ensino de física e deficiência visual: dez anos de investigações no brasil

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Ensino de Física e Deficiência visual: Dez anos de investigações no Brasil

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Autor: Dr. Eder Pires de CamargoEditora PlêiadeSão Paulo2008Capítulo I. Posicionamento teórico ............................................ 15I.I. Deficiência visual: um fenômeno social ................ 15I.II. O impacto da visão na cultura .............................. 18I.III. Interpretações ao longo da história ...................... 20I.IV. O mito da escuridão ............................................ 23I.V. A deficiência visual como possível vantagempara o conhecimento de alguns fenômenos físicos ...... 24Capítulo II. Deficiência visual e concepções alternativas ......... 27II.I Concepções alternativas: um breve panorama ....... 27II.II. Algumas características da FísicaAristotélica e da Física do Impetus .............................. 29II.III. Principais Relações entre concepçõesalternativas de pessoas videntes e conceitos daFísica pré-newtoniana .................................................. 32II.IV. Deficiência visual e concepções alternativas:a pesquisa ..................................................................... 35II.V. Concepções alternativas de pessoas cegassobre repouso e movimento: ........................................ 41II.VI. Análise de referenciais observacionais nãovisuais.......................................................................... 55II.VII. Considerações finais ......................................... 70Capítulo III. A formação de professores de física nocontexto das necessidades educacionais de alunos comdeficiência visual ....................................................................... 73III.I. O quadro da formação docente na perspectivada deficiência visual .................................................... 73III.II. A integração, a inclusão e a formação dosprofessores III.III. A inserção da temática da deficiência visualnum curso de formação de professores de física ......... 80

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  • der Pires de Camargo

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    Ensino de Fsica e Deficincia visual: Dez anos de investigaes no Brasil

  • Dedicatria e apresentao

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  • der Pires de Camargo

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    der Pires de Camargo

    Ensino de Fsica e Deficincia visual:

    Dez anos de investigaes no Brasil

    EP Editora Pliade

    So Paulo 2008

  • Copyright 2008Eder Pires de Camargo. Direitos Reservados. Proibida a reproduo, mesmo parcial, e por qualquer

    processo sem autorizao expressa do autor e do editor.

    Capa: Milena Y. Madeira

    Ficha de Catalogao

    Camargo, der Pires de C172e Ensino de Fsica e deficincia visual: dez anos de

    investigaes no Brasil / Eder Pires de Camargo. - So Paulo: Pliade, 2008.

    205 p. ISBN: 978-85-7651-073-4

    1. Fsica Estudo e ensino 2. Educao de deficientes visuais I. Ttulo

    CDU 53 376.3

    (Bibliotecria responsvel: Elenice Yamaguishi Madeira CRB: 8/5033)

    Editora Pliade Rua Apac, 45 Jabaquara

    CEP: 04347-110 So Paulo/SP E-mail: [email protected] Site: www.editorapleiade.com.br

    Fones: (11) 2579-9863 - 2579-9865

    2008

    Impresso no Brasil

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    SUMRIO Dedicatria e apresentao .......................................................... 7 Captulo I. Posicionamento terico ............................................ 15

    I.I. Deficincia visual: um fenmeno social ................ 15 I.II. O impacto da viso na cultura .............................. 18 I.III. Interpretaes ao longo da histria ...................... 20 I.IV. O mito da escurido ............................................ 23 I.V. A deficincia visual como possvel vantagem para o conhecimento de alguns fenmenos fsicos ...... 24

    Captulo II. Deficincia visual e concepes alternativas ......... 27 II.I Concepes alternativas: um breve panorama ....... 27 II.II. Algumas caractersticas da Fsica Aristotlica e da Fsica do Impetus .............................. 29 II.III. Principais Relaes entre concepes alternativas de pessoas videntes e conceitos da Fsica pr-newtoniana .................................................. 32 II.IV. Deficincia visual e concepes alternativas: a pesquisa ..................................................................... 35 II.V. Concepes alternativas de pessoas cegas sobre repouso e movimento: ........................................ 41 II.VI. Anlise de referenciais observacionais no-visuais .......................................................................... 55 II.VII. Consideraes finais ......................................... 70

    Captulo III. A formao de professores de fsica no contexto das necessidades educacionais de alunos com deficincia visual ....................................................................... 73

    III.I. O quadro da formao docente na perspectiva da deficincia visual .................................................... 73 III.II. A integrao, a incluso e a formao dos professores ................................................................... 76 III.III. A insero da temtica da deficincia visual num curso de formao de professores de fsica ......... 80

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    Captulo IV. O planejamento de atividades de ensino de fsica para alunos com e sem deficincia visual: dificuldades e alternativas .............................................................................. 89

    IV. I. Os dados analisados ........................................... 89 IV.II. Categorias para anlise dos planos de ensino e do debate ................................................................... 90 IV.III. Anlise dos dados ............................................. 95 IV.IV. Consideraes finais ....................................... 154

    Captulo V. Proposta para o desenvolvimento de um curso sobre os conceitos de atrito, gravidade e acelerao para alunos com deficincia visual .................................................. 163

    V.I. Modelo para o planejamento e a conduo de atividades de ensino de fsica .................................... 163 V.II. As atividades ..................................................... 165 V.III. Orientaes didticas ....................................... 192

    Referncias Bibliogrficas ....................................................... 195

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    Dedicatria e apresentao Quando me ponho a pensar sobre o que j foi, lembro-

    me de muitas coisas. Lembro-me dos dias alegres recheados por pdios, palcos, gols, moada, violo, serenata, lanchonete, churrasco, piadas. Como me esquecer da infncia em Pereiras, Pederneiras e Lenis Paulista? Como no me lembrar das casas dos avs, Maria Camargo e Enoch, Maria Mineto e Z do Pim, do gravador velho, da oficina, do p de manga, da plantao de mandioca, do ovo caipira, do po caseiro, do doce de goiaba, do leite tirado e tomado ali mesmo no curral, das pescarias com meu pai e com meu tio, das histrias de beira de rio, das cavalgadas?

    Fica difcil mesmo no recordar a baliza 1 que nunca me foi negada nas provas de 200 m e 400 m, do Jura beira da pista gritando "vai" para que o basto me pudesse ser entregue corretamente no quatro por cem, dos treinamentos do Ariel, do velho Cacita, da Lucimara, a garota da farmcia que olhava todos os dias a balana e que hoje minha esposa, meu grande amor, das corridas de So Silvestre de que participei (2000 e 2001), das medalhas, das msicas: "cumbalala cumbalala cumbalala vista" enfim, quantas lembranas!

    Como no sentir saudades dos discos que gravei "A histria que mudou a histria", "Soberano", do pessoal do Aliana Eterna, dos momentos de gravao, do Paulo Campus Junior, das igrejas por onde cantei, e em especial, da Igreja Presbiteriana Independente de Lenis Paulista?

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    Como esquecer e no ser eternamente grato aos meus pais, Elizabete e Elio, por tudo, tudo mesmo que fizeram em meu favor, foram tantos os desabafos que minha me ouviu de minha parte, incontveis os textos escolares que leu para que eu pudesse estudar para as provas, incomensurvel o exemplo de retido demonstrado o tempo todo por meu pai, impagveis os esforos que por eles nunca foram medidos para que a realidade da viso deixasse de ser sonho? Serei sempre grato e admirador de meu irmo Elinho que vive acertando meu computador e mandando por e-mail notcias e informaes sobre o Palmeiras, da Erica que j foi meus olhos e mos lendo artigos e escrevendo toda minha dissertao de mestrado, ditada por mim, de tios como o Saulo Pires que descobriu uma forma de escanear textos sem usar o mouse, o Jos Morelli que vive divulgando para todos as metas que atinjo, o Sacoman e o Leomim que j fizeram dupla sertaneja comigo. Tambm me lembro de todos os outros tios e tias, os tios paternos Jair, o Jairo, o Juliano, a Tunica e a Madalena, a Edna, a Daisy, a Vnia, a Jose e a Maria Antnia, as tias maternas Bel, D e Zinha, e os tios Washington, Claudinei e Lourival, todos muito amigos, todos guardados no fundo do corao. Gostaria de prestar homenagem ao Eder Pires de Camargo, tio falecido que no conheci e que inspirou meus pais a escolherem meu nome.

    De que forma hei de agradecer ao Carlos, sua esposa Sandra e Aline, que a filha do casal, famlia de ouro que abriu a porta de sua casa em MonteMor para que eu me hospedasse enquanto cursava o doutorado na UNICAMP? Carlos, Sandra e Aline, muito obrigado do fundo do corao.

    Como no me sentir um privilegiado, tendo em meu caminho o apoio de pessoas como a Nilce, que a Diretora do Lar Escola Santa Luzia para cegos, do Artiole que d aulas na referida escola e que me ensinou Braile e de todos os seus alunos? Sobre os alunos do Santa Luzia, gostaria de fazer saber que neles observei potencial e capacidade para o desempenho de

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    quaisquer funes tanto cognitivas quanto profissionais. Embora o que lhes tenha restado seja tudo o que possuem, penso ser os locais dos quais foram ausentados os que verdadeiramente perdem. Vocs no tm noo do quanto colaboraram, no apenas com minhas pesquisas, mas com todas as pessoas com deficincia visual que, de uma forma direta ou indireta, viro a ser beneficiadas devido aos resultados por elas produzidos.

    Quando me ponho a pensar sobre o que j foi, lembro-me de muitas coisas. Quantas lembranas difceis me vm mente, o medo de mame acerca de meu futuro, o conforto que minha av dava a ela, a bolinha que no conseguia achar, os diagnsticos errneos de oftalmologistas: Hipermetropia? Astigmatismo? Birra de criana? Retinose Pigmentar? Stargart! As concluses bem-intencionadas e precipitadas de professoras que diziam que eu no sabia ler, enquanto que a verdade era a de que eu estava perdendo a viso, a mudana da ltima para a primeira carteira, depois a necessidade de levantar para copiar a matria, a ajuda de colegas que ditavam as coisas, e, por fim, a ineficincia da viso para ler e escrever. Lembro-me do Cristiano, da Sandra, do Fbio, do Joo, do Estfano, do Jomar, do Srgio, do Marcelo, do Kiko, do Adriano, do Donizete, do Paulo, vocs foram decisivos em minha vida.

    Admiro aqueles que aplicam seu tempo de trabalho e pesquisa no desenvolvimento de tecnologia como a que constitui o programa de computador Virtual Vision. O Virtual Vision um software que foi desenvolvido com a finalidade de tornar a pessoa com deficincia visual apta utilizao do computador em todas as suas funes. Por meio desse software, pude escrever minha tese de doutorado, a pesquisa de ps-doutorado, vrios artigos e o presente livro. Utilizando o referido programa, posso tambm escanear e ler (ouvir) artigos e livros, ou seja, entrar no "universo da informao". Destaco, entretanto, a urgente necessidade da disponibilizao, em formato digital, de textos, livros, etc. Isso evitaria o processo de escaneamento dos

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    textos e, dessa forma, pouparia um grande esforo e tempo da pessoa com deficincia visual.

    Agradeo a todos os funcionrios da Fundao Bradesco de Marlia. Essa instituio me forneceu, por meio de um curso, o ensino do Virtual Vision. Agradeo tambm a todos os colegas que participaram comigo das trs etapas do referido curso.

    Quando me surpreendo a sentir sobre o que vivi, so inmeras as sensaes que me enchem o peito. Sinto o medo que caminhou constantemente ao meu lado, o medo de errar, de ser reprovado na percia mdica, de ser subestimado por diretores de escolas, por alunos, por colegas de servio. Aprendi com a vida que, sob pena de serem excludos, aqueles que possuem alguma deficincia no tm o direito de cometer erros, nem mesmo os erros que aqueles que no tm deficincia cometem. claro que isso apenas um desabafo, como todos, cometo inmeros erros. Apenas gostaria de errar com mais tranqilidade, apenas gostaria que meus erros no fossem atribudos minha baixa viso. evidente tambm que, devido a tal desabafo, eu possa estar generalizando comportamentos de vrios amigos e profissionais que sempre me prestaram todo o apoio. Gostaria de destacar que, em boa parte das vezes, obtive de meus colegas de trabalho, alm desse apoio, compreenso, e pacincia. Na maioria das vezes, fui o praticante dessas aes.

    Quero fazer referncia a todas as escolas que estudei. Ao parquinho Walt Disney e Alice Prenhaca, minha primeira professora, Escola Eliazar Braga, na cidade de Pederneiras, s escolas, Dr. Paulo Zillo e Virglio Capoani, em Lenis Paulista. Nessas escolas, fiz minha formao bsica. Quero mencionar os professores, Carlos Brusnardo, Dorival Tagliatela, Nereci Ceschini, Isabel Cristina Lorenzetti, Ivan Montanholi, Graa Lorenzetti, Anete Biral, Bernadete e Terezinha Carriti, Veide Borim Pacola, Jos Alfredo Corradi, Joaquim Brosco, como pesssoas marcantes em minha trajetria escolar.

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    Como apagar da memria os primeiros exerccios de Fsica e de matemtica que consegui resolver, a fora que o professor de fsica, Guerino Telli Junior, me dava, e os incentivos concedidos pelo Edevar Moretto, meu querido professor de matemtica e de qumica? Edevar e Guerino: lutei muito para ser como vocs. Vocs so meus verdadeiros mestres. Espero ter atingido um pouco dessa meta.

    Gostaria de fazer referncia a todas as escolas em que lecionei: Rubens Pietraria, Virglio Capoani, Fernando Valezi, Joo Batista Ribeiro, Dr. Paulo Zillo, Vera Braga, Antonieta Grassi Malatrasi e Leonina Alves Coneglian. Nessas escolas, ensinei, mas, principalmente, aprendi muito com seus alunos, com professores, diretores e funcionrios, com colegas de profisso e amigos do peito. Alis, foi no Virgilio Capoani que reencontrei Lucimara, meu amor eterno.

    Todos, que considerei, so responsveis por tanta coisa, por minha formao bsica, meu ingresso e egresso no curso de Fsica da UNESP de Bauru, a superao das dificuldades decorrentes desse curso, a ajuda que pude receber e dar a vrios colegas, o nascimento da problemtica do ensino de fsica para alunos com deficincia visual, meu ingresso e egresso no mestrado em educao para a cincia da UNESP de Bauru, e, posteriormente, no doutorado da Faculdade de Educao da UNICAMP. Serei sempre grato ao Professor Doutor Luiz Vicente de Andrade Scalve e ao professor Doutor Dirceu da Silva por me orientarem, respectivamente, no mestrado e doutorado e por acreditarem em minhas idias. Serei sempre grato ao professor Doutor Roberto Nardi, meu supervisor de ps-doutorado. O professor Nardi nunca mediu esforos para que a pesquisa em ensino de cincias se consolidasse, no apenas na regio de Bauru, como em todo o Brasil.

    Gostaria de agradecer os Departamentos de Fsica e Educao da UNESP de Bauru, o programa de Ps-graduao em Educao para a Cincia da Faculdade de Cincias da

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    UNESP de Bauru e o programa de Ps-graduao em Educao da Faculdade de Educao da UNICAMP. Nessas instituies, estudei e me formei como profissional e como ser humano. Agradeo tambm ao Departamento de Fsica e de Qumica da Faculdade de Engenharia da UNESP de Ilha Solteira, instituio que me recebeu de braos abertos e onde leciono e desenvolvo minhas pesquisas. Tambm gostaria de prestar agradecimento Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) que financiou minhas investigaes de mestrado, doutorado e ps-doutorado.

    Dedico o presente livro a todos que citei. Destaco que o referido descreve os principais resultados de minhas pesquisas de mestrado, doutorado e ps-doutorado, realizadas entre os anos de 1997 e 2006. Dessa forma, essa obra representa dez anos de investigao acerca da temtica ensino de fsica e deficincia visual.

    O livro est organizado em cinco captulos. No captulo I, apresento a deficincia visual como um fenmeno social, a influncia da cultura de videntes no ensino, um posicionamento terico sobre o fenmeno da ausncia de viso, e uma possvel vantagem oriunda da cegueira para a compreenso de alguns fenmenos fsicos. O captulo II apresenta os resultados provenientes de minha dissertao de mestrado. Nele, trato o tema das concepes alternativas de pessoas cegas, e abordo alguns referenciais observacionais no-visuais da realidade fsica. Argumento que tais referenciais participam, na construo de conhecimento de todas as pessoas, com ou sem deficincia visual. Os captulos III e IV relatam os principais resultados de minha pesquisa de ps-doutorado. No captulo III, reflito sobre o atual quadro brasileiro da formao de professores de fsica no contexto da deficincia visual; apresento e discuto ainda a questo da incluso escolar e sua implementao prtica e descrevo e sugiro um processo para a formao do docente de fsica em relao a sua atuao em salas

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    de aulas que contemplem alunos com e sem deficincia visual. No captulo IV, relato os resultados provenientes de anlises de planejamentos de atividades de ensino de fsica adequadas, a priori, participao de alunos deficientes visuais e videntes. Esse captulo, portanto, enfatiza as principais dificuldades e alternativas vivenciadas por futuros professores durante o processo de elaborao de atividades inclusivas. Finalmente, o captulo V, oriundo de minha pesquisa de doutorado, descreve procedimentos para a elaborao e conduo de atividades de ensino de fsica em salas de aulas que contenham alunos com e sem deficincia visual. Para tal, apresento cinco atividades, materiais de interfaces ttil e auditiva, e recomendaes ao docente de fsica.

    Espero que o livro promova, entre professores e pesquisadores, uma ampla discusso sobre o ensinar e aprender fsica no apenas no contexto de alunos com deficincia visual, mas de todos os alunos. Entendo que ele pode apontar alternativas de ensino como elaborao de atividades mais inclusivas, conduo de atividades de acordo com uma perspectiva mais colaborativa, bem como, um modelo para a formao docente no contexto da incluso escolar. Acredito que ele exemplifique na prtica maneiras de avaliar o conhecimento distintas das que se fundamentam na classificao, e que desmistifique a dicotomia entre conhecer e ver. Entendo que uma das principais contribuies, que o presente livro pode fornecer, a de considerar amplamente a construo de conceitos fsicos sem a utilizao da viso. Essa construo, portanto, poderia ser muito mais inclusiva, se pensada na perspectiva de outras percepes, as quais colocariam em igualdade de condies observacionais e comunicativas, grande parte dos alunos.

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    Captulo I

    Posicionamento terico

    I.I. Deficincia visual: um fenmeno social A deficincia visual deve ser reconhecida na perspectiva

    orgnica. Negar esse fato negar a existncia de uma caracterstica que, objetivamente, manifesta-se em diferentes formas e em diferentes intensidades nos indivduos. De acordo com a legislao brasileira, considera-se deficiente visual toda pessoa cuja acuidade visual menor que 20/200 percepo de luz, ou seja, aps a correo da viso de seu melhor olho, ela v a menos de 20 metros o que uma pessoa de viso comum pode enxergar a 200 metros - DECRETO NO. 3.298/1999 (BRASIL, 2004). Segundo os dados do senso realizado no ano 2000, existem no Brasil aproximadamente onze milhes de pessoas que possuem algum tipo de deficincia visual (BALERINI, 2002). Trata-se, portanto, de uma modificao do funcionamento do olho, no rara, e que limita ou impede a percepo da luz. As pessoas com deficincia visual no querem negar ou dissimular o fato de que no enxergam. Querem, todavia, conhecer melhor sua deficincia, seus limites e potencialidades. Querem ter acesso ao patrimnio cultural e material. Querem ser respeitadas e no subestimadas. Querem

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    ocupar um espao na vida social, querem ser tratadas com dignidade, acertar, errar, investir, mudar, enfim, exercer direitos e deveres comuns a qualquer individuo.

    A deficincia visual mais que um fenmeno orgnico, sensorial. Ela , definitivamente, um fenmeno social. Manifesta-se, de forma objetiva, pois, a sociedade, em seus contextos, espaos, atitudes, estruturou-se, em razo do padro e do ideal da normalidade, isto , de caractersticas e de procedimentos majoritrios comuns forma dominante de ser, perceber, pensar, atuar, viver. Segundo Omote (1989), as diferentes deficincias tm sido, em larga extenso, abordadas do ponto de vista mdico, que as considera, basicamente, como resultado da presena de algum elemento patognico no organismo. Nessa abordagem, a origem da deficincia visual est na prpria pessoa considerada deficiente. Entretanto, como assinala o mesmo autor, a deficincia um fenmeno muito mais amplo e complexo e no se constitui numa caracterstica inerente ou num atributo exclusivo da pessoa. As condies patolgicas do olho podem ser fontes geradoras de incapacidade nos deficientes visuais, mas o nvel de funcionamento educacional, social, etc. desses indivduos no pode ser compreendido como decorrente exclusiva e automaticamente delas. Essas condies s adquirem o sentido de desvantagem na medida em que os atributos prejudicados sejam considerados importantes para a adequao deles no meio social em que vivem (OMOTE, 1.986).

    Erikson (Apud. OMOTE, 1989) considera que a varivel crtica a problemtica social e no a pessoa reconhecida como deficiente. Nessa perspectiva, a deficincia visual passa a ser uma condio socialmente criada, sobreposta ou no, s condies mdicas incapacitadoras. Como aponta Omote (1996) ao invs de circunscrever uma determinada deficincia nos limites corporais e fsicos, necessrio se faz incluir as reaes que, em ltima instncia, definem algum como deficiente. As

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    reaes apresentadas por pessoas videntes frente a indivduos com deficincia visual no so determinadas exclusivamente nem necessariamente por caractersticas objetivas, mas dependem da interpretao, do julgamento e de valores, fundamentados ou no em crenas que se fazem desse quadro.

    Omote (1.989) enfatiza que as pessoas com deficincia, ainda que portadoras de alguma incapacidade objetivamente definida e constatvel, no constituem excees da normalidade, mas fazem parte integrante e indissocivel da sociedade. A afirmao de Omote vem se coadunar com o discurso oficial dominante que tem afirmado reiteradamente a igualdade social entre todos os cidados. No entanto, essa igualdade de oportunidades, tanto sociais como educacionais, pregada pela legislao, no condiz com a nossa realidade concreta, que, pelo contrrio, mostra um quadro bastante diferente (RAGONESI, 1.988).

    Em se considerando o sujeito como cidado, este deve produzir e usufruir dos bens coletivos tanto materiais como simblicos (cincia, lngua, literatura, arte, condutas, etc.) da sociedade na qual est inserido. Portanto, sendo uma das funes da educao construir a incluso social e com ela o desenvolvimento da cidadania, faz-se necessrio garantir condies para que a democratizao do ensino de qualidade se efetue real e concretamente para todos.

    A Assemblia Geral das Naes Unidas proclamou 1981 o ano Internacional das Pessoas com Deficincia. Com o tema Participao plena e igualdade, um programa de ao mundial relativo a essa parcela da sociedade, permitiria a adoo de medidas eficazes em nvel nacional e internacional para atingir metas de participao plena das pessoas com deficincia na vida social e no desenvolvimento. Entretanto, conforme assinala Mazzotta (1994), preciso reduzir, e, se possvel, eliminar o grande desequilbrio existente entre as garantias legais e recomendaes oficiais a respeito do direito educao e as

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    realizaes que possibilitam o exerccio desse direito. Dessa forma, uma vez proclamados e teorizados os crnicos problemas que envolvem a questo da deficincia, a conjuntura nos impe um desafio que exige mais do que a simples constatao da crise.

    I.II. O impacto da viso na cultura fato inegvel a estreita relao estabelecida

    socialmente entre o ver e o conhecer. Tal relao, embora no entendida objetivamente de uma forma sinnima, , numa sociedade majoritariamente vidente, freqentemente colocada como condio uma da outra. Por exemplo, a etimologia da palavra ver, em sua raiz indo-europia (weid), liga seu significado idia de olhar para tomar conhecimento e para ter conhecimento. Do grego (eido) ver significa observar, examinar, fazer, instruir, instruir-se, informar, conhecer, saber (MAZINE, 1994). O impacto cultural da viso encontra-se presente tambm no uso cotidiano da palavra ver e de seus derivados. Um exemplo pode ser verificado nos significados das expresses lcido e alucinado (ausncia e presena de luz), utilizadas na diferenciao entre as idias de loucura e sanidade. No obstante, freqente o emprego cotidiano do sentido viso em substituio outros sentidos: v como isto brilha, v como isto soa, v como cheira, v como sabe bem, v como duro. Por outro lado, no comum se dizer ouve como brilha, cheira como resplandece, saboreia como reluz, apalpa como cintila (MAZINE, op. Cit.). Nesse contexto, inegvel a existncia de dependncia entre viso e atividades da vida diria, a qual sustenta a relao entre deficincia visual e incapacidade social de pessoas cegas ou com baixa viso, e que foi denominada como cultura de videntes (MAZINE, op. Cit.).

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    Em uma cultura de videntes, natural o estabelecimento de associaes de dependncia entre pensamento e viso, conhecimento e viso, realidade e viso, estudo e viso, trabalho e viso, felicidade e viso, de tal forma que os visualmente impossibilitados so considerados incapazes de exercerem as funes indicadas. A cultura de videntes, por influir nos critrios de acessibilidade, dificulta aos cegos ou com baixa viso a realizao de tarefas cotidianas simples e comuns como tomar um nibus, escolher o que comer em um restaurante, contar dinheiro, ter acesso a informaes, atravessar uma rua, participar das atividades escolares, etc.

    A cultura de videntes evidencia uma concepo de senso comum acerca da deficincia visual, que, longe de ser neutra, normaliza estruturas fsicas e atitudinais inadequadas participao efetiva de pessoas com deficincia visual na vida diria. Existe, portanto, uma representao social da deficincia visual que fundamenta o enquadramento da pessoa cega ou com baixa viso nos contextos da anormalidade e da incapacidade.

    Dois so os referenciais que estruturam as concepes de senso comum acerca da deficincia visual, o mstico e o biolgico. Esses referenciais, apesar de representarem historicamente os primeiros modelos interpretativos da deficincia visual, mostram-se atuais e atuantes. Explicitar, conhecer e superar a compreenso de senso comum acerca da deficincia visual o primeiro passo a ser tomado em direo incluso social dessas pessoas. Por isso, sero analisados na seqncia, os modelos mencionados e uma outra interpretao acerca da deficincia visual, isto , o modelo cientfico ou scio-psicolgico. Essas anlises tero como fundamentao a teoria de Vigotski oriunda da obra O menino cego (VIGOTSKI, 1997). Nessa obra, Vigotski toma como sujeito de anlise a pessoa cega de nascimento. Essa observao importante, pois, a deficincia visual no se resume cegueira congnita. Existem pessoas cegas de nascimento, que perderam a viso ao longo da

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    vida e que possuem baixa viso. Para essas pessoas, a totalidade das idias de Vigotski no pode ser aplicada. I.III. Interpretaes ao longo da histria

    Vigotski trata o fenmeno da deficincia visual em trs etapas: mstica, biolgica, e cientfica ou scio-psicolgica. A etapa mstica engloba a Antigidade, a Idade Mdia e uma grande parte da histria moderna e pode ser caracterizada pela viso mstica, superficial e preconceituosa a respeito do cego. A cegueira associada com infelicidade, invalidez, medo supersticioso e grande respeito. Paralelamente idia de invalidez, aparece a idia de que nos cegos se desenvolvem as foras msticas da alma, como um acesso viso espiritual. , nesse perodo histrico, que surgem as tradies acerca do cego, como o guardio da sabedoria popular, os cantores e os profetas. Homero era cego, e existe na literatura a suposio de que Demcrito se cegou para dedicar-se filosofia. Esse acontecimento serve para exemplificar a relao mstica estabelecida nessa poca entre o dom filosfico e a cegueira.

    Graas a essa tradio, ainda hoje a cultura popular entende o cego como uma pessoa que possui viso interior dotada de conhecimento espiritual, no acessvel a outras pessoas. O cristianismo variou o contedo moral dessa essncia, mas deixou invarivel a prpria essncia e nisso se baseou o dogma principal da Idade Mdia acerca dos cegos, isto , a crena na idia de que para toda classe de sofrimento e privao atribuir-se-ia um valor espiritual, pobreza terrestre - riqueza com Deus, corpo dbil - esprito elevado, aproximao do cego a Deus.

    A etapa biolgica surge a partir do sculo XVIII com uma nova compreenso da cegueira. O misticismo substitudo

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    pela cincia, e o preconceito, por experimentos e estudos. Essa nova fase incorporou o cego ao ensino e ao estudo, e se baseava, na substituio de rgos do sentido, como no caso dos rgos pares rins e pulmes; assim, na ausncia ou no funcionamento de um deles, o outro exerceria suas funes. Lendas fundamentadas em observaes verdadeiras, porm mal interpretadas sobre a agudeza do tato, a super audio, a natureza perfeita que tira com uma mo e d com a outra e a atribuio de um sexto sentido aos cegos, so caracterizadoras dessa etapa.

    Brklen (apud. VIGOTSKI, op. cit.) reuniu alguns autores que desenvolveram uma nova idia frontal j estabelecida: indicavam como um fato irrevogvel que, nos cegos, no existe o desenvolvimento supernormal das funes do tato e da audio, pelo contrrio, com muita freqncia, essas funes se apresentam, nos cegos, menos desenvolvidas do que nos videntes. Fenmenos como o da agudeza ttil, nos cegos, no surgem da compensao fisiolgica direta da deficincia visual, mas sim, de uma via indireta, muito complexa da compensao scio-psicolgica geral. Em outras palavras, o tato ou a audio nunca ensinaro o cego a realmente ver.

    Foi na idade contempornea, aps a superao das vises mstica e biolgica pela psicologia social da personalidade que a Cincia se aproximou do domnio do conhecimento sobre a psicologia da pessoa cega. Tm-se aqui caracterizada a etapa cientfica ou scio-psicolgica. Segundo as palavras de Vigotski, fica evidente a nova linha de abordagem que se segue: Se algum rgo, devido deficincia morfolgica ou funcional, no cumpre seu trabalho, ento o sistema nervoso central e o aparato psquico assumem a tarefa de compensar o funcionamento insuficiente do rgo, criando sobre este ou sobre a funo, uma superestrutura psquica que tem a tendncia de assegurar o organismo no ponto dbil ameaado (VIGOTSKI, 1997).

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    A luta criada entre o indivduo cego para se estabelecer socialmente, poder lev-lo a atingir dois extremos. Um desses extremos, ou seja, a vitria do organismo pela supercompensao, no indica apenas a superao das dificuldades originadas pela deficincia, mas tambm a elevao a um nvel superior de seu prprio desenvolvimento, criando do defeito, uma capacidade; da debilidade, uma fora; da baixa auto-estima, uma alta auto-estima. O segundo extremo o fracasso da supercompensao. Seria ingnuo pensar que qualquer enfermidade termina em xito e que todo defeito se transforma felizmente em um talento; portanto, segundo Vigotski (op. cit.), o fracasso da supercompensao leva vitria total do sentimento de debilidade, ao carter associal da conduta, criao de posies defensivas a partir de sua debilidade, loucura, impossibilidade da personalidade de ter uma vida psquica normal, e neurose.

    A essncia desse novo ponto de vista reside na tendncia da superao do conflito social pela supercompensao por parte do indivduo cego. Essa tendncia est dirigida formao de uma personalidade de pleno valor no aspecto social, isto , a conquista da posio na vida social. Portanto, no o tato nem o ouvido, que se desenvolvem a mais nos indivduos cegos, mas, com a finalidade de vencer o conflito social, toda personalidade abrangida, comeando por seu ncleo interno, com a tendncia de vencer pela supercompensao.

    Com o objetivo de explicitar e de superar a viso ingnua relacionada substituio de funes orgnicas, como, por exemplo, a de que a audio substitui a viso nos cegos, ser apresentada, na seqncia, uma anlise acerca de um mito ainda bastante freqente na sociedade atual, ou seja, o mito da escurido.

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    I.IV. O mito da escurido Contra a opinio comum de que o cego de nascimento se

    sente submergido na escurido devido sua cegueira, alguns psiclogos assinalaram que o mesmo no percebe em absoluto a referida deficincia. Vigotski (op. cit.) afirma que os cegos no percebem a luz da mesma maneira que os que enxergam com os olhos tapados a percebem, isto , eles no sentem e nem experimentam diretamente que no tm viso, portanto, a capacidade para ver a luz tem um significado prtico e pragmtico para o cego e no um significado instintivo-orgnico. Isso significa que o cego sente a deficincia visual de um modo indireto, refletido unicamente nas conseqncias de sua vida em sociedade.

    Leontiev (1988), aponta que embora os conceitos e os fenmenos sensveis estejam inter-relacionados por seus significados, psicologicamente eles so categorias diferentes de conscincia. Essa idia est fundamentada no conceito de funes psicofisiolgicas. O grupo inclui as funes sensoriais, as funes mnemnicas e as funes tnicas. Nenhuma atividade psquica pode ser executada sem o desenvolvimento dessas funes que constituem a base dos correspondentes fenmenos subjetivos de conscincia, isto , sensaes, experincias emocionais, fenmenos sensoriais e a memria, que formam a matria subjetiva, por assim dizer, a riqueza sensvel, o policromismo e a plasticidade da representao do mundo na conscincia humana.

    Portanto, de acordo com Leontiev (op. cit.), se mentalmente excluirmos a funo das cores, a imagem da realidade em nossa conscincia adquirir a palidez de uma fotografia branca e preta. Se bloquearmos a audio, nosso quadro do mundo ser to pobre quanto um filme mudo comparado com o sonoro. Por outro lado, uma pessoa cega de nascimento pode tornar-se cientista e criar uma nova teoria,

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    melhor estruturada, sobre a natureza da luz, embora a experincia sensvel que ela possa ter da luz seja to pequena quanto aquela que uma pessoa vidente tem sobre a velocidade da luz.

    A partir das reflexes apresentadas, afirma-se que ver no condio sine qua non para conhecer. Inclusive, entende-se, por hiptese, que a viso impede o conhecimento pleno de alguns fenmenos fsicos. Essa hiptese ser, na seqncia, discutida por meio da anlise do argumento de que a cegueira nativa contribuiria para a interpretao e conhecimento de fenmenos de fsica moderna e relatividade.

    I.V. A deficincia visual como possvel vantagem para o conhecimento de alguns fenmenos fsicos

    O tema abordado trata de uma suposio que teve origem em um debate realizado por ocasio da 2 reunio tcnica do curso de mestrado em educao para a cincia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Bauru, acerca dos anteprojetos da primeira turma de aprovados no ano de 1997. Durante nossa fala, foi sugerida a hiptese de que pessoas cegas , por no receberem informaes visuais do contexto fsico, poderiam abstrair realidades do ponto de vista quntico e relativstico de uma forma mais adequada que uma pessoa vidente.

    Sabe-se que a mecnica quntica trabalha com fenmenos que ocorrem no nvel das dimenses atmicas e das velocidades prximas da luz. Esses fenmenos no podem ser vistos, j que a viso somente capaz de observar eventos macroscpicos. Ainda, o tratamento probabilstico que o referido modelo apresenta, em suas explicaes, tem gerado discusses filosficas quanto s localizaes espaciais,

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    temporais e energticas da matria. Esse tratamento requer a abstrao de situaes e formatos nunca vistos, mas, constantemente representados, por meio de esquemas visuais.

    Sabe-se tambm que muitos fenmenos concernentes luz no so observveis visualmente. Exemplos: (a) carter dual da luz proposto para explicar o fenmeno fotoeltrico. Esse modelo supe que, em alguns experimentos, a luz deva se comportar como partcula e, em outros, como onda. (b) modelo da velocidade da luz independente do referencial. Afirma que em qualquer referencial, a velocidade da luz de 300000000m/s.

    O conhecimento cientfico metafrico e no representa a realidade objetiva, ontolgica de um determinado fenmeno ou evento (MOREIRA, 1999). Nesse contexto, o ser humano busca, por meio de metforas e de analogias, representar modelos acerca do objeto que pretende conhecer. Com a luz, por exemplo, isso vem ocorrendo, atravs dos anos, sendo que esse objeto tem sido interpretado e relacionado a elementos conhecidos do homem, e de forma especfica, partcula e onda. Muitos foram os debates histricos acerca desse tema, o que culminou na interpretao atual da dualidade partcula/onda para a natureza da luz. Essa interpretao, alm de adequar-se a explicao de fenmenos relacionados luz, torna compreensvel, mentalmente observvel e visualmente representvel um objeto que no pode ser visto, isto , a estrutura que constitui a luz.

    A idia descrita, se aplicada ao contexto educacional, indica que a utilizao de esquemas visuais de fenmenos no observveis visualmente pode representar distores conceituais em relao ao conhecimento e entendimento desses fenmenos. Superar a relao entre conhecer e ver e reconhecer que a viso no pode ser utilizada como pr-requisito para o conhecimento de alguns fenmenos como os de fsica moderna, pode indicar alternativas ao ensino de fsica, as quais enfocaro a deficincia

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    visual no como uma limitao ou necessidade educacional especial, mas como perspectiva auxiliadora para a construo do conhecimento de fsica por parte de todos os alunos.

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    Captulo II Deficincia visual e concepes alternativas

    II.I Concepes alternativas: um breve panorama Sobre as concepes alternativas, desde 1970, um grande

    nmero de estudos, em vrias reas do conhecimento, foi realizado (ECKSTEIN e SHEMESH, 1993). Dentre essas reas, o nmero de estudos sobre concepes em mecnica ganha significativo destaque pela quantidade realizada (MCDERMOTT, 1984; SEBASTI, 1984). Alm disso, tambm estudos sobre conceitos ou reas do conhecimento como calor (MACEDO e SOUSSAN, 1985), eletricidade (VARELA, 1989), ptica (DE LA ROSA et al, 1984; VIENNOT e KAMINSKY, 1991), Biologia (JIMNEZ, 1987), Geologia (GRANDA, 1988), Qumica (FURI, 1986), podem ser encontrados.

    Como decorrncia de tais estudos, houve uma variao na nomenclatura e uma melhor compreenso e interpretao dos referidos conhecimentos prvios. Termos como: "teorias ingnuas" (CARAMAZZA et. al. 1981), "cincia das crianas" (GILBERT et. Al. 1982; OSBORNE e WITTROCK 1983), "concepes alternativas" (DRIVER e EASLEY, 1978),

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    "representaes" (GIORDAN, 1985), entre outros, podem ser encontrados na literatura.

    Para Lochhead e Dufresne, (1989), a necessidade das pessoas em compreender o mundo ao seu redor, produz anlises e interaes sensoriais e sociais, e tais anlises influenciam o surgimento das concepes alternativas. Em outras palavras, todas as pessoas adquirem representaes sobre o mundo que lhes permitem conhecer suas regularidades, tornando-o, dessa forma, mais previsvel e compreensvel. Conforme indica Coll, (1998), as concepes alternativas exibem algumas caractersticas: so construes pessoais, possuem coerncia do ponto de vista pessoal e no do cientfico, so estveis e resistentes mudana, so descobertas nas atividades ou previses, so compartilhadas por outras pessoas e procuram a utilidade mais do que a verdade.

    Em termos educacionais, o conhecimento das concepes alternativas central para os processos de ensino/aprendizagem, j que, toda construo de conhecimento tem por ponto de partida e ancoragem as idias prvias dos aprendizes. Saber o que os alunos conhecem sobre a matria de ensino, alm de trazer tona o aspecto dinmico do conhecimento cientfico, orienta estratgias instrucionais e critrios avaliativos, define metas a serem atingidas e explicita caminhos e obstculos cognitivos.

    Devido relevncia do tema para o ensino de fsica, recentemente, uma nova vertente acerca das investigaes no campo das concepes alternativas surgiu, ou seja, aquela ligada s concepes de pessoas cegas. Esse captulo, originado de uma dissertao de mestrado (CAMARGO, 2000), sintetiza o primeiro estudo realizado no Brasil sobre concepes alternativas em fsica e deficincia visual. Nesse estudo, identificaram-se e analisaram-se as concepes de seis pessoas cegas acerca de movimento e repouso, e estabeleceram-se relaes entre tais concepes e os modelos histricos. Buscou-

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    se tambm, compreender de que maneira a ausncia de viso pode interferir na observao de fenmenos ligados mobilidade dos objetos. Na seqncia, apresenta-se uma breve anlise histrica acerca da compreenso de questes ligadas ao movimento. Posteriormente, ser enfocada especificamente a pesquisa realizada.

    II.II. Algumas caractersticas da Fsica Aristotlica e da Fsica do Impetus

    Muitas das idias propostas por antigos filsofos acerca

    do movimento mostram-se presentes na maneira de pensar de pessoas no peritas em Fsica. Segundo aponta Cohen (1967), a Fsica aristotlica conhecida s vezes como a Fsica do senso comum, porque a espcie de Fsica em que a maioria das pessoas acredita e pela qual se guia intuitivamente, ou a espcie de Fsica que parece interessar e agradar a qualquer indivduo que use sua inteligncia, mas que no tenha aprendido os princpios da dinmica. No obstante, pesquisas na rea de concepes alternativas tm demonstrado que a Fsica de senso comum mantm estreitas relaes com a Fsica aristotlica e/ou com o pensamento medieval do impetus. Como aponta Peduzzi (1996), em termos didticos e tendo em vista a construo do conhecimento do aluno, parece no apenas inevitvel como salutar o estabelecimento de algumas analogias entre a lei de movimento de Aristteles e certas concepes mantidas por estudantes de qualquer grau de escolaridade sobre fora e movimento.

    De acordo com as observaes de Koyr (1991), Aristteles de Estagira (384 - 322 a. C.) tornar-se-ia, durante a segunda Idade Mdia, o representante exclusivo da verdade, a culminncia e a perfeio da natureza humana. Atento observador, suas constataes sobre o que via ocorrer, na Terra

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    e no firmamento, levaram-no a fazer afirmaes sobre a natureza das coisas e a formular um modelo do universo. Props que tal universo deveria ser finito e centralizado na Terra. Separou a Fsica celeste da Fsica terrestre, baseando-se em observaes de fenmenos que ocorriam na Terra e no cu. Associou as mudanas, observadas na Terra, como, alteraes no clima, nascimento e posterior morte dos seres humanos, entre outras, a um mundo imperfeito, corruptvel e sujeito a contnuas modificaes (PEDUZZI, op. Cit.). Ao contrrio da Terra, no cu, Aristteles via a perfeio, a harmonia, e os ciclos repetitivos eram caractersticas eternas (COHEN, op. cit).

    Fatos como estes levaram Aristteles organizao de seu mundo fsico do seguinte modo: a formao do mundo material terrestre era constituda pela mistura de quatro elementos corruptveis bsicos: o elemento terra, o elemento gua, o elemento ar e o elemento fogo. J os corpos celestes seriam constitudos por uma quinta substncia incorruptvel, o ter, um elemento puro, eterno, inaltervel, no sujeito mudana, e, portanto, contrastante com os elementos terrestres (PEDUZZI, op. Cit.). Seu modelo fsico distinguia o movimento como natural (por exemplo, o movimento de corpos celestiais, ou objetos cadentes) e forado (por exemplo, um cavalo que puxa uma carroa, ou o lanamento de uma pedra). Todos os objetos, de acordo com Aristteles, possuem um lugar natural no universo, e o movimento natural a propenso de objetos para se moverem ao seu lugar natural (KOYR, 1986). No entanto, para que ocorra um movimento forado, deve haver um movedor que faz com que o objeto se movimente.

    A Fsica Aristotlica no contm nenhum conceito de ao distncia, e a noo de gravidade literalmente inexistente no sistema aristotlico. O movimento de uma pedra lanada de um precipcio seria explicado, em condies aristotlicas, como devido inicialmente ao de um movedor (a fora aplicada na pedra), uma fora contnua de movimento e

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    o movimento natural descendente da pedra (GARDNER, 1986). O mecanismo da fora responsvel pela manuteno do movimento bastante complexo: o objeto que est em movimento perturba o meio, que, por sua vez, continua a dar-lhe fora provocando, com isso, a continuidade do movimento at que a fora cesse. Tal processo denominado antiperistasis (FRANKLIN, 1978). Quando se movimenta, o projtil passa a ocupar o lugar que antes era preenchido pelo ar que havia a sua frente. Este mesmo ar, por sua vez, flui em torno da pedra para ocupar o espao vazio deixado pela mesma. Com este movimento, o ar impele o objeto para a frente... tal processo imperfeito, e a fora sobre o projtil gradualmente se extingue e ele pra. (PEDUZZI, op. Cit.).

    Os adversrios da dinmica de Aristteles sempre basearam suas crticas justamente ao conceito de antiperistasis, e, como aponta Koyr (1986), a contestao s explicaes aristotlicas aos movimentos contnuos da roda, da pedra, da flecha, se encontra evidenciada em seus crticos, entre os quais se destacam Hiparco, Philoponus a Buridan, Nicolau Oresme e Alberto da Saxnia a Leonardo da Vinci, Benedetti e Galileu. Tal crtica estabelecida inicialmente por Hiparco (sculo II a.C.) e Philoponus (sculo V d.C.) fundamentava-se no conceito de fora impressa (STINNER, 1994) que mais tarde veio a ser denominada de impetus por Jean Buridan (sculo XIV d.C.) (MCCLOSKEY et. al. 1980).

    Buridan tambm foi o responsvel pela formulao definitiva desse conceito: "um movedor, ao colocar um corpo em movimento, deixa impresso nele um certo impetus, um certo poder capaz de provocar-lhe mudanas na direo que o movedor imprimir, ou seja, para cima, para baixo, lateralmente, ou em crculo. Pela mesma quantia que o movedor move o corpo, o poder do impetus impresso nele. por esse impetus que a pedra movida depois do lanador deixar de mov-la, mas, por causa da resistncia do ar e da gravidade da pedra que

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    a inclina ao entrar numa direo oposta quela que o impetus tende a mov-la, este impetus se torna continuamente debilitado. Ento o movimento da pedra se tornar continuamente mais lento at que o comprimento do impetus se torne to diminudo ou destrudo que a gravidade da pedra prevalea sobre ele, movendo a pedra para baixo para seu lugar natural." (MCCLOSKEY et. al. Op. Cit.).

    Apesar da teoria de impetus ter continuado fiel ao princpio aristotlico de que fora constante produz velocidade constante, fato que esse princpio representou um avano conceitual sobre o movimento de objetos em relao s idias propostas por Aristteles, j que, de acordo com essa teoria, o meio passa a ter um papel apenas de resistncia ao movimento, e no mais responsvel pela continuidade do mesmo. (PIAGET e GARCIA, 1982).

    II.III. Principais Relaes entre concepes alternativas de pessoas videntes e conceitos da Fsica pr-newtoniana

    Como apontam os estudos de Clement (1979), Minstrell (1982), Watts (1983), Gardner (1986), h uma tendncia de ocorrer convergncias entre conceitos pr-newtonianos e concepes alternativas de pessoas videntes acerca do repouso e do movimento dos objetos. Tais concepes, so, segundo McCloskey, et. al. (1980), to antigas quanto as idias de Aristteles e da fsica medieval do Impetus. Essas concepes, incompatveis com as teorias cientficas vigentes, no so enganos arbitrrios ou triviais, pois surgem de experincias pessoais. Alm disso, elas foram intensamente defendidas pelos principais intelectuais da fase pr-newtoniana. Se a superao das vises de mundo, desde Aristteles at Galileu representou

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    significativo obstculo, na histria da Cincia, no deveria haver, por parte dos educadores, surpresas no reconhecimento de que tal superao representa grande barreira para os estudantes (LEMEIGNAN e WEIL-BARRAIS, 1994). Dessa forma, apresentar-se-, na seqncia, uma sntese da relao entre o pensamento pr-newtoniano e concepes alternativas de pessoas videntes (HALLOUN e HESTENES, 1985).

    1) O movimento causado pela ao de uma fora aplicada ao objeto por um agente externo ou pela ao da gravidade, que pode ser compreendida como uma propenso de cair intrnseca do objeto.

    2) O movimento mantido por uma ao contnua de uma fora ou gravidade, ou por uma fora interna ao objeto (impetus).

    3) Os fatores que se opem ao movimento podem ser descritos como sendo resistncia intrnseca (peso ou massa) do objeto, resistncia do meio que o envolve, bem como obstculos em geral. Cabe lembrar que no h distino por parte das concepes de pessoas videntes entre peso e massa.

    4) A terceira lei de Newton se mostra incompatvel com as concepes de pessoas videntes. Quando dois objetos de massas consideravelmente diferentes colidem entre si, o de maior massa exerce uma maior fora no de menor massa.

    5) Existem duas analogias para o princpio de soma vetorial. A primeira refere-se determinao do sentido do movimento de um objeto que sofre ao de foras paralelas, ou seja, o sentido do movimento determinado pelo sentido da maior fora que age no objeto, isso, considerando, claro, que o objeto sofre ao de foras de mesma direo e sentidos opostos. A segunda analogia refere-se determinao da direo e sentido do movimento de um objeto que sofre a ao de foras no paralelas. Neste caso, a direo e o sentido do movimento do objeto, so determinados por uma espcie de "meio termo" das foras aplicadas nele.

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    6) Uma fora aplicada sinnimo de empurrar ou puxar. Para algumas pessoas, apenas seres vivos so reconhecidos como agentes de fora.

    7) O efeito de uma fora aplicada est comumente caracterizado pelos princpios causais seguintes:

    - Uma fora no pode mover um objeto a menos que seja maior que o peso do objeto (peso no distinto de massa).

    - Uma fora constante produz uma velocidade constante. - Acelerao se deve ao de uma fora crescente. - O efeito de uma fora constante limitado e depende

    de sua magnitude. Tal limitao pode ser descrita de dois modos:

    a) a fora se extingue devido ao seu consumo pelo movimento ou sua dissipao por agentes resistivos. b) Uma fora F, acelera um objeto at que ele atinja uma certa velocidade crtica proporcional a F que o objeto mantm independente da fora estar sendo ou no aplicada.

    - Uma fora de longo alcance (ao distncia) deve ser transmitida por uma corda que conecta o objeto ao agente. Foras de longo alcance no podem agir em objetos que estejam localizados no vcuo.

    8) Uma fora interna ou impetus mantm o movimento de objetos independentemente de agentes externos.

    Segundo Clement (1982), existe um consenso entre estudantes videntes de que h uma fora na mesma direo do movimento de um objeto. Nos itens 9, 10 e 11, essa idia apresentada.

    9) Um impetus pode ser fornecido ao objeto, pela ao de uma fora externa, alm de poder ser transmitido de um objeto para outro.

    10) O impetus de um objeto proporcional sua massa e velocidade como expresso na equao (F = mv).

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    11) O conceito de impetus pode ser semelhante ao conceito de uma fora externa aplicada.

    12) A resistncia se ope a uma fora aplicada, ou consome o impetus de um objeto em movimento. Os tipos seguintes de resistncia, no so geralmente distintos.

    a) Inrcia (peso ou massa) uma resistncia intrnseca do objeto ao movimento. b) Frico devido ao contato entre o objeto e uma superfcie slida

    c) A resistncia em um fluido, depende da densidade desse fluido, como tambm, do tamanho, da forma e do peso do objeto.

    13) Obstculos podem redirecionar ou interromper um movimento, mas no podem ser agentes de fora.

    14) A gravidade encarada como uma propenso que os objetos tm para cair. De acordo com essa concepo, a gravidade no necessariamente entendida como uma fora, no entanto, os princpios causais para foras aplicadas relacionados acima, podem tambm ser atribudos gravidade.

    15) Quanto maior o peso (massa) de um objeto, maior ser sua velocidade de queda.

    Na seqncia, apresenta-se a metodologia utilizada na realizao da investigao aqui exposta.

    II.IV. Deficincia visual e concepes alternativas: a pesquisa

    A realizao de entrevistas mostrou-se um instrumento

    fundamental para a constituio dos dados. A liberdade de percurso desse instrumento de obteno de informaes est associada mais especificamente entrevista semi-estruturada, que se desenrolou a partir de um esquema bsico, porm no aplicado rigidamente junto ao grupo de deficientes visuais,

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    permitindo que fossem feitas as necessrias correes, esclarecimentos e adaptaes (BOGDAN e BIKLEN, 1994). Durante a elaborao das questes, utilizou-se um roteiro que guiou a entrevista atravs dos tpicos principais a serem cobertos. Esse roteiro seguiu uma certa ordem lgica, ou seja, os assuntos foram abordados dos mais simples aos mais complexos.

    Cada entrevistado foi colocado mediante quatro situaes-problema, sendo que, dentro de cada situao, eram feitas questes que tinham por objetivo traz-los reflexo de ocasies voltadas ao movimento dos objetos. Procurou-se conversar com os sujeitos, por meio da utilizao de expresses no tcnicas, evitando, dessa forma, o emprego de termos como fora, gravidade, presso, etc. No caso de o sujeito se referir a um desses termos, aproveitava-se para question-lo sobre seu significado, e, a partir disso, passava-se a us-lo ou no. Outros objetos de explorao eram os exemplos que livremente os sujeitos expunham em suas explicaes, sendo que a maioria deles foram extremamente teis para anlise.

    Dessa forma, a pesquisa realizada se efetivou seguindo um plano de trabalho, dividido em 04 etapas, listadas a seguir:

    ETAPA 01 - Seleo dos sujeitos:

    Participaram da pesquisa adultos cegos de nascimento, ou que perderam a viso na infncia, e que no possuam deficincia mental e/ou auditiva. Cabe ressaltar que todos os sujeitos eram alunos da instituio Lar Escola Santa Luzia para Cegos, localizada na cidade de Bauru, Estado de So Paulo. Em 1999, havia, nessa instituio, vinte e cinco alunos, sendo que desses, seis se enquadraram nos critrios estabelecidos acima, e os outros dezenove no apresentavam as caractersticas necessrias para a pesquisa. Dos seis sujeitos selecionados, quatro eram cegos de nascimento, e dois perderam totalmente a

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    viso na infncia, at os cinco anos. Na seqncia, encontram-se disponveis algumas caractersticas peculiares de cada sujeito:

    Sujeito 1: cego de nascimento, 38 anos, cursou o ensino fundamental e mdio em escola pblica, e era, na ocasio, universitrio e cursava o segundo ano de Fisioterapia.

    Sujeito 2: cego de nascimento, 42 anos, concluiu o ensino fundamental em escola pblica.

    Sujeito 3: cego de nascimento, 16 anos, na ocasio era estudante da primeira srie do ensino mdio em escola particular.

    Sujeito 4: perdeu totalmente a viso aos trs anos de idade, 23 anos, concluiu o ensino fundamental em escola pblica.

    Sujeito 5: perdeu totalmente a viso aos cinco anos de idade, 32 anos, freqentou a escola regular pblica at a 5 srie.

    Sujeito 6: cego de nascimento, 45 anos, nunca cursou a escola pblica regular, vindo a ser alfabetizado na prpria instituio "Lar Escola Santa Luzia".

    ETAPA 02 - Elaborao do questionrio e realizao das entrevistas:

    Nessa etapa, quatro questes-problema abertas foram abordadas, sendo que, a partir de cada questo, se estabeleceu um dilogo com o entrevistado, onde sub-questes elaboradas previamente e/ou extradas de artigos especializados em concepes alternativas, e exemplos propostos pelos sujeitos foram enfocados.

    Situao 1- Repouso dos objetos:

    1- O que faz o livro ficar em repouso sobre a mesa? 2- Coloca-se um livro sobre a mo esticada do sujeito.

    Coloca-se mais de um livro na mo esticada do sujeito. O que voc fez para que o livro permanecesse parado sobre sua mo?

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    Para voc, o que fora? Voc acha que a mesa poderia exercer uma fora no livro? (MINSTRELL, 1982).

    Situao 2 - Movimento horizontal dos objetos:

    1- Com as mos, aplica-se ao livro uma fora paralela ao plano: O que acontecer quando no houver mais o contato entre a mo e o livro?

    2- Por que os objetos se movem? 3- Voc precisa empurrar ou puxar um objeto para que

    ele se movimente sempre com a mesma velocidade? 4- Por que alguns objetos continuam se movendo por um

    certo tempo depois de voc ter deixado de empurr-los? 5- Por que objetos param de se mover? 6- Se voc empurra um livro e uma bola de metal com a

    mesma fora, qual ir mais longe? Por qu? 7- Poderia existir uma situao em que um objeto em

    movimento, continuasse em movimento, com a mesma velocidade, embora no haja nada empurrando-o ou puxando-o? (LOCHHEAD e DUFRESNE, 1989)

    Situao 3 - Queda dos objetos:

    1- Voc tem em suas mos uma pedra. O que acontecer se voc abandon-la? Por qu? E se voc lan-la para cima?

    2- Por que objetos caem? 3- Se voc joga uma pedra para cima, o que acontece

    com ela? Por qu? 4- Voc tem em suas mos uma esfera de metal e uma

    folha de papel aberta. Se voc abandon-las da mesma altura, quem chegar primeiro ao solo? Por qu? (HISE, 1988)

    5- Imagine que do alto de um prdio de 50 andares, so abandonados, no mesmo instante, dois objetos. Um deles uma grande pedra de uma tonelada, e o outro, uma pequena pedra de um quilograma. Qual deles chegar primeiro ao solo? Por qu? (ROBIN e OHLSSON, 1989 ).

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    6- Lembra-se da questo 3.4 (folha de papel aberta e esfera de metal)? Imagine agora que a folha de papel esteja amassada de tal forma que parea com uma esfera. Qual das duas chegar primeiro ao solo se forem abandonadas no mesmo instante e da mesma altura? Por qu?

    Situao 4 - Trajetria dos objetos:

    1- Considere um tubo cilndrico no encurvado colocado sobre uma mesa horizontal. Coloca-se dentro do tubo uma esfera rgida de metal cujo dimetro apenas um pouco menor do que o dimetro do tubo, a fim de que possa se mover livremente dentro dele. Voc empurra a esfera. Qual ser o caminho percorrido por ela aps abandonar o tubo?

    2- Considere agora que o tubo seja encurvado. Qual ser o caminho descrito pela esfera ao abandonar o tubo? 3- Voc prende uma esfera a um fio rgido e a gira sobre sua cabea. Explique qual ser o caminho descrito pela esfera se voc soltar o fio (MCCLOSKEY, et. al., op. cit.).

    A anlise das respostas fornecidas pelos deficientes visuais a tais questionamentos procurou no desprezar qualquer manifestao (oral ou gesticulada), pois estas poderiam apresentar dados indispensveis no que se refere s concepes alternativas. Por isso, o registro das entrevistas, em fitas de vdeo, tornou-se fundamental no processo.

    ETAPA 03 - Identificao das idias dos sujeitos:

    Esta etapa se caracterizou pela transcrio das entrevistas. Cada linha, no ato da transcrio, foi enumerada a fim de uma melhor localizao de idias fornecidas pelos sujeitos sobre os temas j citados. Define-se por idias dos sujeitos, trechos extrados do texto transcrito que, de acordo com a interpretao do pesquisador, fornecem informaes sobre como o sujeito compreende questes relacionadas ao tema pesquisado (ROBIN e OHLSSON, op. cit.). As idias foram

  • Cap. II Deficincia visual e concepes alternativas

    40

    caracterizadas pela numerao das linhas do referido texto. importante ressaltar que a totalidade das idias dos sujeitos no est aqui explicitada, pois sua disposio ocuparia um grande espao. Foram utilizadas as siglas Cn para identificar a concepo alternativa n, Sk para identificar o sujeito k, e E para identificar o entrevistador (autor do livro). ETAPA 04 - Interpretao e generalizao das idias:

    Nessa etapa, as idias dos sujeitos foram interpretadas de acordo com semelhanas conceituais. Em seguida, as mesmas foram agrupadas em termos de concepes alternativas. Em outras palavras, uma concepo alternativa resultou do agrupamento de idias do mesmo e/ou de outros sujeitos, que possuam, de acordo com a interpretao do pesquisador, a mesma caracterstica conceitual. Por meio do procedimento descrito, eliminaram-se os erros e ambigidades extremamente comuns na linguagem falada e pde-se relacionar e generalizar o mesmo tipo de caracterstica conceitual expressa nas idias do grupo de sujeitos.

    Dessa forma, para S1 identificaram-se cento e duas idias que foram interpretadas e agrupadas em dezoito concepes alternativas. Para S2 o nmero de idias foi de noventa e sete, interpretadas e agrupadas em vinte e cinco concepes. Para S3 esses nmeros foram de setenta e duas idias e vinte e duas concepes. J para S4 obtiveram-se sessenta e duas idias e vinte e uma concepes. Para S5 o nmero de idias foi de cinqenta e seis, e o de concepes, vinte. Finalmente, para S6 obtiveram-se sessenta e duas idias e catorze concepes alternativas.

    Os fragmentos abaixo exemplificam como vrias idias do mesmo e de diferentes sujeitos foram interpretadas e agrupadas como sendo a concepo alternativa C1. O mesmo procedimento foi adotado para a identificao das quarenta e sete concepes alternativas (totalidade das concepes).

  • der Pires de Camargo

    41

    S1: Repouso quando a gente coloca um objeto sobre um lugar e o deixa sem mexer nele. S1: Exatamente, no mexer. Est paradinho ai, quietinho. S2: Ele est em repouso, ele est deitado sobre a mesa. S2: Repouso uma posio inerte, parada. S2: Parado contrrio dos movimentos. S3: Parado o que permanece no mesmo lugar. E: Por que ele parou? S4: Porque ele parou de se movimentar. S5: Ele est parado, deitado sobre a mesa. E: Por que voc acha que o livro fica parado sobre a mesa? S6: Porque no tem jeito de andar C1 - Um objeto encontra-se em repouso quando est

    parado em um determinado local e sem que ningum ou alguma coisa o empurre ou o puxe, ou mexa com ele.

    II.V. Concepes alternativas de pessoas cegas sobre repouso e movimento:

    Portanto, as quarenta e sete concepes alternativas

    identificadas encontram-se explicitadas na seqncia: C1 Um objeto encontra-se em repouso quando est

    parado em um determinado local e sem que ningum ou alguma coisa o empurre ou o puxe, ou mexa com ele.

    C2 Pelo fato do livro ser um objeto que no possui vida, ele no sair do lugar em que se encontra a menos que algum ou alguma coisa o leve para onde deseja.

    C3 Objetos sem vida, como a mesa, no exercem foras no livro; ela apenas serve de obstculo para que o livro no chegue ao cho.).

    C4 Quando eu seguro o livro com as minhas mos ele no cai, porque eu, ser vivo, exero uma fora com o meu brao que suficiente para impedir a queda do livro.

    C5 Existem vrias naturezas de foras, como, por exemplo, a fora humana e a energia eltrica.

  • Cap. II Deficincia visual e concepes alternativas

    42

    C6 Os objetos se movimentam devido ao de uma fora, e esse movimento se dar na mesma direo e sentido da fora.

    C7 Um objeto deixar de se mover quando a fora deixar de ser aplicada sobre ele.

    C8 A velocidade constante aquela que permanece sempre a mesma.

    C9 Alguns objetos, como um carrinho de frico ou uma bola, continuam se movendo mesmo sem haver contato entre eles e o movedor (aquele que os colocou em movimento), pelo fato de que o movedor lhes transmite uma fora que responsvel pela continuao do movimento, e esse movimento se dar at que a fora cesse.

    C10 O motivo pelo qual objetos, como a bola, se movem mesmo sem o contato com o movedor, e outros como o livro no, devido ao seu formato, seu peso, ou seu material.

    C11 Os objetos pesados caem, e os objetos leves vo para cima, porque natural que seja assim.

    C12 O peso ou gravidade leva naturalmente os objetos pesados para baixo.

    C13 Objetos mais pesados caem mais rapidamente que objetos leves.

    C14 O formato dos objetos no influencia em sua massa. Exemplo: folha de papel aberta e folha de papel amassada.

    C15 A folha de papel amassada mais pesada que a folha de papel aberta, ou seja, o formato interfere no peso dos objetos.

    C16 O formato de um cano interfere na trajetria de uma esfera aps esta t-lo abandonado.

    C17 Dependendo do valor da fora aplicada na bolinha, ela poder descrever trajetrias encurvadas, ao abandonar o cano reto, ou retilnea, ao abandonar o cano torto.

  • der Pires de Camargo

    43

    C18 A velocidade tangencial de uma esfera que gira amarrada a um barbante no influencia em sua trajetria quando esta solta, ou quando o barbante se rompe, a trajetria desta esfera ser retilnea na vertical e de cima para baixo.

    C19 Fora ou energia algo que os seres vivos so capazes de fazer ou exercer para impedir que um objeto chegue ao cho, ou para mudar um objeto do lugar, empurrando-o ou puxando-o.

    C20 A altura que um objeto atinge, quando lanado para cima, depende da fora do lanador.

    C21 - Se uma bola e uma pedra forem atiradas numa piscina com gua, a pedra afundar, e a bola no, pelo fato de a pedra ser mais pesada que a gua, e a bola, no.

    C22 Velocidade est relacionada com distncia e tempo.

    C23 impossvel que um objeto se mova sempre com a mesma velocidade se alguma coisa no pux-lo ou empurr-lo.

    C24 O motivo pelo qual uma bolinha de ao vai mais longe que uma bolinha de isopor, pelo fato de a bolinha de ao ser mais lisa do que a de isopor.

    C25 o fato da superfcie de contato com o objeto que se move ser lisa ou spera, influencia na durao do movimento e na distncia percorrida.

    C26 Os objetos mais leves chegam primeiro ao solo, porque mais fcil para a gravidade empurr-los para baixo.

    C27 O ar empurra as coisas para baixo. C28 Uma bolinha, ao abandonar o cano reto ou torto,

    ter uma trajetria aleatria, pois no h nada que a faa permanecer em linha reta.

    C29 A trajetria de uma esfera que, aps se desprender de um barbante que a fazia girar, circular e na vertical de cima para baixo.

  • Cap. II Deficincia visual e concepes alternativas

    44

    C30 Seres vivos, exceto os que possuem algum defeito fsico, como paralisia, movimentam-se com suas prprias foras.

    C31 Objeto sem vida s se movimentam devido ao de uma fora externa.

    C32 Velocidade e fora so coisas parecidas. C33 Se no existisse a gravidade, os objetos iriam

    subir. C34 A gravidade uma fora do ar. C35 A gravidade no age em objetos como pssaro ou

    avio. C36 A folha de papel amassada mais leve que a folha

    de papel aberta. C37 Uma bolinha que est girando amarrada a um

    barbante cair um pouco pra frente quando for solta. C38 A Terra como um m que atrai para si os

    objetos distncia. C39 - A folha de papel aberta e a folha de papel

    amassada tm o mesmo peso. C40 O formato de objetos de mesma massa influencia

    no tempo de queda. C41 Na Terra as coisas caem, no espao, flutuam. C42 No espao, ao contrrio da Terra, os objetos se

    repelem, como ms de mesma polaridade, prximos. C43 O formato do cano no interfere na trajetria de

    uma esfera quando esta o abandona. Sua trajetria ser sempre retilnea.

    C44 A bola e a folha de papel aberta, cairo juntas, quando soltas da mesma altura ao mesmo tempo.

    C45 Fora e energia so a mesma coisa. C46 Quando um objeto lanado para cima, durante a

    subida, sua velocidade aumenta de tal forma que, quando ele retorna ao lugar de onde saiu, sua velocidade muito maior do que quando foi lanado.

  • der Pires de Camargo

    45

    C47 A gravidade como uma fora que empurra os objetos de cima para baixo.

    Verificou-se importante relao entre as concepes e o nmero de sujeitos que as expressaram. Por muitas ocasies, cada sujeito sugeria exemplos de situaes diferentes de outro, o que resultou na especificidade e na diversidade de concepes. Por outro lado, obteve-se um conjunto de concepes comuns a todos os sujeitos ou a um grupo deles, j que, as questes aplicadas foram as mesmas, e, conseqentemente, o tema em discusso girou em torno do mesmo assunto. A tabela 1 apresenta a relao discutida. Tabela 1: Relaciona as concepes com o grupo de sujeitos que as expressaram Concepes expressas por todos os sujeitos C2, C3, C4, C6, C7, C9, C10, C11

    Concepes expressas por todos os sujeitos com exceo de um

    C1 (exceo de S4), C13 (exceo de S6), C19 (exceo de S1)

    Concepes expressas por todos os sujeitos com exceo de dois

    C12 (exceo de S3 e S5) e C16 (exceo de S5 e S6),

    Concepes expressas por trs sujeitos

    C15 (S1, S2 e S3), C22 (S2, S3 e S5), C23 (S2, S3 e S5) e C26 (S3, S5 e S6)

    Concepes expressas por dois sujeitos

    C5 (S1 e S2), C8 (S1 e S2), C14 (S1 e S3), C17 (S1 e S2), C18 (S1 e S2), C20 (S2 e S4) e C43 (S5 e S6)

    Concepes expressas por um sujeito

    C21 (S2), C24 (S3), C25 (S3), C27 (S3), C28 (S3), C29 (S3), C30 (S4), C31 (S4), C32, (S4), C33 (S4), C34 (S4), C35 (S4), C36 (S4), C37 (S4), C38 (S5), C39 (S5), C40 (S5), C41 (S5), C42 (S5), C44 (S6), C45 (S2), C46 (S2) e C47 (S2).

  • Cap. II Deficincia visual e concepes alternativas

    46

    Observando a tabela 1, pode-se notar que h um determinado grupo de concepes comum a todos os sujeitos, outros grupos comuns a cinco deles, quatro deles, comuns a trs deles, comuns a dois sujeitos e concepes que foram expressas individualmente. O fato de as questes e do tema abordado serem os mesmos no justifica a semelhana de concepes encontradas para todos os sujeitos ou para um grupo deles. Tanto nas entrevistas realizadas, bem como, no dilogo que foi estabelecido com cada sujeito, e mesmo na diversidade de exemplos de situaes de movimento, por muitas vezes, as explicaes utilizadas pelos entrevistados, assemelhavam-se aos modelos aristotlico e de impetus. A tabela 2 explicita a relao entre as concepes diagnosticadas e os modelos mencionados.

    Tabela 2: Relaciona as Concepes com as teorias aristotlicas e do impetus Concepes que so concordantes com a teoria aristotlica de movimento

    C1, C2, C3, C4, C6, C7, C10, C11, C12, C13, C19, C20, C21, C23, C25, C31, C40.

    Concepes que so concordantes com a teoria do impetus

    C9, C16, C29.

    Concepes parcialmente aristotlicas C24, C27, C30, C37, C41, C46, C47.

    Concepes que so discordantes da teoria aristotlica de movimento

    C26, C32, C33, C38, C44.

    Concepes que so discor-dantes da teoria do impetus C17, C18, C43.

    Concepes que no possuem conexo com a teoria aristotlica e/ou com a teoria do impetus

    C5, C15, C28, C34, C35, C36, C42.

    Concepes gerais C8, C14, C22, C39, C45.

  • der Pires de Camargo

    47

    Os critrios utilizados para o enquadramento das concepes nas categorias da tabela 2 so os seguintes:

    Concepes aristotlicas: so aquelas que obedecem a dois princpios: (1) a manuteno de qualquer movimento deve-se ao permanente contato entre o objeto que se move e seu movedor (movimento forado); (2) princpio que explica a queda de objetos slidos (movimento natural). De acordo com este segundo princpio, h uma tendncia natural entre objetos slidos ( formados pelo elemento Terra) ocuparem seu lugar natural de descanso que o centro do Universo (PEDUZZI, op. Cit.).

    Concepes de Impetus: so concepes que se assemelham teoria de fora impressa desenvolvida na Idade Mdia, inicialmente, por Philoponus (sculo V), e, posteriormente, por Buridan (sculo XIV) (ROBIN e OHLSSON, op. Cit.).

    Concepes parcialmente aristotlicas: so aquelas que obedecem, de forma parcial, aos princpios aristotlicos de movimento, no entanto, utilizam elementos como o ar ou a gravidade como movedores ou ento, apiam-se em princpios no aristotlicos. Exemplos: (1) durante o movimento ascendente de uma bola, sua velocidade aumenta; (2) num lanamento vertical, de cima para baixo, a velocidade de chegada de um objeto superior sua velocidade de partida.

    Concepes discordantes do modelo aristotlico: so aquelas que discordam dos princpios de Lugar Natural e de Movimento Forado.

    Concepes discordantes da teoria do impetus: enquadraram-se, nesta categoria, principalmente as concepes que eram discordantes da teoria de impetus circular, especificamente as que se referem trajetria de uma esfera que gira amarrada a um barbante, ou que abandona canos.

  • Cap. II Deficincia visual e concepes alternativas

    48

    Concepes sem conexo: essas concepes no mantm qualquer analogia ao modelo aristotlico de movimento e/ou ao conceito medieval de impetus.

    Concepes gerais: so concepes que no podem ser categorizadas como aristotlicas ou de impetus, pois se referem a conceitos de velocidade ou de relao massa/formato.

    Das quarenta e sete concepes identificadas, dezessete so concordantes com o modelo aristotlico de movimento, sete so parcialmente concordantes com esse modelo e trs so concordantes com o modelo do impetus; cinco concepes so discordantes do modelo aristotlico, trs so discordantes do modelo do impetus, sete no mantm conexo com esses modelos e cinco so concepes gerais por se tratarem de noes de velocidade e da relao massa/formato. Das vinte e sete concepes que fazem parte do grupo das aristotlicas, impetus ou parcialmente aristotlicas, oito foram expressas por todos os sujeitos, trs, por cinco sujeitos, e duas, por quatro sujeitos. Uma concepo foi expressa por um grupo de trs sujeitos, uma outra por um grupo de dois, e doze foram expressas individualmente. A tabela 3 mostra um panorama geral da relao do grupo de sujeitos com as caractersticas de suas concepes alternativas.

  • der Pires de Camargo

    49

    Con

    cep

    es

    gera

    is C22

    C8,

    C14

    C39

    , C45

    Con

    cep

    es

    sem

    co

    nex

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    m e

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    oria

    s C15

    C5

    C28

    , C34

    , C

    35, C

    36,

    C42

    Dis

    cord

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    a te

    oria

    do

    Impe

    tus

    C17

    , C18

    , C

    43

    Dis

    cord

    ante

    s da

    teor

    ia

    Aris

    tot

    lica

    C26

    C32

    , C33

    , C

    38, C

    44

    Con

    cep

    es

    Parc

    ialm

    ent

    e Aris

    tot

    licas

    C24

    , C27

    , C

    30, C

    37,

    C41

    , C46

    , C47

    Impe

    tus

    C9

    C16

    C29

    Con

    cep

    es

    Aris

    tot

    licas

    C2,

    C3,

    C4,

    C6,

    C7,

    C10

    , C

    11

    C1,

    C13

    , C19

    C12

    C23

    C20

    ,

    C21

    , C25

    , C31

    , C

    40

    Todo

    s os

    suje

    itos

    Gru

    po d

    e ci

    nco

    suje

    itos

    Gru

    po d

    e qu

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    su

    jeito

    s G

    rupo

    de

    trs

    suje

    itos

    Gru

    po d

    e do

    is

    suje

    itos

    Um

    su

    jeito

    Tabe

    la 3

    - R

    ela

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    gru

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    e su

    jeito

    s e c

    arac

    ters

    ticas

    das

    con

    cep

    es

  • Cap. II Deficincia visual e concepes alternativas

    50

    Cabe observar na tabela 3 a relao entre os grupos de sujeitos e as categorias de concepes por eles expressas. Os grupos todos os sujeitos, cinco sujeitos e quatro sujeitos, sem exceo, expressaram concepes aristotlicas, parcialmente aristotlicas e de impetus. As concepes dos grupos de trs e dois sujeitos e dos grupos unitrios foram verificadas em maior proporo junto s categorias aristotlicas, parcialmente aristotlicas e de impetus. Com exceo de S4 e S5, que perderam a viso, respectivamente, aos trs e cinco anos de idade, todos os outros eram cegos de nascimento, e, portanto, o grupo de experincias sensoriais que essas pessoas mantiveram com o mundo fsico nunca teve participao da percepo visual. Como se nota, apesar da ausncia total do estmulo viso, e, conseqentemente, da ausncia de experincias visuais, existia uma semelhana conceitual em seus dilogos ou explicaes para o repouso, movimento, queda e trajetria dos objetos. As noes de que h a necessidade de uma fora de contato ou impressa para a manuteno do movimento e de que a queda dos objetos algo natural, so comuns e possuem, para o grupo de deficientes visuais, "valor" extremamente relevante.

    As concepes que so discordantes ou que no mantm conexo com o modelo aristotlico e/ou de impetus, foram encontradas entre os seis sujeitos, entretanto, destacaram-se por serem comuns a grupos menores (grupos de trs e de dois sujeitos) e tambm para grupos unitrios. Essas concepes, geralmente, referiam-se a situaes particulares de cada sujeito (exemplos: andar de avio, explicaes do professor sobre problemas fsicos). Na tabela 4, encontra-se a relao entre cada sujeito e seu respectivo grupo de concepes.

  • der Pires de Camargo

    51

    Tabela 4: Relao entre cada sujeito com seu respectivo grupo de concepes Sujeitos Grupo de concepes

    S1 C1, C2, C3, C4, C5, C6, C7, C8, C9, C10, C11, C12, C13, C14, C15, C16, C17 e C18

    S2 C1, C2, C3, C4, C5, C6, C7, C8, C9, C10, C11, C12, C13, C15, C16, C17, C18, C19, C20, C21, C22, C 23, C45, C46 e C47

    S3 C1, C2, C3, C4, C6, C7, C9, C10, C11, C13, C14, C15, C16, C19, C22, C 23, C24, C25, C26, C27, C28 e C29

    S4 C2, C3, C4, C6, C7, C9, C10, C11, C12, C13, C16, C19, C20, C 30, C31, C32, C33, C34, C35, C36 e C37

    S5 C1, C2, C3, C4, C6, C7, C9, C10, C11, C13, C19, C22, C 23, C26, C38, C39, C40, C41, C42 e C43

    S6 C1, C2, C3, C4, C6, C7, C9, C10, C11, C12, C19, C26, C43 e C44

    Como evidenciado na tabela 4, cada sujeito expressou

    em mdia vinte concepes que podem ser analisadas em termos quantitativos da maneira explicitada na tabela 5:

  • Cap. II Deficincia visual e concepes alternativas

    52

    Tabela 5: Explicita quantitativamente as concepes obtidas.

    Suje

    itos

    Car

    acte

    rstic

    a de

    sua

    defic

    inc

    ia

    Nm

    ero

    de

    conc

    ep

    es

    iden

    tific

    adas

    Aris

    tot

    licas

    Impe

    tus

    Parc

    ialm

    ente

    ar

    isto

    tlic

    as

    Dis

    cord

    ante

    s da

    teor

    ia

    aris

    tot

    lica

    Dis

    cord

    ante

    s da

    teor

    ia d

    e im

    petu

    s

    Sem

    con

    exo

    Ger

    ais

    S1

    Cego de nascen-a

    18 10 2 2 2 2

    S2

    Cego de nascen-a

    25 14 2 2 2 2 3

    S3

    Cego de nascen-a

    22 12 3 2 1 2 2

    S4

    Perdeu a viso aos trs anos.

    21 12 2 2 2 3

    S5

    Perdeu a viso aos cinco anos.

    20 12 1 1 2 1 1 2

    S6

    Cego de nascen-a

    14 10 1 2 1

    Como pode ser observado na tabela 5, as concepes

    plenamente e parcialmente aristotlica e de impetus so majoritrias entre os sujeitos. Para S1, aproximadamente 67% de suas concepes pertencem ao grupo de conceitos aristotlicos,

  • der Pires de Camargo

    53

    parcialmente aristotlicos e de impetus; para S2, esse nmero de 64%, j S3 apresenta um percentual de 77,3%, S4 76,2%; S5, 70% e S6, 78,6%.

    Embora os modelos aristotlico e de impetus representem a estrutura conceitual dos deficientes visuais, em algumas ocasies eles expressaram concepes que eram discordantes desses modelos. S1 e S2 apresentaram concepes concordantes e discordantes do modelo de impetus; S3 e S4 apresentaram concepes concordantes e discordantes do modelo aristotlico, e S5 e S6 apresentaram concepes concordantes e discordantes desses modelos. Essas concepes minoritrias referem-se a noes de trajetrias de esferas (C17, C18 e C43) e a noes de queda de objetos ou de fora e velocidade (C26, C32, C33, C38 e C44).

    Na tabela 6, agruparam-se as concepes em funo do paradigma aristotlico de movimento. Considera-se como paradigma aristotlico os princpios de movimento forado e natural. O movimento forado ser subdividido nos casos em que o movente uma entidade material objetivamente existente, ou imaterial (impetus). Dessa forma, assume-se que o modelo de impetus, encontra-se contido no paradigma aristotlico, ou seja, aquele estruturado na idia de movimento enquanto processo. Essa idia exige a influncia de uma entidade, mesmo que imaterial, para a manuteno do movimento. A idia mencionada somente foi superada pela teoria newtoniana que interpretou o movimento enquanto estado.

  • Cap. II Deficincia visual e concepes alternativas

    54

    Tabela 6: Relaciona as concepes com o paradigma aristotlico de movimento.

    Movimento Forado

    Objetos que se movem mantendo o contato com o seu movedor

    C6, C7, C19, C23, C27, C31, C47.

    Objetos que se movem sem contato com o movedor (impetus)

    C9, C10, C16, C24, C25, C29, C30, C40.

    Movimento Natural

    C1, C2, C3, C4, C11, C12, C13, C18, C20, C21, C29, C37, C40, C41, C46.

    Como mostra a tabela 6, das quarenta e sete concepes

    identificadas, quinze (aproximadamente 32%) seguem o princpio aristotlico de Movimento Forado, e outras quinze (aproximadamente 32%) obedecem ao princpio aristotlico de Movimento Natural. Isso implica dizer que, aproximadamente 64% das concepes obtidas, obedecem ao paradigma aristotlico de Movimento.

    As concepes de que a todo movimento associa-se uma fora e de que um objeto cai, pois cair algo natural, representam a base conceitual do grupo de deficientes visuais entrevistados. Nesse sentido, verificou-se que suas concepes so semelhantes s dos videntes o que significa dizer que, se uma pessoa nasce cega, a percepo das experincias cotidianas relacionadas ao repouso e ao movimento no obtida por meio do estmulo visual, mas sim, por meio da influncia de outros sentidos e de interaes sociais. Em outras palavras. A ausncia de viso, apesar de trazer limitaes observacionais, no finaliza as experincias que levam uma pessoa a construir explicaes e modelos de fenmenos relacionados ao repouso e ao movimento dos objetos.

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    Conforme assinala Vigotski (1997 ), para o cego, a conscincia de no enxergar tem um significado social e no sensorial. Assim, os demais sentidos no proporcionam para essas pessoas caractersticas da realidade que so fornecidas exclusivamente pela viso. Nesse contexto, como explicar a semelhana entre as concepes dos deficientes visuais e dos videntes? Reconhecendo a multiplicidade de significados sensoriais associados aos fenmenos do repouso e do movimento e que as percepes no-visuais participam diretamente na construo de concepes alternativas acerca desses fenmenos.

    II.VI. Anlise de referenciais observacionais no-visuais

    Com o objetivo de explicitar algumas experincias no-

    visuais que atuam como referencial observacional para pessoas cegas, sero apresentados e analisados na seqncia, trechos de dilogos extrados das entrevistas dos deficientes visuais.

    Lanamento de objetos

    Sobre este tema, destacaram-se quatro trechos das entrevistas de S1, S4 e S6. O primeiro refere-se s explicaes fornecidas por S1 para a trajetria de uma pena lanada para frente, e o segundo, para o movimento de uma bexiga de gs hlio. O terceiro e quarto trechos descrevem declaraes de S4 e S6 acerca do lanamento vertical de uma bola.

    Trecho 1

    S1: Se a gente jogar uma pena, ela no vai voar para baixo, ela vai voar para cima, ela leve. E: Voc acha que a pena vai voar para cima? S1: Vai.

  • Cap. II Deficincia visual e concepes alternativas

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    Neste trecho, identificou-se uma concepo semelhante ao modelo aristotlico de Lugar Natural aplicada por S1 ao movimento da pena. Essa concepo, localizada no fragmento: Se a gente jogar uma pena, ela no vai voar para baixo, ela vai voar para cima, ela leve, foi construda por S1 independentemente de quaisquer estmulos visuais (S1 nasceu cego). A afirmao de S1 parece refletir uma generalizao do princpio aristotlico de Lugar Natural. Em outras palavras, possvel que para S1, a pena, embora slida, represente, por sua leveza, o oposto de objetos pesados e, portanto, deva subir.

    Trecho 2

    E: Na sua opinio, natural as coisas carem para baixo? S1: Quando mais pesado, sim. E: Mais pesado do que quem? S1: Mais pesado que o ar que faz a fora que empurra ela. E: O ar, na sua opinio, empurra as coisas para cima ou para baixo? S1: Depende do peso do objeto. E: Depende do peso. No caso da bexiga? S1: Para cima. E: No caso da bola? S1: Para baixo. Neste segundo trecho, tambm se identificaram

    explicaes de S1 que se assemelham ao modelo aristotlico de lugar natural. possvel que, ao comparar os movimentos da bola e da pena, S1 tenha associado peso com intensidade do som do choque da bola com o cho, e leveza com a ausncia de som proveniente de um choque no verificado entre a bexiga de gs hlio e o cho.

    Entende-se que a construo da concepo semelhante ao princpio de lugar natural influenciada por percepes no-visuais como a auditiva (intensidade do som resultante do

  • der Pires de Camargo

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    choque de objetos com o solo) e a ttil (segurar um balo cheio de gs hlio, carregar algo pesado, subir e descer rampas, etc)

    Os trechos seqentes, extrados, respectivamente, das entrevistas de S4 e S6, referem-se ao experimento de lanar uma bola verticalmente para cima.

    Trecho 3

    E: Antes de comear a cair, ela vai at onde? S4: No tem aonde ir. E: Voc acha que ela sobe uma altura mxima? S4: No, no tem altura mxima, nem nada. Altura mxima, se fosse aqui, aqui se jogar aqui, tem altura mxima (teto). S4 parece no saber descrever o que ocorre efetivamente

    com uma bola quando a mesma abandona a mo de quem a lanou. No claro para ele que a bola sobe, atinge uma altura mxima e volta. O que ele sabe, que ela volta, pois ouve o impacto da queda. Sabe tambm que, se a bola for lanada em uma sala fechada, ela bater no teto e depois retornar ao solo.

    J S6, como poder ser observado no trecho seqente, apresenta uma descrio melhor estruturada do experimento do lanamento vertical. Faz tambm uma suposio acerca do que ocorre quando a bola atinge a altura mxima.

    Trecho 4

    E: Se voc jogar a bola pra cima, o que acontece? S6: Ela vai bater no teto e vai voltar. E: E se no tem o teto? S6: Ela vai pra cima e vai voltar no cho. E: Por que ela volta? S6: Se jogar pra cima, no tem lugar pra ela ficar l em cima, ela volta. E: Se voc jogar pra cima, por que ela sobe? S6: Porque ela tem que subir.

  • Cap. II Deficincia visual e concepes alternativas

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    Na descrio do experimento do lanamento vertical da bola, possvel notar os referenciais observacionais adotados por S4 e S6, ou seja, o ttil e o auditivo. O que eles observam, efetivamente, so os seguintes eventos no-visuais: (a) No incio do movimento, a bola encontra-se nas mos do lanador (observao ttil); (b) Assim que lanada, deixa o lanador de senti-la (observao ttil); ( c ) Na hiptese de o lanador encontrar-se num local aberto, a bola, ao retornar, poder cair sobre ele (observao ttil, ou diretamente no solo (observao auditiva). (d) Na hiptese de encontrar-se num local fechado, o lanador receber a informao adicional proveniente do choque da bola com o teto (observao auditiva). Esse evento lhe informar que a bola encontra-se acima de sua cabea.

    Comparando os eventos da pena e da bola, apresentam-se as concluses seguintes: S1 no tinha certeza do que ocorreria com a pena quando ela abandonava sua mo, pois lhe faltavam informaes tteis e auditivas acerca do movimento do objeto mencionado. Nesse sentido, sua descrio fundamentava-se na comparao entre o movimento da pena e de objetos leves por ele observados (exemplo o movimento da be