ers/049/08 parecer i. introdução · sendo que cada um dos hospitais integrado no centro...

23
ERS/049/08 PARECER I. Introdução 1. Por exposição recebida em 1 de Julho de 2008, o Centro Hospitalar do Porto, EPE, entidade prestadora de cuidados de saúde com sede no Largo Professor Abel Salazar, 4099-001 Porto, trouxe ao conhecimento da Entidade Reguladora da Saúde (doravante ERS) as situações ocorridas com quatro utentes de clínicas privadas da cidade do Porto. 2. Tais situações respeitam a utentes que terão sido objecto de intervenções cirúrgicas realizadas por prestadores privados de saúde e que, subsequentemente e por virtude de complicações pós-operatórias, deram entrada, em situação de emergência, nos serviços do Centro Hospitalar do Porto e, in concreto, nos Serviços de Cuidados Intensivos do Hospital Geral de Santo António, entre os meses de Fevereiro e Junho de 2008. 3. Pretende, assim, o Centro Hospitalar do Porto que os factos assim transmitidos sejam considerados, à luz das competências e atribuições da ERS, para os efeitos entendidos por necessários.

Upload: lehanh

Post on 13-Feb-2019

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

ERS/049/08

PARECER

I.

Introdução

1. Por exposição recebida em 1 de Julho de 2008, o Centro Hospitalar do Porto, EPE,

entidade prestadora de cuidados de saúde com sede no Largo Professor Abel

Salazar, 4099-001 Porto, trouxe ao conhecimento da Entidade Reguladora da Saúde

(doravante ERS) as situações ocorridas com quatro utentes de clínicas privadas da

cidade do Porto.

2. Tais situações respeitam a utentes que terão sido objecto de intervenções cirúrgicas

realizadas por prestadores privados de saúde e que, subsequentemente e por virtude

de complicações pós-operatórias, deram entrada, em situação de emergência, nos

serviços do Centro Hospitalar do Porto e, in concreto, nos Serviços de Cuidados

Intensivos do Hospital Geral de Santo António, entre os meses de Fevereiro e Junho

de 2008.

3. Pretende, assim, o Centro Hospitalar do Porto que os factos assim transmitidos sejam

considerados, à luz das competências e atribuições da ERS, para os efeitos

entendidos por necessários.

II.

Enquadramento

II.1. Da competência da ERS

4. De acordo com o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 309/2003, de 10 de Dezembro, a ERS

tem por objecto a regulação, a supervisão e o acompanhamento, nos termos previstos

naquele diploma, da actividade dos estabelecimentos, instituições e serviços

prestadores de cuidados de saúde.

5. As atribuições da ERS, de acordo com o artigo 6.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 309/2003,

de 10 de Dezembro, compreendem “a regulação e a supervisão dos

estabelecimentos, instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde, no que

respeita ao cumprimento das suas obrigações legais e contratuais relativas ao acesso

dos utentes aos cuidados de saúde, à observância dos níveis de qualidade e à

segurança e aos direitos dos utentes”.

6. Constituem objectivos da ERS, em geral, nos termos das alíneas a) e c) do n.º 1 do

artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 309/2003, de 10 de Dezembro “assegurar o direito de

acesso universal e igual a todas as pessoas ao serviço público de saúde”, bem como

“assegurar os direitos e interesses legítimos dos utentes”;

7. Mais se concretiza nas alíneas a) e b) do n.º 2 daquela norma, que, para efeito de

assegurar o direito de acesso dos utentes, incumbe à ERS não só “zelar pelo respeito

da liberdade de escolha nas unidades de saúde privadas”, como também “promover a

garantia do direito de acesso universal e equitativo aos serviços públicos de saúde”.

II.2. Objecto do presente parecer

8. Os factos expostos pelo Centro Hospitalar do Porto respeitam, como já referido, a

situações de utentes que se submeteram a intervenções cirúrgicas em unidades

privadas de saúde mas que, em resultado de complicações pós-operatórias, vieram a

dar entrada nos Serviços de Cuidados Intensivos do Hospital Geral de Santo António;

2

9. Seja em resultado de solicitação de transferência expressa pelos próprios utentes,

seja por decisão dos profissionais responsáveis das referidas unidades privadas de

saúde.

10. Este Hospital presta, assim, aos utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS), os

cuidados necessários à recuperação do seu estado de saúde, na sequência das

intervenções realizadas por prestadores privados.

11. Ora, a análise da exposição do Centro Hospitalar do Porto suscita diferentes

questões, como sejam o enquadramento

(i) do próprio Centro Hospitalar do Porto - onde se inclui, por maioria de razão,

o respectivo serviço de urgência e de cuidados intensivos do Hospital Geral de

Santo António – no âmbito do SNS e sua relação com o direito de acesso

universal ao serviço público de saúde;

(ii) do princípio fundamental da liberdade de escolha nas unidades privadas de

saúde;

(iii) da responsabilidade civil (contratual e extracontratual) no exercício de

funções em unidades privadas de saúde; e

(iv) da responsabilidade, nos termos do Estatuto do SNS, pelos encargos

financeiros incorridos pelo Centro Hospitalar do Porto e decorrentes da

prestação dos cuidados de saúde nas situações em causa.

12. Desde já se refira que tais questões, insitamente complexas, possuem a característica

adicional da novação do seu tratamento conjunto e sistémico.

3

III.

Análise

III.1. O SNS e o direito de acesso universal ao serviço público de saúde

13. O Centro Hospitalar do Porto, EPE foi criado pelo Decreto-Lei n.º 326/2007, de 28 de

Setembro, e é resultado da fusão do Hospital Geral de Santo António, E. P. E., com o

Hospital Central Especializado de Crianças Maria Pia e a Maternidade de Júlio Dinis –

cfr. al. a) do n.º 1 do artigo 1.º do referido diploma.

14. Assim, o Centro Hospitalar do Porto, EPE (e os estabelecimentos no mesmo

integrados, isto é, o Hospital Geral de Santo António, o Hospital Maria Pia e a

Maternidade de Júlio Dinis) acha-se integrado no SNS, o qual

“(…) abrange todas as instituições e serviços oficiais prestadores de

cuidados de saúde dependentes do Ministério da Saúde e dispõe de

estatuto próprio.” – cfr. n.º 2 da Base XII da Lei de Bases da Saúde – Lei n.º

48/90, de 24 de Agosto (publicada no DR, I Série, n.º 195, 24/08/1990),

com as alterações introduzidas pela Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro;

15. E que é constituído, então, pelo conjunto de operadores1 – in casu públicos - que

garante a imposição constitucional de “garantir o acesso de todos os cidadãos,

independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina

preventiva, curativa ou de reabilitação” – cfr. alínea a) do n.º 3 do artigo 64.º da

Constituição da República Portuguesa.

16. Outrossim, o Centro Hospitalar do Porto, EPE desempenha um papel de elevada

relevância na prossecução de tal imposição.

1 O SNS é definido como o “(…) conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e serviços

oficiais prestadores de cuidados de saúde, funcionando sob a superintendência ou a tutela do

Ministro da Saúde” - cfr. artigo 1.º do Estatuto do SNS aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15

de Janeiro de 1993.

4

17. Na realidade, as instituições e serviços são classificadas, por Portaria, em função das

suas responsabilidades e valências efectivamente exercidas – cfr. n.º 1 do artigo 12.º

do Estatuto do SNS aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro de 1993;

18. Sendo que cada um dos hospitais integrado no Centro Hospitalar do Porto (isto é,

Hospital Geral de Santo António, Hospital Maria Pia e Maternidade de Júlio Dinis) foi e

é considerado e classificado, no seio do SNS, como hospital central – cfr. Portaria n.º

567/2006, de 12 de Junho, com a última redacção resultante da Portaria n.º 110-

A/2007, de 23 de Janeiro;

19. Possuindo, consequentemente, o Centro Hospitalar do Porto uma extensa área

geográfica de influência, a qual abrange os Distritos de Bragança, Vila Real, parte do

Distrito do Porto, Área Ocidental do Porto e Concelhos a Sul do Rio Douro2.

20. E tendo a Lei de Bases da Saúde, na sua Base XXV, definido como beneficiários do

SNS “todos os cidadãos portugueses”, sejam eles residentes em Portugal, ou residam

no estrangeiro, mas também “[...] os cidadãos nacionais de Estados membros das

Comunidades Europeias, nos termos das normas comunitárias aplicáveis”; “[...] os

cidadãos estrangeiros residentes em Portugal”; e os “[...] os cidadãos apátridas

residentes em Portugal”, é então incumbência do Centro Hospitalar do Porto prestar

os seus serviços de saúde (e assim efectivar os seus direitos de acesso aos cuidados

de saúde) a todos os beneficiários do SNS, da sua área de influência, que deles

necessitem;

21. O que de sobremaneira releva quando tais necessidades de acesso à prestação de

cuidados de saúde se revistam de carácter emergente ou urgente;

22. E ainda que tais necessidades derivem de complicações pós-operatórias

subsequentes a intervenções cirúrgicas realizadas por prestadores privados

(independentemente de a procura dos seus serviços ser resultado de solicitação de

transferência expressa pelos próprios utentes, ou de a mesma se efectuar por decisão

dos profissionais responsáveis das referidas unidades privadas de saúde).

2 Cfr. informação disponibilizada pela ARS Norte no seu site (www.arsnorte.min-saude.pt).

5

23. Ora, dos factos transmitidos pelo Centro Hospitalar do Porto à ERS resulta que o

mesmo deu cabal cumprimento a uma tal incumbência de garantir o direito de acesso

aos beneficiários do SNS que, por virtude das referidas complicações pós-operatórias,

foram transferidos de unidades privadas de saúde para o Hospital Geral de Santo

António.

III.2. A liberdade de escolha nas unidades privadas de saúde

24. O acesso de todos os cidadãos aos cuidados de saúde é, como resultado da opção

constitucionalmente consagrada, assegurado através da criação de um serviço

nacional de saúde universal, geral e, tendo em conta as condições económicas e

sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito.

25. A Lei de Bases da Saúde, aprovada em concretização da referida imposição

constitucional, estabeleceu na sua Base XXIV como características do SNS

“a) Ser universal quanto à população abrangida;

b) Prestar integradamente cuidados globais ou garantir a sua prestação;

c) Ser tendencialmente gratuito para os utentes, tendo em conta as

condições económicas e sociais dos cidadãos;

(...)”.

26. Por outro lado, os cuidados de saúde a utentes do SNS podem ser concretamente

prestados não somente pelas instituições públicas oficiais integrantes do SNS (como,

por exemplo, o Centro Hospitalar do Porto), mas igualmente por outras instituições ou

entidades, designadamente privadas e com ou sem fins lucrativos.

27. Na realidade

“Com efeito, o texto constitucional não perfilhou um modelo de monopólio

do sector público de prestação de cuidados de saúde — tendencialmente

coincidente com o Serviço Nacional de Saúde —, antes admite a existência

de um sector privado de prestação de cuidados de saúde em relação de

6

complementaridade e até de concorrência com o sector público.” – cfr.

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 731/95, de 14 de Dezembro.

28. Assim, o sector privado de prestação de cuidados de saúde igualmente opera e

fornece os seus serviços, independentemente de qualquer acordo com o SNS;

29. Pelo que qualquer utente de serviços de saúde poderá, então e para satisfação das

suas necessidades concretas, optar por recorrer:

(i) aos prestadores de cuidados de saúde do SNS, beneficiando das suas

características de generalidade, universalidade e gratuitidade tendencial; e/ou

(ii) aos prestadores de cuidados de saúde, próprios, convencionados ou em

regime livre, de um dado subsistema (público ou privado) de saúde, caso seja

beneficiário de tal subsistema e nos termos definidos por este último; e/ou

(iii) aos prestadores de cuidados de saúde, próprios, convencionados ou em

regime livre, ao abrigo de um dado seguro de saúde, caso haja contratado uma

tal cobertura do risco de doença e nos termos acordados com a entidade

seguradora; e/ou

(iv) aos prestadores de cuidados de saúde, privados e com ou sem fins

lucrativos, mediante a contraprestação acordada com o concreto prestador

livremente escolhido.

30. Ora, em qualquer caso, urge garantir que o utente beneficia de uma efectiva liberdade

de escolha do concreto prestador a que pretende recorrer.

31. Concretamente, a liberdade de escolha nas unidades de saúde privadas constitui um

dos pilares fundamentais da relação utente-prestador de cuidados de saúde;

32. Muito embora deva ser assegurado que a assimetria de informação existente entre o

utente e os prestadores de cuidados de saúde não resulta em prejuízo, directo ou

indirecto, dos direitos dos utentes ou da satisfação das necessidades de cuidados de

saúde que os mesmos buscam.

7

33. Na realidade, e tanto constitui entendimento assente, a oferta de cuidados de saúde

pode encontrar-se em situação que conduza à própria determinação, total ou parcial,

da procura;

34. Pelo que, desde logo, sobressai enquanto direito fundamental dos utentes de

cuidados de saúde o direito à informação plena, esclarecida e esclarecedora.

35. Isto porque, na verdade, o direito do utente à informação não se limita ao que prevê a

alínea e) do n.º 1 da Base XIV da Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, para efeitos de

consentimento informado e esclarecimento quanto a alternativas de tratamento e

evolução do estado clínico;

36. Trata-se, antes, de um princípio que deve modelar todo o quadro de relações actuais

e potenciais entre utentes e prestadores de cuidados de saúde, públicos e privados,

com ou sem fins lucrativos.

37. Importa, por isso, garantir que a informação prestada ao utente é suficiente para dotar

o utente medianamente esclarecido e diligente dos elementos necessários ao livre

exercício da escolha da unidade de saúde à qual recorrerá.

38. Disto resulta, assim, que os utentes que pretendam ou necessitem de, por exemplo,

realizar intervenções cirúrgicas poderão recorrer às diferentes alternativas de acesso

que concretamente se lhe apresentem;

39. Sendo, contudo, essencial que o façam de forma esclarecida;

40. O que passará, necessariamente, pela informação prévia, cabal e completa dos riscos

ínsitos das intervenções ou actos a que se submeterão;

41. Das potenciais complicações pós-operatórias que poderão, em maior ou menor grau

de probabilidade, ocorrer; e

42. Dos meios humanos e técnicos existentes e disponíveis para assegurar a prestação

de tais cuidados de saúde.

43. Efectivamente, deve ter-se presente que

8

“Importa (…) ponderar a natureza e objectivo do acto médico para não o

catalogar a prioristicamente na dicotómica perspectiva obrigação de

meios/obrigação de resultado, devendo antes atentar-se, casuisticamente,

ao objecto da prestação solicitada (…) para saber se, neste ou naqueloutro

caso, estamos perante uma obrigação de meios – a demandar apenas uma

actuação prudente e diligente segundo as regras da arte – ou perante uma

obrigação de resultado com o que implica de afirmação de uma resposta

peremptória, indúbia.” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de

04.03.2008, proc. 08A183;

44. De onde também resulta, então, que a liberdade de escolha fundar-se-á em sólidas

bases quando, a priori, o utente tem conhecimento do objectivo, condicionantes e

riscos do acto que necessita para satisfação da sua necessidade de cuidados de

saúde;

45. Pelo que, igualmente a priori, deve desde logo ser possível identificar-se se o

prestador se comprometeu com uma obrigação de meios ou com uma obrigação de

resultado.

46. Ora, as situações expostas pelo Centro Hospitalar do Porto respeitam a complicações

pós-operatórias subsequentes a intervenções cirúrgicas realizadas por prestadores

privados, e por virtude das quais os utentes em questão houveram que ser

transferidos para os Serviços de Cuidados Intensivos do Hospital Geral de Santo

António.

47. Em nenhuma das situações identificadas pelo Centro Hospitalar do Porto surgem

indícios ou evidências que os utentes não houvessem optado pela realização dos

actos em causa em tais unidades privadas de forma livre e fundamentalmente

esclarecida.

9

III.3. Enquadramento legal da responsabilidade civil

48. As questões trazidas ao conhecimento da ERS devem, ainda, ser analisadas na

perspectiva da responsabilidade civil que, em qualquer caso, pode resultar no âmbito

do exercício de funções em unidades privadas de saúde3.

49. Efectivamente, os motivos das transferências dos utentes para o Centro Hospitalar do

Porto assentam em complicações pós-operatórias subsequentes a intervenções

cirúrgicas realizadas por prestadores privados;

50. Nas situações em apreço, os utentes terão celebrado, então e em regra, com a

unidade privada de saúde, um contrato de prestação de serviços médicos, que

pacificamente se considera como genericamente enquadrado no disposto no artigo

1154.º do Código Civil (CC), relativo ao contrato de prestação de serviço.

51. Ora, a este respeito atente-se que

“(…) a responsabilidade civil pode assumir tanto a modalidade de

responsabilidade contratual, quando provém da “falta de cumprimento das

obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei”,

como a modalidade de responsabilidade extracontratual, também

designada de delitual ou aquiliana, quando resulta da “violação de direitos

absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam

prejuízo a outrem” - cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol.

I, 10ª Edição, pág. 519.”;

Sendo que

“Também a responsabilidade civil médica pode apresentar - e será,

porventura, a situação mais frequente - natureza contratual, assentando na

existência de um contrato de prestação de serviço, tipificado no art. 1154º

do Código Civil, celebrado entre o médico e o paciente, e advindo a mesma

3 Na prestação de cuidados de saúde em entidades públicas, a responsabilidade civil do prestador

deverá considerar-se regida pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprova o regime da

responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.

10

do incumprimento ou cumprimento defeituoso do serviço médico. Mas

também pode apresentar natureza extracontratual, prima facie quando não

há contrato e houve violação de um direito subjectivo, podendo ainda a

actuação do médico ser causa simultânea das duas apontadas

modalidades de responsabilidade civil. A responsabilidade civil

extracontratual está prevista nos arts. 483º e segs. do Código Civil, sendo a

contratual tratada nos arts. 798º e segs. do mesmo diploma.

(…)

São os mesmos os elementos constitutivos da responsabilidade civil,

provenha ela de um facto ilícito ou de um contrato, a saber: o facto

(controlável pela vontade do homem); a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo

de causalidade entre o facto e o dano.” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal

de Justiça de 27.11.2007, proc. 07A3426.

52. Efectivamente, e sublinhando esta característica da possibilidade de verificação

simultânea e concorrente dos dois tipos de responsabilidade civil, refira-se que

“(…) podem coexistir a responsabilidade contratual e a responsabilidade

extracontratual, entendimento amparado no Estudo publicado, in BMJ 322-

21 e segs., da autoria de Figueiredo Dias e Sinde Monteiro (que aí se cita)

– “O mesmo facto pode constituir uma violação do contrato e um facto

ilícito…”” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.03.2008,

proc. 08A183, já citado.

53. Mas disto resulta, então, que um utente que haja celebrado com uma unidade privada

de saúde um contrato de prestação de serviços médicos poderá, caso entenda existir

fundamento, escrutinar a execução de tais serviços à luz dos critérios da

responsabilidade civil e que, como visto e quer se trate da contratual ou

extracontratual, assentam nos pressupostos do facto (controlável pela vontade do

homem); ilicitude; culpa; dano; e nexo de causalidade entre o facto e o dano.

54. Aqui chegados, poder-se-ia desde logo invocar que, no que à responsabilidade

contratual respeita, a mesma funda-se e, consequentemente, balizar-se-á pelo vínculo

previamente estabelecido entre um utente a uma dada unidade privada de saúde;

11

55. Pelo que apenas e somente o utente, enquanto parte no contrato, terá legitimidade

para assacar a alegada responsabilidade da sua contraparte por eventual

incumprimento (ou cumprimento defeituoso) da obrigação contratual e/ou dos deveres

de prestação primários, dos deveres de prestação secundários, ou ainda,

eventualmente, de outros deveres de conduta que devam ainda considerar-se como

possuindo fonte na relação obrigacional.

56. Tanto será, por princípio assim e, já concretamente quanto aos factos em análise, o

Centro Hospitalar do Porto é terceiro e alheio àquela relação contratual estabelecida

entre utente e unidade privada de saúde e no âmbito da qual seja realizada uma

intervenção cirúrgica ao primeiro;

57. Pelo que o ressarcimento de eventuais ónus ou encargos suportados pelo Centro

Hospitalar do Porto e resultantes da transferência de um dado utente por virtude de

complicações pós-operatórias subsequentes a intervenção cirúrgica realizada numa

dada unidade privada de saúde não encontrará, em lógica decorrência do princípio

basilar da eficácia relativa dos contratos, tutela jurídica em sede de responsabilidade

contratual.

58. Efectivamente, a violação daquele contrato, quer por falta de cumprimento, quer por

cumprimento defeituoso, dará lugar à responsabilidade civil dos contratantes, nos

termos do artigo 798.º do CC. Estar-se-ia, pois, perante uma estrita responsabilidade

contratual, segundo a qual “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da

obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”;

59. Norma que é, desde logo, susceptível de reconduzir o utente lesado à qualidade de

único titular do direito à indemnização a que haja lugar em virtude do incumprimento

do contrato.

60. No entanto, poderá existir, nestes casos, autonomamente, uma violação do direito à

vida, à saúde ou à integridade física dos utentes, susceptível de fazer incorrer as

unidades de saúde, in casu privadas, em responsabilidade extracontratual, na medida

em que nos termos do quadro legal supra exposto, impende sobre os profissionais de

saúde o dever de indemnizar o utente sempre que, em consequência da sua

intervenção, tenham resultado danos decorrentes da violação culposa daqueles

direitos.

12

61. Também aqui o titular do direito à indemnização é, assim, em regra, o utente lesado.

62. Apesar disso, sublinhe-se desde já que, na realidade poderá assistir-se a solução

distinta no campo da responsabilidade extracontratual.

63. Nos termos do artigo 483.º n.º 1 do CC,

“aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou

qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado

a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

64. A responsabilidade civil extracontratual depende, assim e como já visto, da verificação

dos pressupostos enunciados naquele preceito legal: o facto voluntário do agente, a

ilicitude, a culpa, o dano e o nexo causal.

65. O facto voluntário do agente constitui um facto controlável pela vontade humana, o

que coloca fora do domínio da responsabilidade civil os danos causados por causas

de força maior ou pela actuação de circunstâncias fortuitas ou forças naturais. Este

facto poderá traduzir-se numa acção (facto positivo) ou omissão (facto negativo),

quando, nos termos do artigo 486.º do CC “havia, por força da lei ou do negócio

jurídico, o dever de praticar o acto omitido”.

66. Claro está, visam-se desde logo quaisquer acções praticadas no âmbito da prestação

de cuidados de saúde que se revelam, ou venham a revelar, como merecedoras de

censura ético-jurídica e consequente tutela e reacção no quadro do instituto jurídico da

responsabilidade civil;

67. Mas integrará, igualmente, um facto negativo como, por exemplo, a omissão do dever

de vigilância dos utentes internados em estabelecimentos ou unidades de saúde, bem

como dos deveres de protecção e segurança – cfr., nesse sentido, o Acórdão do

Supremo Tribunal de Justiça de 22.09.2005, proc. 03B2668.

68. O pressuposto da ilicitude, enquanto reprovação da conduta do agente no plano geral

e abstracto, integra, no âmbito da prestação de cuidados de saúde, a violação de um

direito absoluto de outrem, em regra, de direitos de personalidade, como o direito à

vida, à saúde ou à integridade física.

13

69. Já a culpa ou nexo de imputação subjectiva do facto ao lesante reporta-se a um

concreto comportamento, na medida em que só pode dizer-se que o agente actuou

com culpa quando, no caso concreto, podia e devia ter agido de outro modo. Na

realidade,

“Como ensina o Professor Antunes Varela, “para que o facto ilícito gere

responsabilidade, é necessário que o autor tenha agido com culpa. Não

basta reconhecer que ele procedeu objectivamente mal. É preciso, nos

termos do art. 483º, que a violação ilícita tenha sido praticada com dolo ou

mera culpa. Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do

agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante

é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias

concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro

modo” - ibidem, pág. 562.

(…)

A negligência consiste em deixar de fazer o que as legis artis impunham

que fosse feito ou em deixar de actuar de acordo com aquele grau de

cuidado e competência que seria de esperar de um médico da mesma

especialidade, actuando nas mesmas condições.” - cfr. Acórdão do

Supremo Tribunal de Justiça de 27.11.2007, proc. 07A3426, já citado.

70. O juízo de censura abrangerá, assim, as diferentes modalidades de culpa previstas no

artigo 483.º do CC, a saber, o dolo (directo, necessário ou eventual) e a mera culpa ou

negligência (consciente ou inconsciente).

71. Por outro lado, nos termos do artigo 487.º do CC, sendo a culpa um elemento

constitutivo do direito à indemnização, “é ao lesado que incumbe provar a culpa do

autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa”, devendo igualmente ser

apreciada em abstracto, ou seja, de acordo com a “diligência de um bom pai de

família, em face das circunstâncias de cada caso”;

72. Sendo certo que, e ainda que não possa deixar de considerar-se a distinta repartição

do ónus de prova estabelecido no âmbito da responsabilidade extracontratual face

àquele da contratual, deverá atender-se, como início de análise de uma qualquer

situação concreta, que

14

“Se depois de uma intervenção cirúrgica simples as condições do paciente

são piores do que as anteriores, presume-se que houve uma terapia

inadequada ou negligente execução profissional.” - cfr. Acórdão do

Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2002, proc. 02A4757.

73. Reconduz-se, assim, o critério da culpa à diligência do profissional médio e à

conformidade da sua actuação aos deveres jurídicos que se lhe imponham, bem como

às leges artis em cada momento vigentes, devendo procurar aferir-se da conduta que

a generalidade dos profissionais com idêntica qualificação e meios teria tomado nas

mesmas condições.

74. Isto porque os profissionais de saúde devem agir segundo o quadro legal aplicável, as

exigências das leges artis e os conhecimentos científicos existentes, bem como

devem actuar permanentemente de acordo com um dever objectivo de cuidado, assim

como de certos deveres específicos, como o dever de informar sobre tudo o que

interessa à saúde ou o dever de empregar a técnica adequada, que, não raras

ocasiões, prolonga-se mesmo após a alta do paciente.

75. Mas a este propósito releva, ainda e de sobremaneira, a já referida distinção entre

“obrigação de meios” e “obrigação de resultado”:

“Os actos cirúrgicos comportam alguma margem aleatória que pode

contender com o resultado; nestes casos o erro médico é mais dificilmente

descortinável. Mas é aí que o médico deve agir, com redobrada cautela,

observando os dados adquiridos pela ciência, ou seja, adoptando os

procedimentos mais evoluídos da técnica.

(…)

Importa, pois, ponderar a natureza e objectivo do acto médico para não o

catalogar a prioristicamente na dicotómica perspectiva obrigação de

meios/obrigação de resultado, devendo antes atentar-se, casuisticamente,

ao objecto da prestação solicitada ao médico ou ao laboratório, para saber

se, neste ou naqueloutro caso, estamos perante uma obrigação de meios –

a demandar apenas uma actuação prudente e diligente segundo as regras

da arte – ou perante uma obrigação de resultado com o que implica de

afirmação de uma resposta peremptória, indúbia.

15

(…)

No caso de intervenções cirúrgicas, em que o estado da ciência não

permite, sequer, a cura mas atenuar o sofrimento do doente, é evidente que

ao médico cirurgião está cometida uma obrigação de meios, mas se o acto

médico não comporta, no estado actual da ciência, senão uma ínfima

margem de risco, não podemos considerar que apenas está vinculado a

actuar segundo as legis artes; aí, até por razões de justiça distributiva,

haveremos de considerar que assumiu um compromisso que implica a

obtenção de um resultado, aquele resultado que foi prometido ao paciente.”

- cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.03.2008, proc.

08A183, já citado.

76. Na realidade, será com base na avaliação casuística dos casos concretos que haverá

que fazer uma tal avaliação criteriosa do acto realizado, riscos prováveis associados,

bem como do estado da técnica e da actuação concreta, que deverá sempre ser

consentânea com os deveres gerais de cuidado exigíveis ao profissional diligente e

atento;

77. O que implicará o dever de cumprimento, desde logo, das imposições legais

existentes, das regras da boa prática profissional, bem como o de não omissão de

diligências devidas, necessárias ou aconselháveis em face da natureza do acto

praticado – o que incluirá o dever de realização do acto com a garantia de existência

de condições adequadas à eventual prática de actos subsequentes que se venham a

revelar, segundo tais regras, como devidas, necessárias ou aconselháveis.

78. Assim, são múltiplas as situações que podem vir a serem consideradas como ilícitas

face à previsão do artigo 483.º CC;

79. Que, ademais, assenta nos conceitos latos de direito de outrem (que, como visto, se

refere desde logo aos direitos de personalidade e à tutela geral da personalidade

prevista no artigo 70.º do CC, que estabelece, no seu n.º 1, que

“A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de

ofensa à sua personalidade física ou moral.”;

80. Como igualmente assenta na violação de qualquer disposição destinada a proteger

interesses alheios.

16

81. Consequentemente, podem vir a revelarem-se ilícitos aqueles actos cirúrgicos

praticados com violação do direito dos utentes à informação prévia e plena,

esclarecida e esclarecedora;

82. Uma vez que numa tal situação o acto pode vir a representar-se, efectivamente, como

uma lesão corporal que, por não previa e devidamente esclarecida, se revela como

não consentida e, logo, ilícita.

83. Por outro lado, e como já visto, serão também ilícitos aqueles actos cirúrgicos

praticados com violação clara ou grosseira das leges artis;

84. Tal como o serão quando praticados, por exemplo, com violação do quadro legal

aplicável;

85. Referindo-se, a este título e como exemplo, as regras relativas ao licenciamento das

unidades privadas de saúde previstas, entre outros diplomas, no Decreto-Lei n.º

13/93, de 15 de Janeiro;

86. Bem como as regras relativas aos requisitos mínimos exigíveis às unidades privadas

de saúde quanto a instalações, organização e funcionamento (cfr. Decreto

Regulamentar n.º 63/94, de 2 de Novembro);

87. E que estabelece, no que à situação aqui em análise melhor respeitará, no seu Anexo

II os requisitos relativos às instalações e equipamentos mínimos a considerar quando

uma unidade privada de saúde disponha de um bloco operatório.

88. Claro está, tal quadro legal visa estabelecer parâmetros mínimos de exigência e

qualidade que, com relativa certeza, constituam o patamar mínimo de qualidade na

prestação de cuidados de saúde em unidades privadas de saúde; e

89. Obviamente, enquanto disposições destinadas a proteger interesses alheios, a saber,

os potenciais utentes de tais unidades privadas de saúde.

90. Por último, refira-se que o cumprimento de tais parâmetros mínimos pode não

constituir, sem mais, garantia da licitude do acto, uma vez que as próprias leges artis,

o dever de cuidado e de diligência podem impôr a realização de um determinado acto

apenas e somente reunidas condições humanas, científicas, técnicas e materiais que

ultrapassam o tal patamar mínimo legalmente exigível;

17

91. Pelo que também aí, isto é, aquando da prática sem a reunião de tais condições, se

deverá aferir da sua eventual ilicitude, mormente por eventual violação de leges artis.

92. Outro pressuposto do dever de indemnizar é a existência de um dano ou lesão

causada no bem ou interesse juridicamente tutelado.

93. Nas situações típicas, importarão a este título, essencialmente, os danos patrimoniais

e não patrimoniais sofridos pelo utente eventualmente lesado;

94. Devendo, por último, verificar-se o nexo de causalidade entre o facto do agente e tais

danos, sendo que nos termos do artigo 563.º do CC, que consagra a teoria da

causalidade adequada, só são indemnizáveis os “danos que o lesado provavelmente

não teria sofrido se não fosse a lesão”.

95. O estabelecimento do nexo de causalidade consiste na demonstração do

encadeamento entre o estado de saúde do utente em momento anterior à realização

da cirurgia e a lesão que configura o dano alegadamente resultante da conduta do

profissional de saúde em causa.

96. Finalmente, importa referir que, por aplicação do artigo 500.º do CC, sempre que os

profissionais de saúde actuem no exercício de funções em unidades privadas,

poderão estas responder, independentemente de culpa, pelos danos causados pelos

primeiros, sem prejuízo do eventual direito de regresso a que haja lugar.

97. O que significa que poderá sempre ser demandado, directamente e em primeira linha,

o prestador colectivo.

98. Dir-se-á, neste momento, que o quadro legal vindo de (sumariamente) expor será apto

a tutelar eventuais lesões, designadamente de direitos de personalidade, que os

utentes hajam sofrido;

99. Pelo que o dano patrimonial do Centro Hospitalar do Porto, traduzido nas despesas

(não cobertas pelas taxas moderadoras cobradas) relativas aos cuidados de saúde

prestados aos utentes que vieram a sofrer complicações pós-operatórias na sequência

de intervenções cirúrgicas realizadas em unidades privadas e cuja gravidade conduziu

a que dessem entrada nos serviços de urgência ou de cuidados intensivos do Hospital

18

Geral de Santo António, também não encontraria, em sede de responsabilidade

aquiliana, tutela.

100. Tanto não será, contudo e uma vez preenchidos os pressupostos legais, assim,

como seguidamente se verá.

III.4. A responsabilidade pelos encargos financeiros incorridos pelo Centro Hospitalar do Porto: aplicabilidade da alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º do Estatuto do SNS e do n.º 2 do artigo 495.º n.º 2 do CC

101. Quanto à responsabilidade pelos encargos financeiros decorrentes da prestação

dos cuidados de saúde em causa, recorde-se que a alínea c) do n.º 1 do artigo 23.º do

Estatuto do SNS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro, estipula que

“respondem pelos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde

prestados no quadro do SNS (…) as entidades que estejam a tal obrigadas por

força de lei ou de contrato”.

102. Já supra se concluiu que, por princípio, o Centro Hospitalar do Porto será terceiro

e alheio a qualquer relação contratual estabelecida entre utente e unidade privada de

saúde e no âmbito da qual seja realizada uma intervenção cirúrgica ao primeiro;

103. Nem tampouco tais unidades privadas de saúde contrataram com o SNS a

assunção de uma tal responsabilidade4.

104. Consequentemente, será por força de lei que se deverá verificar da possível

responsabilidade pelos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde

prestados no quadro do SNS.

4 O exemplo de uma tal situação será aquela dos subsistemas, designadamente privados, que

acordem a assunção da responsabilidade, designadamente financeira, pelos custos decorrentes da

prestação de cuidados de saúde aos beneficiários de um tal subsistemas.

19

105. Desde já se esclareça que o Centro Hospitalar do Porto, enquanto instituição

integrada no SNS, apenas pode cobrar aos utentes as competentes taxas

moderadoras;

106. As quais, fundando-se na característica da gratuitidade tendencial do SNS,

possuem uma função de moderação da procura de cuidados de saúde e não

representam nem têm por subjacente, ou por totalmente subjacente, quer o “preço”

pelos serviços, quer os próprios custos aos mesmos inerentes,

107. Pelo que deverá atender-se a que os custos efectivamente incorridos pelo Centro

Hospitalar do Porto e decorrentes de transferências de utentes provindos de unidades

privadas de saúde por motivos de complicações pós-operatórias serão, claro está,

manifestamente superiores às preditas taxas moderadoras que eventualmente sejam

cobradas.

108. E a este título deverá chamar-se à colação o n.º 2 do artigo 495.º do CC, que

estipula que

“Neste caso [de lesão de que proveio a morte], como em todos os outros de

lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorreram o

lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras

pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou

assistência da vítima”.

109. Ou seja, se e uma vez verificados os pressupostos da responsabilidade civil

extracontratual previstos no artigo 483.º n.º 1 do CC, as complicações pós-operatórias

que motivam o encaminhamento de utentes para os serviços de urgência do SNS

poderão traduzir-se na responsabilização das unidades privadas de saúde pelos

respectivos encargos financeiros;

110. Tal qual uma qualquer outra situação em que haja uma lesão ilícita de um qualquer

direito subjectivo do lesado que motive, enquanto dano, o recurso à prestação de

cuidados de saúde, em que o autor da mesma será responsabilizado, também, pelo

ressarcimento quer dos danos do lesado, quer das entidades (públicas ou privadas)

que hajam prestado tais cuidados.

20

111. Mas refira-se, a este respeito, que não constituem obviamente situação de lesão

ilícita aquelas complicações pós-operatórias que se devam considerar como

integradas na margem aleatória (de insucesso) que tecnica e cientificamente se

reconhece como podendo contender com o resultado, apesar da actuação prudente e

diligente segundo as regras da arte.

112. Tais situações, recorde-se, tanto poderão ocorrer em unidades privadas de saúde

como, claro está, no próprio Centro Hospitalar do Porto ou qualquer outra instituição

do SNS, sendo que também nessas situações devem ser providos todos os cuidados

de saúde necessários em resultado de tais complicações decorrentes do risco normal

e ínsito ao acto cirúrgico praticado.

113. O recurso aos serviços de urgência de um Hospital do SNS, enquanto efectivação,

em qualquer circunstância, do direito de acesso universal ao serviço público de saúde,

espoleta um conjunto de encargos financeiros, correspondentes a todos os cuidados

de saúde necessários à recuperação do estado de saúde dos utentes;

114. E que são a concretização da referida imposição constitucional do direito

fundamental dos cidadãos de acesso aos cuidados de saúde.

115. Assim, se o lesante tem o dever de colocar o ofendido na mesma situação em que

estaria sem a lesão;

116. Ele terá igualmente o dever de ressarcir terceiros das despesas em que incorreram

para “o tratamento ou assistência da vítima”.

117. In casu, os prestadores de saúde de natureza privada que realizaram intervenções

cirúrgicas com violação do direito à vida, à saúde ou à integridade física dos utentes

respondem perante os Hospitais do SNS onde os mesmos venham a ser assistidos;

118. Os quais são, por aplicação do citado artigo 495.º n.º 2 do CC, beneficiários por

direito próprio da referida indemnização.

119. Ou seja, uma vez verificados os pressupostos de que depende a responsabilidade

extracontratual das unidades privadas de saúde onde os utentes hajam sido objecto

de intervenções cirúrgicas, o Centro Hospitalar do Porto poderá demandar aqueles

21

prestadores pelos encargos financeiros resultantes da prestação de cuidados de

saúde;

120. Sendo que o poderá fazer por interesse e legitimidade próprias, ou seja,

independentemente da eventual reacção do próprio utente lesado;

121. Para o que, ademais e pelo facto de possuir os conhecimentos técnicos, científicos

e de expertise para proceder à análise casuística das situações com que venha a ser

confrontado, reunirá as melhores condições.

IV.

Conclusão

122. Em conclusão, o Centro Hospitalar do Porto

(i) acha-se incumbido de prestar os seus serviços de saúde (e assim

efectivar os seus direitos de acesso aos cuidados de saúde) a todos os

beneficiários do SNS da sua área de influência que deles necessitem e

independentemente das razões de tais necessidades, como efectivamente

tem efectuado;

(ii) verificando in concreto que as complicações pós-operatórias que

motivam o encaminhamento de utentes para os seus serviços de urgência

podem constituir o resultado de uma lesão ilícita de um qualquer direito

subjectivo do utente, e uma vez verificados os remanescentes

pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, poderá accionar,

conjuntamente com o próprio utente ou de forma autónoma, os

mecanismos legais existentes com vista à responsabilização das unidades

privadas de saúde em causa e consequente ressarcimento dos encargos

financeiros por si incorridos;

(iii) deve considerar, para o efeito e a título de exemplo, que podem

revelar-se como lesões ilícitas aquelas decorrentes dos actos cirúrgicos

22

a) praticados com violação do direito dos utentes à

informação prévia e plena, esclarecida e

esclarecedora, uma vez que, numa tal situação, o

acto pode vir a representar-se, efectivamente, como

uma lesão corporal não consentida e, logo, ilícita;

b) praticados com violação clara ou grosseira das leges

artis;

c) praticados com violação do quadro legal aplicável,

que estabelece as condições humanas, científicas,

técnicas e materiais mínimas;

d) praticados com desrespeito do dever de cuidado e de

diligência, que concretamente imponham parâmetros

superiores às condições humanas, científicas,

técnicas e materiais mínimas legalmente exigíveis,

de onde igualmente resultará uma violação das

próprias leges artis.

23