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1 Entre a Reconquista do Orgulho e a Liderança Regional: Um Estudo sobre as Pretensões Diplomáticas, a Estabilização Econômica e a Integração na Argentina e no Brasil no Início do Novo Milênio Gustavo Flores Pedroso 1 José Carlos Martines Belieiro Júnior 2 Resumo O presente artigo analisa as relações entre a política externa e a política econômica no mandato de Néstor Kirchner e no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, de modo a entender a situação da integração bilateral e regional entre 2003 e 2007. Para isso, analisa as práticas econômicas e de política externa da década anterior aos governantes, com o objetivo de identificar a influência de ambas nos mandatos de Kirchner e Lula e no processo de integração. O trabalho está dividido em quatro partes, tratando respectivamente de: introdução ao assunto e aos objetivos do trabalho; a década neoliberal dos anos 1990 no continente sul-americano, com ênfase em Brasil e Argentina; análise da primeira metade dos anos 2000 nos governos brasileiro e argentino, com foco na integração; considerações finais sobre o trabalho. O estudo parte de uma análise bibliográfica, apontando elementos da década neoliberal que vão impactar nas políticas econômicas e na política externa dos governos estudados. Por fim, elenca os pontos que influenciaram na situação da integração entre os dois países durante o período estudado. Palavras-chave: Integração. Política Externa Brasileira. Política Externa Argentina. Neoliberalismo. Crise Econômica. Luís Inácio Lula da Silva (Lula). Néstor Kirchner. Abstract: This article analyzes the relationship between foreign policy and economic policy in the presidential term of Néstor Kirchner and the first presidential term of Luiz Inácio Lula da Silva, in order to understand the situation of bilateral and regional integration between 2003 and 2007. For this, it analyzes the economic and foreign policy practices of the previous 1 Graduando do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria UFSM. 2 Docente orientador Universidade Federal de Santa Maria - UFSM

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1

Entre a Reconquista do Orgulho e a Liderança Regional: Um Estudo sobre as

Pretensões Diplomáticas, a Estabilização Econômica e a Integração na Argentina e no

Brasil no Início do Novo Milênio

Gustavo Flores Pedroso1

José Carlos Martines Belieiro Júnior2

Resumo

O presente artigo analisa as relações entre a política externa e a política econômica no

mandato de Néstor Kirchner e no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, de modo a

entender a situação da integração bilateral e regional entre 2003 e 2007. Para isso, analisa as

práticas econômicas e de política externa da década anterior aos governantes, com o objetivo

de identificar a influência de ambas nos mandatos de Kirchner e Lula e no processo de

integração. O trabalho está dividido em quatro partes, tratando respectivamente de:

introdução ao assunto e aos objetivos do trabalho; a década neoliberal dos anos 1990 no

continente sul-americano, com ênfase em Brasil e Argentina; análise da primeira metade dos

anos 2000 nos governos brasileiro e argentino, com foco na integração; considerações finais

sobre o trabalho. O estudo parte de uma análise bibliográfica, apontando elementos da década

neoliberal que vão impactar nas políticas econômicas e na política externa dos governos

estudados. Por fim, elenca os pontos que influenciaram na situação da integração entre os dois

países durante o período estudado.

Palavras-chave: Integração. Política Externa Brasileira. Política Externa Argentina. Neoliberalismo. Crise

Econômica. Luís Inácio Lula da Silva (Lula). Néstor Kirchner.

Abstract:

This article analyzes the relationship between foreign policy and economic policy in the

presidential term of Néstor Kirchner and the first presidential term of Luiz Inácio Lula da

Silva, in order to understand the situation of bilateral and regional integration between 2003

and 2007. For this, it analyzes the economic and foreign policy practices of the previous

1 Graduando do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.

2 Docente orientador – Universidade Federal de Santa Maria - UFSM

2

decade, in order in order to identify the influence of both in the terms of Kirchner and Lula

and in the integration process. The work is divided in four parts, dealing respectively:

introduction to the subject and purpose of the work; neoliberal decade of the 1990s in South

America, with emphasis on Brazil and Argentina; analysis of the first half of the 2000s in the

Brazilian and Argentine government, focusing on integrating; final thoughts on the work. The

study starts with a literature review, highlighting elements of the neoliberal decade that will

affect economic policy and foreign policy of the governments studied. Finally, lists the points

that influenced the status of integration between the two countries during the period studied.

Keywords: Keywords: Integration. Brazilian Foreign Policy. Argentina Foreign Policy. Neoliberalism.

Economic Crisis. Luiz Inácio Lula da Silva (Lula). Néstor Kirchner.

1 INTRODUÇÃO

Néstor Kirchner e Luiz Inácio Lula da Silva assumiram os governos da Argentina e do

Brasil em 2003 em situações adversas. O presidente brasileiro encontrava um país

relativamente estabilizado economicamente, mas que precisava manter a inflação controlada e

combater a dívida externa e a desconfiança política, além de enfrentar um clamor para que o

país finalmente retomasse o crescimento do PIB, que vinha estagnado nos mandatos de

Fernando Henrique Cardoso. Lula se esforçou para utilizar a imagem do país após a

estabilização econômica como fator importante para a política externa, principalmente para

alcançar seus planos de liderança regional e postulação à um cargo permanente no Conselho

de Segurança das Nações Unidas3.

Já Kirchner encontrou uma Argentina extremamente fragilizada economicamente,

principalmente após decretar a moratória da sua dívida externa em 2001, o que afastou ainda

mais investimentos externos. A situação política interna também estava enfraquecida, com o

tradicional Peronismo divido nas eleições entre Kirchner, Menem e Rodríguez Saá. A falta de

crença do povo argentino em seus governantes, refletida na renúncia de Fernando de la Rúa,

em 2001, e na troca entre quatro presidentes que se sucederam até a eleição de Kirchner, em

3 Orgão da Organização das Nações Unidas (ONU) formado por cinco membros fixos (China, Estados Unidos,

França, Inglaterra e Rússia), com poder de veto, e dez membros rotativos, eleitos a cada dois anos, sem poder de

veto. Sua obrigação é zelar pela manutenção da paz e da segurança mundial.

3

2003, também colocou como prioridade na agenda de Kirchner a construção de sua

legitimidade política.

A não convergência econômica se fez notar entre 1990 e 2010. Ambos os países se

utilizaram de políticas neoliberais, mas sem nenhuma simetria com seu vizinho. Enquanto

Menem adotou um forte processo de liberalização financeira, de privatizações e valorização

do câmbio, Fernando Henrique Cardoso manteve a política monetária, econômica e cambial

com mais autonomia, evitando o nível de alinhamento que a Argentina buscava obter, com

essas medidas, junto aos Estados Unidos.

A Argentina virou moda nos mercados internacionais, foi designada aliada externa

da Otan, participou da Guerra do Golfo e funcionou como o melhor aluno do

Conselho de Washington. O grau extremo desse alinhamento não foi compartilhado

pelo Brasil, e se não ocorreu um conflito aberto, surgiram desconfianças e até

rivalidades inúteis. (LAVAGNA, 2009, p. 136)

Ambos os presidentes eleitos viram no outro uma oportunidade de concretizar seus

planos. Kirchner ansiava pela oportunidade de afastar-se politicamente dos Estados Unidos,

parceiro privilegiado principalmente nas gestões de Menem na década de 1990 e que, no

entanto, não prestou o suporte que a Argentina julgava ser necessário durante os anos de crise.

Além disso, a aproximação com o Brasil fortaleceria o Mercosul, resultando em um mercado

regional que poderia facilitar a reindustrialização argentina ao absorver seus produtos.

Já o Brasil via como uma oportunidade de melhorar seu posicionamento regional,

aumentando assim o poder de barganha nos foros internacionais.

A integração da América do Sul era sobretudo um projeto político que repousava em

alicerces econômico-comerciais. Para a diplomacia brasileira, a integração regional

constituía opção estratégica para o aumento da capacidade de negociação dos países

sul-americanos na defesa de seus interesses nos foros internacionais. (LEITE, 2011,

p. 175)

Para aprofundar esta discussão, o artigo foi dividido em três capítulos. O primeiro

capítulo focaliza a década neoliberal dos anos 1990 no continente latino, com o intuito de

contextualizar o momento em que Kirchner e Lula assumiram. O segundo analisa a primeira

metade dos anos 2000 nos governos brasileiro e argentino, procurando identificar os avanços

(e recuos) na integração e as pretensões da política externa, considerando o momento

econômico referido. Por fim, o terceiro capítulo retoma o debate, resume os resultados

alcançados e tece as considerações finais.

4

A economia em si e o momento econômico em que um país está inserido são fatores

importantes para uma análise de política externa. A integração Brasil e Argentina, como

veremos durante o artigo, esteve muito pautada na política externa e na economia. Enquanto a

Argentina via no Brasil e no Mercosul uma oportunidade de se reindustrialziar e atrair

investimento externo, o Brasil por sua vez via uma oportunidade de aumentar sua

representação internacional.

Em um trabalho acadêmico é sempre um perigo muito grande isolar dois campos

imensos, como a economia e a diplomacia, de todas as outras variáveis internas e externas. No

entanto, para o a desenvolvimento da argumentação deu-se prioridade a essas duas esferas,

sem esquecer do aspecto social.

O objetivo principal deste artigo, portanto, é analisar as relações entre a política

econômica e a política externa da Argentina e Brasil no início dos anos 2000, nos governos de

Kirchner e Lula, de modo a entender a situação da integração bilateral e regional entre 2003 e

2007. Para isso, são analisadas as práticas econômicas e de política externa da década anterior

aos governantes, a fim de identificar a influência de ambas nos mandatos de Kirchner e Lula e

no processo de integração.

2 A EXPERIÊNCIA NEOLIBERAL NO BRASIL E ARGENTINA NA VIRADA DO

SÉCULO

2.1 Se afastando das raízes desenvolvimentistas

As experiências neoliberais postas em prática na década de 1990, pelo Brasil e

Argentina, além de grande parte dos países da América do Sul, eram reflexo de um momento

de transição política tanto interna quanto externa. De uma hora para outra, e com uma

velocidade impressionante, a América Latina abandonou suas raízes desenvolvimentistas e

toda a produção intelectual de décadas voltadas para o desenvolvimento interno, em favor de

“um mundo harmônico, global, que compreendia a valorização do individualismo e da

iniciativa privada (...)” (CERVO, 2001).

Com efeito, o acervo de ideias estruturalistas cepalino, ancorado nos conceitos de

centro-periferia, deterioração dos termos de troca, indústria, mercado interno,

expansão do emprego e da renda, que inspirou a política dos países latino-

americanos em sua estratégia de superação do atraso histórico, foi despachado para o

arquivo histórico pelos dirigentes neoliberais. (CERVO, 2001, p. 281)

5

Muitas das raízes desenvolvimentistas da América vieram da Comissão Econômica

para a América Latina e o Caribe (CEPAL), órgão da ONU, criado em 1948, com o intuito de

implantar dentro do continente um núcleo de apoio ao planejamento econômico no pós-

Segunda Guerra. Um de seus principais preceitos era de que a CEPAL promovesse...

(...) a transição entre uma economia voltada “para fora” e um crescimento voltado

“para dentro” através da industrialização. Ou seja, para superar a condição de

subdesenvolvimento, seria necessário alterar a divisão internacional do trabalho, em

que os países periféricos se especializavam na produção primária, enquanto os

países centrais, produtos industriais. Com base nessa visão, a CEPAL definiu o

processo de industrialização pela via da substituição de importações como forma de

promover o desenvolvimento latino-americano. (CORAZZA, 2006, p. 139-140).

A exaustão que as políticas desenvolvimentistas alcançaram, tanto na Argentina e

Brasil, quanto em países como Peru e Venezuela, foi o condicionamento interno que melhor

contribuiu para a adoção quase unânime do neoliberalismo, sendo melhor traduzido nas crises

econômicas e no novo momento político pós-redemocratização. O final da década de 1980

trouxe dívidas internas, crises monetárias e o pesadelo da hiperinflação constante no

continente.

Brasil e Argentina se encontravam também em um novo momento político. Com a

redemocratização brasileira, o primeiro presidente eleito foi de um partido não tradicional

(Collor, pelo PRN), sendo o presidente mais novo a assumir o cargo, com 40 anos em 1990.

Na Argentina, Menem, apesar de fazer parte do tradicional Partido Justicialista, não fazia

parte da elite tradicional do país. Apoiados por uma insatisfação social, causada pelo colapso

da economia, que exigia mudanças nos rumos das políticas internas e externas, aliados ainda a

um momento externo propício, naturalmente a escolha foi a de seguir por caminhos

neoliberais, visando obter sucesso onde as políticas desenvolvimentistas mais falharam:

estabilização econômica, diminuição do desemprego, aumento da produtividade das empresas

nacionais e, no caso brasileiro, um retorno aos índices de crescimento dos tempos áureos da

ditadura4.

Amado Luiz Cervo (2011) cita quatro influências externas que levaram a adoção do

neoliberalismo no Brasil, mas que também ajudam a explicar o processo na Argentina:

4 “O período 1968-1973 é conhecido como "milagre" econômico brasileiro, em função das extraordinárias taxas

de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) então verificadas, de 11,1% ao ano (a.a.). Uma característica

notável do "milagre" é que o rápido crescimento veio acompanhado de inflação declinante e relativamente baixa

para os padrões brasileiros, além de superávits no balanço de pagamentos.” (Veloso,

Villela, Giambiagi, 2008, p. 222)

6

a- substituição no pensamento econômico do modelo keynesiano de Estado pelo modelo

liberal, ocorrido na Inglaterra dos anos 1970 e nos Estados Unidos (de forma mais

moderada) nos anos 1980, que iam de encontro ao pensamento cepalino;

b- a unificação do mundo em torno do sistema capitalista, graças ao fim do socialismo

real em 1989. A perda da alternativa à visão de mundo norte-americana ajudou a

consolidar a ideia de que o alinhamento aos Estados Unidos era o único caminho

disponível;

c- as experiências monetaristas propostas por escolas norte-americanas com o intuito de

resolver a crise da dívida externa dos anos 1980. Estas soluções eram contrárias as

defendidas pelo pensamento desenvolvimentista da Cepal: enquanto essas novas

medidas defendiam manipulações nas taxas de câmbio para estabilizar a inflação, o

pensamento cepalino defendia soluções estruturais, como o aumento da renda, do

mercado interno e da industrialização;

d- a ascensão de governos neoliberais na vizinhança, como Chile, Peru, Venezuela e,

claro, a Argentina. Manter-se como um estado intervencionista iria causar um

isolamento no contexto regional.

Essa predominância pelos interesses econômicos que o neoliberalismo trouxe para os

governos latinos foi impactante à política externa. No Brasil, ela vinha de uma década de

1970 muito dinâmica, participando nas agendas do mundo em desenvolvimento. Na década de

1980, adquire a percepção de que o alinhamento automático aos Estados Unidos não traz os

benefícios econômicos e o prestígio internacional esperado e começa a buscar parcerias

estratégicas como forma de desenvolver novas alternativas para superação de dificuldades.

Esse modelo de política externa associado ao desenvolvimento nacional atinge um ponto de

exaustão e perda de prestígio no final da década de 1980.

É nesse contexto que a candidatura de Collor de Melo (1989) lança sua plataforma,

gerando, em matéria de política externa, três tipos de expectativas (Hirst &

Pinheiro): atualizar a agenda internacional do País; construir uma nova agenda

prioritária e não conflitante com os Estados Unidos; e reduzir o perfil “terceiro-

mundista”, tendo em vista as mudanças produzidas no cenário político internacional,

que, supostamente, levaram a uma atualização de posições mais comprometidas

sustentadas até então ou que eram vistas como contestatórias do poder mundial.

(BERNAL-MEZA, 1998, p. 1-2).

As políticas externas de Collor, Franco e Cardoso serão discutidas nas próximas

seções deste capítulo. Por hora, acrescenta-se que elas romperam com a noção de autonomia e

continuidade que o Itamaraty historicamente teve na condução da política externa brasileira.

7

Na Argentina, o que se desenvolveu foi um “pensamento com pretensão hegemônica

que construiu a teoria da decadência nacional, engendrada pelo isolamento internacional do

país, durante a fase que se estende entre 1930-1943 e 1983-1989”. (CERVO, 2001, pp. 285-

286). A fim de evitar novos confrontos com potências ocidentais, processo comum na história

diplomática do país, a política externa argentina alinhou seus objetivos com a potência

hegemônica, no caso os Estados Unidos, a fim de obter ganhos econômicos e políticos.

2.2 Argentina: o desastre econômico e o realismo periférico

A caminhada da Argentina para o neoliberalismo começou com a eleição do candidato

da Unión Cívica Radial, Raúl Alfonsín, em 10 de dezembro de 1983. O presidente teve que

lidar com as heranças da ditadura militar e da Guerra das Malvinas, como a inflação, a dívida

externa e a situação política dos militares.

Quanto às duas primeiras, Alfonsín criou uma nova medida monetária, o Austral, que

fracassou na sua proposta de trazer mais confiança aos agentes econômicos e de combater

com eficiência a inflação e, como consequência disso, um processo hiperinflacionário que

seria um agravante para sua renúncia em 1989. “Alfonsín deixou o poder em 1989 com uma

dívida externa superior a 60 bilhões de dólares e uma economia em estado crítico.”

(RAPOPORT, 2009, p. 42)

Na política externa, Alfonsín priorizou as relações dentro da América Latina (com a

assinatura da Declaração do Iguaçu5 junto ao presidente brasileiro José Sarney), as relações

com os governos europeus e a continuação das relações argentino-soviéticas. Essa relação,

principalmente com os governos europeus, não foi suficiente para lidar com os agentes

econômicos que pressionavam a argentina, seja credores externos e os organismos financeiros

internacionais (FMI)

Essas medidas políticas, aliadas com as pressões internas sofridas pelo presidente por

parte dos militares (o que levou a decretar leis de perdão6) e a crise econômica, contribuíram

5 Foi um tratado celebrado em 30 de novembro de 1985, entre o presidente argentino e o presidente brasileiro, no

qual se procurava fomentar a integração entre os dois países. Foi um dos precursores do Mercosul. 6 Aprovadas em 1986 e 1987, definiram que militares e policiais abaixo do cargo de coronel só cumpriam ordens

ao violar direitos humanos na ditadura. Foram revogadas em um processo que se arrastou durante todo o

mandato de Néstor Kirchner.

8

para que o neoliberalismo fosse posto em prática pelo seu sucessor, Carlos Saúl Menem, do

Partido Justicialista.

O governo de Menem, que havia subido ao poder com um discurso populista –

prometia um “salariaço” e a “revolução produtiva” – em breve mostrou que sua

política econômica se alinharia com os postulados do Consenso de Washington e

seguiria os conselhos do FMI e outros organismos financeiros internacionais.

(RAPOPORT, 2009, p. 43)

A solução encontrada pelo governo Menem para a crise econômica foi um novo plano

econômico, chamado de Plano Cavallo, e implantando pelo ministro da economia Domingo

Cavallo em 1991, que combinava a livre convertibilidade da moeda argentina (trocando o

nome de Austral de volta para Peso) com um câmbio fixo de paridade 1 peso – 1 dólar. Com o

objetivo de reduzir gastos governamentais e fazer caixa, ocorreram as privatizações de

empresas estatais7, logo no primeiro ano a frente do governo.

Em 1995, ao final de seu primeiro mandato, os números pareciam expressar o êxito de

sua estratégica econômica. De acordo com dados do World Databank, a inflação tinha caído

para 3.16 % do PIB (estava em 3057.6 % em 1989). Já o crescimento do PIB, que vinha

negativo até 1990, chegou a 12.67% em 1991, ficando negativo novamente apenas em 1995.

A dívida externa, de 65, 538 bilhões em 1989, foi para 98, 77 bilhões em 1995.

De acordo com RAPOPORT (2009), a diferença entre os indicadores de inflação e de

dívida externa acontece porque esse sistema de convertibilidade funcionava como o padrão

ouro8. Com a abertura irrestrita de mercados, a única forma de controlar a dívida externa seria

um continuo fluxo de capitais ou aplicação de políticas recessivas para baixar os custos

trabalhistas e obter competitividade.

Trata-se de uma economia que cresce apenas com o endividamento externo público e

privado. As privatizações começaram a cobrar seus custos, promovendo uma fuga de capitais

do país. O resultado disso tudo se refletiu no final do segundo governo Menem. Ainda com

dados do World Databank, em 1999, último ano do seu segundo mandato, a dívida externa

chegou a 150,014 bilhões de dólares. Houve ainda o agravante das questões sociais. A taxa de

7 “(...) em 1989, havia 92 empresas públicas, cujas receitas, despesas, prejuízos e transferências de recursos do

Tesouro corresponderam naquele ano a 15,3%, 20,8%, 5,5% e 1,4% do PIB do país, respectivamente. Em 1994,

restavam apenas 8 empresas públicas; das demais, 25 haviam sido vendidas, 12 concedidas, 18 liquidadas, 3

transferidas para províncias e municípios e 25 estavam em processo de privatização” (LIMA, 1997, p. 29). 8 Sistema monetário que vigorou desde o século XIX até a Primeira Guerra Mundial, e significava a adoção de

um regime cambial fixo, em que o valor da moeda de cada país participante era fixada a uma quantidade

específica de outro.

9

desemprego da população ativa passou de 7.3 % em 1989 para 12.8% em 1998 (com pico de

18.8% em 1995).

Junto com as políticas econômicas neoliberais de abertura econômica, privatização e

aumento da dívida externa, no campo da política externa o governo de Menem adotou a teoria

do “Realismo Periférico”, o que iria orientar suas ações em seu mandato. Amado Luiz Cervo

(2001), enumera os fundamentos dessa teoria política:

1) Um país periférico pobre e estrategicamente irrelevante deve alinhar seus objetivos

externos com os da potência hegemônica da área, tendo em vista obter algum ganho

econômico em troca da aceitação da liderança;

2) O desafio político à grande potência pode não ser perigoso a curto prazo, mas a

longo prazo sim;

3) A autonomia da política exterior dá prioridade aos custos de enfrentamento do que

a capacidade real de confrontação. Ela se orienta no sentido de eliminar perdas e

promover ganhos nas relações exteriores.

O resultado não foi outro senão o alinhamento automático com os Estados Unidos:

Este alinhamento se materializou com o envio de navios para a Guerra do Golfo, o

desmantelamento do míssil Condor II e de projetos de indústria aeroespacial e de

defesa, a retirada da Argentina no grupo dos países não alinhados, votando contra

Cuba na Comissão de Direitos Humanos da ONU, bem como a inclusão da

Argentina como um aliado "extra OTAN", tudo o que transformou o governo

argentino em um modelo para outros países em desenvolvimento na “era" do pós-

Guerra Fria. (RAPOPORT, 2009, p. 44, tradução nossa).

Amado Luiz Cervo (2001) também cita cinco domínios de ação dessa nova política

externa: reinserção da economia argentina na economia mundial; estabelecimento de relação

especial com os Estados Unidos; aprofundamento da integração econômica e política com o

Brasil; criação de uma zona de paz no Cone Sul da América e desenvolvimento de uma

política de prestígio internacional. Após o subcapítulo da experiência neoliberal brasileira,

será discutido o balanço real de todas as medidas tomadas.

10

2.3 Brasil: a superação da hiperinflação e o início da busca pelo protagonismo

Como aponta Amado Luiz Cervo (2001), em nenhum outro país do continente latino-

americano foi tão difícil a transição do paradigma desenvolvimentista para o neoliberal. Isso

se deu, em grande parte, pelos três presidentes da década de 90 terem, ao contrário da

Argentina, hesitado em se submeter de forma automática às regras neoliberais vindas da

superpotência hegemônica e de organismos internacionais como o FMI.

Foi difícil ao governo brasileiro adaptar sua agenda externa aos novos temas globais.

Aceitou de bom grado a emergência da democracia e dos direitos humanos nas

decisões de política internacional, mas afastou com repugnância a nova ingerência

da aliança ocidental, a Otan, mesmo quando feita em nome desses valores, porém

fora do sistema de decisão coletiva das Nações Unidas. [...] Desconfiou do credo

liberal difundido desde Washington – liberalização do mercado interno e dos fluxos

financeiros internacionais, internacionalização dos empreendimentos nacionais,

particularmente dos serviços. (CERVO, 2001, p. 293).

No plano econômico, Collor assumiu um país com uma dívida externa alarmante e

uma inflação que tinha se tornado no maior obstáculo de crescimento da nação. Segundo

dados do World Databank, a dívida externa acumulada (em US$ atual) em 1990 estava na

casa dos 114, 95 bilhões e a inflação (índice de deflação do PIB em %) subiu de 1209.1 para

2735.5. Assim como na história argentina, esses números eram herança das políticas

econômicas dos anos de ditadura militar, além de terem se agravado nos anos do governo

Sarney (1985-1990).

Entre as políticas econômicas adotadas para enfrentar essa situação, foram colocadas

em práticas duas de grande porte: o Plano Collor I (1990), que trocou a moeda Cruzado pelo

Cruzado Novo e realizou o confisco dos depósitos bancários superiores a Cr$ 50.000,00 por

18 meses e o Plano Collor II (1991), que elevou a política de juros e reajustou os salários com

base da média dos últimos 12 meses.

Na política externa, Collor teve duas fases: a americanista e a globalista9.

Primeiramente buscou retomar a aproximação com os Estados Unidos como um coadjuvante

da adoção de medidas econômicas neoliberais e da abertura comercial. De acordo com Letícia

Pinheiro (2004 ,p. 56), “a tentativa de retorno ao americanismo mostrou-se ineficaz de vez

9 “Enquanto o americanismo foi definido como aquele que concebia os Estados Unidos como eixo da política

externa, donde a maior aproximação a Washington elevaria os recursos de poder do país, aumentando assim sua

capacidade de negociação; o globalismo foi concebido como uma alternativa ao anterior, elegendo a

diversificação das relações exteriores do Brasil como condição para aumentar seu poder de barganha, inclusive

junto aos Estados Unidos.” (PINHEIRO, 2004, p.64)

11

que consenso interno em torno de uma relação espacial com Washington deixara de existir

(...)”.O Brasil notou muito antes da Argentina que uma aproximação dessa natureza não seria

o suficiente para trazer os benefícios pretendidos.

A segunda fase é caracterizada pelo retorno a alguns aspectos do globalismo, em que

se buscou uma maior independência externa da superpotência e o papel de protagonista

internacional em questões globais, como bem evidencia a realização da ECO-9210.

Em 29 de dezembro de 1992, Collor renuncia e assume em seu lugar o vice-presidente

Itamar Franco. As políticas econômicas de Collor não surtiram o efeito desejado, em 1993 a

dívida externa aumentou para 144, 594 bilhões e a inflação se manteve alta, 2001,3 %,

segundo dados do World Databank. Itamar então, junto do Ministro da Fazenda e futuro

presidente Fernando Henrique Cardoso, colocou em prática, em 1993, o plano econômico que

iria controlar definitivamente a inflação, chamado de Plano Real.

Em resumo, o Plano Real se desenvolveu em três fases.

1) Ajuste Fiscal: o primeiro ponto do ajuste fiscal foi o Programa de Ação Imediata

(PAI), elaborado em junho de 1993. O PAI contém as primeiras medidas econômicas

destinadas a realizar corte nos gastos públicos, política fiscal rígida e equilíbrio

financeiro dos governos estaduais, isso determinava um corte de gastos da ordem de

US$7 bilhões. O segundo ponto foi referente ao aumento da arrecadação, que se daria,

principalmente, pela criação do Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira

(IMPF), com uma alíquota inicial de 0,25% do valor de cada operação financeira, foi

conhecido como o “Imposto do Cheque”. O último ponto foi a aprovação do Fundo

Social de Emergência (FSE), composto por 15% da arrecadação de todos os impostos;

2) Indexação completa da economia (URV): em fevereiro de 1994, foi introduzido esse

novo sistema de indexação, o URV (Unidade Real de Valor), adotando mecanismos

que permitiriam uma indexação diária da economia, através do encurtamento dos

prazos de reajustes. Esse sistema foi atrelado ao dólar americano, numa base de um

por um, a fim de estabilizar os preços. A URV era uma quase moeda, porque servia de

unidade de conta, de reserva de valor, mas não de meio de pagamento.

10 Também conhecida como Rio-92. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o

Desenvolvimento (CNUMAD) ocorreu entre 3 e 14 de junho de 1992, no Rio de Janeiro, e reuniu mais de 100

chefes de Estado, tratando sobre o tema do desenvolvimento sustentável.

12

3) Transformação da URV em uma nova moeda, o Real: em 1 de julho de 1994, foi

introduzido o Real, num momento em que os preços já se encontravam expressos em

URV, com valor unitário de face equivalente a uma URV, ou US$1,00 (CR$2.750,00).

No campo da política externa, Itamar buscou equilibrar as duas fases que Collor

adotou. Com o apoio de Fernando Henrique Cardoso (1992-1993) e de Celso Amorim (1993-

1994) como ministros das Relações Exteriores, Itamar Franco buscou se adaptar às

características do sistema internacional, ao mesmo tempo que não abandonou à busca pelo

desenvolvimento.

Pode-se dizer que durante o breve governo de Itamar Franco, a política externa

brasileira expressou uma tentativa de conjugar a permanência do país no rumo da

liberalização econômica com a manutenção de uma margem de segurança na

condução autônoma de seus interesses, ainda que essa tentativa nem sempre tenha

sido frutífera. (PINHEIRO, 2004, p. 59-60).

Em 1994, respaldado pelo sucesso do Plano Real, assume Fernando Henrique

Cardoso. A inflação teve seu ponto mais baixo em 1998, primeiro ano de seu segundo

mandato, em 4.2 %, muito abaixo dos números dos governos anteriores. A dívida externa

continuou aumentando, passando de 152,857 bilhões em 1994, para 231,944 bilhões em 2002.

A estabilização macroeconômica gerou alto coeficiente de credibilidade internacional,

o que o presidente aproveitou para colocar em prática alguns de seus planos: retomada da

abertura econômica iniciada pelo governo Collor, privatização de empresas consideradas

ineficientes (tendo a Vale como maior exemplo) e uma maior preocupação com a

responsabilidade fiscal. Letícia Pinheiro (2004) chama a atenção que o aprofundamento da

globalização financeiro brasileira intensificou na vulnerabilidade às crises internacionais,

tendo como exemplo o impacto na economia brasileira gerado pelas crises mexicana (1994),

asiática (1997) e a russa (1998).

Na política externa, Cardoso instituiu alguns preceitos que iriam refletir no governo

Lula: a busca de reconhecimento como potência média, a diplomacia presidencialista e o

fortalecimento da integração latino-americana, mais especificamente, do Mercosul.

A busca pelo reconhecimento internacional aconteceu, principalmente, em foros

decisórios internacionais, como a ONU e a OMC11, com a participação em debates de temas

11 A Organização Mundial do Comércio (OMC) surgiu em 1995, com o intuito de supervisionar o comércio

mundial, gerenciar acordos comerciais e servir de fórum para o comércio internacional.

13

da agenda global, como direitos humanos e o meio ambiente. Cardoso adotou uma estratégia

denominada “autonomia por participação”:

[...] como a adesão aos regimes internacionais, inclusive os de cunho liberal, sem a

perda da capacidade de gestão da política externa; nesse caso, o objetivo seria

influenciar a própria formulação dos princípios e das regras que regem o sistema

internacional. (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 11).

Cardoso, por ter sido Ministro das Relações Exteriores e ter experiência no manejo da

agenda internacional, assumiu uma gestão mais “presidencialista” da política exterior,

diminuindo a atuação do Itamaraty a uma posição menos política.

Em relação ao terceiro preceito, Cardoso entendia que ter outros Estados participando

ao seu lado em organismos internacionais aumentaria as possibilidades de ganhos absolutos.

Pode-se afirmar que Cardoso não ignorou a realidade de “país periférico” que a

Argentina adotou. Mas, ao invés de submeter sua política externa à potência hegemônica,

trabalhou em mecanismos que permitissem a busca por reconhecimento internacional, seja

com a integração regional ou com o crescente protagonismo em foros internacionais.

Preceitos esses que seriam levados a diante por Inácio Lula da Silva, quando assumiu o

governo brasileiro em 2002.

2.4 A virada do milênio: balanço da experiência neoliberal na Argentina e no Brasil

Tão rápido como chegou, o neoliberalismo partiu da América Latina. No caso da

Argentina, após dois mandatos de Menem, Fernando de la Rúa assume em 1999 o governo.

Com a desvalorização da moeda brasileira no mesmo ano, surge uma crise entre os dois

países. De acordo com Alessandro Candeas (2010), os setores de menor competitividade

(têxteis, siderúrgica, calçados, entre outros) foram os que mais sofreram, pois não conseguiam

competir com os novos preços brasileiros, reduzindo assim o saldo e o volume comercial

argentino. O governo então, entende como um ato deliberado de competição contra os

interesses comerciais argentinos.

É criada a imagem do Brasil como o “vilão” responsável pela crise. De la Rúa, que

tinha retomado a iniciativa de estreitar laços com seus vizinhos, ao desenrolar da crise, retoma

a aproximação com os Estados Unidos, na esperança de reerguer a confiança externa na

Argentina e obter ajuda financeira.

14

Em 2001, a Argentina chega em um momento crítico:

A situação argentina em 2001 lembrava de forma dramática a de 1989: saques,

convulsão social, caos econômico e crise político-institucional. Fernando de la Rúa

decretou o estado de sítio, em violação da Constituição (a competência pertence ao

Congresso). Acossado pelos cacerolazose bocinazose completamente destituído de

autoridade, De la Rúa, no dia 20 de dezembro de 2001, deixou a Casa Rosada de

helicóptero. Como se diz na Argentina, a melhor saída do labirinto é por cima...

(CANDEAS, 2010, p. 228)

Com a saída de De la Rúa, houve uma sucessão de anúncios e renúncias. Entre 21 de

dezembro de 2001 e 21 de janeiro de 2002, cinco presidentes passaram pela Argentina:

Ramón Puerta, Rodríguez Saá, Eduardo Camaño, e Eduardo Duhalde, que conseguiu se

manter no poder até a posse de Kirchner, em 2003. Entre estes presidentes, destaque para

Rodríguez Sá, que em 23 de dezembro anunciou que o país não pagaria mais suas dívidas por

tempo indeterminado, decretando assim uma moratória no valor de 132 bilhões de dólares.

Em 2005, Kirchner decretaria o fim da moratória.

No Brasil, Fernando Henrique Cardoso não conseguiu terminar seu segundo mandato

de forma positiva:

Assim, apesar da recuperação do setor externo e de não dispor mais da trava cambial

do primeiro mandato, o país não conseguiu apresentar um bom desempenho em

termos de crescimento econômico no segundo mandato de FHC. Mesmo

apresentando um elevado superávit primário, a dívida pública continuou crescendo e

o perfil desta foi piorando ao longo do segundo mandato, sendo esse inclusive o

determinante de sua expansão em função dos ajustes patrimoniais. Apesar de se ter

uma política monetária comprometida coma estabilidade de preços, o mandato de

Fernando Henrique se encerrou com a inflação em profunda aceleração. Mesmo

adotando o tripé que é considerado o mais adequado em política econômica – metas

de inflação, superávit primário e taxa de câmbio flutuante (GREMAUD;

VASCONCELLOS; TONETO JR, 2007, pp. 489-490).

Perry Anderson (1995) faz um balanço do neoliberalismo na Europa, que se encaixa

na realidade da América do Sul:

Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma

revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o

neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades

marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e

ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual

seus fundadores provavelmente jamais sonham, disseminando a simples idéia de que

não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando,

têm de adaptar-se a suas normas. (ANDERSON, 1995, sem página).

15

3 OS DESAFIOS DO INÍCIO DO NOVO MILÊNIO: AS QUESTÕES INTERNAS

FREIANDO O PROJETO DE INTEGRAÇÃO BILATERAL E REGIONAL

3.1 A chegada de Nestor Kircher e Luiz Inácio Lula da Silva ao poder

Brasil e Argentina adentraram ao novo milênio fragilizados economicamente. A

proporção da crise argentina foi maior do que a brasileira, se tornando, em 2001, em um dos

maiores desafios da sua história. Mais do que econômica, a crise deixou um rastro de danos

na situação social do país que dificilmente vai ser novamente visto: de acordo com o

economista Aldo Ferrer, em 2002 “(...) a taxa de desemprego alcançou os 25% e a proporção

da população abaixo da linha da pobreza superou os 50%” (FERRER, 2008, p. 9, tradução

nossa).

Se no Brasil a crise não era tão profunda, ninguém poderia afirmar que o país se

encontrava em uma situação confortável. Gremaud, Vasconcellos e Toneto Jr (2007) trazem

dois dados que ajudam a contextualizar o momento econômico da troca no poder: a dívida

pública atingiu números recordes no último mandato de Cardoso, chegando a ficar na faixa de

60% do PIB, e durante os dois mandatos do presidente, a média do crescimento do PIB foi

baixa, situando-se ligeiramente acima dos 2% ao ano.

Assim, junto com o desafio de estabilização econômica e retomada do crescimento, o

presidente eleito em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva, tinha um novo desafio: reverter as

desconfianças frente ao rumo das políticas de seu partido, tradicionalmente de esquerda. O

clima de desconfiança era sobre a continuidade nas políticas de estabilização de Cardoso.

Lula, porém, manteve as bases do que já vinha sendo feito nesse sentido:

O governo Lula manteve o tripé de política econômica adotado no segundo mandato

de FHC – câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação – e aprofundou o

compromisso com a estabilização ao elevar as metas de superávits primários que

resultou, posteriormente, na redução da dívida do setor público. O bom desempenho

econômico mundial colaborou para a obtenção de significativos saldos comerciais

positivos e a melhora dos indicadores externos. (GREMAUD; VASCONCELLOS;

TONETO JR, 2007, p. 505).

Como será retomado na conclusão deste artigo, as medidas econômicas do primeiro

mandato de Lula não conseguiram retomar o crescimento econômico desejado, apesar da

estabilização alcançada.

16

Williams Gonçalves (2012), em seu texto “Panorama da Política Externa Brasileira no

Governo Lula da Silva”, batiza os preceitos da política externa de Lula como “nacionalistas”,

retomando princípios antigos da diplomacia que haviam sido deixados de lado pelos governos

da década de 90. Também, como já apresentado, Lula não seguiu apenas esse caminho da

retomada, mas reforçou algumas diretrizes tomadas principalmente por Cardoso, como a

diplomacia presidencialista e a busca por protagonismo em foros internacionais.

Na nossa interpretação, ao mesmo tempo em que não houve ruptura significativa

com paradigmas históricos da política externa do Brasil, sendo algumas das

diretrizes desdobramentos e reforços de ações já em curso na administração FHC,

houve uma significativa mudança nas ênfases dadas a certas opções abertas

anteriormente à política externa brasileira. (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 275).

A política externa de Lula é denominada pelo autor como nacionalista por retomar o

comprometimento com o desenvolvimento do país, primando pela autonomia e buscando não

apenas se encaixar, mas moldar a ordem internacional para que seja mais confortável para os

países em desenvolvimento. Outra característica importante é a diplomacia presidencial.

O presidente soube como poucos explorar em favor das posições brasileiras os

espaços que o Itamaraty lhe foi abrindo, tanto nas relações bilaterais, como,

sobretudo, nas relações multilaterais. Despertando, inicialmente, grande curiosidade

e perplexidade em todas as partes do mundo, por ter ascendido da origem social

humilde de família de migrantes nordestinos e da carreira de líder sindical operário

ao cargo de presidente do país, Lula jamais se intimidou diante de lugares e

personalidades, apresentando sempre com nitidez e firmeza as posições do Brasil.

(GONÇALVES, 2012, pg 13).

Algumas divergências claras na política externa do governo Lula com os governos

anteriores foi o papel dos valores universais, a busca por parcerias estratégicas e a

participação em foros internacionais como a ONU e a OMC. Cardoso, acreditava que o

protagonismo brasileiro viria por meio do posicionamento nos foros internacionais em temas

da agenda global; Lula retomou a busca por parceiros em busca de desenvolvimento, como o

IBAS - Índia, Brasil e África do Sul (2003), e mais futuramente, o BRIC (2009) – Brasil,

Rússia, Índia, China e, em 2010, África do Sul. Junto deles, Lula definiu uma agenda global

comum, buscando defender os interesses econômicos e políticos dos países em

desenvolvimento.

As mudanças percebidas na política externa do governo Lula da Silva tiveram

algumas diretrizes: (1ª) contribuir para a busca de maior equilíbrio internacional,

procurando atenuar o unilateralismo; (2ª) fortalecer relações bilaterais e multilaterais

de forma a aumentar o peso do país nas negociações políticas e econômicas

internacionais; (3ª) adensar relações diplomáticas no sentido de aproveitar as

possibilidades de maior intercâmbio econômico, financeiro, tecnológico, cultural

17

etc.; e (4ª) evitar acordos que possam comprometer a longo prazo o

desenvolvimento. (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 19).

Na Argentina, a crise exigiu muito mais do governo para ser resolvida. Duhalde, ao

assumir o governo em 2002, decretou o fim da conversibilidade Peso – Dólar, que no seu

décimo primeiro ano já estava insustentável. Também conseguiu impedir que a

desvalorização imensa da moeda argentina se transferisse para a inflação, o que teria piorado

ainda mais a economia do país. A situação, porém não melhorou. A argentina chegou em um

de seus momentos mais críticos da sua história:

A atividade econômica se contrai 10,9% em 2002. A deterioração das condições de

vida, iniciada nos anos 1970, atingiu níveis históricos. A sociedade argentina

constata, com estupor, que havia superado o Brasil em termos de pobreza,

confrontando um de seus mitos fundacionais: a qualidade de vida superior no

continente latino-americano. “Adiós al país de clase media”. Com 47,8% da

população abaixo da linha de pobreza, o país se aproximou do Paraguai, segundo

relatório da Fundación Capital. (CANDEAS, 2010, p. 230).

Nesse momento crítico argentino, laços da integração com o Brasil começaram a ser

refeitos. Com a fuga de capital europeu e norte-americano, a integração regional foi vista

como um caminho natural para a recuperação econômica. O Brasil, então, entra como um dos

maiores investidores, esperando aproveitar a oportunidade gerada pela crise no seu vizinho.

Alessandro Candeas (2010) cita três exemplos que comprovam esta postura do

governos brasileiro: a compra dos ativos da Perez Companc pela Petrobrás (2002), a compra

do controle da cervejaria Quilmes pela Ambev (anunciada em 2002 e aprovada em 2003) e o

aumento das atividades da TAM e do Itaú. Os Estados Unidos, parceiro que fora tão estimado

na década de 1990, deixou um vácuo de oportunidade de integração econômica e política, que

sinalizava que seria aproveitado pelo Brasil. Como veremos mais adiante, a integração

bilateral entre Brasil e Argentina não evoluiu como se esperava, deixando um grande “e se...”

na história do continente.

Por fim, 2003 deixa para trás dois dos piores anos da história da Argentina, e a

situação começa a mostrar traços de melhora. Em março de 2003, Duhalde anuncia a

estabilização cambial e monetária, a volta do crescimento industrial e das exportações, o fim

da recessão e, enfim, a retomada da conquista do respeito internacional.

É neste contexto que, em abril de 2003, a Argentina votou e levou para o segundo

turno Nestor Kirchner e Carlos Menem. Com a certeza que os votos dos candidatos que não

passaram para o segundo turno iriam para o seu rival, Menem desistiu da disputa e Kirchner

18

foi eleito o presidente argentino com o menor percentual de votos da história do país (22,2%,

no primeiro turno). Com isso, Kirchner sabia que precisava conquistar a legitimidade de seu

poder frente ao povo.

O caminho não era um mistério para ninguém: retomar o crescimento, levantar os

baixíssimos índices sociais, manter a inflação controlada e recuperar o prestígio internacional.

Kirchner, porém, não se conteve apenas a isso. Durante seu governo, deu ênfase, também, na

reconquista do orgulho do povo argentino e na integração regional.

Os índices mostram o sucesso de Kircher:

Entre 2003 e 2007, o PIB aumentou de forma notável, quase 9% ao ano, empurrado

pelo auge do setor industrial e das exportações, enquanto o desemprego caiu

substancialmente e os níveis de pobreza reduziram. Por outra lado, acabou o default,

com a conversão da dívida que foi aceito por mais del 70% dos devedores, e se

pagou o total dos compromissos pendentes com o FMI (...) (RAPOPORT, 2009, p.

49, tradução nossa).

Aconteceram, também, avanços no campo dos direitos humanos. Durante o Governo

Kirchner, a Corte Suprema da Argentina anulou, em junho de 2005, as “leis do perdão”,

aprovadas na década de 1980, que impediam os envolvidos em tortura durante a ditadura

militar de serem processados. O congresso havia aprovado esta anulação ainda em 2003, logo

após o novo presidente assumir.

O economista Aldo Ferrer (2008) cita quatro consequências do que ele chama de

“soberania argentina”, livre das restrições externas, fiscais e institucionais, que atrasaram seu

desenvolvimento nas décadas passadas.

1) Reaparição do Estado: A dependência ao FMI se traduzia numa impotência das

políticas econômicas argentinas. Com o fim da paridade Peso-Dólar e o acerto das

dívidas com os credores internacionais, a política econômica teve forças para servir ao

Estado, sendo uma ferramenta de promoção ao desenvolvimento.

2) Novas ideias econômicas: Com o fim do consenso neoliberal, as ideias de

desenvolvimento nacional voltam às discussões sobre política econômica.

3) Segurança Jurídica: Com o antigo aumento incessante da dívida externa e os

desiquilíbrios macroeconômicos, não havia segurança que os contratos econômicos

seriam cumpridos. Com o novo momento da economia argentina, esta segurança

jurídica do cumprimento dos contratos voltou

19

4) Estabilidade e crescimento: Por fim (e mais importante), a retomada da soberania e o

controle da economia viabilizaram políticas de desenvolvimento de longo prazo. A

rápida recuperação do recesso de 2009 ajuda a confirmar este ponto.

3.2 Interesses comuns, caminhos separados

A situação do continente latino-americano no novo milênio se apresentava da seguinte

forma para seus dois maiores países: um gigante que clamava por finalmente se tornar o “país

do futuro” e ser reconhecido fora de seu continente e um outrora gigante que se levantava

após sua maior crise recente.

Com Brasil e Argentina se afastando cada vez mais dos Estados Unidos e abrindo

espaço nas suas agendas externas para retomar e ampliar os esforços bilaterais do final da

década de 80 e começo de 90, uma oportunidade de fortalecer a integração e alavancar o

Mercosul se visualizava no horizonte. No entanto, não foi o que aconteceu:

O novo cenário político pós-2004 abriu novas perspectivas para o bloco. A ascensão

dos governos de Néstor Kirchner e Lula da Silva, na Argentina e no Brasil, colocou

para aqueles da corrente de pensamento progressista a expectativa de

aprofundamento do processo de integração com maior articulação econômica, mais

institucionalização e a construção de uma parceria mais sólida no campo político.

Mas já nos dois primeiros anos começaram a aparecer limitações nos

comportamentos de ambos. (SARAIVA; BRICENO RUIZ, 2009, pp 159-160).

Brasil e Argentina continuam, até hoje, com seus planos de desenvolvimento

individuais, políticas econômicas distintas e falta de uma visão coletiva para o continente. Os

sinais do afastamento ficaram mais claros com o passar do tempo:

No entanto, algumas divergências, tanto no âmbito regional como internacional,

ainda persistiram e criou-se certo desconforto, como a falta de entusiasmo por parte

da Argentina com a Comunidade Sul-Americana das Nações (CASA) e as disputas

com relação à eventual reforma do Conselho de Segurança na ONU (VADELL,

2006, p. 21 1). A crise entre a Argentina e o FMI também criou alguns

constrangimentos nas relações com o governo brasileiro: o presidente argentino

argumentou, à época, falta de apoio do Presidente Lula à Argentina durante o

processo. Em 2004, a Argentina adotou medidas de proteção à indústria local, em

detrimento das relações com o Brasil, e restringiu a importação de produtos da linha

branca (fogões, geladeiras, máquinas de lavar louça, etc) do Brasil (..) (SILVA,

2009, p. 118).

A partir de agora, então, serão discutidos fatores que travaram tanto o avanço bilateral entre

Brasil e Argentina quanto o avanço do Mercosul como um projeto de integração regional.

Quatro pontos importantes, ajudam a justificar o motivo do afastamento: a falta de

20

alinhamento econômico; o “estilo K” que definiu a gestão de Kirchner; a estratégia da

autonomia pela diversificação de Lula; e a falta de uma visão e de uma estratégia regional

comum.

É fundamental destacar que muito dos desafios enfrentados por Lula e Kirchner foram

gerados pelo final da década de 1990. A Argentina, no começo da década de 2000, teve que

orientar sua estratégia econômica e política para se recuperar da crise. Para enfrentá-la,

Kirchner se distanciou do FMI e do Banco Mundial e adotou políticas de subvalorizarão do

peso argentino e taxas de juros baixas. Lula tomou o caminho inverso, adotando práticas mais

convencionais, se aproximando do FMI, valorizou sua moeda e aumentou sua taxa de juro.

Foi um momento de falta de alinhamento econômico entre dois países vizinhos.

O que agora é preciso enfatizar é que não houve sincronia na escolha de políticas,

que, além do mais, foram, de um lado e de outro, decididas sem a menor consulta

com o parceiro. Enquanto um dos países foi flexível, menos ortodoxo, e, por

conseguinte, mais autônomo com respeito a fatores externos, o outro deliberou por

ser otodoxo e por preocupar-se prioritariamente com a opinião dos mercados.

(LAVAGNA, 2009, p. 136).

Como visto anteriormente, foi o mesmo caso da década de 1990, com os países agora

trocando os papéis. Naquela década foi o Brasil que manteve a autonomia da sua política

econômica, enquanto a Argentina alinhava sua moeda com o dólar12.

O segundo ponto a ser destacado é sobre o estilo do Governo Kirchner de governar,

apelidado de “Estilo K”. Alessandro Candeas (2010) descreve as características desta prática,

que pode ser resumida em três elementos gerais: concentração de poder e informação; divisão

maniqueísta da sociedade entre aliados e inimigos; e demonstrar sempre iniciativa, para nunca

ser refém das agendas da imprensa e da oposição.

Este estilo de governar era reflexo da necessidade de construir a legitimidade frente a

população argentina. Foi necessário para ajudar na recuperação do respeito pelo seu cargo,

deficiente desde o desastre econômico, político e social acontecido nas gestões anteriores.

O “Estilo K” se traduziu, na política externa, como um estilo agressivo, que não

possuía receios de ser isolacionista caso fosse necessário, como os conflitos com o Brasil

12 Lavagna cita ainda outra conduta não-convergente entre Brasil e Argentina, durante a crise do México em

1982. Na ocasião, Brasil seguiu a interpretação de que era uma crise de “solvência”, acreditando que o

endividamento era insustentável, e que eram necessários saques explícitos mais longos para enfrenta-la. Já a

Argentina seguiu a interpretação de que a crise era de “liquidez”, seguindo pelo caminho do reescalonamento das

dívidas, ao invés de buscar a redução delas.

21

sobre a Comunidade Sul Americana de Nações (CASA)13 e o endurecimento com a Inglaterra

quanto a questão das Malvinas indicaram.

Também houve conflito do “Estilo K” com os planos brasileiros de protagonismo

regional:

A ênfase kirchnerista no resgate da dignidade nacional e da autonomia é

incompatível com a aceitação de papel secundário no plano regional em relação ao

Brasil, embora isso não signifique aspiração de protagonismo semelhante à buscada

pela diplomacia menemista. (CANDEAS, 2010, p. 242).

Como o foco de Kirchner não estava na política externa (não tanto quanto no governo

de Lula), e sim na reconstrução interna de seu país, o presidente aceitava os riscos de tomar

medidas que iam contra os interesses de seus aliados, desde que as mesmas trouxessem

popularidade e credibilidade interna ao mesmo.

O terceiro ponto é a estratégia de política externa adotada pelo governo Lula.

Diferente de Cardoso, que adotou a estratégia denominada “autonomia pela participação”,

Lula seguiu pelo caminho da “autonomia pela diversificação”, que pode ser definida como:

[...] a adesão do país aos princípios e às normas internacionais por meio de alianças

Sul-Sul, inclusive regionais, e de acordos com parceiros não tradicionais (China,

Ásia-Pacífico, África, Europa Oriental, Oriente Médio etc.), pois acredita-se que eles

reduzem as assimetrias nas relações externas com países mais poderosos e

aumentam a capacidade negociadora nacional. (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p.

11).

Algumas conjecturas levaram à adoção desta estratégia. Do ponto de vista externo, o

11 de Setembro revelou a tendência do governo norte-americano de agir unilateralmente a

partir de então, transferindo sua área de interesse para a OTAN e o Oriente Médio. Com os

processos de globalização acelerados, e todo o compromisso adotado pelo governo brasileiro

em relação aos temas universais nas últimas gestões, a distância diplomática dos países

desenvolvidos também não era uma opção inteligente. A opção que se mostrava mais correta

para a situação era estreitar os laços com países em desenvolvimento, com destaque para

potências regionais (como a China, a Rússia, a África do Sul e a Índia), a fim de defender

interesses comuns e fortalecer o poder de barganha em foros internacionais, como a ONU e a

OMC.

13 Projeto criado em 2004 para ser uma alternativa à ALCA, que é uma proposta de integração vinda dos Estados

Unidos. Reúne dez países sul-americanos, mais Guiana e Suriname.

22

As ações diplomáticas brasileiras transpareceram uma busca por protagonismo na

região. Ao não apenas se limitar a questões com relação direta ao seu interesse, como o envio

de tropas ao Haiti, aprovado em 2003, o Brasil buscava reconhecimento internacional. Ao

renegociar dívidas com países Africanos14, Lula buscava também atender ao lado “social” da

busca pela liderança regional.

Mesmo com este novo rumo adotado, o Brasil ainda colocava como prioridade na sua

agenda internacional as relações diplomáticas dentro da América do Sul. O Ministro de

Relações Exteriores no Governo Lula, Celso Amorim (2006), em seu artigo denominado “A

política externa do governo Lula: dois anos”, afirma que “Tem alta prioridade na agenda

externa brasileira a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e

unida, como afirmou o presidente já em seu discurso de posse.” (AMORIM, 2005, p. 51).

Lula entendia que uma América do Sul unida e um Mercosul forte, de preferência com o

Brasil atuando como líder regional, proporcionaria não apenas um destino importante para as

exportações brasileiras, mas também um instrumento de legitimidade do poder brasileiro nos

órgãos internacionais.

De fato, a integração regional também facilitaria na busca por um dos grandes

objetivos da diplomacia brasileira: a busca por um assento no Conselho de Segurança da

ONU15.

Esta aspiração brasileira ao posto de liderança regional e os esforços de aproximar o

continente e o Mercosul a outros mercados gerou desentendimentos com a Argentina. No

campo econômico, Alessandro Candeas (2010) destaca que a maior preocupação de Kirchner

era de que, ao aceitar o investimento brasileiro na reindustrialização argentina, se criasse uma

divisão regional entre os dois países, com a Argentina se tornando uma agroexportadora e o

Brasil um exportador de produtos industriais

No campo político, a busca por protagonismo do governo Lula não obteve respaldo de

seu vizinho, que não entendia os benefícios que a posição brasileira poderia gerar para a

Argentina:

14 Nos oito anos de Lula (2003-2010), foram perdoados US$ 436,7 milhões em dívidas de quatro países:

Moçambique (US$ 315,1 milhões), Nigéria (US$ 84,7 milhões), Cabo Verde (US$ 1,2 milhão) e Suriname (US$

35,7 milhões). 15 “O ministro Celso Amorim expressou com mais firmeza o desejo do país de obter um assento permanente no

Conselho de Segurança. A energia diplomática despendida foi considerável. Os custos da liderança brasileira no

Haiti seriam uma tentativa de provar à comunidade internacional que o país tem condições de fazer parte do

Conselho” (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 323).

23

O interesse do Brasil por um papel relevante no cenário internacional, um assento

permanente no Conselho de Segurança, por exemplo, é percebido na Argentina

como competitivo em relação às próprias metas brasileiras. O Brasil, tanto no

governo FHC quanto no de Lula da Silva, não conseguiu demonstrar que esse seu

interesse poderia também ser o objetivo regional coletivo, do Mercosul em articular.

Não se trata de incapacidade específica do Brasil, visto que encontramos situações

semelhantes nos casos do Japão, da Índia e mesmo da Alemanha, esta última

sofrendo oposição de outros governos participantes da União Européia

(VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 11).

Sobre esta questão, Alessandro Candeas (2010) afirma:

Alguns setores frequentemente manifestam descontentamento com o que

consideram “seguidismo de Brasil”, em particular em projetos considerados

“funcionais” para a diplomacia brasileira, mas sem interesse concreto para a

Argentina, como a aproximação do MERCOSUL com países africanos e árabes, ou

ainda outros, isoladamente, como a Índia. Esse aspecto também explicou, no início

da concertação regional ampliada (entre 2000 e 2005), a pouca receptividade em

torno do conceito de América do Sul. (CANDEAS, 2010, p. 243).

O último ponto a ser destacado é também o mais impactante para a não concretização

do projeto de integração entre Brasil e Argentina, principalmente por não ter se limitado aos

governos de Lula e Kirchner e até hoje não ter se chegado a uma solução. A falta de uma

visão e de uma estratégia regional comum a Brasil e Argentina impossibilita uma integração

duradoura, que não se paute por oportunidades momentâneas nem por interesses individuais.

Como os pontos anteriores deixaram claro, Brasil e Argentina levaram sua política

externa baseada em seus interesses internos: o Brasil na busca por protagonismo internacional

e na diversificação de seus parceiros e a Argentina na reconstrução interna e na retomada da

construção de sua identidade internacional.

É óbvio que em ambos os países há planos do tipo estratégico. Entretanto, “planos”

no plural não são a mesma coisa que um “plano” global integrado. Os planos, no

plural, atendem a setores ou áreas específicas, e, de fato, podem revelar-se bem

sucedidos e mudar segmentos importantes da realidade nacional. A menos que se

pense que o mero somatório de planos é um plano estratégico, numa visão global

podem coexistir os sucessos parciais com a insuficiência global (LAVAGNA, 2009,

p. 137).

É este o elemento que está faltando para o Mercosul vingar como um projeto de

mercado comum e como um instrumento de integração regional. Quando os dois maiores

vizinhos do continente conseguirem pensar em um plano estratégico para a região, e deixarem

de lado a visão centrada em seus próprios interesses nacionais, é possível deixar para trás a

fase de tarifas alfandegárias comuns para levar a cabo uma integração real. Integração esta

que conseguiria auxiliar o restante dos países do continente, muito menores em economia e

24

população, a enfrentar seus dilemas sociais e econômicos, assim como aumentar o poder de

barganha do Mercosul nos foros internacionais.

Hoje prevalece na região governos em cujas agendas a questão social é,

compreensivelmente, uma prioridade. Cada país processará as reivindicações de suas

sociedades de acordo com as suas próprias realidades. Se trata de um problema

central do desenvolvimento nacional que influencia na integração regional, mas são

questões internas de cada país. (FERRER, 2008, p. 29, tradução nossa).

Podem-se argumentar quais os benefícios reais que a integração traria para a Argentina

e o Brasil. De fato, é custoso deixar de lado prioridades nacionais para concentrar esforços na

resolução de problemas que estão além de sua fronteira. Sem dúvida, também, Brasil e

Argentina têm condições de encontrarem mercados para seus produtos e parceiros estratégicos

para suas políticas externas fora da América do Sul. Mas é inegável que um continente unido

e um Mercosul atuante fortaleceriam os planos individuais de ambos os países e gerariam

oportunidades novas de crescimento e desenvolvimento.

No campo econômico, representaria uma expansão de mercado para os países

integrantes, abrindo principalmente um mercado para os produtos industrializados,

encaminhando os produtos de origem agrícola para fora do continente, como é feito

atualmente. As relações comerciais comuns também fortaleceria a infraestrutura

compartilhada, gerando intercâmbio de tecnologias e de conhecimento técnico. Traria também

uma maior segurança frente às crises em países desenvolvidos, como as recentes na União

Europeia e nos Estados Unidos, já que haveria uma interdependência comercial menor com

esses mercados.

No campo da política externa, o fortalecimento do bloco promoveria um ganho de

margem de manobra internacional. Um bloco unido tem muito mais poder de representação

em organismos como a OMC e a ONU do que países individuais. Criar-se-ia então a

oportunidade de lutar internacionalmente contra problemas mais característicos da América

do Sul, como o narcotráfico e o desmatamento da Amazônia, além de reformas nos

organismos internacionais para que atendessem melhor às necessidades dos países

subdesenvolvidos.

Para a integração sul-americana ocorrer, Brasil e Argentina devem tomar a frente,

tanto por serem os dois maiores PIBs da região quanto pela sua representação internacional. A

integração, portanto, deve partir destes dois atores internacionais:

25

Todos os governos brasileiros, a partir de 1985, declararam que o ponto cardeal das

relações internacionais do país é o acordo estratégico com a Argentina, afirmação

contida nos textos diplomáticos e nas declarações conjuntas dos chefes de Estado. O

governo Lula da Silva pareceu indicar, com reciprocidade nos governos Duhalde e

Kirchner, não se contentar com um Mercosul intergovernamental, sinalizando

atitude mais favorável “para a elaboração de políticas setoriais comuns e para a

construção de instituições supranacionais” (GUIMARÃES, 1999, p. 128). Os

governos brasileiros afirmam que a Argentina é um ator fundamental para qualquer

processo de integração da região. (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, pp. 311-312)

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lula e Kirchner enfrentaram diversos desafios nos seus mandatos. Enquanto o líder

sindicalista brasileiro teve que afastar a imagem de “esquerdismo radical” que seu partido

trazia, Kirchner subia ao poder tendo a menor margem de votos que um presidente eleito teve

na história da Argentina. Mais do que isso, Lula precisava retomar o crescimento econômico

do Brasil, sem nunca tirar os olhos da vigilância constante à inflação, e o presidente argentino

tinha a missão de reerguer a economia e o orgulho de seu país e seus habitantes.

A fonte da maioria dos problemas de Lula e Kirchner era a fracassada experiência

neoliberal da década anterior. Se o momento histórico pós-Guerra Fria e o aparente

esgotamento das medidas internas desenvolvimentistas indicava como um caminho

consensual a adoção ao neoliberalismo, foi uma opção dos governantes do continente o rumo

que ela tomou.

Os governantes argentinos e brasileiros se acometeram de uma profunda ingenuidade,

que jogou fora uma oportunidade ímpar de se inserir na nova ordem mundial de forma

alinhada com o desenvolvimento interno. Décadas de história diplomática mostraram que o

alinhamento automático com os Estados Unidos não traz um retorno à altura do esforço, assim

como nada supera o risco de entregar a condução da política monetária de um país do porte da

Argentina à superpotência. As privatizações, embora um meio efetivo de aumentar a

competitividade externa e a arrecadação de recursos, não deixam de ser uma escolha cômoda,

pois se dá preferência a deixar na mão do poder privado o que poderia ser feito com reformas

dentro do modelo de gestão adotado pelo governo.

O saldo desta escolha pelo método mais cômodo é a perda de importantes

instrumentos da promoção do desenvolvimento interno, já que o governo não possuía mais

nenhuma condição de alinhar as suas maiores empresas aos seus planos governamentais. Elas

estavam, a partir de então, respondendo às vontades do mercado privado.

26

Todas estas práticas jogaram fora a chance da Argentina e do Brasil entrarem no

mundo globalizado pós - Guerra Fria de uma maneira mais eficaz – e mais adequada ao status

internacional que buscam. Era a oportunidade de se aproveitar das facilidades de transferência

de capital e tecnologia para dar outro passo rumo ao crescimento industrial, agregando valor

aos seus produtos e ao mesmo tempo gerando capacidade interna de manter o crescimento,

com investimentos em logística e educação. Ao invés disso, foi retomado e reforçado o

caminho da exportação de matérias primas e commodities, respondendo à demanda do

mercado externo. Mercado este que não prioriza o desenvolvimento nem o bem-estar de cada

brasileiro e argentino.

Lula e Kirchner, então, tiveram êxito em suas metas mais urgentes. A Argentina

conseguiu sair do fundo do poço e retomar o crescimento, aproveitando para corrigir os

problemas sociais herdados da década passada e se reinserir no contexto internacional,

renegociando e acertando suas contas com o FMI e os credores internacionais. O Brasil

conseguiu manter a inflação controlada, e expandiu seus esforços diplomáticos rumo a um

maior reconhecimento internacional e à diversificação das parcerias estratégicas. Nesses

pontos, ambos os presidentes foram felizes em seus mandatos. Vale ressaltar que no primeiro

mandato de Lula, que é o objeto de análise deste artigo, o crescimento do PIB foi baixo,

mantendo uma média de 3,5% ao ano, ligeiramente acima do segundo mandato de Cardoso e

abaixo de potências emergentes como a Índia e a Rússia (sem citar a China). No segundo

mandato o crescimento subiu, tendo uma média de 4,5% ao ano.

A situação se mostrava favorável para que ambos os governos fortalecessem os laços

da integração bilateral e regional, sendo inclusive colocada como prioridade para o governo

Lula. Não foi o que aconteceu. Foram pontuados neste artigo quatro fatores que ajudam a

explicar este fracasso: a falta de alinhamento econômico, o “estilo K” que definiu a gestão de

Kirchner, a estratégia da autonomia pela diversificação de Lula, e a falta de uma visão e de

uma estratégia regional comum. O último se mostrou como determinante.

De fato, Lula tinha planos de integração na América do Sul, enquanto Kirchner

também procurava aumentar as relações com o Brasil. Mas não passaram de projetos isolados,

quando o que se necessitava no contexto era a criação de estratégias que levassem em conta

tanto os interesses internos quanto uma visão regional comum, de modo a não entrarem em

conflitos políticos e econômicos, e dando assim um componente mais profundo à integração

do que apenas a necessidade econômica da quebra de barreiras alfandegárias.

27

Falando mais especificamente do Brasil, é inegável que o país tenha ganhado uma

projeção internacional muito grande nos dois governos Lula. Ações como o envio de tropas ao

Haiti (2004), a criação dos BRICS (2008), a negociação conjunta com a Turquia e o Irã sobre

o programa nuclear iraniano (2010), entre outros, espalharam pelo mundo a nova postura

diplomática brasileira, mais ativa e multilateral.

Como José Luís Fiori (2013) analisa, o país tem dois caminhos a partir desta segunda

década do segundo milênio. Se seguir as tendências de mercado, se tornará um exportador de

commodities, petróleo e alimentos, acabando por se tornar uma “periferia de luxo” dos

grandes compradores mundiais, como Canadá e Austrália já foram. Este é o caminho mais

fácil para o país, mas neste cenário, dificilmente conseguirá elevar o crescimento de seu PIB,

nem gerará infraestrutura e tecnologias próprias, com o “bônus” de cada vez mais se afastar

de seus vizinhos, pois se fortaleceria como um competidor direto por mercados e

compradores.

O outro caminho, mais difícil, tem a integração regional como chave. Seria seguir o

modelo de economia norte-americano, priorizando a autossuficiência energética, a

manutenção de recursos naturais estratégicos e a combinação de uma indústria forte com uma

agricultura produtiva, sem deixar de lado as commodities. Uma América do Sul unida e livre

de barreiras comerciais poderá oferecer o mercado e a infraestrutura necessária para este

investimento, e o fortalecimento do Mercosul traria ainda mais representatividade

internacional para o país. Dada esta crescente importância internacional, o tamanho de seu

PIB e de sua população, muito do êxito do Mercosul depende da escolha que o Brasil vai

tomar.

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