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ERYC DE OLIVEIRA LEÃO EMPÉDOCLES ENTRE MÝTHOS E LÓGOS UM ESTUDO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE OS POEMAS DE EMPÉDOCLES DEPOIS DO PAPIRO DE ESTRASBURGO Dissertação a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Brasília como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia. Trabalho vinculado à linha de pesquisa História da Filosofia Antiga e Medieval. Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli. Brasília Maio de 2013

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  • ERYC DE OLIVEIRA LEO

    EMPDOCLES ENTRE MTHOS E LGOS

    UM ESTUDO SOBRE A RELAO ENTRE OS POEMAS DE EMPDOCLES DEPOIS

    DO PAPIRO DE ESTRASBURGO

    Dissertao a ser apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Filosofia da Universidade de

    Braslia como requisito parcial obteno do

    ttulo de Mestre em Filosofia. Trabalho vinculado

    linha de pesquisa Histria da Filosofia Antiga e

    Medieval.

    Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli.

    Braslia

    Maio de 2013

  • Leo, Eryc de Oliveira.

    Empdocles entre Mthos e Lgos Um estudo sobre a

    relao entre os poemas de Empdocles depois do Papiro de

    Estrasburgo / Eryc de Oliveira Leo. Braslia, 2013.

    124 p.

    Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli

    Dissertao (Mestrado em Filosofia) Universidade de

    Braslia (UnB).

    1. Monismo 2. Pluralismo 3. Natureza 4. Cincia 5. Magia.

    I. Ttulo

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    Dissertao de autoria de Eryc de Oliveira Leo, intitulada Empdocles entre Mthos e Lgos

    um estudo sobre as relaes entre os poemas de Empdocles depois do Papiro de Estrasburgo,

    apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em filosofia pela

    Universidade de Braslia, em 03 de Maio de 2013, defendida e aprovada pela comisso julgadora

    abaixo:

    _________________________________________________________________

    Prof. Dr. Gabriele Cornelli

    Orientador (Presidente UnB)

    _________________________________________________________________

    Prof. Dr. Fernando Jos de Santoro Moreira (UFRJ)

    _________________________________________________________________

    Prof. Dr. Gilmario Guerreiro da Costa (UCB)

    Braslia

    Maio de 2013

  • Andreia Leo,

    por existir.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu orientador, Gabriele Cornelli pelo apoio e estmulo produo acadmica de

    excelncia e incansvel rigor cientfico.

    Aos meus pais Neide e Ernane Leo (in memoriam), pelo estmulo a curiosidade e o valor

    dado ao esprito investigativo desde sempre.

    Ao meu tio Magno Leo e minha av Vicentina Leo (in memoriam), pelo estmulo,

    confiana e exemplo de carter humano.

    Aos grandes mestres, que desde os tempos da formao bsica, exerceram forte influncia

    em meus gostos e estilo de pesquisa, dentre os mais influentes: Jos Fbio e Gilson Sobral.

    A todos os amigos que participaram de minha formao acadmica e humana, dentre os

    mais influentes: Sergio Leandro, Thiago Soares e Felipe Cabral, pelo apoio, discusses e amizade

    ao longo desses anos.

    A todos os familiares e amigos que, direta ou indiretamente, participaram do processo que

    tornou esta dissertao possvel.

    A todos os membros da Ctedra UNESCO Archai: As Origens do Pensamento Ocidental,

    pelos vrios momentos de discusses e orientaes mtuas.

    Aos professores Dr. Fernando Jos de Santoro Moreira e Dr. Gilmario Guerreiro da Costa

    pelos preciosos feedbacks e pela gentileza de aceitarem compor a comisso examinadora.

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) pelo suporte

    oferecido a esta pesquisa.

  • (...) v-se o pensamento filosfico e cientfico mover-se numa dialtica que

    vai do diverso ao uniforme, para voltar do uniforme ao diverso. Diante de tal

    alternativa em contnua reviravolta, perda de tempo propor um problema de

    origem. Pouco importa que o conhecimento comece pela apercepo do

    diverso ou pela constituio do idntico, j que o conhecimento no se detm

    nem no diverso nem no idntico! (...) O conhecimento um desejo alternativo

    de identidade e de diversidade (Bachelard, 2009, p.15).

    Dupla a gnese de mortais, dupla a morte;

    Pois, por um lado, a conjugao de todas as coisas, no s cria como destroi;

    Por outro lado, na sequncia, depois de ser compactado, cresce e dissipa-se;

    E, continuamente se renovando, estas coisas jamais cessam (Empdocles,

    B17.3-6)

  • RESUMO

    Essa dissertao de mestrado tem como objetivo principal fornecer evidncias de ordem

    filosfica, sociolgica, filolgica e historiogrfica, para o fato da unidade temtica dos dois

    poemas de Empdocles, intitulados Sobre a Natureza e Purificaes. Tal fato encontra-se

    registrado na evidncia direta do texto de Empdocles conhecido como Papiro de Estrasburgo,

    publicado por Martin-Primavesi (1999). Para ficar apenas com o exemplo mais importante, no

    conjunto d do Papiro de Estrasburgo, por exemplo, ocorre uma transio temtica de ordem

    cientfica para mstica, mostrando claramente que tais aspectos da filosofia de Empdocles no

    foram concebidos por ele como incompatveis ou incoerentes. Dada a estrutura temtica dos

    versos de Empdocles, o desenvolvimento desse trabalho passa pelo estudo das relaes, em

    contexto arcaico, entre ideias e crenas de ordem mstica e ideias e crenas de ordem cientfica.

    Foram escolhidos aqueles aspectos considerados centrais para a compreenso da estrutura

    unitria dos versos de Empdocles, deixando de lado os temas e evidncias que no

    contribussem para o entendimento do modo como Empdocles, em particular, e alguns de seus

    contemporneos, em geral, compreendiam a dinmica csmica em seus aspectos fsicos e ticos.

    Seguindo essa abordagem, foi analisada a estrutura organizacional dos fragmentos de

    Empdocles do ponto de vista das evidncias filolgicas disponveis no atual momento histrico,

    de modo a estabelecer os fatos historiogrficos bsicos em relao aos quais seja possvel

    estabelecer uma interpretao coerente dos fragmentos de Empdocles. Em seguida, levando em

    considerao as evidncias da relao entre a filosofia de Parmnides e a filosofia de

    Empdocles, foram analisados os fragmentos necessrios para tomar uma posio com relao ao

    tipo de monismo estabelecido por Parmnides, bem como os fragmentos que apontam para as

    caractersticas do pluralismo de Empdocles, mostrando que existe uma leitura possvel que torna

    essas duas abordagens metodolgicas compatveis entre si. Assumindo essa estrutura lgica,

    foram levantados os pontos de contato entre a filosofia de Empdocles e uma srie de contextos

    de ordem mstica e cientfica, tais como, de um lado, a magia, o xamanismo, o orfismo e o

    pitagorismo, e de outro, a teoria dos quatro elementos, os experimentos cientficos mentais e os

    aspectos cientficos comparveis s categorias cientficas modernas que influenciaram a tradio

    de pensamento que culminou com o surgimento da cincia atual. Aps a exposio e delimitao

    dessas categorias, elas foram usadas para interpretar a epistemologia, a tica e a fsica de

    Empdocles, em seus aspectos cientficos e msticos, contribuindo para a histria, tanto da

    filosofia quanto das religies, bem como para as discusses relacionadas relao dialtica entre

    a histria dos eventos e a histria das ideias.

    Palavras-chave: Monismo, Pluralismo, Natureza, Cincia, Magia

  • ABSTRACT

    The main goal of this master thesis is to provide philosophical, sociological, philological and

    historiographical evidences to the fact of the thematic unit of the two poems of Empedocles,

    entitled On Nature and Purifications. This fact is recorded in the direct evidence of

    Empedocles text known as the Strasbourg Papyrus, published by Martin-Primavesi (1999). To

    illustrate that it is enough to quote the example of Papyrus ensemble d where there is a thematic

    transition between scientific and mystical themes, what clearly proves that Empedocles

    philosophy were not conceived by him as incompatible or inconsistent. Given the thematic

    structure of Empedocles verses, the development of this work passes through the study of the

    relations, in archaic context, between mystical ideas and beliefs, and scientific ideas and beliefs.

    Were chosen those aspects considered as central to understanding the unitary structure of the

    Empedocles verses, leaving aside the issues and evidences that did not contribute to the

    understanding of how Empedocles, in particular, and some of his contemporaries, in general,

    understood the cosmic dynamic in its physical and ethical aspects. Following this framework,

    were analyzed the organizational structure of Empedocles fragments from the standpoint of

    philological evidences available in the current historical moment, in order to establish the basic

    historiographical facts in respect of which it is possible to establish a coherent interpretation of

    the Empedocles fragments. Then, taking into account the evidence of the relationship between

    Parmenides philosophy and Empedocles philosophy, were analyzed the fragments needed to

    take a position with respect to the kind of monism established by Parmenides, as well as the

    fragments that points to the characteristics of Empedocles pluralism, showing that there is a

    possible reading that makes these two methodological approaches compatible. Assuming this

    logical structure, were raised the points of contact between the Empedocles philosophy and a

    variety of scientific and mystical contexts, such as, on one hand, magic, shamanism, orphism and

    pythagoreanism, and on the other, the theory of the four elements, the scientific mental

    experiments and the scientific aspects comparable with modern scientific categories that

    influenced the tradition of thought that culminated in the emergence of modern science. After

    exposure and delineation of these categories, them were used to interpret Empedocles

    epistemology, ethics and physics, in its scientific and mystical sides, contributing to the history

    both of philosophy and religion as well as for discussions related to the dialectical relationship

    between the history of the events and the history of the ideas.

    Keywords: Monism, Pluralism, Nature, Science, Magic

  • LISTA DE ILUSTRAES

    QUADRO 1 Fragmentos de Empdocles com indicao de Origem..........................................19

    QUADRO 2 Pontos de Contato entre Papiro de Estrasburgo e Fontes Empedocleanas............ 21

    QUADRO 3 Diferenas gerais entre Pitagorismo e Orfismo......................................................97

    QUADRO 4 Ocorrncias do termo em Homero..........................................................107

    TABELA 1 Nmero total de versos de Empdocles...................................................................20

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    DK = DIELS-KRANZ (1992)

    KRS = KIRK-RAVEN-SCHOFIELD (1983)

    LSJ = LIDDELL-SCOTT-JONES (1940)

    Orig. = Do original

  • NOTA PRVIA

    Todas as citaes de termos ou frases curtas em grego antigo mencionadas durante a

    redao do texto foram transliteradas segundo as normas da Sociedade Brasileira de Estudos

    Clssicos (SBEC). Em casos de citaes de bloco de textos em grego antigo, tanto o original

    quanto a traduo foram citados. Em casos de trechos de autores contemporneos em lngua

    estrangeira, somente foram citadas as tradues para o portugus. Os originais foram mantidos

    em notas. Todas as tradues so minhas.

  • SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................................... 13

    1. TRADIO, ORGANIZAO E UNIDADE TEMTICA EM EMPDOCLES .......... 17

    1.1 OS DOIS POEMAS .................................................................................................................. 18

    1.2 PAPIRO DE ESTRASBURGO .................................................................................................... 21

    2. O PLURALISMO DE EMPDOCLES ................................................................................ 26

    2.1 TIPOS DE MONISMO E PLURALISMO ...................................................................................... 30

    2.1.1 Monismos ..................................................................................................................... 30

    2.1.2 Sentidos do Verbo Ser em Parmnides ..................................................................... 31 ..................................................................................................................................... 32

    2.1.3 Sentido Existencial ...................................................................................................... 36

    2.1.4 Investigao Sobre a Natureza .................................................................................. 41

    2.1.5 Pluralismo de Unidades Parmenideanas .................................................................. 44 2.2 O PLURALISMO DE EMPDOCLES .......................................................................................... 48

    2.2.1 Empdocles: Discpulo de Parmnides ..................................................................... 48 2.2.2 Enta empedocleanos: Dinmica de Razes e Foras .............................................. 54

    3. MTHOS E LGOS NA MAGNA GRCIA ...................................................................... 58

    3.1. TRADIO CIENTFICA ......................................................................................................... 61

    3.1.1 Origens Empedocleanas da Cincia .......................................................................... 61

    3.1.2 A Teoria dos Elementos e Os Experimentos Mentais ............................................. 65

    3.1.2 Os Quatro Elementos antes de Empdocles ............................................................. 69 3.2. TRADIO MSTICA ............................................................................................................. 71

    3.2.1 Categorias e Fenmenos Mstico-Religiosos ............................................................ 71

    3.2.2 Xamanismo .................................................................................................................. 73 3.2.3 Magia ........................................................................................................................... 82 3.2.4 Natureza e Empatia .................................................................................................... 87

    3.2.5 Orfismo e Pitagorismo................................................................................................ 92 3.2.6 Parentesco Universal e Epistemologia Emptica ..................................................... 99

    CONSIDERAES FINAIS .................................................................................................... 109

    REFERNCIAS ........................................................................................................................ 117

    FONTES PRIMRIAS .................................................................................................................. 117

    FONTES SECUNDRIAS ............................................................................................................. 117 INSTRUMENTOS ........................................................................................................................ 124

  • INTRODUO

    H um tpos () recorrente na filosofia antiga: o tpos da suposta incompatibilidade

    entre Mthos () e Lgos (), entre discurso mtico e discurso racional, entre

    inconsciente e consciente, entre irracional e racional, entre pensamento mstico e pensamento

    cientfico. Tal assunto se torna cada vez mais paradigmtico quanto mais o historiador da

    filosofia se aproxima das origens, dos primeiros autores a tentar, pretensamente, a reforma

    conceitual que buscar substituir o Mthos pelo Lgos. Todavia, nessas primeiras tentativas de ir

    alm da mitologia, enquanto narrativa dos deuses, em direo arkh () primordial,

    enquanto narrativa histrica do mundo, os pr-socrticos se utilizaram de cosmogonias com

    elementos tanto mticos quanto ontolgicos, mantendo em muitos casos uma relao de

    complementaridade entre Mthos e Lgos1.

    Embora a presena do pensamento mtico no tenha sido ainda completamente abolida

    nem mesmo no mundo moderno aps o advento da conscincia histrica (Eliade, 1994), os

    elementos mticos do pensamento dos pr-socrticos tm sido negligenciados por vrios

    historiadores da filosofia antiga contemporneos (Kingsley, 1995). Tais historiadores,

    restringidos pela viso apenas racionalista da filosofia, encontram-se constantemente em

    1 Os nomes mthos e lgos sero tomados neste trabalho, no em algum de seus vrios sentidos gregos, mas

    como conceitos filosficos representantes de um problema difcil de definir relacionado ao moderno problema da

    incompatibilidade entre cincia e religio. Toda a discusso que ser feita nos captulos seguintes ter como objetivo

    esclarecer da melhor forma possvel, os conceitos centrais da filosofia de Empdocles e que lhe permitem transitar

    entre o ciclo csmico sensvel e o ciclo csmico suprasensvel, utilizando os mesmos conceitos e pontos de partida.

    Sempre que o termo mthos for aqui utilizado, estar se referindo aos conceitos modernamente classificados como

    msticos, religiosos ou metafsicos enquanto que o termo lgos ser tomado para representar os conceitos que

    daro origem posteriormente s vrias abordagens cientficas, em seus vrios graus de preciso, todas com algum

    mtodo de teste emprico de seus resultados, e sempre abertas a possibilidade de refutao. At o advento da cincia

    moderna, esses conceitos estiveram bastante relacionados. Com o surgimento e desenvolvimento das cincias

    experimentais na idade moderna, mthos e lgos comearam a se diferenciar cada vez mais, at o ponto em que,

    diferentemente dos povos primitivos, as dimenses da f e da racionalidade se tornaram mbitos diferentes e

    incompatveis do pensamento humano. De certo modo, devido a esse tipo de experincia que o olhar do historiador

    moderno da filosofia antiga precisa tomar partido de uma srie de contextos para conseguir entender o tipo de

    racionalidade existente no perodo das origens da filosofia grega. E foi devido suposta separao entre os mbitos

    do mthos e do lgos que os historiadores da filosofia antiga do sculo XIX encontraram-se em enormes dificuldades

    para interpretar o sentido de contextos tais como o do orfismo, do dionisismo, da magia e do xamanismo em suas

    relaes com os primeiros filsofos. Atualmente, esses vrios elementos da cultura grega j receberam vrios e

    detalhados tratamentos por fillogos, antroplogos, etngrafos e historiadores das religies ao longo do sculo XX, e

    tornaram o estudo das relaes entre mthos e lgos mais rica em elementos. Assim, o problema das relaes entre

    mthos e lgos em Empdocles ser abordado nesta dissertao a partir dessa tradio multidisciplinar de estudos

    clssicos, buscando se aproximar do olhar dos antigos.

  • 14

    dificuldades para entender o sentido de certos elementos mticos presentes nos textos dos

    primeiros gregos, responsveis pela criao do campo intelectual da filosofia. Segundo Kingsley:

    A tradio de pesquisadores ps-Iluministas ao longo dos ltimos dois sculos tem

    persistentemente visto a historia da filosofia antiga como uma evoluo progressiva em direo

    a certo ideal de racionalidade extremamente vago, embora misteriosamente sedutor; e ao faz-lo

    decidiu aceitar quase incondicionalmente a avaliao arrogante de Aristteles da filosofia dos

    pr-socrticos como no mais do que uma tentativa balbuciante de dizer o que somente ele,

    afinal, era capaz de articular com alguma fluncia (Kingsley, 1995, p.3)2.

    A distncia temporal que nos separa dos gregos do V sculo antes de nossa era dificulta o

    acesso s referncias de ordem religiosa e cultural, tais como o uso entre os filsofos de eptetos e

    figuras divinas, ou a presena simultnea de uma narrativa de tom lgico e racionalista e outra de

    cunho mtico, cheia de referncias culturais de ordem ritual e sagrada3. A busca de sentido para a

    dialtica entre Mthos e Lgos e a descrio fiel das evidncias no tratamento historiogrfico dos

    antigos sero dois dos principais objetivos deste trabalho.

    Alm da presena da viso cclica da vida csmica e humana, essencial para o pensamento

    mtico, os gregos mantiveram uma srie de temas importantes para a conscincia mtica, tais

    como a importncia das origens, a ideia de que, aquilo que primordial, a arkh (), precede

    a existncia humana; a importncia da memria, dentre outros (Eliade, 1994). Segundo Eliade:

    Veremos, entretanto, que a desmitificao da religio grega e o triunfo, com Scrates e

    Plato, da filosofia rigorosa e sistemtica, no aboliram definitivamente o pensamento

    mtico. Alm do mais, difcil conceber o ultrapasse radical do pensamento mtico

    enquanto o prestgio das origens permanece intacto e enquanto o esquecimento do que

    se passou in illo tempore ou num mundo transcendental considerado o principal

    obstculo ao conhecimento ou salvao. Veremos que Plato ainda adere a esse modo

    de pensamento arcaico. E que na cosmologia de Aristteles sobrevivem ainda venerveis

    temas mitolgicos (Eliade, 1994, p.101).

    Tambm Dodds, a partir de abordagens psicolgicas, sociolgicas e antropolgicas,

    discutiu a presena de elementos mticos e racionais nos vrios momentos do desenvolvimento da

    filosofia e da cultura grega desde Homero at o perodo helenstico (Dodds, 2002). Segundo ele,

    2 Orig.: (...) post-Enlightenment scholarship over the past two centuries has persistently viewed the history of early

    Greek philosophy as a progressive evolution towards some extremely vague, but numinously seductive, ideal of

    rationality; and in doing so it has almost unquestioningly decided to embrace Aristotles arrogant assessment of

    Presocratic philosophy as no more than a stammering attempt to say what only he, at last, was able to articulate with

    any fluency. 3 Alguns exemplos de tais elementos so: o poema sobre a natureza e o das purificaes de Empdocles; o promio e

    a apresentao dos caminhos da verdade e da opinio em Parmnides e a presena dos mitos nos dilogos platnicos.

  • 15

    em nenhum momento os gregos desenvolveram o projeto racionalista at as ltimas

    consequncias. Sempre houve, em algum nvel, a presena de elementos mticos no pensamento

    dos gregos:

    (...) os homens que criaram o primeiro racionalismo europeu nunca foram at o

    perodo helenstico simplesmente racionalista. Ou seja, eles imaginavam e estavam

    profundamente cientes do poder, do encantamento e do perigo do irracional. Mas eles s

    puderam descrever o que ocorria abaixo do limiar de conscincia, em uma linguagem

    mitolgica ou simblica, pois no possuam um instrumento para compreend-lo, e

    menos ainda para control-lo (Dodds, 2002, p. 255).

    Um dos objetivos desta dissertao apontar os aspectos mticos e racionais do

    pensamento de Empdocles, mostrando como o agrigentino realizou a sntese entre esses dois

    tipos de pensamento, sem levar a cabo o divrcio entre Mthos e Lgos em sua inteireza. Sero

    analisados os contextos de mbito tanto mstico quanto cientfico com o qual Empdocles

    estava dialogando em seus versos. Ainda com relao ao difcil divrcio total entre Mthos e

    Lgos, no s no pensamento arcaico como na cultura contempornea, Eliade diz o seguinte:

    (...) o homem a-religioso no estado puro muito raro, mesmo na mais dessacralizada das

    sociedades modernas. A maioria dos sem-religio ainda se comporta religiosamente,

    embora no esteja consciente do fato. No se trata somente da massa das supersties

    ou dos tabus do homem moderno, que tm todos uma estrutura e uma origem mgico-

    religiosas. O homem moderno que se sente e se pretende a-religioso carrega ainda toda

    uma mitologia camuflada e numerosos ritualismos degradados (Eliade, 2008, p. 166).

    Ao longo dos estudos desenvolvidos sobre Empdocles no sculo XX, desde a publicao

    dos fragmentos dos pr-socrticos por Diels-Kranz (1992) at a publicao do papiro de

    Estrasburgo por Martin-Primavesi (1999), os dois poemas de Empdocles foram cada vez mais

    sendo entendidos como um todo coerente. O papiro de Estrasburgo apenas trouxe uma

    confirmao direta de que o texto de Empdocles apresentava, mesmo dentro de cada um dos

    poemas, certas transies temticas entre Mthos e Lgos que demonstraram que a separao

    entre esses mbitos est mais relacionada crtica e organizao posterior dos versos de

    Empdocles, do que ao prprio Empdocles. O desenvolvimento dessa tradio ser delineado

    em seus aspectos gerais no captulo 1, desde a discusso de alguns aspectos filolgicos da

    organizao efetuada por Diels, at as principais evidncias descobertas com a publicao do

    papiro de Estrasburgo por Martin-Primavesi (1999).

  • 16

    Na obra de Empdocles, reconhecem-se conceitos e princpios que contriburam para a

    estruturao da investigao filosfica. No se pode negar que Empdocles, assim como outros

    pr-socrticos, estava interessado em descrever com preciso o funcionamento de todas as coisas,

    desde a fisiologia at a astronomia, passando pela botnica, qumica, tica e meteorologia. E que

    esses temas comearam a ser tratados pelos pr-socrticos com mtodos diferentes daqueles do

    contexto pico anterior (Lloyd, 1971). com essa etapa do desenvolvimento da lgica e da

    metodologia filosfica em mente que tambm o monismo e o pluralismo desses autores ser

    investigado, de modo a entender o tipo de metodologia de pesquisa pretendido por Empdocles

    em suas investigaes. Para isso, sero abordados no captulo 2 os aspectos que aproximam o

    pluralismo de Empdocles do monismo de Parmnides, a fim de lanar luz sobre o mtodo de

    pesquisa e a natureza da concepo cosmolgica adotada por Empdocles. Um dos problemas

    que logo saltam a vista nesse contexto : Como a postura monista pode ser compatvel com a

    pluralista? Esse problema ser tratado a partir do estudo dos fragmentos centrais de Parmnides

    onde o tipo de monismo adotado por esse autor ser discutido. E a partir do contexto filosfico

    anterior e posterior s discusses de Parmnides o problema da metodologia de pesquisa de

    Empdocles, mais ligado a perspectiva do lgos, ser delineado.

    Assumindo a unidade temtica de Empdocles, entre uma tendncia de ordem cientfica

    mais vinculada ao lgos, e uma tendncia de ordem mstica mais ligada ao Mthos, no captulo 3

    sero discutidos alguns aspectos da filosofia de Empdocles que possam ajudar o leitor

    contemporneo a entender o modo pelo qual Empdocles pode associar em sua vida e discurso,

    os temperamentos mstico e cientfico. Nesse contexto, os aspectos principais da filosofia de

    Empdocles aparecem como fundamento tanto do ciclo csmico entendido como movimento de

    elementos materiais, como do ciclo csmico entendido como movimento de elementos materiais

    imperceptveis aos seres mortais, que do ponto de vista religioso, so representados como almas e

    deuses. Ver-se-, nesse contexto, que os conceitos empedocleanos centrais apresentam traos de

    ordem mgica que permitem sua aplicao tanto em mbito mstico quanto cientfico.

  • 17

    1. TRADIO, ORGANIZAO E UNIDADE TEMTICA EM EMPDOCLES

    A primeira condio para entender Empdocles est em banir a noo de um abismo

    entre crenas religiosas e pontos de vista cientficos. Seu trabalho um todo, em que a

    religio, a poesia e a filosofia esto indissoluvelmente unidas. Sua imaginao criativa,

    reunindo elementos disponveis em todas as partes cosmogonia hesidica e jnica,

    racionalismo parmenidiano, misticismo rfico, lenda potica, a experincia de um fsico,

    a resposta sensria de um poeta para as paisagens e sons da natureza, e os medos e

    esperanas de um esprito exilado do paraso para um breve perodo de tempo de vida

    que no vida ' mas construindo todos esses elementos juntos em uma viso unitria

    da vida do mundo e do destino da alma humana, ligada, como o macrocosmo, ao ciclo de

    nascimento e morte (Cornford, 1952, p.121-2)4.

    A interpretao de um texto antigo requer, como j dizia Schleiermacher, no s a adoo

    de uma srie de contextos que tornem possvel algum tipo de aproximao com o autor antigo,

    como tambm certas anlises estruturais de ordem filolgica, gramatical e lgica. Tanto um

    procedimento quanto outro necessrio e cada um ajuda a desenvolver a anlise do outro, de

    modo que a interpretao de um texto avana em espiral por meio da relao mtua entre

    procedimentos de ordem gramatical e procedimentos de ordem psicolgica5. Nesse processo, a

    historiografia moderna de Empdocles passou por vrios momentos desde as primeiras edies

    de seus fragmentos at os grandes debates desenvolvidos ao longo do sculo XX. A tradio

    hermenutica de Empdocles oscilou nesse tempo entre uma abordagem unitria de seu

    pensamento e outra dupla. Mas com a publicao do papiro de Estrasburgo, as antigas hipteses

    4 Orig.: The first condition for an understanding of Empedocles is to banish the notion of a gulf between religious

    beliefs and scientific views. His work is a whole, in which religion, poetry, and philosophy are indissolubly united.

    His imagination is constructive, gathering elements from every available quarter Hesiodic and Ionian cosmogony,

    Parmenidean rationalism, Orphic mysticism, poetic legend, the experience of a physician, a poets sensuous response

    to the sights and sounds of nature, and the fears and hopes of a spirit exiled from heaven for a brief span of life that

    is no life but building all these elements together into a unitary vision of the life of the world and the destiny of the

    human soul, bound, like the macrocosm, upon the wheel of birth and death. 5 Cf.: Schleiermacher (2003)

  • 18

    de unidade das obras obtiveram uma confirmao filolgica. Os dois poemas de Empdocles no

    mais podem ser considerados de modo separados em uma anlise contempornea de Empdocles.

    Seu pensamento deve ser considerado, de agora em diante, como a tentativa de tornar coerente os

    ciclos da natureza de ordem material e de ordem mstica.

    1.1 Os Dois Poemas

    No mesmo perodo histrico em que o a dicotomia entre cincia e religio j havia

    crescido e se desenvolvido ao longo de toda a idade moderna, a gerao de fillogos alemes que

    fundou na atualidade os estudos pr-socrticos enxergou como problema central da filosofia de

    Empdocles a aparente dicotomia entre o poema intitulado purificaes (katharmo

    ) e o poema sobre a natureza (Per phses ), dado que o primeiro

    apresentaria teorias sobre as prticas purificatrias necessrias para evitar o sofrimento em

    reencarnaes futuras, enquanto que o segundo descreveria uma doutrina puramente materialista

    segundo a qual todas as coisas so formadas pela mistura e separao de quatro razes terra, ar,

    fogo e gua regidas por duas foras amor e dio responsveis por provocar o nascimento e a

    morte a partir da composio e decomposio de membros vivos. Nesse contexto, parece no

    haver compatibilidade entre uma abordagem que consegue explicar todos os eventos naturais a

    partir do domnio compartilhado que o amor e o dio exercem sobre os quatro elementos bsicos

    ao longo do ciclo csmico. Tal dificuldade forou os fillogos a levantar algumas hipteses

    explicativas para o fato de um mesmo autor supostamente sustentar opinies to dspares. Uma

    delas supe que o autor escreveu os dois poemas em momentos diferentes de sua vida, mantendo

    apenas alguns conceitos bsicos em cada uma das duas fases. Outros autores no acreditam que

    haja grandes problemas em sustentar que Empdocles tenha escrito ambos os poemas no mesmo

    perodo, sustentando que Empdocles seja um tipo de cientista com temperamento duplo, capaz

    de passar 6 dias da semana exercendo atividades de pesquisa experimental, e 1 dia alimentando

    sua f em alguma atividade mstica sincrtica.

    Tal dificuldade de entender o aspecto multifacetado do pensamento de Empdocles entre

    os dois poemas talvez esteja relacionado dificuldade de ordem lgica, filolgica e gramatical,

    dada a escassez de dados sobre a relao entre os poemas e a prpria natureza dos dados, sempre

  • 19

    provenientes at o papiro de Estrasburgo de citaes de terceiros em organizaes temticas

    que tratam Empdocles no como fim, mas como meio para argumentar e discutir outros autores

    ou assuntos.

    O fato de a maioria dos fragmentos no estar endereada nem a um nem a outro desses

    poemas deixou uma enorme margem de liberdade para a classificao dos fragmentos entre os

    dois poemas. De fato, os fragmentos com tons materialistas foram includos no poema sobre a

    natureza enquanto que os msticos e religiosos foram associados ao poema das purificaes. Em

    relao ao nmero de fragmentos existentes de Empdocles, o nmero de trechos com indicao

    de origem representa cerca de 15% em relao totalidade dos fragmentos disponveis6. Tais

    fragmentos com alguma indicao de origem esto citados no quadro 1 abaixo.

    QUADRO 1 Fragmentos de Empdocles com indicao de origem

    Local Critrio de

    Classificao Fragmento DK 31 B

    Per

    phses

    Indicao direta 1, 8, 17, 34, 54, 62, 75, 85, 96, 103, 104, 134

    Endereamento

    2 pessoa do

    singular

    2, 4, 5, 6, 21, 23, 38, 110 e 111

    Katharmo

    Indicao direta 112, 113, 115 e 153a

    Endereamento

    2 pessoa do

    plural

    114, 124 e 136

    A partir desses poucos fragmentos com indicao de origem, foram deduzidas os

    princpios bsicos de cada um dos poemas e, a partir de uma diviso entre matrias relacionadas

    ao universo fsico, de um lado, e matrias referentes religio de outro, todos os outros 85% dos

    fragmentos foram distribudos entre esses dois poemas7. Ao seguir tal mtodo e perceber que o

    nmero de versos de teor materialista era muito maior do que aqueles de carter mstico,

    6 Considerando-se que, de fato, Empdocles tenha escrito apenas dois poemas e excetuando-se os fragmentos

    descobertos pelo papiro de Estrasburgo, h, segundo o TLG, 164 fragmentos de Empdocles. Dentre esses, apenas

    cerca de 28 possuem algum tipo de endereamento identificvel diretamente a um dos poemas, ou indiretamente

    considerando o fato de que um est dirigido segunda pessoa do singular enquanto que o outro est dirigido

    segunda pessoa do plural. Veja-se, a esse respeito, Long (1949) e Trpanier (2004). 7 O primeiro a sugerir o mtodo da assinalao dos fragmentos a partir da distino temtica entre materialismo e

    espiritualismo foi Scalinger, seguido de Sturz em 1805. Diels seguiu a autoridade desses autores em sua organizao.

    Cf.: Long (1949).

  • 20

    Diels achou melhor propor uma emenda ao texto de Digenes Larcio a fim de reduzir o nmero

    de versos do poema das purificaes. Segundo o texto tradicional de Digenes, os dois poemas

    teriam 5000 versos (D.L. VIII, 77; DK 31 A1), enquanto que o texto do Suda diz que o texto

    sobre a natureza teria 2000 versos (DK 31 A2). Assim, Diel props a alterao em Digenes de

    5000 (pentakiskhlia ) para 3000 (pnta triskhlia ) aumentando

    o nmero de versos do poema fsico com relao ao poema das purificaes a fim de tornar sua

    classificao mais prxima da realidade, j que ele havia inserido 346 versos ao poema sobre a

    natureza e apenas 110 ao poema das purificaes. Tal proporo de 3,14 para 1, enquanto que a

    proporo sem considerar a emenda seria de 2 para 3, o que tornaria seus dados, embora bastante

    numerosos com relao a outros pr-socrticos, bastante fora da realidade. Com a emenda de

    Diels essa proporo passou a ser de 2 para 1, tornando, pelo menos, o nmero de versos do

    poema fsico maior do que o do poema das purificaes. Mas, uma vez que a grande maioria dos

    versos obteve uma classificao seguindo critrio temtico e no filolgico, a classificao de

    Diels se torna altamente questionvel em relao a 85% de seus versos, de modo que tal emenda

    s pode fazer sentido se a anacrnica dicotomia entre cincia e religio for mantida. Assim a

    emenda de Diels de carter ideolgico e busca salvar os dados tal como ele acredita que eles

    devam ser e no tal como eles foram encontrados nas evidncias historiogrficas existentes em

    sua poca. bastante provvel que tal origem dos estudos sobre Empdocles tenha contribudo

    para manter a ideia da dicotomia insupervel entre os poemas do agrigentino. O mtodo temtico

    de distribuio bastante inteligente e engenhoso, mas tal arranjo no pode ser considerado um

    fato historiogrfico, nem ser confundido com o arranjo real tomado por Empdocles.

    TABELA 1 Nmero total de versos de Empdocles

    Natureza dos

    Dados

    Texto

    considerado

    N de

    versos de

    Per

    phses

    (A2)

    N de

    versos de

    katharmo

    (A1 e A2)

    N total

    de versos

    (A1)

    Proporo

    entre n versos

    do Per phses

    e N versos do

    katharmo

    Dados

    historiogrficos

    tericos

    A2 e A1 sem

    emenda de Diels 2000 3000 5000 0,666 / 1

    Dados

    historiogrficos

    Encontrados

    Nmero de

    versos

    encontrados por

    346 110 456 3,145 / 1

  • 21

    Diels

    Dados

    historiogrficos

    Alterados

    A2 e A1 com

    emenda de Diels 2000 1000 3000 2 / 1

    A bifurcao da filosofia de Empdocles no foi um fenmeno ocasionado apenas pela

    natureza globalizante de seus versos, ou pelo arranjo dos versos dado por Diels. Desde a

    antiguidade, o interesse diverso dos comentadores provocou uma diviso de Empdocles j na

    antiguidade, quando Aristteles e a descendncia peripattica privilegiou os comentrios acerca

    da perspectiva fsica de Empdocles, enquanto que a academia e os neo-platnicos privilegiaram

    o estudo das doutrinas da alma de Empdocles (Long, 1949).

    1.2 Papiro de Estrasburgo

    Embora os estudiosos ao longo do sculo XX j estivessem convictos de que os poemas

    de Empdocles no eram de todo incompatveis e j tivessem analisado os vrios pontos de

    contato e as vrias possveis interpretaes dos elementos bsicos da teoria empedocleana, o

    surgimento do papiro de Estrasburgo trouxe uma prova filolgica definitiva para as suspeitas

    desses autores8. Esse papiro contem o nico texto em primeira mo de um autor pr-socrtico e

    foi identificado a partir da feliz coincidncia de um de seus versos conservados ser exatamente o

    trecho final de B17 de Empdocles (Martin-Primavesi, 1999). Alm deste ponto de contato, h

    outras relaes entre os trechos conhecidos e os pedaos de texto do papiro, listadas no quadro

    abaixo:

    QUADRO 2 Pontos de Contato entre Papiro de Estrasburgo e fontes empedocleanas9

    Papiro de Estrasburgo Fontes empedocleanas

    Linhas a(i) 1 5 = B 17.31-35

    Linhas a(i) 6 a(ii)2 Parecido com B21.7-12

    Linhas a(i) 8 a(ii) 2

    = Quatro versos de Empdocles

    citados por Aristteles, Metafsica, B 4

    1000 a 29-32

    8 Dentre os vrios autores que trabalharam em alguma teoria sobre a compatibilidade entre os dois poemas de

    Empdocles esto: Cornford (1952; 1957), Guthrie (1969), Long (1949), KRS (1983), Barnes (1967), e Long (1966). 9 Cf.: MartinPrimavesi (1999)

  • 22

    Linhas a(ii) 18 20 Parecido com B 35.3-5

    Linha a(ii) 30

    Contem um verso de Empdocles

    citado por Simplcio, Fsica, p. 161.

    20 Diels

    Linhas b 2 e 4 = B 76.3 e B76.2

    Linha c 2-8 = B20

    Linha d 5-6 = B139

    As evidncias encontradas por Martin-Primavesi levam a crer que os pedaos preservados

    do texto de Empdocles so de transmisso direta, dado que no h neles quaisquer registros de

    texto em prosa ligando vrias citaes. Do mesmo modo, alguns trechos dos conjuntos a e d

    apresentam transies temticas que no caberiam em uma sequencia de citaes organizadas

    tematicamente. Assim sendo, vrios problemas filolgicos e filosficos podem ser resolvidos ou

    melhor abordados com os novos dados disponveis a partir desses textos.

    Desde o perodo do neoplatonismo, quando a filosofia se tornou uma espcie de grande

    comentrio aos textos clssicos, que a atividade de organizar, citar e comentar um autor se tornou

    quase sinnima da atividade acadmica do filsofo. J Aristteles havia ensinado o modelo que

    seria seguido pelos comentadores do futuro. No s ele como vrias geraes de filsofos citaram

    trechos da filosofia pr-socrtica para discutir toda a variedade de assuntos possveis, sempre

    voltando queles que seriam os pioneiros e iniciadores da tradio de pensamento sobre os vrios

    temas filosficos.

    Nesse processo cada um, seguindo o prprio estilo de organizao temtica da discusso

    motivada por certos objetivos, costuma citar apenas as partes dos textos ligadas aos temas de

    interesse e que ajudem de alguma forma a tornar claros seus problemas e temas de investigao.

    Assim, de se esperar que os textos sobreviventes dos pr-socrticos no apresentem muitas

    transies temticas. Os autores antigos interessados no ciclo csmico ou na metempsicose, em

    geral, no citavam os trechos de transio, mas apenas os trechos onde Empdocles estivesse

    discutindo especificamente uma ou outra matria. E no havia motivos para fazer tal tipo de

    citao, j que os leitores supostamente poderiam acompanhar o argumento e o comentrio

    somente a partir da citao especfica, e na pior das hipteses, poderiam procurar o texto de

    Empdocles e l-lo em primeira mo. Tal fato certamente contribuiu para as incertezas com

    relao unidade do pensamento de Empdocles ao longo de seus dois principais poemas.

  • 23

    Para os objetivos desta dissertao, o papiro de Estrasburgo fornece evidncias

    conclusivas para a ocorrncia de transies temticas de carter cientfico para mstico em um

    mesmo conjunto de versos, mostrando que o texto de Empdocles, como um todo, no estava

    organizado tematicamente tal como as citaes de autores antigos e tal como a organizao

    temtica seguida por Diels sugerem. De modo que, embora haja dois poemas, aparentemente h

    apenas um sistema terico.

    Tanto em a(i) 6 quanto em c 3-4, em um momento do ciclo csmico em que os vrios

    membros comeam a se aglutinar, formando seres mortais, tal experincia descrita a partir da

    primeira pessoa do plural por Empdocles, ou seja, ao invs de se referir aos quatro elementos

    como submetidos s foras do ciclo csmico, ele se refere s pessoas do atual ciclo csmico, que

    supostamente experimentaro essas revolues do ciclo csmico. Neste caso, Empdocles parece

    estar se referindo ao movimento experimentado pela alma humana em seu processo de

    transmigrao ao longo do ciclo csmico. Da mesma forma, quando em a(ii) 17, o dio est em

    plena ascenso na ltima fase da separao dos elementos, em direo ao predomnio completo

    do dio, novamente a referncia primeira pessoa do plural utilizada para identificar o sujeito

    que se desloca para o centro. Em ambos os casos, todo o movimento poderia ser explicado a

    partir dos princpios bsicos da natureza. Mas Empdocles utiliza uma referncia similar a

    utilizada em B115 quando se refere aos damones (), s unidades capazes de transmigrar

    entre os vrios mbitos materiais. Segundo a interpretao de Cornford(1957), Kahn(1960b) e

    OBrien(1969), essas almas, damones, seriam formadas por fragmentos de amor que so

    encarnados como seres vivos individuais, mas que, do ponto de vista macrocsmico, seriam um

    nico indivduo divino que continuamente nasce e morre: a esfera. Em B115, Empdocles diz

    claramente que ele um desses damones que decaiu aps confiar no dio em outro momento do

    ciclo csmico. Em B59, h uma referncia a unio de damones entre si para a formao de seres

    cada vez mais complexos ao longo de uma sucesso onde muitas coisas surgem em uma

    sequencia temporal (B59.3). Ou seja, parece haver damones em cada membro utilizado para

    formar seres mais complexos. E nesse sentido, parece haver inclusive seres mais complexos do

    que estes presentes na atual fase do ciclo csmico, que tero seus damones formados a partir da

    juno de vrios damones atuais. Mas, mesmo nesse perodo seguinte, ainda haver seres menos

    complexos, o que justificaria o discurso de Empdocles aos seus concidados para que eles se

  • 24

    purifiquem, j que alguns dentre os atuais seres humanos podem, em uma prxima etapa do ciclo

    csmico, terem seus damones divididos ao invs de aumentados, fazendo com que eles

    encarnem em seres menos nobres. Assim, a fsica de Empdocles torna-se um sistema no qual a

    tica tambm est presente, onde vantajoso, do ponto de vista tico, viver de acordo com os

    instintos csmicos do amor, no s do ponto de vista da unio puramente materialista de

    diferentes partes, como tambm do ponto de vista psicolgico do temperamento amoroso, ligado

    aos sentidos e aos pensamentos. O dio, tanto como princpio da separao de membros, como

    instinto csmico capaz de desencadear o desentendimento, o pensamento unilateral e a morte,

    deve ser evitado a fim de manter-se sempre evoluindo junto com as outras partes do ciclo

    csmico, em formas de vida cada vez mais superiores at chegar esfera, a unidade de todos os

    damones, destino de todos ao final do ciclo csmico.

    Outro elemento importante lembrado por Martin-Primavesi a diferena entre a memria

    individual e a memria coletiva. Em todas as ocorrncias da primeira pessoa do plural, os eventos

    referidos esto sempre fora do perodo compreendido entre a primeira encarnao da alma no

    singular, damn () nos membros mortais, e o atual momento do ciclo csmico. Quando

    Empdocles se refere ao mundo atual ou ao mundo anterior a esse no qual os membros esto

    recebendo pores de amor, Empdocles utiliza normalmente a referncia primeira pessoa do

    singular (B115.13, B117 e B118). Essa indicao tem como pano de fundo a ideia do parentesco

    universal entre todas as formas de vida do ksmos, bem como a ideia de que todas as almas so

    partes de uma mesma alma, a alma do mundo, e possuem, nesse sentido uma espcie de memria

    em comum em algum momento do ciclo csmico em que o amor se rene. Ao passo que, no atual

    momento do ciclo csmico, bem como em outros momentos em que o amor no est fortemente

    presente, cada uma das almas dos vrios seres mortais representa um aspecto do todo, uma parte

    da memria e sabedoria coletiva do ksmos que est temporariamente impossibilitada de ter

    pensamentos mais geis e memria mais abrangente. nesse contexto que os seres considerados

    superiores conseguem lembrar-se de outras existncias e reconhecer damones em formas de vida

    diferentes, tal como Empdocles diz que Pitgoras capaz em B129.

    Mas do ponto de vista da unidade temtica dos poemas de Empdocles, a evidncia mais

    importante o conjunto d no qual a transio temtica ocorre de maneira bastante clara entre o

    trecho d 11-14, no qual so descritas as vrias combinaes de criaturas mortais, e o trecho d 15-

  • 25

    18 onde h uma transio para o tema da encarnao do damn. Alm disso, em d 1-10 a

    descrio do fim do atual estgio csmico interrompida pelo j conhecido trecho B139 (=d 5-6)

    no qual Empdocles se lamenta de ter cometido o crime que supostamente o fez decair de um

    deus para a forma de um homem.

  • 26

    2. O PLURALISMO DE EMPDOCLES

    H um consenso geral entre os historiadores da filosofia pr-socrtica de que Parmnides

    seja o divisor de guas entre os primeiros filsofos jnicos e os filsofos pluralistas posteriores.

    Mas o tipo de apropriao que cada um desses filsofos fez de sua cultura uma questo em

    aberto que est longe de ser esclarecida diante das mltiplas evidncias historiogrficas e das

    vrias possveis inter-relaes entre os primeiros filsofos10

    . Em geral, h uma srie de

    dificuldades que todo estudioso da antiguidade enfrenta: a distncia histrico-cultural dos

    primeiros filsofos, a diversidade de mediaes historiogrficas, a legitimidade ou no de certos

    textos e tradies antigas, o modo como esses filsofos reagiram uns aos outros, em mbitos do

    conhecimento considerados filosficos ou no, etc. No caso dos pr-socrticos esses problemas

    se tornam ainda maiores, pois esses autores estavam em processo de criao do campo filosfico

    entendido em sentido amplo, e nesse processo, a apropriao que cada autor fazia do conceito de

    filosofia era singular e estava relacionada com o projeto que cada um tinha enquanto criador de

    uma rea nova. Nesse mesmo contexto estavam tambm em jogo atividades ligadas histria,

    medicina, religio, poltica, etc. Todas tomando partido de mtodos e objetos diferentes de

    conhecimento, entrando em conflito umas com as outras e definindo seus escopos a partir dessas

    disputas e de uma srie de processos filosfico-sociais difceis de identificar11

    . No meio desse

    processo, Empdocles uma figura paradigmtica do ponto de vista da multiplicidade de temas

    de que trata, e da dificuldade de compatibilizar todas as evidncias ligadas a ele. Apesar de

    10

    Dentre os que aceitam Parmnides como ponto de inflexo na histria da filosofia pr-socrtica pode-se citar:

    Burnet (1994), Jaeger (1952), Guthrie(1969), Mourelatos (1970), Barnes (1982), Curd (2004) e Graham (2006) 11

    Sobre a inovao disciplinar representada pela inveno da filosofia grega, no contexto da historiografia moderna

    baseada na ideia moderna e acadmica de disciplina e em outras abordagens recentes da filosofia grega, veja-se

    Lks (2007, 2010).

  • 27

    existirem muitos e extensos fragmentos conservados desse pr-socrtico, a vasta historiografia

    disponvel sobre o agrigentino est longe de chegar a um consenso sobre como se deve lidar com

    as vrias evidncias aparentemente contraditrias ligadas a Empdocles. Para ficar apenas com

    um exemplo mais recente, foi necessrio ter achado um novo papiro com evidncias de transies

    temticas dentro de uma mesma sequncia de versos de Empdocles para que certo consenso a

    respeito da compatibilidade entre os dois poemas de Empdocles fosse analisada com maior

    ateno pelos historiadores, embora, mesmo sem levar em conta os novos fragmentos, houvesse

    uma srie de pontos de concordncia entre os poemas e tal incompatibilidade no tenha sido

    enfatizada pelos antigos. Da mesma forma, ainda recente a tentativa de explicar o importante

    dilogo entre Parmnides e os pluralistas posteriores12

    .

    A historiografia tradicional frequentemente interpretou o sistema de Empdocles como

    uma tentativa de reconciliar o imobilismo de Parmnides com o mobilismo de Herclito. Burnet

    contesta essa afirmao dizendo que seria difcil encontrar traos de Herclito na abordagem de

    Empdocles, mas mantm a ideia de que Empdocles tenha conciliado a abordagem monista de

    Parmnides com algum tipo de abordagem cosmolgica (Burnet, 1994). Burnet entende que haja

    uma grande incompatibilidade entre o poema de Parmnides e a filosofia de Herclito. De modo

    que, em Parmnides, a mudana enxergada no mundo seja apenas uma iluso provocada pela

    incapacidade dos mortais de enxergar o Uno. Segundo ele:

    Em vez de contemplar o Uno com um impulso para a mudana, como fizera Herclito, e

    assim torn-lo capaz de explicar o mundo, Parmnides rejeitou a mudana como uma

    iluso. Ele mostrou de uma vez por todas que, se levamos o Uno a srio, somos

    obrigados a negar tudo o mais (Burnet, 1994, p.149).

    Apesar dessa suposta diferena radical de opinies entre Parmnides e Herclito, Burnet

    reconhece que tanto Parmnides quanto Herclito postularam a existncia de duas perspectivas de

    investigao: uma do ponto de vista dos homens e outra do ponto de vista divino. KRS tambm

    reconhecem esse ponto em comum13

    . Recentemente tambm Casertano percebeu as similaridades

    12

    Uma das grandes responsveis pela apresentao de uma abordagem historiogrfica dialgica entre Parmnides e

    os pluralistas seguintes tais como Empdocles, Anaxgoras, os Atomistas e at Plato, Curd (2004). Suas principais

    ideias sero expostas mais adiante. 13

    Segundo KRS: A superioridade do deus em relao ao homem, e da viso sinttica das coisas por parte da

    divindade relativamente viso catica dos homens, profundamente sublinhada por Herclito (KRS, 1983, p.

  • 28

    entre os autores, acentuando o carter cosmolgico tanto de Parmnides como de Herclito, e

    mostrando que a perspectiva fenomnica dos mortais e a realidade divina no so incompatveis.

    Segundo ele, referindo-se unidade dos opostos em B62, B67, B88 e B76 de Herclito:

    (...) no se exclui que os fragmentos tenham tambm um valor cosmolgico, e neste caso

    no estariam muito distantes da perspectiva jnica e parmenidiana segundo a qual no h

    incompatibilidade entre a afirmao da eternidade e a de um nascimento-morte de todas

    as coisas, entre a afirmao da imobilidade e a do movimento, porque as primeiras se

    referem realidade entendida como uno-todo e as segundas realidade entendida como

    multiplicidade de fenmenos (Casertano, 2009, p. 105).

    Tanto Burnet, quanto KRS e Casertano, entendem que haja pontos de concordncia e de

    discordncia entre Parmnides e Herclito igualmente fortes. E todos eles partem de uma anlise

    existencial do poema de Parmnides, ou seja, assumem que o verbo ser no fragmento B2 de

    Parmnides deva ser traduzido e interpretado como existe ao invs de de tipo copulativo.

    Como tentarei mostrar mais adiante, essa traduo do verbo torna o poema de Parmnides

    insustentvel em seus prprios versos. Em seguida, argumentarei que a filosofia ps-

    parmenidiana, mesmo seguindo caminhos diferentes, teve fortes influncias de Parmnides

    entendido pela interpretao copulativa do verbo ser. Apresentarei a esse respeito a interpretao

    de Mourelatos (1970) e Curd (2004).

    Nos ltimos anos, vrios historiadores vem tentando reconstruir o dilogo entre os pr-

    socrticos com a inteno de deixar o debate entre esses autores mais afinado diante da srie de

    evidncias fragmentrias e aparentemente contraditrias que restaram desses filsofos. No que se

    refere linha de continuidade que liga Herclito, Parmnides e Empdocles, o estudo de Curd

    intitulado The Legacy of Parmenides de singular importncia. Curd argumenta de maneira

    bastante convincente que o monismo de Parmnides compatvel com a perspectiva cosmolgica

    dos pluralistas posteriores. Segundo ela a perspectiva heraclitiana do constante devir foi

    fundamental para a reforma metodolgica da investigao cosmolgica feita por Parmnides:

    Do ponto de vista de Parmnides, h dois aspectos da teoria dos opostos de Herclito

    que so mais importantes. O primeiro a alegao de que haja uma unidade de opostos;

    o segundo o papel dos opostos em explicar o vir-a-ser e outros tipos de mudanas.

    Esses dois aspectos esto relacionados porque a unidade dos opostos que permite a

    198). Sobre essa questo compare-se os fragmentos B78 e B102 de Herclito com os fragmentos B1.28-32 e B8.50-

    52 de Parmnides. Sobre o paralelo entre Parmnides e Herclito, veja-se tambm Graham (2002).

  • 29

    mudana ordenada. Os opostos so intrinsecamente instveis. Sua tendncia natural seria

    transformarem-se um no outro; essa a fonte da mudana, nascimento e morte (Curd,

    2004, p.121)14

    .

    Segundo Curd, do ponto de vista do argumento apresentado por Parmnides nas trs

    partes de seu poema, no possvel fazer uma abordagem cosmolgica genuna com entidades

    opostas. Ele no deixou claro quantas entidades genunas so necessrias para dar conta da

    mudana que existe no mundo. Mas de seu poema, depreende-se que seriam necessrias uma

    pluralidade de entidades genunas, cada uma coerente com os critrios descritos no caminho da

    verdade, seguindo os sinais daquilo que do en () para que as mudanas fenomnicas

    que vemos no mundo sejam explicadas a partir da mistura e separao dessas entidades

    imutveis. Segundo Curd, o poema de Parmnides se torna um todo coerente se o considerarmos

    como um todo: o promio mostrando a natureza da verdade e da opinio e a atitude do jovem

    diante dessas duas possibilidade de pensar e conhecer, a parte da verdade fornecendo os critrios

    do que seja uma entidade genuna, e a parte da opinio oferecendo um modelo cosmolgico

    decepcionante no que diz respeito s entidades genunas opostas, ou heraclitianas (Curd, 2004).

    Embora Empdocles aceite os preceitos parmenidianos acerca do en, ele segue o

    costume dos mortais (B.9), utilizando os conceitos de gerao e destruio, e faz uma abordagem

    cosmolgica pluralista, maneira daquela mostrada por Parmnides na Dxa (), utilizando

    mistura e separao de elementos para explicar a multiplicidade dos fenmenos do ksmos

    (). Assim, tomando-se o conceito tradicional de monismo como a afirmao de que s

    existe uma entidade no ksmos, Empdocles parece abandonar o sistema monista de Parmnides

    e dos jnicos. No entanto, no h sinais de que Empdocles tenha discordado de Parmnides. As

    evidncias mostram Empdocles aprovando a perspectiva parmenideana, acrescentando

    elementos originais na investigao cosmolgica e acomodando imagens parmenideanas, como a

    da esfera homognea de Parmnides, em sua cosmologia (Graham, 2010). Desse modo, preciso

    reconsiderar o tipo de monismo adotado por Parmnides com o tipo de pluralismo adotado por

    Empdocles, de modo a tornar as evidncias existentes coerentes, no s internamente, no

    14

    Orig.: From Parmenides point of view, there are two aspects of Heraclituss theory of opposites that are most

    important. The first is the claim that there is a unity of opposites; the second is the role of the opposites in accounting

    for coming-to-be and other sorts of changes. These two aspects are related, because it is the unity of the opposites

    that allows for ordered change. The opposites are inherently unstable. Their natural tendency would be to shift back

    and forth into each other; this is the source of change, birth, and death.

  • 30

    contexto de cada autor, como tambm do ponto de vista da tradio filosfica da poca, que se

    constituiu atravs da disputa interna e externa na criao do campo intelectual da filosofia (Lks,

    2012).

    2.1 Tipos de Monismo e Pluralismo

    2.1.1 Monismos

    Segundo a definio de Curd (2004), possvel distinguir pelo menos trs variedades de

    monismo: o material, o numrico e o predicativo:

    1. Material: Monismo adotado por Tales e Anaxmenes, consistente com a existncia de

    muitos objetos e itens no mundo, sendo cada um desses feito de uma modificao de um

    princpio material.

    2. Numrico: Monismo tradicionalmente atribudo a Parmnides e Melisso, afirma que h

    apenas uma coisa ou item no universo. No est claro se essa nica coisa pode admitir

    mais de um predicado. A depender disso, ser ou no possvel dizer algo alm de aquilo-

    que- .

    3. Predicativo: afirmao de que cada coisa que seja possa ser apenas uma coisa, possa

    carregar apenas o predicado que indica o que tal coisa , e deva sustentar esse predicado

    de modo particularmente forte. Assim sendo, para ser uma entidade genuna, uma coisa

    deve ser uma unidade predicativa, com uma nica indicao do que , mas no o caso

    que necessariamente exista apenas uma tal coisa. Com relao a esse tipo de monismo

    Curd diz: Se algo , digamos F, deve ser todo, apenas e completamente F. No monismo

    predicativo, uma pluralidade numrica de tais seres-unos (como se pode cham-los)

    possvel (Curd, 2004, p.66).15

    Por extenso definio de Monismo Numrico dada acima, pode-se chamar Pluralismo

    Numrico teoria segundo a qual existe mais de uma coisa ou item no universo.

    15

    Orig.: If it is, say F, it must be all, only, and completely F. On predicational monism, a numerical plurality of such

    one-beings (as we might call them) is possible.

  • 31

    Assim definidos, segundo Curd, uma abordagem cosmolgica pode sustentar

    coerentemente algumas combinaes entre essas abordagens tericas, dentre elas:

    Monismo Predicativo e Monismo numrico

    Monismo Numrico e Monismo Material

    Monismo Material e Pluralismo Numrico

    Monismo Predicativo e Pluralismo Numrico

    Para dar conta da tarefa de discutir o tipo de monismo adotado por Parmnides, o tipo de

    leitura feita pelos pluralistas seguintes e o debate entre os intrpretes de Parmnides e dos

    pluralistas seguintes, faz-se necessrio comear com uma discusso sobre o uso do verbo ser no

    segundo fragmento de Parmnides.

    2.1.2 Sentidos do Verbo Ser em Parmnides

    Boa parte da compreenso do poema de Parmnides est vinculada traduo que se faz

    do verbo ser no fragmento B2. Teoricamente, nesse contexto, pode-se traduzi-lo por ou por

    existe. E em cada uma dessas tradues possvel fazer mais de uma interpretao lgica do

    termo. Cada uma dessas acepes define um tipo de monismo por parte de Parmnides e um tipo

    de pluralismo adotado por aqueles que seguiram algum de seus princpios. Em uma exposio

    semanticamente aberta do fragmento B2, pode-se dizer que, neste momento do poema,

    Parmnides apresenta os nicos caminhos (hodo monai - ) de investigao

    possveis: Um, por um lado (h mn - ), que /existe (hps stin ), e outro, por

    outro lado (h d '), que no /no existe (hs ouk stin ). Com relao ao

    primeiro caminho, a deusa diz que caminho de persuaso (Peithos esti kleuthos

    ), pois segue a verdade (Althii gr opde ). Com relao

    ao segundo caminho, a deusa diz que totalmente inescrutvel (pan-a-peutha - --).

    Mais a frente, em B8.1-2, Parmnides retoma o caminho que /existe, e apresenta uma srie de

    sinais sobre esse caminho. Aps a apresentao desses sinais, em B8.50 Parmnides cessa o

    discurso sobre a verdade e apresenta o mundo decepcionante das opinies dos mortais.

  • 32

    esse o centro do argumento de Parmnides. E a discusso inteira depende do tipo de

    predicao adotada no primeiro caminho de investigao, o que depende de um bom

    entendimento da funo do verbo ser em B2.

    Ao longo do tempo, os vrios filsofos e historiadores alinharam-se a vrias correntes de

    interpretao baseadas em diferentes apropriaes do verbo ser em Parmnides16

    . Uma linha de

    interpretao interessante para o contexto deste trabalho que leva em conta elementos histrico-

    culturais para entender os pr-socrticos aquela iniciada por Mourelatos (1970), e que vem

    influenciando interpretes como Nehamas (1981) e Curd (2004), responsveis por um tipo de

    interpretao do poema de Parmnides que pe seus argumentos em forte dilogo com os

    filsofos posteriores influenciados de algum modo por ele. Segundo esses autores, o poema de

    Parmnides estatui princpios metafsicos para a investigao da natureza, fornecendo

    questionamentos importantes para a investigao da natureza por parte da filosofia seguinte,

    comeando com os pluralistas, Empdocles e Anaxgoras, at alcanar Plato e Aristteles e, por

    meio deles, toda a tradio filosfica ocidental. Segundo Curd:

    Ao contrrio de alguns comentadores, eu no tomo Parmnides como algum que tenha

    proibido ou negado a possibilidade de uma cosmologia genuna. Ao contrario, ele tinha

    como objetivo criticar explicaes anteriores da natureza das coisas e ao mesmo tempo

    formular requisitos metatericos para uma exposio cosmolgica aceitvel. Tal

    exposio deve estar fundamentada em entidades metafisicamente genunas e deve usar

    mecanismos que no comprometam a realidade de tais coisas bsicas. Na seo do

    poema sobre a altheia (), Parmenides argumenta que aquilo-que- de tal modo

    que no vem a ser, no morre, no muda e que qualquer coisa que seja deve ser um todo

    de um mesmo tipo. Apenas o que genuinamente nesse sentido pode ser um objeto de

    pensamento genuno e dessa maneira de conhecimento ou entendimento (veja-se B2, B3,

    B8.1-6, com o argumento inteiro em B8). Qualquer exposio confivel do cosmos que

    ir contar como conhecimento deve estar adequadamente fundamentada naquilo-que-.

    Qualquer coisa que seja no sentido sancionado pelos argumentos de B8 conta como algo

    metafisicamente bsico e poderia servir como fundamento para uma explicao

    teoricamente aceitvel do mundo que percebemos (Curd, 2004, p. xvii xviii)17

    .

    16

    Segundo Palmer (2009), essas vrias interpretaes podem ser classificadas em: Estritamente Monista, Lgico-

    Dialtica, Via Meta-Princpios, Aspectual e Modal. 17

    Orig.: Unlike some commentators, I do not take Parmenides to have forbidden or denied the possibility of genuine

    cosmology. Rather, his aim is to criticize previous accounts of the nature of things while formulating metatheoretical

    requirements for an acceptable cosmological account. Such an account must be grounded in metaphysically genuine

    entities and use mechanisms that do not undermine the reality of those basic things. In the Altheia section of the

    poem, Parmenides argues that what-is is in such a way that it does not come to be, pass away, or alter, and that

    anything that is must be a whole of a single kind. Only what genuinely is in this way can be an object of genuine

    thought and so of knowledge or understanding (see B2, B3, B8.1-6, with the full arguments in B8). Any reliable

    account of the cosmos that will count as knowledge must be suitably grounded in what-is. Anything that is in the

  • 33

    Tambm Mourelatos acredita que o argumento de Parmnides no seja contrrio ao

    Pluralismo. Segundo ele, o argumento de Parmnides contrrio ao dualismo:

    Se o monismo de Parmenides essencialmente um no-dualismo, ento a relao entre

    sua filosofia e aquela de Zeno e Melisso, e a relao entre a sucesso eleata e os

    pluralistas do quinto sculo, se torna interessantemente complexa e dialtica. Do ponto

    de vista lgico, o no-dualismo compatvel com a pluralidade numrica, desde que se

    tenha o cuidado de excluir qualquer relao de contrariedade ou oposio entre pares de

    elementos reais (Mourelatos, 1970, p.133)18

    .

    Tal apropriao de Parmnides, tanto em Mourelatos, quanto em Curd, depende de uma

    forte crtica ao sentido existencial do verbo ser em B2. Ambos assumem que tal interpretao foi

    bastante influente e que existe forte consenso entre os crticos de que o verbo ser em suas

    formas conjugada (stin ), infinitiva (enai ) e participial (en ) apresenta

    fora existencial em B2 e nas ocorrncias em que o verbo ser constitui uma referncia B2.

    H ainda a possibilidade de considerar o stin como uma confuso entre predicao

    copulativa () e o sentido existencial (existe). Tal interpretao, levada a cabo por Guido

    Calogero sugere que a mensagem do poema de Parmnides se reduz ao fato de que os

    julgamentos positivos so possveis apenas no caso em que eles dizem apenas , enquanto que

    julgamentos negativos so impossveis, uma vez que eles no se referem a nada. Segundo essa

    interpretao, a adio de qualquer predicado predicao copulativa seria equivalente insero

    de um no , uma vez que a incluso de um predicado implicaria na excluso de outros

    predicados. Assim, a interpretao do poema de Parmnides se reduziria a essa aplicao

    copulativa do sentido de stin associada ao sentido existencial no fato de que o nico predicado

    logicamente coerente com o argumento de B2 seria algo que fosse um, todo, imutvel, imvel,

    homogneo, contnuo, indiferencivel, etc (Calogero, 1932, apud Mourelatos, 1970). Mourelatos

    critica a interpretao de Calogero, estendendo a crtica tambm interpretao de Owen de

    Parmnides em Eleatic Questions (Owen, 1960), dizendo que sua teoria extremamente pobre,

    way sanctioned by the arguments of B8 counts as metaphysically basic and could serve as the foundation for a

    theoretically acceptable account of the world that we perceive. 18

    Orig.: If Parmenides monism is essentially a nondualism, then the relationship between his philosophy and that of

    Zeno and Melissus, and the relationship between the Eleatic succession and the fifth-century pluralists, becomes

    interestingly complex and dialectical. So far as logic is concerned, nondualism is compatible with numerical

    plurality, provided one is careful to exclude any relations of contrariety or opposition between pairs of real elements.

  • 34

    que suas concluses nos levariam a crer que Parmnides no estaria interessado em nada

    concreto, substancial e relacionado de algum modo com a tradio cosmolgica:

    Se assumirmos uma confuso entre o "" da predicao copulativa e o "" existencial, o

    argumento de Parmnides se torna muito fcil. A complexa estrutura de B8, a extenso

    do poema, a dupla explicao, a forma pica, o promio, as metforas tudo isso se

    torna suprfluo se a inteno de Parmnides for meramente chamar a nossa ateno para

    o fato de que (genuinamente) s proposies positivas so possveis, e de que o universo

    deve ter a simplicidade de uma proposio (genuinamente) positiva. Isso, naturalmente,

    uma reduo ad absurdum da filosofia antes mesmo de Grgias. Se Parmnides tivesse

    sido compreendido por seus contemporneos pela linha interpretativa de Calogero, a

    filosofia teria caminhado direto para a produo de paradoxos dos megricos. A relao

    entre Parmnides e Empdocles, Anaxgoras, e os atomistas teria sido baseada em um

    mal-entendido (Mourelatos, 1970, p.54)19

    .

    Um dos importantes trabalhos que contriburam para a crtica do sentido do verbo ser

    grego, no s em Parmnides, como no contexto da filosofia grega em geral, foi o trabalho de

    Kahn intitulado The Greek Verb To Be and the Concept of Being. Segundo ele, quando utilizado

    sem predicados, o valor de stin () no significa existe e sim o caso, verdade, etc.

    Segundo Kahn, referindo-se ao sentido de enai () em Parmnides:

    Sua tese inicial, de que o caminho da verdade, convico, e conhecimento o caminho

    do que " ou "que " (hs esti), pode ento ser entendida como uma afirmao de que o

    conhecimento, a crena verdadeira, e a verdadeira declarao esto todos

    indissoluvelmente ligados a "aquilo que o caso" - no meramente ao que existe, mas ao

    que o caso... A doutrina do Ser de Parmnides antes de tudo uma doutrina

    relacionada realidade como o que o caso (Kahn, 1966, p.251, apud Mourelatos,

    1970, p.48)20

    .

    Fundamentando uma opinio generalizada sobre filosofia grega, Kahn notou que a

    ontologia dos gregos se refere fundamentalmente a questes relacionadas essncia das coisas, e

    19

    Orig.: If we assume a confusion of the is of copulative predication with the is of existence, Parmenides

    argument becomes too easy. The elaborate structure of B8, the length of the poem, the double account, the epic form,

    the proem, the imagery all these become otiose if Parmenides intention was merely to call our attention to the fact

    that only (genuinely) positive propositions are possible, and that the universe must have the simplicity of a

    (genuinely) positive proposition. That, of course, is a reduction ad absurdum of philosophy even before Gorgias. Had

    Parmenides been understood by his contemporaries along the lines of Calogeros interpretation, philosophy should

    have moved straight into the paradox-mongering of the Megarians. The relation of Parmenides to Empedocles,

    Anaxagoras, and the atomists would have been based on a misunderstanding. 20

    Orig.: His initial thesis, that the path of truth, conviction, and knowledge is the path of what is or that it is (hs

    esti), can then be understood as a claim that knowledge, true belief, and true statement are all inseparably linked to

    what is so not merely to what exists but to what is the case Parmenides doctrine of Being is first and

    foremost a doctrine concerning reality as what is the case.

  • 35

    no existncia (Mourelatos, 1970). Partindo de Kahn e criticando o sentido misto de Calogero21

    ,

    Mourelatos far uma apropriao bastante original do sentido veritativo do verbo enai em B2,

    naquilo que ele chamou de predicao especulativa. Para melhor compreender o sentido proposto

    por esses autores, seguindo a sugesto de Mourelatos (1970), segue abaixo a proposta de traduo

    de B2 com o sentido copulativo do verbo stin (), , onde tanto o sujeito quanto o

    predicado aparecem em branco:

    ' ' , ,

    ,

    ( ),

    ' ,

    ( )

    .

    Pois bem, agora eu declamarei, e tu, ouvindo, memoriza a mensagem

    Os nicos caminhos de investigao que so para pensar [conhecer]:

    Um, que ____ ____ e que no possvel que ____ no seja____,

    o caminho da Persuaso ( Pois segue a Verdade)

    O outro, que ____no ____ e que necessrio que ____no seja ____,

    Este eu te digo que uma via totalmente insondvel

    Pois nem conhecerias aquilo que no ____ (pois no executvel)

    Nem apontarias

    (DK 28 B2)

    Mourelatos sugere quatro possibilidades de preencher os espaos em branco do sujeito e

    do predicado. Na primeira, associando substantivos a adjetivos, os caminhos seriam entendidos

    como descries ou colees de fatos (histora, ), tal como em Parmnides obscuro.

    Na segunda, os caminhos seriam entendidos como dois modos de atribuir coisas a uma classe ou

    tipo, como catalogao ou classificao segundo a natureza (kat phsin diaresis,

    ), relacionando substantivo com substantivo, tal como em Azul uma cor

    (Mourelatos, 1970). E em uma terceira possibilidade, o seria interpretado logicamente com

    a funo de identidade, de conectar coisas. Defendendo uma viso diferente dessas ltimas trs,

    Mourelatos, em uma quarta possibilidade, sustenta uma interpretao que, por um lado, remove

    21

    A mesma crtica ser feita por Curd com relao a Owen (Curd, 2004).

  • 36

    as distines, assim como o sentido da identidade, e por outro estabelece uma relao assimtrica,

    assim como o predicativo. Assim sendo, se X Y, no necessrio que Y seja X, pois

    esse sentido remeteria primeira possibilidade, ao stin () da classificao, ao sugerir que o

    predicado (termo da direita) seja uma condio necessria para o sujeito (termo da esquerda).

    Mas, ao contrrio, tal interpretao entende a predicao como a afirmao de uma nova

    descoberta. Alm disso, uma vez que o predicado tenha sido dado, o sujeito de algum modo

    redundante, suprimvel, redutvel ao predicado. Do mesmo modo, dado esse predicado, ele

    de algum modo final, elementar, no havendo necessidade nem possibilidade de nenhuma outra

    predicao desse tipo (Mourelatos, 1970, p. 57).

    2.1.3 Sentido Existencial

    Ao longo da histria da crtica, a traduo de stin () por existe e de en () por

    aquilo que existe foi bastante influente. Segundo Curd, boa parte dos interpretes que seguiram

    essa interpretao tais como Guthrie(1969), KRS(1983), Barnes(1982), McKirahan(1994),

    Furley(2006), Stokes(1971), Gallop(1984), Finkelberg(1988), OBrien(1987)22

    , etc (Curd, 2004)

    foram fortemente influenciados pelo artigo Eleatic Questions (Owen, 1960). Segundo Owen, o

    sujeito do verbo em B2 deveria ser interpretado como aquilo que pode ser pensado ou falado,

    uma vez que, aquilo que no se pode pensar ou falar, argumenta ele, no existe:

    (...) no preciso provar que o sujeito do argumento pode ser falado e pensado, pois

    estamos falando e pensando nele. Da a tentao de dizer que o stin no tem sujeito;

    pois o argumento de Parmnides no precisa supor nada exceto que estamos pensando e

    falando sobre alguma coisa, e isso parece ser garantido, de qualquer modo, pelo fato de

    estruturarmos e seguirmos o argumento. O sujeito completamente formal, at ele ser

    preenchido com os atributos (comeando com a existncia) que so deduzidos para ele

    (Owen, 1960, p. 95)23

    .

    22

    Para maiores detalhes sobre essa tradio historiogrfica veja-se Curd, 2004, p.27, n.9. 23

    Orig.: () it needs no proving that the subject of the argument can be talked and thought about, for we are talking

    and thinking about it. Hence indeed the temptation to say that the has no subject; for Parmenides argument

    need assume nothing save that we are thinking and talking of something, and this seems to be guaranteed by our

    framing or following the argument at all. The subject is quite formal, until it is filled in with the attributes (beginning

    with existence) that are deduced for it.

  • 37

    Owen rejeitou a ideia de que Parmnides tenha escrito dentro de uma tradio

    cosmolgica que o ligasse tanto aos antecessores jnicos quanto aos sucessores itlicos. Ao

    contrrio, segundo ele, o eleata estaria pondo um fim especulao jnica:

    A comparao com o cogito de Descartes inevitvel: ambos os argumentos rompem

    com premissas herdadas, ambos partem de um pressuposto cuja negao peculiarmente

    auto-refutvel. Isso parece ser suficiente para estabelecer que, no sentido descrito,

    Parmnides no tenha apoiado seu argumento em suposies derivadas de cosmlogos

    anteriores. Para mim, parece razovel coloc-lo como o mais radial e o pioneiro mais

    consciente entre os pr-socrticos conhecidos por ns (Owen, 1969, p.95)24

    .

    Aps um perodo de larga influncia do stin existencial de Owen, uma srie de

    interpretes comearam a questionar a opinio de Owen adotando verses copulativas ou mistas

    para o verbo ser em Parmnides25

    . Esses interpretes levaram em conta, basicamente dois

    problemas: qual o sujeito de stin em B2 e qual o significado de stin no poema de

    Parmnides em geral. Uma vez que um determinado sentido tenha sido escolhido em B2, parece

    coerente que esse mesmo sentido deva ser aplicado em outras passagens como B3, B6 e B8 sobre

    o en. Curd nota que, embora haja desacordo entre os vrios intrpretes sobre o sentido escolhido

    para o verbo ser, no h desacordo sobre quais sejam os fragmentos essenciais. Os interpretes das

    vrias tendncias citam os mesmos fragmentos para sustentar as diferentes opinies (Curd, 2004).

    Os adeptos de concepes copulativas do verbo ser em B2, de tipo veritativa no sentido de

    Kahn identidade de fatos ou predicativa no sentido forte de Mourelatos e Curd identidade

    de objetos costumam utilizar mais evidncias e exemplos de fora dos textos de Parmnides,

    enquanto que os adeptos de concepes existenciais, tais como Owen, procuram se limitar ao

    texto. Segundo Curd:

    Aqueles que interpretam o esti como existe esto menos inclinados a procurar

    paralelos fora de Parmnides (exceto, talvez, no Sofista de Plato, onde eles tambm

    veem um sentido fundamentalmente existencial em ao) Isso consistente com o ponto

    de vista (que acredito estar equivocado) segundo o qual Parmnides no estava

    24

    Orig.: The comparison with Descartes cogito is inescapable: both arguments cut free of inherited premisses, both

    start from an assumption whose denial is peculiarly self-refuting. This seems sufficient to establish that Parmenides

    does not, in the sense described, rest his argument on assumptions derived from earlier cosmologists. To me it seems

    sufficient to establish him as the most radical and conscious pioneer known to us among the Presocratics. 25

    Entre eles pode-se citar: Kahn (1966), Mourelatos (1970), Furth(1968), Furley (1973), Goldin (1993) e Mason

    (1988).

  • 38

    preocupado com questes cosmolgicas e pode ser entendido independentemente de

    seus antecessores (Curd, 2004, p.34-35)26

    .

    Assim, uma vez que se assuma que Parmnides estava firmemente ligado tradio

    cosmolgica pr-socrtica, interessado em reformar a investigao cosmolgica, preciso dar

    conta da ampla tradio hermenutica que data de Plato de que Parmnides era um Monista

    Numrico, ou seja, de que Parmnides acreditava que existe apenas uma coisa, ora chamada de

    o Um, ora de o Todo e ora de o Ser. Segundo Curd, os primeiros responsveis por essa

    interpretao foram Plato, Aristteles e Teofrasto. E atualmente, na esteira da historiografia

    Zeller-Dielsiana baseada na autoridade desses filsofos, essa tradio foi retomada (Mourelatos,

    1970). H uma enorme diferena entre o Parmnides histrico e o Parmnides de Plato. O

    primeiro um estudioso daquilo que e da verdade, enquanto que o segundo um estudioso do

    Um. Segundo Mourelatos, atualmente se reconhece que a verso platnico-aristotlica da

    filosofia de Parmnides, alm de ter sido filosoficamente tendenciosa devido ao interesse

    dialtico desses filsofos, foi fortemente influenciada pelas ideias de Melisso, Zeno, alm de

    doutrinas sobre o Um da academia (Mourelatos, 1970). Sobre a tradio antiga ligada a

    interpretao existencial do stin de Parmnides, Curd diz:

    Um dos mais antigos registros dessa viso de Parmnides est no dilogo Parmnides de

    Plato, no qual Zeno se autodescreve como tendo defendido o monismo de seu mestre

    dos ataques daqueles que acham tal viso ridcula (Prm. 128b7-e4). Parmnides

    descrito como defensor de sua prpria tese de que existe um Um como um sujeito para

    o passatempo trabalhoso, que constitui a segunda parte do dilogo (Prm. 137b3-4).

    Explicaes anlogas do monismo de Parmnides so encontradas em Aristteles e em

    Teofrasto, e na doxografia que deriva deles (Curd, 2004, p.64)27

    .

    Segundo os argumentos elencados em DK28 B2 e B8, no h nada fora daquilo que

    (en) que contribua para caracteriz-lo. Isso no implica necessariamente que exista apenas uma

    coisa que seja. Como foi dito antes, o monismo predicativo no incompatvel com o pluralismo

    26

    Orig.: (...) Those who interpret the esti as exist are less inclined to look for parallels outside of Parmenides

    (except, perhaps, in Plato Sophist, where they see an existential sense primarily at work as well). This is consistent

    with the view (which I hold to be mistaken) that Parmenides was not concerned with cosmological issues and can be

    understood independently of his predecessors. 27

    Orig.: One of the earliest records of this view of Parmenides is in Platos dialogue, the Parmenides, in which Zeno

    describes himself as having defended his masters monism from the attacks of those who find such a view ridiculous

    (Prm. 128b7-e4). Parmenides is shown as adopting his own thesis that there is a One as a subject for the laborious

    game that constitutes the second part of the dialogue (Prm. 137b3-4). Similar accounts of Parmenides monism are

    found in Aristotle and Theophrastus, and in the doxography that descends from them.

  • 39

    numrico. Para que essas duas abordagens sejam compatveis, necessrio que, em um

    pluralismo numrico, cada entidade seja una do modo predicativo indicado pelos argumentos em

    B8. Por outro lado, se o stin for entendido existencialmente, e o sujeito dele for algo como o

    todo, ento o monismo numrico ser plausvel (Curd, 2004). Um dos trechos mais citados pelos

    adeptos desse tipo de monismo em Parmnides so os versos B 8.22-25, onde dito que o en

    indivisvel (oud diairetn estin ), todo semelhante (pn estin homoon

    ), todo cheio daquilo que (pn d mplen estin entos

    ) e todo contnuo (xynekhs pn estin ). Assim, em uma viso

    existencial do en, seu carter continuo se torna pleno, no permitindo separao entre entidades

    e levando concluso de que apenas o todo, o ser ou o Um existe da forma indicada pelos

    argumentos de B8, e as mudanas enxergadas no mundo pelos homens so apenas vises

    distorcidas de mortais que consideram o existir e o no ser da mesma forma (broto ... plein te

    ka ouk enai tautn nenmistai ... ).

    Para resolver esse impasse, Curd recorre aos fragmentos que relacionam o pensamento, a

    investigao e o en. Para ela, est claro que nos () e noen () em Parmnides referem-

    se primeiramente a pensamento, concepo e entendimento, mais do que a conhecimento (Curd,

    2004). Em Parmnides, h uma conexo fundamental entre nos e a investigao sobre aquilo-

    que-, pois, seguindo a deciso de B2 sobre o caminho da verdade, em B6.1 Parmnides diz que

    necessrio que aquilo-que- para dizer e pensar (noen) seja, pois para ser28

    . E mais adiante,

    associa aos mortais bicfalos (B6.5), para os quais ser e no ser o mesmo (B6.8), um

    pensamento errante (plaktn non ). Em B7.2 a deusa manda o jovem desviar o

    pensamento (nma ) dessa via de investigao.

    Em todos esses fragmentos, traduzi nos por pensamento. Mas para tornar claro o sentido

    que esse termo tem no contexto grego, faz-se necessrio tomar alguns exemplos de aplicao em

    alguns autores antigos. Referindo-se a nos como compreenso, Herclito disse:

    , .

    Muita instruo no ensina compreenso; Pois teria ensinado Hesodo,

    Pitgoras, e novamente Xenfanes e Hecateu.

    28

    Orig.:

  • 40

    (DK 22 B40)

    Nesse contexto, embora Hesodo, Pitgoras, Xenfanes e Hecateu tenham aprendido

    vrios assuntos e tido vrios pensamentos, faltou-lhes nos, o entendimento p