entre conhecimentos situados perspetivas parciais posicionalidades e localizacoes

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 XIV Colóquio Ibérico de Geografa/ XIV Coloquio Ibérico de Geograía 11-14 novembro de 2014/ 11-14 Noviembre de 2014 Departamento de Geografa, Universidade do Minho Entre conhecimentos situados, perspetivas parciais, posicionalidades e localizações - contributos de Donna Haraway para outra(s) geograia(s)  Nuno Rodrigues (a) (a) DINÂMI A`CET-IUL, ISCTE-I UL,  nmdrodrigues@gmai!"om !esumo A #resen$e "omuni"a%&o #re$ende "on$ri'uir #ara a dis"uss&o no "am#o das e#is$emoogias eminis$as, em #ar$i"uar a$ra*s da e+#ora%&o da #ro#os$a de "one"imen$os si$uados. de Donna /ara0a1! Em #rimeiro ugar, ser&o a'ordadas agumas das #rin"i#ais dis"uss2es no 3m'i$o das e#is$emoogias eminis$as, e das geograias eminis$as em #ar$i"uar! 4os$eriormen$e, ser5 a#resen$ada e dis"u$ida a 65 reerida #ro#os$a de /ara0a1! En$re ou$ras 7ues$2es, ser5 e+#orada a orma "omo $a #ro#os$a #ermi$e ir a*m da o#osi%&o en$re #osi%2es uniersais$as e rea$iis$as, deso"ando o "on"ei$o de o'6e$iidade de orma a re"one"er o "ar5"$er sem#re si$uado, #ar"ia, "on$e+$ua e o"ai8ado do "one"imen$o! A*m disso, ser&o ainda e+#oradas as rea%2es en$re dieren$es o"ai8a%2es, a$ra*s do es$a'ee"imen$o de redes, "one+2es e #r5$i"as de di5ogo, as 7uais im#i"am a "onsidera%&o das dimens2es *$i"as e #o9$i"as enoidas! 4or :$imo, ser5 e+#orada a "r9$i"a 7ue a au$ora a8 em rea%&o a diersas ormas de "one"imen$o di"o$;mi"o! "alavras-chave< E#is$emoogias eminis$as= >eograias ?eminis$as= Cone"imen$os Si$uados! # Epi stemolo gia s e $e ogr aias %e mini st as As e# is$emo ogias emi nis$as , as 7uais dee m ser re e rid as $end o em "on$a a sua #r ;# ri a mu$i#i"idade in$erna e o "on$9nuo #ro"esso de dis"uss&o e "on$es$a%&o 7ue as "ara"$eri8am, $m  #ro$agoni8ado agumas das #rin"i#ais dis"uss2es e#is$emo;gi"as nas mais re"en$es d*"adas! En$re as 5rias dis"uss2es (A8eedo, BB= Moss, BB= Neson e Seager, BB= ieira e Am3n"io, BBF= ie ira, BGB= Rose, GH= Sia, BGBa, BGB'= Ta ares et al , BB), as 7uais &o no sen$ido da "r9$i"a e des"ons$ru%&o do "ar5"$er andro"n$ri"o e  genderizado da "in"ia, #odem saien$ar-se aguns $emas! Desde ogo, a "r9$i"a ausn"ia de mueres na "in"ia, em #ar$i"uar em #osi%2es de maior  #ro$agonismo, 'em "omo a e+is$n"ia de ou$ras ormas de des"rimina%&o! A "r9$i"a a ormas de  #ensamen$o di"o$;mi"asJ'in5rias, "omo se6a a di"o$omia en$re su6ei$o-o'6e$o, "or#o-men$e, ou en$re mas"uino e eminino - sendo 7ue, "omo reere >iian Rose, $a orma de #ensamen$o "onsiderou a ra"ionaidade "omo uma "ara"$er9s$i"a mas"uina e a irra"ionaidade a uma dimens&o eminina (Rose, GH< K-)! A "r9$i"a s "on"e%2es de "one"imen$o assen$es nos ideais de o'6e$iidade e neu$raidade,

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Entre Conhecimentos Situados Perspetivas Parciais Posicionalidades e Localizações Nuno Rodrigues

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XIV Colquio Ibrico de Geografia/ XIV Coloquio Ibrico de Geografa11-14 novembro de 2014/ 11-14 Noviembre de 2014Departamento de Geografia, Universidade do Minho

Entre conhecimentos situados, perspetivas parciais, posicionalidades e localizaes - contributos de Donna Haraway para outra(s) geografia(s)Nuno Rodrigues(a)(a) DINMIA`CET-IUL, ISCTE-IUL, [email protected]

ResumoA presente comunicao pretende contribuir para a discusso no campo das epistemologias feministas, em particular atravs da explorao da proposta de conhecimentos situados de Donna Haraway. Em primeiro lugar, sero abordadas algumas das principais discusses no mbito das epistemologias feministas, e das geografias feministas em particular. Posteriormente, ser apresentada e discutida a j referida proposta de Haraway. Entre outras questes, ser explorada a forma como tal proposta permite ir alm da oposio entre posies universalistas e relativistas, deslocando o conceito de objetividade de forma a reconhecer o carcter sempre situado, parcial, contextual e localizado do conhecimento. Alm disso, sero ainda exploradas as relaes entre diferentes localizaes, atravs do estabelecimento de redes, conexes e prticas de dilogo, as quais implicam a considerao das dimenses ticas e polticas envolvidas. Por ltimo, ser explorada a crtica que a autora faz em relao a diversas formas de conhecimento dicotmico.Palavras-chave: Epistemologias feministas; Geografias Feministas; Conhecimentos Situados.

1. Epistemologias e Geografias FeministasAs epistemologias feministas, as quais devem ser referidas tendo em conta a sua prpria multiplicidade interna e o contnuo processo de discusso e contestao que as caracterizam, tm protagonizado algumas das principais discusses epistemolgicas nas mais recentes dcadas. Entre as vrias discusses (Azevedo, 2009; Moss, 2005; Nelson e Seager, 2005; Oliveira e Amncio, 2006; Oliveira, 2010; Rose, 1993; Silva, 2010a, 2010b; Tavares et al, 2009), as quais vo no sentido da crtica e desconstruo do carcter androcntrico e genderizado da cincia, podem salientar-se alguns temas. Desde logo, a crtica ausncia de mulheres na cincia, em particular em posies de maior protagonismo, bem como a existncia de outras formas de descriminao. A crtica a formas de pensamento dicotmicas/binrias, como seja a dicotomia entre sujeito-objeto, corpo-mente, ou entre masculino e feminino - sendo que, como refere Gillian Rose, tal forma de pensamento considerou a racionalidade como uma caracterstica masculina e a irracionalidade a uma dimenso feminina (Rose, 1993: 7-9). A crtica s concees de conhecimento assentes nos ideais de objetividade e neutralidade, bem como de um conhecimento universal, total e exaustivo[footnoteRef:1]. Sendo, pelo contrrio, cada vez mais salientando a necessidade de reflexividade e de a/o investigador/a assumir a sua prpria posicionalidade, salientando-se o papel da experincia pessoal e posio da/o investigador/a. Tais discusses tm igualmente denunciado as ausncias e invisibilidades de determinadas identidades, experincias e grupos sociais - as quais favorecem a reproduo de relaes de poder e desigualdades. Algo que se reflete nos temas de pesquisa, nos conceitos utilizados, metodologias aplicadas, bem como nas restantes atividades acadmicas. Alm disso, e de forma relacionada quer com as crticas anteriores quer com a prpria dimenso poltica do feminismo, de salientar a no separao entre poltica e cincia - separao que poderia ser vista quer como uma falsa neutralidade, quer como o no reconhecimento da influncia das prprias posies da/o investigador/a. Ao invs, defende-se a construo de conhecimentos que permitam desconstruir as relaes de poder existentes, bem como capazes de promover visibilidade. [1: Algo que, em parte, reflexo de uma influncia cartesiana, considerando de forma dicotmica corpo e mente, e que: () assumes a knower who believes he can separate himself from his body, emotions, values, past and so on, so that he and his thought are autonomous, context-free and objective. (Rose, 1993: 7).]

Vrias destas questes refletem-se na geografia[footnoteRef:2]. Desde logo, e como salienta Gillian Rose (1993), tambm o conhecimento geogrfico pretende a exaustividade - assumindo, pelo menos em princpio, que o mundo pode ser totalmente conhecido e compreendido (ibid.: 6-7). Um projeto de conhecimento que o reflexo de uma perspetiva que considera a sua posio como objetiva e universal, sem considerar as relaes de poder envolvidas nem a sua prpria posio, a qual tomada como no-problemtica para o processo de conhecimento (ibid.). Sendo que, na geografia contempornea, a autora continua a identificar a existncia de um Mesmo/Ns no problematizado, o qual depende de um Outro invisvel/ausente, como o caso de um Outro feminino - entre outros ausentes, dado que, segundo Rose, nas relaes entre conhecimento e poder na geografia, tambm as dimenses de classe, etnicidade/raa e sexualidade devem ser consideradas. No entanto, a autora salienta que o sujeito dominante no monoltico, nem apresenta uma caracterstica considerada de forma essencialista, transcendente e a-histrica - pelo contrrio, a autora refere a dimenso social e culturalmente construda, relacional e processual de tal situao (ibid.: 9-11). [2: Como refere Ana Alves, tal modelo de racionalidade estabeleceu-se () relegando, segundo a gegrafa Linda McDowel (1999) a viso feminina para um segundo plano, gerando-se uma forte invisibilidade do seu trabalho e da sua maneira de pensar no processo de produo de espao por meio de alguns fatores fundamentais tais como o facto da cincia geogrfica privilegiar paisagens e tendncias hegemnicas, assim como a tradio na abordagem de aspetos fsicos e visveis no espao, o apego a dados quantitativos, a busca da neutralidade cientfica e a abordagem economicista da perspetiva marxista. (Alves, 2013: 16).]

1. Conhecimentos SituadosComo referido, o foque deste artigo a proposta de Donna Haraway (1988). No seu artigo, a autora comear por contextualizar alguns dos debates feministas em torno de cincia, sendo crtica de duas posies, tomadas pela autora como dicotmicas, em relao questo da objetividade (Haraway, 1988: 576-577). Uma, correspondente ao construtivismo social, argumenta que qualquer reivindicao de conhecimento diz respeito a uma relao de poder, e no procura de algo que poderia ser considerado como verdadeiro. A cincia reduzir-se-ia, assim, a uma construo, sendo a objectividade e o mtodo cientfico algo de ideolgico, uma retrica que procura esconder a forma como realmente a cincia seria realizada, com o objetivo de reproduzir relaes de poder (ibid.). Outra posio diz respeito ao empirismo feminista, o qual continua a defender a noo de objetividade, ainda que, ao mesmo tempo, tambm aplicaria algumas das ferramentas do construtivismo radical com o objetivo de salientar e desconstruir a construo e contingncia histrica do conhecimento (ibid.: 579).Para Haraway, uma epistemologia feminista deve continuar a procurar uma melhor considerao e representao da realidade, com o objetivo de poder criticar e desconstruir da melhor forma as relaes de poder existentes - algo que remete para uma dimenso tica e poltica do conhecimento (ibid.). Haraway pretende uma cincia que seja, ao mesmo tempo, um reconhecimento da contingncia da histria em relao a todo o conhecimento produzido, ao seu contexto e seus sujeitos conhecedores; uma prtica que reconhea criticamente as tecnologias semiticas que produzem significados; e um compromisso com credveis representaes de uma realidade, para que o conhecimento contribua para o referido compromisso tico e poltico (ibid.). Haraway defende o aproveitamento da capacidade de teorias crticas, a criao de redes e conexes, a traduo de conhecimentos entre diferentes comunidades e localizaes, e de, no seguimento da dimenso tica e poltica j referida, que tal contribua para a alterao de relaes de poder, de significados e corpos, de realidade (ibid.: 579-580).Esta proposta permite conceber de outra forma a noo de objectividade, indo para l de posies empiristas ou construtivistas, bem como de posies universalistas totalizadoras e posies relativistas. Em primeiro lugar, a autora leva-nos a reconhecer a dimenso corporizada da viso, criticando os sistemas sensoriais usados para associar a cincia a um olhar (gaze) de lugar nenhum, descorporizado, separado e acima do objeto, utilizado para marcar outros corpos em posies subjugadas, e associado a diferentes sistemas de dominao - um olhar que reclama o poder de ver e de no ser visto, de representar ao mesmo tempo que pretende escapar a ser representado (ibid.: 581). Para Haraway, a objetividade s atingida reconhecendo a nossa situao, a localizao onde nos encontramos e partimos, a nossa perspetiva sempre parcial, e nunca de um lugar nenhum transcendente e capaz de viso infinita - algo que Haraway toma como ilusrio e denomina de god trick, e que igualmente remete para uma falsa separao sujeito-objeto (ibid.: 581-583).Haraway, como j salientado, refere que o conhecimento situado e localizado, ainda que tal no implique a impossibilidade de estabelecer redes entre diferentes localizaes - mesmo tal pressuponha uma forma de inquirio crtica e responsvel, evitando perspetivas romantizadas e possveis apropriaes, em particular quando se pretende ver a partir de baixo (ibid.: 583-585). A autora salienta que tal posicionamento no implica nem uma posio totalizadora nem uma posio relativista - posies que a autora toma como god tricks. Isto porque, segundo Haraway, o reconhecimento da impossibilidade de posies totalizadoras, nicas e autoritrias da cincia moderna no nos dever fazer abraar o relativismo - antes, reconhecer a possibilidade de construo de um conhecimento que, mesmo partindo de uma determinada localizao e situao, e de determinadas perspetivas parciais, procure criar redes, conexes e dilogos com outras localizaes [footnoteRef:3] (ibid.: 584). A autora defende uma prtica da cincia que privilegie contestao, desconstruo, construo apaixonada, conexes em rede, e esperana na transformao dos sistemas de conhecimento, formas de vida e relaes de dominao, uma prtica capaz de evitar relativismos fceis, holismos parciais e dicotomias (ibid.: 585). [3: Segundo Haraway: But the alternative to relativism is not totalitzation and single vision, which is always finally the unmarked category whose power depends on systematic narrowing and obscuring. The alternative to relativism is partial, locatable, critical knowledges sustaining the possibility of webs of connections called solidarity in politics and shared conversations in epistemology. Relativism is a way of being nowhere while claiming to be everywhere equally. The equality of positioning is a denial of responsibility and critical inquiry. Relativism is the perfect mirror twin of totalization in the ideologies of objectivity; both deny the stakes in location, embodiment, and partial perspective; both make it impossible to see well. Relativism and totalization are both god tricks promising visions from everywhere and nowhere equally and fully, common myths in rhetorics surrounding Science. But it is precisely in the politics and epistemology of partial perspectives that the possibility of sustained, rational, objective inquiry rests. (ibid.: 584).]

Haraway salienta a necessidade de uma constante interrogao da responsabilidade e posicionalidade de quem v e diz conhecer, ainda que seja igualmente negada a sua imutabilidade - pelo contrrio, refere-se a multiplicidade, dimenso relacional e contnuo processo de transformao dos sujeitos[footnoteRef:4] (ibid.: 585-587). Para Haraway, um ser contraditrio e inacabado aquele que apresenta a capacidade de constantemente interrogar de forma crtica e responsvel, e de construir redes e ligaes parciais entre diferentes situaes e posies - sendo a partir de tal posicionamento crtico que a objetividade pode ser alcanada (ibid.). Implica o reconhecimento das tenses entre posies, as continuidades e descontinuidades, resistncias e cumplicidades entre as diferentes posies/localizaes, sem as tomar como fixas e discretas entre si (ibid.: 588). Uma responsabilizao que depende de um conhecimento voltado para a ressonncia e no para a dicotomia, para redes de e entre localizaes e no para localizaes fixas e reificadas (ibid.). Algo que remete ainda para uma ideia coletiva do conhecimento, bem como para a j referida uma dimenso tica e poltica[footnoteRef:5] (ibid.: 585-588). Haraway refere que o conhecimento deve ser visto como um processo contnuo, uma relao crtica entre campos interpretativos e significados descodificados - sempre aberto contestao, a prticas de conversao e traduo que devem ser crticas e atentas s relaes de poder em presena (ibid.: 590). Um conhecimento sempre situado, mas procurando estabelecer ligaes e polticas de solidariedade capazes de juntar as diferentes perspetivas parciais e posies menos privilegiadas, com o objetivo de criar ligaes e comunidades, e de, assim, permitir aberturas do possvel[footnoteRef:6] (ibid.). [4: Relativamente ao ser/sujeito que v, a autora salienta a forma como tal acto , em si, um acto envolto em relaes de poder - um poder de ver. Algo ainda mais problemtico quando se pretende ver a partir de outras posies, implicando tal movimento dimenses ticas e a considerao das relaes de poder envolvidas - mesmo que o nosso ser tambm seja problemtico, mltiplo e contingente (ibid.: 585). O ser contingente e instvel, mvel - sendo que um posicionamento mvel no se coaduna com uma inocente poltica de identidade ou epistemologias que pretendem ver a partir das posies de outras posies de forma a ver bem (ibid.). Segundo Haraway, trata-se no de um ser unitrio e tomado de forma essencialista, mas antes de uma posio inacabada, contraditria, processual e sempre aberta (ibid.: 585-587).] [5: Como salienta Oliveira, na sua leitura de Haraway, trata-se de um conhecimento construdo com e entre outras localizaes e vises, estabelecendo-se entre redes/relaes: Trata-se de utilizar o privilgio da perspectiva parcial que nos permite estar simultaneamente inserid@s no quadro do objecto e produzir conhecimento sobre ele, a partir dessa insero. O contributo desta anlise para as epistemologias feministas implica uma mudana de concepo. Os projectos de pesquisa de conhecimentos situados no so marcados pelo distanciamento positivista com pretenses de universalidade ou neutralidade. So antes, uma pesquisa marcada pela interpretao necessariamente parcial e por isso, no pretende constituir-se como uma explicao de factos ou constituio de modelos tericos reprodutveis a outras situaes. Assumir o papel de testemunhas modestas como prope Haraway (Haraway, 1998), implica sujeitos situados, produtor@s de conhecimentos contextuais e responsveis localizveis pela produo desse conhecimento. (Oliveira, 2010: 35).] [6: Como refere Haraway: The science question in feminism is about objectivity as positioned rationality. Its images are not the products of escape and transcendence of limits (the view from above) but the joining of partial views and halting voices into a collective subject position that promises a vision of the means of ongoing finite embodiment, of living with limits and contraditions - of views from somewhere. (Haraway, 1988: 590). ]

Por ltimo, a proposta de conhecimentos situados de Haraway implica ainda uma crtica de dicotomias vrias. Desde logo, Haraway, sobre a possibilidade de um acesso e conhecimento objetivo do mundo real, critica as posies que consideram que tal aconteceria independentemente da sua mediao e do quo complexo e contraditrio o mundo real possa ser - como se a realidade e o mundo se tratasse de um objeto passivo e inerte, imediatamente acessvel, espera de ser conhecido e utilizado/apropriado como objeto de conhecimento, de uma forma meramente instrumental (ibid.: 591-592). A critica dicotomia sujeito-objeto pretende no s salientar as relaes entre os dois, mas criticar uma posio de um sujeito conhecedor que se v acima do seu objeto - posies que tendem a considerar o sujeito do conhecimento como detentor de todo o poder, ao mesmo tempo que negando qualquer agncia ao objecto de conhecimento (ibid.). A crtica de Haraway leva-a a defender que o objeto de conhecimento no seja tomado como algo de simplesmente aproprivel e sem agncia, mas antes reconhecendo as relaes de interdependncia e de poder que se estabelecem entre sujeito e objeto no processo de conhecimento (ibid.: 591-593). Para Haraway, torna-se necessrio ultrapassar tais dicotomias, passando a considerar os objetos simultaneamente como agentes e atores, e em que agncia do objeto se torna ainda mais relevante devido s dimenses ticas implicadas - em particular, no caso das cincias sociais e humanas (ibid.). Algo que igualmente se relaciona com a necessidade de reconhecer as dimenses simultaneamente materiais e semiticas dos atores, a sua agncia e dimenso produtiva e desestabilizadora de significados e corpos, generativo de ns e de fronteiras que se materializam atravs da interao, e cujas fronteiras so construdas de forma relacional - e, que, no seguimento da prpria dimenso tica e poltica defendida por Haraway, possibilitam a construo de algo novo, uma abertura do possvel, sempre de forma processual e aberta (ibid.: 595-596).1. Notas FinaisA proposta apresentada permite ir alm dos debates entre posies universalistas e relativistas, fazendo uma crtica ao que a autora denomina de god trick, e deslocando os prprios conceitos de objetividade e de racionalidade. Haraway salienta que o conhecimento sempre contextual, parcial, situado e corporizado, dependente de uma dada posio e localizao. No entanto, tambm salienta a possibilidade de estabelecer conexes/redes e dilogos, bem como a dimenso coletiva, tica e poltica do conhecimento. Por ltimo, critica vrias formas de pensamento dicotmico, seja entre posies universalistas e relativistas, cincia e poltica, cincia e tica, localizao e conexes/redes, seja nas oposies entre sujeito e objeto, material e semitico, entre outras.A ligao entre os conhecimentos situados e a geografia passa, desde logo, por uma dimenso epistemolgica, mas no s (Azevedo, 2009). Esta proposta no deve, contudo, ficar restrita s geografias feministas ou s geografias de gnero e sexualidades, dado que as suas crticas e potencialidades contriburem para uma reflexo mais alargada e abrangente da disciplina, no seu todo. Seguindo a recomendao de Haraway, importa considerar a nossa prpria situao, localizao e dimenso corporizada, mas, ao mesmo tempo, estabelecer redes, conexes e prticas de dilogo e de traduo com outras localizaes, considerando as relaes de poder em presena e sem deixar a dimenso tica e poltica de lado.1. BibliografiaAlves,A. (2013).Moda,Culturae Corporeidades.GeoPlanUM. [Online] II Edio, 1119. Disponvel em: files.geoplanum.webnode.pt/200005035.../Artigo_Catarina%20alves.pdf [Acedido em 31 de agosto de 2014]Azevedo, A. F. (2009), Desgeografizao do Corpo. Uma Poltica de Lugar. In Azevedo, A.F., Pimenta, J.R, Sarmento, J. (Org.) Geografias do Corpo (pp. 31-80). Porto e Lisboa: Figueirinhas.Haraway, D. (1988), Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective,Feminist Studies, v. 14, n. 3, pp. 575-599.Moss, P. (2005). A Bodily Notion of Research: Power, Difference, and Specificity in Feminist Methodology. In Nelson, L. e Seager, J. 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