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Epidemias Apocalipse zombie, sem efeitos especiais pw/15

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EpidemiasApocalipse zombie,sem efeitos especiais pw/15

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O Instituto de Ciências Sociais (ICS) é uma escola da Universidade de Lisboa e

um Laboratório Associado do Sistema Científico Nacional dedicado à

investigação, aos estudos pós-graduados e à divulgação de ciência nas áreasde Antropologia, Ciência Política, Economia, Geografia, História, PsicologiaSocial e Sociologia (www.ics.ulisboa.pt). Durante um ano, todos os domingos,investigadoras e investigadores com diferentes formações, idades e

percursos académicos partilham o seu trabalho com os leitores do P2.

EpidemiasApocalipsezombie, semefeitos especiaisCiências Sociais em Público (I)Que vamos lembrar desta epidemia? Quandotudo passar, ao lado das memórias, talveztambém a certeza de ser prioridade políticae económica o reforço à saúde pública, à

investigação, aos dispositivos para prevençãode calamidades e aos mecanismos de

mobilização de solidariedade social

Por Cristiana Bastos

Ontem e hojeNo topo, cena do filme Fora de Controlo (1995), em que os protagonistas lutam paraconter um virus do tipo do ébola. Em cima, desenho asteca com vítimas de varíola

Zombies e epidemias

encontro sobre

£ epidemias e cidades eram na Universidade deI ¦ Goethe em Frankfurt, emH B 2014, e reunia estudiosos

m do tema colhidos entre aW antropologia, a história,

os estudos de ciência e a

saúde pública. Urna das apresentações erasobre zombies e sobrevivência a epidemias.Estranhámos, alguns, a intrusão da

linguagem do cinema e jogos num simpósioem que dominavam os nomes sérios da

cólera, febre tifóide, sífilis, tuberculose,sida, SARS, chikungunya, dengue; em quese falava de biossegurança e

cidades-sentinela, de políticas urbanas esanitárias passadas e contemporâneas, e se

articulavam interpretação histórica, análisedo presente e aprendizagem para usofuturo. Eu levava a análise das políticas de

regulamentação para a sífilis e prostituiçãoem Lisboa e dos debates sobre transmissãoe tratamentos na primeira metade doséculo XX, apresentando um caso de surtonuma família multigeracional de Alfama,em que o alegado paciente zero fora umbebé aleitado por uma vizinha infectada -resultado colateral de um trabalho játerminado sobre o antigo hospital do

Desterro em Lisboa e assistência à sífilis.Outros participantes levavam análises da

China e vizinhanças, do Mediterrâneo, do

Índico, das Américas. Ninguém vinha do

planeta Hollywood nem havia secção de

ficção científica, mas a referência ao

apocalipse zombie não estava ali deslocada;pelo contrário, era a vanguarda conceptualna preparação para calamidades, a metáforausada em departamentos de prevenção esaúde pública para hipotéticas epidemias de

contornos imprevisíveis.

Imaginação e realismono cinema e na saúde

A evocação de zomínes traz-nos bandos de

mortos-vivos deambulando em busca de

presas que se contagiam e transfiguram emcrescente malignidade, híbridos de vampirose monstros esfarrapados, com sangue a

jorrar dos olhos e orelhas, pele a explodir,ramos peçonhentos nascendo do tronco e

membros, e outros elementos dos filmes deterror. No cinema de pendor realista, os

equivalentes dramáticos são o contágiodescontrolado, a evolução rápida de

sintomas, hemorragias violentas,mortandade generalizada, militarização do

espaço público, cenário de guerra e,idealmente, um final de redenção pelaciência e a medicina, cujos agentespersonificam heróis em duríssima provação.Assim se viu em Contagio (2011). em Fora de

Controlo (1995) e, de certo modo já, noclássico de Elia Kazan Pânico nas Ruas (1950).Mas nem sempre é assim na vida real ou nãoo é no início de cada nova epidemia.

As epidemias, mesmo as que se tornam

apocalípticas, podem chegar sem efeitos

especiais. Chegam em silêncio, invisíveis,mascaradas da banalidade das gripes e

resfriados, de pneumonias atípicas,encontrando negação c resistência,fazendo-se acompanhar de informaçõescontraditórias, com notícias de longe, de

perto e, um dia, a má notícia de já estarinstalada no nosso espaço - país, continente,bairro, família, comunidade, rede de amigos.Geram-se, entretanto, epidemias paralelasde notícias e contranotícias, de opiniões e

dissertações sobre o significado de uma

pandemia e da gl( >balizaçã( >, s< )bre < >s

cenários de devastação anunciados emfórmulas matemáticas, sobre o fim domundo como o conhecemos. Surgem as

medidas de saúde pública que alteram os

quotidianos e reequacionam o futuro

próximo e distante, não sem dar azo a mais

epidemias de comentários sobre o estado de

excepção; a biopolítica; as desigualdadesque a epidemia reforça; o futuro daeconomia e do ambiente; o potencial dacrise na transformação do modo comovivemos e viveremos; as políticas sanitárias

comparadas; a pertinência dos testes; avalidade dos números apresentados; as

atitudes vigilantes de alguns governos e a

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displicência gcnocida de outros; a eficáciadas medidas na Ásia; a desunião europeia; o

significado das fronteiras.Este apocalipse veio cm segmentos: a uns

zombifica em clausura doméstica, com ousem os desafios do teletrabalho e ensino

improvisado ã distância; a outros trazcenários de guerra em hospitais, unidadesde assistência, lares de idosos, morgues e

cemitérios; a alguns requisita paramanutenção de infra-estruturas; a muitostraz o espectro do desemprego e falência; aoutros exponencia a já frágil situação nolimite da existência; e em uns tantos gerauma criatividade solidária que se traduz emproduzir, a partir da base, meios de apoioaos serviços de saúde, inventar

equipamentos com materiais alternativos oudesenvolver esquemas de apoio alimentar esocial aos mais vulneráveis.

Inesperada ou anunciada?

Muitos interrogam-se como é possíveltermos a epidemia de covid-19 em plenoséculo XXI, com tantas conquistas médicas efarmacêuticas, com tanta tecnologiadisponível. Talvez a pergunta faça sentido

para quem herdou a visão optimista dos

anos 60-70 do século passado, quando se

acreditava que a luta contra as doençasinfecciosas estava tecnicamente ganha.Havia antibióticos e vacinas; estava

esquecida a pneumónica de 1918, a últimadas grandes pandemias; a erradicação davaríola exemplificava o sucesso de um

programa vertical à escala global, que se

procurava replicar noutros casos (pólio,malária, tuberculose). Vaticinava-se umfuturo sem novidades para a infecciologia,que ficaria circunscrita ã chamada medicina

tropical e ao mundo dito emdesenvolvimento - onde não se dera ainda a

chamada transição epidemiológica entre a

predominância de infecciosas etransmissíveis {disenterias, tuberculose, etc.)

para a predominância de crónicas e

degenerativas (cardiovasculares,oncológicas, diabetes). Tudo mudou

rapidamente, e logo nos anos 80. Primeiro, a

sida. Jovens saudáveis com pneumonias quepareciam fáceis de tratar morriam noscentros médicos mais avançados e dotadosdo mundo. O resto é conhecido: cm algunsanos identificou-se o retrovírus (vírus de

ARN, que se replica num processo inverso aohabitual dos vírus de dupla hélice, ou ADN)que desmantelava o sistema imunitário, o

VTH; constatou-se que atingia milhões;percebeu-se que afinal as doençasinfecciosas e transmissíveis, de que esta eraum caso, não eram um capítulo cm vias de

encerramento mas antes um lugar parapesquisa pioneira; uniram-se esforços entreparceiros múltiplos - comunidades,cientistas, clínicos, laboratórios, governos,OMS, UNATDS - para desenvolver modos de

prevenção e mitigação, incluindo o combateao estigma e o envolvimento dos afectados,e, claro, para desenvolver terapêuticaseficientes. Estas chegariam na década de 90e generalizaram- se na seguinte, nãodeixando de replicar no acesso, mesmo commecanismos de mitigação, as grandesassimetrias mundiais que a epidemia tornaraóbvias. Pelo caminho, estima-se quemorreram cerca de 30 milhões. Segundodados da OMS, cerca de 40 milhõesconvivem com VIH, dos quais pouco mais demetade recebe tratamento.

A sida não veio só; já antes se identificara oébola, demasiado letal para se espalhar parafora das comunidades em que emerge, umavez que mata o portador quase de imediato.Muitas outras infecções e potenciaisepidemias foram elencadas pela jornalista deciência Laurie Garrei em The Next Epidemic(1992), num volume sobre Sida no Mundo(AIDS in the World), lançado pela Escola deSaúde Pública de Ilarvard. Esse elenco, bemcomo a análise crítica das determinanteseconómicas e políticas que levam a quesimples vírus se tornem epidemias globaisafectando desigualmente as populações,seriam expandidos nos livros seguintes,entre os quais, o sugestivo The CorningPlaque, de 1994. Na mesma linha, o

virologista Stephen Morse mostrava emEmerging Viruses (1993) o modo como a

intervenção humana no ambiente acelerava

o tráfico virai entre espécies e multiplicava as

possibilidades de epidemias fatais e globais.Ou seja, se a equação era de uma luta

vitoriosa de humanos contra vírus, como seacreditava nos anos 70, os dados dos anos 90mostravam que os vírus estavam a ganhar,efeito das próprias acções humanas. Note-se

que esses pequenos seres, que nem sequertem vida independente e consistem emagregados de genes que se reproduzemparasitando células vivas, não têm em si

qualquer significado ou intenção. Mas, dosmilhares de milhões que existem, algunspodem tornar-se um desastre no encontrocom as células humanas. O desastre é

máximo quando o organismo não temmemória, nunca esteve confrontado comaquela sequência, não criou "imunidades".Assim aconteceu logo no século XVI ás

populações cias Américas, quando algunsvírus de gripe lá chegaram nos corposeuropeus com sistemas imunitários a eles

acomodados, e a varíola foi disseminada,acidental ou propositadamente. Estamos

agora em situação semelhante, mas os vírusdesconhecidos não vieram dos

conquistadores espanhóis. Vieram, talvez,dos morcegos-ferradura asiáticos.

De zombies a zoonoses

Em vez de vampiros, temos morcegos nesteenredo. Talvez pangolins. Tivemos galinhas eoutras aves, no que foi uma das ameaçasmais próximas de epidemia generalizada, a

gripe aviária. E camelos, no MERS. E porcos;uma vaga de peste suína antecedeu a sida eoutras sucederam-lhe. E chimpanzés eoutros símios, todos portadores de vírus a

que estão acomodados. De forma rápida ou

lenta, num só encontro alimentar entre umhumano e um morcego, ou na repetidamanipulação da carne de símios caçados, ouna produção concentracionária de carne emgigantescas prisões de aves ou de porcos, ounos mercados de espécies vivas, muitas são

as situações associadas â cadeia alimentarem que vírus passam de uma espécie paraoutra e chegam aos humanos. Por vezes, sãoelementos ainda mais simples que os vírus,como se viu no caso das vacas loucas,envolvendo também ovelhas, que trouxe a

todos, incluindo humanos, a proteínainfectante (prião) que desfaz o sistema

neurológico e se mascara de doençadegenerativa. E sabemos que há muitos mais

que [iodem surgir com os dcgelos e outrosefeitos das alterações climáticas em curso.

Estas décadas poderão ser lembradascomo as da consciência das zoonoses, isto é,doenças transmitidas por animais nãohumanos a humanos. Este ano serálembrado como uma interrupção geral, uma

paralisia não desejada, com bolsas de

apocalipse para quem está no olho do

furacão, onde caem corpos, faltam

equipamentos, sobra stress, faltam os

instrumentos habituais dos humanos contraas infecções, sobra desespero, falta

significado. Não virão a faltar intérpretes a

emprestar significados e moral a estas

epidemias, algo que sempre se fez, mesmodepois de consolidada a teoria dosmicróbios: de castigos divinos a intentosmaléficos de grupos e países em tensão

guerreira, as interpretações são ágeis emculpabilizar grupos, nações, intenções.Assim se fazia com a peste medieval

(judeus), com a sífilis no renascimento

europeu (franceses, napolitanos, espanhóis),com a sida (homossexuais, haitianos,

americanos); até a influenza de 1918,

possivelmente originada no Kansas, EUA, éconhecida até hoje como "gripe espanhola",só porque Espanha a noticiava quando os

outros, em guerra, a abafavam. Criandoincidentes diplomáticos, alguns políticosirresponsáveis referem o SARS-Cov-2 como"vírus chinês" - algo que é não apenasofensivo como vai contra as directivas da

OMS, que desencoraja a nomeação de

epidemias com referência a lugares (porexemplo, o vírus do Nilo ocidental).

Espera-se que este ano seja tambémlembrado como aquele em que se ampliou a

consciência sobre a necessidade de manterestruturas de assistência preparadas e bem

equipadas, de pôr como prioridade políticao investimento na investigação e na saúde

pública, entre hospitais, postos de saúdedescentralizados, linhas de atendimento,apoio aos profissionais. Que as políticasorçamentais não desfalquem estes sectores edoravante os reforcem: se há umensinamento central do estudo das

epidemias, passadas e presentes, é a

importância do reforço da saúde pública eda investigação.

Memória

Não sabemos como vamos lembrar-nos desta

epidemia. Sugere o historiador Charles

Rosenberg que estas percorrem umadramaturgia com um momento inicial de

negação, seguido de confusão, depois dereconhecimento c medidas; e ao final queum dia chegará segue-se o esquecimento. A

"gripe espanhola" de 1918 ficou quaseescondida da história, apesar de brutal edevastadora. Um dos raros testemunhosliterários, Palellorse, Paleßider. de KatherineAnn Porter, que a viveu, foi só publicado em1939. Nemesis, de Philip Roth, sobre a

epidemia de poliomielite em Newark, que oautor testemunhou na década de 1940, é de2011. Um grande intervalo separa também a

publicação do Diário do Ano da Peste, deDaniel Defoe, em 1722, da epidemia de

Londres a que este se reporta, ocorrida em1665. Já a sida teve muitas vozes em directo,deixando uma impressionante produçãoartística em todos os campos. O ébola

originou best selíers do género terror médico.A covid-19 está a gerar todo um novo estilo

de diarismo digital, com formação de gruposem redes sociais, núcleos de interpretaçãode resultados, enquanto grande parte davida se transfere para um telequotidiano.Mas só uma parte, já que continuam, sob

stress inusitado, a produção e distribuiçãode alimentos, a recolha de lixo, a

manutenção de infra-estruturas, e, em modode apocalipse, o corpo- a-eorpo nos

hospitais. Esses momentos dramáticos emuitas vezes trágicos vamos querer afastarda lembrança, realocando a imaginação paraum cenário em que nada disto torna aacontecer. Talvez o cenário possível,

desejável e viável de escolhas políticas quepõem em primeiro lugar a saúde, quereforçam a investigação, a solidariedadesocial, e urna ampla e eficaz coberturasanitária com dispositivos de prevenção quenão passem pelos excessos de intrusão

digital já em curso nalguns lugares. Quevenham, com os romances e peças de teatrode tédio ou de terror, também as narrativasde edificação da saúde pública comoprioridade. Só assim afastaremos os zombies.

Antropóloga, Instituto de Ciências Sociais