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MEMÓRIAS DA ESCRAVIDÃO NO SERTÃO: ETNOGRAFIA E ARQUIVOS DE ACARI - RN1
Jardelly Lhuana da Costa Santos – UFRN/RN2
Julie Antoinette Cavignac – UFRN/RN3
No Rio Grande do Norte, os estudos sobre a escravidão foram produzidos inicialmente por uma elite “branca” que tentou apagar a presença de africanos, crioulos e seus descendentes no sertão. Porém, sabe-se que a partir do século XVIII, a colonização da Ribeira do Seridó se intensificou num espaço livre de populações indígenas, e com os donos das sesmarias, foram trazidos escravos de Pernambuco e da Paraíba para auxiliarem os senhores das fazendas na criação de gado. Com a Lei Áurea, muitas famílias não tiveram outra opção senão ficar no local e, no decorrer da história, sofreram um processo de invisibilização e estigmatização. Esse trabalho tem como objetivo realizar o mapeamento da genealogia da família Belém, grupo doméstico afrodescendente que tem sua origem numa fazenda de criar, do mesmo nome, e que tem em seus registros o maior número de escravos, nos meados do século XVIII, a partir das memórias alimentares dos descendentes desse grupo que rememoram essas práticas cotidianas como forma de resistência de uma “história silenciada”.
Palavras-chaves: Memória, Escravidão, Saberes.
MISE EN PLACE
No Rio Grande do Norte, os estudos sobre a escravidão foram produzidos
inicialmente por uma elite “branca” que tentou apagar a presença de africanos, crioulos
e seus descendentes no sertão. Porém, sabe-se que a partir do século XVIII, a
colonização da Ribeira do Seridó se intensificou num espaço livre de populações 1 Trabalho apresentado na 30a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. 2 Graduada em História Licenciatura Plena – UFRN; Mestranda em Antropologia Social – UFRN. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. 3 Bolsista de Produtividade PQ-2/CNPq. Professora associada do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e atualmente vice- coordenadora do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, PPGAS – UFRN. Tem doutorado em Antropologia defendido na Universidade de Nanterre (Paris X, França, 1994). Membro do Conselho Científico da Associação Brasileira de Antropologia/ABA, diretora da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) entre 2012 e 2014. Tem experiência na área de Antropologia, atuando principalmente nos seguintes temas: teoria antropológica, antropologia das populações afro-brasileiras, etno-história, patrimônio, memória e identidade. E-mail: [email protected].
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indígenas, e com os donos das sesmarias, foram trazidos escravos de Pernambuco e da
Paraíba para auxiliarem os senhores das fazendas na criação de gado. Com a Lei Áurea,
muitas famílias não tiveram outra opção senão ficar no local e, no decorrer da história,
sofreram um processo de invisibilização e estigmatização.
Busca-se, através da perspectiva histórica questionar os dados etnográficos, e a
partir desses dados preencher as lacunas deixadas pelos documentos históricos
(Wachtel, 1990). A pesquisa, que encontra-se em andamento, já traz alguns resultados:
apesar dos poucos registros de uma memória genealógica, verificamos a existência de
práticas cotidianas e de ofícios que remetem a um passado colonial. Encontramos
vaqueiros, tropeiros e cozinheiras que testemunham, pelos seus saberes e práticas
cotidianas, a resistência de uma “história silenciada”.
Entendemos que a memória alimentar medra-se como um meio de resistência
desses descendentes de famílias negras no Sertão, uma vez ao se pedir para
rememorarem um passado marcado pela escravidão estes, em face dessa lembrança
traumatizante, preferem silenciar. Assim, para podermos entender esse silêncio
buscamos perceber nas memórias alimentares essa articulação entre o dizível e o
inconfessável. E dentro dessa conjuntura entre presente e passado vemos que essas
práticas cotidianas são aspectos que falam de um presente como forma de reformularem
as lembranças do passado, como maneira de mostrar que entre o vivido e o transmitido
medra-se memórias que vão além da fronteira da escravidão.
Preparada a mise en place, iniciamos a coleta dos “primeiros pertences” onde
apontando os elementos históricos do povoamento do Seridó com a presença negra, no
primeiro preparo da “massa” tomamos por base o que definimos como “sabor da
memória”, no qual apresentamos e discutimos os conceitos de “saber inculcado”
assenhorado aquele proposto por Ellen Woortmann, além do conceito de habitus
defendido por Nobert Elias e Bordieu. Por fim untamos a fôrma utilizando as narrativas
de uma das nossas interlocutoras para repensarmos os modos de entrada em campo, as
práticas alimentares e o papel da mulher que cozinha nesse contexto.
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1. Primeiros “pertences”
Sabe-se que a partir do século XVIII estabeleceram-se escravos, na Ribeira do
Seridó, trazidos de Pernambuco e da Paraíba para auxiliarem os senhores das fazendas
na criação de gado, no século XIX o número de escravos cresceu e estes passaram a
trabalhar também na colheita do algodão. O interior da Metrópole acabava por ser
repovoado por vaqueiros, escravos e algumas famílias que misturaram sua cultura
ibérica aos costumes ameríndios e africanos. (MACEDO, 2007)
O início do povoamento não exigia uma grande quantidade de capital por parte
do criador, bastava encontrar terras propícias para ter uma semente de gado, designá-la
como fazenda e depois fazer a requisição daquele pedaço de chão através da petição de
sesmarias. As primeiras datas de terras eram doadas como recompensa para “militares”
que haviam expulsado os gentios bárbaros; contudo muitos criadores conseguiram, ao
ter acesso a terras devolutas uma ascensão social. Assim, grandes e pequenos
proprietários povoaram as glebas das Ribeiras do Seridó.
Em 1670, são solicitadas as primeiras sesmarias da Ribeira do Seridó e os
novos senhores das terras delimitaram as propriedades, começaram o trabalho com o
gado e pastoreavam juntos vaqueiros livres e escravos.
“É sabido que as relações no sertão, entre escravo e senhor, tiveram suas particularidades, já que nesta região, o escravo assumia as funções de vaqueiro, na lida com o gado e cuidava de alguns roçados, entretanto, a condição servil não pode ser minimizada” (MACEDO, 2007, p. 27).
Esses africanos que foram trazidos à força e se estabelecem no sertão e/ou no
litoral na plantação de cana, são os que originaram as comunidades negras que
encontramos no Seridó hoje. (CAVIGNAC, 2003)
Estudos realizados por Muirakytan Macêdo (2007) e Helder Macêdo (2013),
com base em documentação histórica, tem demonstrado que, no Seridó, teve uma
permanência das famílias negras associadas às fazendas (até hoje). A fixação das
famílias escravizadas possibilitou a reprodução destas, fossem escravos nas fazendas de
gado ou nas vilas e cidades, fossem livres ou libertos. Escolhemos como recorte
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espacial a Fazenda Belém4 por termos conhecimento de um inventário do século XVIII
do antigo proprietário, Sargento Mor Felipe de Moura e Albuquerque, onde consta 24
escravos além de ser a única Fazenda da qual se tem registro de uma senzala em suas
glebas. Temos também registros de negros livres possuidores de terras, como é o caso
de Feliciano Pereira da Rocha e Maria da Puridade Barreto Júnior, filha do Sargento-
Mor Felipe de Moura e Albuquerque, que aparece na sua Certidão de óbito como
“parda”.
Em sua pesquisa exploratória, Danycelle percebeu a existência de ligações
entre as famílias negras de Acari e uma presença histórica dessas famílias desde o
século XVIII. Tanto a pesquisa de Danycelle quanto a nossa trouxeram à luz uma
quantidade significativa de famílias negras no município de Acari e a recorrência de
relatos orais referentes a famílias de afrodescendentes, como os Nunes, os Pereira, os
Inácio, os Pedro, os Paula, os Higino, os Félix, os Belém e os Luta5 que para os
moradores da cidade são tidos como uma família só. Verificamos como é difícil
assumir e/ou rememorar um passado doloroso, como o da escravidão.
Assim, deparamo-nos com memórias frágeis, que “enterraram” certos fatos do
seu passado, fazendo-os emergirem, apenas, nas situações em que essa rememoração
não causa desconforto psicológico ou social, como por exemplo, o esforço de memória
na evocação de práticas alimentares cotidianas de cozinheiras que testemunham pelos
saberes, a resistência de uma “história silenciada”. Como é o caso de Tereza, Brígida e
Veneranda, adjetivadas nas memórias de seus descendentes como “as três beatas” da
família Belém. Essas irmãs cozinhavam diversos produtos alimentícios para serem
vendidos nos sítios próximos e, todo sábado, em uma “barraca” de café na Feira Pública
do município de Acari/RN durante meados do século XX. Essas mulheres tinham um
saber especializado em relação à alimentação, eram biscoiteiras, boleiras, doceiras e
padeiras.
4 “[...] mais um sítio denominado Belém, neste município, composto de várias partes de terras anexas, sendo 1.135 (hum mil cento e trinta e cinco) braças de frente, a começarem do meio do leito do Rio Acauhã para o Norte com os fundos que houverem, limitando-se ao Sul com terras da mesma denominação pertencente ao Monte” [grifos nossos] (autos do Inventário dos bens deixados por Tomaz Rosendo de Araújo, arquivado sob o número de ordem 1096, Maço 23, no Fórum de Comarca de Acari, processado no ano de 1963). 5 Sobre essas famílias ver SILVA, 2014.
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O Sabor da Memória
“nós comemos o que nossa mãe nos ensinou a comer”
(CERTEAU, 1996, p. 249)
Comer é uma das necessidades básicas para a sobrevivência do ser humano,
desde a sua concepção. Assim, o ato de preparar o alimento a ser ingerido também
configura-se como uma atividade básica e inerente a todas as sociedades. Nas lides das
Fazendas de Gado no Seridó, a arte de fazer “comida” está sempre associada a imagem
da “mãe preta” que “dirige” o fogão à lenha para satisfazer as necessidades dos seus
patrões e dos filhos destes.
Sabores e cheiros acompanham os relatos de infância dos descendentes dos
fazendeiros, antigos donos das terras de criar gado. É recorrente ao revisitar suas
memórias “criançeiras”, reproduzirem um discurso inculcado no qual a presença de uma
senhora negra que cuidava com maestria da cozinha e dos produtos alimentícios. Tal
lembrança também é revisitada pelos descendentes dessas mulheres quando esses
rememoram, orgulhosos, os nomes de avós, tias e mães que eram conhecidas pelas suas
habilidades culinárias. É o que podemos verificar na fala de Dona Zélia Tum (SILVA,
2014, p.123):
Cozinhar, é como diz o ditado, a gente ia com mamãe pra todo canto que ela ia, eu era muito menina, tinha 13 pra 14 anos, aí mamãe fazia aqueles doce de tacho, pronto, na época de imbu, nós ajudávamos ela, a gente ia limpando os imbus e colocando naqueles caldeirões grandes, aí eles iam cozinhando, e de lá minhas irmãs já iam escorrendo e coando na peneira, quando terminavam passavam para um tacho onde minha mãe já estava mexendo o mel da rapadura, foi assim que nós aprendemos (...). [grifos nossos]
Nesse trecho da fala de Dona Zélia podemos perceber a existência de um
“saber inculcado” (WOORTMANN, 2013), no qual padrões e hábitos são repetidos e
por isso apreendidos e fáceis de serem rememorados e repetidos. Nesse sentido estamos
diante do que Nobert Elias e Bordieu entendem por habitus
habitus é forjado num saber social incorporado, numa rela- ção unidirecional, isto é, o saber é configurado pela sociedade, família, escola, grupos sociais, introjetado,
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inculcado no indivíduo, nele sedimentado e posteriormente reproduzido. (ELIAS apud WOORTMANN, 2013, p. 7)
É esse habitus alimentar que vai trazer para as cozinhas do Seridó a
codificação de sociabilidades e de construção de identidades que não passam
despercebidas para o pesquisador e os descendentes dessas cozinheiras pretas. Além
disso, os saberes e as práticas culinárias desencadeiam memórias contam histórias de
identidades silenciadas e ofuscadas pela historiografia oficial. Definimos como “o sabor
da memória” essas recordações ligadas a experiências vividas por pessoas como Dona
Zélia e tantas outras cozinheiras autodidatas que aprenderam ao ver-fazer no cotidiano.
Suas práticas familiares resistem as mudanças e se concretizam em saberes e sabores de
um passado memorável e afetivo.
“A voz da comida”6
Durante nossa pesquisa
etnográfica no município de
Acari/RN, deparamo-nos com
memórias frágeis de descendentes
da família Belém. Quando
questionados sobre suas
memórias genealógicas, muitas
lacunas aparecem nos relatos dos
nossos interlocutores. Assim,
optou-se por utilizar-se como
disparador das suas memórias, os
relatos gastronômicos, uma vez
que era recorrente na fala dos
entrevistados a presença de “tias”
que cozinhavam e saíam para
vender seus produtos nos sítios circunvizinhos. Foi assim que chegamos nas figuras das
“três beatas” (ver figura 01).
6 Conceito desenvolvido por Hauck-Lawson, no original em inglês Food Voice (1992).
Fig. 01 - “As três beatas”- Da esquerda para direita temos: Tereza, Veneranda e Brígida. Acervo: Museu Histórico de Acari/RN
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Segundo Dona Salete7, Veneranda, Tereza e Brígida ficaram conhecidas como
“as três beatas” devido sua devoção e participação em todas as Irmandades pertencentes
a Paróquia de Nossa Senhora Da Guia durante o séc. XX. Inclusive, duas delas
(Veneranda e Tereza) permaneceram no celibato até a morte. Brígida é a única das três
que adquiri matrimônio e dessa união nascem 12 filhos. Contudo, anos após o
casamento, está se separa e vai morar em um Convento na cidade de Parnamirim/RN.
A devoção, é evocada sistematicamente ao falar da comida. Essas três
mulheres desenvolveram e repassaram saberes culinários e artes de fazer para as novas
gerações, em particular sobrinhas, que ao auxiliarem na preparação dos produtos e na
venda destes. Essas memorizaram receitas e reproduziram os habitus da culinária
familiar. Dentre tudo que era produzido na cozinha da casa do avô pelas tias, foi
guardado na memória as receitas dos bolos, biscoitos, cocada, doces e do “misterioso”
sequilho. Como nos relata Dona Salete
Ela (Veneranda) fazia sequilho, fazia (pausa – lembrando) solda de leite, aquelas bolacha de leite que a gente chama solda, né?! Fazia bolo preto, fazia bolo grude (pausa – lembrando), fazia cocada, ela fazia tudo. E eu era quem assava. Eu era a da boca do forno. (risos). Era a forneira (...) num deixou nada por escrito, tanto ela (Veneranda) como Tereza também, que a gente chamava Teté, era a mais velha. Tudim elas fazia, fazia bolo, fazia cocada. 8 [grifos nossos]
Dona Salete, permaneceu ajudando as tias nas lides culinárias por quase toda
sua adolescência. O esforço para a preparação dos biscoitos, bolos e doces a serem
vendidos exigiu desde muito cedo a ajuda de sobrinhas como Dona Salete, o que fez
com que esse saber fosse sendo perpetuado para as novas gerações. Essas comidas tem
o sabor de “histórias contadas” no cotidiano.
Outro fator que nos chamou atenção na ocasião em que Dona Salete
rememorava essas histórias, foi o fato de que, como mencionamos no início, as comidas
eram feitas, sobretudo, para serem vendidas nos sítios que faziam fronteira com “O
7 Maria da Salete Pereira da Silva, casada, aposentada, nasceu no dia 26 de maio de 1949, no município de Acari, sendo filha de Ricardo Pereira da Silva e Maria Antônia. As três Beatas são tias paternas de Dona Salete e esta por sua vez acompanhou de perto a feitoria e a venda dos produtos das tias durante sua infância e parte da adolescência. 8 Entrevista concedida por Maria da Salete Pereira da Silva, nascida em 26 de maio de 1949 (Acari, 25 de setembro de 2015)
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Monte” e na barraca de café na feira pública realizada aos domingos. Assim nos conta
Dona Salete:
A gente vendia nos sítio e no dia de feira. Ela botava o café na feira livre. [...] Tanto vendia na feira como nos sítios. No Sítio Bico da Arara, ia até o Braz, perto de Carnaúba dos Dantas e aqui na Beira do Rio ia até lá, o Sítio Flores. Uma semana a gente ia pra o Bico, outra semana era para a Beira do Rio. [...] Ela andava com um jumentinho. Com as caçamba, né?! Tudo ela levava dentro e sempre um cesto na cabeça. Porque o sequilho ela levava num depósito, mas dentro do cesto, na cabeça. Que eles são muito frágil, né?! Ela não fazia daquele miudinho que chamam “raiva”, que “raiva” hoje é diferente, mas a “raiva” que a gente chamava antigamente era sequilho miudinho. Aí ela fazia os sequilhos grandes e colocava tudo dentro do cesto que era pra não quebrar. [...] E também quando vinha, ela trocava. Ai ela vendia pão também. Comprava pão nas padarias pra levar e vender, né?! Ai quando ela recebia, trocava as comidas que ela levava, pão, tudo, essas coisas, em objeto.9
O que destoa dos padrões da sociedade da época, ver mulheres e moças
negociarem mercadorias, ultrapassarem as fronteiras da casa e da fazenda, função
desempenhada de maneira majoritária por homens, uma vez que eram estes delegados a
buscarem fora de casa e/ou da fazenda os “pertences” a serem consumidos pelos
moradores desses sítios e fazendas.
Outro fato que chama nossa atenção é as Fazendas de gado, situadas no Sertão
do Seridó, eram propriedades auto suficientes, porém não isoladas e nem fechadas para
o fluxo de bens e de pessoas. Quando Dona Salete diz [...]tanto vendia na feira como
nos sítios. No Sítio Bico da Arara ia até o Braz, perto de Carnaúba dos Dantas e aqui
na Beira do Rio ia até lá, o Sítio Flores. Isso mostra que havia um interconexão entre as
localidades, as fronteiras entre essas eram tão móveis quanto as cercas que as dividiam,
assim como as memórias foram guardadas por Dona Salete.
É esse caráter dinâmico das memórias alimentares que dão um sabor especial à
evocação do passado das famílias negras dirigidas por mulheres. Nessas falas aparecem
resistências, significados, emoções e identidades. 9 Entrevista concedida por Maria da Salete Pereira da Silva, nascida em 26 de maio de 1949 (Acari, 25 de setembro de 2015) .
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Para não concluir
Iniciamos apresentando os primeiros “pertences” da receita que por ora
conceituamos como memória alimentar. Tais ingredientes informam sobre a chegada
dos grandes fazendeiros nas Ribeiras do interior do Rio Grande, por meio de petições de
Sesmarias para ocuparem as chamadas “terras devolutas”. Esses fazendeiros vinham
sempre acompanhados de seus escravos que mesmo a contragosto eram obrigados a
derramarem seu suor nas lides da Fazenda.
As memórias alimentares, nos levam para conhecer tradições e práticas que por
muito tempo permaneceram obscurecidas. Dessa forma nas técnicas alimentares
percebemos uma continuidade que informa sobre a presença das mulheres negras nas
cozinhas das Fazendas de Gado do Seridó. O trabalho cotidiano nessas cozinhas era
uma maneira de unir matéria e memória, instante presente e passado que já se foi,
invenção e necessidade, imaginação e tradição – gostos cheiros, sabores, formas,
consistências, atos, gestos, coisas e pessoas, especiarias e condimentos. (CERTEAU,
1996). São artes de fazer, concebidas em artes de viver transpassadas pela arte de
resistir.
Por fim, as comidas cotidianas informam sobre aspectos econômicos e sociais
complexos. As narrativas que rememoram nossos interlocutores, nos levaram a repensar
questões metodológicas, no caso específico de nossa pesquisa, em que o tema da
escravidão ainda possui marcas abertas de um passado difícil de se rememorar. Assim,
utilizar como ponto de partida as práticas alimentares tem contribuído de maneira
positiva para nos levar à intimidade das famílias (nossas conversas saíram da sala e
adentraram a cozinha) além de repensarmos conceitos como identidade, etnicidade e
resistência das famílias negras que compõem o cenário seridoense.
Queremos finalizar chamando atenção para a importância desta pesquisa não só
para a Academia, mas sobretudo, para a família pesquisada. O fato de contemplarmos
em uma mesma pesquisa, aspectos antropológicos e históricos vem reescrever neste
sentido, uma nova história, vinda daqueles que viram os acontecimentos "de baixo". É a
partir das descontinuidades, encontradas nos meandros da memória dos indivíduos, que
se consegue recontar momentos históricos com vozes de resistência.
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[...] a resposta está numa antropologia histórica dedicada a explorar os processos que constituem e transformam os mundos particulares – processos que dão forma, reciprocamente, aos sujeitos e aos contextos, que permitem que certas coisas sejam ditas e feitas. (COMAROFF&COMAROFF, 2010, pág. 38)
A proposta de repensar a memória das famílias negras no município de Acari,
gera neste sentido a expectativa de seguir as indicações proposta pelos Comaroff &
Comaroff (2010) e perceber o contexto não somente através de entrevistas, fotos,
observação, mas da busca por recompor um universo que está nas entrelinhas dos
documentos oficiais e não-oficiais. Cartas, crônicas, livros de registro, entre outros,
podem ofertar fragmentos da história destas famílias, vistas como indivíduos
subalternos.
Busca-se, assim, através da perspectiva etnográfica confrontar e analizar os
dados históricos. Esse tipo de metodologia que versa na aproximação da história e da
Antropologia (Etnohistória), teve como precursor, Nathan Wachtel, que ao longo dos
anos produziu uma consistente bibliografia referencial para os estudos sobre memória e
identidade das populações indígenas da América do Sul, partindo sempre dos dados
etnográficos para os dados históricos. Estamos convictos de que o trabalho de
estudiosos, sejam eles das áreas Humanas e/ou Sociais, deve ser desenvolvido dentro e
fora das limitações encontradas nos registros “oficiais”, como corrobora Cavignac
(2003):
Para visualizar o lugar reservado aos descendentes de escravos na história e na representação do passado do Rio Grande do Norte, parece necessário cruzar as referências da história oficial com os discursos orais. [...] Um trabalho aprofundado e sistemático sobre os documentos que teriam escapado à destruição oficial precisa ser feito no sentido de esclarecer a presença de populações de origem africana no estado.” (CAVIGNAC, 2003, p. 228-229).
Assim, pretende-se fazer uma análise/revisão etnográfica dos arquivos,
partindo do pressuposto de que esses arquivos não são regimes de verdades, que há um
espaço discursivo no âmago destes. “É preciso conceber os conhecimentos que
compõem os arquivos como um sistema de enunciados, verdades parciais,
interpretações históricas e culturalmente constituídas”(CUNHA, 2004, p. 292)
11
Pensar que há uma prática de diferenciação dentro dos próprios arquivos e que
estes precisam enfim estarem sendo questionados (Cunha, 2004), é ponto basilar no
desenvolvimento da pesquisa aqui proposta. É necessário desconfiar dos registros
documentais, e não tê-los como algo dado. Nessa lógica da desnaturalização das fontes,
é preciso que construamos o nosso próprio arquivo para colocarmos em questionamento
a ideia de prova documental.
Entre as outras ciências humanas a antropologia está finalmente autorizada a construir sua própria “arquivística” ao colocar em cena e na escritura a tensão epistemological que existe entre os processos de objetivação (monografias, artigos, tratados e manuais) e subjetivação (diários de campo e pesquisa, memorias e autobiografias) notadamente representados pelas coleções e obras tornadas emblemáticas, [que] parece adicionar à autoridade científica de um etnólogo a aura de um escritor e que, bem entendido, colocam a questão de si e do outro, do próximo e do distante, do íntimo e do público. (Jamin e Zonabend, 2001/2002 apud CUNHA, 2004, p. 296)
O que Cunha nos alerta, enquanto antropólogos, é que é preciso está fora e
dentro dos limites do registro documental, assim como é preciso está fora e dentro da
memória, uma vez que o arquivo é apenas um campo da prática etnográfica.
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REFERÊNCIAS:
AMON, Denise; MENASCHE, Renata. Comida como narrativa da Memória Social.
Sociedade e Cultura. V. 11, n. 1, p. 13-21, 2008.
CAVIGNAC, Julie Antoinette; DANTAS, Maria Isabel; SILVA, Danycelle Pereira da.
Comidas de raiz: a retomada da cultura quilombola no Seridó (Brasil). Tessituras,
Pelotas, v. 3, n. 2, p. 105-139, 2015.
CAVIGNAC, Julie A. A etnicidade encoberta: ‘Índios’ e ‘Negros’ no Rio Grande do Norte. Revista Mneme de Humanidades. Vol. 4, n. 8, 2003.
CERTEAU, Michel De. A invenção cotidiano 2: morar, cozinhar. Rio de Janeiro:
Vozes, 1996.
COMARROF & COMARROF, Jean e John. Etnografia e imaginação histórica.
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MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: uma história do
regionalismo seridoense. Natal; Campina Grande: EDUFRN; EDUEPB, 2012.
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: patrimônio e cotidiano
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MINTZ, Sidney W. Comida e Antropologia: uma breve revisão. RBCS, vol. 16, n.
47, p. 31-41, 2001.
SILVA, Danycelle Pereira. Os fios da Memória: presence afro-brasileira em Acari
no tempo do algodão, dissertação de mestrado, Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2014.
SILVA, Lúcia Araújo Dantas da. Memórias da Família Tum: as cozinhas como
espaço de resistência. Artigo de conclusão de curso, especialização em História e
Cultura Africana e Afro Brasileira/DHC, Caicó, 2016.
SHALINS, Marshall. Estrutura e História. In:___ Ilhas da História. Rio de Janeiro:
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WOORTMANN, Ellen. A comida como linguagem. Habitus. Goiânia, v. 11, n. 1, p. 5-
17, 2013.