástico

de Terras.

1.2.2 Os proprietários

Observemos primeiramente que há uma diferença entre ser proprietário de terra

e ter a posse da mesma. Neste caso, a posse tem caráter transitório, uma vez que se

constitui em uma propriedade de fato, não de direito, pois consiste em “se apoderar e

controlar algum bem, independentemente da legitimidade desse ato”;90

no primeiro

caso, ser proprietário significa possuir a terra tanto de fato quanto de direito,

formalizando-a através de registro e dando, desta feita, a sua continuidade de forma

hereditária. Tendo em conta que nossa analise foi pautada nos registros em cartório, só

foi levado em conta os proprietários legais das terras.

Nas Umburanas do séc. XIX a vida rural era caracterizada por uma população

dispersa, distribuída pelas fazendas. Dessa forma, a taxa de urbanização era pequena.

Em relação à quantidade de fazendas na região notamos, através dos Registros

90

NEVES, “Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural”, p. 03.

Page 37: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

37

Eclesiásticos de Terras91

, que os proprietários dessas fazendas muitas vezes eram

mulheres. De uma relação composta por 79 fazendas que constam os nomes dos

proprietários há, no registro aqui especificado, 24 mulheres proprietárias, ou seja,

aproximadamente 30%. Além de donas destas fazendas, tais mulheres participavam

também do processo de compra e venda de escravos.

Gráfico II: Percentual de homens e mulheres proprietários de terra nas

Umburanas

Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia (APB), Registro eclesiástico de terras,

colonial,1858-1859, maço 4823.

Foi o caso da Sra. Victorina Maria Carvalho92

, dona da fazenda Bom viver,

viúva do Sr. José Joaquim de Carvalho (cujo nome vem sempre presente nas escrituras,

apesar de já ter falecido), que comprou a escrava Luiza, “cabra de idade de 31 anos”,

por 550$000 (quinhentos e cinquenta mil réis); ou da Sra. Maria da Anunciação

Araújo,93

proprietária da Fazenda Pernambuco, que comprou o escravo João Batista, de

16 anos, por 350$000 (trezentos e cinquenta mil réis). Acrescentamos ainda o caso da

91

Registro Eclesiástico de Terras da Freguesia de N. Senhora dos Resgates das Umburanas, 1858-1869

APB, Colonial, maço 4823. 92

Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, livro 10, s/p, 1886. 93

Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, livro 10, fl. 27, 1885.

70%

30%

0

10

20

30

40

50

60

Homens Mulheres

PADRÃO DA PROPRIEDADE

Page 38: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

38

Sra. Felipa Maria de Jesus94

, vendedora da escrava Augusta, preta de 18 anos mais ou

menos, cedendo para posse do comprador José Onorato de Araújo, pela quantia de

300$000 (trezentos mil réis). Foi bastante comum encontrar os nomes dessas mulheres

proprietárias nos cruzamentos dos registros. Dessa forma, fica evidente a participação

dessas senhoras proprietárias de terras e de escravos umburanenses em transações e

negócios que envolviam a mão de obra cativa.

Esse fato é instigante, na medida em que abre caminho para uma reflexão sobre

o papel das mulheres nestas sociedades rurais no século XIX. Constituíram essas

senhoras proprietárias um “grupo social heterogêneo e transitório”,95

a saber, senhoras

donas de terras e escravos, com suas práticas próprias, com suas maneiras específicas de

lidar com o manejo das terras e dos escravos? O livro de Maria Odila Dias, Quotidiano

e poder em São Paulo no século XIX, embora se concentrando em uma região

metropolitana, traz a ideia da necessidade de percebermos uma outra “condição

feminina”, menos abstrata, universal e a-histórica.96

Ou seja, uma mulher desmitificada,

que tem uma participação efetiva no processo histórico, inclusive relacionado ao

processo produtivo.

As fontes disponíveis que conseguimos ter acesso apontam justamente para

inúmeras mulheres que se tornavam proprietárias de terras, muitas vezes em função do

falecimento de seus maridos, fato que as obrigava a, ou vender a propriedade, ou então

administrá-la. Foi este o caso da Dona Eufragina de Magalhães, viúva do finado

Joaquim Magalhães que, com a morte do esposo, herdou a Fazenda Barra do Pote,97

tornando-se a partir daí uma presença constante no cartório, comprando e vendendo

imóveis.

Quanto aos proprietários homens, o que aparece muito frequentemente nos

registros são suas denominações por patentes. A Fazenda Coqueiros é de propriedade de

Coronel Alvino José da Silva e Almeida, cujos limites desta terra encontram “por um

lado com as terras do Capitão Joveniano José da Silva Almeida”. O Capitão Jerônimo

apresenta ao cartório duas declarações das terras e o Capitão Jose da Silva Barreto

aparece muito freqüentemente nos registros, pois sua fazenda (sem nome) era um marco

sempre presente: “terras do Capitão José da Silva Barreto”.

94

Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, livro 10, fl.18, 1886. 95

DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 118. 96

Ibidem, p. 13. 97

Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso do ano 1883.

Page 39: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

39

É importante observar aqui que os registros não informam se essas patentes eram

devidas a hierarquia militar como tal, pois, com frequência, a denominação de coronel

ou capitão era atribuída àquelas pessoas que detinham um certo lugar social ou político

de destaque. Assim, como escreveu Iara Nancy Rios, “A patente de coronel, porém, não

ficou restrita ao serviço militar, passando a ser usado para distinguir pessoas com poder

político em determinadas regiões, principalmente proprietários de terra com poderes

paramilitares, ou pessoas com prestígio político”.98

Enfim, se esses senhores com “patente” representaram uma parcela da população

com prestigio e poder, este poder não se restringiu apenas aos registros de terras aqui

referidos, mas, sobretudo, permeou transações envolvendo a mão de obra cativa. Isso

reforça a ideia de que a breve menção às patentes, dos que aparecem como comprador

ou proprietário de terras e escravos sinalizava claramente para a existência de uma

relação de poder aí instaurada, bem como de senhores capitães ou coronéis possuidores,

geralmente, de força econômica.

É preciso destacar uma peculiaridade interessante do perfil dos proprietários de

terras do sertão, relativamente aos do recôncavo. O poeta Eurico Alves Boaventura traz

a imagem de uma aristocracia sertaneja como suarenta, castigada pelo sol a pino, atrás

de boi bravo, com suas roupas se rasgando no serrado, ao invés de guardar a imagem de

um senhor de escravo alheio ao trabalho mais pesado da lida. O poeta em causa nos leva

a visualizar o sertanejo dono de terra com seu chapéu de couro, seu gibão e, enfim,

todos os adereços ou recursos necessários para a difícil labuta do dia a dia. Tais

proprietários participavam ativamente, pois, das atividades ligadas ao manejo do gado

em suas propriedades, juntamente com os escravos.99

A estrutura agrária das Umburanas, tão marcada pelas relações de proximidade

entre senhores e escravos, nos remete ao conceito de paternalismo, tão caro à

historiografia da escravidão nas Américas. Thompson fez algumas ressalvas para o uso

sem qualificações do termo paternalismo, principalmente devido às generalizações que

o seu emprego pode vir a implicar. “O paternalismo é um termo descritivo frouxo. Tem

uma especificidade histórica consideravelmente menor do que termos como feudalismo

98

RIOS, Iara Nancy. “Nossa Senhora da Conceição do Coité: poder e política no século XIX”. Programa

de Pós-Graduação em História. Mestrado em História. Salvador: UFBA, 2003, p. 63. 99

BOAVENTURA, Fidalgos e vaqueiros, 1989.

Page 40: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

40

ou capitalismo. Tende a apresentar um modo de ordem social visto de cima. Tem

implicações de calor humano e relações próximas. Confunde o real com o ideal”.100

Mas o que fazer, então, com o uso ou emprego do termo? O autor não aconselha

a que o deixemos de fora, que se o abandone. O que não poderíamos fazer é tomá-lo de

uma forma generalizante, crítica parecida a quem empregasse outras tantas noções sem

esclarecer as suas devidas especificidades históricas. Assim, pecaríamos se falássemos

em geral sobre conceitos como “autoritário”, “democrático”, “igualitário”. Desse modo,

“Nenhum historiador sensato deve caracterizar toda uma sociedade como paternalista ou

patriarcal”, embora tal termo possa aparecer como operador relevante nesta ou naquela

sociedade.101

Douglas Libby, fazendo um estudo do paternalismo no âmbito do escravismo

moderno, e seguindo a interpretação de Genovese,102

ilustra bem essa problemática. O

autor procede a uma comparação entre o paternalismo consolidado no Sul dos Estados

Unidos com o paternalismo da América portuguesa, partindo da ideia de que, no

primeiro caso, as fontes para a pesquisa eram ricas e mais abundantes:

É que o paternalismo brota de maneira simplesmente prodigiosa das

páginas e folhas de centenas de milhares de fontes produzidas por

senhores e senhoras de escravos e seus familiares, por administradores

e outros empregados livres, por médicos e advogados contratados por

proprietários de cativos e até pelos próprios escravos. A riqueza das

fontes privadas tão bem preservada nos arquivos locais e estaduais do

Sul, é virtualmente incalculável.103

Não obstante esse fato, Libby não deixa de defender a posição segundo a qual o

paternalismo brasileiro, mesmo sendo de difícil reconstituição, haja vista a carência de

fontes, foi inalienável e marcante. E esta presença se tornava mais evidente nas

pequenas e médias posses (algo não adequadamente discutido ainda, segundo o autor),

100

THOMPSON, Costumes em comum, p.32. 101

Ibidem, p. 32. 102

Libby, em “Repensando o conceito de paternalismo escravista nas Américas” (Rio de Janeiro: Paz e

Terra, CNPQ, 1988, p. 28), faz referência à obra de Genovese A terra prometida: o mundo que os

escravos criaram, e menciona o conceito de paternalismo deste autor não como uma doação, mas como

uma conquista na qual o escravo é um agente da sua própria história. 103

Ibidem, p. 36.

Page 41: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

41

pois aí não se podia fugir do contato interpessoal, das relações de afeto e de desafeto

que se instauravam.104

Tendo em vista que nas Umburanas as propriedades eram em geral de médio a

pequeno porte, supomos que as relações paternalistas, tais como as descritas acima,

foram latentes. Vários exemplos disso são encontrados nas cartas de alforria. Citamos

aqui o caso curioso de Salustiano Alves Sampaio105

, que “concedeu” a liberdade à

escrava Joaquina, pelos “bons serviços prestados” pela “pequena quantia de 150$000

(cento e cinqüenta mil reis) para o gozo da liberdade”. O que poderia indicar uma

concessão do senhor – a liberdade por uma pequena quantia – sugere um olhar mais

atento do investigador. Ora, o que caracterizaria aqueles “bons serviços prestados”? No

bojo disso os escravos não teriam desenvolvido certos ardis, com o fim de conseguir

benesses dos seus senhores e de barganha nos valores da compra de sua alforria?

Em segundo lugar, tendo em vista que muitos escravos pagaram pela sua

liberdade como no caso de Joaquina que paga “pequena quantia” (apesar dos bons

serviços prestados), essas circunstâncias demonstram que o processo de conquista da

liberdade se estabeleceu “como um jogo nunca vencido pelos senhores, pela simples

razão de que os cativos nunca cessaram na sua luta pela conquista de espaços

adicionais”.106

Vimos até agora algumas peculiaridades das Umburanas, tanto relacionadas com

aspectos geográficos e climáticos, quanto a aspectos relacionados com a sua estrutura

produtiva. Foi importante destacar a investigação dos arranjos de poderes locais,

relacionado com a apropriação territorial, que nos permitiu mapear as caracterizações

das propriedades e dos seus proprietários. O elemento geral consistiu em ser uma

localidade de pequenos e médios senhores, com uma produção mais voltada para a

agricultura alimentar , fumageira e a criação de gado, tanto para o auto-consumo quanto

para o abastecimento de regiões circunvizinhas (culturas estas que foram favorecidas

pela proximidade dos rios Jacuípe e Paraguaçu). Conheceremos agora questões

atinentes ao escravo, como a dinâmica do tráfico, a sua forma de trabalho, as repartições

dos mancípios nessas ocupações (crianças, homens e mulheres) e as transações

comerciais no qual estavam envolvidos.

104

Sobre esse amplo conceito de paternalismo autores que merecem destaque são GENOVESE (A terra

prometida), SLENES (Na senzala, uma flor), LARA (Campos da violência), CHALHOUB (visões da

liberdade) e MACHADO (“Em torno da autonomia escrava”). 105

Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, p.72, carta de liberdade datada

de 1870. 106

LIBBY, “Repensando o conceito de paternalismo escravista nas Américas”, p. 34.

Page 42: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

42

2.0- Capítulo II – Quem eram os escravos nas Umburanas?

2.1- O Tráfico inter e intraprovincial: faces de uma mesma moeda?

Na segunda metade do século XIX deu-se o fim do tráfico atlântico de escravos,

o que propiciou uma significativa mudança no sistema escravista brasileiro, no sentido

de uma crescente rearticulação interna de redes de transferências de escravos. Era uma

estratégia necessária, a fim de manter o sistema ainda vivo, possibilitando o fluxo intenso e

interno de escravos nas transações comerciais, que deixavam regiões em decadência

econômica para as mais promissoras. Daí a máxima de que a Bahia passara da condição

de importadora para a condição de exportadora de escravos.107

É importante atentar para os conceitos de tráfico intra e interprovincial. O tráfico

intraprovincial era aquele realizado dentro da própria província, de uma determinada

região para outra ou mesmo dentro de uma mesma região. Já o tráfico interprovincial

dos cativos fazia-se de uma província para outra, mais comumente das províncias do

norte: (notadamente Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Maranhão), para as do sul

do Império (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas), embora fosse praticado, em menor

escala, entre as províncias de uma mesma região. Segundo Graham, na metade do

século dezenove, quando a “economia cafeeira da província do Rio de Janeiro crescia de

maneira explosiva, logo seguida por São Paulo, e foi principalmente para estas áreas

que os escravos foram transferidos”.108

Assim, até ser abolido oficialmente em 1885, o

tráfico interprovincial movimentou nada menos do que 200 mil escravos das províncias

do norte para as do sul, conforme constatou Slenes.109

Nas últimas décadas que precederam a abolição a escravidão ainda continuava

muito vigorosa nas Umburanas, embora com diferentes configurações. Os livros de

notas dos tabeliães foram a principal fonte para analise de como se deu a inserção da

referida freguesia dentro do tráfico interno de cativos. O seu potencial, tanto para

compra como para vendas, mostrou-se bem significativo no século XIX. A demanda

107

Cf. SILVA, Tadeu. “A participação da Bahia no tráfico interprovincial de escravos (1851-1881)”, III

Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis, UFSC, maio/2007. 108

Cf. GRAHAM, Richard. “Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no

Brasil”, Afro-Ásia, n. 027, 2002, p. 122. 109

apud SILVA, op. cit., p. 02.

Page 43: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

43

crescente e contínua de escravos evidencia que realmente a região era um centro

dinâmico de comercialização de cativos. Tudo indica que essa demanda por escravos na

região estava associada a sua utilização na produção, criação e mercado de especulação

de mancípios. Consideramos significativo o número de registros de compra e venda de

escravos: foram 200 registros e 243 escravos negociados no período compreendido

entre 1850-1888, localizados no cartório publico de Antonio Cardoso (Umburanas).

O comércio intra regional, apontado nas escrituras públicas, registra uma maior

freqüência das vendas para negociantes da própria região de Feira de Santana. Isso nos

faz supor que houve uma rearticulação interna para a posteriori negociar para as regiões

do Sul e Sudeste; uma mão de obra escrava, segundo Graham,110

vinda não

propriamente dos grandes engenhos, mas, sobretudo, das pequenas e médias

propriedades agrícolas. Enfim, o comércio intra e inter-regional estavam intimamente

relacionados em Umburanas, constituíam etapas da negociação, na qual os proprietários

mais abastados dos centros urbanos recorriam aos escravos de zonas rurais com preços

mais acessíveis e revendiam para as zonas mais prósperas. É importante destacar que

muitos desses registros de compra e venda tem a presença marcante dos procuradores

que, em sua maioria, eram naturais de Cachoeira.111

Muitos negociantes de escravos procuravam meios para escapar dos impostos e

aumentar a margem de lucro no tráfico. Para fugir de tais tarifas cobradas pelos portos

provinciais uma opção era se valer dos procuradores.112

Alguns destes realmente

estavam na condição de meros representantes; não obstante, sabe-se que essa era uma

estratégia eficaz no tráfico de escravos. Esses intermediários como representante dos

compradores e vendedores se valiam dessa condição de “plenos poderes” e construíam

redes de comercialização. Robert Slenes detalha a ação desses pseudo representantes:

“compravam o escravo do vendedor original e vendia-o depois ao comprador final,

110

GRAHAN, “Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil”, Afro-

Ásia, n. 027, 2002, p. 130. 111

Lucilene Reginaldo remete à dinâmica de Cachoeira: “Para este importante e estratégico centro

comercial e urbano se dirigiam as tropas da região das Minas, Caetité e Rio de Contas que, além de

gêneros alimentícios salgados e curtidos, traziam algodão, couros, ouro em pó e em barra; gado cavalar e

vacum. Toda essa movimentação de tropas e embarcações concorria para fazer aparatosas e atraentes suas

animadas feiras. Embarques de produtos sertanejos, desembarques de mercadorias européias, além do

burburinho das atividades comerciais faziam de Cachoeira uma região de freqüentes roubos, desordens e

assassinatos”. REGINALDO, Lucilene. “Os Rosários dos angolas: irmandades negras, experiências

escravas e identidades africanas na Bahia setecentista”. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de

Campinas, 2005, p. 78. 112

Nesses casos, não se costumava fazer uma escritura de compra e venda para cada transação efetuada.

Normalmente se disfarçava a transferência de posse para um negociante intermediário com uma

procuração bastante. Cf. SLENES, 1986, p. 118.

Page 44: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

44

quando não a outro mercador”.113

É válido ressaltar que esses negociantes possuíam

uma procuração, que legitimava as suas transações.

O trabalho de Mariana Assunção também discute e corrobora este aspecto da

inserção dos procuradores nos processos de negociação com escravos em Fortaleza.

Para a autora, a existência dos procuradores foi inegável e importante, uma atividade

que, possibilitando burlar exigências fiscais, tornou o negócio vantajoso e rentável:

A figura do procurador surge como uma peça importante dos negócios

de venda dos escravos na província. Com um documento de

procuração em mãos, os negociantes lucravam mais com a venda de

escravos, postergando e até não pagando os impostos governamentais

exigidos em qualquer transação comercial. Por esta razão a rede do

tráfico interno foi bastante profícua na província, pois negociantes

atuantes no porto compravam e repassavam escravos em troca de

recibos de pagamento sem que uma escritura fosse lavrada,

possibilitando margens para sucessivos substabelecimentos.114

Supomos que os traficantes encontraram nas Umburanas um terreno propício

para a comercialização e especulação de cativos. Isso foi devido, principalmente, à

intensa movimentação dos procuradores e a facilidade de circulação e escoamento dos

escravos, favorecido pela proximidade dos rios Paraguaçu e Jacuipe, além da já citada

Estrada Real. Alguns procuradores-negociantes apareciam nos registros com muita

frequência. Um desses casos é o de Thomaz de Souza Silva, natural de Cachoeira, que

se tornou uma presença constante no cartório da referida freguesia, em livros e períodos

diversos. Na escritura de vinte e dois de agosto de 1874 quem comprava era Vicente

Rodrigues de Oliveira,115

morador da cidade Cachoeira, a escrava Cândida, dezoito

anos, serviço da lavoura, por seu legítimo procurador Thomaz de Souza Silva, e,

curiosamente, dois anos depois o nome dele ainda estava presente nas escrituras. Aos

doze dias do mês de abril de mil oitocentos e setenta e seis compareceu ao cartório com

sua bastante procuração para compra da escrava Teresa, vinte e cinco anos, serviço da

lavoura.116

113

SLENES, “Grandeza ou decadência?”, p. 118. 114

Cf. ASSUNÇÃO, Mariana. “Escravidão e Liberdade em Fortaleza, Ceará (século XIX)”, tese de

doutorado, UFBA, 2009, p. 103. 115

CPAC. Livro de notas do tabelionato n. 6 Escrituras públicas de compra e venda, (1874, p. 57) 116

CPAC. Livro de notas do tabelionato n.7, Escrituras públicas de compra e venda, (1876, página não

identificada).

Page 45: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

45

Robert Conrad destaca que o tráfico interno fez surgir a figura do “comprador de

escravos viajante”, que percorria caminhos por entre as províncias e convencia os

fazendeiros menos abastados a venderem seus poucos escravos à módicos preços,

porém, acima da média do local. Segundo ele:

O tráfico interno de escravos no Brasil foi estimulado pelo o fato de

haver total disponibilidade de escravos para os plantadores que

tivessem dinheiro para comprá-los, não só em lugares remotos do

império mas também nas cidades e áreas rurais vizinhas, onde os

residentes da cidade, fazendeiros pobres, plantadores empobrecidos, e

outros que obtinham um lucro relativamente pequeno com seus

trabalhadores podiam vendê-los com algum proveito.117

Ricardo Tadeu Caíres descreve de forma muito interessante como era a ação dos

traficantes no interior da Bahia: “Munidos de dinheiro, correntes, armas [...] percorriam

as vilas e cidades do interior em busca dos senhores menos abastados, sobretudo os

pequenos e médios proprietários, para propor-lhes a compra de seus cativos”.118

Segundo ele, tomando a fala do barão de Cotegipe, à época João Maurício Wanderley,

transparece a denúncia de que tais traficantes não trabalhavam sozinhos, senão

formavam “uma rede organizada de angariadores de escravos”, que se especializavam “em

seduzir os pequenos lavradores que possuem um [escravo], por exemplo, e que com ele ganham

de 30 a 40$000 por mês”. Por que isso?

Para dar fim produtivo ao seu dinheiro? Não, porque o dinheiro é

desperdiçado logo ou entregue a um especulador, dos que se dizem

grandes negociantes por aí. E com isso o número de pequenos

proprietários vai desaparecendo, e reduzem-se homens livres à

escravidão, além de se desprezar o lado humano, que nisso também

existe, porque ao aliciador de escravos só lhe interessa o homem que

pode trabalhar, e não a sua família, portanto separado do seu chefe.119

117

CONRAD, Robert. Tumbeiros. O tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.

189. 118

Cf. CAIRES, Ricardo Tadeu. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e direitos nas

últimas décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888). Tese de doutorado, UFPR, 2007, p. 124. 119

Idem. Apud Gerson. Brasil. A escravidão no Império. Rio de Janeiro: Pallas, 1975, ANAIS da Câmara

(1854).

Page 46: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

46

Desta forma, ele conclui que o trafico interno foi tão ou mais cruel do que o

tráfico atlântico. Quanto aos escravizados, eles eram reunidos em lotes, onde

“permaneciam vários dias e até mesmo semanas nos depósitos e armazéns das casas

comercias, à espera do embarque”.120 Nesses locais improvisados eles faziam as refeições e

obtinham certo cuidado quando apresentavam alguma moléstia, uma vez que o seu preço

tinha a ver diretamente com as suas condições de saúde para o trabalho. È válido salientar

que esse tráfico interno existiu muito antes do marco estabelecido como conseqüência direta

da escassez do tráfico atlântico; não obstante, é inegável a amplitude e recorrência que se

deu após esse marco, homens e mulheres escravizados “vinham, há muito, sendo

comercializados internamente no Brasil, alguns atravessando longas distâncias,

tivessem eles primeiro sido transportados do ultramar ou não”.121

Tabela II: Tráfico Intraprovincial de Escravos em Umburanas através de Poderes

Constituídos por Procurações Fonte: Cartório Público de Antonio Cardoso. Registros de compra e venda de escravos Livro de

Registros Diversos.

De um total de 200 registros analisados, 48 destes foram por procuração. É uma

quantidade significativa e, a nosso ver, bastante esclarecedora da realidade da freguesia.

Outro destaque é que, apesar de existirem muitas procurações, poucos eram os

120

CAIRES, Caminhos e descaminhos da abolição, p.125. 121

GRAHAM, “Nos tumbeiros mais uma vez?”, p. 27.

PODERES

CONSTITUÍDOS

Nº PROCU

RAÇÕES

%

DÉCADAS

Compra e venda de

escravos

18 37,5 % 1850

Compra e venda de

escravos

6 12,5% 1860

Compra e venda de

escravos

14

29,16% 1870

Compra e venda de

escravos

Total:

10

48

20,83%

1880

Page 47: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

47

procuradores, ou seja, alguns nomes se repetem com frequência, em virtude do que já fora

exposto, isso nos faz supor que havia nas Umburanas pessoas que lucravam muito nas

referidas negociações por meio de procurações.

De acordo com a tabela acima percebe-se que houve um maior número de

procurações na década de 50, computando 37,5%. Acreditamos que os procuradores se

aproveitaram muito das condições de crise do cólera e da grande seca para comprar os

escravos com preços abaixo da média e depois barganhar entre os senhores interessados.

Sobre a crise ocasionada pela epidemia do cólera, esta se concentrou entre de julho de

1855 e agosto de 1856. “De acordo com as estimativas feitas pelo médico Rodrigues

Seixas, que atuou no combate à doença, a epidemia matou cerca de 36.000 pessoas, sendo a

maioria destas pertencentes à população negra e pobre”.122 Segundo Onildo Reis David, o

problema maior era que:

A Bahia não estava preparada para enfrentar o cólera. As precárias

condições de higiene de suas cidades, a pauperização de seu povo, a

falta de diligência do governo na condução das medidas sanitárias

preventivas, o parco conhecimento dos médicos sobre a doença e sua

maneira de transmissão, tudo isso contribuiu para que a província,

bem como outras regiões do Brasil, fosse atingida de forma virulenta

pela peste.123

Outro fator que certamente contribuiu para uma maior incidência da presença

dos procuradores foi a grande seca que abateu a região entre os anos de 1857 e 1860,

caracterizada por um longo período de estiagem, provocando a morte de gado e perda

de lavouras.124

Fátima Pires observa o seguinte, ao analisar este período:

A prolongada seca de 1857-60 contribuiu significativamente para

intensificar as atividades do tráfico que, açodado por fatores internos e

externos viu paulatinamente mudar a sua condução e configuração.

Traficantes especializados, „gente do Sul‟ e firmas da capital da

província e de São Paulo penetraram por fazendas e roças

comercializando escravos com ricos e pobres senhores do sertão”.125

O trabalho de Luiz Cleber Freire não deixou de mencionar o fato, mostrando em

primeiro lugar que havia uma periodicidade na ocorrência da seca, própria de Feira de

122

Cf. CAIRES, Ricardo Tadeu. “Caminhos e descaminhos da abolição”, p. 89. 123

DAVID, Onildo Reis. O inimigo invisível: epidemia na Bahia no século XIX. Salvador: Sarah Letras/

Edufba, 1996, p. 124

As atas da Câmara Municipal fizeram menção a este difícil período. Cf. APB, série Câmaras, maço

1310. 125

PIRES, Fios da vida, p. 49.

Page 48: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

48

Santana e região; mas, em segundo lugar, pontuando que este fenômeno sofreu um

agravamento nos anos acima descritos, daí falar-se em crise. Assim, resgatando

registros datados de 1857, na cidade de Feira de Santana, ele escreve:

Em ata de 27 de agosto do referido ano, a Câmara chegou a solicitar

ao presidente da província, auxílio para a crise da seca na região,

relatando que os preços dos alimentos estavam tão altos que, se

fossem aumentados um pouco mais, trariam “a penúria e

enfraquecimento de meios pecuniários tal, que dificilmente as

Famílias remediadas se manterão e a classe pobre miseravelmente

perecerá, pois absolutamente não podem adquirir equivalentes

quantias e permutar, pelo alimento.126

Esse fluxo do tráfico interno de cativos trouxe mudanças significativas às suas

vidas, tendo em vista as transformações no que dizia respeito aos seus laços familiares,

aos laços afetivos, de amizade e de trabalho. Acrescentamos a isso as frustrações que

passavam eles, quando não viam as suas expectativas e acordos cumpridos, sobretudo

em relação às promessas de liberdade que os seus senhores muitas vezes, mudavam de

rumo, quando a venda de algum mancípio tornava-se imperiosa. Neves, em

“sampauleiros traficantes”, também detalha a ação dos traficantes:

Os traficantes internos se revelaram astuciosos na burla das leis e do

fisco, negociando menores de 12 anos sem a companhia materna,

como determinava a Lei do Ventre Livre, de 1871, alegando

orfandade ou filiação desconhecida; informando preços inferiores, sob

argumento dos escravos serem doentes; comercializando cativos

matriculados em outras províncias após a Lei dos Sexagenários, com a

justificativa de adquiri-los para venda antes desse dispositivo.127

As pesquisas de Barickman confirmam o fato de que os grandes proprietários

baianos utilizaram a mão-de-obra escrava até os últimos instantes em que a escravidão

126

APEB. Seção Colonial/Provincial. Série Câmaras. Maços 1310 (caderno 1857) e 1312 (caderno 1860),

in FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 52. 127

Cf. NEVES. “Sampauleiros Traficantes: comércio de escravos do alto sertão da Bahia para o oeste

cafeeiro paulista”, p. 23. Nesta mesma obra o autor menciona como, antes de 1871, havia igualmente a

ação dos traficantes no sentido de burlar as leis: “(...) Em meados da década de 1870, para burlar o fisco

imperial, não pagando a meia cisa das transações comerciais determinadas pela legislação, os traficantes

transferiram escravos apenas com a procuração dos vendedores, lhes outorgando poderes para

comercializá-los, podendo substabelecerem em sucessivos negócios”. P. 4.

Page 49: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

49

vigorou.128

Segundo Caires, “A província baiana foi uma grande consumidora de

escravos e quando o tráfico cessou encontrava-se devidamente abastecida por milhares

deles”.129

Algumas medidas foram inclusive tomadas no sentido de garantir a

permanência da mão de obra cativa: “A intensidade dessa remoção levou o governo da

Bahia, na tentativa de evitar a escassez da mão de obra, estabelecer, em 1853, uma taxa

de 80 oitenta mil réis sobre cada escravo exportado, e aumentá-la posteriormente para

200 mil réis”.130

Quanto à destinação dos escravos negociados, o que pudemos observar foi que

nas Umburanas, ao avaliarmos a localidade para onde se vendia o escravo, tivemos a

nítida impressão que o tráfico interno foi caracterizado por um atrativo da mão de obra

voltado para os próprios limites ou interior da província. Encontramos nos registros,

apenas um caso de venda para o Rio de Janeiro. Só é possível que os negócios

envolvendo o elemento cativo tenha atendido ao tráfico interprovincial, mediante ação

traficantes de Cachoeira, de Feira de Santana ou outras regiões circunvizinhas. Pois

pelos registros não pudemos fazer essa inferência.

Relativamente ao fim do tráfico interprovincial, segundo Conrad (1975) as

razões do seu término estiveram ligadas precipuamente ao desequilíbrio numérico dos

cativos entre as regiões Norte e Sul do país. O receio que se tinha era que tal

desequilíbrio ocasionasse o crescimento de ideias abolicionistas, podendo redundar em

uma guerra civil, tal como ocorreu nos Estados Unidos. A solução adotada, a priori,

para resolver esse problema foi a elevação das taxas de importação de escravos, sendo o

Rio de Janeiro a primeira província que chegou a estipular o alto valor de 1:500$000

(um conto e quinhentos mil réis) para cada escravo oriundo de outra província,

providência esta seguida tão logo por São Paulo e Minas Gerais. Soma-se a isso o

aumento da vontade dos cativos de se libertarem do cativeiro, desejos potencializados

pelas tensões geradas a partir dos transtornos que passavam, por exemplo quando

tinham que se desvincular da sua famílias, em função do tráfico ao qual eram

submetidos. Esse prolongamento da escravidão se constituiu como única possibilidade

128

BARICKMAN, Bert. ““Até a véspera”, o trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do

Recôncavo baiano (1850-1881)”, In: Afro-Ásia, n.° 21-22. Bahia: 1998-1999, pp. 177-237. 129

CAIRES, “Caminhos e descaminhos da abolição”, p. 58. 130

NEVES, Uma comunidade sertaneja, p. 282.

Page 50: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

50

de manutenção do próprio sistema escravista e também, paradoxalmente, forneceu

elementos para o seu declínio131

.

2.2- Origem: Africanos, Crioulos, Pardos e Pretos:

Em cada uma dessas esquinas,

reuniam-se os que se tinham por da

mesma nação,ou falavam a mesma

língua, ou eram, na África, vizinhos ou

culturalmente aparentados, ou eram

malungos, ou seja, tinham chegado ao

Brasil no mesmo navio. Aqui, ficavam

os nagôs; ali, os jejes; lá, os cabindas;

acolá, os angolas; mais adiante, os

moçambiques – identidades que os

africanos criaram no Brasil. E entre os

seus aparentados e semelhantes

ajustavam fidelidades e renovavam os

contatos com a África de cada um.

Alberto da Costa e Silva

Um rio chamado Atlântico

Em “De onde vem o cativo na África” Kátia Mattoso faz um estudo acerca da

procedência dos escravos africanos para o Brasil, lembrando-nos que milhares deles

foram expatriados, caso contássemos os “três longos séculos” de vigência da

escravidão.132

A autora ainda ressalta que para cá vieram, “sem se confundir, etnias,

tribos [e] clãs diversos”.133 O problema, porém, estava em identificar como se processou

a diáspora, como saber mais sobre o que muito tempo na historiografia ficou rotulado

como algo por demais genérico – o escravo africano – mas sem pontuar de qual africano

estaríamos falando ao pensar no seu tráfico para o Brasil.

131

“Tiro a conclusão de que o tráfico interno de escravos contribuiu fortemente para acelerar a abolição

da escravidão no Brasil. (...) o crescimento da resistência daqueles escravos que tinham sido arrancados

de seus contextos familiares e antigos laços sociais minou a autoridade dos senhores e encorajou-os a

forçar a sua própria libertação através da ação direta”, Richard Graham, p. 122. 132

Segundo Kátia Mattoso, “Entre 1502 e 1860 mais de 9 milhões e meio de africanos serão transportados

para as Américas, e o Brasil figura como o maior importador de homens pretos” (2003, p. 19). O número

desses escravos vindos para o Brasil, não obstante, é ainda bastante controverso. Cf. VERGER. Pierre.

Fluxo e Refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos. São Paulo:

Corrupio, 1987. 133

MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 23.

Page 51: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

51

Beatriz Gallotti Mamigonian alerta-nos para o fato de que pouco se conhece

sobre a experiência das diferentes etnias africanas.

Apesar do reconhecimento de genéricas “heranças africanas” na

mestiçagem cultural brasileira, a imagem dos africanos de primeira

geração se diluiu rapidamente na memória popular ao longo do século

XX, depois que a lembrança de sua presença viva morreu com aqueles

que tinham conhecido os últimos africanos sobreviventes, trazidos

ainda crianças nos últimos anos do tráfico de escravos.134

O papel relevante da recente historiografia sobre o problema das identidades

africanas foi justamente tentar “Redescobrir” a África e buscar dar as devidas

dimensões das experiências escravas no Brasil. Não é uma tarefa fácil, até por que

muitas vezes só se é possível identificar as origens étnicas dos escravos a partir dos

pontos de embarque.135

Daí que, como escreveu Mamigonian,

(...) os registros de nação tendem a reagrupar pequenos grupos étnicos

sob identidades maiores, como “Mina” ou “Congo”, ou a identificar os

escravos africanos genericamente como “de nação”. Isto é, em geral,

os registros de nação denotam identidades construídas do lado de cá

do Atlântico. Seguindo os passos de João Reis, outros historiadores

vêm buscando as referências às identidades étnicas e reconstituindo

cenas do cotidiano africano em várias partes do Brasil: a descrição dos

zungus, casas de angu e dormitórios por onde circulavam africanos

minas e de outras etnias no Rio de Janeiro oitocentista, é um dos

melhores exemplos desta safra de trabalhos.136

Os estudos de Maria Inês Cortes de Oliveira137

têm trazido uma contribuição

relevante e bem esclarecedora sobre as diversas “etnias” vindas da África. A autora

redefine muitas generalizações e aponta como a identidade étnica assume diferentes

configurações, dependendo do tempo e local em que estejam inseridas. O termo “negro

da Guiné”, no século XVI, referia-se mais à condição de escravo na linguagem corrente

da época. Mas, no início do século XVIII, em meio à pluralidade de “nações”, aquele

134

MAMIGONIAN, Beatriz G. “África no Brasil: mapa de uma área em expansão”. Topoi (Rio de

Janeiro). Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 33-53, 2004, p. 1. 135

Sobre o tema ver também KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo:

Companhia das Letras, 2000. 136

Ibidem, 2004, p. 8. 137

OLIVEIRA, Maria Inês Cortes de. “‟Quem eram os "negros da Guine?‟ A origem dos Africanos na

Bahia”. In: Afro- Ásia, n. 19. UFBA, 1997.

Page 52: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

52

termo “toma um novo sentido”, e o termo “Gentio da Guiné” assume uma conotação

mais geográfica. A autora destaca que muitas dessas identificações atribuídas aos

africanos foram posteriormente incorporadas por eles como elo de identidade no novo

mundo. Robert Slenes, no artigo “Malungu, ngoma vem!: África coberta e descoberta

do Brasil”, discute o processo de “redesenhar as fronteiras entre as etnias”:

A formação de uma “identidade bantu” comum se chegou a acontecer,

só podia ter sido o resultado de um processo complexo. Sugeri que

para muitos africanos esse processo iniciou-se, não na experiência

compartilhada da terrível travessia para a América, mas, antes disso,

no suplício da viagem para a costa; e começou pela descoberta de que

a comunicação com os companheiros dessa viagem não era

impossível. A continuação ou rompimento desse processo, contudo,

teria dependido da experiência dos escravos no Novo Mundo, e das

suas possibilidades de encontrar outras afinidades entre si, para além

da comunidade da palavra.138

Lucilene Reginaldo discute essa noção de identidade africana na diáspora,

mostrando como era complexa e flutuava entre um pertencimento a valores e tradições

oriundas de um passado africano, bem como de fatores locais vivenciados pelos

mancípios, suficientes para acrescentar elementos novos àquela identidade. Como

escreveu a autora: “Matrizes culturais, embora não sejam imutáveis, são pontos de

partida para novas identidades. Assim, relativizar a importância das origens não

significa a negação das mesmas, mas o reconhecimento da historicidade de toda e

qualquer matriz cultural”.139

E Completa mais adiante:

Desse modo, ainda que impostas, as identidades foram, com o tempo,

tornando-se expressivas da realidade dos grupos que as assumiram.

Esta identidade grupal, ainda que vinculada às origens africanas,

estava igualmente fincada nas experiências do mundo da escravidão e,

por este motivo, era apenas uma dentre as muitas identidades sociais

que poderiam ser assumidas pelo escravo ou liberto africano no

decorrer de suas vidas.140

Nesse ínterim, é importante destacar que houve um processo de

“desafricanização da diáspora”, ou seja, em todo momento houve tentativas de apagar,

138

SLENS, Robert. “Malungu, ngoma vem!” África coberta e descoberta do Brasil", p. 55. 139

REGINALDO, “Os rosários dos angolas”, p. 16. 140

Ibidem, 2005, p.105.

Page 53: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

53

camuflar ou esconder a condição de africano do escravo, a fim de que estes assumissem

os seus laços de identidade no novo mundo, deixando para trás a sua herança africana.

É interessante perceber que a cor também era entendida como um elemento de

construção de identidade. É bastante comum nas fontes a identificação de Crioulos,

Pardos, Cabras e Pretos, nomes que remetem a certos significados ou conotações

específicas. Crioulo foi derivado da palavra "crea” que, no Império, escrevia-se “cria”,

e se referia às pessoas criadas na terra, ou seja, descendentes de africano, com

naturalidade brasileira, este freqüentemente designado preto.

Kátia Mattoso entende pelo termo crioulo os

(...) „escravos feitos no país‟, isto é, negros completamente

assimilados e adaptados. (... ) os senhores compuseram o ditado: „um

crioulo vale quatro boçais‟! Os crioulos mulatos são os mais

apreciados, embora tenham freqüentemente a fama de orgulhosos e

violentos [...] Seja como for, negro ou mestiço de branco ou de índio,

crioulo ou boçal, o escravo é sempre escravo aos olhos da lei.141

O debate historiográfico em torno dessas designações, não obstante, parece

ainda estar longe do seu fim. Hebe Maria Mattos sintetiza bem algumas das principais

nuances:

[...] como a historiografia já tem assinalado, os significantes „crioulo‟

e „preto‟ mostraram-se claramente reservados aos escravos e forros

recentes. A designação „crioulo‟ era exclusiva de escravos e forros

nascidos no Brasil e o significante „preto‟, até a primeira metade do

século, era referido preferencialmente aos africanos. A designação de

„negro‟ era mais rara e, sem dúvida, guardava um componente racial,

quando aparecia nos censos de época, qualificando a população

livre.142

Mariana Assunção, atenta às burlas dos negociantes do tráfico interno,

questiona, entretanto, se, entre aqueles que foram designados como crioulos, pretos,

fulas ou pardos, não existissem negros africanos:

141

MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 123. 142

MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista,

Brasil Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p 30.

Page 54: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

54

Questiono, entretanto, se todos estes escravos ao longo da década de

1850 e início dos anos de 1860 eram nativos ou crioulos, tendo eles

nascidos na escravidão brasileira. Acredito que não. E penso que

muitos entre pretos, fulas, incluindo os pardos, poderiam existir uma

parcela de escravos africanos143

.

No caso das Umburanas, a identificação dos escravos africanos chegados até

esta freguesia corrobora as dificuldades mencionadas acima. Isto porque, no período

compreendido entre 1850 a 1888, os registros cartoriais não fazem menção direta a um

único escravo africano, embora conste em alguns registros a denominação “pretos”.

Como os escravos africanos eram, no geral, muito caros, e uma elevada taxa de

“africanidade” aponta para um alto poder aquisitivo dos proprietários; além disso, tendo

em vista que na Freguesia das Umburanas predominava um escravismo dos pequenos

proprietários, pode-se supor que a expressão “preto” fora usada de forma genérica e

extensiva para os negros nascidos no país. O gráfico abaixo, ilustrando o padrão racial

nas escrituras das Umburanas, mostra a seguinte disposição:

Gráfico III: Padrão Racial nas Escrituras de Compra e Venda por Décadas

Fonte: Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC), Livros de nota do

Tabelionato. Série- Registros de compra e venda de escravos- 1850-1888

143

ASSUNÇÃO, Mariana. “Escravidão e Liberdade em Fortaleza, Ceará (século XIX)”, tese de

doutorado, UFBA, 2009, p. 94.

0

5

10

15

20

25

30

35

1850-1859 1860-1869 1870-1879 1880-1888

PRETOS

PARDOS

CRIOULOS

CABRAS

Page 55: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

55

É importante destacar que só levamos em consideração um universo de 174

escravos, pois nem todos tinham a especificação de cor ou origem étnica nos registros.

Em termos de proporção verificamos 44,25% crioulos, 17,81% pardos, 9,77% cabra e

28,16% pretos. Nas décadas de 1870 e 1880 verificam-se algumas mudanças

interessantes: de 1870 a 1879 houve uma quase equivalência na proporção entre

crioulos e pretos, o primeiro atingido 52%; já na década de 1880 notamos uma inversão

das denominações, onde a expressão “preto” foi superior à expressão “crioulo”,

atingindo 53,12%, e o desaparecimento paulatino dos “cabras” nos registros.144

Foram

também muito recorrentes na documentação analisada os termos “pardinho” e

“crioulinho”, quando se referiam a crianças abaixo de 10 anos, mas não levamos em

consideração esses diminutivos, uma vez que englobamos as crianças nas análises

gerais. Assim, em todo período de 1850-1888, tivemos a predominância de crioulos,

mostrando que na região deve ter havido uma predominância de cativos “nacionais”.

No censo de 1872 das Umburanas constam, de um total de 4.645 indivíduos, 537

pretos (homens e mulheres), 2.409 pardos (homens e mulheres), 1644 brancos e 55

caboclos. A tabela abaixo mostra essa disposição:

HOMENS MULHERES

PRETOS 350 187

BRANCOS 875 769

PARDOS 1268 1141

CABOCLO 24 31

Tabela III: Relação de Homens e Mulheres por “Raça” no Censo de 1872

Fonte: Censo de 1872- Nossa Senhora dos resgates das Umburanas.

A grande parcela de negociações envolvendo os crioulos nas Umburanas aponta

para um elevado crescimento vegetativo na região. Isso encontrava uma explicação

plausível, tendo a ver com uma tendência que ocorria em outras partes do sertão baiano.

Nas “regiões mais distantes dos portos exportadores e das fazendas de café”, ou então

das porções de terras sertanejas não litorâneas, como no caso das Umburanas, a

tendência era propiciar um crescimento endógeno mais intenso, diferentemente das

144

O termo “cabra”, segundo o estudo de Tânia Gandon, possuiu vários significados: um deles podia ser

“morador de propriedade rural ou ainda „capanga, cangaceiro‟, personagens característicos do interior do

Nordeste brasileiro, onde a presença índia na mestiçagem brasileira é marcante e reconhecida”.

GANDON, Tânia. “O índio e o negro: uma relação legendária”. Afroasia, UFBA, n19, 1997, p. 14.

Page 56: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

56

“áreas de agricultura exportadora e comércio ativo”, onde o volume de negociações com

a compra de escravos era bastante alto. Em outras palavras, exigia-se neste caso uma

força escrava oriunda de negociações diretas, ao invés de se esperar, ou estimular, que

ocorresse o processo natural de reprodução dos cativos locais.145

Mas para qual

destinação essa mão de obra escrava foi requerida nas Umburanas? É o que

abordaremos a seguir

2.3-A mão- de- obra escrava

Figura I: Carregando a mandioca,

1858 (“Négresse de La roça”, Brazil

pitoresco. Álbum de vistas, paisagens,

monumentos, costumes etc., Paris,

Lemercier, 1861. Reprod. Bauer Sá).

Fonte: REIS, p. 337, in REIS e

GOMES, 1996.

Esta é uma questão central, e envolve uma série de pontos a serem observados.

Havia nas Umburanas a produção de artigos ou produtos voltados tanto para o auto-

consumo e circulação entre as regiões circunvizinhas, quanto para a exportação,

145

MARTINS, “Da enxada ao clavinote”, p. 30.

Page 57: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

57

destacando-se aí a cultura do fumo,146

que requeria uma melhor qualificação escrava,

em detrimento da necessidade de haver um número elevado de mancípios. Dessa forma,

no bojo de um leque de tais atividades, precisaríamos saber quais seriam as

peculiaridades e exigências desses trabalhos, sempre pensando na relação necessária

entre cada atividade designada para os mancípios e o contexto em que eles estavam

inseridos.

A destinação da mão de obra escrava, quando especificada nos registros, faz

referência aos mancípios que eram comprados com o fim precípuo de trabalharem em

policulturas no interior das fazendas, produção esta que muitas vezes atendia ao

mercado interprovincial. “As policulturas sertanejas não se subordinavam à grande

lavoura de unicidade de cultivo, nem dependiam dela, embora lhe vendessem seus

excedentes”.147

Foi muito comum nos registros a expressão “bom trato com o fumo”,

referindo-se ao escravo negociado; parece-nos que era interessante que ressaltasse esse

atributo na venda, a fim de que ele fosse mais valorizado.

De 1850 a 1888 havia ainda de forma demarcada, uma produção originária das

propriedades de menor porte: artigos agrícolas tipicamente voltados para a exportação e

outros para o consumo local ou, às vezes, para a venda nas feiras livres. Não

necessariamente excludentes, muitas vezes conviviam em paralelo. O fumo, por

exemplo, tinha o seu plantio, em grande parte, voltado para o mercado externo. Segundo

Mons. Galvão, desde o período setecentista, regiões do entorno de Santo Estevão, como

Cachoeira, cujas terras eram sabidamente férteis, primavam pelo cultivo do fumo, cuja

troca do produto por escravos ocorria com freqüência.148

Reiteradas ordens régias

reservavam as terras de São Gonçalo, Itapororocas, Água Fria e Santo Estevão para o

cultivo de tal produto, apesar de pedidos de protestos contra a monocultura partido da

câmara de Cachoeira.149

Não obstante, os pequenos proprietários das Umburanas se

destacavam intensamente na produção do fumo em seus pequenos plantéis.

A freguesia não ficava alheia a esta tendência. Dos livros de nota aqui

trabalhados, relativos à comercialização dos escravos, 75% das referências sobre a

destinação escrava (ocupação), quando apareciam, indicavam o “serviço de lavoura”,

não havendo nenhuma menção para cana de açúcar. Acredita-se que não ocorreu um

146

Monsenhor Galvão relata em seus estudos como a região das Umburanas possuía um solo propício

para a cultura e desenvolvimento do fumo. NSAC, folha 3. 147

NEVES, Uma comunidade sertaneja, p.172. 148

NSAC, folha n. 01. 149

Anais do arquivo publico do Estado. Salvador, Imprensa oficial 1924.v XII pg 47 e 48, in: Sitientibus:

revista da Universidade Estadual de Feira de Santana, ano 1, nº 1, jul-dez 1982, p. 30.

Page 58: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

58

desenvolvimento dessa cultura em virtude principalmente, como disse monsenhor

Galvão,150

da exigência de maior umidade do solo. Além disso, havia uma questão

material: a cultura da cana de açúcar, em geral, exigia grandes propriedades e um

investimento alto com estrutura, mão de obra farta e beneficiamento.

Curioso observar que em alguns registros destaca-se a experiência dos escravos

no intuito de valorizá-lo na venda, destacacando-se primeiramente o plantio de fumo:

“bom trato com o fumo”, e na seqüência mandioca, milho e feijão. Na venda da escrava

Maria, de 30 anos, comercializada em 1869151

, aparece igualmente a destinação para o

plantio de mandioca, demonstrando também que esta raiz era cultivada. Das qualidades

dos cativos vendidos para este fito ressalta-se ter “bons braços para a lavoura” (como o

escravo Estevão) e ter “bom trato com o fumo” (como a escrava Marcelina).152

Mas, na

maioria dos registros, a especificação geral ou o detalhamento das suas ocupações não é

mencionado; quando a ocupação é citada, permanece no mais das vezes apenas “serviço

da lavoura”.153

Acerca do manejo do fumo, bastante comum em Umburanas, algo importante a

ser observado é a necessidade de que os escravos fumageiros tivessem certa

especialidade para realizar a meticulosa tarefa de beneficiar o produto. Barickman

descreve em detalhes esse difícil processo:

Esse trabalho começa quando, depois de ficar ao sol por um dia para

murchar, as folhas colhidas eram levadas para a „casa de fumo‟. (...)

Ali os escravos amarravam as folhas a varais e as penduravam para

secar. Após cerca de uma semana, recolhiam as folhas e, uma por

uma, retiravam os talos. Nessa altura o lavrador podia separar algumas

das melhores folhas para que fossem moídas como rapé. A maior parte

da safra, contudo, seria transformada em longas cordas de fumo de

rolo. (...) No dia seguinte, os escravos desmanchavam a bola, torciam

novamente a corda e enrolavam-na outra vez em torno de uma vara.

As repetidas torceduras, conhecidas como „viraduras‟, produziam uma

corda com uma textura uniforme e cerrada.154

150

NSAC, folha n. 03. 151

CPAC. Seção Judiciário. Livro de notas do tabelionato n. 6, Escrituras públicas de compra e venda

1869, p.35. 152

CPAC. Seção Judiciária. Livro de notas do tabelionato n.7, Escrituras públicas de compra e venda

1871, p. 51 153

Segundo Cleber Freire o que explica a inexistência de detalhamento das funções dos escravos é que

sua ocupação registrada em detalhes não era obrigatória, principalmente antes de 1872. “Nem tanto ao

mar, nem tanto à terra”, p. 75. 154

BARICKMAN, Um contraponto baiano, p. 292.

Page 59: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

59

O fabrico do fumo era demorado e trabalhoso, e exigia do escravo mais perícia e

destreza do que força bruta; era, pois, uma atividade mais “intensiva em cuidados” do

que “intensiva em esforço”, diferentemente da cana-de-açúcar.155

Lembramos aqui da

presença das mulheres nessas atividades, constituindo esse aspecto em mais um fator

que poderia explicar a marcada ocorrência desta nas negociações de compra e venda.

Não obstante essa aparente dificuldade – o cultivo e o beneficiamento do fumo –

não necessitava de um número elevado de mancípios para cumprir as tarefas, como

dissemos. Outro fator positivo era a não incompatibilidade entre lavoura de fumo e

criação de gado (ao contrário, o esterco servia como adubo), e certamente parte dos

rebanhos eram vendidos nas feiras de carne verde.156

Um terceiro aspecto ainda é que,

levando-se em conta que há uma parte do fumo que serve para exportação, e outra, de

qualidade inferior, que se transformava em fumo de rolo, este segundo sub-produto

também nos faz supor que deveria ser negociado nas feiras livres, embora parte daquele

fumo de rolo, muito apreciado na África, provavelmente também foi incorporada como

mercadoria para a exportação.

Um quarto aspecto distintivo da plantação do fumo era o seu consórcio com

culturas de gêneros alimentícios para consumo e comercio local e regional. Não há

informações precisas nos documentos encontrados, mas cresce a suposição de que os

excedentes daqueles produtos eram igualmente comercializados nas feiras livres. Assim,

era inegável a importância de outros produtos utilizados na alimentação diária, como

feijão e milho, além do cultivo da mandioca, esta bastante presente nas propriedades da

região.

A cultura da mandioca se destacava porque servia como produto básico para a

produção de inúmeros outros derivados, imprescindíveis na mesa do sertanejo. Assim,

da mandioca extraia-se a farinha; desta, outros tantos derivados, como goma, puba,

beiju e tapioca. Como escreveu Luis Cleber, no seu estudo sobre Feira de Santana,

(...) dos 200 inventários post-mortem pesquisados, em 105 deles foi

registrada a presença de casas de fazer farinha ou de roças de

mandioca. Deve-se considerar a ausência da menção dessas roças em

muitos inventários, em consequência da colheita que já tinha sido

feita, ou mesmo a perda da lavoura em razão da escassez de chuvas.157

155

ANTONIL apud BARICKMAN, Um contraponto baiano, p. 295. 156

CALMON, apud BARICKMAN, Um contraponto baiano, p. 297. 157

FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 69.

Page 60: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

60

Quanto ao aspecto da plantação e manejo da mandioca nas casas de farinha, o

trabalho de Francemberg Reis chegou a mostrar que, para a realidade de Feira de Santana e

região circunvizinha, havia uma expressiva plantação deste cultivo, pouco se valendo do

recurso a máquinas; ou seja, quando os pequenos proprietários necessitavam de

empréstimos, o investimento daí advindo não se destinava à aquisição de implementos

técnicos para uso na lavoura, mas sim para a utilização de mão de obra.158 Assim mesmo, a

exigência do número de pessoas para a sua produção nas propriedades era pequena, em

geral não precisando exceder sete escravos; daí esta ter sido “uma cultura ideal para

pequenos agricultores, quer tivessem escravos, quer contassem apenas com o trabalho

familiar”.159 Enfim, crianças, homens e mulheres nas Umburanas participavam dos mais

diversos serviços na lida diária. Verificaremos a seguir como se deu essa repartição.

Figura II: Descascando mandioca, 1858 (Éplucheuses de mandioca, Brazil pitoresco. Álbum

de vistas, paisagens, monumentos, costumes etc., Paris, Lemercier, 1861. Reprod. Bauer Sá).

Fonte: REIS, p. 338, in REIS e GOMES, 1996.

158

Cf. REIS, Francemberg T. ; REGINALDO, L. . Fazendeiros Modestos e Roceiros: padrões da

propriedade, da produção rural e do mercado em Feira de Santana (1890-1920). In: XIV Seminário de

Iniciação Científica, 2010, Feira de Santana. Anais do XIV Seminário de Iniciação Científica: ciência e

sustentabilidade. Feira de Santana : UEFS, 2010. p. 1636-1639. 159

BARICKMAN, apud FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 70.

Page 61: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

61

2.3.1 – Crianças, Homens e mulheres

Um problema oriundo das negociações com os mancípios era a possibilidade da

desagregação da família escrava.160

No entanto, nas Umburanas, mesmo antes da Lei de

1871 foram encontrados vários registros de mães escravas que eram vendidas

juntamente com seus filhos. No ano de 1866 ”Luiza, preta de 31 anos, solteira do

serviço da lavoura, acompanhada de seus filhos, Lucinda 12 e Manoel de 3 anos foi

vendida pela quantia 550$000 para Salustiano Damasceno 161

”. Outro, em 1870, de

“Martinha, preta, 35 anos, serviço da lavoura, acompanhada de suas crias: Rosa (12),

João (5) e Antonio (3) pela quantia de 1 conto e 90 mil reis para capitão Francisco

Manoel de Santana.162

O interessante a se notar é que parece ter sido uma prática

comum a venda de ”escravas com sua crias” nessa freguesia. Levando-se em

consideração as negociações em bloco, foram efetivadas antes, durante e depois da lei

de 1869,163

que em seu artigo 2° proíbe a desagregação da família escrava.

Não obstante, apesar de haver muitos registros de venda de escravos com suas

famílias, há também a venda de crianças em separado, aproveitadas para o trabalho no

“serviço da lavoura”. Isso é verificado em vários registros de compra e venda, onde a

especificação do trabalho a ser realizado na plantação menciona criança de 10 e 12

anos, como no caso, respectivamente, dos escravos Theófilo164

e Martinha165

. Para

crianças cujas idades são inferiores às que mencionamos acima, não existe uma

designação acerca do fim a qual elas se destinavam, o que nos faz supor que estava

implícita a ideia de que elas ainda não estavam aptas para algum tipo de trabalho.

Mas é preciso salientar que, por volta mesmo dos oito anos, era provável que a

criança escrava fosse encaminhada para os diversos serviços requeridos (algo que

contribuía para o aumento da taxa de mortalidade infantil), ideia ainda mais plausível se

160

GENOVESE (A terra prometida), analisando os escravos do sul dos Estados unidos, constrói um

padrão do que podia ser qualificado como bom ou como mau senhor. O senhor ruim teria, como uma de

suas características, o fato de não se importar com a estrutura das famílias escravas, separando os casais

se assim fosse preciso. 161

CPAC. Seção judiciário. Livro de notas do tabelionato n.6 Escrituras públicas de compra e venda,

1870, p 42) 162

CPAC. Seção Judiciário. Livro de notas do tabelionato n. 6 Escrituras públicas de compra e venda,

(1869, p. 57) 163

A referida lei de 1869 proibia a separação das famílias escravas por vendas, doações ou partilhas. 164

CPAC. Seção Judiciária. Livro de notas do tabelionato n. 7, Escrituras públicas de compra e venda.

(1874, p. 85). 165

CPAC. Seção Judiciária. Livro de notas do tabelionato n. 7, Escrituras públicas de compra e venda.

(1874, p. 87).

Page 62: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

62

lembrarmos que Umburanas era uma comunidade pobre no geral e, portanto, não

poderia se dar ao luxo de criar uma criança escrava até o início do auge da sua força de

trabalho. Conclusão similar foi exposta por Kátia Mattoso:

A criança escrava presta serviço desde os 7-8 anos. Nessa idade já se

dá conta de sua condição inferior em relação às crianças livres, e este

é seu primeiro choque importante. As exigências dos senhores tornam-

se precisas, indiscutíveis. Se escolhido para figurar entre os

domésticos, o aprendizado é tão doloroso quanto o dos trabalhos no

campo ou os de um artesanato.166

Nas Umburanas, o número total das crianças negociadas somam cerca de

31,25%, um número razoavelmente alto, haja vista ser quase 1/3 de todas as

negociações realizadas. É importante atentar para isso porque, como bem analisou

Freire,167

a idade produtiva era entre 11 e 50 anos, sendo que de 21 a 30 o cativo estava

“no auge da força física”.168

E mais: a compra de escravos menores de 11 anos trazia

alguns riscos e prejuízos: riscos oriundos da mortalidade infantil, e prejuízos pelo ônus

relativo à criação da criança até a idade do labor

É importante destacar a situação peculiar dos “ingênuos”, ou seja, dos assim

chamados filhos das escravas que nasceram após a lei de 28 de setembro de 1871, a Lei

do Ventre Livre. Conforme esclarece Melina Kleinert Perussatto,

[...] os menores deveriam permanecer sob a companhia dos senhores

de suas mães até completarem oito anos de idade. Depois desse

período o tutor poderia requerer uma indenização pecuniária de

600$000 réis pelas despesas com os cuidados, ou então entregá-los à

tutela estatal. Caso os senhores não desejassem a companhia dos

filhos de suas escravas, poderia entregá-los a associações

governamentais destinadas ao cuidado e educação desses menores.169

166

MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 12. 167

FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 100. 168

Esse número é polêmico, contudo: segundo MELLO, Metamorfoses da riqueza: São Paulo, 1845-

1895. São Paulo: HUCITEC, 1990 (Coleção Estudos Históricos), o auge da força produtiva estava entre

15 a 35 anos, enquanto que a idade menos afeita ao trabalho os menores de 15 anos e os maiores de 60

anos. 169

PERUSSATTO, Melina Kleinert. “Crias de ventre livre: tutelas de ingênuos em um município Sul-

Rio-Grandense na última década do escravismo”. X Encontro Estadual de História, Santa Maria-RS,

2010.

Page 63: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

63

Essa lei, que a princípio parece ter um caráter humanitário guardava, não

obstante, intenções ligadas ao poder ou controle desses filhos. Primeiro, a partir de um

prejulgamento segundo o qual as mães escravas daquelas crianças livres eram

“incapazes de educarem e zelarem por seus filhos”, uma vez que lhes faltavam aditivos

maternos, valores que só as mães brancas e livres possuíam; segundo, estando implícita

a intenção de regularizar o trabalho infantil. Para Melina Kleinert Perussatto, “Isso

ajuda a explicar a rapidez com que os diversos pedidos de tutela que encontramos foram

concedidos, sempre enfatizando os atributos positivos do solicitante”. Ajuda-nos

igualmente a imaginar o quanto essas crianças “ingênuas” vão procurar “entender e dar

significado à liberdade em que viviam”, diante de um contexto em que suas mães eram

cativas.170

O que pode explicar o elevado número de crianças negociadas nas Umburanas

talvez tenha sido o uso de uma estratégia traçada pelos pequenos proprietários com

parcos recursos e uma vontade imensa de se inserir no sistema. As crianças eram, no

geral, muito mais baratas que os escravos em idade adulta e no auge da força física,

como vimos.

170

PERUSSATTO, “Crias de ventre livre”, p. 12.

Page 64: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

64

Gráfico IV: Percentual da Idade dos Escravos nas Negociações

Fonte: Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC), Livros de nota do Tabelionato. Série-

Registros de compra e venda de escravos

A partir do gráfico acima podemos notar que os escravos com idade superior a

40 anos sempre tiveram um modesto percentual nas negociações de compra e venda em

Umburanas, certamente em decorrência daquilo que já falamos anteriormente, ou seja,

que esta faixa corresponde a escravos cuja força física já estava desgastada pelo tempo.

Além disso, há de se levar em conta que a vulnerabilidade do corpo desses escravos

propensos para o surgimento de doenças (embora não tenhamos dados do índice de

óbitos), constituindo, assim, em sério risco às negociações. Os escravos na faixa etária

de 13 a 39 anos, que correspondem àqueles que estavam no auge da força de trabalho,

sempre tiveram expressões significativas no processo de compra e venda; apenas no

período de 1880-1887 igualaram-se aos mancípios com idades até 12 anos. Em termo de

análise da curvatura do gráfico, é significativo o fato de que os escravos negociados até

12 anos foram crescendo sucessivamente, atingindo um elevado nível entre 1880-1887.

Outra curiosidade observada foi que, nas décadas de 70 e 80, verificamos no

número de adultos, em comparação com o número de crianças e idosos – ou seja,

pessoas fora da faixa ideal da força de trabalho – uma equivalência nas negociações.

Assim, de 1870 a 1879 houve, segundo os registros de compra e venda de escravos,

55% de transações com escravos entre 13 a 39 anos; na década de 70 este número caiu

para 51,02%. Supomos que a falta de recursos financeiros por parte dos pequenos

0

5

10

15

20

25

30

1850 - 1859 1860 - 1869 1870 - 1879 1880 - 1887

Até 12 anos

13-39

Acima de 40

Page 65: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

65

proprietários das Umburanas tenha contribuído para esta redução da compra de

mancípios adolescentes ou adultos. Veremos no próximo tópico a questão do preço

médio dos escravos nas negociações.

Outra análise cabe ainda ser feita aqui; é quanto à média de escravos negociados

segundo o gênero. Temos abaixo o seguinte gráfico:

Gráfico V: Percentual de escravos negociados por década e gênero (1850-1888)

Fonte: Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC) Registro de compra e

venda escravos.

Quanto ao gênero, o universo dos escravos listados compunha-se de 51,3% de

homens e 48,6% de mulheres. Isto reflete a ideia de que nas transações comerciais o

contingente de homens não era muito superior ao de mulheres negociadas. Os números

apontam para uma distribuição equilibrada entre eles, o que nos faz supor que a lida

diária era praticamente repartida sem distinção de gêneros. Isso também sinaliza para a

existência de proprietários de pequeno porte, que não tinham a condição econômica

necessária para comprar escravos especificamente para um ou outro trabalho – por

exemplo, escravos homens para o serviço de lavoura. Na falta de um poder aquisitivo

maior, ambos os sexos deveriam ser utilizados, seja para qual serviço fosse necessário.

0

5

10

15

20

25

30

1850-1859 1860-1869 1870-1879 1880-1888

Homens

MULHERES

Page 66: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

66

Podemos pensar, portanto, que não havia uma rigorosa distribuição de papéis

atrelados às noções de masculinidade ou feminilidade entre os escravos implicando, tal

distinção, numa repartição de tarefas. Como chegou a escrever Flaviane Nascimento,

trabalhando sobre “Quotidiano e resistência de mulheres negras escravizadas (Feira de

Santana, 1850-1888)”, “Distanciadas da imagem de mulher frágil – existente apenas no

ciclo restrito das classes dominantes ocidentais -, as mulheres da África no Brasil foram

submetidas a “todo serviço”: da roça, da casa ou nas atividades do ganho, eram sempre

elas a realizá-los”. Dessa forma, trabalhando com essa realidade de Feira de Santana, a

autora vai tentar realçar a questão das experiências das mulheres escravizadas, no

sentido de que o seu cotidiano foi marcado por uma “área de improvisação de papéis

informais” onde elas “vivenciaram experiências diversas, nos mais diferentes espaços

aos quais foram relegadas”. 171

Apesar de não haver um papel feminino demarcado, podemos levar em conta

que os serviços domésticos deviam ser prioritariamente atribuídos às mulheres (às

escravas, quando não à patroa pobre), o que era de certa forma um privilégio, se o

compararmos com o difícil serviço de lavoura. Diga-se de passagem, porém,

constituindo um privilégio, de fato, a depender do “nível de fortuna de seu proprietário e

o tipo de trabalho que realize na casa do que propriamente pelo fato de ser um escravo

doméstico”.172

Não obstante, a existência dos afazeres domésticos atribuídos às mulheres é uma

inferência apenas plausível, uma vez que nos registros cartoriais nas Umburanas, não há

sequer uma menção a algum escravo comprado com o fito de realizar atividades

domésticas, mas serviços ligados ao trato com a terra, quer dizer, à plantação. Talvez

pudéssemos afirmar com mais segurança que a mulher escrava tinha uma qualidade a

mais do que o escravizado homem: embora geralmente não possuidora da mesma força

física ou “resistência”, destacava-se dos homens pela versatilidade.

Assim, é plausível pensar que os serviços da mulher escrava tinham a ver,

primeiro, com a implementação dos labores diários; porém, nada nos leva a

desconsiderar que elas pudessem ser utilizadas, também, para afazeres domésticos, a

depender da necessidade ou da vontade do seu senhor (a). Essa função versátil das

mulheres era ainda interessante na medida em que, para os padrões produtivos das

Umburanas, a policultura não necessitava de braços tão fortes assim, caso fizéssemos

171

NASCIMENTO, Flaviane Ribeiro. “E as mulheres d Terra de Lucas?”, p. 30-31. 172

OLIVEIRA, 1988, p.12.

Page 67: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

67

uma comparação com o cultivo da cana, por exemplo. Por fim, como veremos no tópico

posterior, a compra de mulheres e homens nas Umburanas atingiu patamares bastante

próximos, revelando uma preferência pelo sexo masculino em menor monta do que a

verificada nas regiões da grande lavoura de exportação.

2.4 Preços dos escravos e seus condicionantes

O preço do escravo é um jogo de variáveis,

algumas das quais totalmente alheias ao próprio

escravo e outras, ao contrário, intimamente

ligados a sua pessoa. O preço do escravo

depende da concorrência, da distância entre o

porto de embarque e o ponto de venda, da

especulação, da conjuntura econômica, depende

ainda da sua idade, sexo, saúde e de sua

qualificação profissional.173

Algo que devemos atentar agora é quanto ao preço dos escravos que, como tal,

obedeceram a uma série de variáveis. Para entendermos devidamente a variação dos

preços dos escravos nas Umburanas, juntamente com os seus fatores condicionantes,

procedemos uma breve comparação com a pesquisa de Kátia Mattoso, tomando por

foco a cidade do Salvador, e o estudo de Cleber Freire, aportando em Feira de Santana.

Com isso poderemos demarcar os pontos comuns e distintos dos dados obtidos nas

Umburanas em relação tanto à capital da Bahia quanto em relação a uma cidade

bastante próxima das Umburanas. Sobre a primeira autora ela pretendeu abranger os

anos de 1750 a 1888, mas o que nos interessa é o período compreendido entre 1850 a

1888. Cabe ainda realçar que sua tabela levou em conta a comparação entre a variação

dos preços dos escravos e dos preços do açúcar e do café na Bahia em réis; e que, na

análise da autora, “afere-se bem a progressão dos preços e, sobretudo, o golpe da

inflação contemporânea à extinção definitiva do tráfico negreiro”.174

173

MATTOSO, Ser escravo no Brasil, 78. 174

Idem, p. 95.

Page 68: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

68

Escravos Açúcar Café

Preço Índice

(médio)

Preço Índice

(arroba)

Preço Índice

(arroba)

1850

500 000 285,7

2 685 215,6

3 975 319,2

1860 650 000 357,1 6 675 536,1 6 735 341,4

1870 650 000 357,1 6 510 522,9 6 030 484,3

1880 450 000 257,1 5 835 468,6 7 220 579,9

Tabela IV: Variação dos Preços dos Escravos e dos Preços do Açúcar e do Café na Bahia

em Réis

Fonte: “Para os preços dos escravos: dados coletados nos inventários de heranças APB, seção

judiciária, 1740-1890; para os preços do açúcar e do café: dados coligidos nas contas do

hospital da Santa Casa de Misericórdia, Bahia, 1750-1890”, in MATTOSO, 2003, p. 95.

Julgamos interessante trazer alguns dados da pesquisa de Luiz Cleber Freire

para a região de Feira de Santana. A constatação do autor foi de que nos “decênios 1850

e 1860, os preços dos escravos homens e mulheres se aproximaram, ocorrendo, a partir

da década de 1870, um distanciamento nesses preços entre os gêneros”, fato explicado,

talvez, pela “maior procura por mão-de-obra masculina e maior oferta de braços

femininos para o trabalho”.175

Em termos de valores, eis os resultados obtidos por

Freire:

Na primeira década, a média geral de preços entre homens e mulheres

foi de 603$258 réis. Na seguinte, 1860-9, os preços médios

alcançaram o seu ponto máximo: 790$897 réis para os homens e

733$333 réis para as mulheres. No intervalo de 1870-9 a média

encontrada para homens foi de 745$827 réis e 553$929 réis para

mulheres e, para os anos 1880-8 a média foi de 589$428 réis e

382$031 réis, respectivamente, para homens e mulheres.176

Quanto aos dados colhidos em relação ao preço dos escravos em Umburanas é

importante destacar que quando as vendas eram em conjunto, em bloco, não ficou

175

FREIRE, “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, p. 103. 176

Ibidem, p. 103.

Page 69: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

69

especificado nos registros o preço individual de cada cativo a ser negociado, ficando

apenas o total dos preços dos escravos em conjunto. Dessa forma, utilizamos a média

aritmética de preços dos escravos em relação à quantidade de cativos negociados.

Enfim, foram encontrados os seguintes dados nos registros das Umburanas acerca do

período compreendido entre 1850 e 1888:

Gráfico VI: Preço Médio em Réis dos Escravos das Umburanas por Gênero:

Fonte: Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC) Registro de compra e venda

escravos.

A partir do gráfico acima percebemos que não houve uma significativa

disparidade entre os preços dos escravos dos gêneros masculinos e femininos nas

negociações em Umburanas. Assim, se constatamos que o preço médio dos homens foi

maior do que o das mulheres, e em todas as décadas, verificamos, entretanto, que a

diferença entre eles foi mínima. E esta diferença se mantém, seja na década de pico das

vendas, 1860, onde o preço médio atingiu 770$000 (setecentos e setenta mil réis) para

os homens e 735$000 (setecentos e trinta e cinco mil réis) para as mulheres, seja na

década de 1880, quando o volume das negociações atingiu o seu menor patamar:

400$000 (quatrocentos mil réis) para homens e 390$000 (trezentos e noventa mil réis)

para as mulheres.

Procedendo agora a uma comparação com a tabela III de Kátia Mattoso, e com

os dados colhidos da pesquisa de Freire, existe uma clara diferença entre os preços dos

0

100000

200000

300000

400000

500000

600000

700000

800000

900000

1850-1859 1860-1869 1870-1879 1880-1887

HOMENS

MULHERES

Page 70: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

70

escravos vendidos em Salvador, em Feira de Santana e nas Umburanas. Nas décadas de

50, 60, 70 e 80 o preço médio dos escravos em réis foi menor nesta localidade do que na

capital baiana e na própria região de Feira de Santana, corroborando com aquilo que já

tínhamos observado neste trabalho. Em primeiro lugar, os escravos da zona rural eram

procurados com frequência para comercialização porque tinham preços mais acessíveis

do que os da capital da província; em segundo lugar, concomitantemente, no geral

deveriam ser escravos menos especializados que os de Salvador e Feira de Santana.

A inflação brasileira vai se estender das décadas de 1850 a 1880,

proporcionando variações de preços dos escravos, mas, a partir da década de1880, seu

preço médio baixará sensivelmente, como escrevemos mais acima, reflexo da “gradual

substituição da mão de obra servil pelo braço livre (...). Essa mudança opera-se,

contudo, de maneira bastante lenta e somente se torna sensível por volta de 1890”.177

A

tabela acima aponta para outro fenômeno interessante; ela mostra que a escravidão se

prolongou por muito tempo nas Umburanas, evidenciando, ao invés, os vários lucros e

interesses que estavam por trás dessa permanência. Às vésperas do fim da escravidão, na

década de oitenta, o traballho escravo continuava o com muito vigor e nem demonstrava,

em números, a decadência do sistema escravista

Caracterizadas as Umburanas, sua formação e os seus circuitos comerciais,

devemos agora nos voltar para questões ligadas à identificação das tensões vivenciadas

pelos mancípios, sua liberdade, suas formas de luta ou resistência e, portanto,

aproximarmo-nos ainda mais do seu cotidiano. Esta aproximação se fará a partir das

cartas de alforria e da memória dos quilombolas. Elas evidenciarão outro aspecto vital

do escravismo brasileiro afetado pelo fim do tráfico africano, qual seja a política de

alforrias, de fundamental importância para o funcionamento do sistema e, ao mesmo

tempo, uma das suas fontes de tensão e contradição.

177

MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 93-94.

Page 71: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

71

3.0- Capítulo III – Ser escravo nas Umburanas: escravidão e

liberdade.

3.1 Os Caminhos da Liberdade nas Umburanas

A escravidão era uma rede, não apenas

e nem mesmo de relações de trabalho

(...), mas antes uma rede de relações

sociais entre pessoas de condições

legais, recursos, mobilidade, instrução e

poder radicalmente distintos.178

Conquistar a liberdade era, obviamente, um desejo das pessoas que vivenciaram

a experiência da escravidão. Na historiografia muito já se discutiu sobre esse tema,179

e

tais análises certamente trouxeram uma contribuição significativa, não apenas para a

compreensão da alforria no Brasil, como nas Américas. Recorremos a alguns desses

trabalhos relacionando-os, na medida do possível, com a dinâmica da liberdade nas

Umburanas, embora nosso intuito não tenha ido à direção de uma demografia da

liberdade nesta localidade.180

O nosso objetivo precípuo foi conhecer algumas formas

adotadas no sentido da conquista da liberdade, como se deu esse processo, quais as suas

características e estratégias, e preferindo realizar uma intervenção qualitativa das fontes

analisadas.

Dessa forma, nosso estudo esteve atento ao alerta de Carlo Ginzburg:

geralmente há dificuldades em se compreender os problemas do cotidiano por meio da

investigação quantitativa, que poderia resultar em uma história homogeneizada. Por

178

GRANHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres na sociedade escravista

brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 222. 179

Citamos aqui algumas obras fundamentais: EISENBERG, Peter. Ficando livre: as alforrias em

Campinas no séc. XIX. São Paulo: Unicamp, 1989; REIS, João (org). “Escravidão e invenção da

liberdade: estudo sobre o negro no Brasil”. São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPQ, 1988; BELLINI,

Lígia. “Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em cartas de alforria”. In REIS, João (org).

“Escravidão e invenção da liberdade: estudo sobre o negro no Brasil”. São Paulo: Brasiliense; Brasília:

CNPQ, 1988; CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade; ALMEIDA, Kátia Lorena. “Da prática

costumeira à alforria legal”; PIROUPO, Sharyse. “Escravidão, liberdade e resistência em Sergipe”. 180

Até por que não encontramos fontes suficientes para isso: das cartas de liberdade coletados nas

Umburanas, só encontramos um número relativamente pequeno, totalizando 32 cartas.

Page 72: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

72

isso, deve-se atentar para os possíveis vestígios, sinais ou indícios que possam revelar

aspectos de uma da sociedade, não apreendidos em modelos formais.181

Existem muitas e variadas formas de os escravos alcançarem a liberdade. As

quatro formas principais encontradas nas Umburanas para se obtê-la foram: alforrias

doadas gratuitas incondicionais, doadas gratuitas condicionais, compradas onerosas

incondicionais e compradas onerosas condicionais. Fizemos ainda breves menções às

alforrias compradas por terceiros e às alforrias coletivas, uma vez que foram raros esses

casos nas Umburanas, não chegando a se constituir como forma básica relativamente

aos processos de liberdade; por fim, abordamos a fuga, como outra opção para se livrar

do cativeiro.

Acerca da noção geral de alforria é preciso fazer aqui algumas observações sobre

sua natureza, conceito e dinâmica. A alforria era um “documento jurídico [forma parte

do conjunto das escrituras notariais] pelo qual o senhor transferia para o escravo a posse

e o título de propriedade que tinha sobre ele”. Kátia Lorena Almeida chegou a

esclarecer seus procedimentos legais. Segundo a autora,

Para ser reconhecida, a alforria devia ser oficializada: o senhor, ou seu

procurador, se dirigia ao cartório e ditava os termos da carta ao

escrivão, ou entregava uma cópia para que ele a registrasse no livro de

notas do tabelião. O documento era datado e assinado por testemunhas

e pelo tabelião, e o senhor pagava os selos, legitimando o ato. Em

casos raros, o escravo também solicitava o registro de sua carta, como

o liberto Antonio, pardo, alforriado em verba de testamento.182

A relação entre o sistema judiciário e as alforrias guardava algumas outras

particularidades. Antes da Lei do Ventre Livre, em 1871, tratava-se de uma prática

privada, fruto da vontade e benevolência do senhor. Assim, alforria do ponto de vista

efetivo, significava “galgar um caminho inseguro, aberto a diversas possibilidades”,183

no horizonte sempre impreciso das negociações. Era uma espécie de acordo entre o

senhor e o escravo. Essa prática privada não tinha, pois, a interferência direta do Estado,

salvo em situações em que o processo de concessão não chegava a bom termo. Aí o

181

GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, Emblemas, Sinais:

morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 171. 182

ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. “Da prática costumeira à alforria legal”. Este artigo é uma versão

modificada do segundo capítulo da dissertação “Alforrias em Rio de Contas, Bahia, Século XIX”,

defendida no Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal da Bahia.

http://periodicos.uesb.br/index.php/politeia/article/view/227/245, p. 143. 183

Ibidem, p. 164.

Page 73: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

73

mancípio podia recorrer à instituição estatal, solicitando a sua intervenção. Para

Cunha,184

antes da referida Lei esses casos ocorriam com certa freqüência. E os

“advogados e juízes que militavam em prol da liberdade recorriam a argumentos

baseados no Direito Natural, nas Ordenações Filipinas e no Código Romano, para

respaldarem o que se defendia nas normas costumeiras”.185

Em virtude disso, não havendo lei que tratasse do pecúlio, as decisões eram

baseadas na jurisprudência, sabendo-se que “Geralmente, a carta de alforria só era

registrada em cartório após sua quitação”.186

Não obstante, isso não impediu que muitos

escravos impetrassem ações judiciais para questionar o injusto cativeiro e a busca da sua

tão esperada liberdade. As tensões existentes entre os escravos e senhores deixavam de

ser apenas um campo da vida privada, rusgas do cotidiano, e atingiram a esfera pública.

Finalmente, havia ainda outro papel ativo do escravo, quando ele tentava “conduzir e

convencer seu senhor para obter um resultado que lhes fosse favorável”.187

Marcelo Badaró Mattos, por outro viés, traz uma interpretação bem interessante

da dinâmica escravista após a instauração da Lei de 1871. Para ele, sobretudo a partir

desta data, os processos de luta pela liberdade através das alforrias, com a intervenção

do Estado, não diziam respeito a situações em que este órgão estatal visasse apenas

intervir como simples mediador entre particulares: os escravos e os senhores. Até

porque o costume do pecúlio e compra de alforria “já eram antes disseminados”. Então,

qual fora de fato a necessidade e papel do Estado? Para Mattos, o que estava em causa

mesmo naquele “Estado senhorial” era um processo de luta de classes, a saber, a

necessidade daquela instância governamental de, através do “canal da alforria, tentar

aliviar a tensão social e o mal maior (as revoltas em massa, das quais os senhores

tinham efetivamente grande medo)”.188

Algumas cartas de alforria das Umburanas são mais sucintas e diretas do que

outras, apesar de haver nelas um formato geral, tanto no padrão da linguagem quanto

nos dados fornecidos (nome do escravo, cor, idade, estado civil, nacionalidade, motivo e

condição da alforria). É uma fonte primorosa, apesar de haver algumas limitações que

184

CUNHA, M. C. da. “Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no

Brasil do século XIX”. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. 2. ed. São Paulo:

Brasiliense, 1987. p. 123-144. 185

ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. “Da prática costumeira à alforria legal”, p. 164. 186

Ibidem, p. 164. 187

Ibidem, p. 164. 188

Cf. MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres: Experiências comuns na formação da classe

trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Tempo, 2008, p. 153. É Válido salientar que Sidney Chalhoub,

em Visões da liberdade (1990), aprofunda e discute este debate em torno da Lei de 1871.

Page 74: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

74

impossibilitam ao historiador muito da compreensão das relações complexas entre

senhor e escravo. Sharize Amaral nos alerta:

A carta de alforria era um documento privado, através do qual o

senhor concedia a liberdade ao seu escravo, podendo ter sido redigida

pelo próprio senhor ou representante legal (normalmente quando o

proprietário do escravo não sabia ler e escrever), mediante duas

testemunhas. O original costumava ficar de posse do liberto, como

prova de sua nova condição jurídica, e era registrado na íntegra em

cartório, como garantia contra sua perda e alguma tentativa de

reescravização. No caso de mudança de município, o liberto devia

registrar novamente a carta no cartório mais próximo.189

No nosso caso foram pesquisadas as cartas registradas entre os anos de 1866 a

1888, que estão nos livros notariais no Cartório Publico de Antonio Cardoso, nos livros

de número 8 e 10. Não foram encontradas cartas de alforria nos livros de número 6 e 7,

ou seja, não verificamos cartas datadas no período compreendido entre 1850 e 1865. A

fim de melhor visualizar as informações fornecidas pela fonte, elas foram organizadas

em uma planilha com as seguintes informações: nome do senhor, número de escravos

alforriados, nome do escravo alforriado, etnia, idade, forma da alforria, condição da

alforria (caso exista), valor (se fosse o caso de alforrias onerosas), data da carta, local,

data de registro e a justificativa.

Nas Umburanas, onde só encontramos cartas de alforria registradas em cartório

nos livros notariais, tivemos um predominio das cartas gratuitas condicionadas a

serviços. Em segundo e terceiro lugares, respectivamente, com proporções bem

próximas, vêm as compradas onerosas incondicionais e as gratuitas incondicionais,

onde nesta, em sua maioria, aparecem o ato de belevolência do senhor, legitimando “os

bons serviços prestados” pelos seus cativos. Em último lugar aparecem as alforrias

compradas onerosas condicionais. O gráfico abaixo mostra a disposição dessas

informações. Em seguida abordaremos cada um dos tipos de alforria apresentados:

189

AMARAL, Sharyse Piroupo do. “Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe”, p. 190. Grifos

nossos.

Page 75: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

75

Gráfico VII: Percentual das Modalidades de Alforria

Fonte: Livro de Registros Diversos, série Cartas de Liberdade do Cartório Público de Antonio

Cardoso (1866-1888).

3.1.1 A Liberdade “sem preço”: alforrias gratuitas incondicionais

Em 1872, Teodora, parda, 27 anos recebeu a carta da liberdade, sem qualquer

ônus, de José Alves Barreto, pelos bons serviços prestados.190

Nas Umburanas houve

alguns casos de alforria gratuita, sem restrições, como o caso de Teodora. A alforria

gratuita, porém, jamais pode ser entendida como um mero ato de generosidade. Não

podemos nos furtar do ato comercial e político que estava na base dessa concessão.

Existem poucos estudos no Brasil que trabalham a fundo com os porquês de uma

concessão sem ônus.191

O que está por trás de uma alforria de escravos produtivos e no

auge da força física, como no caso acima da escrava Teodora?

190

Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso. Série cartas de liberdade, Livro

8, fl. 7, 1872. 191

Muito já se falou que as alforrias gratuitas favoreciam principalmente os escravos “ improdutivos”. Na

visão de Kátia Mattoso, essa liberdade contemplava o “escravo envelhecido, sem oficio, trabalhador

braçal do campo, que se encontrará sem morada, repentinamente livre”. Ou então terá a ver com o

“escravo estropiado, doente, sofredor” (MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 168). Muitos outros

estudiosos da escravidão seguiram essa vertente, de que as alforrias gratuitas contemplavam escravos

improdutivos. Não obstante, verificamos que essa não foi uma realidade encontrada nas Umburanas, pois

as manumissões gratuitas favoreceram escravos jovens com idade de 14 a 32 anos de idade.

47%

27%

23%

3%

PERCENTUAL DE ALFORRIA

GRATUITAS CONDICIONADAS COMPRADAS ONEROSAS INCONDICIONAIS

GRATUITAS INCONDICIONAIS COMPRADAS ONEROSAS CONDICIONAIS

Page 76: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

76

Em Trabalho sobre “La manumisión em Cuba”, Aisnara Pereira e Maria Fuentes

trazem uma pesquisa de folêgo e bastante enriquecedora do processo de alforrias em

Cuba no século XIX que, certamente, não ficou restrita àquela realidade, mas acrescenta

bastante para a compreensão da América escravista em sua totalidade. Assim, escondido

sob uma liberdade concedida, a princípio um ato de “caridade” havia, entretanto, uma

intencionalidade bem diversa. O discurso senhorial tinha uma clara intenção de ocultar a

iniciativa do liberto de ele mesmo buscar a sua liberdade para, concedendo-a, tentar

forjar na sua consciência uma posição de subalternidade e agradecimento. Com isso o

senhor tentava consolidar um mecanismo de clientelismo, forjando relações de

“dominação e subordinação”.192

Em vista disso, cobrava do alforriado fidelidade e

gratidão.

Díaz e Fuentes chegam a mostrar, todavia, que nem sempre esse processo de

“clientelismo” obtinha sucesso; que não era uma condição garantida a manutenção da

“tutela” do senhor em relação ao escravo alforriado, até porque estavam em jogo

interesses muitas vezes conflitantes. E, apesar de mostrarem em suas pesquisas que os

libertos adultos tendiam a permanecer mais tempo morando nas proximidades da

propriedade do senhor que o libertou, não se tinha como calcular “quanto tempo os

senhores „desfrutariam‟ do agradecimento do liberto”.193

Isto muitas vezes solapava a

pretensa ideia de uma genuina fidelidade dos ex-cativos e caía por terra a idéia de que

as “liberdades graciosas” sempre poderiam lhes render muitos proveitos. Deve-se isso,

principalmente, à complexidade nas relações senhor-escravo, não se podendo exigir um

padrão de comportamento dos ex-mancípios, como se todos se comportassem da mesma

maneira. Em geral, os interesses eram conflitantes, e os libertos escolhiam como lhes

conviessem a melhor maneira de fazer valer sua alforria.

La manumisión en Cuba fue – como em todas las regiones de la

diáspora africana en las Américas – la culminación de una lucha para

vencer la resistencia de los amos, em medio de cual muchos tuvieron

que penetrar en las intricadas redes del poder y de las leys , ceder y

exigir, y lo fundamental: entender para qué se quería ser libre.194

192

Cf. DÍAZ, Aisnara Perera; FUENTES, Maria de los Ángeles Meriño. Para librarse de lazos, antes

buena família que Buenos brazos. Apuntes sobre la manumisión em Cuba. Santiago de Cuba: Editorial

Oriente, 2009, p. 218. 193

Ibidem, p. 219. 194

Ibidem, p.15, grifo nosso.

Page 77: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

77

Kátia Lorena Almeida, trabalhando com as Alforrias Testamentárias em Rio de

Contas,195

analisa que, do ponto de vista do senhor, as “alforrias gratuitas não refletiam

somente sentimentos de afeto e gratidão entre as partes, mas também uma forma de

domínio sobre o escravo, mediante uma política de incentivos”.196

Ela aponta em seus

estudos que alguns senhores em seus testamentos demonstravam tal discriminação

quando certos escravos eram mais beneficiados do que outros, ou seja, a autora,

analisando os testamentos do século XIX, percebeu que os senhores se utilizavam do

documento para uma política de recompensa ou punição.

Para Peter Eisenberg “A alforria nunca foi gratuita. Mesmo sem ter de pagar

dinheiro ou prestar serviços para receber a alforria, o indivíduo, durante a sua vida de

escravo, já entregava valores para o senhor, sem que tivesse havido uma contrapartida

de valores”.197

Walter Fraga Filho nota que, em fins do século XIX, o importante das

concessões gratuitas era a publicização do seu ato, ou seja, em um momento em que a

escravidão já se mostrava moribunda, os senhores se aproveitavam da situação e

construíam uma autopromoção da sua imagem. Assim, o Jornal O Guarani, em 1884,

noticiou como um gesto de “verdadeira filantropia”, ocorrido no Engenho Vitória, o ato

do senhor Francisco Muniz Barreto, que discursou diante de diversas pessoas,

concedendo alforria gratuita ao escravo Luis, “Carapina Habilíssimo”.198

Esses atos se

tornaram freqüentes e constituíam verdadeiros “espetáculos solenes”, que chamavam a

atenção de todos os escravizados. O “ato de bondade” do senhor tentava limpar a

mancha divulgada pela campanha abolicionista.199

195

Ver mais sobre Alforrias testamentárias em Eduardo França Paiva, Escravos e Libertos nas Minas

Gerais do Século XVIII: estratégia de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995;

e, sobretudo, Adauto Damásio, “Alforrias e ações de liberdade em Campinas na primeira metade do

século XIX” (Dissertação de Mestrado, UNICAMP, 1995). Existe também o trabalho de Lizandra Ferraz,

a partir do cruzamento dos testamentos, inventários, verbas testamentárias e escrituras notariais de carta

de alforria. Ela faz uma pesquisa interessante sobre a prática da alforria em Campinas no século XIX. Ver

FERRAZ, Lizandra Meyer. “Testamentos, Alforrias e Liberdade: Campinas, século XIX”. Monografia de

graduação de curso. Campinas: UNICAMP, 2006. Esses autores demonstram as várias possibilidades de

se estudar a alforria para além da própria carta registrada em cartório. 196

ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. “Alforrias em Rio de Contas - 1800-1850”. 4º encontro de

Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba, 2009. 197

EISENBERG, Peter. Ficando livre: as alforrias em Campinas no séc. XIX. São Paulo: Unicamp, 1989,

p. 210. 198

FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade. História de escravos e libertos na Bahia (1870-

1910). Campinas: Editora Unicamp, 2006, p. 109. 199

Em termos de movimentos sociais, porém, o mais significativo na segunda metade do século XIX foi,

certamente, o abolicionismo. Tradicionalmente caracterizado como um movimento de homens livres,

quase sempre brancos, letrados, que no parlamento e nas ruas batalharam por uma legislação que acabasse

com a escravidão no país, o abolicionismo vem sendo revisitado por estudos que tendem a dar maior

atenção às ligações entre os abolicionistas e a luta dos escravos contra a escravidão (MATTOS,

Escravizados e livres, p. 150).

Page 78: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

78

Os jornais deram grande publicidade a esses atos como prova de

desprendimento e de espírito humanitário. Na verdade, era uma forma

de antecipar-se á decisão do império de abolir o cativeiro. Era também

um meio de conter a crescente insatisfação da população cativa e

evitar distúrbios na produção. A „emancipação concedida‟ no apagar

das luzes do cativeiro foi uma tentativa de arrancar o respeito e a

antiga gratidão „dos antigos escravos‟.200

Consideramos oportuno lembrar que esse jogo de sedução fez parte de uma

política paternalista que, como bem analisou Genovese, não podia ser entendida apenas

pelo viés do senhor; diferentemente da concepção de paternalismo de Freire, que

desconsiderava como o escravo interpretava e agia, o importante no processo era a

lógica senhorial, voltada para as pseudo-benevolências e algumas amenidades. Para

Genovese o paternalismo:

(...) surgiu da necessidade de disciplinar e justificar,

moralmente, um sistema de exploração. Estimulava a

bondade e a afeição, mas também, simultaneamente, a

crueldade e o ódio. A distinção racial entre senhor e

escravo acentuava a tensão inerente a uma ordem social

injusta.201

Dessa forma, assim como o senhor se utilizava de meios para consolidar os “atos

de benevolência” em uma política paternalista, é preciso destacar que os escravos

também construíam medidas para facilitar essa concessão. Em outras palavras, o fato de

serem gratuitas não implicava que os escravos da referida freguesia fossem menos

astutos, ou que os senhores da região fossem benevolentes demais. É provável que tenha

havido uma relação atuante da parte escrava, e esse “contra-teatro” dos escravos

terminava sendo uma forma eficiente para a obtenção das alforrias; ou seja, mesmo com

a existência de uma ampla gama de mecanismos de dominação, esta não deixou de

conviver com forças opostas e que, ao seu modo, conseguiam seus objetivos em relação

ao domínio sofrido.202

Isso não implica que não tenha existido de alguma forma

200

FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 113. 201

GENOVESE, A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Tradução de Maria Inês Rolim e

Donaldosom Magalhães. Brasília: Paz e Terra. 1988, p. 22. 202

Ibidem.

Page 79: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

79

relações de afeto ou gratidão das partes envolvidas; ao contrário, a dinâmica escravista

consistiu em mostrar o quão essas relações eram complexas.203

A alforria nunca é uma aventura solitária. Resulta de todo um tecido

de solidariedades múltiplas e entrelaçadas, de mil confabulações,

processos de compensações, promessas feitas e mantidas, preceitos,

até mesmo de conveniência, reflexos e imagens mentais que

constituem, no Brasil da escravidão, o quadro de uma sociedade.204

Por fim, uma modalidade não tão comum de alforrias doadas pelo senhor foi o

das alforrias coletivas. A sua raridade certamente estava atrelada a inúmeros fatores,

geralmente não revelados nos documentos. Um desses podia ser a condição favorável

do senhor, economicamente falando, pois conceder a liberdade a vários cativos ao

mesmo tempo implicava na existência de uma “reserva” escrava para a mão de obra. De

qualquer forma, nas Umburanas só encontramos um caso: a carta datada de 1876, no

qual o senhor Vicente Rodrigues de Oliveira concede a liberdade para “Brígida, parda,

casada [que] gozará da inteira liberdade desta data em diante. Juntamente com Maria,

filha de Firmino e Gregório, pardinho, que me acompanha desde a infância”.205

3.1.2 Alforrias gratuitas condicionais

Peter Eisenberg demonstra que a liberdade do escravo muitas vezes era

condicionada a algumas restrições que, sendo desrespeitadas, poderiam conduzir o

“liberto” novamente à condição jurídica de escravo. A carta regulava um contrato que

estabelecia certas restrições à liberdade do escravo como, por exemplo, uma cláusula de

prestação de serviços: trabalhar por mais alguns anos após a morte do senhor para seus

203

Essa noção de poder como um jogo de forças antagônicas e nunca unilaterais deve se aplicar às

análises sobre o fenômeno das alforrias, e isso numa referência direta ao trabalho de Michel Foucault.

Para este, o poder não é uma substância, algo que existe por si mesmo, mas, essencialmente, uma relação,

que sempre pressupõe uma atuação recíproca das partes envolvidas, mesmo que uma delas (como no caso

do senhor, na relação senhor-escravo) tenha mais influência ou mais força para impor-se. Cf.

FOUCAULT, Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal,

1979. 204

MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p.194. 205

Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC), Livro de Registros Diversos, Série Carta de Alforria,

Livro 8, folha 27.

Page 80: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

80

familiares.206

Enfim, as cartas gratuitas, condicionadas a serviços, foram as que mais

frequentemente apareceram nos registros das Umburanas totalizando 47% de todas as

cartas analisadas.

De fato, a prestação de serviço apareceu muito nos registros das Umburanas.

Geralmente, a condição imposta era a de que o senhor fosse bem servido enquanto vida

tivesse e, em alguns casos, obrigação que se estendia para o seu cônjuge, filho e até

neto. Caso a condição da liberdade não fosse cumprida em algum momento o senhor

tinha a possibilidade de revogar a carta. Temos o caso da alforria “sob condição de

servir” de Maria Joaquina da Conceição: “Liberto a minha escrava Hilária, parda, 21

anos (mais ou menos) com a condição de ajuda na criação de meos netos.”207

Em 19 de

março de 1870 o escravo crioulo Feliz recebeu sua carta de liberdade de sua senhora

Clemência Maria de Jesus, de forma gratuita, mas com a condição de acompanhá-la

“durante sua vida, prestando-lhe todos os serviços e obediência”.208

Outro exemplo foi o

caso de Luzia, preta, liberta pelos “bons serviços que me tem prestado e com a condição

de me servir e acompanhar, como sempre tem feito, depois de meo [sic]

fallecimento”.209

Enfim, muitos foram os casos dessas alforrias com medidas

reguladoras.

Consideramos esse tipo de concessão como um ato extremamente perverso, pois

engessava o escravo diante da promessa de uma liberdade vindoura que poderia,

obviamente, durar anos a fio. Não é excessivo imaginarmos a frustração dos sonhos dos

escravos de uma liberdade prometida, frustrada dia após dia e mantida através do

controle, pois o escravo sob alforria condicional tenderia para uma maior “disciplina”,

já que estava em jogo a sua liberdade e, aos seus olhos, ela nunca esteve tão próxima.

Maria de Fátima Pires destaca uma tendência interessante que permeou essas

cartas gratuitas condicionais. A autora constata que, a partir da década de 1870,

momento próximo do fim da escravidão, a conjuntura então emergente precisava se

valer de algumas estratégias relativas às alforrias dos escravos. Uma delas foi delimitar

os prazos para a sua concessão, uma vez que “Utilizar a carta como expediente de

206

EISENBERG, Ficando livre, p. 210. 207

Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, Série Carta de Alforria, Livro 8,

folha 20, 1878. 208

Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC), Livro de Registros Diversos, Série Carta de Alforria,

Livro 8, folha 23,1878. 209

Cartório Público de Antonio Cardoso (CPAC), Livro de Registros Diversos, Série Carta de Alforria,

Livro 10, folha 5, 1883.

Page 81: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

81

controle, sem delimitar um período para a sua efetivação, talvez não se revelasse uma

estratégia tão eficiente”.210

Um destaque nessas concessões gratuitas condicionais foi a presença marcante

das crianças nesse processo. Pires destaca o fato de elas serem „crias‟ da casa, revelando

uma espécie de „amor‟ daqueles em relação a elas, bem como a existência de „laços

familiares e de amizade‟. Não obstante essas menções de carinho e apreço constantes às

vezes nos registros, a autora faz observar algo no mínimo paradoxal, pois em muitos

casos não se “dispensavam a manutenção da condição de escravo para as crianças, que

deveriam aguardar até o fim da vida de seus senhores”.211

3.1.3 Alforrias compradas: onerosas incondicionais e condicionais

Muitas “barreiras” se interpuseram entre o escravo e o seu anseio para a

conquista da liberdade. Como bem disse Kátia Mattoso, “a mais conhecida delas é o

preço a ser pago”.212

Em março de 1873, nas Umburanas, o tenente Manoel Alves de

Assunção desembolsou 600$000 (seiscentos mil reis) como pagamento ao senhor David

Dias pelo escravo nominado Ricardo, conhecido como zula , 35 anos (mais ou menos),

solteiro e do serviço da lavoura.213

No decorrer de 3 anos, em junho de 1876, Ricardo

aparece nos registros comprando sua liberdade do senhor Manoel por 400$000

(quatrocentos mil reis).214

No cruzamento do registro de compra e venda com essa carta

de alforria fica a questão: como o escravo Ricardo zula conseguiu reunir o pecúlio para

a compra da sua liberdade? O que houve para a desvalorização do preço de Ricardo?

As alforrias onerosas aconteciam quando o escravo desembolsava “valores em

moeda sonante, ouro ou papel”, a fim de obter o documento de liberdade.215

Para a

autora, havia, na verdade, um acordo verbal na obtenção do preço a ser negociado entre

senhor e escravo, uma vez que boa parte das cartas de alforria registraram o fato de que

“o preço foi decidido pelas duas partes‟”; não obstante, esse contrato bilateral baseava-

210

PIRES, Fios da vida, p. 79. 211

Ibidem, p. 76. 212

A lei de 1871 estabelecia em seu artigo quarto : “É permitido ao escravo a formação de um pecúlio

com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver

do seu trabalho e economias”. Cf. Colleção das Leis do Império do Brasil. 213

Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, fl.28. 1873 214

Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso fl.23. 1876. 215

MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 180.

Page 82: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

82

se em uma avaliação feita pelo senhor, o qual estava encarregado de atribuir um valor

que era justo. Sharize Amaral destaca, porém:

Não podemos deixar de lado a hipótese de que estes escravos

aceitavam o preço da avaliação sem maiores barganhas por temor do

convívio com os novos senhores ou ainda pela possibilidade de

mudança de domicílio decorrentes da partilha da herança entre os

herdeiros. Ainda assim, houve casos em que, após a morte do senhor,

os escravos tentaram se alforriar mediante pagamento do seu valor e,

por alguma artimanha senhorial, não conseguiram.216

Nas Umburanas, apesar de sua área ser predominantemente rural,217

muitos

escravos conseguiam acumular o pecúlio para a compra de suas alforrias. Prova disso

era que o número das alforrias onerosas assumidas pelo próprio escravo foi de 27% do

total dos registros. Isso nos faz supor que nesta região eles tiveram alguma margem de

tempo disponível e de condições de trabalho, em paralelo com os afazeres dos quais eles

eram designados pelos senhores. É preciso, então, saber de que forma um escravo nas

Umburanas poderia juntar “capital” necessário para comprar a sua alforria.

Maria Helena Machado salienta que, no âmbito das atividades desenvolvidas

para obtenção do peculio, havia muitas e variadas formas. As mais usuais estavam

relacionadas a atividades econômicas autônomas ligadas ao plantio em pequenas roças e

sua conexão com o pequeno comércio.218

É o que mostrou também o trabalho de

Flaviane para a realidade de Feira de Santana:

Há, portanto, indícios de que muitas escravizadas estiveram

empregadas ao serviço do ganho na feira, inclusive de que elas

conseguiram, a partir dessa atividade, acumular pecúlio para a compra

de suas respectivas cartas de liberdade. É provável que esse também

fosse o meio usado por Francisca, de nação cabra, que pagou

quinhentos mil réis pela alforria na fazenda São Tiago, em julho de

1865 (...).219

Além disso, ressalta que existiam outras atividades possíveis para a obtenção do

pecúlio: “o artesanato, a pesca, a coleta, a prestação de serviços remunerados [...] e as

216

AMARAL, “Escravidão, liberdade e resistência em Sergipe”, p. 167. 217

Contrariando a idéia de que a alforria foi um fenômeno essencialmente urbano. Conheceremos um

pouco mais das alforrias compradas em uma região com índice populacional muito pequeno e distante dos

centros de propulsão comercial. 218

MACHADO, “Em torno da autonomia escrava”, p. 148. 219

NASCIMENTO, “E as mulheres da Terra de Lucas?”, p. 32.

Page 83: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

83

gratificações e prêmios embutidos no próprio regime de trabalho das fazendas;

finalmente, e por que não, os furtos e desvios da produção agrícola empreendidos pelos

escravos”.220

Não obstante, a referida autora destaca que não há ainda estudos

suficientes para determinar com precisão “o peso específico de cada uma dessas

atividades no cômputo geral das fazendas [...], faz-se necessário manter-se atento à

manifestação de formas extremamente variadas de atividades econômicas independentes

exercidas pelos escravos”.221

Certo, porém, era o fato de que geralmente o escravo buscava desenvolver

atividades autônomas, com vistas ao pecúlio e, não sendo verificada essa condição, em

casos extremos poderia acontecer o que houve com o senhor Joaquim Guedes de Godói,

assassinado pelo escravo Gregório. Em seu depoimento ele manifesta a raiva pela

“‟ruindade‟” do senhor em não permitir que ele exercesse atividade complementar à sua

lida diária. 222

Havia, portanto, uma necessidade de equacionar a relação tempo-trabalho, dada

a tarefa imperiosa de acúmulo do pecúlio, e isso mostrava outro elemento de iniciativa

do escravo no processo de conquista da sua liberdade:

Manter o controle pessoal sobre determinada parcela de seu próprio

tempo, criando assim, as condições necessárias para reter parte de sua

força de trabalho em usufruto próprio, estabelecendo seu acesso a

alguma modalidade de economia monetária, sendo a roça

independente- plantar e criar- uma das possibilidades aventadas.223

Fraga Filho corrobora esta idéia, inclusive mostrando como os escravos

chegaram a se aproveitar de um contexto de falta de mão-de-obra, utilizando a sua força

de trabalho a serviço de outros senhores, a fim de obter o seu pecúlio. Isso não poderia

dar-se sem que o escravo utilizasse de meios sutis de convencimento relativamente ao

seu senhor:

Para manter uma atividade independente, o escravo precisava

negociar, ou, mediante vários artifícios, arrancar dos senhores

margens maiores de „tempo livre‟. É possível que, nas décadas de

1870 e 1880, diante do problema premente da escassez de mão-de-

220

MACHADO, “Em torno da autonomia escrava”, p. 148. 221

Ibidem, p. 148. 222

Ibidem, p. 148. 223

Ibidem, p. 148.

Page 84: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

84

obra cativa, se tenham ampliado as oportunidades de trabalho alugado.

Havia escravos que trabalhavam nas lavouras do senhor, durante os

domingos e feriados; normalmente, eram remunerados com alimentos

(carne e farinha) e dinheiro.224

A percepção dos senhores da importância desse trabalho paralelo dos seus

escravos, realizados principalmente nos domingos e feriados, levou-os a entender que a

negação dessa concessão podia constituir-se como forte meio de punição, para além do

recurso a métodos tradicionais de castigo. Assim, como o demonstrou novamente Fraga

Filho em seus estudos, tal artifício foi uma das formas mais freqüentes de punição

utilizadas pelos senhores e feitores aos escravos “insubordinados”.225

Investigando o alto sertão da Bahia, mais precisamente Rio de Contas, Maria de

Fátima Pires chama a atenção para a importância dos arranjos cotidianos para obtenção

do pecúlio, “constituídos nas redes de vizinhança e parentesco, que ampliaram as

margens de negociações com os senhores locais”.226

A autora destaca ainda que, para

além da necessidade escrava de buscar a compra da sua liberdade, existia a preocupação

de garantir os meios de subsistência já na condição de liberto:

Percebe-se que interessava ao escravo assegurar não somente a sua

liberdade, mas meios de subsistência como forro, garantindo de uma

só vez mecanismos para desempenho de atividades rentáveis,

possivelmente já partilhadas em suas rotinas enquanto cativos.227

.

Havia, portanto, muitas possibilidades de os escravos amealharem alguma renda

que, conforme vimos, servia muitas vezes de poupança para a compra da sua futura

carta de liberdade. Assim, “data de longe” essa prática, como apontaram Spix e Martius

que, ao passarem “pelo alto sertão na primeira década do século XIX, compraram milho

„das roças de escravos‟ para alimentar seus animais durante a viagem”;228

assim como

Lycurgo Santos Filho, quando identificou a posse de éguas de criação por escravos, face

224

FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 44. 225

Ibidem, p. 46. 226

PIRES, Fios da vida, p. 83. 227

Ibidem, p. 83, grifo nosso. 228

Ibidem, p. 82.

Page 85: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

85

à permissão do seu senhor de que seus mancípios plantassem e criassem no interior da

sua propriedade.229

A possibilidade de cultivar um pedaço de terra e produzir alimentos em seus

pequenos lotes deve ser entendida, igualmente, como uma conquista escrava. Slenes

denomina este processo de “economia interna dos escravos”. Esta se constituiu como

“todas as atividades desenvolvidas pelos cativos para aumentarem seus recursos, desde

o cultivo de suas roças à caça e, inclusive, o furto.”230

Erivaldo Neves informa que,

“durante e depois da escravidão, senhores cediam nesgas de terra a seus escravos „em

usufruto e a folga semanal para trabalhá-la”.231

Esta conquista, para alguns autores, ia mais além do que um mero ganho

econômico:

O espaço de economia própria servia para que o escravo adquirisse

tabaco, comida de regalo, uma roupinha melhor para mulher e filhos

etc. Mas, no Rio de Janeiro do século XIX, sua motivação principal

parece ter sido o que apontamos como válvula de escape para as

pressões do sistema: a ilusão de propriedade „distrai‟ da escravidão e

prende, mais do que uma vigilância feroz e dispendiosa, o escravo à

fazenda.232

Maria de Fátima Pires menciona como a venda de reses também se constituiu

como forma de reunir o pecúlio. “Sabe-se que vaqueiros recebiam pelo sistema de sorte

ou giz, mas não há provas de que os escravos partilhassem dessa espécie de bônus.

Entretanto, escravos vaqueiros, tornados forros, poderiam utilizá-lo como pagamento

em diversas cartas de alforria”.233

Porém, é importante destacar que, de uma maneira

geral, as cartas de alforria não mencionam de que forma os escravos obtinham a compra

da sua alforria, ou seja, qual serviço proporcionou a eles aqueles excedentes de capital.

No caso das Umburanas, por ser uma região “pobre” e distante dos centros

urbanos, não havia um leque tão grande de possibilidades de trabalho para a obtenção

do pecúlio. Parece-nos, assim, que a maneira mais plausível e preponderante tenha sido

229

PIRES, Fios da vida, p. 82 230

SLENES, Robert. Na Senzala, uma Flor, p. 197-200. Outros autores, como Erivaldo Neves, seguindo

a vertente de Ciro Flamarion Cardoso, utilizaram a denominação de „brecha camponesa‟ ou „proto-

campesinato‟, referindo-se às “‟atividades econômicas que, nas colônias escravistas escapavam ao

sistema de plantation, entendido em sentido estrito‟”. 231

NEVES, Uma comunidade sertaneja, p. 294. 232

SILVA, Eduardo e REIS, João J, Negociação e Conflito - a resistência negra no Brasil escravista. São

Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 29, grifo nosso. 233

PIRES, Fios da vida, p. 84.

Page 86: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

86

realmente a criação de animais em pequena escala, o plantio em pequenas roças, e a

venda desses produtos nas feiras livres, como já foi observado também para a realidade

de Feira de Santana por Flaviane Nascimento, cada uma dessas atividades geralmente

relacionadas com a função precípua desenvolvida pelo escravo, embora ainda assim não

se possa garantir que foi ela a responsável pelo pecúlio. Isso responde àquela indagação

que fizemos anteriormente: o escravo Ricardo, no seu Registro de Compra e Venda,

fora comprado com o fim de servir na lavoura, em 1873. Se o mesmo conseguiu

comprar a sua carta de liberdade três anos depois, é provável que a sua fonte tenha sido

serviço de lavoura; não obstante, mesmo nesse caso não se pode garantir que essa

poupança amealhada tenha se originado exclusivamente desse afazer.

Portanto, é sempre perigoso adotarmos uma perspectiva generalista. Prova disso

foi a maneira inusitada pela qual Pedro, crioulo, escravo de Francisco Vieira de Souza,

conseguiu arrecadar alguns réis. No processo crime no qual ele fora acusado de atirar na

crioula Paulina, constava-se que, na verdade, sua arma tinha disparado acidentalmente,

arma esta que ele estava carregando nas redondezas da Fazenda Gameleira, na

Freguesia das Umburanas, negociando a sua venda para o filho da vítima, Manoel de

São Leão.234

Dessa forma, a venda da arma de fogo se constituiu em uma possibilidade

que Pedro, escravo, vaqueiro, encontrou para arrecadar alguns trocados.

Existia ainda o escravo que, para juntar o pecúlio necessário para sua liberdade,

precisava se afastar do convívio direto com seu senhor e, a partir de um prazo

estipulado, conseguir recursos para quitar sua alforria. Nas Umburanas não

identificamos nenhum caso de coartação,235

embora houvese caso de alforria onerosa

condicional, em que o escravo Matias, preto, 28 anos, serviço da lavoura, em 1885

compra a sua carta de alforria por 300$000 (trezentos mil Réis), do Sr. João Augusto

Ferreira, com a condição de quitar a outra parte restante, no mesmo valor, a fim de obter

definitivamente a carta de liberdade. No documento não consta, porém, se o escravo

Matias podia ausentar-se em algum momento, prestando serviço a outros senhores, a

fim de obter o pecúlio necessário.

234

APEB. Seção judiciária. Processo crime/série homicídio. Estante número 27, caixa número 960,

documento número 05, de 1852. 235

Para este conceito de coartação, apesar de haver na historiografia várias versões, consideramos

pertinente o que diz ser um “tipo de manumição paga parceladamente pelo escravo e ou terceiros. O

coartado afasta-se geralmente do domínio direto do seu senhor, conseguindo deste último autorização por

escrito – carta de corte – para trabalhar em outras regiões e para obter o pecúlio. Às vezes a coartação era

acertada verbalmente e dispensava o acordo por escrito” (PAIVA, “Escravos e libertos nas Minas Gerais

do século XVIII”, p. 21-21).

Page 87: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

87

3.1.4 Alforria comprada por terceiros

Um caso específico de alforrias onerosas incondicionais foram aquelas

compradas por terceiros. Aos 12 dias do mês de maio de 1869, na Freguesia de Nossa

Senhora do Resgate das Umburanas, Alexandre, crioulinho, é libertado pelo senhor José

Joaquim de Carvalho, seu vizinho e padrinho.236

Na documentação pesquisada foi

comum encontrarmos esses “laços de compadrio” para a obtenção da alforria, ou seja,

padrinhos concedendo a liberdade e comprando alforrias. Manolo Florentino e Roberto

Góes, estudando aspectos das famílias escravas e do tráfico atlântico, mencionam o

batismo como uma “oportunidade aproveitada pelos cativos para tecer laços de proteção

e ajuda mútua”.237

Segundo os autores, os arranjos familiares forneceram as bases para a

organização e a pacificação entre os cativos. Isso porque esses elementos foram

fundamentais para o escravo sobreviver ao cativeiro e até libertar-se dele.

Kátia Mattoso, apesar de acreditar que muitos fatores impediam a formação da

família escrava, quiçá questionando a sua própria existência, destaca, sobretudo, as

proibições dos seus senhores e a tendência dos mancípios de evitar a procriação.238 Não

obstante, ela chegou a reconhecer o tema das “solidariedades procuradas: o compadrio”

como um elo importante nas relações de parentesco. Para ela, ser afilhado de um senhor

significava possuí-lo como alguém que assume “responsabilidades idênticas às dos

pais”,239

devendo oferecer ao escravo algum tipo de auxílio material e espiritual. Eram

obrigações que, segundo a autora, coadunavam-se com uma característica da cultura

brasileira: “são raros no Brasil os padrinhos que não levam a sério suas

236

Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, 1869, p. 15. 237

FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico

atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 92. 238

“Para o escravo a vida sexual responde apenas às necessidades físicas, não visa à procriação. Nas

fazendas, dormitórios de homens e de mulheres são separados e os encontros de casais, mesmo

legalmente casados, são realizados furtivamente, durante a noite. A política dos senhores é tornar os

contatos sexuais difíceis, mas não impossíveis. Assim foi que a poligamia africana foi substituída no

Brasil por uma sucessão de ligações passageiras” (MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 127). Emília

Viotti da Costa também coaduna com a visão de que a escravidão desorganizou a vida familiar e

“contribuiu para conferir precariedade e instabilidade àqueles laços” (COSTA, Emília Viotti da. Da

senzala à colônia. 4 ed. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1998, p. XII). Esta visão tornou-se

simplista e generalista e já não condiz com as pesquisas que negam o caráter de excepcionalidade dos

laços familiares entre os cativos. Foi notadamente a partir da influência da historiografia americana,

destacando aqui os estudos de Gutman e Genovese, que se consolidou a tendência de reconhecimento da

importância e existência da família escrava, deixando de ser vista como exceção e tornando-se um

fenômeno recorrente e fundamental para a sociedade escravista como um todo. Cf. de SLENES, Robert.

Na Senzala, uma Flor, onde a família escrava aparece, sobretudo, como forma de resistência, além dos

autores que citamos na Introdução deste trabalho. 239

MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 112.

Page 88: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

88

responsabilidades”.240

O padrinho, de um modo geral, devia ser influente, possuir terras,

ter bom relacionamento e prestígio na comunidade.

O objetivo da escolha desse padrinho tinha várias finalidades. Sharize Piroupo

do Amaral mostrou que, no caso de alguns escravos fugitivos, “O padrinho devia

interceder junto ao senhor do escravo para que este não fosse castigado ou ainda que o

castigo fosse atenuado. Este era um costume que existia desde a época colonial e que

parece ter se disseminado por todo país”.241

A autora mostra também que o padrinho

servia também como “mediador nas desavenças entre o feitor e o escravo. Neste caso a

intervenção de um terceiro serviria bem ao senhor, que poderia perdoar o escravo sem

se indispor com o feitor”.242

Para além de questões relacionadas à fuga, uma outra finalidade precípua

embutida no processo do apadrinhamento era, quem sabe um dia, o escravo poder obter

a sua liberdade, através da alforria comprada pelo padrinho.243

Tal objetivo maior

explicava o fato da existência de laços entre os escravos e seus padrinhos, embora em

menor monta do que aqueles relativos aos escravos entre si. Na verdade, conclui Kátia

Mattoso, “os vínculos pessoais entre escravo e senhor pesarão menos para o equilíbrio

afetivo e promoção pessoal do negro do que os traços de união forjados no interior do

próprio grupo de escravos”.244

Outros autores, diferentemente da perspectiva acima, vêm mostrando como a

existência da família escrava era uma realidade bem mais comum do que se supunha. A

existência do compadrio ilustrava a possibilidade de se estabelecer o parentesco

simbólico entre os escravos. Para Engeman, “É preciso que se diga que este mecanismo

de aparentar certamente não foi de menor importância, já que podia transformar em

parentesco relações para além do âmbito marital e consangüíneo, utilizando-se do rito

batismal para lhes conferir plasticidade e status”.245

Em vinte de setembro de 1884, o escravo Cipriano consegue a sua carta de

alforria das mãos do seu senhor. Este o libertou alegando o seguinte motivo: ele “(...)

240

MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 112. 241

AMARAL, “Escravidão, liberdade e resistência em Sergipe”, p. 96. 242

Ibidem, p. 96. 243

É válido salientar que não necessariamente havia relação desses apadrinhamentos com o batismo

católico, pois foram analisadas as cartas de alforria e não foram encontrados os assentos de batismo da

freguesia das Umburanas. 244

MATTOSO, Ser escravo no Brasil, p. 134. 245

ENGEMAN, Carlos. “De Laços e de Nós: constituição e dinâmica de comunidades escravas em

grandes plantéis do Sudeste brasileiro do Oitocentos”. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-graduação em História Social, Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006, p. 25.

Page 89: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

89

me tem servido bem como escravo, afilhado e bom cristão”.246

Assim, o compadrio

assume uma importância como ferramenta na construção de “arranjos familiares” e,

sobretudo, como possibilidade de aproximação da liberdade. Nesses termos, instituído o

compadrio, criava-se o parentesco com outras pessoas com as quais se dividiam algum

tipo de afinidade. Nesse âmbito, não queremos dizer que as relações de parentesco

firmadas pelo compadrio fossem apenas um jogo de cálculo do escravo para obter a

concessão da liberdade ou somente um cálculo senhorial com a intenção de dominação.

Ao destacarmos essas relações de parentesco simbólico, tivemos a intenção de

evidenciar que as relações estabelecidas foram geradas por ambas as forças: o

explorador e o explorado, cada um com suas intencionalidades.

Outro caso apareceu nos registros foi o de uma escrava que lutou para conseguir

comprar a carta de liberdade da sua filha. Isso ocorreu com a cativa Gorete, por

exemplo, que, embora não tenha conseguido juntar o pecúlio para a compra de sua

alforria, conseguiu libertar sua filha Inácia, 12 anos, do julgo do cativeiro. Aos quinze

dias do mês de março de 1870 ela pagou 120$000 (cento e vinte mil reis) por essa

liberdade 247

e, doravante, Inácia desfrutaria da sua liberdade como se do ventre livre

tivesse nascido.

4. Padrão sexual das alforrias

Quanto às alforrias distribuídas segundo o padrão sexual nas Umburanas,

verificamos uma disposição que apontou para o seguinte fato: geralmente as mulheres

escravas foram alforriadas em número bem mais elevado do que os homens, sejam as

alforrias compradas, sejam as doadas. No gráfico abaixo verificamos que, exceto entre

1871-1880, quando houve uma igualdade entre os sexos no quesito de escravos

alforriados, ocorreu uma disparidade entre homens e mulheres nos períodos 1865-1870

e 1881-1888 quando, respectivamente, a proporção observada foi de 25% e 33,3% de

homens libertos.

246

Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, Série Carta de Alforria, Livro

10, 1884, p. 42. 247

Livro de Registros Diversos do Cartório Público de Antonio Cardoso, Série Carta de Alforria, Livro 8,

folha 12, 1870.

Page 90: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

90

Gráfico VIII: Padrão sexual das alforrias

Fonte: Livro de Registros Diversos, série Cartas de Liberdade do Cartório Público de

Antonio Cardoso (1866-1888).

Ao mesmo tempo, quanto àqueles que alforriavam, existiu uma predominância

das senhoras proprietárias que se utilizaram desse expediente, numa proporção de 56%

do total das cartas de alforria analisadas. Isso mostrou uma predominância das mulheres

entre si no processo de negociação da liberdade. Pires chegou a explicar este fato. Para

ela, "A mulher tendia a libertar as suas criadas domésticas fiéis e suas crias, preferindo a

alforria condicional, a fim de garantir que as cativas continuassem a trabalhar para ela

até a sua morte”.248

No caso específico das Umburanas há que se considerar também a

notável proporção de mulheres entre os proprietários de escravos, como discutimos no

Capítulo I.

5- A libertação pela fuga

Uma forma mais imediata, e porque não dizer arriscada, de se alcançar a

liberdade nas Umburanas foi através da fuga. Para Eduardo Silva e João Reis ela se

constituiu como “unidade básica de resistência no sistema escravista, no seu aspecto

248

PIRES, Fios da vida, p. 85.

0

1

2

3

4

5

6

7

8

9

1865-1870 1871-1880 1881-1888

HOMENS

MULHERES

Page 91: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

91

típico”.249

Estes autores dividiram em suas analises dois tipos de fuga: a reivindicatória

e a fuga-rompimento. A primeira funcionava como “uma espécie de „greve‟ por

melhores condições de trabalho e vida, ou qualquer outra questão específica,

sentimental inclusive”.250

Os autores destacam que, nesse caso, não se buscava “um

rompimento radical com o sistema”. Esta „greve‟ buscava, na verdade, ensejar um

processo de negociação entre as partes, obviamente sem referência a alguma forma de

diálogo franco entre senhor e escravo, mas um jogo velado de indisposições e, às vezes,

até ameaças. Os autores citaram, por exemplo, a pressão exercida no caso de escravos

que ameaçavam fugir, insatisfeitos com o atual senhor ou interessados em voltar para o

“dono” anterior.

Já a fuga-rompimento era muito mais complexa, pois caracterizada por uma

espécie de desacordo em relação ao “pacto” existente entre o senhor e o escravo; isso

supunha a existência, portanto, de formas previamente veladas de conduta entre as

partes, tanto a obrigação de servir do escravo, quanto a obrigação de o senhor atender a

algumas condições – certamente mínimas – de existência escrava no interior da

propriedade:

Dos primórdios da colonização até a década de 1870 mais ou menos,

isto é, sob a vigência do paradigma ideológico colonial, a principal

motivação para fugas e revoltas parece ter sido a quebra de

compromissos e acordos anteriormente acertados. Existia em cada

escravo idéias claras, baseadas nos costumes e em conquistas

individuais, do que seria, digamos, uma dominação aceitável.251

Aos escravos que optaram por conquistar a sua liberdade através da fuga ficava

uma questão incontornável: fugir como? Mas também, fugir para onde? Se, como disse

Perdigão Malheiros, “a fuga é inerente à escravidão”, Sílvia Lara acrescenta a isso o

fato de que “também fazem parte dela a associação entre os fugitivos e o auxílio

solidário direto ou indireto de terceiros”.252

Assim, diferentemente do escravo,

considerado um “fugitivo”, o seu cúmplice era qualificado de “criminoso”. É provável

que tenha havido muitas pessoas coniventes com a fuga de escravos nas Umburanas,

249

VAINFAS, Ronaldo. “Deus contra Palmares”, p. 62. 250

Ibidem, p. 63. 251

Ibidem, p. 67. 252

LARA, “Do singular ao plural”, p. 83.

Page 92: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

92

uma vez que uma opção para o local onde o escravo devia fugir tinha um lugar possível:

a Fazenda Gavião, local que veio a se tornar uma comunidade quilombola.

Para João Reis e Eduardo Silva “quilombos pressupõem fugas, tanto individuais

quanto coletivas.”253

Mas, antes de trabalharmos com a comunidade quilombola da

Fazenda Gavião, como entender o “novo” conceito de quilombo? Até 1970 a imagem

conceitual que permeou relativamente ao quilombo foi a dada pelo Conselho

Ultramarino em 1740, a saber, “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco,

em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões

neles”.254

Este conceito, não obstante, pressupunha algumas idéias que foram

posteriormente revistas:

Ao fazer a crítica do conceito de quilombo estabelecido pelo Conselho

Ultramarino, Almeida (1999:14-15) mostra que aquela definição

constitui-se basicamente de cinco elementos: 1) a fuga; 2) uma

quantidade mínima de fugidos; 3) o isolamento geográfico, em locais

de difícil acesso e mais próximos de uma natureza selvagem, que da

chamada civilização; 4) moradia habitual, referida no termo rancho.;

5) autoconsumo e capacidade de reprodução, simbolizados na imagem

do pilão de arroz. Para ele, com os instrumentos da observação

etnográfica, se pode reinterpretar criticamente o conceito e asseverar

que a situação de quilombo existe onde há autonomia, existe onde há

uma produção autônoma que não passa pelo grande proprietário ou

pelo senhor de escravos como mediador efetivo, embora

simbolicamente tal mediação possa ser estrategicamente mantida

numa reapropriação do mito do bom senhor, tal como se detecta hoje

em algumas situações de aforamento.255

O que se enfatiza acima, buscando estabelecer um conceito de quilombo mais

moderno e relacional, destaca-se pelo árduo processo de lutas sociais aí travadas,

salientando a questão da autonomia e, ao mesmo tempo, realçando que “Este sentimento

de pertença a um grupo e a uma terra é uma forma de expressão da identidade étnica e

da territorialidade, construídas sempre em relação aos outros grupos com os quais os

quilombolas se confrontam e se relacionam”.256

Em vista disso, é realmente preciso que

253

VAINFAS, Ronaldo. “Deus contra Palmares”, p. 62. 254

SCHMITT, Alessandra; TURATTI, Maria Cecília; CARVALHO, Maria Celina de. “A atualização do

conceito de quilombo: identidade e território nas definições teóricas”.

http://www.scielo.br/pdf/asoc/n10/16889. pdf, p. 01. 255

Ibidem, p. 02. 256

Ibidem, p. 03

Page 93: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

93

tenha essa trajetória histórica com presunção de ancestralidade negra critérios de

relações que sejam pautados segundo uma auto-atribuição da comunidade.

De acordo com o Decreto 4.887, de 20 de Novembro de 2003, que

“Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,

demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos

quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”,

lê-se o seguinte, no seu artigo 2º:

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para

os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de

auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações

territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra

relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.257

Caracterizado o conceito de quilombo, passemos a abordar a comunidade

quilombola da Fazenda Gavião, nas Umburanas. Embora tenhamos dito acima que uma

das opções possíveis de fuga dos escravos foi para esta Fazenda, é preciso acrescentar

que para aí se refugiaram, igualmente, libertos, encontrando nesta localidade um ponto

de apoio. Foi o que salientou Ozéias Santos, explicando que a formação da Fazenda

Gavião deu-se a partir da “ocupação das terras devolutas por escravos fugidos ou

libertos, desde o final do século XIX”.258

Aliás, um dos seus primeiros habitantes foi

justamente Juvêncio Pedro, escravo liberto e detentor da “maior posse de terras da

região”.

Houve, portanto, a ocupação dessas terras devolutas para o cultivo e criação e,

quando possível, comercialização dos excedentes.259

Nessa fazenda Gavião eles

257

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm, acessado em 11 de julho de 2011. 258

SANTOS, Ozeias de Almeida, “A produção do espaço rural no Estado da Bahia”, p. 4. Na análise

deste autor ele ainda acrescenta a origem mais remota daquela comunidade: “Os fazendeiros de escravos

em Antonio Cardoso, apoiado pelos jesuítas, dentre eles José de Aragão e Araujo, vieram dos Conventos

da Cachoeira, se instalaram na margem esquerda do rio Paraguaçu em 1690, e foram expandindo seus

domínios, formando a grande Fazenda Cavaco, que ocupava toda porção leste e nordeste do atual

território do município, onde estão localizadas as comunidades de Paus Altos, Cavaco/Gavião e Santo

Antonio”. Op. cit. p. 7. 259

“Outros libertos ocuparam algumas terras devolutas, onde atualmente se localizam as Fazendas

Gavião/Cavaco, Paus Altos, Santos Antonio dentre outras áreas, e formaram comunidades, onde

trabalhavam de forma coletiva na terra de uso comum”. SANTOS, “A Produção do espaço rural no

Estado da Bahia: uma leitura da concentração fundiária de comunidades quilombolas do município de

Antonio Cardoso”, p. 5.

Page 94: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

94

plantavam feijão, milho, mandioca, fumo, criavam pequenos animais e desenvolviam

atividades de “trabalho coletivo na terra”.260

A comunidade era praticamente envolta em

mata virgem, opção estratégica dos quilombos, na medida em que estes deveriam

oferecer obstáculos ao seu acesso para autoridades ou senhores. Assim se constituiu

como um abrigo seguro para escravos fugitivos ou libertos, além disso, um pólo de

atração mesmo para aqueles que, insatisfeitos da sua condição, buscavam a liberdade,

ou queriam afastar-se ao máximo da sua realidade cativa.

Nessa Fazenda houve um gradual desmembramento de suas terras, e muita luta

para que não fosse expropriada. Como disse Flávio Gomes, “podemos construir a

história do quilombo no Brasil, articulando – para além do protesto escravo – as lutas

pelo acesso, direito e manutenção à posse e uso das terras e a gestação de culturas

originais do mundo rural”.261

Para este autor, ainda, “(...) os escravos, a partir de suas

roças e economias próprias, e os quilombolas, com suas atividades econômicas,

acabaram por formar um campesinato negro ainda durante a escravidão”. Através dos

excedentes dos produtos que obtinham aí, em geral podiam conseguir outras

mercadorias com “taberneiros, pequenos lavradores e cativos de fazendas vizinhas”.262

No caso das Umburanas, provavelmente essas atividades comerciais deram-se mais

entre fazendas e escravos vizinhos e nas feiras livres, como vimos.

Após o fim da escravidão, em decorrência do “forte processo de especulação

imobiliária, conseqüência natural da interiorização do Brasil e do crescimento

populacional”,263

muitos latifundiários tentaram tomar posse dessa terra, com o fito de

desenvolverem uma pecuária extensiva, assediando “os aquilombados para

expropriarem as suas terras”, quase repercutindo no fim da comunidade. Os filhos de Zé

Pedro, porém, como Juvêncio, conseguiram resistir e garantir a posse, pelo menos de

alguma parcela da propriedade dos antepassados.

260

O Sr. Martins Alexandre, conhecido como na Fazenda Gavião como o Sr. binô, nascido em 1924, é

descendente de zé Pedro. Em conversa realizada no dia 08 de janeiro de 2010 fez uma tentativa de

rememorar a sua história de vida, lembrando das rudezas da lida, quando devia realizar essas plantações e

criações. O senhor binô recorda-se de ter passado fome algumas vezes, de ter trabalhado em fazendas

circunvizinhas e de ter recebido, algumas vezes, “dois vinténs por um caminho de cova”. 261

Cf. GOMES, Flávio dos Santos. “Sonhando com a terra, construindo a cidadania”, p. 463. In:

PINSKY, Jaime e BASSANEZI, Carla (Orgs.). História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2008. 262

GOMES, F. S.: "Quilombos do Rio de Janeiro do Século XIX", In: REIS, J. J. & GOMES, F. S.

(orgs.): Liberdade Por um Fio. História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1996, p.

274. 263

Cf SANTOS, Pitágora Oliveira dos. “Comunidade quilombola da Fazenda Gavião e suas relações

com a sociedade circundante”. Trabalho final da Especialização em História e Cultura Afro-Brasileira.

Fundação Visconde de Cairú, 2007, p. 19.

Page 95: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

95

Os seus membros tornaram-se ou “donos de pequenas propriedades, cuja

dimensão está abaixo do módulo rural estabelecido para região (25 hectares), ou

ganham a vida trabalhando nos latifúndios de criação que circunda a comunidade”.264

Coube ao Sr. Januário Pedro de Santana, bisneto de Juvêncio, continuar com a missão

de defender a comunidade da Fazenda Gavião contra a sua expropriação.

Enfim, tal ocupação foi uma das alternativas possíveis para os que, libertos após

a Lei de 13 de maio de 1888, pudessem trabalhar e tirar seu sustento. Com efeito, podia-

se também permanecer na antiga propriedade: muitos dos ex-escravos ficavam então na

condição de rendeiros. Outras dificuldades que faziam alguns ex-mancípios quererem

permanecer na propriedade que o escravizara há pouco era justamente a falta de

políticas públicas que viabilizasse o pós-emancipação, sobretudo a manutenção de

“certos esquemas hierárquicos” que perduravam. Assim, segundo a visão de Wlamyra

Albuquerque, o processo emancipacionista

(...) foi marcado pela profunda racialização das relações sociais; e a

manutenção de certos esquemas hierárquicos foi o principal saldo do

longo e tortuoso percurso que levou a sociedade brasileira à extinção

legal do cativeiro em 1888. Depois, o desafio será explicitar como

ações políticas protagonizadas por diferentes personagens e

instituições, como o Conselho de Estado, lideranças abolicionistas e

republicanas, literatos, libertos africanos, festeiros e adeptos do

candomblé, a partir de suas expectativas e planos para o pós-abolição,

racializaram as relações sociais no período.265

Flávio Gomes e Olívia Cunha discutiram esse último aspecto, margeando o

problema da cidadania, inserindo questões importantes. Afinal, após a abolição

poderíamos mesmo falar em uma antítese entre escravidão e liberdade, uma vez que

desapareceram os “vínculos de submissão, a distensão de hierarquias legais de

subordinação no plano jurídico e consensual, bem como o desaparecimento dos textos e

instrumentos burocráticos que legitimaram a sujeição”?266

Em contrapartida, a liberdade

então instaurada encontrou o seu devido sinônimo: a igualdade? Sem negar a existência

264

SANTOS, Pitágora. “Comunidade quilombola da Fazenda Gavião e suas relações com a sociedade

circundante”, p. 24. 265

Cf. ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra. São

Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.37-38. 266

GOMES, Flávio dos Santos; CUNHA, Olívia M. “Introdução – que cidadão? Retóricas da igualdade,

cotidiano da diferença”, in GOMES, Flávio dos Santos; CUNHA, Olívia M. (Orgs.). Quase-cidadão:

histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 13.

Page 96: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

96

do fenômeno da abolição, precisar-se-ia, não obstante, perceber as sutilezas do

processo:

Liberdade avesso da escravidão, igualdade como corolário de

liberdade, liberdade como duplo da cidadania, escravo versus liberto,

sujeito/assujeitado versus livre etc.? Ao investir na compreensão da

dimensão provisória, por vezes precária, atribuída a esses termos,

talvez devêssemos explicitar que não estamos necessariamente

evocando os sinais da permanência e da continuidade. Ao contrário,

interessa-nos entender como e através de que operações discursivas,

processos sociais e históricos, homens e mulheres cujo estatuto social

estava condicionado à combinação de sua condição jurídica, origem

social e aparência física passam a ser vistos e a ver a si próprios como

iguais.267

267

GOMES, Flávio dos Santos; CUNHA, Olívia M., “Introdução – que cidadão?”, p. 13.

Page 97: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

97

Considerações Finais

A investigação acerca da escravidão e da liberdade na Freguesia das Umburanas

foi um trabalho árduo, tendo em vista as dificuldades que encontramos para conseguir

fontes historiográficas suficientes, muitas vezes esbarrando em problemas como a má

conservação dos documentos nos arquivos públicos, a lacuna de livros notariais não

encontrados268

e a grande dispersão das fontes. Apesar de tais lacunas, este estudo

buscou aprofundar e denunciar questões não discutidas na produção local: a presença

marcante de escravos na região no século XIX e as formas de resistência aí instauradas.

Nesse bojo, a importância do tráfico interno para a região e os fluxos da dinâmica

escravista mostraram-se fundamentais: eles ajudaram a compor as diversas

experiências históricas dos cativos do séc. XIX.

Identificamos nas Umburanas algumas peculiaridades, e este foi um caminho

necessário e inevitável para nos aproximarmos do tema da liberdade. A primeira delas

estava relacionada com a própria região, que denominamos de “agreste paisagem

sertaneja”. Os rigores do seu clima, a distância em relação à capital baiana e ao

“modelo” de escravidão aí associado, tudo isso deveria ensejar a emergên cia de outras

modalidades de vida escrava, abrindo o horizonte da sua complexidade.

Importante também foi a constatação das formas de arranjo de poder local

relacionadas com a propriedade e os proprietários, localizando entre estes os que mais

se destacavam, tanto na transação com a posse de terras, quanto com a negociação

envolvendo a mão de obra cativa. Ao mesmo tempo, as Umburanas mostraram ter uma

predominância de pequenos e médios proprietários,269

cuja estrutura produtiva estava

atrelada praticamente ao manejo da terra em pequena escala e com pouco número de

cativos.

268

Como o livro de número 9 do Cartório Público de Antonio Cardoso, bem como os inventários dos

grandes proprietários, ainda desaparecidos, e os livros de assento de batismo, só encontrados a partir de

1889. 269

Isso explica hoje a concentração da estrutura fundiária de Antonio Cardoso: “enquanto 7 (sete)

propriedades possuem área maior que 500 (quinhentos) hectares, aproximadamente 1.000 (mil)

estabelecimentos apresentam áreas menores que 2 (dois) hectares – aqui denominado microminifúndios,

pois não dispõem de terra para garantir sua reprodução social.” Cf. Ozéias Santos, “A Produção do espaço

rural no Estado da Bahia, p. 8. Dessa forma, torna-se imperioso incluir “no debate sobre a questão agrária

no Brasil a questão étnica, especialmente as experiências do cativeiro – com os quilombos /mocambos e

formas de protesto e ocupação de terras - e aquelas do pós emancipação , com as comunidades

remanescentes e outras tantas “terras de pretos””. Cf. GOMES, Flávio dos Santos, “Sonhando com a

terra, construindo a cidadania”, p. 463.

Page 98: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

98

No universo daqueles proprietários constatamos a existência de muitas senhoras

donas de terra, cujas propriedades geralmente eram adquiridas através de herança,

sobretudo pelo falecimento do cônjuge. Identificamos a presença delas nos registros

eclesiásticos de terra e de compra e venda de escravos, assumindo diretamente o

processo de negociação. Além disso, boa parte dessas mulheres fora responsável por

conceder cartas de alforria a seus escravos, posturas ativas que eram, no século XIX,

predominantemente masculinas.

A negociação envolvendo crianças e mulheres escravas nas Umburanas mostrou-

se igualmente significativa. Verificamos que não houve uma repartição de afazeres tão

demarcados, uma vez que o trabalho na roça compunha a maioria das suas atribuições,

não precisando de tamanha divisão. As mulheres, neste ínterim, tiveram a oportunidade

de mostrar a sua versatilidade, podendo inserir-se nas mais diversas ocupações, o que

explicava o número praticamente igual de homens e mulheres negociadas, bem como

uma proporcionalidade semelhante dos seus preços.

A partir da abordagem dos aspectos acima, que tentaram circunscrever o

contexto regional, social e político das Umburanas, passamos para a temática da

liberdade, como uma busca natural daqueles que viviam sob o jugo do cativeiro.

Tentamos identificar ou apontar formas atuantes e inusitadas através das quais os

mancípios buscavam o pecúlio para a compra da sua alforria. Este era um claro sinal de

que também os escravos não se reduziam a figuras passivas diante do sistema, mas

participavam das relações que eram estabelecidas. A liberdade do escravo era, portanto,

muitas vezes negociada entre as partes envolvidas. Tentamos realçar a necessidade de

relativizar o discurso oficial, por exemplo, quando as alforrias gratuitas pareciam surgir

como atos de benevolência do senhor, ocultando intenções bem diversas.

Teófilo, Hermínia, Ricardo Zula, Maria, enfim, muitos escravos do séc. XIX nas

Umburanas almejaram “inventar” ao seu modo uma forma de liberdade, tendo em vista

constituir sua família, ter sua morada e poderem usufruir diretamente do seu trabalho,

plantando, criando animais e negociando os frutos desse labor em sua “nesga de terra”.

Para alguns deles a fuga surgiu como outro recurso direto à busca dessa liberdade. E se

este fenômeno percorreu toda a época da escravidão, a peculiaridade das Umburanas foi

a existência do refúgio quilombola da Fazenda Gavião.

Não conseguimos obter fontes importantes acerca dessa comunidade. Não

obstante, compactuando com a visão de Flávio Gomes e Olívia Cunha, se a Lei de 1888

Page 99: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

99

não garantiu cidadania e liberdade efetivas aos mancípios, o refúgio da Fazenda Gavião

foi, como disse Leibniz, mutatis mutandis, o “melhor dos mundos possíveis”.

Page 100: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

100

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Page 108: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

108

Apêndice I - Tabela de disposição de alguns dos registros:

ESCRAVO

NOME

NATURALI

DADE

FILIAÇ

ÃO

COR IDADE

ESTAD

O

CIVIL

ESPECIALI

ZAÇÃO

PRE

ÇO

VENDE

DOR

SENHO

R

COMPR

ADOR

AN

O

THEODÓSIO FREGUESIA ESCRAVA

ANA

PARDINHO 7 ANOS 400

MIL REIS

JOAQUIM

LONGUINHO

MANOEL

ROMUALDO DE

ALMEIDA

1866

LUIZA FREGUESIA CRIOULA 30 ANOS SERVIÇO DA

LAVOURA

300

MIL REIS

ANTONIO

DIAS PEREIRA

ANTONIO

JOSÉ DOS SANTOS

BARAÚNA

1866

FELICIANAn

nbb

FREGUESIA ESCRAVA CARLOTA

7 ANOS MAIS OU

MENOS

500 MIL

REIS

DOAÇÃO DE JOSÉ

JOAQUIM

DE LEMOS

PARA JOÃO CHRISÓSTO

MO DE

OLIVEIRA LIMA

1866

CARLOTA FREGUESIA

UMBURANAS

600

MIL

REIS

DOAÇÃO

DE JOSÉ

JOAQUIM DE LEMOS

TENENTE

JOSÉ

JOAQUIM DE

CARVALHO

1866

CLARA FREGUESIA 40 ANOS

MAIS OU

MENOS

SERVIÇO DA

LAVOURA

400

MIL

REIS

BONIFÁCIO

DIAS

PEREIRA

JULIO

PIRES DE

CERQUEIRA

1866

ESTEVÃO FREGUESIA 10 ANOS

MAIS OU MENOS

SERVIÇO DA

LAVOURA

1866

BERNARDINO FREGUESIA CRIOULINHO 840

MIL

REIS

1867

SUTERO (OU

LUTERO)

FREGUESIA DE SANTO ESTEVÃO

CRIOULINHO 739 MIL

REIS

DOAÇÃO EM CAUSA

DE DOTE

DE JERÔNIMO

SOARES DE

ALMEIDA

PARA SEU GENRO

MANOEL

AMANCIO PEREIRA

1867

THERESA FREGUESIA 4 ANOS

MAIS OU

MENOS

450

MIL

REIS

D. MARIA

DE DEUS

DA CONCEIÇÃ

O

FELIPE

JACINTHO

DE MEDEIROS

1867

CLARA MARIA

FREGUESIA - PRETA 40

SERVIÇO DE

LAVOURA: FUMO, MILHO,

FEIJÃO

400

MIL REIS

BONIFÁCIO

DIAS

JÚLIA

PIRES CERQUEIRA

1869

ESTEVÃO FREGUESIA

- 18 ANOS REFERÊNCIA

AOS “BONS BRAÇOS” PARA

A LAVOURA

300

MIL REIS

MARIA

DANTAS

TENENTE-

CORONEL JOSÉ

MILITÃO

1869

ALEXANDRE FREGUESIA 9 ANOS TRABALHO AGRÍCOLA

500 MIL

REIS

MANOEL JOAQUIM

CARVALO

JOSÉ JOAQUIM

CARVALHO

1869

EUZÉBIO FREGUESIA 2 ANOS 100

MIL

REIS

CAPITÃO

FRANCISCO

MANOEL

MARIA

ANGÉLICA

1869

MARIA FREGUESIA PARDA 30 ANOS LAVOURA DE

FUMO,

MANDIOCA, MILHO E

FEIJÃO

750

MIL

REIS

MANOEL

JUSTINIAN

O DOS SANTOS

MARCELIN

O JOSÉ

SANTA ANA

1869

LOURENÇA FREGUESIA DE SÃO PEDRO DA

MURITIBA –

ESCRAVA CÂNDIDA

5 ANOS 600 MIL

REIS

APRÍGIO DA SILVA

DUTRA

LAURIAN jUSTINO

SANTOS

1869

Page 109: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

109

COMARCA DE F.

DE SANTANA

ALEXANDRE FREGUESIA CRIOULO 9 ANOS MAIS OU

MENOS

SERVIÇO DA LAVOURA

500 MIL

REIS

MANOEL JOAQUIM

DE

CARVALHO

JOSÉ JOAQUIM

DE

CARVALHO

1869

EUZÉBIO FREGUESIA ESCRAVA ANA

CRIOULINHO 2 ANOS MAIS OU

MENOS

100 MIL

REIS

1869

CÂNDIDA FREGUESIA DE SÃO PEDRO DA

MURITIBA –

CIDADE DE CACHOEIA

28 ANOS SERVIÇO DA LAVOURA

NÃO FAZ REF

NÃO FAZ REF

1870

ALVINO FREGUESIA PRETA 15 MAIS

OU

MENOS

SERVIÇO DA

LAVOURA

400

mil reis

JOSÉ

ALVES

BARRETO

(OU

BARREIRO)

ANTONIO

ALVES

BARREIRO

1870

JUSTINO FREGUESIA 35 ANOS SERVIÇO DA

LAVOURA

600

MIL REIS

FRANCISCO

JOSÉ CORREIA

TENENTE

JOSÉ JOAQUIM

DE

CARVALHO

1870

CRIOULO

FELIZ

FREGUESIA 40 ANOS RECEBEU

CARTA DE

LIBERDADE

1870

SANCHA FREGUESIA CRIOULA 27 ANOS SERVIÇO DA LAVOURA

400 MIL

REIS

APRÍGIO DA SILVA

DUTRA

VIGÁRIO SALUSTIAN

O ALVES

SAMPAIO

1870

TEODORA FREGUESIA PARDA 27 ANOS RECEBEU CARTA DE

LIBERDADE

1870

MARCELINA FREGUESIA 35 ANOS BOM TRATO COM O FUMO

680 MIL

REIS

SIMÃO GONÇAL-

VES

Impossivel leitura

1871

FRANCISCO FREGUESIA 25 ANOS

MAIS OU MENOS

SERVIÇO DA

LAVOURA

900

MIL REIS

SIMÃO

GONÇAL-VES DA

SILVA

TENENTE

MANOEL ALVES DE

ASSUMPÇÃ

O

1871

VICÊNCIA FREGUESIA PARDA 30 ANOS MAIS OU

MENOS

SERVIÇO DA LAVOURA

800MIL REIS

CAPITÃO ANTONIO

MENDE DE

LEÃO

TENENTE JOSÉ

ALVES DE

ASSUMPÇÃO

1871

CATARINA FREGUESIA MARIA 9 ANOS 500MI

L REIS

LUIS

COSTA

ALMEIDA E

SUA

MULHER JOSEPHA

MARIA DE

OLIVEIRA

FRANCISCO

DIMETRIS

DA SILVA

CERQUEIRA

1871

MARIA FREGUESIA CRIOULA 45 ANOS MAIS OU

MENOS

SERVIÇO DA LAVOURA

400 MIL

REIS

ANTONIO MOREIRA

DE

OLIVEIRA

TIBÚRCIO PEREIRA

DE ARAÚJ

O

1871

FELÍCIA FREGUESIA CRIOULA

32 AN0S SERVIÇO DA LAVOURA

600 MIL

REIS

MANOEL FELIPE

SANTIAGO

TENENTE JOSÉ

JOAQUIM DE

CARVALHO

1871

CLEMENTE FREGUESIA CRIOULO 7 ANOS 500

MIL REIS

MANOEL

FELIPE SANTIAGO

TENENTE

JOSÉ JOAQUIM

DE

CARVALHO

1871

THOMAZIA FREGUESIA CRIOULA

6 MESES 200 MIL

MANOEL FELIPE

TENENTE JOSÉ

1871

Page 110: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

110

REIS SANTIAGO JOAQUIM

DE CARVALHO

ANDRÉ FREGUESIA

UMBURANAS

PARDO 8 ANOS 500

MIL

REIS

MANOEL

FELIPE

SANTIAGO

TENENTE

JOSÉ

JOAQUIM DE

CARVALHO

1871

CLEMENTINO FREGUESIA CRIOULO 6 ANOS BELARMIN

O LOPES DE MEDEIROS

TENENTE

JOSÉ JOAQUIM

DE

CARVALHO

1871

CEZARIA FREGUESIA DE

SANTO ESTEVÃO

12 ANOS SERVIÇO DA

LAVOURA

750

MIL

REIS

BERNARDI

NO ALVES

BARREIROS

FRANCISCO

FERREIRA

DE SANTA ANNA

1872

THEÓFILO FREGUESIA CRIOULO 10 ANOS 650

MIL

REIS

BELARMIN

O LOPES DE

MEDEIROS

JOSÉ FILHO

DE

MENEZES

1872

RICARDO FREGUESIA 35 ANOS MAIS OU

MENOS E

SOLTEIRO

SERVIÇO DA LAVOURA

600 MIL

REIS

DAVID DIAS

TENENTE MANOEL

ALVES DE

ASUMPÇÃO

1872

CIRILLO FREGUESIA PARDINHO 10 ANOS

MAIS OU

MENOS

SERVIÇO DA

LAVOURA

400

MIL

REIS

MANOEL

FELIPE

SANTIAGO

TENENTE

JOSÉ

JOAQUIM DE

CARVALHO

1873

METADE DO

ESCRAVO

CAETANO

FREGUESIA MARIA CRIOULO 29

SOLTEIRO

SERVIÇO DA

LAVOURA

600

MIL REIS

JORGE

AMBROSIO DA COSTA

THOMÉ DA

COSTA E ALMEIDA

1876

JOÃO FREGUESIA CRIOULO 25 SERVIÇO DA

LAVOURA

1

CONT

O DE REIS

LUIS LOPES

DE

OLIVEIRA

DONA

MARIA

VIRGINIA BARBOSA

1876

MANOEL FREGUESIA PARDO 10 SERVIÇO DA

LAVOURA

480

MIL REIS

DONA

MARIA MATHILDE

S DAS

VIRGENS

THOMAZ

ALVES

1876

MANOEL

NICOLAU

FREGUESIA PRETO 19 SERVIÇO DA LAVOURA

1 CONT

O DE

REIS

JOSE CANDIDO

MACEDO

PEDRO MOREIRA

SAMPAIO

1878

FELIPE

(ESCRAVO

DOADO)

FREGUESIA ROSA 18 SERVIÇO DA LAVOURA

190 MIL

REIS

JOAQUINA MARIA DE

SÃO JOSE

MANOEL GOMES DE

ALMEIDA

1878

MANOEL FREGUESIA PRETO 24 SERVIÇO DA

LAVOURA

1

CONT

O E 90

MIL REIS

CANDIDO

JOSE

BARBOSA

ESTEVÃO

JOSE DOS

SANTOS

1878

MARTINHA

(ACOMPANHA

DA DE SEUS

FILHOS ROSA,

JOÃO E

ANTONIO

FREGUESIA EUZÉBIA 31

SOLTEIRA

SERVIÇO DA

LAVOURA

400

MIL

REIS

DONA

VICTORINA

MARIA DE CARVALHO

EDUARDO

CARDOSO

DE SANTANA

1881

EZEQUIEL,

CIPRIANO

MANOEL,

ANTONIA

TEODORA E

MARTINHA

HENRIQUIETA

FREGUESIA CRIOULO

CABRA

28 15

35

44 16

12 12

SERVIÇO DA LAVOURA

3 CONT

OS

E 500

MIL REIS

AUGUSTO BORGES DE

FREITAS

CAPITÃO FRANCISCO

MANOEL

SANTANA

1882

CLEMÊNCIA FREGUESIA PRETA 14 SERVIÇO DA

LAVOURA

600

MIL REIS

ALEXANDR

E GOMES DE

OLIVEIRA

JOÃO

DAMASCENO DE

OLIVEIRA

1883

JOÃO FREGUESIA PRETO

35

SOLTEIRO

SERVIÇO DA

LAVOURA

600

MIL REIS

ANA

JOAQUINA DE JESUS

FAUSTINO

GOMES DA CONCEIÇÃ

1883

Page 111: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

111

O

MATHIAS FREGUESIA

UMBURANAS

PRETO 28 SERVIÇO DA

LAVOURA

500

MIL REIS

JOÃO

RODRIGUES DO

BONFIM

JOÃO

AUGUSTO FERREIRA

1884

FRANCISCA FREGUESIA PRETA 24 SERVIÇO DA

LAVOURA

350

MIL REIS

PEDRO

GOMES DE SOUZA

MACHADO

ANTONIO

CARDOSO DE SOUZA

1884

GRACILIANA FREGUESIA DE SANTO ESTEVÃO

JOANA PRETA 24 SOLTEIRA

SERVIÇO DA LAVOURA

400 MIL

REIS

AUGUSTO LUQUINHO

GOMES

GREGÓRIO DA COSTA

ALMEIDA

1884

PEDRO FREGUESIA CABRA 16 SERVIÇO DA

LAVOURA

450

MIL REIS

JOÃO DIAS

LOPES

VICENTE

RODRIGUES DE

OLIVEIRA

1884

BENVINDA FREGUESIA CABRA 40

SOLTEIRA

SERVIÇO DA

LAVOURA

250

MIL REIS

JOÃO DIAS

LOPES

AUGUSTO

CESAR DE ALMEIDA

1884

BRIGIDA FREGUESIA CRIOULA 23

SOLTEIRA

SERVIÇO DA

LAVOURA

- JOSE

FERNANDES DE

ARAUJO

JOSEFA

FLORINDA DE

OLIVEIRA

1885

AUGUSTA FREGUESIA PRETA 18 SERVIÇO DA LAVOURA

300 DONA FELIPA

MARIA DE

JESUS

JOÃO HONORATO

DE ARAUJO

1885

HILÁRIO FREGUESIA FELIPA PRETO 20 SERVIÇO DA

LAVOURA

500

MIL

REIS

MANOEL

ANTONIO

COELHO

JOÃO

AUGUSTO

FERREIRA

1885

HIPÓLITO FREGUESIA CRIOULO 13 SERVIÇO DA LAVOURA

650 MIL

REIS

BELOMIRO LOPES DE

MEDEIROS

JOSE TELES DE

MENEZES

1885

LUIZA

(ACOMPANHA

DA DE SEUS

FILHOS,

LUCINDA DE

15, E MANOEL

DE 14 ANOS

FREGUESIA - CABRA 31

SOLTEIRA

SERVIÇO DE

LAVOURA

550

MIL REIS

DONA

VICTORINA MARIA DE

CARVALHO

SALUSTIAN

O DAMASCEN

O PASSOS

1886

ANTONIA FREGUESIA

FAZENDA DO

BOMVIVER

- PRETA 33

SOLTEIRA

SERVIÇO DA

LAVOURA

300

MIL

REIS

DONA

VICTORINA

MARIA DE

CARVALHO

ZEFERINO

DA SILVA

BARBOSA

1886

MARIA FREGUESIA JOAQUIM PINHEIRO E

LUCIMAR

PRETA 19 SOLTEIRA

SERVIÇO DA LAVOURA

350 MIL

REIS

MANOEL FERNANDE

S DA SILVA

VICENTE RODRIGUES

DE

OLIVEIRA

1886

JOANA

VITORIA

FREGUESIA DO FAZENDA DO

BOMVIVER

PRETA PRETA

38 21

SOLTEIRA

S

SERVIÇO DA LAVOURA

650 MIL

REIS

DONA VICTORINA

MARIA DE

CARVALHO

JOÃO GOMES

MACHADO

1886

IZABEL

E SUA FILHA

RAIMUNDA

FREGUESIA PRETA

PRETA

35

18

SOLTEIRAS

SERVIÇO DA

LAVOURA

400

200

MIL REIS

ANTONIO

RODRIGUE

S VIEIRA FALCÃO

VICENTE

RODRIGUES

DE OLIVEIRA

1886

GONÇALO FREGUESIA PRETO 44 SERVIÇO DA

LAVOURA

200

MIL

REIS

FELIX DA

SILVA

BARBOSA

JOÃO

GOMES

MACHADO

1886

JOÃO FREGUESIA PRETO 20 SERVIÇO DA LAVOURA

500 MIL

REIS

ROMÃO GOMES DE

OLIVEIRA

CARLOS LUQUINHO

GOMES

1886

Page 112: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

112

Apêndice II – Entrevista

Pontos da Entrevista: 270

1- Você tem conhecimento de quando a comunidade da Fazenda Gavião se fixou

nesta localidade? Teria sido no período escravista?

2- Qual a origem da população de escravos refugiados que deu origem a

Comunidade da Fazenda Gavião?

3- De onde os escravos refugiados para a Fazenda Gavião procederam?

4- Quais os fatores que levaram esta comunidade a se fixarem na Fazenda Gavião?

5- Porque os escravos fugitivos foram levados a se fixarem na Fazenda?

6- Tem-se alguma estimativa acerta de quantos escravos buscaram abrigo no

período escravista na Fazenda Gavião?

7- Como se davam as relações sociais e econômicas nesta Fazenda?

270

Entrevista feita com o Sr. Binô (Pedro) descendente de Zé Pedro e morador da Fazenda Gavião, no dia

08 de janeiro de 2010, com o intuito de conhecer um pouco da memória da comunidade sobre o seu

passado escravista.

Page 113: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

113

Anexo I: Certificação de autodefinição da Fazenda Gavião

como remanescente quilombola

Page 114: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

114

Anexo II: Lei de Terras n. 601 de 18 de setembro de 1850 (que

dispõe sobre as terras devolutas e as adquiridas por posse ou sesmaria)

Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por titulo

de sesmaria sem preenchimento das condições legais. bem como por simples titulo de

posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas

cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento

de colonias de nacionaes e de extrangeiros, autorizado o Governo a promover a

colonisação extrangeira na forma que se declara D. Pedro II, por Graça de Deus e

Unanime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do

Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos Subditos, que a Assembléa Geral Decretou, e

Nós queremos a Lei seguinte:

Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja

o de compra.

Exceptuam-se as terras situadas nos limites do Imperio com paizes estrangeiros em uma

zona de 10 leguas, as quaes poderão ser concedidas gratuitamente.

Art. 2º Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nellas derribarem

mattos ou lhes puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de bemfeitorias, e

de mais soffrerão a pena de dous a seis mezes do prisão e multa de 100$, além da

satisfação do damno causado. Esta pena, porém, não terá logar nos actos possessorios

entre heréos confinantes.

Paragrapho unico. Os Juizes de Direito nas correições que fizerem na forma das leis e

regulamentos, investigarão se as autoridades a quem compete o conhecimento destes

delictos põem todo o cuidado em processal-os o punil-os, e farão effectiva a sua

responsabilidade, impondo no caso de simples negligencia a multa de 50$ a 200$000.

Art. 3º São terras devolutas:

§ 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou

municipal.

§ 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem

forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não

incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição,

confirmação e cultura.

§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que,

apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei.

§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em

titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.

Art. 4º Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou

Provincial, que se acharem cultivadas, ou com principios de cultura, e morada habitual

Page 115: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

115

do respectivo sesmeiro ou concessionario, ou do quem os represente, embora não tenha

sido cumprida qualquer das outras condições, com que foram concedidas.

Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação

primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com

principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o

represente, guardadas as regras seguintes:

§ 1º Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, comprehenderá, além

do terreno aproveitado ou do necessario para pastagem dos animaes que tiver o

posseiro, outrotanto mais de terreno devoluto que houver contiguo, comtanto que em

nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou

criação, igual ás ultimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha.

§ 2º As posses em circumstancias de serem legitimadas, que se acharem em sesmarias

ou outras concessões do Governo, não incursas em commisso ou revalidadas por esta

Lei, só darão direito á indemnização pelas bemfeitorias.

Exceptua-se desta regra o caso do verificar-se a favor da posse qualquer das seguintes

hypotheses: 1ª, o ter sido declarada boa por sentença passada em julgado entre os

sesmeiros ou concessionarios e os posseiros; 2ª, ter sido estabelecida antes da medição

da sesmaria ou concessão, e não perturbada por cinco annos; 3ª, ter sido estabelecida

depois da dita medição, e não perturbada por 10 annos.

§ 3º Dada a excepção do paragrapho antecedente, os posseiros gozarão do favor que

lhes assegura o § 1°, competindo ao respectivo sesmeiro ou concessionario ficar com o

terreno que sobrar da divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se tambem

posseiro para entrar em rateio igual com elles.

§ 4º Os campos de uso commum dos moradores de uma ou mais freguezias, municipios

ou comarcas serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e continuarão a

prestar o mesmo uso, conforme a pratica actual, emquanto por Lei não se dispuzer o

contrario.

Art. 6º Não se haverá por principio do cultura para a revalidação das sesmarias ou

outras concessões do Governo, nem para a legitimação de qualquer posse, os simples

roçados, derribadas ou queimas de mattos ou campos, levantamentos de ranchos e

outros actos de semelhante natureza, não sendo acompanhados da cultura effectiva e

morada habitual exigidas no artigo antecedente.

Art. 7º O Governo marcará os prazos dentro dos quaes deverão ser medidas as terras

adquiridas por posses ou por sesmarias, ou outras concessões, que estejam por medir,

assim como designará e instruirá as pessoas que devam fazer a medição, attendendo ás

circumstancias de cada Provincia, comarca e municipio, o podendo prorogar os prazos

marcados, quando o julgar conveniente, por medida geral que comprehenda todos os

possuidores da mesma Provincia, comarca e municipio, onde a prorogação convier.

Art. 8º Os possuidores que deixarem de proceder á medição nos prazos marcados pelo

Governo serão reputados cahidos em commisso, e perderão por isso o direito que

tenham a serem preenchidos das terras concedidas por seus titulos, ou por favor da

Page 116: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

116

presente Lei, conservando-o sómente para serem mantidos na posse do terreno que

occuparem com effectiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar inculto.

Art. 9º Não obstante os prazos que forem marcados, o Governo mandará proceder á

medição das terras devolutas, respeitando-se no acto da medição os limites das

concessões e posses que acharem nas circumstancias dos arts. 4º e 5º.

Qualquer opposição que haja da parte dos possuidores não impedirá a medição; mas,

ultimada esta, se continuará vista aos oppoentes para deduzirem seus embargos em

termo breve.

As questões judiciarias entre os mesmos possuidores não impedirão tão pouco as

diligencias tendentes á execução da presente Lei.

Art. 10. O Governo proverá o modo pratico de extremar o dominio publico do

particular, segundo as regras acima estabelecidas, incumbindo a sua execução ás

autoridades que julgar mais convenientes, ou a commissarios especiaes, os quaes

procederão administrativamente, fazendo decidir por arbitros as questões e duvidas de

facto, e dando de suas proprias decisões recurso para o Presidente da Provincia, do qual

o haverá tambem para o Governo.

Art. 11. Os posseiros serão obrigados a tirar titulos dos terrenos que lhes ficarem

pertencendo por effeito desta Lei, e sem elles não poderão hypothecar os mesmos

terrenos, nem alienal-os por qualquer modo.

Esses titulos serão passados pelas Repartições provinciaes que o Governo designar,

pagando-se 5$ de direitos de Chancellaria pelo terreno que não exceder de um quadrado

de 500 braças por lado, e outrotanto por cada igual quadrado que de mais contiver a

posse; e além disso 4$ de feitio, sem mais emolumentos ou sello.

Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessarias: 1º, para a

colonisação dos indigenas; 2º, para a fundação de povoações, abertura de estradas, e

quaesquer outras servidões, e assento de estabelecimentos publicos: 3º, para a

construção naval.

Art. 13. O mesmo Governo fará organizar por freguezias o registro das terras possuidas,

sobre as declaracões feitas pelos respectivos possuidores, impondo multas e penas

áquelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declarações, ou as fizerem

inexactas.

Art. 14. Fica o Governo autorizado a vender as terras devolutas em hasta publica, ou

fóra della, como e quando julgar mais conveniente, fazendo previamente medir, dividir,

demarcar e descrever a porção das mesmas terras que houver de ser exposta á venda,

guardadas as regras seguintes:

§ 1º A medição e divisão serão feitas, quando o permittirem as circumstancias locaes,

por linhas que corram de norte ao sul, conforme o verdadeiro meridiano, e por outras

que as cortem em angulos rectos, de maneira que formem lotes ou quadrados de 500

braças por lado demarcados convenientemente.

Page 117: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

117

§ 2º Assim esses lotes, como as sobras de terras, em que se não puder verificar a divisão

acima indicada, serão vendidos separadamente sobre o preço minimo, fixado

antecipadamente e pago á vista, de meio real, um real, real e meio, e dous réis, por braça

quadrada, segundo for a qualidade e situação dos mesmos lotes e sobras.

§ 3º A venda fóra da hasta publica será feita pelo preço que se ajustar, nunca abaixo do

minimo fixado, segundo a qualidade e situação dos respectivos lotes e sobras, ante o

Tribunal do Thesouro Publico, com assistencia do Chefe da Repartição Geral das

Terras, na Provincia do Rio de Janeiro, e ante as Thesourarias, com assistencia de um

delegado do dito Chefe, e com approvação do respectivo Presidente, nas outras

Provincias do Imperio.

Art. 15. Os possuidores de terra de cultura e criação, qualquer que seja o titulo de sua

acquisição, terão preferencia na compra das terras devolutas que lhes forem contiguas,

comtanto que mostrem pelo estado da sua lavoura ou criação, que tem os meios

necessarios para aproveital-as.

Art. 16. As terras devolutas que se venderem ficarão sempre sujeitas aos onus seguintes:

§ 1º Ceder o terreno preciso para estradas publicas de uma povoação a outra, ou algum

porto de embarque, salvo o direito de indemnização das bemfeitorias e do terreno

occupado.

§ 2º Dar servidão gratuita aos vizinhos quando lhes for indispensavel para sahirem á

uma estrada publica, povoação ou porto de embarque, e com indemnização quando lhes

for proveitosa por incurtamento de um quarto ou mais de caminho.

§ 3º Consentir a tirada de aguas desaproveitadas e a passagem dellas, precedendo a

indemnização das bemfeitorias e terreno occupado.

§ 4º Sujeitar ás disposições das Leis respectivas quaesquer minas que se descobrirem

nas mesmas terras.

Art. 17. Os estrangeiros que comprarem terras, e nellas se estabelecerem, ou vierem á

sua custa exercer qualquer industria no paiz, serão naturalisados querendo, depois de

dous annos de residencia pela fórma por que o foram os da colonia de S, Leopoldo, e

ficarão isentos do serviço militar, menos do da Guarda Nacional dentro do municipio.

Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir annualmente á custa do Thesouro certo

numero de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em

estabelecimentos agricolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração publica, ou

na formação de colonias nos logares em que estas mais convierem; tomando

anticipadamente as medidas necessarias para que taes colonos achem emprego logo que

desembarcarem.

Aos colonos assim importados são applicaveis as disposições do artigo antecedente.

Art. 19. O producto dos direitos de Chancellaria e da venda das terras, de que tratam os

arts. 11 e 14 será exclusivamente applicado: 1°, á ulterior medição das terras devolutas e

2°, a importação de colonos livres, conforme o artigo precedente.

Page 118: Escravidão e liberdade no sertão das Umburanas

118

Art. 20. Emquanto o referido producto não for sufficiente para as despezas a que é

destinado, o Governo exigirá annualmento os creditos necessarios para as mesmas

despezas, ás quaes applicará desde já as sobras que existirem dos creditos anteriormente

dados a favor da colonisação, e mais a somma de 200$000.

Art. 21. Fica o Governo autorizado a estabelecer, com o necessario Regulamento, uma

Repartição especial que se denominará - Repartição Geral das Terras Publicas - e será

encarregada de dirigir a medição, divisão, e descripção das terras devolutas, e sua

conservação, de fiscalisar a venda e distribuição dellas, e de promover a colonisação

nacional e estrangeira.

Art. 22. O Governo fica autorizado igualmente a impor nos Regulamentos que fizer para

a execução da presente Lei, penas de prisão até tres mezes, e de multa até 200$000.

Art. 23. Ficam derogadas todas as disposições em contrario.

Mandamos, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento, e execução da

referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir, e guardar tão inteiramente,

como nella se contém. O Secretario de Estado dos Negocios do Imperio a faça imprimir,

publicar e correr.

Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos 18 dias do mez do Setembro de 1850, 29º da

Independencia e do Imperio.

IMPERADOR com a rubrica e guarda.

Visconde de Mont'alegre.

Carta de lei, pela qual Vossa Magestade Imperial Manda executar o Decreto da

Assembléa Geral, que Houve por bem Sanccionar, sobre terras devolutas, sesmarias,

posses e colonisação.

Para Vossa Magestade Imperial Ver.

João Gonçalves de Araujo a fez.

Euzebio de Queiroz Coitiuho Mattoso Camara.

Sellada na Chancellaria do Imperio em 20 de Setembro de 1850. - Josino do

Nascimento Silva.

Publicada na Secretaria de Estado dos Negocios do Imperio em 20 de setembro de 1850.

- José de Paiva Magalhães Calvet.

Registrada á fl. 57 do livro 1º do Actos Legislativos. Secretaria d'Estado dos Negocios

do Imperio em 2 de outubro de 1850. - Bernardo José de Castro

Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm