entrevista a um politico corrupto

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Vivemos em um mundo corrupto dominado por senhores feudais. Um mundo onde os políticos, sabedores da sua impunidade, já nem se importam mais em ocultar as suas malandragens. Mortas as ideologias, o único leitmotiv é o dinheiro. Mas como funciona a mente de um manipulador de massas cujo único objetivo é enriquecer? Um jovem jornalista tentará aprofundar–se na mente de um político para desvendar as causas e as motivações da sua conduta corrupta.

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Page 1: Entrevista a um Politico Corrupto
Page 2: Entrevista a um Politico Corrupto

Sobre o Autor

Miguel Cabezas é professor

universitário. Engenheiro Técnico

de Mineração, licenciado em

Administração de Empresas e pós–

graduado em Engenharia de

Produção. Nasceu em Cantábria

(Espanha) em 1967 e Atualmente

reside no Brasil.

e–mail para contato:

[email protected]

Sobre o Livro

Vivemos em um mundo corrupto

dominado por senhores feudais. Um

mundo onde os políticos, sabedores

da sua impunidade, já nem se

importam mais em ocultar as suas

malandragens. Mortas as

ideologias, o único leitmotiv é o

dinheiro. Mas como funciona a

mente de um manipulador de

massas cujo único objetivo é

enriquecer? Um jovem jornalista

tentará aprofundar–se na mente de

um político para desvendar as

causas e as motivações da sua

conduta corrupta.

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Entrevista a um político corrupto. eBook. 1ª Edição

Autor: Miguel Cabezas

Desenho da capa feito pelo autor da obra.

A present e obra é gratuita e publica-se com uma licença Creative Commons v.3.0

Miguel Cabezas, 2010

Atribuição – Uso não comercial – Vedada a criação de obras derivadas a terceiros

O autor se reserva o direito de lançar edições especiais da obra não gratuitas.

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Alguns vencem pelos seus crimes, outros são derrotados pelas suas virtudes.

William Shakespeare.

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Entrevista a um Político Corrupto

eBook por Miguel Cabezas

I

Depois de mais de duas horas dirigindo, suportando os engarrafamentos de

praxe, já estava me aproximando do endereço do meu entrevistado. Olhei para

o celular... Ainda tinha uma pequena folga em relação ao horário combinado.

Mesmo assim, comecei a ficar um tanto quanto ansioso.

Eu era um jornalista com relativamente pouca experiência. Três anos são quase

nada nesta profissão, mas farejei uma incrível oportunidade para fazer uma boa

reportagem. Tudo começou quando, casualmente, encontrei um antigo colega

da escola secundária através de uma rede social. Em nossas conversas sobre as

manchetes do momento, descobri que esse colega era muito próximo de

certo renomado político. O tal político tinha anunciado sua retirada da política

devido a um câncer. No entanto, o meu colega revelou–me que o câncer era

irreversível.

Percebi então que era uma boa ocasião para fazer uma entrevista a um político,

que se sabia manifestamente corrupto, e que nessas condições quicas poderia

fazer alguma revelação importante. Definitivamente, esta entrevista era

uma oportunidade única e poderia ser um ponto de inflexão na

minha medíocre carreira.

Quando uma pessoa descobre que tem um câncer, normalmente fecha–se

completamente, às vezes até com a própria família. No entanto, a

minha insistência, as minhas bajulações e, sobre tudo, a intermediação do meu

amigo, conseguiram dobrar as reticências iniciais do político. O anonimato foi a

condição imposta por ele. Sob nenhuma circunstância eu poderia revelar nomes

nem locais, assim como qualquer outra coisa que comprometesse o seu

anonimato. O chamaria sempre de Falcão.

Quando cheguei diante dos portões da casa de Falcão, uma imponente mansão

num bairro nobre, deparei–me com o serviço de vigilância. Após ser revistado,

estacionei e fui encaminhado de imediato para a sala onde seria realizada a

entrevista. Contrariamente ao que pensava, a tradicional "espera" com que

normalmente toda autoridade castiga os jornalistas não aconteceu. Falcão

já estava me aguardando, mostrando alguns sinais de impaciência. Pediu para

eu me sentar junto a uma bela mesa feita em madeira nobre e pediu para eu ser

o mais breve possível. Disse que estava arrependido de ter aceitado a entrevista,

porém, como já havia se comprometido, não queria voltar atrás.

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Entrevista a um Político Corrupto

eBook por Miguel Cabezas

Então uma idéia maluca me veio à cabeça. Diante daquele homem despejado da

vida, as perguntas cuidadosamente selecionadas e anotadas no meu bloco de

anotações, às quais tinha dedicado largas horas de preparação e pesquisa , me

pareceram inadequadas. Decidi rasgar todo aquele planejamento e improvisar.

Falar das implicações daquele homem sobre tal e qual escândalo, tirar

da língua para obter novos nomes, encontrar novas linhas de pesquisa, pareceu-

me superficial. De repente, eu queria saber quem era aquele ser humano que

tinha na frente. Coloquei a gravadora digital na mesa, porém ele me fez guardá-

la de imediato. Teria que tomar nota à moda antiga. Caneta e papel na mão.

II

– Gostaria que você começasse falando um pouco da sua infância.

– Bom. Você já deve saber que fui criado pelos meus avós. A eles devo minha

alfabetização e ter completado o ensino básico num bairro em que

quase ninguém sabia ler e escrever. Tive muita sorte, mas quando tinha

quatorze anos eles morreram. Primeiro o meu avô e pouco tempo depois, minha

avó. As condições eram duras e o atendimento médico precário. Não me lembro

dos meus pais, apenas tenho uma velha foto que eles deixaram. Depois que

meus pais me abandonaram, nunca mais entraram em contato comigo.

– Você teve que se virar sozinho na vida ou teve alguém para lhe ajudar?

– Na minha família só tinha vagabundo. Tive que me virar sozinho. Durante anos

vendi jornais nas ruas, caramelo em ônibus, limpei pára–brisa, fiz de tudo para

sobreviver. Mas isso todo mundo sabe.

– Como você começou na política?

– Enquanto vendia jornais, percebi que desse jeito nunca chegaria longe. Jamais

poderia comprar um desses carrões que paravam para comprar jornal, e muito

menos pretender paquerar aquelas mulheres que desfilavam diante de mim com

ar de desdém, como se eu não existisse. A minha iniciação sexual foi com uma

puta e durante muito tempo esse foi o meu único contato com o sexo feminino.

Passou pela minha cabeça virar assaltante, mas logo percebi que assaltante tem

vida curta. Tinha que ter outro jeito de me dar bem na vida. Aí foi quando me fiz

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Entrevista a um Político Corrupto

eBook por Miguel Cabezas

amigo de um cabo eleitoral. Sempre fui bom de papo. Sei o que gostam de ouvir

as pessoas.

– Então você entrou na política como uma forma de melhorar a sua vida?

– Exato. Tive a sorte de que o partido para o qual trabalhava ganhou as eleições.

O meu ensino básico e o apoio do meu amigo me permitiram obter um cargo de

confiança. Era pouca coisa, ganhava dois salários mínimos, mas eu nunca tinha

visto tanto dinheiro junto na minha vida. A partir daí decidi que me

dedicaria inteiramente à política.

– Fale da sua ascensão no partido

– Como disse, eu sou muito bom de papo, aprendi cedo as regras do jogo. Fiz

amizade com outra pessoa que não era importante no partido, mas tinha bons

contatos. Através dela cheguei a conhecer alguém que realmente tinha

certa importância no partido, não muita, mas tinha muita grana e a sua voz era

escutada. Vamos chamar a esta pessoa de "M". Eu fiz de tudo para atrair sua

atenção, até que, aos poucos, ele me passou alguns trabalhos que eu executei

com a máxima eficácia.

– Em que consistiam esses trabalhos?

– Coisa suja, mas não vou dar detalhes. Uma das regras da política para ascender

é você sujar as mãos, exceto se você nasce num berço milionário, onde é o outro

que já sujo as mãos por você. Eu perdi a minha virgindade com uma puta e vendi

rápido a minha alma para a política (risos).

– Mesmo assim, subir num partido político não é coisa fácil. Como você

conseguiu isso?

– Sempre é um golpe do destino. Neste caso eu cheguei a ser o braço direito de

"M" por méritos próprios. Por uma fatalidade ou uma benção, segundo se olhe.

Ele morreu num acidente e eu assumi as suas responsabilidades no partido. "M"

só era dedicado à política para articular os seus negócios privados. Eu consegui

me posicionar no conselho de administração de uma das suas empresas e a

partir daí foi só fazer o mesmo trabalho que "M" fazia, só que eu fiz ainda muito

melhor. Para aquele momento eu já tinha comprado um título universitário

de advogado. Eu era craque em desvio de verbas e superfaturamentos. Foram

bons tempos.

– Pode-se dizer que esse foi o início da sua fortuna?

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Entrevista a um Político Corrupto

eBook por Miguel Cabezas

– Certamente. Nesse período fiz o meu "primeiro milhão". Como reza o dito, o

primeiro sempre é o mais difícil.

– Em relação à sua família, a sua vida foi um tanto tumultuada. Qual é a sua

relação atual com ela?

– Como você sabe, eu tive várias esposas. Basicamente todas queriam o mesmo,

o meu dinheiro e boa vida. Por isso sempre fiz excelentes acordos pré-

matrimoniais. Elas pensavam que poderiam me manipular depois. Quando

descobriam que não podiam e que eu tinha outros casos, cansavam e pediam o

divórcio. Para mim, a esposa é uma figura da sociedade. Em minha opinião as

mulheres são todas umas putas, cada uma tem o seu preço. Você quer ver...

Nesse momento Falcão fechou os olhos, havia uma expressão de dor contido em

sua face. Tirou o que parecia ser um dispositivo de aviso do seu bolso e, após

acioná-lo, em pouco tempo apareceu uma enfermeira portando uma bandeja

com uma seringa. Ele arregaçou a sua camisa mostrando a musculatura do

braço. A enfermeira, uma bela mulher que aparentava ter vinte e poucos anos,

aplicou a injeção diligentemente. Perguntou se desejava mais alguma coisa e,

diante da negativa, retirou-se.

– Você viu. Belas pernas, né? Ao principio negou-se a tranzar comigo. Falei para

ela que ia dobrar o seu salário. Ou fazia o que eu queria ou rua. É assim com

todas as minhas empregadas. Por isso entram com salários relativamente baixos

(novamente riu). Com as esposas, claro, é diferente, sai mais caro, porém,

são necessárias para as campanhas na política. Um político solteiro não tem

gancho.

– E a relação com os seus filhos?

– Bom, a vantagem de ter muitos filhos e com diversas mulheres é que me deu a

oportunidade de selecionar alguns deles com suficiente cabeça para ocupar

postos de responsabilidade. Os outros são bons vivants que irão apodrecendo na

sua própria merda. É a seleção natural.

Falcão virou a cabeça um instante como para pensar melhor o que ia dizer e

depois concluiu.

– Quando morra, vão se matar entre eles e disputar a minha herança como

abutres. Durante um tempo quero que seja assim, embora tenha tudo previsto

para favorecer alguns deles. Como já disse, os mais aptos.

– O que representa o amor para você?

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– Para mim o amor é uma mentira, sempre há algum interesse. Ou então é

biológico como o caso da mãe com o filho, porém, até isso às vezes falha. Falhou

comigo.

– Mas você teve o amor dos seus avós que cuidaram de você sem nenhum

interesse.

– É verdade. Mas isso é algo biológico.

– Têm pessoas que cuidam de outras sem pedir nada em troca –retruquei.

– São pessoas com algum tipo de desequilíbrio mental, carentes, que precisam

de alguém para ocupar-se ou justificar a mediocridade das suas vidas. Nem que

seja um cachorro.

– Duras palavras, não lhe parece?

– Rapaz, eu fui abandonado pelos meus pais, não tive ninguém nesta vida, com

exceção dos meus avós e foi por pouco tempo. Conheci desde cedo que se você

não engana é enganado. Para os demais eu era mais um miserável deste país.

– Mas você fez amigos, conheceu aquele cabo eleitoral que ajudou você.

– Puro interesse, eu era alfabetizado e ele mal sabia ler e escrever. Eu fazia

quase todo o trabalho dele. Puro interesse –repetiu. Eu vi a oportunidade e a

agarrei.

– A amizade para você então é uma questão de interesse?

– Totalmente. Mas digamos que uma relação de interesse recíproco. Algo assim

como o matrimônio, porém, sem sexo.

– Então você se sente realizado, vai em paz desta vida?

– Creio que curti bem a vida. Tive tudo o que quis. As pessoas dançaram ao meu

redor. Mas ir em paz? A vida nunca me deu paz, mas conflitos. Nasci e vivi em

conflitos. Estou morrendo por uma merda de câncer. Não, não morro em paz,

mas como um soldado numa guerra. Eu estou me lixando para a vida. Por mim

podem ir à merda todos numa grande fogueira.

– Qual a realização que considera mais importante em sua vida?

– Você não percebeu ainda? Um Zé-Ninguém da vida chegar até onde eu

cheguei.

– Tanto tens tanto vales?

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– Exato.

– Há políticos que são um pouco menos materialistas, falam de filhos, esposa,

família...

– Bobagens! Fracos! Mas é verdade. Eu tinha um companheiro para o qual o filho

era tudo, então ele morreu num acidente. Ele desabou completamente. Nunca

mais foi o mesmo. Aos poucos foi apagando até que morreu.

– Pode significar que o amor pela vida deve ser mais amplo e não tão restrito à

família, não tão egoísta. O que você acha disso?

– Como disse, é só uma fraqueza humana.

– Teve algum livro ou obra, que o influenciou de alguma forma na sua vida?

– Como disse, comprei meu título de advogado. Leio nada, exceto jornais com

fins exclusivamente políticos. Você acha que sou inculto por isso. Para mim os

intelectuais são uma turma de desocupados que não tem nada melhor que fazer

que masturbar-se mentalmente.

– Na sua visão da vida, cada um por si. Onde o amor é algo biológico e a amizade

um jogo de interesses. Você acha que vale a pena viver?

– Olha só. De todos os jornalistas que tem nesta cidade parece que foram

escolher um filosofo para me entrevistar. Rapaz, ninguém me perguntou se eu

queria nascer neste mundo de merda. Sou um simples sobrevivente.

O meu coração deu um pulo nesse instante.

– Como assim "foram escolher". Você armou esta entrevista?

– Vocês jornalistas, sempre tão inocentes. É claro, eu queria alguém novo como

você para veicular certas informações. Mas até agora você não perguntou de

nenhuma sujeira, de nenhum caso quente. Você está servindo mais é para

encher meu saco.

Nesse momento a ficha caiu, e o que eu creia ser resultado de um árduo trabalho

jornalístico de contatos era, na verdade, a simples manipulação de um jovem

jornalista.

– Quanto tempo você tem de vida?

– Ofendi a sua auto-estima (risos). Acorde rapaz! Sei, vai se sentir melhor

sabendo que tenho meses de vida. Escute aqui filho, até que gosto de você,

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o típico idealista que acredita na honestidade das pessoas. Vamos fazer as coisas

de outra forma. Você publica o que meu secretário preparou e faço uma

generosa doação para você.

Fiquei paralisado, várias cenas de minha vida passaram pela minha frente como

em um filme. As numerosas dívidas que eu tinha; as consultas pelo psicólogo,

pelo psiquiatra, até chegar aos antidepressivos, dos quais tinha me tornado

dependente. A minha noiva me abandonando. Os meus esforços para terminar a

faculdade. Meu trabalho quase ignorado no jornal. Os meus pais me jogando na

cara praticamente toda e qualquer coisa que eu fazia. Eu era um simples

pedregulho de carvão preparado para alimentar a caldeira do sistema.

Avalie as distintas possibilidades. Vender a minha alma e viver com a carga

daquilo contra o que sempre lutei, ou bem rejeitar aquela oferta e virar mais um

objetivo a ser destruído por Falcão, que, na sua soberbia, tinha falado demais.

Mas também pensei que quando se apresentam na vida duas opções,

normalmente as duas estão erradas.

– Você disse alguns meses. Isso é muito tempo, eu só tenho mais um dia.

Falcão me olhou com cara de incredulidade.

– O que você quer dizer?

– Quer dizer que eu tenho menos tempo vida do que você. Amanhã vou por um

fim na minha vida miserável.

–Você vai se suicidar, você é maluco.

O silencio tomo conta da sala. Senti o olhar cínico de Falcão me analisando.

Aquilo não estava no roteiro predeterminado daquele ser inescrupuloso. Falcão

poderia me dispensar nesse momento, mas isso introduzia uma variável

incontrolável, algo que o seu ego era incapaz de digerir.

– O mundo está governado por homens como você, unicamente preocupados

em manter o seu poder e aumentar as suas riquezas. Há alguns tempos que

descobri que sou um escravo do sistema e a outra possibilidade, pisar cabeças

para ser um capataz, nunca me atraiu. Sou um homem de paz, não um

guerreiro. Viver no mundo que você descreveu não é nem um pouco

interessante pra mim, mas um tormento onde a melhor opção é por um fim

honorável.

– To be or not to be –disse Falcão.

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– Para ser alguém que diz que nunca leu, isso define muito bem a situação.

III

A claridade da tarde começava a cair quando Falcão acionou novamente o seu

pequeno dispositivo para chamar a sua secretaria e pedir uma pequena

merenda.

– Quicas você comece a raciocinar melhor com o estômago cheio –interpelou

Falcão.

– Não estou com fome.

– Comer é importante, ajuda a ver as coisas com mais claridade –retrucou

Falcão.

– Creio que a entrevista está encerrada –disse eu enquanto me levantava–. Devo

ir embora. Não se preocupe não vou publicar nada, o mundo está cheio de

víboras como o senhor. Não adianta mostrar ao mundo uma, porque haverá

mais seis para substituí-la.

Mais uma vez, toquei na fibra sensível do Falcão, tomar uma decisão sem contar

com ele. O rosto dele enrijeceu-se, deixando transluzir uma ira contida.

– Ainda não terminamos aqui –sentenciou Falcão.

– Você está com algum remorso? –perguntei

Eu sabia que Falcão não estava com remorso algum, que simplesmente tentava

ganhar tempo enquanto analisava melhor a situação e as suas implicações.

– O mundo é duro, mas isso não é razão para um jovem como você desistir da

vida –ponderou Falcão.

– No entanto você desistiu da vida há muito tempo – retruquei.

Falcão esboçou um sorriso cínico com o lábio partido. Por mais que eu me

esforçasse não conseguia achar sequer vestígios de humanidade naquela face

surrada, trilhada pelas inúmeras linhas do tempo. Sentei-me novamente junto à

mesa para degustar a merenda e durante alguns instantes deixei que Falcão me

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envolvesse com suas palavras vazias enquanto minha mente viajava longe,

pensando em algum plano para revidar aquela situação. Começava um novo

jogo.

IV

Falar com Falcão era como jogar uma partida de xadrez. O diálogo era sempre

carregado de tensão e as posições continuamente testadas, sempre tentando

descobrir uma estratégia por detrás de qualquer movimento. Cada palavra

minha, por inocente que pudesse parecer, era colocada no microscópio daquela

mente retorcida. Sem dúvida, a capacidade de análise era o forte de Falcão, mas

também, por hipertrofiada, o seu ponto fraco.

– Desculpe-me. Creio que tive uma reação emocional diante da sua... –fiquei

perdido um instante procurando uma palavra adequada– “revelação”.

– Parece que finalmente entrou algo de sensatez em sua cabeça idealista. Vai

aceitar a minha oferta então?

– Eu agradeço a sua oferta, mas como disse não vou publicar nada. Creio que

minha carreira termina aqui. O melhor é finalizar nossa conversa e eu ir embora.

Aquilo não agradou nem um pouco a Falcão, que esboçou um gesto de irritação

em sua face.

– Já vejo que você segue empenhado nessa sua idéia de se matar amanhã.

Fiquei em silencio. A vantagem de saber quando um vai morrer é que você pode

planejar muitas coisas até que esse momento aconteça. Então pensei que se ia

morrer, porque não matar antes aquele filho da puta que tinha na frente. Os

seguranças lá fora, no jardim adjacente à sala, apenas giravam a cabeça para

observar o que acontecia. Falcão estava fisicamente debilitado. Bastava eu ser

rápido o suficiente para tapar a sua boca e impedir que acionasse aquele seu

mecanismo de chamada, depois asfixiá-lo rapidamente com uma das almofadas

da sua poltrona. Meus pensamentos foram bruscamente interrompidos por

Falcão.

– Rapaz, você precisa de ajuda psiquiátrica. Eu posso recomendar-lhe um bom

profissional – continuou falando.

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– Eu já tenho um e não deu muito certo. Acho que os idealistas, como você diz,

não têm cura.

Falcão ficou por um instante paralisado e, logo em seguida, explodiu numa

estrondosa gargalhada.

– Você esta brincando, não é? Você é maluco. Por acaso está barganhando

comigo?

– Creio que não. A Idéia de uma morte honorável não é nova. Veja se não a ética

samurai.

– Isso tudo é invenção de intelectuais desocupados. Caia na real! –disse Falcão,

mostrando uma crescente irritação.

– Sei. Para você tudo o que desconhece não é importante ou não presta.

– Esta me chamando de ignorante? – o tom de voz de Falcão começou a crescer

e os seguranças do jardim começaram a virar a cabeça de forma nervosa.

– Foi você quem disse. Bom, mas é verdade... eu acredito que você seja uma das

pessoas mais ignorantes e estúpidas que eu já conheci em minha vida, pois

tendo condições para não sê-lo, optou por manter-se ignorante e ainda se gabar

disso.

V

Falcão levantou-se e ficou uns instantes parado, sem reação. Aquilo era

novidade para ele, acostumado a receber somente elogios de seu círculo de

puxa-sacos, sem críticas, sempre jogando a responsabilidade nos demais.

Provavelmente eu estava diante de um dos maiores egos do país.

– Saiba que todos aqueles que ousaram desafiar-me, hoje estão a sete palmos

da terra. Um estalar dos meus dedos e você já era.

Falcão parou um instante, deu um sorriso cínico e continuo.

–Claro que isto não vai intimidar você, estaria lhe fazendo um favor, não é

mesmo?

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Entrevista a um Político Corrupto

eBook por Miguel Cabezas

Fiquei em silencio. Era o momento de colocar em prática o meu plano, matar

aquele monstro, mas quando já tinha reunido as forças para executá-lo, a porta

de vidro corrediça que dava acesso ao jardim abriu e os dois seguranças

entraram rapidamente.

– Tal vez seja bom que você cumpra amanhã suas intenções –disse Falcão

enquanto os seguranças se aproximavam.

Mas quando eu esperava que aqueles dois armários avançassem para cima de

mim, um deles foi rapidamente à direção de Falcão e o empurrou contra a sua

poltrona imobilizando-o.

– Vai ver que é rápido –disse o outro segurança enquanto procurava um ângulo

adequado para injetar uma seringa no braço de Falcão–. Esta feito –sentenciou

instantes depois enquanto terminava de aplicar a injeção–, o que você se injetou

antes mais isto deve ser suficiente para uma pequena overdose.

Falcão começou a gritar, focejeu com os dois seguranças e em pleno ataque de

pânico ainda conseguiu colocar sua mão no bolso e apertar o seu dispositivo de

chamada.

– Eu não queria que ela visse a sujeira, mas já que você insiste –disse o segurança

para Falcão, ainda com a seringa na mão.

O ataque cardíaco, conseqüência da overdose, não se fez esperar. Falcão olhava

desorientado para todos nos e começou gritar “traidores” entre lamentos.

Depois fixou seu olhar no segurança que tinha injetado a overdose e já quase

sem fôlego disse “você”. Finalmente, quando a vida de Falcão era já um fio a

ponto de quebrar, virou-se para mim e expirou.

– Não tente fugir, Doutor. A gente vai conversar –disse 0 segurança voltando-se

para mim.

Rapidamente, os dois seguranças arrumaram a cena do crime, limparam a

seringa de impressões digitais, marcaram as de Falcão e posicionaram o cadáver

adequadamente.

A enfermeira entrou instantes depois.

– Está morto o porco? –perguntou.

– Agora é com o Capeta –disse o outro segurança.

Ela inclinou-se sobre ele e tomou seu pulso.

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– E agora, filho da puta? –perguntou ela, e depois começou a chorar.

VI

Os seguranças tinham ouvido nossa conversa o tempo todo através de um

microfone. Falcão não tinha comprado os favores da enfermeira, mas

sistematicamente violado ela depois de repetido acosso. A vingança, em forma

de namoro com um dos seguranças, foi pouco a pouco sendo amassada p ela

enfermeira, que só agüento a sua dramática situação por conta da espera do

momento adequado para revidar. O crime de Falcão tinha sido cuidadosamente

planejado como um “acidente” por overdose do seu medicamento para a dor.

– Estávamos decididos, mesmo com grande chance de sermos pegos –disse o

segurança, abraçando a enfermeira–. O plano era matá-lo na próxima semana,

mas depois de ouvir a sua conversa, achei que você poderia ajudar como

testemunho de que “ele mesmo” em um ataque de dor, e ignorando os

conselhos da sua enfermeira, auto-injetou-se uma dose perigosa da sua

medicação, causando seu óbito. Isto reforçaria nossa versão.

O segurança olhou–me esperando uma confirmação do meu apoio. Novamente,

lá estava eu frente a uma encruzilhada. Possuía, aparentemente, apenas duas

opções: ou participar do crime como cúmplice ou arriscar-me a ser a seguinte

vítima daquele complô.

Relembrei a cena da morte de Falcão, os seus gritos de pânico diante da traição

dos seus seguranças, o seu último olhar inconformado, incrédulo até o ultimo

instante diante da morte que finalmente lhe chegava.

Como sempre faço diante de duas alternativas que se apresentam

aparentemente como únicas, optei por criar uma terceira.

– Bem, eu poderia colaborar com vocês –meu tom era conciliador–. Vocês

sabem das minhas intenções de suicídio, porém, hoje aqui aconteceu algo

realmente extraordinário, um juízo de Deus.

A enfermeira concordou com a cabeça, esboçando um leve sorriso, ainda

degustando a sua vingança.

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eBook por Miguel Cabezas

– Na verdade, creio que vocês não entendem. Na mesma fração de segundo que

vocês entraram na sala para executar o seu plano, eu mesmo iria me dispor a

matar Falcão com as minhas próprias mãos.

O segurança abriu os olhos, incrédulo, mas satisfeito, prevendo ainda mais

minha colaboração.

–Sim –continuei falando–. Eu poderia ter poupado vocês do trabalho. Mas os

acontecimentos tomaram outro curso. Sendo assim, eu confesso a vocês as

minhas intenções. No entanto, por algum desígnio, eu não devia ser

instrumento, mas testemunho mudo do que aqui se desenrolou.

– Como assim, “doutor” –disse o segurança. Você não vai colaborar com a

gente?

O outro segurança começou a ficar um tanto inquieto.

– Creio que o meu testemunho só vai atrapalhar vocês, dar um tom midiático

ainda mais elevado a esta morte. No entanto, não devem preocupar-se comigo,

eu nunca estive aqui. Eu fiquei preso no trânsito e, portanto, não vi nada. Os

familiares, inimigos, muita gente desejava a morte de Falcão, portanto ,

ninguém vai questionar esta morte que beneficia muita gente. Além do mais,

ninguém sabe da causa do crime.

– Exceto você – gritou nervoso o outro segurança.

– Como vou saber? Eu nunca estive aqui –repeti elevando meu tom.

A situação era crítica e eu devia me controlar.

– Calma! –exclamou o companheiro– Creio que você esta sendo sincero, mas

fique sabendo que se mudar de opinião eu mesmo fabricarei o seu suicídio.

– Agora tudo mudou – disse eu.

O segurança sorriu.

A noite tinha caído, ninguém notaria o meu veículo saindo daquele bairro de

mansões amuralhadas. Os dois seguranças me acompanharam até a saída,

provavelmente ainda com dúvidas de se estariam agindo bem ao deixar-me ir

embora.

– Saia com as luzes desligadas até pegar a auto-estrada, Doutor..., como era

mesmo o seu nome?

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Entrevista a um Político Corrupto

eBook por Miguel Cabezas

Eu respondi, assentindo com a cabeça.

–Ninguém, meu nome é ninguém.

Enquanto dirigia o meu carro de volta para minha casa, fiquei pensando em

como tinha nascido pela segunda vez nesse dia, de como somos impotentes

frente ao destino. Como então eu podia pretender por um fim na minha vida.

Uma força maior movia todos nos, unia todo e todos, e essa força abria um novo

horizonte infinito diante meu. Daí para frente encararia a vida de outra forma.

Nascia um novo eu.

Epílogo

Após alguns anos, encontrei com o segurança num hotel de praia. Como previ,

nada aconteceu durante a investigação da morte de Falcão. Muita grana rolou

para que o caso fosse encerrado quanto antes.

Perguntei pela enfermeira, se os dois seguiam juntos.

–Sabe Deus onde ela está. Espero que bem –respondeu ele, olhando-me

fixamente durante alguns instantes, e depois continuou– . Você deve estar

pensando que ela me utilizou para sua vingança. Mas cá entre nós, eu já sabia

disso desde o principio, e tirei partido da situação com certa pessoa que pagou

alto pelo trabalho. Não pense que fui inocente.

Isso explicava a colaboração do outro segurança no complô contra Falcão, coisa

que sempre tinha me intrigado. E continuou me contando como tinha

progredido muito e entrado na política, seguindo os passos do seu ex-patrão...

Enquanto falava, minha mente viajou longe. Lembrei da morte do César, de

como um homem pode acumular poder, e de como morreu finalmente

assassinado, cercado dos seus inimigos, inimigos que, na verdade, só queriam

ser como... César.

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Entrevista a um Político Corrupto

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