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Entre a Reconquista do Orgulho e a Liderança Regional: Um Estudo sobre as
Pretensões Diplomáticas, a Estabilização Econômica e a Integração na Argentina e no
Brasil no Início do Novo Milênio
Gustavo Flores Pedroso1
José Carlos Martines Belieiro Júnior2
Resumo
O presente artigo analisa as relações entre a política externa e a política econômica no
mandato de Néstor Kirchner e no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, de modo a
entender a situação da integração bilateral e regional entre 2003 e 2007. Para isso, analisa as
práticas econômicas e de política externa da década anterior aos governantes, com o objetivo
de identificar a influência de ambas nos mandatos de Kirchner e Lula e no processo de
integração. O trabalho está dividido em quatro partes, tratando respectivamente de:
introdução ao assunto e aos objetivos do trabalho; a década neoliberal dos anos 1990 no
continente sul-americano, com ênfase em Brasil e Argentina; análise da primeira metade dos
anos 2000 nos governos brasileiro e argentino, com foco na integração; considerações finais
sobre o trabalho. O estudo parte de uma análise bibliográfica, apontando elementos da década
neoliberal que vão impactar nas políticas econômicas e na política externa dos governos
estudados. Por fim, elenca os pontos que influenciaram na situação da integração entre os dois
países durante o período estudado.
Palavras-chave: Integração. Política Externa Brasileira. Política Externa Argentina. Neoliberalismo. Crise
Econômica. Luís Inácio Lula da Silva (Lula). Néstor Kirchner.
Abstract:
This article analyzes the relationship between foreign policy and economic policy in the
presidential term of Néstor Kirchner and the first presidential term of Luiz Inácio Lula da
Silva, in order to understand the situation of bilateral and regional integration between 2003
and 2007. For this, it analyzes the economic and foreign policy practices of the previous
1 Graduando do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.
2 Docente orientador – Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
2
decade, in order in order to identify the influence of both in the terms of Kirchner and Lula
and in the integration process. The work is divided in four parts, dealing respectively:
introduction to the subject and purpose of the work; neoliberal decade of the 1990s in South
America, with emphasis on Brazil and Argentina; analysis of the first half of the 2000s in the
Brazilian and Argentine government, focusing on integrating; final thoughts on the work. The
study starts with a literature review, highlighting elements of the neoliberal decade that will
affect economic policy and foreign policy of the governments studied. Finally, lists the points
that influenced the status of integration between the two countries during the period studied.
Keywords: Keywords: Integration. Brazilian Foreign Policy. Argentina Foreign Policy. Neoliberalism.
Economic Crisis. Luiz Inácio Lula da Silva (Lula). Néstor Kirchner.
1 INTRODUÇÃO
Néstor Kirchner e Luiz Inácio Lula da Silva assumiram os governos da Argentina e do
Brasil em 2003 em situações adversas. O presidente brasileiro encontrava um país
relativamente estabilizado economicamente, mas que precisava manter a inflação controlada e
combater a dívida externa e a desconfiança política, além de enfrentar um clamor para que o
país finalmente retomasse o crescimento do PIB, que vinha estagnado nos mandatos de
Fernando Henrique Cardoso. Lula se esforçou para utilizar a imagem do país após a
estabilização econômica como fator importante para a política externa, principalmente para
alcançar seus planos de liderança regional e postulação à um cargo permanente no Conselho
de Segurança das Nações Unidas3.
Já Kirchner encontrou uma Argentina extremamente fragilizada economicamente,
principalmente após decretar a moratória da sua dívida externa em 2001, o que afastou ainda
mais investimentos externos. A situação política interna também estava enfraquecida, com o
tradicional Peronismo divido nas eleições entre Kirchner, Menem e Rodríguez Saá. A falta de
crença do povo argentino em seus governantes, refletida na renúncia de Fernando de la Rúa,
em 2001, e na troca entre quatro presidentes que se sucederam até a eleição de Kirchner, em
3 Orgão da Organização das Nações Unidas (ONU) formado por cinco membros fixos (China, Estados Unidos,
França, Inglaterra e Rússia), com poder de veto, e dez membros rotativos, eleitos a cada dois anos, sem poder de
veto. Sua obrigação é zelar pela manutenção da paz e da segurança mundial.
3
2003, também colocou como prioridade na agenda de Kirchner a construção de sua
legitimidade política.
A não convergência econômica se fez notar entre 1990 e 2010. Ambos os países se
utilizaram de políticas neoliberais, mas sem nenhuma simetria com seu vizinho. Enquanto
Menem adotou um forte processo de liberalização financeira, de privatizações e valorização
do câmbio, Fernando Henrique Cardoso manteve a política monetária, econômica e cambial
com mais autonomia, evitando o nível de alinhamento que a Argentina buscava obter, com
essas medidas, junto aos Estados Unidos.
A Argentina virou moda nos mercados internacionais, foi designada aliada externa
da Otan, participou da Guerra do Golfo e funcionou como o melhor aluno do
Conselho de Washington. O grau extremo desse alinhamento não foi compartilhado
pelo Brasil, e se não ocorreu um conflito aberto, surgiram desconfianças e até
rivalidades inúteis. (LAVAGNA, 2009, p. 136)
Ambos os presidentes eleitos viram no outro uma oportunidade de concretizar seus
planos. Kirchner ansiava pela oportunidade de afastar-se politicamente dos Estados Unidos,
parceiro privilegiado principalmente nas gestões de Menem na década de 1990 e que, no
entanto, não prestou o suporte que a Argentina julgava ser necessário durante os anos de crise.
Além disso, a aproximação com o Brasil fortaleceria o Mercosul, resultando em um mercado
regional que poderia facilitar a reindustrialização argentina ao absorver seus produtos.
Já o Brasil via como uma oportunidade de melhorar seu posicionamento regional,
aumentando assim o poder de barganha nos foros internacionais.
A integração da América do Sul era sobretudo um projeto político que repousava em
alicerces econômico-comerciais. Para a diplomacia brasileira, a integração regional
constituía opção estratégica para o aumento da capacidade de negociação dos países
sul-americanos na defesa de seus interesses nos foros internacionais. (LEITE, 2011,
p. 175)
Para aprofundar esta discussão, o artigo foi dividido em três capítulos. O primeiro
capítulo focaliza a década neoliberal dos anos 1990 no continente latino, com o intuito de
contextualizar o momento em que Kirchner e Lula assumiram. O segundo analisa a primeira
metade dos anos 2000 nos governos brasileiro e argentino, procurando identificar os avanços
(e recuos) na integração e as pretensões da política externa, considerando o momento
econômico referido. Por fim, o terceiro capítulo retoma o debate, resume os resultados
alcançados e tece as considerações finais.
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A economia em si e o momento econômico em que um país está inserido são fatores
importantes para uma análise de política externa. A integração Brasil e Argentina, como
veremos durante o artigo, esteve muito pautada na política externa e na economia. Enquanto a
Argentina via no Brasil e no Mercosul uma oportunidade de se reindustrialziar e atrair
investimento externo, o Brasil por sua vez via uma oportunidade de aumentar sua
representação internacional.
Em um trabalho acadêmico é sempre um perigo muito grande isolar dois campos
imensos, como a economia e a diplomacia, de todas as outras variáveis internas e externas. No
entanto, para o a desenvolvimento da argumentação deu-se prioridade a essas duas esferas,
sem esquecer do aspecto social.
O objetivo principal deste artigo, portanto, é analisar as relações entre a política
econômica e a política externa da Argentina e Brasil no início dos anos 2000, nos governos de
Kirchner e Lula, de modo a entender a situação da integração bilateral e regional entre 2003 e
2007. Para isso, são analisadas as práticas econômicas e de política externa da década anterior
aos governantes, a fim de identificar a influência de ambas nos mandatos de Kirchner e Lula e
no processo de integração.
2 A EXPERIÊNCIA NEOLIBERAL NO BRASIL E ARGENTINA NA VIRADA DO
SÉCULO
2.1 Se afastando das raízes desenvolvimentistas
As experiências neoliberais postas em prática na década de 1990, pelo Brasil e
Argentina, além de grande parte dos países da América do Sul, eram reflexo de um momento
de transição política tanto interna quanto externa. De uma hora para outra, e com uma
velocidade impressionante, a América Latina abandonou suas raízes desenvolvimentistas e
toda a produção intelectual de décadas voltadas para o desenvolvimento interno, em favor de
“um mundo harmônico, global, que compreendia a valorização do individualismo e da
iniciativa privada (...)” (CERVO, 2001).
Com efeito, o acervo de ideias estruturalistas cepalino, ancorado nos conceitos de
centro-periferia, deterioração dos termos de troca, indústria, mercado interno,
expansão do emprego e da renda, que inspirou a política dos países latino-
americanos em sua estratégia de superação do atraso histórico, foi despachado para o
arquivo histórico pelos dirigentes neoliberais. (CERVO, 2001, p. 281)
5
Muitas das raízes desenvolvimentistas da América vieram da Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe (CEPAL), órgão da ONU, criado em 1948, com o intuito de
implantar dentro do continente um núcleo de apoio ao planejamento econômico no pós-
Segunda Guerra. Um de seus principais preceitos era de que a CEPAL promovesse...
(...) a transição entre uma economia voltada “para fora” e um crescimento voltado
“para dentro” através da industrialização. Ou seja, para superar a condição de
subdesenvolvimento, seria necessário alterar a divisão internacional do trabalho, em
que os países periféricos se especializavam na produção primária, enquanto os
países centrais, produtos industriais. Com base nessa visão, a CEPAL definiu o
processo de industrialização pela via da substituição de importações como forma de
promover o desenvolvimento latino-americano. (CORAZZA, 2006, p. 139-140).
A exaustão que as políticas desenvolvimentistas alcançaram, tanto na Argentina e
Brasil, quanto em países como Peru e Venezuela, foi o condicionamento interno que melhor
contribuiu para a adoção quase unânime do neoliberalismo, sendo melhor traduzido nas crises
econômicas e no novo momento político pós-redemocratização. O final da década de 1980
trouxe dívidas internas, crises monetárias e o pesadelo da hiperinflação constante no
continente.
Brasil e Argentina se encontravam também em um novo momento político. Com a
redemocratização brasileira, o primeiro presidente eleito foi de um partido não tradicional
(Collor, pelo PRN), sendo o presidente mais novo a assumir o cargo, com 40 anos em 1990.
Na Argentina, Menem, apesar de fazer parte do tradicional Partido Justicialista, não fazia
parte da elite tradicional do país. Apoiados por uma insatisfação social, causada pelo colapso
da economia, que exigia mudanças nos rumos das políticas internas e externas, aliados ainda a
um momento externo propício, naturalmente a escolha foi a de seguir por caminhos
neoliberais, visando obter sucesso onde as políticas desenvolvimentistas mais falharam:
estabilização econômica, diminuição do desemprego, aumento da produtividade das empresas
nacionais e, no caso brasileiro, um retorno aos índices de crescimento dos tempos áureos da
ditadura4.
Amado Luiz Cervo (2011) cita quatro influências externas que levaram a adoção do
neoliberalismo no Brasil, mas que também ajudam a explicar o processo na Argentina:
4 “O período 1968-1973 é conhecido como "milagre" econômico brasileiro, em função das extraordinárias taxas
de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) então verificadas, de 11,1% ao ano (a.a.). Uma característica
notável do "milagre" é que o rápido crescimento veio acompanhado de inflação declinante e relativamente baixa
para os padrões brasileiros, além de superávits no balanço de pagamentos.” (Veloso,
Villela, Giambiagi, 2008, p. 222)
6
a- substituição no pensamento econômico do modelo keynesiano de Estado pelo modelo
liberal, ocorrido na Inglaterra dos anos 1970 e nos Estados Unidos (de forma mais
moderada) nos anos 1980, que iam de encontro ao pensamento cepalino;
b- a unificação do mundo em torno do sistema capitalista, graças ao fim do socialismo
real em 1989. A perda da alternativa à visão de mundo norte-americana ajudou a
consolidar a ideia de que o alinhamento aos Estados Unidos era o único caminho
disponível;
c- as experiências monetaristas propostas por escolas norte-americanas com o intuito de
resolver a crise da dívida externa dos anos 1980. Estas soluções eram contrárias as
defendidas pelo pensamento desenvolvimentista da Cepal: enquanto essas novas
medidas defendiam manipulações nas taxas de câmbio para estabilizar a inflação, o
pensamento cepalino defendia soluções estruturais, como o aumento da renda, do
mercado interno e da industrialização;
d- a ascensão de governos neoliberais na vizinhança, como Chile, Peru, Venezuela e,
claro, a Argentina. Manter-se como um estado intervencionista iria causar um
isolamento no contexto regional.
Essa predominância pelos interesses econômicos que o neoliberalismo trouxe para os
governos latinos foi impactante à política externa. No Brasil, ela vinha de uma década de
1970 muito dinâmica, participando nas agendas do mundo em desenvolvimento. Na década de
1980, adquire a percepção de que o alinhamento automático aos Estados Unidos não traz os
benefícios econômicos e o prestígio internacional esperado e começa a buscar parcerias
estratégicas como forma de desenvolver novas alternativas para superação de dificuldades.
Esse modelo de política externa associado ao desenvolvimento nacional atinge um ponto de
exaustão e perda de prestígio no final da década de 1980.
É nesse contexto que a candidatura de Collor de Melo (1989) lança sua plataforma,
gerando, em matéria de política externa, três tipos de expectativas (Hirst &
Pinheiro): atualizar a agenda internacional do País; construir uma nova agenda
prioritária e não conflitante com os Estados Unidos; e reduzir o perfil “terceiro-
mundista”, tendo em vista as mudanças produzidas no cenário político internacional,
que, supostamente, levaram a uma atualização de posições mais comprometidas
sustentadas até então ou que eram vistas como contestatórias do poder mundial.
(BERNAL-MEZA, 1998, p. 1-2).
As políticas externas de Collor, Franco e Cardoso serão discutidas nas próximas
seções deste capítulo. Por hora, acrescenta-se que elas romperam com a noção de autonomia e
continuidade que o Itamaraty historicamente teve na condução da política externa brasileira.
7
Na Argentina, o que se desenvolveu foi um “pensamento com pretensão hegemônica
que construiu a teoria da decadência nacional, engendrada pelo isolamento internacional do
país, durante a fase que se estende entre 1930-1943 e 1983-1989”. (CERVO, 2001, pp. 285-
286). A fim de evitar novos confrontos com potências ocidentais, processo comum na história
diplomática do país, a política externa argentina alinhou seus objetivos com a potência
hegemônica, no caso os Estados Unidos, a fim de obter ganhos econômicos e políticos.
2.2 Argentina: o desastre econômico e o realismo periférico
A caminhada da Argentina para o neoliberalismo começou com a eleição do candidato
da Unión Cívica Radial, Raúl Alfonsín, em 10 de dezembro de 1983. O presidente teve que
lidar com as heranças da ditadura militar e da Guerra das Malvinas, como a inflação, a dívida
externa e a situação política dos militares.
Quanto às duas primeiras, Alfonsín criou uma nova medida monetária, o Austral, que
fracassou na sua proposta de trazer mais confiança aos agentes econômicos e de combater
com eficiência a inflação e, como consequência disso, um processo hiperinflacionário que
seria um agravante para sua renúncia em 1989. “Alfonsín deixou o poder em 1989 com uma
dívida externa superior a 60 bilhões de dólares e uma economia em estado crítico.”
(RAPOPORT, 2009, p. 42)
Na política externa, Alfonsín priorizou as relações dentro da América Latina (com a
assinatura da Declaração do Iguaçu5 junto ao presidente brasileiro José Sarney), as relações
com os governos europeus e a continuação das relações argentino-soviéticas. Essa relação,
principalmente com os governos europeus, não foi suficiente para lidar com os agentes
econômicos que pressionavam a argentina, seja credores externos e os organismos financeiros
internacionais (FMI)
Essas medidas políticas, aliadas com as pressões internas sofridas pelo presidente por
parte dos militares (o que levou a decretar leis de perdão6) e a crise econômica, contribuíram
5 Foi um tratado celebrado em 30 de novembro de 1985, entre o presidente argentino e o presidente brasileiro, no
qual se procurava fomentar a integração entre os dois países. Foi um dos precursores do Mercosul. 6 Aprovadas em 1986 e 1987, definiram que militares e policiais abaixo do cargo de coronel só cumpriam ordens
ao violar direitos humanos na ditadura. Foram revogadas em um processo que se arrastou durante todo o
mandato de Néstor Kirchner.
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para que o neoliberalismo fosse posto em prática pelo seu sucessor, Carlos Saúl Menem, do
Partido Justicialista.
O governo de Menem, que havia subido ao poder com um discurso populista –
prometia um “salariaço” e a “revolução produtiva” – em breve mostrou que sua
política econômica se alinharia com os postulados do Consenso de Washington e
seguiria os conselhos do FMI e outros organismos financeiros internacionais.
(RAPOPORT, 2009, p. 43)
A solução encontrada pelo governo Menem para a crise econômica foi um novo plano
econômico, chamado de Plano Cavallo, e implantando pelo ministro da economia Domingo
Cavallo em 1991, que combinava a livre convertibilidade da moeda argentina (trocando o
nome de Austral de volta para Peso) com um câmbio fixo de paridade 1 peso – 1 dólar. Com o
objetivo de reduzir gastos governamentais e fazer caixa, ocorreram as privatizações de
empresas estatais7, logo no primeiro ano a frente do governo.
Em 1995, ao final de seu primeiro mandato, os números pareciam expressar o êxito de
sua estratégica econômica. De acordo com dados do World Databank, a inflação tinha caído
para 3.16 % do PIB (estava em 3057.6 % em 1989). Já o crescimento do PIB, que vinha
negativo até 1990, chegou a 12.67% em 1991, ficando negativo novamente apenas em 1995.
A dívida externa, de 65, 538 bilhões em 1989, foi para 98, 77 bilhões em 1995.
De acordo com RAPOPORT (2009), a diferença entre os indicadores de inflação e de
dívida externa acontece porque esse sistema de convertibilidade funcionava como o padrão
ouro8. Com a abertura irrestrita de mercados, a única forma de controlar a dívida externa seria
um continuo fluxo de capitais ou aplicação de políticas recessivas para baixar os custos
trabalhistas e obter competitividade.
Trata-se de uma economia que cresce apenas com o endividamento externo público e
privado. As privatizações começaram a cobrar seus custos, promovendo uma fuga de capitais
do país. O resultado disso tudo se refletiu no final do segundo governo Menem. Ainda com
dados do World Databank, em 1999, último ano do seu segundo mandato, a dívida externa
chegou a 150,014 bilhões de dólares. Houve ainda o agravante das questões sociais. A taxa de
7 “(...) em 1989, havia 92 empresas públicas, cujas receitas, despesas, prejuízos e transferências de recursos do
Tesouro corresponderam naquele ano a 15,3%, 20,8%, 5,5% e 1,4% do PIB do país, respectivamente. Em 1994,
restavam apenas 8 empresas públicas; das demais, 25 haviam sido vendidas, 12 concedidas, 18 liquidadas, 3
transferidas para províncias e municípios e 25 estavam em processo de privatização” (LIMA, 1997, p. 29). 8 Sistema monetário que vigorou desde o século XIX até a Primeira Guerra Mundial, e significava a adoção de
um regime cambial fixo, em que o valor da moeda de cada país participante era fixada a uma quantidade
específica de outro.
9
desemprego da população ativa passou de 7.3 % em 1989 para 12.8% em 1998 (com pico de
18.8% em 1995).
Junto com as políticas econômicas neoliberais de abertura econômica, privatização e
aumento da dívida externa, no campo da política externa o governo de Menem adotou a teoria
do “Realismo Periférico”, o que iria orientar suas ações em seu mandato. Amado Luiz Cervo
(2001), enumera os fundamentos dessa teoria política:
1) Um país periférico pobre e estrategicamente irrelevante deve alinhar seus objetivos
externos com os da potência hegemônica da área, tendo em vista obter algum ganho
econômico em troca da aceitação da liderança;
2) O desafio político à grande potência pode não ser perigoso a curto prazo, mas a
longo prazo sim;
3) A autonomia da política exterior dá prioridade aos custos de enfrentamento do que
a capacidade real de confrontação. Ela se orienta no sentido de eliminar perdas e
promover ganhos nas relações exteriores.
O resultado não foi outro senão o alinhamento automático com os Estados Unidos:
Este alinhamento se materializou com o envio de navios para a Guerra do Golfo, o
desmantelamento do míssil Condor II e de projetos de indústria aeroespacial e de
defesa, a retirada da Argentina no grupo dos países não alinhados, votando contra
Cuba na Comissão de Direitos Humanos da ONU, bem como a inclusão da
Argentina como um aliado "extra OTAN", tudo o que transformou o governo
argentino em um modelo para outros países em desenvolvimento na “era" do pós-
Guerra Fria. (RAPOPORT, 2009, p. 44, tradução nossa).
Amado Luiz Cervo (2001) também cita cinco domínios de ação dessa nova política
externa: reinserção da economia argentina na economia mundial; estabelecimento de relação
especial com os Estados Unidos; aprofundamento da integração econômica e política com o
Brasil; criação de uma zona de paz no Cone Sul da América e desenvolvimento de uma
política de prestígio internacional. Após o subcapítulo da experiência neoliberal brasileira,
será discutido o balanço real de todas as medidas tomadas.
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2.3 Brasil: a superação da hiperinflação e o início da busca pelo protagonismo
Como aponta Amado Luiz Cervo (2001), em nenhum outro país do continente latino-
americano foi tão difícil a transição do paradigma desenvolvimentista para o neoliberal. Isso
se deu, em grande parte, pelos três presidentes da década de 90 terem, ao contrário da
Argentina, hesitado em se submeter de forma automática às regras neoliberais vindas da
superpotência hegemônica e de organismos internacionais como o FMI.
Foi difícil ao governo brasileiro adaptar sua agenda externa aos novos temas globais.
Aceitou de bom grado a emergência da democracia e dos direitos humanos nas
decisões de política internacional, mas afastou com repugnância a nova ingerência
da aliança ocidental, a Otan, mesmo quando feita em nome desses valores, porém
fora do sistema de decisão coletiva das Nações Unidas. [...] Desconfiou do credo
liberal difundido desde Washington – liberalização do mercado interno e dos fluxos
financeiros internacionais, internacionalização dos empreendimentos nacionais,
particularmente dos serviços. (CERVO, 2001, p. 293).
No plano econômico, Collor assumiu um país com uma dívida externa alarmante e
uma inflação que tinha se tornado no maior obstáculo de crescimento da nação. Segundo
dados do World Databank, a dívida externa acumulada (em US$ atual) em 1990 estava na
casa dos 114, 95 bilhões e a inflação (índice de deflação do PIB em %) subiu de 1209.1 para
2735.5. Assim como na história argentina, esses números eram herança das políticas
econômicas dos anos de ditadura militar, além de terem se agravado nos anos do governo
Sarney (1985-1990).
Entre as políticas econômicas adotadas para enfrentar essa situação, foram colocadas
em práticas duas de grande porte: o Plano Collor I (1990), que trocou a moeda Cruzado pelo
Cruzado Novo e realizou o confisco dos depósitos bancários superiores a Cr$ 50.000,00 por
18 meses e o Plano Collor II (1991), que elevou a política de juros e reajustou os salários com
base da média dos últimos 12 meses.
Na política externa, Collor teve duas fases: a americanista e a globalista9.
Primeiramente buscou retomar a aproximação com os Estados Unidos como um coadjuvante
da adoção de medidas econômicas neoliberais e da abertura comercial. De acordo com Letícia
Pinheiro (2004 ,p. 56), “a tentativa de retorno ao americanismo mostrou-se ineficaz de vez
9 “Enquanto o americanismo foi definido como aquele que concebia os Estados Unidos como eixo da política
externa, donde a maior aproximação a Washington elevaria os recursos de poder do país, aumentando assim sua
capacidade de negociação; o globalismo foi concebido como uma alternativa ao anterior, elegendo a
diversificação das relações exteriores do Brasil como condição para aumentar seu poder de barganha, inclusive
junto aos Estados Unidos.” (PINHEIRO, 2004, p.64)
11
que consenso interno em torno de uma relação espacial com Washington deixara de existir
(...)”.O Brasil notou muito antes da Argentina que uma aproximação dessa natureza não seria
o suficiente para trazer os benefícios pretendidos.
A segunda fase é caracterizada pelo retorno a alguns aspectos do globalismo, em que
se buscou uma maior independência externa da superpotência e o papel de protagonista
internacional em questões globais, como bem evidencia a realização da ECO-9210.
Em 29 de dezembro de 1992, Collor renuncia e assume em seu lugar o vice-presidente
Itamar Franco. As políticas econômicas de Collor não surtiram o efeito desejado, em 1993 a
dívida externa aumentou para 144, 594 bilhões e a inflação se manteve alta, 2001,3 %,
segundo dados do World Databank. Itamar então, junto do Ministro da Fazenda e futuro
presidente Fernando Henrique Cardoso, colocou em prática, em 1993, o plano econômico que
iria controlar definitivamente a inflação, chamado de Plano Real.
Em resumo, o Plano Real se desenvolveu em três fases.
1) Ajuste Fiscal: o primeiro ponto do ajuste fiscal foi o Programa de Ação Imediata
(PAI), elaborado em junho de 1993. O PAI contém as primeiras medidas econômicas
destinadas a realizar corte nos gastos públicos, política fiscal rígida e equilíbrio
financeiro dos governos estaduais, isso determinava um corte de gastos da ordem de
US$7 bilhões. O segundo ponto foi referente ao aumento da arrecadação, que se daria,
principalmente, pela criação do Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira
(IMPF), com uma alíquota inicial de 0,25% do valor de cada operação financeira, foi
conhecido como o “Imposto do Cheque”. O último ponto foi a aprovação do Fundo
Social de Emergência (FSE), composto por 15% da arrecadação de todos os impostos;
2) Indexação completa da economia (URV): em fevereiro de 1994, foi introduzido esse
novo sistema de indexação, o URV (Unidade Real de Valor), adotando mecanismos
que permitiriam uma indexação diária da economia, através do encurtamento dos
prazos de reajustes. Esse sistema foi atrelado ao dólar americano, numa base de um
por um, a fim de estabilizar os preços. A URV era uma quase moeda, porque servia de
unidade de conta, de reserva de valor, mas não de meio de pagamento.
10 Também conhecida como Rio-92. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento (CNUMAD) ocorreu entre 3 e 14 de junho de 1992, no Rio de Janeiro, e reuniu mais de 100
chefes de Estado, tratando sobre o tema do desenvolvimento sustentável.
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3) Transformação da URV em uma nova moeda, o Real: em 1 de julho de 1994, foi
introduzido o Real, num momento em que os preços já se encontravam expressos em
URV, com valor unitário de face equivalente a uma URV, ou US$1,00 (CR$2.750,00).
No campo da política externa, Itamar buscou equilibrar as duas fases que Collor
adotou. Com o apoio de Fernando Henrique Cardoso (1992-1993) e de Celso Amorim (1993-
1994) como ministros das Relações Exteriores, Itamar Franco buscou se adaptar às
características do sistema internacional, ao mesmo tempo que não abandonou à busca pelo
desenvolvimento.
Pode-se dizer que durante o breve governo de Itamar Franco, a política externa
brasileira expressou uma tentativa de conjugar a permanência do país no rumo da
liberalização econômica com a manutenção de uma margem de segurança na
condução autônoma de seus interesses, ainda que essa tentativa nem sempre tenha
sido frutífera. (PINHEIRO, 2004, p. 59-60).
Em 1994, respaldado pelo sucesso do Plano Real, assume Fernando Henrique
Cardoso. A inflação teve seu ponto mais baixo em 1998, primeiro ano de seu segundo
mandato, em 4.2 %, muito abaixo dos números dos governos anteriores. A dívida externa
continuou aumentando, passando de 152,857 bilhões em 1994, para 231,944 bilhões em 2002.
A estabilização macroeconômica gerou alto coeficiente de credibilidade internacional,
o que o presidente aproveitou para colocar em prática alguns de seus planos: retomada da
abertura econômica iniciada pelo governo Collor, privatização de empresas consideradas
ineficientes (tendo a Vale como maior exemplo) e uma maior preocupação com a
responsabilidade fiscal. Letícia Pinheiro (2004) chama a atenção que o aprofundamento da
globalização financeiro brasileira intensificou na vulnerabilidade às crises internacionais,
tendo como exemplo o impacto na economia brasileira gerado pelas crises mexicana (1994),
asiática (1997) e a russa (1998).
Na política externa, Cardoso instituiu alguns preceitos que iriam refletir no governo
Lula: a busca de reconhecimento como potência média, a diplomacia presidencialista e o
fortalecimento da integração latino-americana, mais especificamente, do Mercosul.
A busca pelo reconhecimento internacional aconteceu, principalmente, em foros
decisórios internacionais, como a ONU e a OMC11, com a participação em debates de temas
11 A Organização Mundial do Comércio (OMC) surgiu em 1995, com o intuito de supervisionar o comércio
mundial, gerenciar acordos comerciais e servir de fórum para o comércio internacional.
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da agenda global, como direitos humanos e o meio ambiente. Cardoso adotou uma estratégia
denominada “autonomia por participação”:
[...] como a adesão aos regimes internacionais, inclusive os de cunho liberal, sem a
perda da capacidade de gestão da política externa; nesse caso, o objetivo seria
influenciar a própria formulação dos princípios e das regras que regem o sistema
internacional. (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 11).
Cardoso, por ter sido Ministro das Relações Exteriores e ter experiência no manejo da
agenda internacional, assumiu uma gestão mais “presidencialista” da política exterior,
diminuindo a atuação do Itamaraty a uma posição menos política.
Em relação ao terceiro preceito, Cardoso entendia que ter outros Estados participando
ao seu lado em organismos internacionais aumentaria as possibilidades de ganhos absolutos.
Pode-se afirmar que Cardoso não ignorou a realidade de “país periférico” que a
Argentina adotou. Mas, ao invés de submeter sua política externa à potência hegemônica,
trabalhou em mecanismos que permitissem a busca por reconhecimento internacional, seja
com a integração regional ou com o crescente protagonismo em foros internacionais.
Preceitos esses que seriam levados a diante por Inácio Lula da Silva, quando assumiu o
governo brasileiro em 2002.
2.4 A virada do milênio: balanço da experiência neoliberal na Argentina e no Brasil
Tão rápido como chegou, o neoliberalismo partiu da América Latina. No caso da
Argentina, após dois mandatos de Menem, Fernando de la Rúa assume em 1999 o governo.
Com a desvalorização da moeda brasileira no mesmo ano, surge uma crise entre os dois
países. De acordo com Alessandro Candeas (2010), os setores de menor competitividade
(têxteis, siderúrgica, calçados, entre outros) foram os que mais sofreram, pois não conseguiam
competir com os novos preços brasileiros, reduzindo assim o saldo e o volume comercial
argentino. O governo então, entende como um ato deliberado de competição contra os
interesses comerciais argentinos.
É criada a imagem do Brasil como o “vilão” responsável pela crise. De la Rúa, que
tinha retomado a iniciativa de estreitar laços com seus vizinhos, ao desenrolar da crise, retoma
a aproximação com os Estados Unidos, na esperança de reerguer a confiança externa na
Argentina e obter ajuda financeira.
14
Em 2001, a Argentina chega em um momento crítico:
A situação argentina em 2001 lembrava de forma dramática a de 1989: saques,
convulsão social, caos econômico e crise político-institucional. Fernando de la Rúa
decretou o estado de sítio, em violação da Constituição (a competência pertence ao
Congresso). Acossado pelos cacerolazose bocinazose completamente destituído de
autoridade, De la Rúa, no dia 20 de dezembro de 2001, deixou a Casa Rosada de
helicóptero. Como se diz na Argentina, a melhor saída do labirinto é por cima...
(CANDEAS, 2010, p. 228)
Com a saída de De la Rúa, houve uma sucessão de anúncios e renúncias. Entre 21 de
dezembro de 2001 e 21 de janeiro de 2002, cinco presidentes passaram pela Argentina:
Ramón Puerta, Rodríguez Saá, Eduardo Camaño, e Eduardo Duhalde, que conseguiu se
manter no poder até a posse de Kirchner, em 2003. Entre estes presidentes, destaque para
Rodríguez Sá, que em 23 de dezembro anunciou que o país não pagaria mais suas dívidas por
tempo indeterminado, decretando assim uma moratória no valor de 132 bilhões de dólares.
Em 2005, Kirchner decretaria o fim da moratória.
No Brasil, Fernando Henrique Cardoso não conseguiu terminar seu segundo mandato
de forma positiva:
Assim, apesar da recuperação do setor externo e de não dispor mais da trava cambial
do primeiro mandato, o país não conseguiu apresentar um bom desempenho em
termos de crescimento econômico no segundo mandato de FHC. Mesmo
apresentando um elevado superávit primário, a dívida pública continuou crescendo e
o perfil desta foi piorando ao longo do segundo mandato, sendo esse inclusive o
determinante de sua expansão em função dos ajustes patrimoniais. Apesar de se ter
uma política monetária comprometida coma estabilidade de preços, o mandato de
Fernando Henrique se encerrou com a inflação em profunda aceleração. Mesmo
adotando o tripé que é considerado o mais adequado em política econômica – metas
de inflação, superávit primário e taxa de câmbio flutuante (GREMAUD;
VASCONCELLOS; TONETO JR, 2007, pp. 489-490).
Perry Anderson (1995) faz um balanço do neoliberalismo na Europa, que se encaixa
na realidade da América do Sul:
Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma
revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o
neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades
marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e
ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual
seus fundadores provavelmente jamais sonham, disseminando a simples idéia de que
não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando,
têm de adaptar-se a suas normas. (ANDERSON, 1995, sem página).
15
3 OS DESAFIOS DO INÍCIO DO NOVO MILÊNIO: AS QUESTÕES INTERNAS
FREIANDO O PROJETO DE INTEGRAÇÃO BILATERAL E REGIONAL
3.1 A chegada de Nestor Kircher e Luiz Inácio Lula da Silva ao poder
Brasil e Argentina adentraram ao novo milênio fragilizados economicamente. A
proporção da crise argentina foi maior do que a brasileira, se tornando, em 2001, em um dos
maiores desafios da sua história. Mais do que econômica, a crise deixou um rastro de danos
na situação social do país que dificilmente vai ser novamente visto: de acordo com o
economista Aldo Ferrer, em 2002 “(...) a taxa de desemprego alcançou os 25% e a proporção
da população abaixo da linha da pobreza superou os 50%” (FERRER, 2008, p. 9, tradução
nossa).
Se no Brasil a crise não era tão profunda, ninguém poderia afirmar que o país se
encontrava em uma situação confortável. Gremaud, Vasconcellos e Toneto Jr (2007) trazem
dois dados que ajudam a contextualizar o momento econômico da troca no poder: a dívida
pública atingiu números recordes no último mandato de Cardoso, chegando a ficar na faixa de
60% do PIB, e durante os dois mandatos do presidente, a média do crescimento do PIB foi
baixa, situando-se ligeiramente acima dos 2% ao ano.
Assim, junto com o desafio de estabilização econômica e retomada do crescimento, o
presidente eleito em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva, tinha um novo desafio: reverter as
desconfianças frente ao rumo das políticas de seu partido, tradicionalmente de esquerda. O
clima de desconfiança era sobre a continuidade nas políticas de estabilização de Cardoso.
Lula, porém, manteve as bases do que já vinha sendo feito nesse sentido:
O governo Lula manteve o tripé de política econômica adotado no segundo mandato
de FHC – câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação – e aprofundou o
compromisso com a estabilização ao elevar as metas de superávits primários que
resultou, posteriormente, na redução da dívida do setor público. O bom desempenho
econômico mundial colaborou para a obtenção de significativos saldos comerciais
positivos e a melhora dos indicadores externos. (GREMAUD; VASCONCELLOS;
TONETO JR, 2007, p. 505).
Como será retomado na conclusão deste artigo, as medidas econômicas do primeiro
mandato de Lula não conseguiram retomar o crescimento econômico desejado, apesar da
estabilização alcançada.
16
Williams Gonçalves (2012), em seu texto “Panorama da Política Externa Brasileira no
Governo Lula da Silva”, batiza os preceitos da política externa de Lula como “nacionalistas”,
retomando princípios antigos da diplomacia que haviam sido deixados de lado pelos governos
da década de 90. Também, como já apresentado, Lula não seguiu apenas esse caminho da
retomada, mas reforçou algumas diretrizes tomadas principalmente por Cardoso, como a
diplomacia presidencialista e a busca por protagonismo em foros internacionais.
Na nossa interpretação, ao mesmo tempo em que não houve ruptura significativa
com paradigmas históricos da política externa do Brasil, sendo algumas das
diretrizes desdobramentos e reforços de ações já em curso na administração FHC,
houve uma significativa mudança nas ênfases dadas a certas opções abertas
anteriormente à política externa brasileira. (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 275).
A política externa de Lula é denominada pelo autor como nacionalista por retomar o
comprometimento com o desenvolvimento do país, primando pela autonomia e buscando não
apenas se encaixar, mas moldar a ordem internacional para que seja mais confortável para os
países em desenvolvimento. Outra característica importante é a diplomacia presidencial.
O presidente soube como poucos explorar em favor das posições brasileiras os
espaços que o Itamaraty lhe foi abrindo, tanto nas relações bilaterais, como,
sobretudo, nas relações multilaterais. Despertando, inicialmente, grande curiosidade
e perplexidade em todas as partes do mundo, por ter ascendido da origem social
humilde de família de migrantes nordestinos e da carreira de líder sindical operário
ao cargo de presidente do país, Lula jamais se intimidou diante de lugares e
personalidades, apresentando sempre com nitidez e firmeza as posições do Brasil.
(GONÇALVES, 2012, pg 13).
Algumas divergências claras na política externa do governo Lula com os governos
anteriores foi o papel dos valores universais, a busca por parcerias estratégicas e a
participação em foros internacionais como a ONU e a OMC. Cardoso, acreditava que o
protagonismo brasileiro viria por meio do posicionamento nos foros internacionais em temas
da agenda global; Lula retomou a busca por parceiros em busca de desenvolvimento, como o
IBAS - Índia, Brasil e África do Sul (2003), e mais futuramente, o BRIC (2009) – Brasil,
Rússia, Índia, China e, em 2010, África do Sul. Junto deles, Lula definiu uma agenda global
comum, buscando defender os interesses econômicos e políticos dos países em
desenvolvimento.
As mudanças percebidas na política externa do governo Lula da Silva tiveram
algumas diretrizes: (1ª) contribuir para a busca de maior equilíbrio internacional,
procurando atenuar o unilateralismo; (2ª) fortalecer relações bilaterais e multilaterais
de forma a aumentar o peso do país nas negociações políticas e econômicas
internacionais; (3ª) adensar relações diplomáticas no sentido de aproveitar as
possibilidades de maior intercâmbio econômico, financeiro, tecnológico, cultural
17
etc.; e (4ª) evitar acordos que possam comprometer a longo prazo o
desenvolvimento. (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 19).
Na Argentina, a crise exigiu muito mais do governo para ser resolvida. Duhalde, ao
assumir o governo em 2002, decretou o fim da conversibilidade Peso – Dólar, que no seu
décimo primeiro ano já estava insustentável. Também conseguiu impedir que a
desvalorização imensa da moeda argentina se transferisse para a inflação, o que teria piorado
ainda mais a economia do país. A situação, porém não melhorou. A argentina chegou em um
de seus momentos mais críticos da sua história:
A atividade econômica se contrai 10,9% em 2002. A deterioração das condições de
vida, iniciada nos anos 1970, atingiu níveis históricos. A sociedade argentina
constata, com estupor, que havia superado o Brasil em termos de pobreza,
confrontando um de seus mitos fundacionais: a qualidade de vida superior no
continente latino-americano. “Adiós al país de clase media”. Com 47,8% da
população abaixo da linha de pobreza, o país se aproximou do Paraguai, segundo
relatório da Fundación Capital. (CANDEAS, 2010, p. 230).
Nesse momento crítico argentino, laços da integração com o Brasil começaram a ser
refeitos. Com a fuga de capital europeu e norte-americano, a integração regional foi vista
como um caminho natural para a recuperação econômica. O Brasil, então, entra como um dos
maiores investidores, esperando aproveitar a oportunidade gerada pela crise no seu vizinho.
Alessandro Candeas (2010) cita três exemplos que comprovam esta postura do
governos brasileiro: a compra dos ativos da Perez Companc pela Petrobrás (2002), a compra
do controle da cervejaria Quilmes pela Ambev (anunciada em 2002 e aprovada em 2003) e o
aumento das atividades da TAM e do Itaú. Os Estados Unidos, parceiro que fora tão estimado
na década de 1990, deixou um vácuo de oportunidade de integração econômica e política, que
sinalizava que seria aproveitado pelo Brasil. Como veremos mais adiante, a integração
bilateral entre Brasil e Argentina não evoluiu como se esperava, deixando um grande “e se...”
na história do continente.
Por fim, 2003 deixa para trás dois dos piores anos da história da Argentina, e a
situação começa a mostrar traços de melhora. Em março de 2003, Duhalde anuncia a
estabilização cambial e monetária, a volta do crescimento industrial e das exportações, o fim
da recessão e, enfim, a retomada da conquista do respeito internacional.
É neste contexto que, em abril de 2003, a Argentina votou e levou para o segundo
turno Nestor Kirchner e Carlos Menem. Com a certeza que os votos dos candidatos que não
passaram para o segundo turno iriam para o seu rival, Menem desistiu da disputa e Kirchner
18
foi eleito o presidente argentino com o menor percentual de votos da história do país (22,2%,
no primeiro turno). Com isso, Kirchner sabia que precisava conquistar a legitimidade de seu
poder frente ao povo.
O caminho não era um mistério para ninguém: retomar o crescimento, levantar os
baixíssimos índices sociais, manter a inflação controlada e recuperar o prestígio internacional.
Kirchner, porém, não se conteve apenas a isso. Durante seu governo, deu ênfase, também, na
reconquista do orgulho do povo argentino e na integração regional.
Os índices mostram o sucesso de Kircher:
Entre 2003 e 2007, o PIB aumentou de forma notável, quase 9% ao ano, empurrado
pelo auge do setor industrial e das exportações, enquanto o desemprego caiu
substancialmente e os níveis de pobreza reduziram. Por outra lado, acabou o default,
com a conversão da dívida que foi aceito por mais del 70% dos devedores, e se
pagou o total dos compromissos pendentes com o FMI (...) (RAPOPORT, 2009, p.
49, tradução nossa).
Aconteceram, também, avanços no campo dos direitos humanos. Durante o Governo
Kirchner, a Corte Suprema da Argentina anulou, em junho de 2005, as “leis do perdão”,
aprovadas na década de 1980, que impediam os envolvidos em tortura durante a ditadura
militar de serem processados. O congresso havia aprovado esta anulação ainda em 2003, logo
após o novo presidente assumir.
O economista Aldo Ferrer (2008) cita quatro consequências do que ele chama de
“soberania argentina”, livre das restrições externas, fiscais e institucionais, que atrasaram seu
desenvolvimento nas décadas passadas.
1) Reaparição do Estado: A dependência ao FMI se traduzia numa impotência das
políticas econômicas argentinas. Com o fim da paridade Peso-Dólar e o acerto das
dívidas com os credores internacionais, a política econômica teve forças para servir ao
Estado, sendo uma ferramenta de promoção ao desenvolvimento.
2) Novas ideias econômicas: Com o fim do consenso neoliberal, as ideias de
desenvolvimento nacional voltam às discussões sobre política econômica.
3) Segurança Jurídica: Com o antigo aumento incessante da dívida externa e os
desiquilíbrios macroeconômicos, não havia segurança que os contratos econômicos
seriam cumpridos. Com o novo momento da economia argentina, esta segurança
jurídica do cumprimento dos contratos voltou
19
4) Estabilidade e crescimento: Por fim (e mais importante), a retomada da soberania e o
controle da economia viabilizaram políticas de desenvolvimento de longo prazo. A
rápida recuperação do recesso de 2009 ajuda a confirmar este ponto.
3.2 Interesses comuns, caminhos separados
A situação do continente latino-americano no novo milênio se apresentava da seguinte
forma para seus dois maiores países: um gigante que clamava por finalmente se tornar o “país
do futuro” e ser reconhecido fora de seu continente e um outrora gigante que se levantava
após sua maior crise recente.
Com Brasil e Argentina se afastando cada vez mais dos Estados Unidos e abrindo
espaço nas suas agendas externas para retomar e ampliar os esforços bilaterais do final da
década de 80 e começo de 90, uma oportunidade de fortalecer a integração e alavancar o
Mercosul se visualizava no horizonte. No entanto, não foi o que aconteceu:
O novo cenário político pós-2004 abriu novas perspectivas para o bloco. A ascensão
dos governos de Néstor Kirchner e Lula da Silva, na Argentina e no Brasil, colocou
para aqueles da corrente de pensamento progressista a expectativa de
aprofundamento do processo de integração com maior articulação econômica, mais
institucionalização e a construção de uma parceria mais sólida no campo político.
Mas já nos dois primeiros anos começaram a aparecer limitações nos
comportamentos de ambos. (SARAIVA; BRICENO RUIZ, 2009, pp 159-160).
Brasil e Argentina continuam, até hoje, com seus planos de desenvolvimento
individuais, políticas econômicas distintas e falta de uma visão coletiva para o continente. Os
sinais do afastamento ficaram mais claros com o passar do tempo:
No entanto, algumas divergências, tanto no âmbito regional como internacional,
ainda persistiram e criou-se certo desconforto, como a falta de entusiasmo por parte
da Argentina com a Comunidade Sul-Americana das Nações (CASA) e as disputas
com relação à eventual reforma do Conselho de Segurança na ONU (VADELL,
2006, p. 21 1). A crise entre a Argentina e o FMI também criou alguns
constrangimentos nas relações com o governo brasileiro: o presidente argentino
argumentou, à época, falta de apoio do Presidente Lula à Argentina durante o
processo. Em 2004, a Argentina adotou medidas de proteção à indústria local, em
detrimento das relações com o Brasil, e restringiu a importação de produtos da linha
branca (fogões, geladeiras, máquinas de lavar louça, etc) do Brasil (..) (SILVA,
2009, p. 118).
A partir de agora, então, serão discutidos fatores que travaram tanto o avanço bilateral entre
Brasil e Argentina quanto o avanço do Mercosul como um projeto de integração regional.
Quatro pontos importantes, ajudam a justificar o motivo do afastamento: a falta de
20
alinhamento econômico; o “estilo K” que definiu a gestão de Kirchner; a estratégia da
autonomia pela diversificação de Lula; e a falta de uma visão e de uma estratégia regional
comum.
É fundamental destacar que muito dos desafios enfrentados por Lula e Kirchner foram
gerados pelo final da década de 1990. A Argentina, no começo da década de 2000, teve que
orientar sua estratégia econômica e política para se recuperar da crise. Para enfrentá-la,
Kirchner se distanciou do FMI e do Banco Mundial e adotou políticas de subvalorizarão do
peso argentino e taxas de juros baixas. Lula tomou o caminho inverso, adotando práticas mais
convencionais, se aproximando do FMI, valorizou sua moeda e aumentou sua taxa de juro.
Foi um momento de falta de alinhamento econômico entre dois países vizinhos.
O que agora é preciso enfatizar é que não houve sincronia na escolha de políticas,
que, além do mais, foram, de um lado e de outro, decididas sem a menor consulta
com o parceiro. Enquanto um dos países foi flexível, menos ortodoxo, e, por
conseguinte, mais autônomo com respeito a fatores externos, o outro deliberou por
ser otodoxo e por preocupar-se prioritariamente com a opinião dos mercados.
(LAVAGNA, 2009, p. 136).
Como visto anteriormente, foi o mesmo caso da década de 1990, com os países agora
trocando os papéis. Naquela década foi o Brasil que manteve a autonomia da sua política
econômica, enquanto a Argentina alinhava sua moeda com o dólar12.
O segundo ponto a ser destacado é sobre o estilo do Governo Kirchner de governar,
apelidado de “Estilo K”. Alessandro Candeas (2010) descreve as características desta prática,
que pode ser resumida em três elementos gerais: concentração de poder e informação; divisão
maniqueísta da sociedade entre aliados e inimigos; e demonstrar sempre iniciativa, para nunca
ser refém das agendas da imprensa e da oposição.
Este estilo de governar era reflexo da necessidade de construir a legitimidade frente a
população argentina. Foi necessário para ajudar na recuperação do respeito pelo seu cargo,
deficiente desde o desastre econômico, político e social acontecido nas gestões anteriores.
O “Estilo K” se traduziu, na política externa, como um estilo agressivo, que não
possuía receios de ser isolacionista caso fosse necessário, como os conflitos com o Brasil
12 Lavagna cita ainda outra conduta não-convergente entre Brasil e Argentina, durante a crise do México em
1982. Na ocasião, Brasil seguiu a interpretação de que era uma crise de “solvência”, acreditando que o
endividamento era insustentável, e que eram necessários saques explícitos mais longos para enfrenta-la. Já a
Argentina seguiu a interpretação de que a crise era de “liquidez”, seguindo pelo caminho do reescalonamento das
dívidas, ao invés de buscar a redução delas.
21
sobre a Comunidade Sul Americana de Nações (CASA)13 e o endurecimento com a Inglaterra
quanto a questão das Malvinas indicaram.
Também houve conflito do “Estilo K” com os planos brasileiros de protagonismo
regional:
A ênfase kirchnerista no resgate da dignidade nacional e da autonomia é
incompatível com a aceitação de papel secundário no plano regional em relação ao
Brasil, embora isso não signifique aspiração de protagonismo semelhante à buscada
pela diplomacia menemista. (CANDEAS, 2010, p. 242).
Como o foco de Kirchner não estava na política externa (não tanto quanto no governo
de Lula), e sim na reconstrução interna de seu país, o presidente aceitava os riscos de tomar
medidas que iam contra os interesses de seus aliados, desde que as mesmas trouxessem
popularidade e credibilidade interna ao mesmo.
O terceiro ponto é a estratégia de política externa adotada pelo governo Lula.
Diferente de Cardoso, que adotou a estratégia denominada “autonomia pela participação”,
Lula seguiu pelo caminho da “autonomia pela diversificação”, que pode ser definida como:
[...] a adesão do país aos princípios e às normas internacionais por meio de alianças
Sul-Sul, inclusive regionais, e de acordos com parceiros não tradicionais (China,
Ásia-Pacífico, África, Europa Oriental, Oriente Médio etc.), pois acredita-se que eles
reduzem as assimetrias nas relações externas com países mais poderosos e
aumentam a capacidade negociadora nacional. (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p.
11).
Algumas conjecturas levaram à adoção desta estratégia. Do ponto de vista externo, o
11 de Setembro revelou a tendência do governo norte-americano de agir unilateralmente a
partir de então, transferindo sua área de interesse para a OTAN e o Oriente Médio. Com os
processos de globalização acelerados, e todo o compromisso adotado pelo governo brasileiro
em relação aos temas universais nas últimas gestões, a distância diplomática dos países
desenvolvidos também não era uma opção inteligente. A opção que se mostrava mais correta
para a situação era estreitar os laços com países em desenvolvimento, com destaque para
potências regionais (como a China, a Rússia, a África do Sul e a Índia), a fim de defender
interesses comuns e fortalecer o poder de barganha em foros internacionais, como a ONU e a
OMC.
13 Projeto criado em 2004 para ser uma alternativa à ALCA, que é uma proposta de integração vinda dos Estados
Unidos. Reúne dez países sul-americanos, mais Guiana e Suriname.
22
As ações diplomáticas brasileiras transpareceram uma busca por protagonismo na
região. Ao não apenas se limitar a questões com relação direta ao seu interesse, como o envio
de tropas ao Haiti, aprovado em 2003, o Brasil buscava reconhecimento internacional. Ao
renegociar dívidas com países Africanos14, Lula buscava também atender ao lado “social” da
busca pela liderança regional.
Mesmo com este novo rumo adotado, o Brasil ainda colocava como prioridade na sua
agenda internacional as relações diplomáticas dentro da América do Sul. O Ministro de
Relações Exteriores no Governo Lula, Celso Amorim (2006), em seu artigo denominado “A
política externa do governo Lula: dois anos”, afirma que “Tem alta prioridade na agenda
externa brasileira a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e
unida, como afirmou o presidente já em seu discurso de posse.” (AMORIM, 2005, p. 51).
Lula entendia que uma América do Sul unida e um Mercosul forte, de preferência com o
Brasil atuando como líder regional, proporcionaria não apenas um destino importante para as
exportações brasileiras, mas também um instrumento de legitimidade do poder brasileiro nos
órgãos internacionais.
De fato, a integração regional também facilitaria na busca por um dos grandes
objetivos da diplomacia brasileira: a busca por um assento no Conselho de Segurança da
ONU15.
Esta aspiração brasileira ao posto de liderança regional e os esforços de aproximar o
continente e o Mercosul a outros mercados gerou desentendimentos com a Argentina. No
campo econômico, Alessandro Candeas (2010) destaca que a maior preocupação de Kirchner
era de que, ao aceitar o investimento brasileiro na reindustrialização argentina, se criasse uma
divisão regional entre os dois países, com a Argentina se tornando uma agroexportadora e o
Brasil um exportador de produtos industriais
No campo político, a busca por protagonismo do governo Lula não obteve respaldo de
seu vizinho, que não entendia os benefícios que a posição brasileira poderia gerar para a
Argentina:
14 Nos oito anos de Lula (2003-2010), foram perdoados US$ 436,7 milhões em dívidas de quatro países:
Moçambique (US$ 315,1 milhões), Nigéria (US$ 84,7 milhões), Cabo Verde (US$ 1,2 milhão) e Suriname (US$
35,7 milhões). 15 “O ministro Celso Amorim expressou com mais firmeza o desejo do país de obter um assento permanente no
Conselho de Segurança. A energia diplomática despendida foi considerável. Os custos da liderança brasileira no
Haiti seriam uma tentativa de provar à comunidade internacional que o país tem condições de fazer parte do
Conselho” (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 323).
23
O interesse do Brasil por um papel relevante no cenário internacional, um assento
permanente no Conselho de Segurança, por exemplo, é percebido na Argentina
como competitivo em relação às próprias metas brasileiras. O Brasil, tanto no
governo FHC quanto no de Lula da Silva, não conseguiu demonstrar que esse seu
interesse poderia também ser o objetivo regional coletivo, do Mercosul em articular.
Não se trata de incapacidade específica do Brasil, visto que encontramos situações
semelhantes nos casos do Japão, da Índia e mesmo da Alemanha, esta última
sofrendo oposição de outros governos participantes da União Européia
(VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 11).
Sobre esta questão, Alessandro Candeas (2010) afirma:
Alguns setores frequentemente manifestam descontentamento com o que
consideram “seguidismo de Brasil”, em particular em projetos considerados
“funcionais” para a diplomacia brasileira, mas sem interesse concreto para a
Argentina, como a aproximação do MERCOSUL com países africanos e árabes, ou
ainda outros, isoladamente, como a Índia. Esse aspecto também explicou, no início
da concertação regional ampliada (entre 2000 e 2005), a pouca receptividade em
torno do conceito de América do Sul. (CANDEAS, 2010, p. 243).
O último ponto a ser destacado é também o mais impactante para a não concretização
do projeto de integração entre Brasil e Argentina, principalmente por não ter se limitado aos
governos de Lula e Kirchner e até hoje não ter se chegado a uma solução. A falta de uma
visão e de uma estratégia regional comum a Brasil e Argentina impossibilita uma integração
duradoura, que não se paute por oportunidades momentâneas nem por interesses individuais.
Como os pontos anteriores deixaram claro, Brasil e Argentina levaram sua política
externa baseada em seus interesses internos: o Brasil na busca por protagonismo internacional
e na diversificação de seus parceiros e a Argentina na reconstrução interna e na retomada da
construção de sua identidade internacional.
É óbvio que em ambos os países há planos do tipo estratégico. Entretanto, “planos”
no plural não são a mesma coisa que um “plano” global integrado. Os planos, no
plural, atendem a setores ou áreas específicas, e, de fato, podem revelar-se bem
sucedidos e mudar segmentos importantes da realidade nacional. A menos que se
pense que o mero somatório de planos é um plano estratégico, numa visão global
podem coexistir os sucessos parciais com a insuficiência global (LAVAGNA, 2009,
p. 137).
É este o elemento que está faltando para o Mercosul vingar como um projeto de
mercado comum e como um instrumento de integração regional. Quando os dois maiores
vizinhos do continente conseguirem pensar em um plano estratégico para a região, e deixarem
de lado a visão centrada em seus próprios interesses nacionais, é possível deixar para trás a
fase de tarifas alfandegárias comuns para levar a cabo uma integração real. Integração esta
que conseguiria auxiliar o restante dos países do continente, muito menores em economia e
24
população, a enfrentar seus dilemas sociais e econômicos, assim como aumentar o poder de
barganha do Mercosul nos foros internacionais.
Hoje prevalece na região governos em cujas agendas a questão social é,
compreensivelmente, uma prioridade. Cada país processará as reivindicações de suas
sociedades de acordo com as suas próprias realidades. Se trata de um problema
central do desenvolvimento nacional que influencia na integração regional, mas são
questões internas de cada país. (FERRER, 2008, p. 29, tradução nossa).
Podem-se argumentar quais os benefícios reais que a integração traria para a Argentina
e o Brasil. De fato, é custoso deixar de lado prioridades nacionais para concentrar esforços na
resolução de problemas que estão além de sua fronteira. Sem dúvida, também, Brasil e
Argentina têm condições de encontrarem mercados para seus produtos e parceiros estratégicos
para suas políticas externas fora da América do Sul. Mas é inegável que um continente unido
e um Mercosul atuante fortaleceriam os planos individuais de ambos os países e gerariam
oportunidades novas de crescimento e desenvolvimento.
No campo econômico, representaria uma expansão de mercado para os países
integrantes, abrindo principalmente um mercado para os produtos industrializados,
encaminhando os produtos de origem agrícola para fora do continente, como é feito
atualmente. As relações comerciais comuns também fortaleceria a infraestrutura
compartilhada, gerando intercâmbio de tecnologias e de conhecimento técnico. Traria também
uma maior segurança frente às crises em países desenvolvidos, como as recentes na União
Europeia e nos Estados Unidos, já que haveria uma interdependência comercial menor com
esses mercados.
No campo da política externa, o fortalecimento do bloco promoveria um ganho de
margem de manobra internacional. Um bloco unido tem muito mais poder de representação
em organismos como a OMC e a ONU do que países individuais. Criar-se-ia então a
oportunidade de lutar internacionalmente contra problemas mais característicos da América
do Sul, como o narcotráfico e o desmatamento da Amazônia, além de reformas nos
organismos internacionais para que atendessem melhor às necessidades dos países
subdesenvolvidos.
Para a integração sul-americana ocorrer, Brasil e Argentina devem tomar a frente,
tanto por serem os dois maiores PIBs da região quanto pela sua representação internacional. A
integração, portanto, deve partir destes dois atores internacionais:
25
Todos os governos brasileiros, a partir de 1985, declararam que o ponto cardeal das
relações internacionais do país é o acordo estratégico com a Argentina, afirmação
contida nos textos diplomáticos e nas declarações conjuntas dos chefes de Estado. O
governo Lula da Silva pareceu indicar, com reciprocidade nos governos Duhalde e
Kirchner, não se contentar com um Mercosul intergovernamental, sinalizando
atitude mais favorável “para a elaboração de políticas setoriais comuns e para a
construção de instituições supranacionais” (GUIMARÃES, 1999, p. 128). Os
governos brasileiros afirmam que a Argentina é um ator fundamental para qualquer
processo de integração da região. (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, pp. 311-312)
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lula e Kirchner enfrentaram diversos desafios nos seus mandatos. Enquanto o líder
sindicalista brasileiro teve que afastar a imagem de “esquerdismo radical” que seu partido
trazia, Kirchner subia ao poder tendo a menor margem de votos que um presidente eleito teve
na história da Argentina. Mais do que isso, Lula precisava retomar o crescimento econômico
do Brasil, sem nunca tirar os olhos da vigilância constante à inflação, e o presidente argentino
tinha a missão de reerguer a economia e o orgulho de seu país e seus habitantes.
A fonte da maioria dos problemas de Lula e Kirchner era a fracassada experiência
neoliberal da década anterior. Se o momento histórico pós-Guerra Fria e o aparente
esgotamento das medidas internas desenvolvimentistas indicava como um caminho
consensual a adoção ao neoliberalismo, foi uma opção dos governantes do continente o rumo
que ela tomou.
Os governantes argentinos e brasileiros se acometeram de uma profunda ingenuidade,
que jogou fora uma oportunidade ímpar de se inserir na nova ordem mundial de forma
alinhada com o desenvolvimento interno. Décadas de história diplomática mostraram que o
alinhamento automático com os Estados Unidos não traz um retorno à altura do esforço, assim
como nada supera o risco de entregar a condução da política monetária de um país do porte da
Argentina à superpotência. As privatizações, embora um meio efetivo de aumentar a
competitividade externa e a arrecadação de recursos, não deixam de ser uma escolha cômoda,
pois se dá preferência a deixar na mão do poder privado o que poderia ser feito com reformas
dentro do modelo de gestão adotado pelo governo.
O saldo desta escolha pelo método mais cômodo é a perda de importantes
instrumentos da promoção do desenvolvimento interno, já que o governo não possuía mais
nenhuma condição de alinhar as suas maiores empresas aos seus planos governamentais. Elas
estavam, a partir de então, respondendo às vontades do mercado privado.
26
Todas estas práticas jogaram fora a chance da Argentina e do Brasil entrarem no
mundo globalizado pós - Guerra Fria de uma maneira mais eficaz – e mais adequada ao status
internacional que buscam. Era a oportunidade de se aproveitar das facilidades de transferência
de capital e tecnologia para dar outro passo rumo ao crescimento industrial, agregando valor
aos seus produtos e ao mesmo tempo gerando capacidade interna de manter o crescimento,
com investimentos em logística e educação. Ao invés disso, foi retomado e reforçado o
caminho da exportação de matérias primas e commodities, respondendo à demanda do
mercado externo. Mercado este que não prioriza o desenvolvimento nem o bem-estar de cada
brasileiro e argentino.
Lula e Kirchner, então, tiveram êxito em suas metas mais urgentes. A Argentina
conseguiu sair do fundo do poço e retomar o crescimento, aproveitando para corrigir os
problemas sociais herdados da década passada e se reinserir no contexto internacional,
renegociando e acertando suas contas com o FMI e os credores internacionais. O Brasil
conseguiu manter a inflação controlada, e expandiu seus esforços diplomáticos rumo a um
maior reconhecimento internacional e à diversificação das parcerias estratégicas. Nesses
pontos, ambos os presidentes foram felizes em seus mandatos. Vale ressaltar que no primeiro
mandato de Lula, que é o objeto de análise deste artigo, o crescimento do PIB foi baixo,
mantendo uma média de 3,5% ao ano, ligeiramente acima do segundo mandato de Cardoso e
abaixo de potências emergentes como a Índia e a Rússia (sem citar a China). No segundo
mandato o crescimento subiu, tendo uma média de 4,5% ao ano.
A situação se mostrava favorável para que ambos os governos fortalecessem os laços
da integração bilateral e regional, sendo inclusive colocada como prioridade para o governo
Lula. Não foi o que aconteceu. Foram pontuados neste artigo quatro fatores que ajudam a
explicar este fracasso: a falta de alinhamento econômico, o “estilo K” que definiu a gestão de
Kirchner, a estratégia da autonomia pela diversificação de Lula, e a falta de uma visão e de
uma estratégia regional comum. O último se mostrou como determinante.
De fato, Lula tinha planos de integração na América do Sul, enquanto Kirchner
também procurava aumentar as relações com o Brasil. Mas não passaram de projetos isolados,
quando o que se necessitava no contexto era a criação de estratégias que levassem em conta
tanto os interesses internos quanto uma visão regional comum, de modo a não entrarem em
conflitos políticos e econômicos, e dando assim um componente mais profundo à integração
do que apenas a necessidade econômica da quebra de barreiras alfandegárias.
27
Falando mais especificamente do Brasil, é inegável que o país tenha ganhado uma
projeção internacional muito grande nos dois governos Lula. Ações como o envio de tropas ao
Haiti (2004), a criação dos BRICS (2008), a negociação conjunta com a Turquia e o Irã sobre
o programa nuclear iraniano (2010), entre outros, espalharam pelo mundo a nova postura
diplomática brasileira, mais ativa e multilateral.
Como José Luís Fiori (2013) analisa, o país tem dois caminhos a partir desta segunda
década do segundo milênio. Se seguir as tendências de mercado, se tornará um exportador de
commodities, petróleo e alimentos, acabando por se tornar uma “periferia de luxo” dos
grandes compradores mundiais, como Canadá e Austrália já foram. Este é o caminho mais
fácil para o país, mas neste cenário, dificilmente conseguirá elevar o crescimento de seu PIB,
nem gerará infraestrutura e tecnologias próprias, com o “bônus” de cada vez mais se afastar
de seus vizinhos, pois se fortaleceria como um competidor direto por mercados e
compradores.
O outro caminho, mais difícil, tem a integração regional como chave. Seria seguir o
modelo de economia norte-americano, priorizando a autossuficiência energética, a
manutenção de recursos naturais estratégicos e a combinação de uma indústria forte com uma
agricultura produtiva, sem deixar de lado as commodities. Uma América do Sul unida e livre
de barreiras comerciais poderá oferecer o mercado e a infraestrutura necessária para este
investimento, e o fortalecimento do Mercosul traria ainda mais representatividade
internacional para o país. Dada esta crescente importância internacional, o tamanho de seu
PIB e de sua população, muito do êxito do Mercosul depende da escolha que o Brasil vai
tomar.
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