quadro politico internacional
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O QUADRO POLÍTICO INTERNACIONAL APÓS O 11 DE SETEMBRO DE 2001
Walmir Barbosa*
APRESENTAÇÃO
O presente texto é um ensaio acerca das relações internacionais após os
atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 e da intervenção militar terrorista dos
Estados Unidos no Afeganistão. Como tal ele pretende proporcionar uma leitura do
quadro político internacional, de forma a buscar identificar algumas tendências das
relações internacionais no período histórico atual. Período que, a nosso ver, teve seu
início anteriormente ao 11 de setembro, ainda no governo Bill Clinton, mas que se definiu
claramente com a eleição de George W. Bush e os referidos atentados.
Este ensaio é a materialização de resultados do desenvolvimento do projeto de
pesquisa “Cenários possíveis das relações internacionais após o 11 de setembro de
2001”, aprovado junto a VPG/Coordenação de Pesquisa da UCG. O desenvolvimento do
referido projeto contou com a indispensável participação e colaboração de Lorena Martins
Rodrigues Alves, estudante do Curso de Direito da UCG, de Sebastião Cláudio Barbosa,
mestrando em educação pela UFG e de Paulo Faria, membro da organização não
governamental Coletivo Educacional e Cultural.
Este ensaio se dirige aos estudantes que cursam a disciplina Ciência Política e aos
do curso de Relações Internacionais, bem como a todos aqueles preocupados com a
busca de uma abordagem dialética materialista histórica dos fenômenos em curso.
* É mestre em História das Sociedades Agrária pela UFG e professor da UCG e do CEFET-GO.
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1. INTRODUÇÃO
Abro a janela, vejo o horizonte! Ando três passos
para ele, ele anda 30 passos para longe de mim.
Corro 30 kilômetros para ele. Ele dispara 300
kilômetros para bem longe de mim.
Mas para que serve a utopia?
Para caminhar!
Eduardo Galeano
A queda do Muro de Berlim em 1988 e o fim da URSS em 1991 marcaram o triunfo
dos Estados Unidos no âmbito da Guerra Fria. Este triunfo se materializou na proposta de
uma “Nova Ordem Mundial” por parte dos Estados Unidos ao final dos anos 80 e início
dos anos 90 do século XX. A “Nova Ordem Mundial” proposta pelos Estados Unidos,
tendo à frente o governo George H. Bush, consistia fundamentalmente nos seguintes
pontos (Fernandes, 2002):
a) os vários fóruns multilaterais do sistema ONU deveriam se transformar no núcleo
ordenador de uma nova ordem mundial mais estável no mundo. O objetivo seria o
de superar tensões e antagonismos por meio da mediação e/ou mecânica
jurídico/institucional do sistema ONU;
b) o Conselho de Segurança da ONU assumiria uma nova centralidade como foro de
negociação e resolução de problemas relacionados à paz e à segurança no
sistema político internacional. O objetivo seria estabelecer uma política de
pactuação entre as potências militares, de forma a convertê-las em guardiões e
gestores da ordem mundial;
c) os organismos econômicos do sistema ONU (FMI, Banco Mundial, OMC etc)
exerceriam o papel de “indutores” e “guardiões” dos mercados abertos. O objetivo
seria assegurar que os organismos econômicos sustentassem política, econômica
e tecnicamente orientações de forte conteúdo liberal.
A “Nova Ordem Mundial” proposta pelos Estados Unidos representava a busca por
coesionar a hegemonia norte-americana por meio de pactos de compromissos, isto é, a
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forma de exercício da hegemonia norte-americana que aglutinava de forma subordinada,
subalterna ou não, interesses e metas de outros países, Estados e capitais. Mas de fato,
representou uma forma de realimentar a hegemonia norte-americana em prejuízo de
todos os demais países, embora em qualidade e quantidade diferenciada.
Os Estados Unidos buscaram alcançar vários objetivos estratégicos no plano
econômico e no plano político-ideológico. No plano econômico a “Nova Ordem Mundial”
almejou, em primeiro lugar, conquistar e consolidar novos mercados de exportação para
produtos e capitais norte-americanos, de forma a compensar a retração da demanda
interna provocada pela contenção dos níveis salariais e de emprego criado pelo ciclo
recessivo de 1988/92 e pela elevação do custo do capital constante que se dava em parte
às custas do capital variável, em função da elevação dos novos custos tecnológicos que a
reestruturação produtiva1 legou da era Ronald Reagan. Em segundo lugar, viabilizar um
ambiente mundial de liberdade de movimentação favorável às corporações e bancos
norte-americanos, francamente beneficiados pela posição diplomática e militar vantajosa
dos Estados Unidos nas relações internacionais, em um contexto em que os mesmos
encontravam-se acossados pelas corporações e bancos europeus e japoneses. Em
terceiro lugar, assegurar que os organismos econômicos do sistema ONU (FMI, Banco
Mundial, OMC etc) permanecessem como verdadeiros prolongamentos do Departamento
do Tesouro dos Estados Unidos, de forma a usufruir das vantagens que o padrão dólar
proporcionava nas relações econômicas internacionais.
No plano político-ideológico a “Nova Ordem Mundial” almejou, em primeiro lugar,
afirmar a tese do “Fim da História”, isto é, o de que teria esgotado a possibilidade de
ocorrerem novas revoluções/transformações sociais e que teria sido consagrada a
eternização do liberalismo econômico e político moderno. Em segundo lugar, confirmar os
Estados Unidos como o guardião da nova ordem, cujas ações políticas e militares
estariam justificadas/legitimadas pelo sistema ONU.
A “Nova Ordem Mundial” proposta pelos Estados Unidos demonstrou ser capaz de
coesionar a hegemonia norte-americana por meio de pactos de compromissos e, dessa
forma, realimentá-la. No Brasil, por exemplo, assistimos, ao longo dos anos 90, os efeitos
desse novo projeto de hegemonia. No plano econômico ocorreu a abertura incondicional
1 Combinação da revolução técnico-científica e dos novos métodos de gestão produtiva iniciados nos Estados Unidos e na Europa na segunda metade dos anos 70, cujos desdobramentos no mundo do trabalho foram o desemprego e o subemprego, a flexibilização das legislações de proteção ao trabalho, entre outros. No Brasil a reestruturação produtiva teve início no governo Sarney (1985-89), mas se aprofundou nos governos de Collor (1990-92) e nos de Fernando Henrique Cardoso (1995-98) e (1999-02).
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da economia brasileira aos produtos e serviços importados, a entrada maciça de
empresas transnacionais e a subordinação do país aos organismos internacionais (FMI,
Banco Mundial e OMC). No plano político-ideológico ocorreu o avanço da idéia de que
transformações sociais não mais seriam possíveis, de que a globalização seria inevitável
e de que o país deveria se submeter à benevolente “Nova Ordem Mundial” sob liderança
dos Estados Unidos, o grande ganhador em todo esse processo.
A “Nova Ordem Mundial” proposta pelos Estados Unidos, todavia, despertou uma
crescente resistência. Esta resistência foi especialmente grande após a crise mexicana e
o seu prolongamento sistêmico em 1994.
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2. PACTO FORDISTA, ACUMULAÇÃO E CRISE
A crise do neoliberalismo tem gerado a
oportunidade para aprofundá-lo. Cortes nos
gastos sociais, reestruturação de empresas, altas
taxas de juros, baixos salários e amplos
programas de privatização melhoram os
indicadores macroeconômicos e pioram os
indicadores macrosociais.
James Petras
A compreensão da proposição, crise e esgotamento da “Nova Ordem Mundial” e do
caminho para uma ordem mundial não prevista, nos impõe identificar velhas e novas
determinantes que condicionam o momento atual do sistema do capital e do seu sócio-
metabolismo. Assume relevância especial a tentativa do sistema do capital de
repor/aprofundar o domínio sobre o mundo do trabalho e a crise de acumulação do
capital, bem como a tentativa de restabelecer uma taxa de acumulação que ultrapasse a
pura e simples reiteração econômico-produtiva, isto é, que ultrapasse a reposição das
estruturas, processos e dinâmicas econômicas sem, todavia, realizar a acumulação de
capital real. A superação da crise de acumulação, por meio de uma taxa de acumulação
elevada, no âmbito do sistema do capital, significa a imposição de formas ainda mais
brutais de exploração econômica, dominação política e opressão ideológica aos
trabalhadores e aos povos das regiões periféricas e semi-periféricas do capitalismo.
2.1. A crise do pacto fordista
Uma angústia e um mal estar tomou conta das grandes massas que compõe o
mundo do trabalho, povos oprimidos e setores médios formados por assalariados e
pequenos proprietários em todo o mundo. Em primeiro lugar, emergem aspectos como a
degradação acelerada das condições de trabalho, o desemprego estrutural, a
precarização do contrato de trabalho, a destruição/desarticulação do sistema de proteção
social, o ressurgimento da fome, das epidemias, da subalternidade da mulher. Em
segundo lugar, aprofundam-se aspectos como a decadência dos valores ético-morais em
níveis individuais e coletivos, a arrogância das classes possuidoras, a ostentação da
riqueza, o individualismo possessivo. Em terceiro, intensificam-se aspectos como os
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grandes acidentes ecológicos, o desmatamento nos continentes onde ocorrem grandes
florestas, a poluição dos mares. E, por fim, radicalizam aspectos como a imposição dos
países capitalistas centrais sobre países capitalistas periféricos e semi-periféricos, a
guerra entre Estados e intra-Estado, a criminalidade.
No Brasil essa realidade encontra-se expressa por meio de aspectos como o
endividamento interno e externo e a desnacionalização da economia, com a maciça
transferência de excedentes para os países centrais do capitalismo; a desagregação
social no espaço urbano, com o conseqüente crescimento da criminalidade e
generalização da pobreza; a deterioração do mundo do trabalho e das tradicionais
ideologias liberais ancoradas no “vencer na vida pelo trabalho”, com a relação
infantilizada da família com a escola; a expectativa de um acontecimento inusitado
(loteria, Big Brother, futebol, show do milhão, grupos de pagode etc) para a ascensão
social, ou o fracasso dessas expectativas como fator impulsionador do pentacostalismo.
Essa realidade não compõe um quadro nem singular e nem original em suas
formas. De fato, a história da sociedade capitalista e burguesa é marcada,
profundamente, por ela. Todavia, havemos de registrar que essas formas de
manifestação da sociedade capitalista e burguesa podem se apresentar intensas e
aceleradas em determinadas conjunturas e/ou períodos históricos. Em nossa perspectiva,
nos encontramos atualmente numa dessas conjunturas e/ou períodos históricos.
Encerrou-se o período histórico compreendido entre o pós-guerra, quando teve
início a Guerra Fria, e 1988/91, época da contra-revolução liberal no leste europeu e do
fim da União Soviética. Período esse marcado pelo pacto fordista, que consistiu numa
reação defensiva das classes dominantes dos Estados Unidos e da Europa Ocidental,
para fazer face à grande crise econômica depressiva que teve início nos anos 30, o
controle parcial/temporário do impulso reprodutivo incontrolável do sistema do capital, a
reconstrução européia e japonesa e a contenção das lutas de classes e da ameaça de
“sovietização” da Europa Ocidental.
As bases políticas do pacto fordista articulava empresários, partidos políticos,
tecnocratas, sindicatos, dirigentes e quadros das organizações operárias. Essas forças
políticas e sociais procuravam ocupar o Estado, ampliar o fundo público por meio de uma
política fiscal ampla e consistente e reorientar o fundo público, de forma a contemplar dois
grandes objetivos. De um lado, realizar as grandes compras, os financiamentos
produtivos, as pesquisas em ciência e tecnologia incorporadas às políticas
governamentais, o que significava aprofundar o papel do Estado como um instrumento
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estrategicamente necessário para viabilizar a acumulação de um capital que tendia para o
oligopolismo. De outro, para criar a rede de proteção social, a saúde pública, a melhoria
das condições de trabalho e existência dos trabalhadores. O que significava ampliar as
bases do ‘contrato social’ liberal-burguês e afastar o ‘perigo’ do socialismo, na medida em
que o Estado assumia outras perspectivas de classes além da própria perspectiva
burguesa e é claro, baratear o custo de reprodução da força de trabalho para o capital, na
medida em que transferia seus custos de reprodução, a exemplo daqueles vinculados à
saúde, educação e previdência, para o Estado.
Efetivamente ocorreu, ao longo do período, uma elevada acumulação do capital,
uma melhora significativa das condições de trabalho e uma consistente rede de proteção
social. Ocorreu, ainda, a crença de que o capitalismo poderia ser “domesticado” e
“civilizado”; de que se poderia coesionar as perspectivas do mundo do trabalho com as
perspectivas do sistema do capital; de que a caracterização, conduzida pela dialética
materialista histórica à ordem capitalista e burguesa, intrinsecamente exploratória,
destrutiva e parasitária, não se sustentava; e, por fim, de que a idéia da revolução social
não mais se justificava.
No Brasil tais processos, comandados pelo sistema do capital, não dispuseram das
mesmas reservas econômicas, políticas, ideológicas e sociais, em decorrência da
condição de país de capitalismo semi-periférico. Além da criação/expansão precária dos
sistemas previdenciário, de saúde e de educação públicos, ocorreu um enorme
intervencionismo estatal industrializante sob regimes liberais populistas, conservadores ou
ditatoriais, e uma hiper exploração do mundo do trabalho (no campo e na cidade), tendo
em vista financiar as transformações produtivas, sob a grade de ferro da dependência e
subalternidade e transferir excedentes para os países centrais do capitalismo via
endividamentos, remessas de lucros etc.
No final dos anos 70 e início dos anos 80 do século XX o pacto fordista começou a
ruir. As eleições de Margareth Thatcher, na Inglaterra e de Ronald Reagan, nos Estados
Unidos, representantes exemplares do ultraconservadorismo inglês e norte-americano,
evidenciava e testemunhava a crise do pacto fordista. Amparados em programas
ultraliberais, eles propunham políticas que materializavam aspectos como a
desregulamentação da economia, a privatização de empresas do setor público, a restrição
dos direitos trabalhistas e da rede de proteção social, a redução de impostos sobre o
setor produtivo, a abertura das economias nacionais.
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O pacto fordista ruía em face da crescente resistência da classe operária à
extração da mais-valia pelo sistema do capital, do acirramento da competição dos países
capitalistas centrais pelo mercado mundial e da tendência continuada de queda da taxa
média de lucro – ou queda da taxa média de acumulação do capital, relacionada a
aspectos como a elevação da composição orgânica do capital (composição entre os
capitais constante e variável), a própria luta da classe operária contra a extração da mais-
valia e pela ampliação das bases do ‘Welfare state’ e o acirramento da competição dos
países capitalistas centrais pelo mercado mundial. Mas o pacto fordista ruía, também,
devido ao afastamento conjuntural da ameaça ao capitalismo ocidental em decorrência do
declínio econômico da União Soviética e da ausência de ideologias socialistas
revolucionárias na subjetividade da classe operária e demais trabalhadores em
conseqüência do próprio pacto fordista. Configurava-se, portanto, um ambiente favorável
para a recondução do domínio incontestável do capital sobre o mundo do trabalho e para
a contenção da tendência de queda da taxa média de lucro do capital.
No Brasil tais processos coincidiram e se interpenetraram com a fase final da
transição conservadora da ditadura militar para o regime liberal conservador representado
pela “Nova República”. Sob a derrota do Movimento Pelas Diretas Já e das reformas
estruturais formuladas pelos movimentos sociais, por um lado, e do conluio liberal-
conservador do Colégio Eleitoral e da Assembléia Constituinte de 1987/88, por outro,
alcançavam-se diversos objetivos, a saber: a transição das bases jurídico-políticas da
ditadura militar para bases jurídico-políticas liberais clássicas; a derrota da resistência
operária e popular reconstruída no bojo da luta contra a ditadura militar e contra a
exploração do sistema do capital e a recondução do pleno domínio do sistema do capital
sobre o mundo do trabalho; o início da ofensiva liberal por meio da campanha política e
ideológica contra o serviço público, contra o socialismo, e o marxismo, e pela privatização
do setor público, abertura econômica para a entrada de mercadorias, serviços e capitais
financeiros especulativos e produtivos oligopolistas.
O mundo do trabalho por meio dos movimentos sociais, em especial o sindical,
começava a perder a dinâmica da luta de resistência em curso e que dava sinais de que
poderia se desenvolver para a conquista da iniciativa política, isto é, de que as forças
políticas e sociais do mundo do trabalho fizessem com que as forças políticas e sociais do
sistema do capital agissem defensivamente em face das suas ações políticas. Tal
processo foi consumado por meio do trauma sócio-político representado pela vitória
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eleitoral de Fernando Collor de Mello em 1989 e pelo desemprego estrutural, acarretado
pela reestruturação produtiva e pela crise econômica aprofundados a partir de 1990.
A tentativa de retomada da luta de resistência, numa qualidade superior, a exemplo
da greve dos petroleiros de 1995, também foi seguida de derrota política. Tal realidade
ampliou a ofensiva do sistema do capital- parcialmente representado pelas forças políticas
e sociais, expressas no governo Fernando Henrique Cardoso e na sua base de
sustentação política no Estado e na sociedade-, contra os direitos trabalhistas e pelo
arrocho salarial, maior subordinação da sociedade brasileira ao endividamento interno e
externo, a privatização das gigantescas empresas estatais etc.
O fim do pacto fordista restringiu os mecanismos políticos e econômicos de
controle parcial/temporário do impulso reprodutivo incontrolável do sistema do capital. Em
conseqüência, passamos a nos encontrar em um contexto de liberdade quase total do
capital para desenvolver e valorizar. Equivale dizer que a humanidade encontra-se quase
que totalmente sobre a lógica de impulso de reprodução incontrolável do sistema do
capital causadora da degradação das condições de existência das amplas massas; da
crise ético-moral que conquista novos terrenos na sociedade; do acirramento dos danos
ambientais, e da radicalização do imperialismo, entre outros tantos processos.
2.2. Nova onda de mundialização do capital
O sistema do capital somente pode ser compreendido a partir da categoria
‘contradição’ como uma oposição inclusiva. Capital versus trabalho, capital unitário versus
capital unitário, capital não monopolista/oligopolista versus capital
monopolista/oligopolista, capital produtivo (produtor de valor e de mais-valia) versus
capital comercial (capital empregado na intermediação e na distribuição) e capital
financeiro (capital monetário centralizado e concentrado) e vice-versa, capital de matriz
nacional versus capital de outra matriz nacional, e assim por diante. Esta contradição,
impulsionada pela luta de classes e pela competição no mercado, desencadeia um
movimento de reprodução anárquico e incontrolável que se materializa em contradições,
descompassos e conflitos entre produção e consumo e produção e distribuição (Chesnais,
1997, p. 15-17).
Com o fim do leste europeu e da União Soviética, o sistema do capital completou o
seu processo de mundialização pois se fez presente em todos os cantos do planeta, não
encontra nenhum tipo de sistema competidor ou desafiador em escala internacional e
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apresenta um entrelaçamento profundo, a partir dos grupos monopolistas/oligopolistas
com interesses assentados nos seus respectivos Estados. E se mundializou, ainda, no
sentido de que proletarizou/concentrou grandes contingentes de trabalhadores (operários,
desempregados, marginalizados, segmentos médios, assalariados etc)2 e estendeu as
relações de produção capitalistas sobre todo o mundo, ainda que coetaniamente tenha
preservado formas não capitalistas de produção.
A fase atual da mundialização do sistema do capital assumiu formas diversas e
inquestionáveis. Todavia, três formas se destacaram. Em primeiro lugar, a referida
mundialização ocorreu dirigida e controlada pelo capital monopolista/oligopolista, que se
utilizou das políticas de liberalização e desregulamentação. Estas políticas permitiram ao
capital monopolista/oligopolista avançar, por um lado, no domínio da moeda e das
finanças e, por outro, nas novas condições de trabalho e de contratação da força de
trabalho.
Em segundo lugar, a referida mundialização foi profundamente caracterizada pela
expansão inaudita do capital financeiro extremamente concentrado e centralizado. O
capital financeiro configurou, por meio das dívidas internas e externas, a principal forma
de transferência de mais-valia e renda dos Estados que compõe a periferia e a semi-
periferia capitalista para os Estados que compõe o centro capitalista, em especial os
Estados Unidos.
O capital financeiro configurou, ainda, uma dinâmica de reprodução circunscrita
dentro da esfera financeira, isto é, sem necessariamente interagir de forma subordinada
com o capital produtivo, como de fato ocorreu no início da industrialização, no final do
século XVIII e no estabelecimento do capitalismo monopolista no final do século XIX. O
capital financeiro procura, atualmente, compartilhar/disputar com o capital produtivo a
maior cota da mais-valia e renda socialmente produzida, seja na forma: de controle que
exerce sobre o fundo público por meio da dívida pública; de financiamento da expansão
mundializada do capital monopolista/oligopolista; de especulação em torno de ações e
títulos nas bolsas de valores; ou ainda das dívidas externas dos Estados.
A expansão, sem precedentes, das operações de capital que conserva a forma
especulativa (monetária) e se valoriza por apropriação de parte dos rendimento do capital
produtivo (produtor de valor e mais-valia), sem sair da esfera financeira, revela um grau
extremado do fetichismo das relações sociais do capitalismo contemporâneo. Marx havia
2 Ricardo Antunes utiliza o conceito “a-classe-que-vive-do-trabalho” para expressar os diversos tipos de trabalhadores que passaram a compor o mundo do trabalho, desde a elaboração de O Capital de Karl Marx.
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identificado a tendência histórica de parasitismo do capitalismo, em especial pelo
advento/expansão do capital especulativo. Segundo ele (Marx apud Chesnais, 1997, p.
18),
Embora não seja senão uma parte do lucro, isto é, da mais-valia que o capitalista ativo extorque do operário, o juro aparece agora [...] como o fruto propriamente dito do capital; inversamente, o lucro, que toma a forma de lucro de empresa, aparece como um simples acessório adicional, que é acrescentado durante o processo de reprodução. A forma fetichizada do capital e a representação do fetiche capitalista atingem aqui a sua apresentação mais acabada. A fórmula D-D’ representa a forma sem conteúdo do capital, a inversão e a materialização das relações de produção elevadas à máxima potência: a forma produtora de juro, a forma simples do capital em que ele é a condição prévia de seu próprio processo de reprodução; a capacidade do dinheiro, ou da mercadoria, de multiplicar o seu próprio valor, independentemente da reprodução, é a mistificação capitalista em sua forma mais brutal. É, portanto, no capital portador de juros que esse fetiche automático está claramente exposto: valor que se valoriza a si mesmo, dinheiro que engendra dinheiro; nessa forma, ele deixa de carregar as marcas de sua origem.
O capital financeiro passou a ser defendido por poderosas instituições financeiras
internacionais (FMI, BIRD etc) e por Estados hegemônicos na ordem internacional, em
especial os Estados Unidos.
Em terceiro lugar, a referida mundialização foi acompanhada da reestruturação
produtiva. O processo de reestruturação produtiva consistiu, de um lado, na revolução
tecnológica baseada na automação, nos microcomputadores e nos novos materiais.
Portanto, um novo padrão tecnológico intensificador da produtividade do trabalho foi
incorporado nos setores produtivos e de serviços. De outro lado, o processo de
reestruturação produtiva provocou a implementação de novos métodos de gestão em
substituição e/ou hibridagem com o método fordista de produção. Portanto, uma busca
pela intensificação do trabalho em termos quantitativos – trabalhadores produzem mais
aceleradamente e ampliando atribuições – e qualitativos – trabalhadores produzem sob
competências e habilidades novas, mais complexas e diversificadas.
A reestruturação produtiva proporcionou aspectos como a ampliação da mais-valia
relativa e, também, da absoluta, o que, objetivamente, reduziu o custo do capital variável
na composição do capital. Todavia, proporcionou também aspectos como o desemprego
estrutural, a flexibilização do mercado de trabalho, a subcontratação, a perda de direitos
trabalhistas.
A fase atual da mundialização do sistema do capital, em que pese a inexistência de
qualquer tipo de sistema competidor ou desafiador, em escala internacional, tenderá a
coexistir com formas de crescente resistência nascidas do mundo do trabalho em escala
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local, regional, nacional e internacional. Tal tendência encontra-se esboçada em
decorrência da queda das ilusões e das máscaras do denominado “socialismo real” e da
social-democracia, que, de fato, inicialmente representavam formas não capitalistas que
foram, progressivamente, se subordinando ao controle do sistema do capital, e da
liberdade de ação desse sistema e do seu sistema sócio-metabólico, que tem acirrado o
caráter explorador, destrutivo e parasitário do capital.
2.3. A mundialização do sistema de capital e o Estado O sistema do capital, que também se expressa como unidade diferenciada e
hierarquizada no plano da economia mundial, determina relações de rivalidade, de
dominação e de dependência política entre os Estados.
Primeiramente, porque os Estados fazem parte do sistema do capital, conforme
evidencia o caráter do Direito (leis, instituições e magistratura) e do Burocratismo (aparato
administrativo, modus operandi e burocracia). O Estado converte-se num pressuposto
político-jurídico e ideológico do domínio do sistema do capital.
Em segundo lugar, porque o Estado converteu-se num instrumento sem o qual a
acumulação de capital, na fase monopolista/oligopolista, não pode se realizar. As
compras públicas, o financiamento público, a dívida pública, as leis de controle do
trabalho são exemplos e testemunhos do papel (e a quem serve este papel)
desempenhado pelo Estado na atualidade.
Em terceiro lugar, porque o Estado cumpre o papel de organizador das relações de
rivalidade, de dominação e de dependência política no sistema de Estados. Ao definir a
hierarquia entre os Estados, define a posição de cada país no que tange aos capitais
especulativos, produtivos e comerciais, isto é, como dominantes (centrais) ou como
dominados (periféricos e semi-periféricos) no âmbito da referida hierarquia.
O realce assumido pelo Estado na fase monopolista/oligopolista do capital e que foi
aprofundado em face das novas realidades, permitiu aos Estados Unidos conhecerem
uma expansão inaudita da sua hegemonia nos anos 80 e 90 do século XX.
Primeiramente, assumiram uma posição privilegiada no plano internacional como única
superpotência militar do planeta, à medida em que se encaminhava a crise agônica e o
fim da União Soviética. Em segundo lugar, converteram-se no centro do capital financeiro
internacional. As maiores corporações financeiras e a base financeira do FMI e do Banco
Mundial compõe o dominante capital financeiro especulativo e parasitário norte-
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americano. Agregado a este capital, os Estados Unidos concentram as maiores
corporações produtivas e comerciais do planeta.
Os Estados Unidos possuem a capacidade de estabelecer regras de jogo sobre as
quais eles possam vencer e quebrar essas mesmas regras de jogo sobre as quais eles
possam perder, unilateralmente. Esta capacidade advém do padrão dólar, do domínio dos
organismos econômicos internacionais e da superioridade bélico-militar.
2.4. A crise de acumulação do capital A reação do capitalista em face de outro capitalista o obriga a intensificar o trabalho
e aumentar o rendimento por meio de novos equipamentos tecnológicos. O aumento do
custo do capital devido à elevação do capital constante é compensado pela redução dos
custos do capital variável, pelo aumento da escala de produção e pela elevação da
“qualidade” da mercadoria. Mas os preços das mercadorias dificilmente poderão ser
conservados, em decorrência dos demais capitalistas que, obrigatoriamente, terão que
seguir o mesmo exemplo, o que determina uma redução do custo médio das mercadorias
em função das disputas no mercado.
Esta tendência, em face da automação e da informática e dos novos métodos de
gestão da produção que gera o desemprego estrutural e que reduz a capacidade de
resistência do trabalho em face do capital, tem levado a uma queda da renda da família
média que vive de salários e dos pequenos proprietários urbanos e rurais. Agrega-se a
este quadro a transformação de uma parte importante da classe trabalhadora do planeta
em lumpem-proletário, isto é, em contingentes de trabalhadores que compõem
marginalmente, ou mesmo sequer compõem, o exército industrial de reserva. São os 2,8
bilhões de pessoas que se encontram na linha de pobreza e/ou miséria absoluta
(desqualificados, desempregados e degradados) em todo o mundo e que se transformam
em superpopulação relativa para o capital.
Esta realidade nos ajuda a entender um aspecto central da crise de acumulação
atual. O contínuo aumento da mais-valia em sua dimensão relativa, oriundo dos
investimentos de capital constante na forma de equipamentos tecnológicos mais
sofisticados, pressiona para a redução dos custos do capital variável (salários) na
composição orgânica de capital. A elevação dos custos do capital, constante na
composição orgânica de capital, tem ocorrido mais rapidamente não apenas devido à
elevação dos custos da nova tecnologia, mas também devido ao ciclo de renovação
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tecnológica ter sido reduzido pela competitividade globalizada. Estes custos têm se
apresentado extremamente elevados, mesmo quando os custos de capital variável tem
sido rebaixados, por meio da eliminação de direitos e conquistas dos trabalhadores.
Os problemas que decorrem imediatamente da crescente composição orgânica do
capital agravam os problemas ligados à realização do valor. O fosso que separa o
mercado real do mercado potencial de consumo de mercadorias e serviços tem se
ampliado. Observamos, atualmente, o crescimento dos contingentes de trabalhadores
(empregados, industrial de reserva e superpopulação relativa) que vivem uma retração do
consumo de mercadorias e serviços.
Este quadro foi agravado pela brutal concorrência inter-imperialista. Esta
concorrência intensificou sobremaneira a concorrência unidade capitalista versus unidade
capitalista, a concorrência entre unidades capitalistas no âmbito nacional e a concorrência
entre unidades capitalistas no âmbito internacional, de forma a turbinar os processos
acima descritos.
As pressões do capital financeiro internacional agravaram o quadro. Capital este
que subtrai parte do seu lucro do lucro do capital produtivo, de forma direta (financiamento
do capital produtivo por parte do capital financeiro) e de forma indireta (dívida pública que
vilipendia o fundo público para cuja composição também concorrem políticas fiscais que
atuam sobre o capital produtivo) além, é claro, do artificialismo monetário especulativo,
isto é, do lucro especulativo sem mediações produtivas e públicas.
Este contexto foi determinante no estabelecimento de uma curva descendente na
taxa de acumulação do capital. Esta curva teve início anteriormente a 1974/75, isto é, à
crise do petróleo e à conseqüente elevação dos custos gerais de produção e de capital e
à crescente resistência dos trabalhadores europeus a intensificação da acumulação
mediante a redução de salários, conquistas e direitos. A queda da taxa de acumulação do
capital somente apresentou uma certa estabilização nos anos 90, mas, ainda assim,
conservando uma taxa de queda média de 2% (Chesnais, 1997, p. 19).
Os capitalistas de cada grupo industrial e de cada país, bem como os Estados,
visto que também integram o sistema do capital, encontravam-se pressionados pela crise.
Encontravam-se pressionados, ainda, pela estagnação da demanda em termos absolutos
– isto é, pela estagnação da demanda geral - e pela retração da demanda em termos
relativos – ou seja, pela capacidade produtiva ampliada que, todavia, convive com um
elevado coeficiente de ociosidade.
15
2.5. Acumulação de capital e economia armamentista
A economia armamentista, em especial nos Estados Unidos, assumiu proporções
imprevistas no pós guerra e se conserva no pós Guerra Fria. Ela absorve atualmente
entre 20% e 30% dos pesquisadores, cientistas e engenheiros, compromete dois terços
da totalidade do orçamento destinado à pesquisa, absorve em torno de 50% do
orçamento público federal, gera um faturamento anual de 1 (um) US$ trilhão e emprega,
direta e indiretamente, 15 milhões de pessoas (Coggiola, 1996, p. 204-206).
A economia armamentista é o maior responsável pelo desenvolvimento tecnológico
nos Estados Unidos. Se é fato que desde o final do século XIX, com o advento do
capitalismo monopolista, ocorreu um desenvolvimento correlacionado entre tecnologia
bélica e tecnologia civil no mundo capitalista, não é menos verdade que no pós-Segunda
Guerra, a tecnologia bélica antecipou e, na maioria dos casos, determinou o
desenvolvimento da tecnologia civil. Soluções tecnológicas como circuitos integrados,
supercondutores, satélites, aviões, diversos tipos de alimentos industrializados, surgiram
quase sempre dos programas bélicos dos Estados Unidos. Somente após a sua
incorporação bélica é que foram gradativamente transportados para a tecnologia civil
dentro e fora dos Estados Unidos.
A economia armamentista concorreu, ainda, para a mistificação da ciência e da
tecnologia. Construiu-se uma ideologia que valoriza e fascina o poder de controle, de
previsibilidade, de cálculo e de exatidão. O que é complexo e o que é renovado
constantemente assumiu um papel sedutor, em contraposição ao que é simples e o que é
perene, passou a, quase sempre, ser desprezado.
Todo esse poderio econômico, social e ideológico é comandado, nos Estados
Unidos, por uma tríade composta por 48 grandes empreiteiras (que monopolizam 64% da
fabricação bélica mundial), pelo Pentágono e pela elite científica. O poder econômico da
referida tríade se prolonga para a esfera política, exercendo uma influência determinante
na mídia, no meio acadêmico e no Estado. A tríade compõe-se, em parte fundamental, do
bloco do poder e dos círculos hegemônicos nos Estados Unidos.
O governo norte-americano atua dentro de um estrito “keynesianismo militar”:
define quem, como e em qual direção inovar a tecnologia bélica; programa as
transferências dessa tecnologia para a tecnologia civil; transforma as aquisições militar
em instrumentos de políticas anticíclicas de estímulo à demanda e emprego com profundo
16
impacto em todas as cadeias produtivas; e tem nas exportações bélicas uma mercadoria
que atenua os desequilíbrios da balança comercial.
A mercadoria gerada pela economia armamentista proporciona a sua realização
como valor de troca, sem que, necessariamente, tenha que ser consumida. Quando
consumida, isto é, utilizada para destruir forças produtivas (consciência, força de trabalho,
estruturas econômicas e sociais, recursos naturais etc), é criadora de novas frentes de
expansão de capital, tendo em vista as reconstruções dos pós-guerras.
A economia armamentista, que assumiu uma posição estratégica na acumulação
da economia norte americana representa, ainda, um precioso instrumento imperialista. A
hiper-supremacia militar que ela proporciona aos Estados Unidos representa a espada da
hegemonia norte-americana sobre todos os demais países, isto é, uma ameaça a todos
aqueles que resistirem a abrir suas economias aos bens, serviços e capitais norte-
americanos; a dificultar o acesso norte-americano aos recursos naturais que o país
possui; e a cumprir os ‘contratos’ e ‘compromissos’ estabelecidos com o capital financeiro
norte-americano, na forma do pagamento das dívidas internas e externas.
A economia armamentista constitui-se, por sua vez, em uma fonte de desequilíbrio
fiscal do Estado norte americano e mobiliza fundos gigantescos cujos resultados
tecnológicos nem sempre podem ser absorvidos pela tecnologia civil. Todavia, as maiores
instabilidades econômicas estão relacionadas com a pressão sobre a taxa média de
lucros.
Conforme identificamos, a economia armamentista, ao se constituir em fator
impulsionador da economia capitalista para a mudança tecnológica, determina, ao mesmo
tempo, a elevação da composição orgânica do capital e a deterioração da proporção de
ganhos, em relação ao total do capital investido. Décadas de lucros continuados da
economia armamentista e a pronta oferta de tecnologia incorporada aos demais setores
da economia foram fatores responsáveis pelo declínio da média geral de lucros na
economia norte americana. Este fenômeno prolonga-se pelo conjunto da economia
mundial, visto que, com a mundialização globalizada e imperialista do sistema do capital,
todas as conquistas tecnológicas e os conseqüentes desdobramentos na composição
orgânica do capital, estendem-se de forma sistêmica, pelo conjunto do sistema.
17
2.6. Iniciativas de contratendências à crise de acumulação do capital
A reação à tendência de queda da taxa de acumulação do capital é uma
característica do sistema do capital. Atualmente ela tem assumido diversas formas.
Primeiramente, tem levado capitalistas e Estados a aumentar a intensidade e a
duração do trabalho e a baixar o preço da força de trabalho, a promover a precarização
do trabalho e o desemprego estrutural, bem como reduzir a participação dos
trabalhadores no orçamento público. Tal realidade representa, respectivamente, a
redução do capital variável na composição orgânica do capital e a ampliação do Estado,
como um instrumento da acumulação do capital por meio do vilipendiamento do fundo
público, de forma direta (dívida pública) e de forma indireta (financiamento).
Tal processo possui conseqüências graves no conjunto da sociedade. A erodização
das bases do trabalho representa um processo de erodização das bases da sociedade,
cujos desdobramentos se estendem da criação/expansão da população relativa do capital
à criminalidade e crise ético-moral.
Em segundo lugar, tem determinado um processo de intensa concentração de
capital. São aquisições e/ou fusões de empresas e grupos, mas que não pressupõe,
necessariamente, aumento do capital produtivo investido. A forma acima descrita, da
concentração de capital, se tornou uma maneira de o capital, suficientemente
concentrado, combater a queda da taxa média de lucro, absorvendo outras empresas, de
forma a reunir/integrar os mercados. Por outro lado, permite, eventualmente, integrar
alguns elementos da capacidade de produção e de pesquisa tecnológica dessas últimas,
mas desmantelando-as em grande parte.
Observa-se, ainda, que esta concentração tem assumido a forma de cartelização
econômica. Os grupos e empresas de capital produtivo e comercial têm buscado explorar
o poder econômico, resultante da sua própria dimensão, isto é, o poder de monopólio
(poder de produção e de controle de mercado) e o de “monopsônio” (poder de
comprador). Esta última característica tem se materializado em inúmeros acordos de
terceirização e de cooperação empresarial normalmente desigual, de forma a permitir o
surgimento das denominadas “empresas-rede”.
A empresa-rede é, de fato, uma empresa dominante que possui uma enorme
capacidade de se articular, incorporar e apropriar, pelo seu tamanho e poder de mercado,
da mais-valia e da renda criada coletivamente no seio de uma rede de empresas que
18
trabalham em conjunto. Isto evidencia que o caráter parasitário do capital não se reduz,
absolutamente, ao capital financeiro.
É importante realçar, ainda, que o fato da base fundamental do capital produtivo
encontrar-se na produção, não o impede de, também, se reproduzir como capital
financeiro, isto é, especulador, a exemplos dos bancos de propriedade de empresas e
grupos econômicos e como capital comercial, isto é, na distribuição/circulação das
mercadorias, a exemplo da comercialização on-line com o setor comercial das
corporações. O capital produtivo pode, também, tomar iniciativas como a emissão e
especulação com ações e títulos e a criação de instituições para financiar a demanda dos
bens por ele produzidos.
Em terceiro, tem desencadeado o aprofundamento do desperdício do capitalismo.
Para além do consumismo observa-se a redução da vida útil dos bens, denominada taxa
decrescente de utilização ou obsolescência programada dos bens. A redução da vida útil
dos bens, como um todo, ou de componentes substituídos dentro de uma programação,
reflete os problemas advindos da realização do valor (distribuição e consumo), o que tem
conduzido o sistema de capital a radicalizar o desperdício.
O desperdício na forma da taxa decrescente de utilização, ou obsolescência
programada dos bens, aprofunda os problemas da realização do valor, que, em princípio,
foi acionado para atenuar e/ou resolver. Isto porque a redução do ciclo de vida útil dos
bens, acompanhado do crescente valor agregado (custos tecnológicos elevados) aos
mesmos, impõe ao sistema do capital uma distribuição regressiva de rendas na
sociedade. Portanto, sob a manta da distribuição injusta de renda, há, de fato, a lógica
perversa do capital, da extração da mais-valia às condições politicamente criadas para a
realização do valor.
Em quarto lugar, a reação a tendência de queda da taxa de acumulação do capital
tem conduzido a uma crescente “presença” dos países centrais em regiões que possuem
recursos naturais que podem concorrer para a redução ao custo de reprodução do capital,
a exemplo das reservas de petróleo, de minérios estratégicos e de biodiversidade. Esta
“presença”, que pode assumir uma forma de domínio direto ou indireto, que se expressa
como assuntos da diplomacia, do direito e da guerra, nada mais representa do que
iniciativas do sistema do capital num contexto de crise de acumulação.
Em quinto, tem aprofundado o papel que a indústria armamentista e a guerra
ocupam no capitalismo. A indústria armamentista é, por excelência, a indústria do
desperdício, do valor de troca que se realiza sem que necessariamente tenha que ser
19
consumido. Indústria que, para tanto, exige que o Estado mobilize o fundo público para a
realização comercial dos seus bens, na forma do armamentismo, sob corrida bélica entre
os Estados ou não. A guerra, por sua vez, assegura novas frentes de reprodução do
capital sob a própria destruição de forças produtivas, bem como assegura o domínio do
mundo do trabalho e de povos, por parte do sistema do capital.
Enfim, a reação à queda da taxa de acumulação do capital assume diversas
formas. Todavia, são formas que, se de um lado, asseguram a continuidade da
reprodução do sistema do capital por meio do próprio aprofundamento da exploração, do
desperdício e da destruição, de outro aprofunda as próprias contradições sobre as quais
ele se reproduz.
2.7. Crise e tendência de incontrolabilidade do sistema do capital Durante a fase da revolução industrial o capital produtivo foi capaz de subordinar o
capital comercial e o capital financeiro à lógica do capital produtivo. Atualmente
constatamos que o capital comercial, altamente concentrado, readquiriu a capacidade de
se colocar como rival do capital produtivo. Ele tem tido poder de determinar, em grande
medida, o tipo de produção de bens de consumo final, bem como de recolher uma parte
importante da mais-valia, mediante o controle eficaz do final da cadeia de realização do
valor (da distribuição ao acesso ao mercado). Constatamos, ainda, que o capital
financeiro, altamente centralizado, tende a se impor crescentemente sobre o capital
produtivo, de forma a controlar a sua reprodução a médio e, possivelmente, num futuro
não muito distante, a curto prazo. Abocanha, assim, uma gigantesca parcela da mais-valia
e do sobre-trabalho, socialmente produzido, e amplifica o fetiche ilusório de que o dinheiro
teria o poder de criar valor.
A mundialização do sistema do capital, sob a forma da concentração do capital
produtivo e comercial, da centralização do capital financeiro e da financeirização da
economia, tende a determinar a homogeneização dos ritmos de acumulação entre todas
as empresas e grupos econômicos. Este fenômeno se estende também por toda a
economia, por exemplo, dos países dominantes. De fato, o Japão perdeu seu ritmo de
acumulação e se aproximou da Europa, em especial, a partir de meados dos anos 90. Os
Estados Unidos, após os sete anos de ciclo econômico expansivo, em grande medida
artificial e especulativo - artificial porque não redefiniu a matriz tecnológica e energética e
porque se beneficiou da intensificação de consumo às custas de déficits comerciais e
20
públicos e do endividamento da família média norte-americana; e especulativo porque
maquiou o desempenho e faturamento de empresas, responsáveis pela ampliação
criminosa do valor patrimonial das empresas e grupos econômicos – convive com uma
queda do ritmo de crescimento econômico e com a tendência de nivelação com os ritmos
de crescimentos econômicos da Europa e do Japão.
A mundialização do sistema do capital tende a determinar, ainda, que as empresas,
grupos econômicos e países lancem mão de todos os instrumentos que possam atenuar a
tendência de queda dos ritmos de acumulação. Instrumentos que serão aplicados de
forma agressiva contra os trabalhadores, povos e países dependentes (periféricos e semi-
periféricos), visto que a própria tendência de homogeneização dos ritmos de acumulação,
entre todas as empresas, grupos econômicos e países dominantes, constitui, em si
mesmo, um fator intensificador da agressividade.
21
3. A RESISTÊNCIA À “NOVA ORDEM MUNDIAL”
Há razões bastante substanciais para a oposição
disseminada em todo o mundo contra a forma,
típica da globalização, de “direitos do investidor“
que vem sendo imposta.
Noam Chomsky
A proposição da “Nova Ordem Mundial” neoliberal e globalitária, sob hegemonia
dos Estados Unidos, cujos objetivos estratégicos eram buscar condições favoráveis para
aprofundar o domínio do sistema do capital sobre o mundo do trabalho e para superar a
crise de acumulação do capital, passou a orientar a agenda política internacional, de
forma definitiva, após a queda do leste europeu, a Guerra do Golfo e o fim da União
Soviética. Em contrapartida, passou também a enfrentar crescentes resistências em todo
o mundo, a partir de meados dos anos 90, do século passado.
Em primeiro lugar, países capitalistas centrais passaram a resistir a processos
como o avanço das forças econômicas dos Estados Unidos nos novos mercados por meio
da nova onda de mundialização das corporações e bancos norte-americanos; da
conservação de políticas protecionistas na economia norte-americana, em franca
contradição com a pressão que os Estados Unidos realizavam pela redução das barreiras
comerciais dos outros países; da imposição por parte dos Estados Unidos de acordos
comerciais amplamente favoráveis ao país do Tio San junto a países capitalistas
periféricos e semi-periféricos em prejuízo da Europa/Japão; da condução de espionagens
econômico-financeiras, por meio dos sistemas de comunicação/informação centrados nos
Estados Unidos viabilizando informações privilegiadas, favoráveis a empresas norte-
americanas, nas disputas de contratos comerciais etc.
Um segundo fator é o fato de os Estados Unidos passarem a enfrentar oposição de
países capitalistas semi-periférico como a Rússia, Índia, China e Brasil. Estes países
passaram, em que pese a variação de intensidade, a resistir aos processos como: o
protecionismo dos Estados Unidos; aos posicionamentos favoráveis a eles emitidos pela
Organização Mundial do Comércio (OMC); à pressão do Departamento de Tesouro dos
Estados Unidos no tocante à forma de gestão das dívidas internas e externas, dos países
devedores; à imposição, por parte do maior país da América, de concessões econômico-
comerciais em favor da economia norte-americana.
22
Um terceiro fator que determinou o enfrentamento de crescentes resistências à
Nova Ordem Mundial proposta pelos Estados Unidos foi a oposição de movimentos
sociais, a exemplo do movimento “antiglobalização neoliberal”, das diversas vertentes do
fundamentalismo islâmico, do movimento indígena/campesino de Chiapas. Estes
movimentos passaram a resistir a processos como a destruição de postos de trabalho nos
países periféricos e semi-periféricos, a desarticulação econômico-social de comunidades
locais, o avanço inaudito do padrão cultural, representado pelo “American way of life”.
23
4. CRISE DA “NOVA ORDEM MUNDIAL” E ORDEM MUNDIAL INDEFINIDA
Estados e capitais das grandes potências sempre
competiram entre si e atuaram como oligopólios
em relação aos adversários externos. Devido a
isso se transformaram em máquinas de guerra
para se reorganizarem como um novo super
capitalismo.
José Luís Fiori
A “Nova Ordem Mundial” deu sinais de crise no final dos anos 90. De um lado, em
decorrência da crescente resistência de países e dos movimentos sociais à referida
ordem mundial. De outro, em decorrência do comportamento político dos Estados Unidos
no âmbito das relações internacionais, caracterizado por uma crescente agressividade.
Servem como testemunhas os intensos bombardeios norte-americanos na “área de
exclusão militar” do Iraque em 1998; a presença norte-americana nos Bálcãs, por meio do
bombardeio da Iugoslávia e da ocupação militar da região do Kosovo pelas forças
multinacionais, lideradas pelas forças norte-americanas em 1999; o aprofundamento da
presença dos Estados Unidos no conflito da Colômbia; o ataque, ocupação e
estabelecimento de um Estado títere no Afeganistão, em 2001.
Silenciosamente os Estados Unidos (e os países e movimentos sociais que
assumem oposição à política externa norte-americana) terminaram por, se não enterrar os
referenciais que haviam orientado a criação da chamada “Nova Ordem Mundial”, colocá-la
- a Nova Ordem Mundial - em um plano de menor relevo. Tal processo assumiu maior
visibilidade no segundo mandato do governo Bill Clinton (1997-2000).
Todavia, foi com a chegada dos republicanos ultraconservadores ao governo -
com George W. Bush à frente - que o novo eixo estruturador da política externa dos
Estados Unidos ficou consolidado. Os elementos que assumem centralidade no referido
eixo estruturador dessa política são o unilateralismo flexível – que permite a
materialização da ação política, por meio da opção da prática de supremacia, isto é, de
uma política na qual os interesses e metas dos países subordinados encontram pouco
espaço de convergência, negociação e pactuação em relação aos interesses e metas
norte-americanas – e a lógica da força – que desloca a lógica da persuasão/consenso em
favor de uma lógica estrita de força (coação e violência), na medida em que tal prática
encontra-se coerente com a opção da prática política de supremacia.
24
Esse novo eixo passou a perseguir dois objetivos políticos. O primeiro deles foi
impedir a formação e/ou consolidação de centros de poder que poderiam vir a ameaçar os
interesses norte-americanos. Isto significa a tentativa de repor a condição de única
superpotência em escala internacional e a de afirmar a sua hegemonia em escala
regional, respectivamente, em relação aos demais países de capitalismo central (em
particular França e Alemanha que lideram a Europa Unificada e Japão) e em relação aos
países de capitalismo central e semi-periférico. O segundo objetivo perseguido foi
preparar-se para recorrer a todos os instrumentos de força à sua disposição para alcançar
essas metas – inclusive a utilização ofensiva de armas nucleares.
O novo eixo estruturador da política externa dos Estados Unidos assumiu
contornos mais precisos, após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nas
duas torres gêmeas, que compunham o World Trade Center, e no Pentágono e que
culminou com a intervenção armada norte-americana no Afeganistão. Após o governo dos
Estados Unidos realizar o estabelecimento da ligação do regime político fundamentalista
islâmico, sustentado pelas milícias Taleban, no Afeganistão, com a rede terrorista Al
Qaeda, suposta articuladora dos referidos atentados, ele permitiu a construção do fato
político necessário para que os ensaios do novo eixo estruturador da política externa dos
Estados Unidos, presentes na recusa em assinar o protocolo de Kyoto, na retirada da
conferência contra o racismo em Durban e na retomada do projeto “Guerra nas Estrelas”,
pudesse apresentar uma materialização exemplar e justificável.
No plano externo, o novo eixo de política externa dos Estados Unidos assumiu
como suas características:
a) a transformação da chamada “guerra contra o terrorismo” no tema dominante da
sua política externa;
b) a definição imprecisa do que venha a ser “terrorismo”, “terroristas” e “guerra contra
o terrorismo”, de forma a permitir a contínua “eleição” de novos alvos, segundo a
conveniência política do momento;
c) a indefinição do período de duração da campanha de “guerra contra o terrorismo” e
a afirmação unilateral de que ela será prolongada, o que redefine o conceito de
guerra e coloca sobre o mundo a “espada de Dâmocles” norte-americana, a única
potência que se acha capaz de definir o que venha a ser “terrorismo”, “terroristas” e
“guerra contra o terrorismo” ;
25
d) a construção de “coalizões” internacionais em torno dos objetivos geopolíticos dos
Estados Unidos, de forma a estabelecer alianças e parcerias ad hoc pontuais e
seletivas, construídas por meio de acertos bilaterais, segundo as prioridades
variáveis da sua agenda externa, de um lado, e de outro, a sacrificar a
consolidação de um sistema multilateral de segurança coletiva;
e) a territorialização das ações militares, isto é, a retomada dos objetivos geopolíticos
de controle direto (econômico e militar), indireto (econômico e político) e misto
(econômico, político e militar) de povos e países, de forma que recuperam
modalidades de domínios territoriais referenciados no imperialismo do final do
século XIX e início do século XX, a exemplo da ocupação político-militar do
Afeganistão pelos Estados Unidos e forças aliadas e da recente ocupação político-
militar do Iraque, pelas forças anglo-americanas, com a formação,
respectivamente, do governo títere de Karzai, e do governo militar/civil de norte-
americanos e elites iraquianas;
f) a materialização de ações político-diplomáticas e militares na forma de uma
“cruzada” pseudo laica entre o “bem”, a “democracia”, a “civilização” contra,
respectivamente, o “mal”, a “tirania”, a “barbárie”, tão bem representada pela
célebre frase do presidente norte-americano George W. Bush, segundo o qual
“quem não está conosco esta contra nós”.
No plano interno, o novo eixo de política externa dos Estados Unidos assumiu
como suas características:
a) a redefinição da estratégia de segurança nacional, com a restrição dos direitos e
liberdades civis dos cidadãos norte-americanos em geral;
b) o controle eletrônico ostensivo por parte do aparato de segurança sobre a esfera
privada e a autorização para a violação de correspondência dos cidadãos norte-
americanos ou estrangeiros residentes nos Estados Unidos;
c) a autorização para a condução de prisões e interrogações de cidadãos
estrangeiros sem acusação prévia e mesmo sem qualquer prova de envolvimento
com o “terrorismo” ou mesmo com “agressores” dos interesses norte-americanos;
d) o julgamento de militares norte-americanos somente será realizado por tribunais
militares norte-americanos;
26
e) o controle de massas com repressão às manifestações de movimentos e
organizações norte-americanas contra a política externa dos Estados Unidos, a
exemplo da repressão ao protesto contra a guerra, no último dia 15 de fevereiro de
2003, em Nova York.
27
5. DETERMINANTES IMEDIATAS DO NOVO EIXO DE POLÍTICA EXTERNA DOS ESTADOS UNIDOS
O direito internacional deve ser obedecido sempre
que possível; mas a ação unilateral se justifica
sempre que necessária para garantir os
interesses.
Bill Clinton
O novo eixo de política externa dos Estados Unidos possui determinantes mediatas
e imediatas. As determinantes mediatas são as determinantes profundas, correlacionadas
com a reposição do domínio do capital sobre o mundo do trabalho e a crise de
acumulação de capital, conforme já identificamos. As imediatas são as formas concretas e
próximas assumidas pelas determinantes mediatas, no período e/ou conjuntura histórica.
Identificá-las nos permite compreender melhor o terreno a partir do qual o referido eixo se
construiu, bem como compreender as contradições e tendências do mesmo.
5.1. Crise recessiva, desemprego e eleições
A recessão mundial possui, como uma das suas raízes, o processo de valorização
artificial de ativos financeiros. Processo esse que vem se desenvolvendo desde o início
dos anos 80, sob a pressão de ideólogos e de especuladores de organismos financeiros
internacionais como FMI e Banco Mundial, quando foram sendo eliminadas as
regulamentações que controlavam e segmentavam o mercado financeiro.
A globalização e a liberalização de capitais construiu uma economia mundial mais
interdependente e caracterizada pelo parasitismo e pela especulação financeira. Os riscos
de “contaminação” nas crises capitalistas, isto é, os riscos de crises capitalistas
sistêmicas, aumentaram.
Os sete anos de prosperidade do governo Bill Clinton legaram um endividamento
das famílias médias norte-americanas. Durante o governo Clinton a renda familiar foi
elevada e os juros ficaram baixos. A família média norte-americana intensificou o
consumo e adquiriu títulos e ações, negociadas nas bolsas de valores dos Estados
Unidos. Com rendas familiares robustas e as ações e títulos aquecidos, o peso da dívida
privada familiar ficou relativizada.
Todavia, com a chegada da recessão vieram o desemprego, a renegociação de
contratos de trabalho desfavoráveis aos trabalhadores, a redução da participação nos
28
lucros e prêmios produtivos, o que reduziu a renda familiar. A ação anti recessiva do
Federal Reserve (FED), por meio da redução dos juros, aliviava-se o crescimento relativo
da dívida privada familiar, mas não em termos absolutos, visto que o montante ficou
demasiadamente elevado. Por outro lado, os escândalos envolvendo a maquiagem de
faturamento das corporações econômicas, em especial da chamada “nova economia”,
jogaram por terra o valor patrimonial das empresas e, por conseqüência, das suas ações.
Isto representou um golpe na economia privada familiar, com uma redução da riqueza
patrimonial, um intenso endividamento da família média norte-americana e uma queda da
renda familiar. George W. Bush assumiu o governo nesse contexto.
O governo George W. Bush tem buscado mostrar aos norte-americanos que está
preocupado com a economia, tanto quanto está preocupado com a “guerra contra o
terrorismo”. Em diversas oportunidades tem abordado o problema da recessão e se
comprometido em atacar o desemprego.
As questões da recessão e do desemprego constituem-se em temas sensíveis
politicamente, em qualquer processo eleitoral de massas. Todavia, ocupam uma
sensibilidade ímpar na atual realidade política dos Estados Unidos, visto que este tema
desperta mais atenção dos norte-americanos do que a própria guerra.
Isso é conseqüência das fraturas políticas entre republicanos e democratas. Estas
fraturas fizeram-se presentes nas articulações e tentativas de impeachment, conduzidas
pelos republicanos contra o ex-presidente Bill Clinton. Fizeram-se presentes, ainda, na
vitória de George W. Bush com evidências de manipulações e fraudes, conduzidas por
seu irmão e governador do Estado da Flórida, já que foi a vitória eleitoral naquele estado
que garantiu, ao então candidato, uma pequena maioria no colégio eleitoral que o tornou
presidente. O consenso construído atualmente em torno da “guerra contra o terrorismo”,
que parece se constituir em uma política de estruturas profundas, isto é, em política de
Estado e não de governo, não atenuará as contradições entre republicanos e democratas,
salvo em conjunturas de maior tensão provocadas pela política externa dos Estados
Unidos.
Outra conseqüência é o fato de a composição da câmara dos deputados e do
senado, do país em questão ter se constituído sob um empate técnico entre republicanos
e democratas. O que significa que as iniciativas parlamentares e a tramitação de projetos
e/ou projetos-lei conduzidos pelo executivo tenderão a encontrar grandes resistências nas
duas casas do congresso norte-americano, em especial no que tange à redução fiscal, em
favor de empresas e grandes fortunas e à orçamentária, em prejuízo de programas
29
sociais (mas em favor da ampliação de investimentos no setor militar e na segurança
interna).
Uma terceira conseqüência determina que esta realidade é intensificada pela
seqüência de eleições legislativas, que anualmente ocorrem em diferentes Estados da
federação. Isso significa que se trata de um sistema político-eleitoral no qual as eleições
não dão descanso e cada conjuntura poderá ser explorada eleitoralmente de forma mais
imediata, com significativo impacto na composição das forças sociais e políticas do
congresso dos Estados Unidos.
E, por fim, as questões de recessão e desemprego despertam tanto a atenção dos
norte-americanos visto que ainda está presente o destino político sofrido pelo governo de
George H. Bush no início dos anos 90, quando elevada popularidade obtida com a Guerra
do Golfo compartilhava a conjuntura como o início de uma grande recessão. Ao término
de dois anos essa recessão havia arrasado com a popularidade que o então presidente
acumulara com a guerra e conduzia os democratas, com Bill Clinton à frente do governo,
por dois mandatos. De outro lado, é ainda forte as lembranças do ciclo econômico
virtuoso de sete anos de prosperidade e crescimento econômico, vividos nos governos
democratas de Bill Clinton, o que representa um fantasma sob a gestão republicana.
Enfim, a continuidade da recessão pode provocar em uma parte importante do eleitorado -
menos ideológico e mais sensível ao humor variável das taxas de emprego e
comportamento da renda familiar - uma correlação entre os democratas, que podem
passar a ser reconhecidos pelos eleitores como privilegiadores do crescimento
econômico, do emprego e da expansão da renda familiar, e os republicanos, como
privilegiadores dos gastos militares, dos assuntos externos e dos ricos.
A “guerra contra o terrorismo” interessa ao governo republicano de George W.
Bush como um bode expiatório internamente ao país para escamotear: a recessão e seus
efeitos; a redução dos impostos sobre lucros das grandes empresas e grandes fortunas; o
aprofundamento do controle do Estado sobre a população civil, entre outros fatores.
Todavia, a eficácia desta iniciativa depende, em grande medida, da capacidade desse
governo de administrar sua tênue necessidade “preparar” os norte-americanos para novas
ameaças terroristas, sem aterrorizá-los em demasia, de maneira a preservar o apoio
político-eleitoral, de um lado, e de construir a idéia de que o que se faz agora – guerra e
domínio direto e indireto norte-americano em regiões estratégicas – seria um preço a ser
pago para um futuro de paz e prosperidade sem que os sacrifícios sejam demasiados, de
outro.
30
5.2. Estados Unidos e o petróleo
A busca do controle de parte das maiores reservas de petróleo do planeta é o que
norteia a política estratégica dos Estados Unidos nas regiões do Golfo Pérsico e da Ásia
Central. A guerra contra o Afeganistão, que não é produtor de petróleo, decorreu da sua
localização estratégica para a exploração do precioso bem, na região da Ásia Central por
ser um país de passagem entre o Oriente Médio e a Ásia Central. A mais recente guerra
contra o Iraque, que produz atualmente 10% do tão disputado combustível no contexto
mundial, já decorre da necessidade de controle direto dessas reservas.
Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 serviram como pretexto para
que os Estados Unidos realizassem uma intervenção militar nas regiões do Golfo Pérsico
e da Ásia Central, como parte da criação das condições geopolíticas para o controle de
parte das maiores reservas de petróleo do planeta. A viabilidade desta estratégia depende
da construção de sólidas bases militares nas referidas regiões.
Os Estados Unidos são os maiores consumidores de petróleo e encontram-se
fortemente dependentes da sua importação. O país possui 4,2% da população mundial,
produz 9,8% do petróleo mundial, mas consome 25,6% do mesmo (Fonte: ENI, 2001.).
O orçamento de petróleo dos Estados Unidos é de aproximadamente 200 bilhões
de dólares anuais. Os gastos militares atuais, próximos dos US$ 400 bilhões, também
compõem, indiretamente, os gastos demandados para assegurar o controle de parte das
maiores reservas petrolíferas do planeta.
A Lei de Política Energética dos Estados Unidos de 1992 instituiu estoques
estratégicos para garantir o funcionamento do sistema econômico, em caso de uma
interrupção das rotas e fluxos de petróleo, de forma que o governo teria um espaço de
tempo para agir. Concluída a desobstrução, via militar ou não, as rotas e fluxos de
transporte do mesmo e do acesso aos campos de produção do combustível, em especial
do Oriente Médio, estariam assegurados.
Os estoques estratégicos norte-americanos representam 2,8% das reservas
estocadas no mundo, o que garantiria o seu consumo por apenas quatro anos. Portanto,
este seria o espaço de tempo para o país agir.
Os Estados Unidos, a exemplo da Europa e do Japão, dependem do acesso
permanente aos recursos petrolíferos de outras regiões, especialmente do Oriente Médio.
O modo de produção e de acumulação do capital opera sob uma economia do consumo e
31
do desperdício, cuja matriz energética ainda hoje são os combustíveis fósseis. O petróleo
encontra-se, portanto, no centro das relações de acumulação do capital.
O maior ou menor custo para o acesso às concorridas reservas ao petróleo pode
também determinar modificações no desenho político-econômico dos países de
capitalismo central, visto que esse acesso compõe o custo de reprodução do capital. A
elevação do custo do petróleo para a Europa e o Japão, em decorrência da posição
favorável dos Estados Unidos no que se refere ao controle do mesmo pode elevar custos
de produção e de comercialização na Europa e no Japão em relação aos Estados Unidos,
reduzir a competitividade industrial/comercial e, no limite, reduzir a taxa de acumulação do
capital no conjunto da economia deste continente e deste país. As bases sobre as quais
estão assentadas a acumulação do capital, por exemplo, o custo energético, pode
determinar a erosão, conservação e fortalecimento de hegemonias. Portanto, o custo do
petróleo ou o valor econômico que ele representa numa dada conjuntura não reflete em
absoluto o papel estratégico na reprodução do capital. Não considerar o papel que o
“objeto do desejo” ocupa nas relações políticas e, em especial nos conflitos e guerras, é
omitir cinicamente a sua profunda importância no processo de reprodução do capital.
Em que pese o papel que o petróleo ocupa no processo de redução do capital e o
custo para a sua extração, transporte beneficiamento, o seu preço é definido em termos
que ultrapassam a dimensão econômica imediata, isto é, ele é, em grande medida,
político. Representa a síntese momentânea da correlação de forças – relações inerentes
ao mercado cartelizado, a estratégias e pressões corporativas, ao poderio militar – dos
interesses envolvidos na apropriação de sua renda e de seus benefícios. Interesses que
podem ser de empresas, grupos econômicos e Estados.
Os principais produtores de petróleo do mundo em milhões de barris/dia são: 1º
Arábia Saudita: 8,5; 2º Estados Unidos: 8,1; 3º Rússia: 7; 4º Irã: 3,8; 5º México: 3,6; 6º
Noruega: 3,4; 7º China: 3,3; 8º Venezuela: 3,1; 9º Canadá: 2,7; 10º Emirados Árabes
Unidos: 2,6 (Fonte: ENI, 2001).
As maiores reservas comprovadas de petróleo em bilhões de barris se encontram
nos seguintes países: 1º Arábia Saudita: 262; 2º Iraque: 113; 3º Emirados Árabes Unidos:
98; 4º Kuwait: 97; 5º Irã: 90; 6º Venezuela: 78; 7º Rússia: 49; 8º Líbia: 30; 9º México: 27;
10º Nigéria: 24. Mas, segundo as fontes esses dados podem ser superiores (Fonte: ENI,
2001).
A ação militar sobre o Iraque, a exemplo da ação militar sobre o Afeganistão,
poderá desencadear oscilações nos preços, em especial no contexto de uma resistência
32
civil-popular à ocupação. Historicamente os picos de preços do petróleo sempre foram
acompanhados por crises político-militares no oriente médio. Mas os instrumentos de
regulação político-econômico-militar dos Estados Unidos e da Europa poderão manter os
seus valores dentro de faixas toleráveis aos seus próprios interesses.
Os Estados Unidos, que produzem 40% e importam 60% de todo o petróleo que
consomem, têm, portanto, na questão deste combustível um tema estratégico da sua
política externa. Tal importância é amplificada em face da distante realidade da transição
para uma outra matriz energética e do lobby das grandes corporações petrolíferas norte-
americanas junto às políticas de Estado e governamentais daquele país. Esta realidade
tenderá a assumir um sentido dramático à medida em que nas próximas duas ou três
décadas o progressivo esgotamento da produção de petróleo venha a elevar o preço
deste combustível, com intensas repercussões no custo de capital, no desequilíbrio
financeiro dos países, nas disputas por regiões produtoras – a exemplo do que foi o
conflito Irã versus Iraque. Este quadro poderá apresentar desdobramentos que estreitem
ainda mais a taxa média de acumulação de capital.
A presença de 65% das reservas mundiais de petróleo na região do Golfo Pérsico
colocou-a no centro da geopolítica internacional. Enquanto os Estados Unidos dependem
de 60% de importações de petróleo, a Europa depende de 68%, e o Japão, de 98%
(Fonte: ENI, 2001).
5.3. A importância estratégica do Iraque
O Iraque despertou atenção especial dos Estados Unidos. Isso não decorreu
apenas do fato daquele país não se encontrar sob a batuta política deste, contrariamente
a outros países árabes títeres da região. Há de se considerar a assinatura de pré-
contratos de exploração de petróleo entre empresas chinesas, francesas e russas e o
governo iraquiano.
Há de se considerar, também, a transformação do Euro em moeda de referência
entre as transações econômicas envolvendo Europa e Iraque, de forma a afastar os
Estados Unidos/Dólar das relações econômicas em favor da Europa/Euro e da alternativa
e oportuna político-econômica que tal medida representaria em termos da construção de
uma influência direta crescente da Europa sobre o Iraque. Tal processo representaria um
espaço de influência política e econômica que tenderia a se estender sobre grande parte
da região.
33
A ocupação político-militar norte-americana do Iraque, ou a sua transformação em
um Estado títere visa, de um lado, ao controle direto sobre a produção e as reservas de
petróleo deste país. De outro, visa a afastar a Europa da região do Golfo Pérsico e do
Oriente Médio, e/ou submeter a sua presença a um papel de coadjuvante político e
econômico de menor importância e subordinado aos Estados Unidos.
Esta economia política do petróleo nos ajuda a compreender o caráter da maioria
dos regimes políticos dos países produtores deste combustível. Estes regimes políticos
não primam pelos princípios da democracia e dos direitos humanos, pelo contrário
sustentam-se, como tais, pelos países de capitalismo central, em especial pelos Estados
Unidos, Inglaterra, França e Alemanha.
5.4. A indústria bélica dos Estados Unidos
A indústria bélica dos Estados Unidos fatura anualmente US$ 1 trilhão, compõe
uma profunda cadeia produtiva que emprega milhões de trabalhadores e tem se
constituído em um dos instrumentos da manutenção no poder de governos títeres e
autoritários. A cruzada de Bush, portanto, pode ser entendida, também, por este viés,
visto que a indústria armamentista é um dos segmentos econômicos que ganhará com a
guerra de Bush.
A “guerra contra o terrorismo” e a defesa da nação são apresentados como as
principais missões do governo George W. Bush. Tais missões, que podem ser
sintetizadas como a defesa do país, demanda custo, o que foi utilizado para justificar a
aprovação para 2003 do maior orçamento militar das duas últimas décadas (US$ 379
bilhões) e da duplicação do orçamento para segurança doméstica (US$ 38 bilhões).
O corte nos impostos (redução fiscal) e o aumento dos gastos militares, que
cumprem papel destacado no contexto da crise de reprodução do capital, representam
também pagamentos feitos pelo governo Bush às grandes corporações econômicas, em
especial à indústria bélica, que financiaram boa parte da sua campanha eleitoral. Todavia,
o governo Bush tenta mascarar esta realidade quando, de um lado, tenta relacionar a
busca pelo crescimento econômico com a “guerra contra o terrorismo” e, de outro, tenta
atribuir o déficit fiscal público aos custos da guerra “necessária”, escamoteando a
importância que a própria redução fiscal, promovida por ele, cumpriu neste quadro.
34
A indústria bélica é, ainda, um instrumento econômico tendo em vista a superação
da recessão econômica dos Estados Unidos, segundo uma espécie de “keynesianismo”
militar, conforme já observado.
5.5. Protecionismo econômico Os Estados Unidos têm pregado a abertura econômica e tem sido o mais
protecionista dos países. Tem usufruído do apoio da Organização Mundial do Comércio
(OMC), no que tange aos temas por eles apresentados para a apreciação, disputa e
julgamento. As medidas protecionistas podem determinar uma variação de 8 a 30% dos
custos de importação.
A Lei Farm Bill prevê subsídios para o setor agropecuário dos Estados Unidos de
US$ 180 bilhões de dólares nos próximos dez anos. Esta lei interferirá profundamente no
mercado agrícola internacional de bens agropecuários, porque determinará menor preço,
dentro e fora do país, para os bens agropecuários de maior produção no mercado
mundial. Isto porque os Estados Unidos são os maiores produtores de bens
agropecuários como soja, trigo, milho e carnes.
Tal realidade provocará a queda de preços de produtos agrícolas em todo o
mundo, como também provocará problemas no âmbito do emprego, do balanço de
pagamento, do comércio e do equilíbrio fiscal em países periféricos e semi-periféricos,
como o Brasil. Agregam-se aos subsídios para o setor agropecuário, aspectos como as
leis sanitaristas e as pressões comerciais e financeiras dos Estados Unidos, que também
concorrerão para uma radicalização dos problemas acima identificados.
Tais processos agem fortemente nas exportações de produtos agropecuários e de
matérias primas e na redução dos seus preços. Concretamente eles representam uma
pressão nas balanças comerciais de países periféricos e semi-periféricos porque
transferem os déficits comerciais norte-americanos para estes países. Representam,
enfim, o usufruto da condição de império em favor da contenção da sua crise econômica
recessiva, imediata e, imediatamente, da criação de condições favoráveis para a
superação da sua crise de acumulação.
O setor siderúrgico norte americano, por sua vez, além dos subsídios reservados
ao aço, foi premiado pelas cotas e tarifas de importações sobre o aço importado. Tal
realidade desencadeou uma reação protecionista da Europa em face do aço norte-
americano.
35
Para países exportadores de produtos agropecuários e de aço, como o Brasil, tais
processos representam pressões nas balanças comercial e de pagamento além, é claro,
de conseqüências sociais e políticas de enorme gravidade.
36
6. SUSTENTAÇÃO IDEOLÓGICO-POLÍTICA DA NOVA POLÍTICA EXTERNA DOS ESTADOS UNIDOS
O que se precisa hoje é de um novo tipo de
imperialismo, que seja aceitável ao mundo dos
direitos humanos e dos valores cosmopolitas, o
imperialismo pós-moderno voluntário da
economia global. No passado, os impérios
impuseram suas leis e seus sistemas de governo.
Hoje trata-se de movimento voluntário de auto
ajuda.
Robert Cooper
Um contexto histórico - marcado por aspectos como: a ascensão dos
ultraconservadores republicanos no governo dos Estados Unidos com George W. Bush à
frente; o colapso argentino; o atentado terrorista do dia 11 de setembro de 2001 e a
guerra no Afeganistão - colocou em cheque toda uma produção ideológico-político dos
anos 90. Teses como as que asseguravam: que as transformações históricas teriam
chegado ao fim com o advento do mercado global livre, do liberalismo e do fim do
socialismo; que o imperialismo seria coadunável com os direitos humanos; que a
globalização sob a nova roupagem liberal seria benévola e promotora da socialização do
conhecimento, da informação, dos valores democráticos e das vantagens comparativas
entre os Estados, caíram por terra.
Teorias, livros, ensaios, artigos e pronunciamentos sustentados nas referidas teses
e em outras, foram conduzidos pela história para a lata de lixo das ilusões perdidas. Os
resultados das ilusões, todavia, estão presentes.
No Brasil a ofensiva teve início no final dos anos 80, enormente beneficiada por
processos como a crise da União Soviética, a reintegração direta do leste europeu à
economia ocidental e a transição do regime político da ditadura militar para um regime
liberal conservador. No meio universitário ocorreu um ataque a dialética materialista
histórica e um avanço de diversas modalidades de metodologias, teorias e concepções
irracionalistas. Em termos políticos e econômicos as conseqüências foram a privatização
de empresas públicas, amplas concessões públicas, realizadas em favor de grupos
monopolistas/oligopolistas, a desnacionalização de economias, o endividamento interno e
37
externo gigantesco, a dependência do capital financeiro internacional, o desemprego
estrutural, a demolição de direitos dos trabalhadores, entre outras.
O despertar do mundo das ilusões na forma da volta das guerras, da corrida
armamentista e da reafirmação explícita dos Estados Unidos como epicentro do poder
político-militar internacional demandava novas contraposições ideológico-políticas.
Portanto, não era mais possível adiar a formulação explícita de uma nova polarização
ideológico-política.
Os Estados Unidos, em decorrência da necessidade de coesão interna, da
extorsão econômica planetária em favor da sua estrutura econômica e do seu belicismo,
necessitam construir inimigos externos. São inimigos virtuais ou relativos que
proporcionem uma racionalidade argumentativa justificadora e legitimadora da sua política
hegemonista e imperialista.
Desde o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos buscaram impor uma nova
polarização. Aquela que mais lhe interessou foi a que se estabeleceu entre capitalismo
neoliberal e os Estados fundamentalistas da sua periferia. Ela poderia ser caracterizada
como choque de civilizações – versão internacional e geopolítica das teorias do
multiculturalismo.
Nesta nova polarização, o capitalismo neoliberal foi apresentado como caminho
único. O que se pretendia era suplantar a contradição ideológico-política entre capitalismo
e socialismo.
O fundamentalismo foi apresentado como a negação da civilização e da
democracia. O que se pretendia era obscurecer as contradições e lutas de classes,
abertas ou ocultas, na forma dos grupos, classes e Estados em conflito.
6.1. Construindo um paralelo com a Guerra Fria Donald Rumsfeld (2001), secretário de defesa norte-americana, buscou construir
um paralelo entre o combate ao comunismo e a União Soviética e o combate ao
terrorismo. Segundo ele, o combate ao comunismo e a União Soviética teria sido definido
entre 1946/50 e foi uma guerra longa, de forma que “uma União Soviética agressiva,
expansionista e armada até os dentes foi contida e impedida de ocupar a Europa
Ocidental e de espalhar o comunismo pelo mundo”.
Segundo Rumsfeld, esta política teria sido acertada, visto que a corrida militar
viabilizou a ruína das bases econômicas e sociais desse Estado e dos seus satélites, na
38
medida em que teria gerado um comprometimento dos seus PIBs com a corrida militar. O
combate ao terror seria, segundo ele, uma guerra longa, com ações militares e de
inteligência, mas que também ao final de um longo processo seria por todos reconhecida
a sua importância por extirpar o terrorismo internacional, a exemplo do que teria sido o
combate ao comunismo e à União Soviética.
Tal paralelo expressa-se na “satanização” de forças políticas e na ação repressiva
às referidas forças políticas, tendo em vista a defesa do status quo internacional. Nessa
medida, representa a tentativa de reunir e galvanizar um leque de forças e aliados que
envolvam os Estados centrais do capitalismo, os Estados títeres e as classes sociais
dominantes e dirigentes políticos dos Estados semi-periféricos e periféricos do capitalismo
subordinados ao papel e liderança hegemônica dos Estados Unidos, como baluarte da
defesa da ordem internacional.
6.2. Capitalizando o moralismo
O governo de George W. Bush tem buscado acentuar um discurso e uma prática
política conservadora e moralista internamente nos Estados Unidos. Tal discurso e tal
prática está relacionada com a tentativa de alcançar uma base de sustentação política e
ideológica à política de Estado, marcada pelo unilateralismo e militarismo, no plano
externo, e pela construção de bases político-eleitorais mais sólidas para seu governo, no
plano interno.
Seu conservadorismo propõe salas de aulas para meninos e meninas; dispõe a
apoiar apenas os colégios voltados para meninos e/ou para meninas; libera fundos mais
robustos para conduzir campanhas publicitárias em favor de abstinência sexual entre
jovens e contra o aborto; delega para entidades da sociedade civil de cunho religioso
recursos para o combate à pobreza e à dependência de drogas e restringe a atuação
direta do Estado a estas áreas. Por fim, tem-se observado o estímulo ao crescimento de
rituais religiosos em instituições e dependências governamentais desde a chegada dos
republicanos ultraconservadores ao governo.
A direita evangélica está mais organizada e influente. O seu apoio aos republicanos
ultraconservadores nas eleições representou, por sua vez, pressão sobre o próprio
governo republicano. Ela possue uma rede de ONGs conservadoras que, além de
articular política e religião, pode criar instrumentos da sociedade política do império
(Estado-governo) no âmbito da sociedade civil e/ou da sociedade civil do capital no
39
âmbito da sociedade norte americana como um todo. Esta questão pode, ainda,
representar a criação/expansão de uma rede de ONGs conservadoras em escala
internacional, em especial na América Latina, a exemplo do que organizações religiosas
desenvolveram na América latina no período de vigência da chamada Aliança para o
Progresso de John Kennedy, e mesmo posteriormente.
Essa política conservadora e moralista é acentuada, também, por outros meios. Ela
determinou a volta da disciplina Educação Cívica aos currículos escolares; interfere na
indústria cinematográfica de Hollywood pressionando para que a mesma produza mais
filmes que enalteçam o patriotismo e conduz campanhas publicitárias em favor da
realização do serviço e da carreira militar. O próprio Pentágono está financiando a criação
de jogos eletrônicos de guerra, voltados para crianças e adolescentes, com o propósito de
construir uma cultura militar, mais enraizada, no inconsciente coletivo da sociedade norte-
americana.
Concepções e valores religiosos e culturais, cujas raízes históricas se encontram
no puritanismo e que se fazem presentes nas estruturas mentais e culturais da sociedade
norte-americana, são explorados pela sociedade política (Estado e governo) e pela
sociedade civil do capital (corporações midiáticas, igrejas evangélicas e ONGs
conservadoras etc). São concepções e valores como aqueles identificados com a
“missão“ do povo norte-americano em face da humanidade, a condição de povo
predestinado a realizar no mundo valores “cristãos”, o Estado/governo como pastor de um
grande rebanho (o povo norte americano) e cuja função é protegê-lo do “mal” e das
“ameaças” externas ao rebanho.
Portanto, para que se possa justificar aspectos como os gastos militares, o
ocultamento da redução da carga de impostos sobre as grandes fortunas e empresas, o
fortalecimento dos republicanos ultraconservadores no Estado e a reafirmação da
hegemonia norte-americana sobre bases de supremacia política, tem que ser criado o
“inimigo externo” e serem instrumentalizados valores e concepções ideológicas que
compõem a subjetividade da sociedade norte-americana.
40
7. O DEBATE DIPLOMÁTICO NORTE AMERICANO
De todo esse mal resultará o bem. Em meio às
nossas lágrimas podemos vislumbrar
oportunidades de tornar o mundo melhor para as
gerações vindouras. E nós aproveitaremos essas
oportunidades.
George W. Bush
O fim da Guerra Fria não foi acompanhado pela definição de um direito ou norma
internacional claramente definida. Sequer uma instância suprema que avocasse do direito
de definir o que seria “eqüidade” e “justiça” foi criada. A ONU, que agia como tribunal de
entendimentos e que poderia ter sido convertida nesta instância, ficou progressivamente
enfraquecida ao longo dos anos 90, em especial a partir da Guerra do Kosovo, quando o
seu Conselho de Segurança foi ignorado pelos Estados Unidos e aliados, tendo em vista
a intervenção militar na Iugoslávia.
A fragilidade da ONU contrastava com a força dos Estados Unidos nos terrenos
militar, financeiro e informacional e com a globalização econômica que era imposta ao
mundo, a partir deles. Os Estados Unidos assumiam o papel de centro de referência
política, econômica e ideológica do mundo. Papel este para o qual foram beneficiados
também pelos sete anos de prosperidade da era Bill Clinton que, se por um lado, não foi
capaz de superar a crise de acumulação de capital nos Estados Unidos (e em grande
medida foi um ciclo econômico virtuoso às custas de fraude e corrupção). Por outro, foi
capaz de assegurar um ambiente interno de estabilidade econômica e social e um
superior desempenho econômico das corporações e bancos norte americanos, em face
do desempenho de corporações e bancos europeus e japoneses.
Todavia, os anos 90 foram também anos de situações adversas para a
preservação da hegemonia dos Estados Unidos. Os anos 90 foram responsáveis pelo
crescimento de um sentimento antiamericanista concomitante e proporcional ao
aprofundamento da hegemonia dos Estados Unidos. Déficits nas transações comerciais
entre Estados Unidos e Europa e Estados Unidos e Japão acentuaram desequilíbrios
econômicos externos do País. Internamente a disputa pelo governo travada entre
democratas e republicanos ameaçou se converter em instabilidades institucionais.
41
Um ambiente favorável ao surgimento de um novo “pacto de guerra” estava dado.
Faltavam atores determinados para criá-lo e um fato para justificá-lo. A eleição de George
W. Bush e os atos terroristas de 11 de setembro de 2001 atendiam às duas condições.
O “pacto de guerra” como uma política de Estado poderia se utilizar de duas
vertentes políticas norte-americanas. Primeiramente, a vertente tradicionalmente
identificada com os democratas, que valoriza uma via hegemonista e imperialista
incorporadora de metas e perspectivas, ainda que de forma subalterna dos demais países
e segundo a sua importância econômica, política e militar. Portanto, trata-se de uma
concepção de política externa fundada na pactuação política.
Em segundo lugar, a vertente tradicionalmente identificada com os republicanos,
que valoriza uma via hegemonista e imperialista pouco incorporadora de metas e
perspectivas dos demais países. Portanto, trata-se de uma concepção de política externa
fundada no exercício de supremacia política.
Joseph Nye, doutor em Ciência Política pela Universidade Harvard, consultor do
Departamento de Estado dos Estados Unidos de 1977 a 1979 no governo Jimmy Carter e
Presidente do Conselho Nacional de Segurança dos Estados Unidos, evidencia a
concepção tradicionalmente identificada com os democratas. Para ele a política externa
dos Estados Unidos deveria combinar o “hard power” – a utilização de instrumentos
militares e econômicos para coagir outros atores políticos, econômicos ou sociais a fazer
o que eles não querem, que sempre foi importante para os Estados Unidos e que foi
alentado após os atos terroristas de 11 de setembro de 2001 – com o “soft power” – a
habilidade de conseguir que se façam aquilo que se quer que eles façam, sobretudo por
meio de influência diplomática, cultural e ideológica. Para ele a era da informação global
tenderia a alentar o “soft power”.
Para Joseph Nye os Estados Unidos deveriam ser líderes na produção de bens
públicos globais nas áreas de desenvolvimento, segurança e combate ao terrorismo.
Todavia, é um critico da gestão George W. Bush. Este, segundo aquele, não conduziu
uma ampla discussão sobre os interesses nacionais dos Estados Unidos em face do
mundo e, por conseqüência terminara por cultivar no governo uma política menos
multilateral do que deveria ser. Este peso excessivo de ação política unilateral foi o que
teria determinado o abandono dos Estados Unidos do Tratado Antimísseis Balísticos
(TAB), que, embora, apóie a iniciativa e não acredite que ela possa realimentar uma
corrida armamentista, não reconhece que o momento tenha sido adequado para esta
iniciativa.
42
Para Joseph Nye o ambiente político internacional, criado após os atos terroristas
de 11 de setembro de 2001 teria determinado modificações nas relações internacionais. A
necessidade da cooperação internacional de grandes Estados na luta contra o terrorismo,
e de seus poderes de destruição em massa, até recentemente privilégio militar, teria
permitido um avanço da China e da Rússia nas relações políticas internacionais, embora,
em sua opinião, este avanço não tenha sido tão expressivo como muitos analistas
costumam identificar. A Europa teria permanecido em grande medida marginalizada por
não possuir uma única voz internacional, por não possuir forças de segurança para agir
de modo global, menos da Inglaterra, o único país europeu a possuí-las, mas não se
encontrar política e diplomaticamente subordinada à Europa.
Para Paul Wolfowitz, sub-secretário de Defesa do governo George W. Bush, a
política externa do seu País deveria combinar negociações duras com todos os Estados
que aceitam/subordinam aos termos das relações internacionais ditadas e/ou aceitas por
ele, com as ações preventivas, isto é, a ação armada contra aqueles que agem ou
poderiam agir desautorizando os interesses estratégicos do País. Para ele, os Estados
Unidos não poderiam, ainda se submeter à camisa de força que o sistema ONU
representaria, no que tange aos interesses estratégicos do poderio norte-americano.
A posição de Colin L. Powell (2001) parece coincidir, em linhas gerais, com as
posições de Joseph Nye em que pese a sua filiação republicana. Colin L. Powell
reconhece que os atos terroristas de 11 de setembro de 2001 criaram oportunidades para
fortalecer e/ou reconfigurar as relações internacionais e expandir ou estabelecer áreas de
cooperação. O eixo político seria avançar o padrão de política externa norte americana
nos campos de interesses fundamentais, que segundo ele seriam: a) direitos humanos; b)
governos responsáveis; c) mercados livres; d) não proliferação de armas nucleares; e)
resolução de conflitos.
Para Colin L. Powell, os Estados Unidos deveriam assumir iniciativas próximas e
concretas para evidenciar seus compromissos com o referido eixo. Comporia estas
iniciativas: a cooperação para suplantar a pandemia HIV/AIDS; o estabelecimento de um
cenário estratégico pós-Guerra Fria”; o lançamento de uma nova rodada comercial
internacional e a promoção da paz no Oriente Médio. O objetivo dessa política seria
segundo ele “(...) um mundo de democracia, oportunidades e estabilidade” (...) “no qual o
terrorismo não pode prosperar”.
43
8. CONSEQÜÊNCIAS IMEDIATAS DA NOVA DOUTRINA
É preciso a ordenação de um poder soberano
para que se possa então definir o que é a
equidade e a justiça, uma vez que é a autoridade
e não a verdade que faz a lei porque antes que se
designe o que é justo do que é injusto, deve haver
alguma força coercitiva.
Hobbes
A nova política externa dos Estados Unidos determinou e tem determinado
diversos processos político-institucionais e político-militares diretos. Estes processos
trazem conseqüências graves para o sistema de segurança internacional e para as
relações políticas regionais.
Dentre os processos político-institucionais destacou-se a oposição à ratificação do
Tribunal Penal Internacional; a recusa em assinar o protocolo de Kyoto; a retirada da
conferência da ONU sobre o racismo em Durban; a recusa em endossar o Instrumento de
Verificação do Protocolo de Armas Biológicas; a recusa em assinar o protocolo sobre
minas terrestres; a ruptura unilateral do Tratado de Mísseis Anti-Balísticos (ABM); a
ofensiva diplomática pelo controle de organizações da ONU e/ou afastamento de
responsáveis que representam obstáculos aos interesses norte-americanos, a exemplo do
afastamento do diplomata brasileiro José Maurício Bustani, que presidia a Organização
para a Proscrição de Armas Químicas (OPAQ) e da irlandesa Mary Robinson, Alta
Comissária de Direitos Humanos.
Dentre os processos político-militares diretos destacou-se a deflagração da guerra
contra o Afeganistão à revelia do Conselho de Segurança da ONU; a derrubada do
regime dos Talibãs e estabelecimento de um regime títere no Afeganistão, sustentado
pelas forças multinacionais que permanecem no país; a liberdade de ação ao governo de
Ariel Sharon contra os palestinos e israelenses-árabes; o envolvimento ativo na luta
contra o grupo guerrilheiro fundamentalista islâmico Abu Saiaf, nas Filipinas; a presença
mais ostensiva no conflito civil da Colômbia; a participação direta na tentativa de golpe
civil-militar contra o governo de Hugo Chaves na Venezuela, em abril de 2002; a guerra e
ocupação do Iraque; e a autorização e efetiva eliminação física de ativistas e dirigentes de
44
organizações fundamentalistas e marxistas revolucionárias pela CIA em diversos países e
regiões da África e da Ásia.
8.1. Um novo conceito de guerra Para Donald Rumsfeld é necessário mudar a forma de pensar a segurança do país
e transformar as forças armadas. Segundo ele um padrão de organização militar e policial
de guerra, de diplomacia e de multilateralismo, consagrado na luta contra a União
Soviética e o comunismo, não correspondem às mudanças drásticas do mundo.
Conforme Donald Rumsfeld (2001),
Esta guerra não será conduzida por uma grande aliança unida pelo simples propósito de derrotar um eixo de forças hostis. Pelo contrário, envolve coalizões flutuantes de países, que podem mudar e evoluir. (...) Alguns (países) ajudarão publicamente, enquanto outros, devido a suas circunstâncias, poderão ajudar privada e secretamente. Nesta guerra a missão definirá a coalizão – e não o contrário. Esta guerra não necessariamente será uma em que nós bombardearemos alvos militares e usaremos forças maciças para eliminar esses objetivos. Em vez disso, a força militar será uma das várias ferramentas que utilizaremos para deter indivíduos, grupos e países que se envolvam com o terrorismo. (...) nossa resposta poderá incluir o disparo de mísseis de cruzeiro contra alvos militares, em algum lugar do planeta. Estamos também combatendo no campo eletrônico para rastrear e parar as movimentações financeiras por meio de bancos no exterior. Esta não é uma guerra contra uma pessoa, um grupo, uma religião ou um país. Nosso oponente é uma rede mundial de organizações terroristas e os Estados que os financiam, comprometidos em negar às pessoas livres a oportunidade de viver como elas quiserem. Enquanto realizamos ofensivas militares contra governos estrangeiros que patrocinam o terrorismo, também buscaremos tornar aliados os povos que esses governos oprimem. (...) Esqueçam das “saídas estratégicas”, estamos diante de um compromisso sustentado que não tem data para terminar. Não temos regras fixas sobre como deslocar nossas tropas; vamos estabelecer linhas gerais para determinar se o uso de forças militares é a melhor forma de alcançar um determinado objetivo. (...) Mas se esta guerra é uma guerra diferente, uma coisa não mudou: os Estados Unidos continuam indomáveis. Nossa vitória virá com os norte-americanos vivendo suas vidas dia a dia, indo ao trabalho, criando seus filhos e construindo seus sonhos como sempre o fizeram – um povo livre e grande.
Donald Rumsfeld reconhece que na “guerra contra o terrorismo” ocorrerão “danos
colaterais”. Seriam equipamentos que falham, exércitos que utilizam escolas, hospitais e
creches como instalações e equipamentos militares e que serão alvos das forças norte-
americanas. Todavia, reafirma o compromisso do governo Bush de que os “danos
colaterais” seriam atenuados ao máximo, visto que os Estados Unidos agiriam
humanamente.
Conforme podemos observar, a nova política externa dos Estados Unidos
radicaliza o papel que a guerra ocupa no sistema do capital e imprime uma nova forma à
45
mesma. Durante o pós-Segunda Guerra Mundial ocorreu uma longa fase de “guerra”
representada pela “Guerra Fria”. Esta “guerra” foi orientada pela estratégia da “contenção
universal” do comunismo e da União Soviética, na qual conflitos diretos, a exemplo da
Guerra da Coréia e Guerra do Vietnam, representaram a exceção. A guerra fundamental
se dava internamente, orientada pelas teorias de segurança nacional, na forma de ação
policial-militar contra movimentos insurgentes revolucionários e/ou ação de espionagem e
repressão política contra organizações da sociedade civil e ativistas e partidos políticos.
A nova proposta de “guerra” representa um deslocamento da fase de “guerra”
assentada na estratégia de “contenção universal” para a longa fase de guerra assentada
na estratégia de “ofensiva universal”. Estratégia esta expressa por meio da teoria da
“ação preventiva”, isto é, da ação preventiva dos Estados unidos contra os “inimigos” que
“ameaçam” ou que poderão vir “ameaçá-los” .
Na nova longa fase de “guerra” os conflitos diretos tenderão a ser mais constantes,
dirigidos a todos aqueles países capitalistas periféricos e semi-periféricos – e, no limite,
até mesmo em países capitalistas centrais – que resistirem ao domínio dos Estados
Unidos. Suas intervenções armadas mais recentes, a exemplo daquelas ocorridas na
Somália, Sudão, Afeganistão, Iraque (1998 e 2003), Iuguslávia e Haiti, isto é, de 1998 aos
dias atuais, praticamente equivalem a todas as intervenções militares realizadas por eles
no período da Guerra Fria.
A “guerra” interna, ditada por teorias de segurança nacional e dirigida contra
movimentos insurgentes revolucionários e contra ativistas, ONGs e partidos políticos, em
especial aqueles orientados por perspectivas anticapitalistas, antiimperialistas e
antimilitaristas, também ocuparam grande importância. Esta “guerra” lançará mão da
coerção e violência e dos instrumentos de comunicação e espionagem para a sua
condução, por meio de um aparato repressivo integrado mundialmente, envolvendo
estruturas policiais-militares dos Estados Unidos e dos Estados subservientes à sua
política.
O deslocamento da estratégia de “contenção universal” para a estratégia de
“ofensiva universal” decorre da crise de acumulação do capital. Decorre da conquista dos
terrenos “concedidos” pelo sistema do capital, no âmbito do pacto fordista e da Guerra
Fria a determinadas classes sociais, povos e Estados. A estratégia de “ofensiva
universal” decorre, ainda, da liberdade e da própria materialização dos impulsos de
expansão e reprodução do sistema do capital.
46
8.2. Terceira guerra mundial Para Renato Pompeu (2001) encontra-se em curso na humanidade a “Terceira
Guerra Mundial”. Ela teria iniciado após a “Guerra do Kosovo”, tendo como seu primeiro
capítulo a Guerra no Afeganistão, e herdado do passado outras guerras como o conflito
judeus-israelenses versus palestinos e judeus-árabes. Teria, como seu segundo capítulo,
a Guerra no Iraque.
Esta terceira e nova guerra não estaria comprimida no tempo e no espaço. Ela vem
ocorrendo em um longo tempo e com guerras esparsas. Seu grande alvo seriam as
regiões estratégicas em termos geopolíticos como a Chechênia, os Bálcãs, a Ásia
Central, o Tibete, a China, a Taiwan, a Indonésia. Na América latina as regiões
estratégicas envolveriam países como a Colômbia, o Peru, o Equador, o Brasil, a
Venezuela, isto é, países que compartilham a região amazônica. Estas áreas possuiriam
grandes reservas naturais para serem exploradas, em especial em um contexto de crise
de reprodução do capital, mas também coexistiriam com movimentos políticos e armados
que desafiariam a hegemonia norte-americana.
De fato, podemos falar de uma terceira guerra mundial em grande medida
determinada pela crise de acumulação e pela evolução tecnológica continuada. O sistema
do capital é, por natureza, destrutivo e precisa destruir continuadamente para expandir.
Nesta conjuntura/período histórico em que o sistema de capital não encontra novas
frentes de expansão nos Estados Unidos e na Europa para que possa investir e
reproduzir, ele procura na própria exploração/reconstrução dos diversos pós-guerras, a
oportunidade de investir e reproduzir de forma expansiva. Assim, ocorre um profundo
entrelaçamento entre a crise de reprodução e a guerra continuada.
Finalmente, os Estados Unidos procuram se compor como um império. E procuram
ter, ainda que com contradições importantes, a Europa ao seu lado, bem como países
como o Cazaquistão, o Uzbequistão e a Arábia Saudita. Ou seja, procuram se impor
como um império por sobre uma série de feudos à sua volta.
8.3. A continuidade de um impasse iniciado na guerra do Afeganistão A intervenção militar expressa na Guerra do Golfo possuiu uma “legitimidade” e
uma “legalidade”. Havia, na questão, o problema da soberania de um país invadido por
outro, em que pese o fato do Kuwait se constituir em parte da mesopotâmia histórica,
47
justificando, portando, o aval da ONU e do direito internacional: a “legitimidade” e a
“legalidade” para aquela guerra.
Na guerra do Afeganistão não havia consenso entre os “aliados” quanto aos
objetivos estratégicos da mesma. E não havia, também, uma base legal referenciada no
direito internacional que respaldasse a guerra.
No Afeganistão a “legitimidade” do “pacto de guerra” se deslocou do campo do
Direito Internacional para o campo do Direito Penal. Aguardavam-se provas para a
caracterização do crime e a decisão do castigo que deveria caber a uma pessoa física
identificada como suposto culpado. Em termos estritos e jurídicos, o que os europeus
estavam discutindo era a legalidade de uma guerra que seria declarada por motivos
penais. Uma guerra de vários Estados e exércitos aliados para capturar, levar a
julgamento e “castigar” um indivíduo.
A questão da legalidade era a aparência do processo, por mais extravagante que
pudesse ser uma guerra de Estados contra um homem para capturá-lo, julgá-lo e
“castigá-lo”. Esta mesma realidade ocorreu nas intervenções “humanitárias” da Somália,
da Bósnia e do Kosovo, ou nos bombardeios do Sudão, isto é, a legalidade de um Estado
bombardear um outro fora de um estado de beligerância declarada e sem a autorização
do Conselho de Segurança da ONU.
Sob a manta da aparência, o que, de fato, ocorria, era o deslocamento de um
projeto de hegemonia global “benevolente”, em favor de um projeto imperial explícito.
Uma espécie de reação norte-americana à postura de crescente resistência internacional
à hegemonia dos Estados Unidos e à desaceleração do ciclo econômico virtuoso norte-
americano. Este deslocamento encontrava-se acompanhado, ainda, pelo problema da
inexistência de normas e consensos pactuados entre as grandes potências capitalistas
centrais, de um lado, e das fraturas políticas internas norte-americana oriundas dos
embates entre democratas e republicanos, de outro.
Na guerra contra o Iraque toda esta realidade emergiu. Tratou-se de uma guerra
contra um homem satanizado; um Estado bizarramente convertido em ameaça aos
Estados Unidos; uma guerra à revelia do Conselho de Segurança da ONU; e uma ação
militar prontamente condenada nas ruas por milhões de pessoas.
Para José Luís Fiori (2001) a falta de limites externos ao poder financeiro,
corporativo e militar dos Estados Unidos, agregado às fraturas e incertezas internas da
sociedade norte americana, se constituiu nos principais fatores de desestabilização da
“Nova Ordem Mundial” iniciada em 1991. Para ele, a complexidade dos interesses e os
48
conflitos por eles despertados, agregados às incertezas do quadro atual, tendem a
projetar a instabilidade internacional por um longo tempo.
Este quadro poderá desencadear mudanças importantes em todo o mundo.
Primeiramente poderá desencadear uma recomposição da elite norte-americana por meio
da definição das novas bases da política de Estado, que provavelmente ficaria a meio
caminho da versão democrata mais agressiva do final do governo Bill Clinton e do atual
desempenho imperialista e militarista desmedido do governo George W. Bush.
Em segundo lugar, tenderá a desencadear um ambiente mais favorável para a
imposição/aceitação de normas impostas pelos Estados Unidos aos demais países, por
dentro e por fora do sistema ONU. Estas imposições certamente se utilizarão do “soft
power” e do “hard power”, isto é, de diversos instrumentos de pressão e persuasão e do
“porrete” norte-americano.
Em terceiro lugar, podemos nos encontrar nos passos iniciais para uma nova fase
expansiva do domínio global dos Estados centrais. Domínio que pode ter sido iniciado nos
pactos de guerras contra o Afeganistão e o Iraque, mas que pode redundar na construção
de uma nova versão do congresso de Berlim de 1885, quando as potências européias
decidiram as regras da repartição colonial da África e da Ásia.
49
9. INSTABILIDADE POLÍTICA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
No grau de cultura em que ainda se acha o
gênero humano, a guerra é um meio inevitável
para estender a civilização.
Immanuel Kant
A “Nova Ordem Mundial” em crise não deu lugar a uma nova ordem mundial. Em
contrapartida, a política externa dos Estados Unidos tem sido responsável por um
acirramento de instabilidades políticas regionais. A política externa dos Estados Unidos
tem apresentado características marcantes neste sentido.
9.1. Centralidade do Estado imperial À medida que os fundamentos econômicos do sistema do capital foi debilitado pela
crise de acumulação, em especial nos Estados Unidos, o papel do Estado imperial foi
progressivamente ampliado. Os Estados Unidos se tornaram mais dependentes da
intervenção estatal para assegurar medidas como esmagar/intimidar adversários,
consolidar a presença norte-americana em regiões estratégicas e estabelecer a confiança
no investidor.
A centralidade do Estado imperial refutou a suposição dos teóricos do movimento
“anti-globalização neoliberal” como Susan George, Antônio Negri, Ignácio Ramonet e
Robert Karten de que as corporações econômicas de atuação global possuíam
autonomia, em face dos Estados hegemônicos. A ênfase no papel do mercado mundial e
da atuação das corporações econômicas e do capital financeiro especulativo em criar
pobreza, dominação e desigualdade é um anacronismo no atual contexto, visto que, de
fato, o Estado imperial é um pressuposto de todo este processo. Agrega-se a esta
realidade o “keynesianismo militar”, isto é, o papel que a economia armamentista
representa no processo de reprodução do valor para o grupo de corporações econômicas
que direta e indiretamente compõe a indústria bélica norte-americana, inglesa ou franco-
germânica (Petras, 2001).
Aspectos como o avanço das liberdades e autodeterminação dos povos, a
democratização da riqueza planetária e a contenção da destruição ambiental, demandam
um deslocamento do foco dos movimentos “antiglobalização neoliberal” para movimentos
50
sociais anti-imperialistas, anti-militaristas e anti-capitalistas. Demanda que estes
movimentos sociais superem falsas suposições sobre “superestados” dominados por
multinacionais autônomas para a realidade das corporações multinacionais atadas aos
Estados imperiais.
Demanda, ainda, que os movimentos sociais superem uma visão romântica das
lutas pelos direitos humanos identificados com as lutas pelas liberdades individuais. E que
estes movimentos centralizem as suas atenções na necessária articulação entre as lutas
pelos direitos humanos (o direito à terra e aos financiamentos e preços agropecuários; o
direito ao trabalho e a remuneração condizente; o direito à habitação, ao saneamento e
aos bens domésticos; o direito à alimentação em quantidade e qualidade necessárias; o
direito à saúde física e mental; o direito à educação pública e de qualidade e a
democratização das instituições de educação; o direito à independência e à auto-
determinação dos povos, nações e grupos étnicos; o direito à liberdade de movimento, de
expressão e de orientação sexual; o direito à democracia e à participação política efetiva;
o direito à justiça e à igualdade; e o direito à paz e à felicidade), com a luta anti-
imperialista, anti-militarista e anti-capitalista.
9.2. A reposição da coerção e da violência em escala mundial
O recurso aberto à coerção e à violência para a conquista de objetivos geopolíticos
tornou-se o eixo estruturador da política externa dos Estados Unidos. Esta realidade
tenderá desencadear desdobramentos nos demais Estados.
Os Estados tenderão a retomar os investimentos no setor armamentista.
Armamentos, instalações bélicas e pesquisas militares tenderão a ampliar a sua
participação nos orçamentos públicos em prejuízo dos gastos sociais.
Bem como, também, tenderão eles a recorrer à coerção e mesmo à violência no
plano regional, continental e internacional, para assegurarem os interesses dos seus
respectivos capitais. Disso decorre que a maioria dos Estados buscarão se colocar de
forma confiável e/ou conquistar a condição de aliado preferencial dos Estados Unidos em
suas respectivas regiões e/ou continentes.
51
9.3. Unilateralismo flexível e sistema ONU
O processo de tendente esvaziamento do Conselho de Segurança da ONU, como
instância multilateral legítima de resolução dos problemas de paz e de segurança no
mundo, em favor de uma política de construção de alianças pontuais, via contatos e
negociações bilaterais e segundo os interesses dos Estados Unidos em cada Estado,
região ou continente, materializa a sua opção pelo unilateralismo flexível.
Este processo não levará ao desmantelamento do sistema multilateral de
segurança coletiva, consagrado no sistema ONU ao fim da Segunda Guerra Mundial. Isto
porque o capital necessita de formas de controle na unidade produtiva, na região, no
Estado e no mundo por ele mesmo criado. São estruturas de controle que não detém a
tendência de incontrolabilidade do capital, mas que, na sua ausência, o expõe a uma
lógica contraditória centrífuga e auto-destrutiva.
O sistema ONU é precisamente uma criação do sistema do capital e o compõe em
escala mundial por meio dos Estados. Ele existe para proteger a nação dos excessos de
voracidade do sistema do capital. Essa voracidade pode assumir a forma das guerras de
conquista, das intolerâncias suscitadas para a exploração econômica de conflitos, dentre
outras. Ele existe, ainda, para assegurar a hierarquia dos Estados no sistema do capital e
assegurar, também, que as contradições e conflitos não ameacem o domínio e a
reprodução do referido sistema.
O conflito e a disputa dos Estados é a materialização da contradição do capital e de
seus interesses no nível das relações internacionais. O enfraquecimento do sistema ONU,
que ora assistimos, evidencia uma tendência de radicalização das contradições do
sistema do capital no âmbito das disputas do capital e deste em relação ao trabalho.
Todavia, o sistema do capital, como não pode prescindir do sistema ONU, o reestruturará
em face das novas contradições e demandas, de forma a incorporar, no seu futuro
redesenho político, institucional e orgânico as novas relações de poder, isto é, incorporar
na sua própria ossatura futura, as relações de poder entre capitais e Estados.
Quem ditará em última instância este processo serão os capitais e o Estado que,
por suas reservas produtivas, financeiras e militares, constituir-se-ão na guarda pretoriana
do capital: os Estados Unidos.
52
9.4. Imposição econômica internacional
Os organismos econômicos do sistema ONU (FMI, Banco Mundial, OMC etc)
tenderão a ser instrumentos para impor aos países dependentes uma agenda liberal de
abertura de mercados. Todavia, esta orientação político-econômica tenderá a permanecer
contrariada pela adoção de uma política econômica norte-americana (e européia)
protecionista e intervencionista, de características fortemente antiliberais.
A conjuntura econômica internacional poderá proporcionar um ambiente favorável
para a construção/reconstrução dos Estados e nações dependentes, à medida em que
contradições e conflitos tenderão a ser intensificados. Para tanto, o mundo do trabalho
não poderá se permitir o nacionalismo chauvinista e guerreiro, patrocinado por capitais
nacionais, de forma a contrapor à guerra por meio da unidade internacional dos
trabalhadores na luta anti-imperialista, anti-militarista e anti-capitalista. Tal caminho
poderá surgir a partir do bloco de forças políticas, econômicas e sociais contra-
hegemônicas.
9.5. Retomada do militarismo e neocolonialismo
O sistema político internacional tenderá a ser mais caracterizado pela combinação
de processos de militarização e neocolonialismo. A imposição de domínio direto
(econômico e militar), indireto (econômico e político) e misto (econômico, político e militar)
tenderá a reduzir, sobremaneira, o grau de independência e autonomia dos Estados
periféricos e semi-periféricos nos quais o mundo do trabalho se apresentar desorganizado
politicamente e sem referenciais ideológicos consistentes.
A forma de domínio direto tenderá a ocorrer nos países periféricos e semi-
periféricos que possuem grandes reservas naturais, localização estratégica, resistência
popular e/ou cujas elites dominantes e/ou dirigentes assumem algum grau de oposição
aos países centrais, mas sem as condições de rechaçar a sua presença político-militar,
em especial a dos Estados Unidos. É o exemplo de países como o Afeganistão e o
Iraque.
A forma de domínio indireto tenderá a ocorrer nos países periféricos e semi-
periféricos que não apresentam grande resistência popular, que reconheçam as relações
hierárquicas no âmbito dos Estados e que se submetam aos interesses dominantes. É o
exemplo de países como a Argentina, as Filipinas e, até o momento, o Brasil.
53
A forma de domínio misto tenderá a ocorrer nos países periféricos e semi-
periféricos que procurarem assumir alguma margem de autonomia e independência para
além do que os Estados centrais estarão dispostos a conceder, mas sem romper com os
centros de hegemonia internacional. É o exemplo da Arábia Saudita e dos Emirados
Árabes.
A possibilidade de Estados autônomos e independentes, que atualmente se
apresenta como uma possibilidade distante, somente poderá ocorrer a partir de projetos
políticos oriundos no mundo do trabalho e em contraposição às imposições do sistema do
capital.
9.6. O novo eixo ideológico da política imperialista dos Estados Unidos
A tese do “Fim da História” de Francis Fukuyama, segundo a qual teria chegado ao
fim a era das revoluções/transformações e consagrado a eternização do moderno
liberalismo econômico e político, que tão bem compunha com a “Nova Ordem Mundial” no
final dos anos 80 e início dos anos 90, vê-se esgotada. Tem origem agora a tese do
“Choque de Civilizações” de Samuel Huntington, segundo a qual conflitos e guerras
continuarão a persistir em decorrência de encontros e conflitos de cultura e identidade
(Sader, 2001).
A tese do “Choque de Civilizações” busca ocultar os interesses econômico-políticos
de fato subjacentes a qualquer conflito e a qualquer guerra, sob o manto da subjetividade
(cultura e identidade). Esta tese, que legitima/justifica a nova forma de exercício de
hegemonia e de guerra demandada pelos Estados Unidos, fornece o embasamento
teórico-filosófico para a exploração de falsas polarizações internacionais e para a
aglutinação de “intelectuais” (jornalistas, ex-perts em relações internacionais, economistas
e outros profissionais, de plantão em todo o mundo) que “interpretam” o “sentimento” e as
ações norte-americanas.
9.7. Estados Unidos versus Europa A visita de George W. Bush à Europa, em maio de 2002, evidenciou um grau
elevado de contradição, presente nas políticas externas destes dois centros de poder,
embora não fosse explicitado, e mesmo freqüentemente negado. Todavia, a recorrência
de questões, nesta direção, dirigidas a Bush testemunham a existência da contradição.
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George W. Bush buscou evidenciar que os Estados Unidos e a Europa possuiriam
os mesmos objetivos econômicos e possuiriam sociedades que se organizariam sob um
modo de vida idêntico. Todavia, reconheceu contradições e conflitos de interesses.
Conforme Bush (2002),
(...) há mais fatores que nos unem do que fatores que nos separam. O amor à liberdade é um vínculo potente. (...) Somos unidos por valores comuns: o direito, os poderes constitucionais, o mercado. Além disso, temos problemas comuns a resolver que são mais importantes do que qualquer disputa. O combate ao terrorismo é uma causa comum que forma um vínculo forte entre nós.
Assim, penso que temos uma relação forte e sadia. É claro que surgem desavenças, de vez em quando. Temos desentendimento na área de comércio, mas é porque o comércio, entre nós, é considerável. É o andamento normal dos negócios, e com certeza não é algo que afete a visão que tenho de nossa aliança.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) foi questionada quanto ao
seu papel estratégico, em especial no que tange à “guerra contra o terrorismo”. As
intervenções de George W. Bush foram no sentido de defender a sua continuidade como
organização estratégica para diversos países.
Todavia, realçou alguns pontos: mudar o eixo de atuação da OTAN e promover
uma evolução de suas capacidades para combater as novas ameaças ao padrão social e
econômico euro-americano, o que equivale dizer que a OTAN deve se capacitar para uma
atuação global e, também, para combinar ações militares diretas e de informação
(espionagem); ampliar a OTAN, envolvendo países do leste [e talvez até mesmo de
outros continentes] sem que tal ampliação comprometa a sua linha de atuação
estratégica; dirimir os desníveis orçamentários, bem como de capacidade de intervenção
de forças de segurança em escala global entre norte-americanos e europeus; manter a
não extensão do direito de veto da Rússia sobre as ações militares da OTAN na Europa,
o que equivale, na prática, a um veto dos Estados Unidos e da Inglaterra ao pedido russo
de incorporação na OTAN; e conservar a Rússia como um parceiro a ser consultado
frente aos desafios da criação de medidas para o combate à proliferação de armas
nucleares e à “guerra contra o terrorismo”.
A política dos Estados Unidos para com a Europa unificada busca incorporá-la
como sócia-menor na política de pilhagem e exploração de todo o mundo. Esta política se
beneficia da presença inglesa na Europa e do quadro ainda precário em termos políticos e
jurídicos da unificação.
A Europa, por sua vez, tenderá a buscar um caminho próprio em termos políticos,
econômicos e militares, determinados pelas contradições crescentes com os Estados
55
Unidos no âmbito do sistema do capital. Para tanto, a Europa deverá patrocinar um longo
processo de fortalecimento de relações com a Rússia, construir bases políticas e jurídicas
mais centralizadas que contenham posições diferenciadas frente a temas e conjunturas
de importância estratégica e criar forças de segurança de atuação global.
Duas conclusões são necessárias. Primeiramente, esta tendência não levará,
necessariamente, ao fim da OTAN. Todavia, poderá restringir o seu papel a ações contra
Estados e forças sociais e políticas que atuem contra o sistema do capital, no âmbito da
Europa ou em outros continentes, quando ocorrer acordos entre Estados e Europa
unificada.
Em segundo lugar, uma possível polarização futura no âmbito das relações
internacionais, certamente representará algum nível de contenção da política externa dos
Estados Unidos. Todavia, a tendência é a de que isto não represente um fator de
atenuação do quadro de exploração dos países periféricos e semi-periféricos, visto que as
motivações dos Estados centrais do capitalismo são as mesmas, quais sejam, encontrar
condições favoráveis para a superação da crise de acumulação de capital às custas do
mundo do trabalho e dos povos oprimidos em todo o planeta.
56
10. CONCLUSÃO
A globalização atual, isto é, o imperialismo sob
nova forma, aprofunda contradições e conflitos
sociais. Como no passado, a atual fase de
expansão da globalização do capital amadurece
lutas sociais revolucionárias em todo o mundo.
James Petras
Em uma leitura de perspectiva histórica, percebe-se as mudanças ocorridas entre a
proposição da “Nova Ordem Mundial” e a nova política externa dos Estados Unidos
apontam para uma ordem mundial com características mais nítidas em termos
ideológicos, políticos, econômicos e militares. Ocorre uma espécie de “transição” do
formato da agenda imperialista do pós-Guerra Fria, no qual o multilateralismo era mais
evidente, para um formato da agenda imperial do final do governo Bill Clinton e acentuado
por meio da eleição de George W. Bush, dos atentados terroristas de 11 de setembro e
da intervenção militar terrorista dos Estados Unidos no Afeganistão do 7 de outubro de
2001. Na nova agenda imperialista, as formas da ação imperialista assumem contornos
cada vez mais próximos das formas clássicas de imperialismo do final do século XIX e
início do século XX.
A nova política externa dos Estados Unidos tenderá a enfrentar cada vez maiores
dificuldades para coesionar politicamente o sistema internacional em torno dos seus
objetivos. Em primeiro lugar, cresce a oposição da Europa à política externa dos Estados
Unidos em função das disputas interimperialistas pelas reservas de recursos naturais e de
mercados. Em segundo lugar, intensifica a resistência de países (Irã, Líbia, Síria) e de
movimentos sócio-políticos (fundamentalistas, laicos, culturais) ao imperialismo norte-
americano. Em terceiro lugar, ocorre uma crescente oposição na América Latina (governo
Hugo Chaves na Venezuela, FARC na Colômbia, movimentos sociais e governo Lula no
Brasil) da presença/hegemonia norte-americana no subcontinente latino americano. Em
quarto lugar, o movimento “antiglobalização neoliberal” aprofunda a sua articulação e a
sua capacidade de mobilização por meio de “redes políticas”, conforme testemunha o
Fórum Social Mundial e a mobilização internacional contra as guerras que os Estados
Unidos estão conduzindo e que tenderão a conduzir na nova conjuntura e/ou período
57
histórico. Em quinto lugar, ocorre uma tendência de radicalização dos conflitos nacionais
(Índia versus Paquistão; palestinos versus judeus; turcos versus curdos etc).3
Desde que George W. Bush chegou ao governo os interesses norte-americanos
converteram-se no princípio legitimador de um novo tipo de intervencionismo político e
militar, que é permanente, preventivo e global. Propõe, uma bipolarização do mundo entre
o “bem” e o “mal”, e a condução de uma guerra longa contra um inimigo invisível. O mal e
o inimigo que, de início foi exemplarmente representado pela Al Qaeda e pelo regime
Taleban, que posteriormente à guerra do Afeganistão passou a ser representado pelo
“ditador” Sadam Russein e pelo regime iraquiano de então, mas que poderá assumir
formas imprevistas no futuro próximo.
Ocorreu um deslizamento do centro estratégico de “contenção universal” dos
Estados Unidos para o centro estratégico de “ofensiva universal”. Os objetivos centrais da
política norte-americana podem ser definidos então, primeiramente, o de impedir o
aparecimento, em qualquer parte do mundo, e por tempo indeterminado, de qualquer
outra nação ou aliança que se transforme em potência capaz de rivalizar-se com eles. E,
em seguida, o de bloquear e destruir qualquer tipo de poder que tente competir e/ou
autonomizar-se em relação à sua força soberana.
Em função desta realidade soberania, direitos humanos e democracia são valores
que ficam suspensos por um tempo indeterminado e/ou estão sujeitos aos interesses e
cálculos políticos do império.
3 A tendência de radicalização dos conflitos nacionais ora fomentados pelos Estados Unidos para ampliar sua influência na região, ora como disputas determinadas por interesses norte-americano e europeus buscando construir áreas de influência, ora como recursos nacionais-chauvinistas de manipulação de massas, tendo em visto aplacar/ocultar/sublimar crises econômicas e sociais e políticas que decorrem de políticas econômicas coerentes com as determinações e interesses do capital financeiro.
58
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