ensaios sobre a américa portuguesa

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Ensaios sobrea América Portuguesa

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Ensaios sobrea América Portuguesa

ORGANIZADORES:

Carla Mary S. OliveiraMozart Vergetti de Menezes

Regina Célia Gonçalves

PREFÁCIO DE

Adriana Romeiro

João Pessoa - PB2009

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Copyright © 2009 - OrganizadoresISBN 978-85-7745-403-7

Capa, Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Carla Mary S. Oliveira

Ilustração da Capa: America, desenho atribuído a Marten de Vos, c. 1600;pena e nanquim sobre papel; ø 12,5 cm.

Acervo: The University of Michigan Museum of Art, Dearborn, EUA.

Contato com os autores: <[email protected]>

Impresso no Brasil - Printed in Brazil

Efetuado o Depósito Legal na Biblioteca Nacional,conforme a Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

É proibida a reprodução total ou parcial,de qualquer forma ou por qualquer meio.

A violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998)é crime estabelecido no artigo 184 do Código Penal.

Dados de Catalogação na PublicaçãoBiblioteca Central - UFPB - Universidade Federal da Paraíba

E59 Ensaios sobre a América portuguesa/

Carla Mary da Silva Oliveira; Mozart Vergetti de Menezes;

Regina Célia Gonçalves (organizadores). - João Pessoa:

Editora Universitária/ UFPB, 2009.

ISBN 978-85-7745-403-7

206 p.: il. - inclui notas.

1. Brasil - História - Período Colonial. I. Oliveira, Carla Mary S.

II. Menezes, Mozart Vergetti de. III. Gonçalves, Regina Célia.

UFPB / BC CDU 981

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SUMÁRIO

Apresentação ....................................................................................................................... 7

Prefácio ................................................................................................................................. 9Adriana Romeiro

Jesuítas e missões: representações das fronteiras na Capitania do Rio Grande ..... 23Maria Emilia Monteiro Porto

Povos indígenas no período do domínio holandês:uma análise dos documentos tupis (1630-1656) ........................................................... 39Regina Célia Gonçalves, Halisson Seabra Cardoso e João Paulo C. R. Pereira

Vidal de Negreiros: um homem do Atlântico no século XVII .....................................53Ângelo Emílio da Silva Pessoa

Festa e memória da elite açucareira no século XVII: a Ação de Graçaspela Restauração da Capitania de Pernambuco contra os holandeses ..................... 67Kalina Vanderlei Silva

Patrimônio, territorialidade, jurisdição e conflito na Américaportuguesa: Pernambuco, século XVIII .......................................................................... 81George F. Cabral de Souza

Capitães Mores das ordenanças de índios: novos interlocutores nasvilas de índios da Capitania do Rio Grande .................................................................... 97Fátima Martins Lopes

Contatos, conflitos e redução: trajetórias de povos indígenas e índiosaldeados na Capitania da Paraíba durante o século XVIII ........................................... 115Ricardo Pinto de Medeiros

Celebrando a monarquia nos extremos da América portuguesa:Natal e a Colônia do Sacramento no século XVIII ........................................................ 131Paulo César Possamai

Alegoria e status na Paraíba colonial: o forro da Casa de Oraçõesdos Terceiros no Convento de Santo Antônio ............................................................. 149Carla Mary S. Oliveira

Ilustração, população e circuitos mercantis:a Capitania da Paraíba na virada do século XVIII ........................................................... 161Mozart Vergetti de Menezes e Yamê Galdino de Paiva

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O comércio colonial e suas relações complementares:Santos, Bahia e Pernambuco, 1765-1822 .......................................................................... 181Denise A. Soares de Moura

A oficina dos ritos: artífices no Arsenal de Guerra de Pernambuco ....................... 197Acácio José Lopes Catarino

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ntregamos agora ao leitor não apenas um livro: Ensaios sobrea América Portuguesa representa um projeto coletivo regional,pois reúne textos de historiadores que vêm se articulando,desde 2005, no intuito de estabelecer uma rede de pesquisaentre os grupos vinculados aos programas de pós graduação

em História das Universidade Federais da Paraíba, do Rio Grande do Norte ede Pernambuco e que se dedicam ao universo de Clio delimitado pelosséculos XVI e XVIII no Novo Mundo.

As dif iculdades inerentes a este tipo de intercâmbio vêm sendosuperadas cotidianamente, e desde o início se compreendeu que havia anecessidade de ampliar os contatos entre os profissionais e estudantesdedicados a este campo e tornar visível a produção destes grupos depesquisa, o que se concretizou, inicialmente, através da organização do IEncontro Nordestino de História Colonial, realizado em João Pessoa, emsetembro de 2006. O evento e seus resultados extrapolaramsignificativamente as perspectivas iniciais, contando com a participação depesquisadores de todo o Brasil e também de Portugal e de Cabo Verde.Com o II Encontro Internacional de História Colonial, realizado em Natal emsetembro de 2008, esse caráter ampliado se consolidou, e mais uma vez asexpectativas superaram, em muito, o que se imaginava para o evento.

Esta coletânea vem a público no momento em que nos preparamospara a realização do III Encontro Internacional de História Colonial, em Recife,em setembro de 2010. É um livro que resulta não só destes contatos, trocase articulações acadêmicas que vimos consolidando nos últimos quatro anos,mas que também aponta para a expressiva ampliação das possibilidadespara o estabelecimento de uma rede de pesquisa de alcance nacional nocampo da História Colonial, com seu foco estabelecido na região queconstituía as antigas Capitanias do Norte do Estado do Brasil, fato significativono cenário da historiografia brasileira contemporânea. Além disso, o projetode cooperação acadêmica recentemente estabelecido entre os programasde pós graduação em História da Universidade Federal da Paraíba e daUniversidade Federal de Minas Gerais, com financiamento da Capes e quese estenderá até 2012, permitiu que convidássemos a professora AdrianaRomeiro para participar desta publicação, abrindo-a com seu prefácio.

APRESENTAÇÃO

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Desse modo, leitor, esperamos que os ensaios aqui apresentados seconstituam não como um ponto de chegada, mas sim numa partida paravoos mais altos e instigantes, tanto para os pesquisadores que osapresentam, como também para a rede de grupos de pesquisa que estamosconsolidando entre Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco.

Os organizadores.João Pessoa, novembro de 2009.

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PREFÁCIO

a multiplicidade dos temas abordados – que vão desde as festas barrocasem Pernambuco, no século XVII, até as representações sobre a fronteira,na Paraíba colonial, passando pelo papel do porto de Santos no comércioentre o centro-sul e as capitanias do Norte entre fins do século XVIII e iníciodo XIX –, é possível acompanhar os contornos da verdadeira revoluçãohistoriográfica em curso, cujos impactos e consequências ainda estão porestudar.

Uma série de fatores confluiu para propiciar essa espécie de tempoforte que a historiografia brasileira vive hoje. A explosão dos objetos deestudo, seguindo a trilha inaugurada pela Escola dos Annales, teve entrenós uma repercussão extraordinária, coincidindo com a consolidação dosProgramas de Pós-Graduação junto às Universidades brasileiras e aconsequente multiplicação do contingente de pesquisadores, acelerandoo processo de expansão dos temas de estudo, em curso desde a década de70. As novas gerações lançaram-se com vigor ao estudo de aspectos atéentão desconhecidos da história colonial, subvertendo as hierarquiastradicionais sobre os gêneros, interessando-se tanto pelo domínio doimaginário e da cultura quanto pelas minúcias mais áridas do funcionamentodas instituições políticas, promovendo a renovação da biografia e o retornotriunfante da história econômica, revigorada, sobretudo, nas últimasdécadas.

No Brasil, a explosão dos objetos não acarretou, como apontam os críticosda Escola dos Annales, a fragmentação da história, vítima da multiplicaçãodesordenada das áreas de interesse, da especialização excessiva e dadesarticulação dos tempos históricos, degenerando numa historiografiaalheia à percepção do todo. Sob este aspecto, é bem singular a trajetória dahistoriografia brasileira: se conquistamos um olhar mais afeito ao particulare ao local, não é menos verdade que o conceito de império, inspirado naclássica obra de C. R. Boxer e na tradição da historiografia anglosaxônica,

presente livro reúne um conjunto de ensaios que abordamdiferentes aspectos da história das capitanias do Norte, entreos séculos XVI e XIX, proporcionando, ao mesmo tempo, umexcelente panorama das principais tendências teóricas emetodológicas vigentes na atual historiografia brasileira. Sob

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privilegiou o estudo das conexões do mundo colonial com uma entidademais ampla.

Longe da noção de um Império homogêneo e sistêmico, como se Macaue Salvador, por exemplo, pudessem constituir experiências de colonizaçãosimilares, o que está em jogo é, sobretudo, a dinâmica da circulação devalores, práticas e homens numa unidade mais vasta, em que as histórias seconectam, as regiões se articulam, as experiências se acumulam. A “vogado Império”, tomando de empréstimo a expressão de Laura de Mello eSouza, oferece-nos uma espécie de imenso ponto de fuga, a partir do qualse redimensiona a nossa perspectiva histórica. Para além das possibilidadesde uma história comparada, capaz de articular realidades tão distantes,como o Oriente e a América, a perspectiva do Império colocou em evidênciaas simetrias e assimetrias, privilegiando as relações entre o centro e aperiferia, o global e o local, a conjuntura e o evento, alterandosignificativamente as temporalidades de nossos temas de pesquisa, namedida em que a própria experiência do local é inseparável da experiênciaglobal tecida em escala imperial.

A par da dimensão imperial, os novos estudos incidem sobre o peso dasmentalidades do Antigo Regime na organização das sociedades coloniais,colocando em relevo os elementos comuns entre a Europa e as conquistasultramarinas. A percepção da existência de realidades comuns em todo oImpério português, aproximando as regiões mais afastadas por meio deinstituições administrativas, comerciais e políticas, não estava ausente natradição historiográfica que se estabeleceu a partir de meados do séculoXX. Autores da estirpe de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyrededicaram toda uma vida ao estudo do nosso legado português, de umaperspectiva inovadora, posto que sensível aos complexos culturais quemediaram o processo de transplantação da cultura ibérica nos trópicos:valores e práticas políticas, religiosas e econômicas confluíram para aconstrução de uma América portuguesa – ainda que não completamenteportuguesa.

Um dos principais efeitos da retomada do conceito de Império dizrespeito, sem dúvida, à natureza das relações entre colônia e metrópole.As interpretações tradicionais tenderam a reforçar o jogo das dicotomias,tributárias das tradições historiográficas que, ainda no século XIX, nocontexto de afirmação da nação brasileira, haviam estabelecido o axiomado conflito essencial entre o centro e a periferia, separados de formairreconciliável por interesses contraditórios. A fórmula “colônia vs.metrópole” assumiu diferentes conotações desde então, instrumentalizadano bojo de interpretações teóricas radicalmente opostas, aproximandohistoriadores nativistas de pensadores marxistas, orientados pelo parti pristeórico segundo o qual o conflito não só perpassava todas as esferas da

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vida cotidiana, mas organizava a própria sociedade.A dimensão imperial subverteu o princípio do antagonismo. Uma série

de estudos apontou para a lógica particular das sociedades de AntigoRegime, estruturadas em torno da economia do dom, nas quais o poder sedistribuía em cadeias, desdobrando-se da figura do monarca em direçãoaos vassalos, fragmentando-se em complexas redes clientelares. À imagemclássica de uma monarquia absolutista, constituída por um podercentralizado que a tudo abarcava, num movimento centrípeto, sobrepôs-se a imagem de uma monarquia descentralizada, permeada por múltiplospoderes que, organizados em cadeia, se estendiam até os rincões maisdistantes do Império, aproximando homens, emaranhando interessespúblicos e privados, imiscuindo-se nas práticas políticas e econômicas. Oimpério do político sobre todas as esferas da existência, característicaprincipal destas sociedades, impôs-se também sobre a economia, submetidaaos privilégios, às mercês e aos dons que mediavam as relações entre oshomens. Tal configuração política não só permitiu a formação de eliteslocais, encasteladas nos cargos, postos e instituições da administração, aexemplo das câmaras, mas também a fusão dos interesses metropolitanosaos interesses destas elites, que souberam explorar as possibilidades deenriquecimento, instrumentalizando-o para galgar posições sociais maisdestacadas. As teses tradicionais sobre a opressão da metrópole sobre seusvassalos ultramarinos, ancorada no conceito de Pacto Colonial, foramrechaçadas e substituídas pela imagem de elites integradas à Metrópole eao Império, inseridas nos valores e práticas do Antigo Regime, no interiordos quais construíram um espaço de diálogo e também de confronto.

É bem verdade que, muitas vezes, os historiadores têm se mostradomais afeitos à perspectiva da identidade entre colônia e metrópole do queàs rupturas reveladoras do conflito, tendendo, de forma inadvertida, acontemplar o vasto e vário Império português sob uma ótica excessivamenteidealizada, pouco compatível com a visão realista de seus administradores,que jamais se deixaram iludir pela fantasia de um Império perfeitamentecentrado em Lisboa, como uma projeção fiel das formulações ali elaboradas.Se hoje é possível constatar a existência de uma identidade comum entrecolônia e metrópole, sua construção não foi, porém, pacífica, implicandoum processo mediado tanto pela acomodação e negociação, quanto peloconfronto e ruptura.

O revival da história política nos últimos anos orientou-se pelainvestigação sobre as formas de exercício e reprodução do podermetropolitano – entendido na sua acepção mais ampla e não meramentepolítica – , focalizando os mecanismos através dos quais o mundo ibérico seprojetou nas conquistas ultramarinas. No emaranhado das redes que sedisseminavam a partir de Portugal, circulavam - em múltiplas rotas e caminhos

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– mercadorias, homens, idéias e práticas, veículos privilegiados de difusãodas mentalidades ibéricas, tais como a instituição das câmaras, as festaspúblicas, o comércio, as manifestações artísticas e as devoções católicas.Nenhum mecanismo, contudo, teve tanta importância na constituição deuma identidade comum quanto a lógica da sociedade portuguesa do AntigoRegime, fundada na economia do dom, nos privilégios e nas hierarquias.Tal configuração social estaria na origem, segundo alguns autores, não sóda reprodução da sociedade do Antigo Regime nos trópicos, mas da relativaunidade do Império, todo ele sedimentado e alicerçado em torno da difusãodestes valores.

A guinada historiográfica dos últimos anos parece derivar de ummovimento pendular: depois de uma longa tradição baseada noantagonismo irreconciliável entre colônia e metrópole, as novas tendênciastendem a privilegiar as conexões e as convergências, revelando opçõesteóricas que são históricas também, posto que inseparáveis do presente.Talvez um dos maiores desafios que se impõem ao historiador, em nossosdias, seja perscrutar, para além de uma identidade comum e da imagem deum Império mais ou menos coeso, a dimensão dos conflitos que perpassaramo seu processo de constituição, desvelando as tensões entre a periferia e ocentro, entre o local e o global, e – por que não ? – entre a colônia e ametrópole. A zona cinzenta, situada entre as projeções ideológicas e asinjunções da realidade histórica, é o locus privilegiado para a compreensãoda complexidade da obra de colonização em todo o Império. Ao historiadorcabe indagar, por exemplo, como os poderes locais se impuseram frente àautoridade da Coroa, construindo um espaço de negociação efetiva; comoos valores do Antigo Regime foram subvertidos na cultura política dospotentados; como os antagonismos entre os modelos europeus e aspopulações indígenas se processaram nas regiões de fronteira; indagar,enfim, sobre os processos envolvidos na constituição de uma sociedadecolonial e escravista, em muito diferente das sociedades européias da ÉpocaModerna, malgrado o peso da herança ibérica.

Os ensaios que se seguem iluminam diferentes aspectos desta sociedade,propondo novas interpretações e leituras, inspiradas nas atuais tendênciashistoriográficas, com as quais mantêm um diálogo fecundo e original. Emconjunto, todos eles ensejam um esforço de revisão da historiografiatradicional, apoiando-se numa sistemática pesquisa de fontes e emsofisticados referenciais teóricos.

A problemática do comércio e seu papel como fator de articulação entreas diferentes regiões do Império, aproximando centro e periferia atravésde suas redes e circuitos, encontra-se aqui contemplada por dois ensaios.O primeiro, sob o título “Ilustração, população e circuitos mercantis: aCapitania da Paraíba na virada do século XVIII”, de autoria de Mozart Vergetti

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de Menezes e Yamê Galdino de Paiva, oferece um estudo da dinâmicaeconômica, na capitania da Paraíba, entre os fins do século XVIII e primeirosanos do XIX, relativizando as teses tradicionais sobre o isolamento da região.Com base em mapas de importação e exportação, fruto do trabalho decapitães mores ilustrados, os autores desvelam um cenário caracterizadopelo vigor da agricultura e da pecuária, inserido nos circuitos mercantis quese estendiam até o Rio Grande do Norte, o Ceará e Pernambuco, contextoonde o porto da Paraíba ocupava um importante papel de escoamento daprodução local. Dessa forma, os sertões da Paraíba conectavam-se aosprincipais portos das capitanias do Norte, ao contrário da tradicional imagemde atraso econômico, indicando uma economia vigorosa, com grandespotencialidades de crescimento, principalmente alavancado pela agriculturae pecuária.

Em chave interpretativa semelhante, Denise A. Soares de Mourainvestiga, no ensaio “O comércio colonial e suas relações complementares:Santos, Bahia e Pernambuco”, os circuitos mercantis entre o centro-sul eas capitanias da Bahia e Pernambuco, no período entre 1765 e 1822,mostrando a integração dessas regiões com Portugal e os principais centrosmercantis europeus, sobretudo depois da abertura dos portos em 1808. Deacordo com a autora, o porto de Santos desempenhou um papel importantenas relações mercantis complementares entre o centro-sul e as capitaniasdo norte, sobretudo na distribuição das mercadorias européias, asiáticas eindianas para a região centro-oeste do Brasil. Na nova conjuntura política, avila de Santos consolida-se como porto exportador e importador, sobretudode gêneros alimentícios, essenciais ao abastecimento interno de regiõescomo Minas Gerais, atuando como uma praça comercial complementar àdo Rio de Janeiro.

É também sob a perspectiva da circulação e articulação que o gênerobiográfico está aqui representado, no ensaio “Vidal de Negreiros: umhomem do Atlântico no século XVII”, de Ângelo Emilio da Silva Pessoa.Ultrapassando os limites da biografia convencional, o autor, inspirado nosrecentes estudos sobre a trajetória dos funcionários administrativos nouniverso ultramarino, elege uma personagem a um só tempo atípica e típica.Atípica pela ascensão social vertiginosa em meio a uma sociedade pautadapor critérios de hierarquização social: nascido na Paraíba e, a julgar pelosrelatos, em uma família bastante modesta, Vidal de Negreiros alcançouuma posição destacada como funcionário colonial, à frente do governo deregiões estratégicas no Império. Seu nome viria depois a figurar no panteãonativista da nação, alçado à condição de herói nas lutas de Restauração.Aliás, a trajetória incomum de Vidal de Negreiros se iniciou com a brilhanteatuação militar contra os holandeses, feito que lhe renderia honras e mercêssignificativas, como a indicação para o governo do Maranhão e, depois, de

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Pernambuco, capitania de primeira grandeza na hierarquia das capitaniasdo Império. Obedecendo ao padrão típico da trajetória dos governadoresultramarinos, alcançaria o gosto de governador em Angola, onde enfrentariaa conjuntura especialmente crítica que se seguiu à ocupação do territóriopela Companhia das Índias Ocidentais. A África que Vidal de Negreirosencontrou estava mergulhada num ambiente de forte instabilidade,acentuada pela resistência dos chefes aliados locais em prestar lealdade àCoroa portuguesa, impondo a necessidade de restabelecer as alianças dopassado.

A circulação dos funcionários régios no âmbito do Império proporcionou-lhes acumular um aprendizado das artes da governança, forjado emcontextos muito diferentes, resultando num conjunto de saberesessencialmente empíricos sobre a colonização, referenciado no exercíciocotidiano da administração. Talvez a brilhante trajetória de Vidal tenha sidoeclipsada pelo herói nativista celebrado por gerações e gerações dehistoriadores, ficando em segundo plano a dimensão atlântica de suacarreira na administração colonial.

Com os homens, circulavam também práticas culturais, disseminandoas mentalidades ibéricas por todo o Império, a exemplo das festas. Temacaro aos estudiosos da cultura barroca, as festas constituem o domínioprivilegiado das representações em curso na sociedade colonial, na medidaem que dão a ver a ritualização teatral dos seus códigos, hierarquias eorganização. No belo ensaio “Festa e memória da elite açucareira no séculoXVII: a Ação de Graças pela Restauração da capitania de Pernambuco contraos holandeses”, Kalina Vanderlei Silva analisa uma faceta original do vastoimaginário da Restauração: as celebrações festivas da vitória pernambucanasobre o adversário holandês. Ao calendário festivo tradicional, como asentradas de governadores, os casamentos, nascimentos e mortes da realezaportuguesa, celebradas com pompa e magnificência barrocas, a nobrezapernambucana acrescentou a encenação festiva de sua empresa histórica,através da qual fixou a representação idealizada de si mesma. Nas festas daRestauração, a autora identifica uma estratégia de afirmação do statussocial, que visava conferir prestígio e honra a seus protagonistas,demarcando os lugares sociais, exibindo hierarquias, estabelecendodistinções.

Consolidada nas guerras da Restauração, a elite açucareira conformouas celebrações festivas do passado glorioso como via privilegiada paralegitimar a posição alcançada, exibindo nelas os códigos e padrões deconduta ibéricos, identificando-se com as elites portuguesas e castelhanas.Discurso sobre o presente, nelas também se fixou a memória de suaparticipação heróica nas lutas contra os holandeses, representadas como aexpressão da lealdade ao monarca – o topos com que legitimava as suas

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pretensões políticas.Festa barroca mas, sobretudo, política – como bem observou Maravall –

o que nela se celebrava era sobretudo a própria sociedade, estamental ehierarquizada, que ali se dava a ver. É o que revela também o ensaio“Celebrando a monarquia nos extremos da América Portuguesa: Natal e aColônia do Sacramento no século XVIII”, no qual Paulo César Possamaipropõe uma démarche arrojada: o estudo comparado entre as festas públicasrealizadas, no século XVIII, em dois extremos da América – Natal e a Colôniado Sacramento, regiões muito distintas. De um lado, a pobreza de Natal,com um contingente demográfico pouco expressivo. De outro, a Colôniado Sacramento, um dos mais prósperos entrepostos comerciais do Impérioe, ao mesmo tempo, posto avançado de fronteira. O brilho e a pompabarrocos da corte joanina alcançavam, ainda que numa versão esmaecida,esses territórios tão distantes, onde também os grandes eventos damonarquia – como nascimentos, casamentos, exéquias fúnebres – eramcelebrados com solenidade. Em Natal, por exemplo, o casamento dospríncipes do Brasil e das Astúrias com as infantas Maria Vitória de Bourbone Maria Bárbara de Bragança, realizado em 1729, deu lugar a nove dias decomemorações: malgrado a pobreza do lugar, agravada sobremaneira pelassecas que dizimavam o gado no sertão, a pequena população local assistiua comédias, máscaras, cavalhadas, fogos de artifício, salvas de artilharia,missa solene cantada e procissão. Tudo por obra do capitão mor dePernambuco, que tudo fizera para festejar condignamente os casamentosdos príncipes, posto que a Câmara local parecia pouco inclinada a financiaras festas – eventos dispendiosos, que demandavam tempo e recursos – ,preferindo investir nas festas locais, sobretudo as que celebravam o oragode invocação do lugar. Afinal, se as festas constituíam um poderosoinstrumento de representação do poder e afirmação da elite local, aslocalidades mais pobres tendiam naturalmente a se concentrar nas festaslocais, de caráter religioso, mais adequadas para a expressão de prestígio estatus. Diferente era a situação dos funcionários régios, que viam em taisfestividades uma forma de expressar a fidelidade à Coroa, abrindo caminhopara a ascensão nos quadros administrativos do Reino.

A Colônia do Sacramento trazia uma peculiaridade que a distinguia deNatal: numa região de fronteira, a exibição de poder e magnificênciafuncionava como um estratagema político, direcionado para impressionaros vizinhos, amenizando as tensões entre eles. As celebrações cívicasdestinavam-se a afirmar a glória do monarca português diante dosespanhóis, e a expressar a fidelidade e a obediência de vassalos afastadosdo centro da monarquia.

De uma perspectiva muito semelhante, também centrada na tese dacirculação das concepções e práticas do Antigo Regime, Carla Mary S.

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Oliveira destaca a dimensão social das manifestações artísticas, explorandoas possibilidades analíticas dos usos da arte numa sociedade permeada pelanoção de distinção. Em “Alegoria e status na Paraíba colonial: o forro daCasa de Orações dos Terceiros no Convento de Santo Antônio”, a autoranos brinda com a beleza do forro setecentista, que ainda hoje continua afascinar os seus visitantes. De autoria desconhecida, pintada no século XVIII,a obra se destaca por suas características barrocas, sobretudo os efeitos detrompe l’oeil e a engenhosa falsa arquitetura. Diante da qualidadeexcepcional do conjunto, Carla Mary propõe uma indagação instigante:como explicar a sua produção numa capitania em franca decadênciaeconômica, relegada a uma posição subalterna, em relação às demais? Umadas contribuições mais relevantes da autora é a leitura inovadora sobre acena representada no teto, atribuída por engano à ascensão de Santo Eliasem direção aos céus. Esmiuçando os detalhes da hagiografia de SãoFrancisco, ela o associa ao episódio, referido pelos biógrafos do poverellode Assis, da aparição do santo, montado em um carro de fogo, a algunsfrades menores. O tema, tratado por Giotto – o qual, ainda no século XII,havia lançado as bases da iconografia franciscana – encontrava-se presenteem outras regiões da América Portuguesa, a exemplo da Igreja dos Terceirosde São Paulo, sugerindo a possibilidade de uma matriz comum, disseminadapor meio de gravuras e ilustrações. Ordem religiosa das mais prestigiosas, aOrdem Terceira de São Francisco congregava à sua volta as elites locais,que nela buscavam status e distinção social, fosse por aqueles que haviampercorrido uma trajetória de ascensão econômica, fosse por aqueles queestavam em busca dela. Reside aí, segundo Carla Mary, a explicação para oaparente paradoxo entre uma capitania marcada pela pobreza e asuntuosidade da Casa de Orações, com seu magnificente teto pintado:esse último refletia as estratégias de auto-afirmação de uma elite que,relegada a uma posição periférica no Império, buscava reforçar ashierarquias e diferenciar os lugares sociais.

O processo de ordenação do espaço colonial, com a imposição do podermetropolitano sobre territórios fora do controle da Coroa, é o tema doensaio “Jesuítas e missões: representações das fronteiras na capitania doRio Grande”. Nele, Maria Emília Monteiro Porto explora o universo dasvivências em zonas de fronteira, a partir dos relatos jesuíticos sobre asmissões localizadas na capitania do Rio Grande desentranhando, dacorrespondência mantida com o Conselho Ultramarino, os múltiplossentidos da noção de fronteira, que se aplicavam a um território ainda emprocesso de integração à ordem colonial. Da fronteira entendida comoconquista, enunciada em linguagem militar, à fronteira como zona deconfronto cultural, a história da capitania do Rio Grande pode ser descritanos termos de um processo de ordenação política e cultural que visava

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submetê-la à órbita do Império, ainda que fadada a uma posição deisolamento no contexto geopolítico da América. Zona privilegiada decontatos de toda ordem, a capitania se tornou o palco dos confrontosculturais e políticos, em que se atritavam as diretrizes estabelecidas emLisboa, as vivências dos jesuítas e as sociedades indígenas ali estabelecidas.

A questão indígena é objeto de três ensaios originais. Em “Povosindígenas no período do domínio holandês: uma análise dos documentostupis (1630-1656)”, Regina Célia Gonçalves, Halisson Seabra Cardoso e JoãoPaulo C. R. Pereira exploram uma documentação preciosa, de autoria deíndios Potiguara, escrita em língua Tupi. Seus autores extraem destematerial, praticamente desconhecido pela historiografia, a visão dosindígenas acerca das alianças estabelecidas com os europeus durante aguerra luso-brasileira (1630-1654). Descoberta nos arquivos da WIC, em Haia,pelo pesquisador pernambucano José Higino Duarte, as chamadas “cartasTupi” foram escritas por Pedro Poty, cristão reformado, e Antônio FelipeCamarão, ambos da nação Potiguara. Outra correspondência examinadasão as “Remonstrâncias”, escritas por Antônio Paraupaba, que ocupava ocargo de Regedor dos Índios do Rio Grande durante o governo holandês.Experimentados na interlocução com o outro, graças a um talento especialpara a negociação, estes homens demonstram uma capacidade incomumde assimilação e compreensão das culturas européias, com as quaisdialogam intensamente. Dominando os códigos e padrões dosinterlocutores, os índios apresentam-se como indivíduos plenamenteinseridos no universo cultural europeu, capazes de articular os própriosinteresses com o discurso do outro, numa estratégia retórica eficiente.Assim, a participação na guerra lusobrasileira, por meio de alianças ecoalizões, foi alvo de cuidadosa negociação, cujo âmago residia na defesaintransigente da posse da terra aos que aqui estavam bem antes do adventodos europeus. É desta perspectiva que os indígenas se posicionam nanegociação dos tratados e acordos celebrados com os brancos, defendendo,de forma estratégica, os benefícios que poderiam extrair deles. Naabordagem proposta pelos autores, o que se destaca é, sobretudo, amobilização de determinados aspectos da cultura indígena, passíveis deaproximação com as culturas européias, explicitando as zonas de contato– e também de atrito – que existiam entre elas. Neste processo dinâmico,fica evidente a intensa capacidade de apropriação dos argumentos dosaliados, de modo a reinterpretá-los à luz da própria cultura, explicitandouma série de convergências entre o universo indígena e o europeu,indispensável ao estabelecimento de um espaço de troca e diálogo cultural.Análises desta natureza lançam por terra as teses sobre o caráter passivodas culturas indígenas, descritos como meros títeres nos conflitos entreeuropeus, relegados a uma posição marginal e subserviente às injunções

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de uma conjuntura política que não conseguiam compreender. Ao contrário,o ensaio abre um novo campo de abordagem sobre a atuação política daspopulações indígenas, na medida em que põe em relevo os artifíciosretóricos que, em vez de exprimirem a completa e passiva adesão aosvalores dos europeus, sinalizavam, antes de tudo, um posicionamentopolítico contundente, ditado por uma avaliação objetiva da conjuntura. Ogrande mérito de estudos como este reside na ênfase dada à noção deestratégia, entendida, grosso modo, como a instrumentalização do discursocom vistas à obtenção de vantagens, distinguindo-a claramente daquiloque concerne à adesão do universo cultural do outro. Tal distinção não ébanal, sobretudo num contexto em que noções conservadoras, comosentimento de pertença ao Império ou assimilação dos valores do AntigoRegime, têm sido confundidas com a manipulação ideológica e retóricadeles, esmaecendo as fronteiras entre ideologia e realidade.

É também sobre a noção de estratégia que se assenta o ensaio“Contatos, conflitos e redução: trajetórias de povos indígenas e índiosaldeados na Capitania da Paraíba, durante o século XVIII”, de autoria deRicardo Pinto de Medeiros. Ao autor interessa analisar o impacto da políticaindígena pombalina no processo de desenraizamento espacial e culturaldas identidades étnicas, bem como a construção de novas identidades entreas populações indígenas da Paraíba. A participação dessas no processo deconquista e colonização do sertão, associando-se aos conquistadoresatravés de uma política de aliança e guerra, põe em evidência o fato de queos povos indígenas souberam valer-se das possibilidades abertas pela Coroa,para conquistar, na ordem colonial que se estabeleceu, um espaço denegociação, onde puderam barganhar posições melhores, garantindo,entre outros, a obtenção de sesmarias, vital para a sua sobrevivência étnica.Na Paraíba, um dos principais reflexos da nova política pombalina foi atransferência compulsória dos índios para vilas maiores, compostas pelaunião de várias aldeias, em clara oposição ao que preconizava o Diretóriodos Índios. Os efeitos deste processo foram devastadores: ao contráriodaquelas que se associaram aos conquistadores, buscando garantir a própriasobrevivência, muitas das populações indígenas foram violentamentedesenraizadas, removidas de suas aldeias e instaladas nas vilas recémcriadas. O papel estratégico e militar que ocupavam nos sertões da Paraíbasofreu uma profunda inflexão, logo depois da implantação da nova legislaçãopombalina, transformando-as em grupos desprovidos de identidade étnica,desarticulados na nova configuração política das vilas. Conflito, estratégiae violência são noções inseparáveis da história indígena na Paraíba do séculoXVIII, revelando a outra face – a face sombria e perversa – da transplantaçãodo Antigo Regime nos trópicos.

O ensaio de Fátima Martins Lopes, intitulado “Capitães mores das

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ordenanças de índios: novos interlocutores nas vilas de índios da Capitaniado Rio Grande”, retoma o mesmo cenário, situando-se no processo posteriorde ordenamento político das vilas criadas a partir das aldeias indígenas. Aschamadas Leis de Liberdade, promulgadas em 1755, objetivavam não sórestituir a liberdade aos índios do Grão Pará e Maranhão, transformando asmissões jesuíticas em vilas, mas também instalar nas câmaras as principaislideranças indígenas, sob o imperativo da inserção política das populaçõesnativas, alçadas à condição de “verdadeiros vassalos”, aptos a ocupar oscargos administrativos locais. Tratava-se, sem dúvida, de uma sofisticadaestratégia de dominação, posto que cooptava, por meio da promessa demercês, recompensas e honrarias, as lideranças indígenas, estabelecendodivisões nas comunidades, dilacerando o potencial de resistência das chefiase infligindo a todos uma organização social profundamente hierarquizada.A concessão da patente de capitão mor às principais lideranças, em cujasmãos estava o comando das companhias de Ordenanças, inseria-se numprojeto de conquista e colonização que se chocava com os critériostradicionais, vigentes nas sociedades indígenas, de escolha das lideranças.Nas vilas, o critério que regia a indicação aos principais cargos nem semprerespeitava as chefias indígenas, sendo mais decisiva a adesão deles àsimposições coloniais. Nas vilas de índios do Rio Grande, por exemplo, aescolha ficava a cargo do governador de Pernambuco, que nomeava osindivíduos que se mostrassem mais receptivos à sua autoridade, garantindoassim o controle sobre as populações indígenas por ele comandadas. Comobem observa a autora, o papel destes capitães mores não diferia muitodaquele exercido pelos tradicionais mediadores entre os universos coloniale indígena, sobre os quais recaía a obrigação de cumprimento dasdeterminações emanadas do Reino. Por meio de tais nomeações, a Coroaensejava uma eficiente política de cooptação, colocando as populaçõesindígenas sob a órbita do Império, ao mesmo tempo em que desarticulavasuas lideranças tradicionais. Desta política fazia parte também a introduçãode um processo de individualização nas relações econômicas entre os índios,uma vez que os oficiais contavam com privilégios especiais, que osdiferenciavam do restante da comunidade. Neste caso, a diferenciaçãosocial deitava raízes num processo mais amplo de transformação cultural,indispensável à dominação colonial: o capitão mor – e também os oficiaisdas Ordenanças – projetavam-se como interlocutores entre o mundocolonial e o indígena, beneficiados pelos privilégios econômicos e políticosinerentes à posição que ocupavam, cabendo a eles um papel fundamentalnas configurações culturais então em curso.

Os estudos sobre as Câmaras coloniais vive, hoje, a sua Idade de Ouro,inspirados nas pioneiras observações de C. R. Boxer sobre o papel deintegração que desempenharam ao longo do Império português,

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conformando práticas e vivências políticas nos moldes dos concelhioslusitanos. São as relações turbulentas entre as câmaras do Recife e de Olindaque o ensaio “Patrimônio, territorialidade, jurisdição e conflito na AméricaPortuguesa: Pernambuco, século XVIII”, de George F. Cabral de Souzainvestiga, privilegiando os aspectos econômicos derivados dadesconcertante proximidade geográfica entre ambas as instituições. Acriação da câmara do Recife, como resultado de sua elevação à vila, em1710, não aplacou os ódios que a separavam de Olinda. Situadas a menos deuma légua de distância, as duas sedes do governo municipal engalfinharam-se numa disputa em torno da jurisdição e do patrimônio que lhes pertenciam.E não foram poucos os objetos de litígio, a começar pela dificuldade em seestabelecer tanto a jurisdição dos ofícios municipais, quanto o patrimônioterritorial de vilas tão próximas, envolvendo a delicada questão sobre asantigas doações e seus respectivos foros. Lançando mão de uma ricadocumentação, o autor investiga a administração financeira das câmaras –tema pouco estudado entre nós – , às voltas, frequentemente, comminguados rendimentos, insuficientes para fazer frente às suas obrigaçõesbásicas. O quadro econômico, porém, não encerra o horizonte da análise,mas atenta, sobretudo, às implicações políticas advindas da criação daCâmara de Recife, nas quais se entrelaçavam argumentos de naturezaeconômica e política. Nos conflitos entre a auto-intitulada nobreza da terrae a elite mercantil, o autor identifica as culturas políticas aí em jogo, cujasconcepções se materializavam nas questões relativas às formas deadministração do poder local, à natureza das reivindicações de ambos oslados, aos arranjos e acordos. Se as câmaras constituíam, como uma espéciede microcosmo da sociedade colonial, uma das arenas – e não a única – deluta política em que os interesses se confrontavam, o estudo de George F.Cabral de Souza atesta as potencialidades de abordagens voltadas para asua dinâmica econômica, e, principalmente, para as suas interações com osconcelhios próximos.

Por fim, Acácio José Lopes Catarino traz à cena, no ensaio “A oficina dosritos: artífices no Arsenal de Guerra de Pernambuco”, o cotidiano nasoficinas do Arsenal de Guerra, em Pernambuco, focalizando o impacto dasreformas pombalinas relativas à modernização sobre a organização dotrabalho e ao perfil dos trabalhadores. A dimensão militar destas oficinaspermitiu uma apropriação cívica, situando o trabalhador na defesa da naçãoe da soberania, tornando-o alvo de um processo de institucionalizaçãoburocrática, apoiada num discurso racionalizante, em franco contraste comas formas tradicionais então vigentes. A passagem das oficinas para amanufatura em novos moldes administrativos levou ao surgimento de novasformas de controle sobre os trabalhadores, submetidos a uma série deexpedientes disciplinadores, como a cuidadosa inspeção das faltas e saídas.Delas resultou a criação de uma burocracia interposta entre as oficinas e o

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mundo exterior, encarregada da regulamentação das atividades alidesenvolvidas, que impactou profundamente no cotidiano dostrabalhadores, rompendo os vínculos corporativos e rebaixando o estatutodos oficiais.

Todos estes ensaios põem em relevo o processo de renovaçãohistoriográfica da última década, trazendo, cada um deles, uma contribuiçãodecisiva na atual reflexão sobre a história brasileira do século XVI ao séculoXIX. A circulação – uma noção tão cara aos historiadores – dos sabereshistóricos continua a conectar as mais diferentes regiões, no sentido tantode aproximar esquemas teóricos e metodológicos, quanto de submetê-losà prova em campos de investigação muito particulares. É certamente esteintenso diálogo historiográfico entre os quatro cantos do país que fecundae revigora o nosso horizonte, incitando-nos a apreender as nossas conexõescom as outras partes da América portuguesa, antes de nos lançarmos noImpério.

Excelente amostra da vigorosa historiografia que se produz hoje noNordeste brasileiro, o presente livro atesta a vitalidade da tradição intelectualconstruída em torno de nomes como Gilberto Freyre, Capistrano de Abreue Câmara Cascudo, apenas para citar alguns nomes. Ao leitor, fica o convitepara uma incursão profunda pela história dessas capitanias, com especialdestaque para a da Paraíba, entre os séculos XVI e XIX.

Adriana RomeiroBelo Horizonte, outubro de 2009.

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1 Pós-Doutora em História pelo Consejo Superior de Investigaciones Científicas da Espanha.Doutora em História pela Universidade de Salamanca. Pesquisadora dos Grupos dePesquisa Jesuítas nas Américas (UNISINOS/ Diretório CNPq), História do Direito e dasInstituições (UNIRIO/ Diretório CNPq), Filosofia na História (UFRRJ/ Diretório CNPq) eFormação dos Espaços Coloniais: economia, sociedade e cultura (PPGH-UFRN/ DiretórioCNPq). Professora Associada do Departamento de História e Docente Permanente doPrograma de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande doNorte. Pesquisa de Doutoramento realizada com apoio do CNPq. E-Mail:<[email protected]>.

diálogo com as consultas ao Conselho Ultramarino a partir de 1681, ampliame orientam nossa perspectiva. Entendemos que as formas sob as quais essavida foi representada, pode nos levar a compreender as forças de ordemmaterial que atuam sobre a sociedade (seus índios, soldados, missionários,poucos moradores e clérigos) e sobre o Estado (a representação da políticamonárquica através da correspondência do Conselho Ultramarino com aCâmara de Natal). Nessas correspondências pudemos verificar a presença deuma noção bem definida de fronteira como espaço bélico e fronteira comoespaço de trocas culturais: os movimentos de conquista e contra-conquistado território, as políticas monárquicas e das forças coloniais, a administraçãoda fronteira cultural e política, a das sociedades indígenas e as tentativas demovimentos engendrados pelos diversos setores da sociedade local no intuitode superar tal condição.

Sérgio Buarque de Holanda entendia que o símbolo do Brasil era obandeirante, que abriu os caminhos e fronteiras, enquanto os jesuítas semantinham vinculados ao controle europeu do espaço. É certo que o sabercontrolado pela Companhia estava relacionado à ordem de idéias européias,mas devemos considerar que o conjunto das idéias européias vivia, justamentenesta época, uma crise e que diante dela e como parte dessa crise, a Companhiade Jesus apresentou, de forma incisiva, um projeto de reforma da sociedade.Por outro lado, a descoberta de um Novo Mundo e a ação sobre ele gerou umnovo impacto sobre este universo de idéias. Apesar de idéias constituídassegundo padrões de reforma europeus, era justamente no novo espaço

presentamos aqui um pequeno estudo sobre as fronteirasmissionárias lançando sobre elas uma reflexão acerca do vivernelas, tomando como ponto de partida as representaçõespresentes nos relatos das missões jesuíticas organizadas naCapitania do Rio Grande entre 1597 e 1750. Estes relatos, em

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americano que eles se veriam transtornados pela experiência cotidiana, comas realidades que aqui se apresentavam. Por sua vez, a missão foi uma formade intervenção típica das fronteiras sendo, ao mesmo tempo, a formaprivilegiada da Contra-Reforma agir sobre as populações2.

A noção de fronteira

A noção de fronteira possui longa fortuna. Como demarcação de limitesterritoriais tem sua formulação mais espetacular nos marcos imperialistas daRoma antiga, que só conhecia o limes. No entanto, a experiência histórica queenvolveu a construção dos limes já anunciava um aspecto fundamental paraa construção de fronteira como conceito: zona de transição, comércio ecomunicação entre o mundo romano e o bárbaro. Vem da história datopografia a noção de fronteira viva, significando uma área sob tensão, móvel,sujeita a várias alterações, em função de guerras e conflitos armados,indicando ainda outras acepções, como a de fronteira de acumulação ou detensão, o que nos leva a ver a identidade entre essas noções3.

Da Idade Média até finais do século XV a fronteira não é um interdito -zona proibida por convenções políticas ou nacionais - mas zona de delimitaçãomilitar pertencente ou subordinada a diferentes Estados territoriaissoberanos. Quando essa linha é resultado de um encontro de territóriosestruturados a partir de pontos de onde irradiava o poder, o seu sentido vaimudando para a idéia de uma zona: são as zonas de contenda, espaçosdisputados entre algumas comunidades de moradores. A fronteira vaiganhando consistência: ela é zona neutra, a justiça não vai além dos limitesfronteiriços4. Com a formação dos Estados nacionais e o Renascimento,fronteira tenderá a participar do conceito de nação, pois a consolidaçãonacional vem com a fixação de fronteiras, de modo que durante um longoprocesso de formação das idéias ocidentais, a idéia de fronteira como linhadivisória foi se impondo à de fronteira como zona.

2 BOXER, Charles. A Igreja e a expansão ibérica. Lisboa: Edições 70, 1981. MULLET Michel.A Contra-Reforma. Lisboa, Gradiva, 1985. PROSPERI, Adriano. Tribunali della coscienza.Inquisitore, confessori, missionari. Turim: Einaudi, 1996. RODRÍGUEZ DE LA FLOR,Fernando. De las Batuecas a las Hurdes: fragmentos para una historia mítica deExtremadura. Mérida: ERE, 1989, p.17.

3 DICIONÁRIO Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.4 Caso do âmbito francês, cerca de 1213, onde fronteira está definida como a vanguarda

das tropas militares e, por volta de 1292, como praça fortificada que está em frente doinimigo. FEBVRE, Lucien. Frontière: le mot et la notion. In: ______. Pour un histoire à partentière. Paris: École de Hautes Études en Sciences Sociales, 1962, p. 11-24. Já a fronteirado Alentejo, no início do século XVI, não era cobiçada pela monarquia por ser área deconflito, de modo que D. Manuel (1495-1521) a propõe como presente a D. Maria,infanta de Castela. MAGALHÃES, Joaquim Romero. Fronteras y espacios: Portugal yCastilla. In: TORRES, Ana Maria C. (org.). Las relaciones entre Portugal y Castilla en la épocade los descubrimientos y la expansión colonial. Salamanca: Ediciones Universidad deSalamanca, 1994, p. 91-101.

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Com a entrada em cena do mundo americano se dará uma nova percepçãoda realidade que incidirá sobre o conceito. No período colonial, o limite era alinha que separava territórios sob distinta soberania e a fronteira era umespaço marginal aos centros de poder econômico, social e político, que podiaestar ou não em contato com os domínios de outra potência, de modo queuma fronteira podia ser um limite ou uma zona. A ocupação da fronteira erao primeiro requisito para chegar a conhecer e tornar efetivo o limite. Aquivemos de que maneira as duas noções – fronteira como zona de trocas efronteira como limite subordinado à idéia de nação – conviveram de formaprodutiva. Também por conta do mundo americano, não podemos perder devista que fronteira como linha divisória é próprio das idéias ocidentais e noçãodesconhecida pelas sociedades nômades ou seminômades que entraram nacena do Ocidente a partir da expansão dos Estados ibéricos, Portugal eEspanha.

O século XIX vai interromper essa acepção fluida, pois a idéia de fronteiracomo linha divisória assegurava uma territorialidade que viria a configurar aidéia de nação. José Carlos de Macedo Soares, por exemplo, concebe afronteira como linha divisória bem de acordo com a agenda do século XIX5. Oprocesso de colonização norte-americano adquiriu grande importância parao conceito de fronteira desencadeando questões acerca das consequênciaspolíticas e culturais da especificidade da conquista do oeste norte-americano,sobre a identidade da experiência de fronteira em todo o Novo Mundo apartir do estudo das zonas missionais e daí desencadeando o interesse pelasespecificidades latino-americanas. Os americanistas se dirigiram, então, paraas consequências do avanço das fronteiras metropolitanas, demonstrando aexistência de fronteiras regionais fechadas, ocupadas basicamente por missõesevangelizadoras ou por entidades indígenas ainda íntegras e fronteirasregionais abertas, estabelecidas a partir de novas fundações. Na atualidade,fronteira vem absorvendo uma dimensão antropológica que resgata asrelações interétnicas e a multiplicidade de horizontes culturais que existemem determinados espaços. Aplicada à história política e cultural, vem lançandouma perspectiva histórica que assume o jogo das relações de poder e dadinâmica da expansão fronteiriça, tal como o faz Lucena Giraldo reconstituindosua gênese na história da ocupação das Guianas, mostrando com isso avitalidade do conceito6. Importantes trabalhos vêm sendo desenvolvidos nofluxo dos estudos sócioculturais. Laura de Mello e Souza7, ao estudar a5 “Por toda a parte a fronteira é o continente do conteúdo nacional. A fronteira completa, define

e especifica o país sede de um povo organizado. A fronteira assegura o instinto de propriedade,tão natural e imperioso nos povos, como nos indivíduos. O território, quer dizer, o que secontém dentro das fronteiras, está para as nações como a casa está para as famílias”. SOARES,José Carlos de Macedo. Fronteiras do Brasil no regime colonial. Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1939.

6 GIRALDO, Manuel Lucena. Laboratorio tropical. Caracas: Monte Ávila/ CSIC, 1993.7 SOUZA, Laura de Mello e. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos

caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.) &NOVAIS, Fernando A. (coord.). História da vida privada no Brasil - Vol. 1: cotidiano e vida

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formação colonial a partir da ação social dos bandeirantes em São Paulo, nosremete a uma história social das fronteiras brasileiras reconhecendo aimportância dos espaços abertos e zonas distantes na história da colonizaçãolusitana na América: “longe das igrejas e conventos...”, assim como outrostrabalhos ligados à história regional que recuperam, sob uma nova ótica,uma história de espaços que continuam oferecendo questões porcompreender, mas que ainda não encontraram visibilidade na historiografianacional. Janice Theodoro tem se dedicado às distintas mestiçagens eentrecruzamentos muito próprios do mundo americano, pois aí estão osagentes sociais que operam o diálogo entre universos aparentementeincompatíveis favorecendo a sua articulação e permeabilização. Isso nos levaa considerar o conceito de fronteira em sua dimensão de espaço de trocas enegociações com o outro, especialmente com os grupos étnicos que cabia àsmissões controlar8.

As limitações ou estímulos ao desenvolvimento de uma região obedecemao posicionamento geopolítico que ela ocupa no contexto geral da trajetóriae expansão da colonização e essa foi a tendência que criou regiões centrais emarginais no sistema colonial. A necessidade de protegê-la das sublevaçõesindígenas, da expansão do contrabando e das interferências estrangeiras écaracterístico da fronteira. Ali os gastos eram reduzidos, vigorava a escravidãoindígena e o papel das instituições, como as missões ou as guarnições desoldados pagos estacionados nos fortes ou nas áreas de conflito, erasignificativo. Já nas regiões centrais originárias, a conquista decisiva foiseguida rapidamente de uma desmilitarização e de um longo período deconsolidação. As formas de intervenção nas regiões de fronteira obedeciama uma política de conquista e de redução de toda oposição. A região queresistia à dominação não apresentava a menor possibilidade de integrar-sena dinâmica ocidentalizada do sistema colonial. Isso é algo que nos remete aoutra importante característica das fronteiras que é justamente suamobilidade, ao contrário da zona-limite, cuja maior virtude é, pelo menos,garantir uma soberania política e é algo evidente tanto no processo naturalde fuga das populações indígenas das zonas ocupadas, como nastransferências de populações operadas pelas forças coloniais9.

privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 42.8 THEODORO, Janice. O barroco como conceito. In: SCHUMM, Petra (org.). Barrocos y

modernos: nuevos caminos en la investigación del Barroco Iberoamericano. Frankfurt:Vervuert; Madri: Iberoamericana, 1998.

9 A crônica jesuítica sobre a conquista da Paraíba nos aproxima do deslocamento dafronteira em direção ao Rio Grande que se conformava, então, como espaço deconcentração de forças dos índios Potiguares que fugiam progressivamente das etapasde conquistas portuguesas: “... e em toda a parte a miúdo eram salteados, ou se passariamtodos além do Rio Grande, como já muitos tinham feito...”. ANÔNIMO. Summario dasarmadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do Rio Parahiba. Revistado Instituto Histórico e Geográphico Brasileiro, Rio de Janeiro, IHGB, n. 36, 1873, p. 63.Provavelmente escrito, em 1586, a pedido do visitador Christóvão de Gouveia S.J.pelo P. Simão Travassos S.J.

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No Rio Grande em três momentos a condição clássica de fronteira foimantida: na expedição fracassada de João de Barros em 1534 até a conquistaefetiva de 1597; entre 1633 com a ocupação holandesa e 1654 com aRestauração; e por volta de 1680 até 1720, com a importante rebelião dasnações tapuias das capitanias do Norte, reuniram-se em diferentes medidas,algumas ou todas estas circunstâncias. A estabilização de sua vida política eprodutiva que poderia atrair uma população civil que possibilitaria suaintegração na ordem do ocidente tomou outra dinâmica por conta disso,configurando, assim, um conjunto de formas arcaicas de conquista. Nosespaços conquistados sob estas formas arcaicas vigorava a precariedade detécnicas e apenas uma mínima expressão da cultura letrada e visual doocidente. Ali se mantiveram ausentes, por muito tempo, os recursospersuasivos que o conjunto de uma vida colonial oferece, materializados naorganização de cidades e tudo o que supõe o poder de uma cultura urbana.

Os marcos de descobrimento chantados nas costas brasileiras desenhavamum espaço que se desejava conquistar efetivamente, um símbolo da presençaportuguesa. No Rio Grande isto se deu em 1501 com o marco de Touros, masesse gesto ainda estava circunscrito ao processo expansionista geralportuguês, algo ainda pós medieval e não tomado pelo fato americano. Em1534, quando da expedição fracassada à então Capitania de João de Barros ede sua inclusão efetiva no campo de visão da cultura ocidental, começaram ase desenvolver estratégias de ocupação. A imagem básica que a Capitaniaapresentava, neste momento, era a de porto de corsários: uma primeiraimagem da fronteira. A partir de então, embora ainda não conquistada, asforças coloniais possuíam um plano minimamente traçado sobre o local apartir da divisão em Capitanias hereditárias no mapa da colônia.

A conquista do Rio Grande fazia parte de uma política cujo objetivo finalera a grande região do Amazônia, espaço de interesse estatal por conta danecessidade de proteger seus limites da grande rede de comércio legal eilegal, e também para participar dele. Por isso foi um espaço transitório, umponto de apoio e abastecimento de forças em cada avanço da etapa daconquista. Como atesta Câmara Cascudo, se constituía: “mais em uma posiçãobélica, de vigilância e guarda, que a expressão regular e produtora de Capitania”.Ali se investia mais com o pessoal da guerra do que o que se produzia, que selimitava, em 1618, ao “rendimento do engenho de Cunhaú”10. Sertanistas,moradores, índios e missionários encontraram nas fronteiras um territórionovo e nelas foram autorizados, de acordo com o vai e vem das políticasmonárquicas, da consciência moral da cultura de então e da desobediênciacivil, a desempenhar um papel. Muitas ações foram levadas pelos padres daCompanhia nessa Capitania. No entanto, porque a circunstância da fronteiracostuma ser belicosa, complexa e intensa, e porque o missionário é, porexcelência, um homem de fronteiras, o contexto que destacamos para a análise

10 CASCUDO, Luis da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: s.r., 1955,p.59.

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é o da guerra – a guerra de conquista em 1597 e, a partir de 1680, a Guerra dosBárbaros.

A primeira imagem da fronteira – a conquista

Os jesuítas entram no Rio Grande apoiados no Alvará de 1596 que permitiaapenas a sua entrada no sertão e que regulava a exploração de seu trabalhoentre os portugueses. No contexto dos conflitos iniciais entre indígenas ecolonos a intervenção da Companhia de Jesus se materializou na tentativa depacificação, introduzindo formas da cultura ocidental: os princípios do credocristão através de suas formas litúrgicas e da catequese, difundidas emintervenções retóricas dentro de um espaço político de refúgio que as missõesjesuíticas representaram e que, naquele momento, ainda não eram objetodas radicais disputas que ocorreriam no período seguinte.

No primeiro momento da conquista, em 1597, a ação conjunta com oscapitães-mores de Pernambuco e Paraíba está descrita em termos docontingente de guerreiros e armamentos, infantaria, cavalaria, índios aliadose escravos africanos, as estratégias e táticas do capitão, a trajetória daexpedição, o material, o poder técnico, a súbita interrupção de assaltos,computando dados e os incorporando em uma linguagem militar. Há tambémo sentido hierárquico da descrição: a anterior descrição da Capitania dePernambuco definindo o lugar que ocupa a nova conquista nesta trajetória,o socorro que enviava Felipe II a seus vassalos, o governador-geral, oscapitães-mores, os soldados, os índios aliados, os escravos da Guiné e orestante da maquinaria de guerra - munições e petrechos, entre os quais, asflechas dos índios. O léxico militar se amplia com outras passagens: “o desenhodo capitão era ir destruindo as Aldeias pelo sertão até chegar ao Rio Grande”,ou: “espantados com o jogar da artilharia, não teve efeito o seu desenho”.

A conquista é colocada claramente como iniciativa civil e militar na qual osjesuítas são os coadjuvantes imprescindíveis. Os franciscanos enviaram doispadres experimentados, Cosme de S. Damião e Manoel da Piedade.Comandava a expedição Jerônimo de Albuquerque, mestiço, 65 anos, “grandeconhecedor da psicologia nativa”, que ia pelas aldeias de índios missionadosrecrutando voluntários11. A participação dos padres na guerra era efetiva“...não se negando a nenhuns trabalhos, de dia e de noite, (...) que o perigo daguerra traz consigo...”. De suas aldeias desceram parte deste arsenal militar,em 1603, com o Pe. Diogo Nunes, 800 índios flecheiros para lutar contra osAimorés na Bahia. Em outro momento tocou aos jesuítas enviar 370 arqueirosde suas missões e dois padres, Manoel Gomes e Diogo Nunes. Mas tambémfoi negada tal cooperação, como demonstram alguns documentos que nos

11 Testemunho de Alexandre de Moura, 20 out. 1620. In: BARÃO de Studart (ed.). Documentospara a história do Brasil e especialmente a do Ceará. 4 vol. Fortaleza: s.r., 1908-1921, vol. 2,p. 194-195. MORAES. Francisco Teixeira de. Relação histórica e política dos tumultos quesuccederam na cidade de S.Luis do Maranhão, 1692. Revista do Instituto Histórico eGeográphico Brasileiro, Rio de Janeiro, IHGB, n. 82, 1877, p. 40.

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aproximam aos conflitos entre jesuítas e autoridades civis, como na ocasiãoem que se recusaram a enviar seus guerreiros Paiaiá em uma expediçãocausando, em seguida, relações animosas com o Governador geral.

O Pe. Gaspar de Samperes era outro homem com ofícios especializadosque atuou nas fileiras da Companhia e quem projetou o desenho da fortaleza,“porque sabia bem dessa arte e a exercitara, em Espanha e no Brasil, antes deentrar na Companhia, quando professava a milícia”. Somos enviados àrepresentação dos homens de guerra, quando o clima de perplexidade queenvolveu a todos após um embate nos momentos iniciais da conquista do RioGrande se oferece como espaço para refletir sobre a moral do soldado. É acena de um massacre: “Fêz-se grande estrago neste gentio (...) alguns soldadoshonrados, que neste ministério ajudavam também aos Padres, se edificavam edavam graças a Deus, dizendo: salva-se um filho de um selvagem e eu não sei oque será de mim”12. A participação na conquista era uma combinação deintervenções materiais e espirituais: “administrando os sacramentos à gentepor não haver outros clérigos, servindo os enfermos, que houve muitos, e dandoa traça e ordem para se fazer o forte, e às vezes trabalhando com suas pessoas,para animar a gente”13. Em geral, se aplicam metáforas militares para definir aatuação missionária da Companhia de Jesus. No entanto, a imagem militaraplicada ao corpo eclesiástico é comum desde a Igreja primitiva assim como aexpressão “soldado de Cristo” ou a idéia de Cristo como um chefe militar,tendo sido poucas e discutíveis as opiniões que consideraram que as armasnão se conciliavam com a moral do Evangelho. Configura-se como uma milíciaespecial, disposta, por princípio, a seguir diferentes destinos, masunitariamente a serviço de Roma e do Papa.

Parte do acordo inicial com os potiguares, em 1597, implicou em umdeslocamento de tribos com o objetivo de assegurar os limites entre terraconquistada e produtiva e as fronteiras. O Pe. Francisco Pinto, como ointérprete da estratégia do capitão-mor, incluiu como parte do acordo, quealgumas tribos fossem povoar a vila de Pernambuco entre os portugueses,tendo ido a tribo de um irmão do Camarão Grande. A carta Ânua de LuisFigueira, 1602-160314 ,que nos mostra a situação da região após seu controleinicial, nos envia a essa mesma dispersão. Entre 1602 e 1604, se tinhaestabelecido uma aliança entre os potiguares e os portugueses, rompendoassim a aliança anterior entre aqueles e os franceses. Submetidos ospotiguares, resolveu-se usá-los nas guerras em Ilhéus e Porto Seguro, deonde foram, em seguida, desviados para reprimir um quilombo de escravosafricanos fugidos das plantações da Bahia. Não retornam para o norte eacabam por se fixar na Bahia para povoar suas terras.

12 Carta de Pero Rodrigues, 1599. In: LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus noBrasil. 10 vols. Lisboa; Rio de Janeiro: s.r., 1938-1950, vol. I, pp. 515, 518, 519, 520. Daquiem diante,citado como HCJB.

13 Relação de Samperes, 1607. HCJB, vol. I, p. 557.14 Ânua de 1602-1603, P. Luis Figueira, 1604. Archivo Romano Societatis Iesu, Roma,

Fundo do Brasil, maço 8, f. 40v-41. Daqui em diante, citado como ARSI, Bras.

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Como testemunho da dispersão e fragmentação do espaço indígena, oencontramos desfigurado, suas aldeias transformadas em “aldeotas”: “...que já lhes não guarda outro nome (pois além de serem pequenas, não há naquelacapitania hoje mais de oito, sendo há dez anos 64)...”15.

As instruções do Padre Geral Aquaviva, enviadas de Roma para o ProvincialPero Rodrigues, no Colégio de Olinda entre 1599 e 1601, nos fornecem detalhesdo cotidiano e nos remetem às estratégias para a realidade dessas missões“tan distantes” e ao processo de adaptação destas instruções à realidade dafronteira16. Nelas, se exigia, entre outras coisas menos notáveis, um mínimode quatro religiosos para iniciar a missão, estabelecia de antemão certoscritérios e hierarquias para o contato direto com os índios, indicavasupervisores ou temia pela integridade física e espiritual dos missionários. OPe. Pero Rodrigues, em carta de 160017, ao oferecer ao General um quadromais realista das missões, contesta as instruções que, ao fim são organizadas,apesar de não se adequarem à estrutura missionária ideal. A imagem dascircunstâncias precárias destas missões se expressa na nostalgia contra aqual deviam proteger-se: “Não tínhamos remédio algum humano de físico oumezinhas, bem nos lembrava dos regalos, quando adoecemos nos Colégios, dumpedaço de açúcar para beber uma pouca de água, ou uma talhada de marmeladae outras coisas que a caridade da Companhia costuma”18.

A possibilidade que estava colocada para a Capitania, após este primeiromomento da conquista, seria sua integração na ordem colonial, ocupandouma posição marginal em relação à dinâmica da economia central. No entanto,a ocupação holandesa representou uma interrupção no processo, pois o RioGrande ocupava um lugar secundário na política dos novos conquistadores.Comentam os historiadores que, no Rio Grande, os colonos se mantiveramalheios ao tema da conquista e mais dedicados a seus assuntos administrativose disputas internas, tendo sido para a Capitania um período precário, territórioocupado sem maiores inversões do que convinha para a manutenção daguerra e da produção do açúcar nos engenhos de Pernambuco, imagemcertamente amparada nas denúncias dos massacres de índios e moradoresocorridos em Uruaçú e Cunhaú por parte dos “pérfidos holandeses”, já nocontexto da Reconquista19.

15 Relação de Pero de Castilho, 1614. HCJB, vol. V, p. 511.16 Instruções do Padre General Claudio Aquaviva para o Provincial P. Pero Rodrigues.

Roma, 1597-1598, ARSI, Bras, maço 2, f. 131-132v; Algumas advertências para a Provinciado Brasil, Roma, 1601, Biblioteca Vittorino Emanuele, Roma, Fundo dos Jesuítas, maço1255, f. 10-14. Daqui em diante, citado como Bib. Vittº Em., Gesuitici.

17 Carta do Provincial Pero Rodrigues ao Padre General Claudio Aquaviva, Baía, 20 deSetembro de 1600. ARSI, Bras., maço 3-I, f. 194-194v.

18 Carta de Pero Rodrigues, 1599. HCJB, vol. I, p. 524.19 Conforme o panfleto de Lopo Curado Garro: Breve, verdadeira autêntica Relação das

últimas tiranias e crueldades que os pérfidos Holandeses usaram com os moradoresdo Rio Grande, 23 out. 1645. Publicações do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1929.

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Uma segunda imagem: a Guerra dos Bárbaros

Por volta de 1650 a população do Rio Grande iniciava sua expansão paraOeste, alcançando outra onda povoadora que irradiava do Vale do Jaguaribeno Ceará para Leste, e desde ai se dirigia, espalhando-se, por toda uma zonainterior que se detinha na Serra da Borborema20. Com o fim da ocupaçãoholandesa, o Rio Grande se integra ao plano colonial português e, com isso,se retoma toda a movimentação de colonos, que passam a se dedicar àpotencial economia agropecuária. Integrava-se na economia colonial comozona marginal em relação à economia açucareira com centros em Pernambucoe Bahia, mantendo um papel abastecedor durante os períodos de estabilidade,fornecendo gado, couro, sal, pesca e índios aplicados no trabalho servil, comoguerreiros nas conquistas de outras fronteiras ou como povoadores de seuslimites.

A extensão das fazendas de gado – principal e rentável atividade econômica– em terras indígenas, tanto nas já formalmente concedidas como nas áreasinconquistadas do interior da região gerou uma série de conflitos entre índiospor suas terras e integridade física, e colonos, por suas necessidades degrandes extensões de terra para o gado e da força de trabalho indígena. Osconflitos envolvem diversos episódios nos quais as autoridades locais e osmoradores formalizavam a violência em relação aos índios. O argumento docolono era que a mão de obra indígena era indispensável para integrar aCapitania em uma ordem economicamente produtiva. Mas existia um discursoético que se traduzia em leis que limitavam o direito de escravização eprocuravam regulamentar a apropriação do trabalho. Seu recurso era, então,incentivar as guerras entre tribos para justif icar uma guerra justa. Aoscondutores desta guerra não convinha que houvesse índios de paz porqueesses estavam protegidos pela legislação e, portanto, não podiam sercativados.

Os índios Janduí da nação dos Tapuias Cariri começavam, então, a atacaros moradores de Natal. Domingos Jorge Velho, um dos líderes dos paulistase maior representante do que foi a eficácia das forças bandeirantes, estavadedicado, neste momento, a destruir o Quilombo dos Palmares e se desvioucom suas tropas, a convite do governador geral, para socorrer o Rio Grande.O conflito havia se deslocado para terras do Piauí e Ceará seguindo o trajetodos paulistas, retornando, nestes momentos, para os limites da Capitania doRio Grande. A demanda de gado como alimento, meio de transporte e energiaexpandiu o mercado para outras regiões criando, a partir de então, aspeculiaridades da sociedade do sertão.

A política de controle da guerra dos Bárbaros era concentrar em algumasaldeias, os remanescentes das populações indígenas que iam sendo reduzidosem Guajiru (Estremoz), Guaraíras (Arez), Apodi (Vila do Regente, depois

20 BRUNO, Ernani da. Silva. História do Brasil geral e regional - Vol. 2: Nordeste. São Paulo:Cultrix, 1967.

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Portalegre), Gramació (Vila Flor) e Mipibu (S. José de Mipibu). Neste contexto,os jesuítas são outra vez convocados para pacificar as fronteiras, assim comoas forças especializadas do Terço dos Paulistas. Quando se estabelecem, nomomento e lugar mais tenso de todo conflito, servem a um plano pragmáticode controlar o espaço, evitar a dispersão dos grupos indígenas remanescentes,negociar com a natureza desolada e precária e com a moral da colônia.

Esta nova aproximação compreendia duas aldeias de índios Paiacus, a deS. João Batista do Apodi e outra, às margens do rio Jaguaribe, já no Ceará,que além de terem funcionado como apoio institucional a um importantefluxo de povoamento que se dirigia para a região do Açu, integrando-os,segundo a perversa lógica do colono, nas formas e frentes de trabalhoocidentais, obedecia também à lógica missionária de afastar os aldeamentosdas proximidades das guarnições de soldados no litoral. Mas a pressãoescravista levou os missionários a afastarem os núcleos indígenas de catequesetambém dos povoamentos dos colonos, estabelecendo aldeamentos maiseficientes e estáveis, conclusão a que, aliás, já haviam chegado os missionáriosdo tempo de Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Organizaram duas outrasmissões cerca do litoral, as aldeias de Guaraíras e Guajiru que se mantinhamem tensão direta com as duas outras do interior.

As correspondências entre os centros administrativos da Colônia, comoesta de 1699, nos vão dando conta da intensidade dos conflitos entre colonose índios e nos recordam a precariedade da situação do Rio Grande durante aGuerra dos Bárbaros: “Das Capitanias do Norte tinham ido várias e repetidasvezes a fazer guerra aos Bárbaros do Rio Grande, 37 cabos dos de maior nome esuposição, havendo algum que levou mais de 700 homens brancos, e que todosestes não conseguiram outro feito mais que só o das consideráveis despesas quefizeram aos miseráveis povos das ditas Capitanias”21.

A fronteira, como zona militar, torna-se visível a partir dos conflitos pelaconquista do espaço, nos quais aparecem as estratégias utilizadas e o conjuntoda política monárquica e colonial22. É notável, neste momento, que se tratavamais de defender uma posição estratégica na fronteira do que propriamentedefender uma população civil organizada. Segundo o documento, e tambémconforme o discurso dos Oficiais da Câmara, esta população civil se reduzia“a quatro moradores que ali habitavam” enquanto o auxílio em forças militaresteria sido de 200 homens. Certos dados, como a criação do Posto de Coronelde Cavalaria da Ordenança em 1686 para socorrer os colonos nas áreas deconflitos com os índios, a aparição da noção de fronteira na linguagem militarem documento de 1694, com o sentido de um espaço fortalecido por21 Carta de D. João de Lencastro, Governador Geral do Brasil a D. Fernando Martins

Mascarenhas de Lencastro, Baía, 11 nov. 1699. Documentos Históricos da BibliotecaNacional, Rio de Janeiro, 1937, pp. 39, 88, 83, 72, 117, 118.

22 As referências que vem a seguir são encontradas nos seguintes documentos: Livro deCartas e Provisões do Senado da Câmara de Natal (LCPSC), Livro de Termos de Vereação(LTV), Documentos do Arquivo Ultramarino (AHU), cobrindo o período de 1686, 1689,1694, 1696, 1701, 1704, 1710, 1713, 1725 e 1730.

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armamentos e homens de guerra cujo objetivo era conquistar uma novafrente, a requisição de índios da Aldeia de Guajiru para apoiar a abertura deduas novas frentes (ribeira do Ceará-mirim, no sítio chamado Capela, sobresponsabilidade do Mestre-de-Campo Paulista, Mathias Cardoso da Silva, eoutra em Utinga), são índices de uma especialização de forças na fronteira. OGovernador Geral de Pernambuco e Capitanias Anexas manda, em 1701,publicar ao “som de caixas” um Bando ordenando a retirada dos soldadosdas missões do Rio Grande, Ceará e Jaguaribe, deixando apenas dezsubordinados ao Reverendo missionário, caso se apresente necessário, ouseja, reforçando a autoridade dos missionários e, com isso, reforçando asfronteiras para a defesa contra o gentio bárbaro.

Com a guerra, aumentava o número de tapuias rendidos que deveriamsubmeter-se à legislação indígena que regulamentava a prestação de seusserviços nas terras dos moradores e nas guerras. Em 1696, quando os Oficiaisda Câmara solicitam aos Padres da Aldeia de Guaraíras que reúnam quinzeíndios e um encarregado que pudesse trabalhar na abertura de uma passagemna lagoa, o Padre Sebastião de Figueiredo da Companhia de Jesus nega opedido. Responde aos Oficiais que, na aldeia, havia 88 índios de serviço,sendo 63 deles ocupados em outros serviços, conforme a Ordem doGovernador Geral, que proibia que saíssem da Aldeia mais da metade dosíndios, portanto os quinze índios solicitados não poderiam ser cedidos; queesperassem sua volta se ainda os necessitasse. O aspecto movediço dalegislação indigenista levou a que D. Pedro II permitisse que os índios do RioGrande fossem empregados nas guerras das fronteiras. No entanto, em 1704,a Câmara de Natal pedia que se deixassem os índios do Rio Grande para oserviço dos moradores, alegando que na capitania do Ceará havia muitosíndios. Isso nos leva a observar tanto o aspecto móvel da fronteira, que ia seestendendo para a Capitania vizinha, como a expressão do desejo dosmoradores de Natal de que a Capitania saísse desta circunstância. Entendemosesta atitude como um gesto de recusa da condição de fronteira, integrando acomunidade no cotidiano de uma vida social e não nas urgências introduzidaspela guerra. Seis anos depois, João V se ocupa em controlar, junto aoGovernador de Pernambuco e Capitanias Anexas, a posse de terra por partedos vigários, párocos e missionários das aldeias de índios nos sertões.

Mas o Rio Grande prossegue ainda como fronteira, da qual se pode retiraros índios pacíficos e levá-los para as novas frentes coloniais, tal como sedepreende da política da Coroa. A Junta das Missões, reunida a 30 de marçode 1726, no Estado do Maranhão e formada pelo Governador João da Mayada Gama, pela Companhia de Jesus na figura do Visitador Geral das Missões eo Reitor do Colégio, enfrentava as séries de levantamento e ataques dasnações Guanarez, Aroazes e Barbados às aldeias dos índios Caicaizes,pacificados e aldeados com o missionário Gabriel Malagrida. Diante da situaçãode São Luiz do Maranhão, “sem índios, nem forças, por andarem em contínuaguerra (...) estan as aldeyas acabadas, sem que se possa dar muda aos precisos

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índios”, decidem pela transferência estratégica das tribos pacificadas dasregiões vizinhas, solicitando, como ordem real aos Governadores dePernambuco e Paraíba, ao Padre superior da Serra de Ibiapaba e aos Capitãesdo Ceará e Rio Grande “para lhe mandarem os Índios determinados pelo ditoSenhor para esta Guerra, e Conquista, para a qual não tem dado até o presenteÍndio algum”. A recusa à esta solicitação por parte das autoridades regionais,apesar das “... repetidas ordens de Sua Mag.... todos esses quatro anos”23 nosleva a entender que, neste momento, a dispersão das comunidades indígenasencontrava, nas missões, um lugar ordenador capaz de excluí-la do círculovicioso das fronteiras. Esta luta pela ordenação do espaço se revela emdiversos episódios expressos na documentação.

Apesar de o Rio Grande ser reserva de guerreiros, os documentos de 1725/1726 e de 1730 descrevem um ambiente melhor controlado, no qual as aldeiaseram tomadas como uma realidade na ordem missionária, ou seja, integradasem uma ordem produtiva e a uma melhor ordenação do espaço no sentido deuma busca por sair da circunstância de fronteira. Em um requerimento de1726 o Pe. Jerônimo de Sousa, Superior da Aldeia de Guajiru, solicitava ademarcação de mais e melhores terras para a comunidade indígena queadministrava em uma região chamada Cidade dos Veados, a duas léguas deGuajiru, “nas Lagoas da Cidade de Natal do Rio Grande” a D. João V, que já nãotinham onde plantar, porque as terras de lavoura já estavam cansadas e cheiasde formigueiros. Em 1730 o Pe. João de Melo, então o Superior da Aldeia doGuajiru, pede a D. João V a confirmação de uma doação de sesmaria na costadas salinas, no sitio dos Galos e de Guamaré “com dois sítios de pescaria e tresléguas de terra de comprido e uma de largo”, feita pelo capitão-mor Domingosde Morais Navarro (1728-1731), em 1729, em nome de Sua Magestade. Aconf irmação vem a 15 de outubro de 1732, notando-se, assim, oprosseguimento desta política territorial por parte de certos setores políticosda Capitania. Essa tendência de reordenação do espaço pode ser consideradatambém a partir da atuação deste capitão-mor, Moraes Navarro, quando, em1728, conduziu os trabalhos de restauração da Fortaleza e da capela24.

Apesar da piedade e simpatia de D. Pedro II pela Companhia de Jesus aguerra desordenava e suspendia os direitos. Documentos de 1689 nosremetem a este ambiente que suspendia toda a ordem. Nele, os oficiais daCâmara relatam ao Bispo e Governador de Pernambuco que a guerra na regiãodo Açu obrigava os moradores a viverem fortificados sem poderem sair paracumprir os ofícios e sacramentos religiosos, sem um padre que os atendessee ainda sem condições de pagar pelos seus serviços.

O comentário do Pe. Pero Dias, Reitor do Colégio de Olinda, de 1689, nos

23 Termo da Junta das Missões em S. Luiz do Maranhão, 30 mar. 1726. HCJB, vol. III, p. 442-443.

24 Manuscrito do Arquivo do IHGRN, Pasta 32, maço 7, folha 2. Apud GALVÃO, Helio.História da Fortaleza da Barra do Rio Grande. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura,1979, p. 209.

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oferece uma imagem da Aldeia de Guajiru durante este processo deorganização da reconquista da fronteira riograndense e nos introduz noambiente de guerra que se desenvolvia quando as aldeias de índioscatequizados passam a ser um dos alvos dos Tapuias rebelados e dos ataquesdos moradores. Nos leva a considerar o ceticismo geral quanto à defesa daintegridade indígena ou quanto aos recursos legais e petições como formaeficiente de intervenção: “...mas era impossível o castigo por causa da Guerrados Bárbaros...”. Relata ainda que, apesar de todo o trabalho propriamenteespiritual, os padres tiveram que usar de “instrumentos belicosos de estacadase trincheiras (...) sempre com as armas na mão”25. Em 1713 essa situação seacentua com a dificuldade em controlar os índios aldeados e a imagem damissão do Guajiru como destino dos Tapuias dispersos26.

As notícias que chegavam do sertão eram de epidemias, ataques dosJanduin e as grandes dificuldades que sofria o Padre Filipe Bourel na Missãodo Apodi e seus planos de transferir a Residência. Assim, o espaço se fragmentaem outra imagem: “...e a maior parte dos nossos Paiacus fugiram e vagueiam nosertão”27.

Outra visão desta época sobre a Aldeia de Guajiru se apresenta tambémem João Maia da Gama, Governador do Maranhão, no seu “Diário de Viagem”de 1729. Em meio às solicitações de instalações públicas, de educadores emissionários feitas pelo Vigário e Oficiais da Câmara de Natal, ele presencioualgumas manifestações religiosas e sermões dos Ofícios Divinos da SemanaSanta. Sua impressão reproduz uma imagem compassiva da região: “tiveuma grande consolação de que naquela pobreza se fizesse tudo com muita devoçãoe piedade, e com muita modéstia...”28.

A carta dos oficiais da Câmara de Natal ao Conselho Ultramarino solicitandouma casa de religiosos, da Companhia ou da ordem de S. Francisco, refleteuma situação na qual os moradores desejam a integração de seus filhos nacultura letrada que as Ordens manejavam, mas esta petição recebeu parecerdesfavorável do Governo de Pernambuco, mantendo a região, já entrado oséculo XVIII, no plano secundário em relação ao conjunto da política colonial29.

Os documentos de 1731 revelam, com mais precisão, esta circunstância defronteira da qual a Capitania começava a sair. A própria exaltação por partedos moradores da sua precariedade, neste momento, é em si mesma

25 Carta do Pe. Pero Dias. Olinda, 30 jul. 1689. HCJB, vol. V, p. 529.26 LCPSC, Recife, 24 mai. 1713, Bando do Governador Geral de Pernambuco, José Félix

Machado de Mendonça, Cx. 75, Lv. 5, f. 133v-134; LCPSC, Natal, 28 jul. 1713, “papel depazes” feitas entre os índios tapuias e o Capitão Teodósio da Rocha, Cx. 99, Lv. 6, f.8v.

27 HCJB, vol. V, p. 545.28 Diário da Viagem de Regresso para o Reino, de João da Maia da Gama, e de inspeção

das barras dos rios do Maranhão e das Capitanias do Norte, em 1728. In: GALVÃO,História..., p. 277-285, p.282.

29 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João V. Lisboa, 5 jun. 1731. AHU, Doc. 153:1731, 05 de Junho, Lisboa, rolo 02, 232.

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reveladora de um desejo de mudança ou até de uma estratégia de atuação,quando expressam sua precariedade material, a “incógnita de seu assento”,indicando aqui já uma consciência de memória, a inutilidade que vinhaapresentando para seus moradores e se queixam de que a Capitania vinhasendo a de menos merecimento na trajetória das conquistas: “A dita cidade ohé somente no nome porque nella não haverá mais de 20 moradores todos pobres,e os mais existem pellas suas fazendas que são a maior parte de currais de gadose cavallos”30. A solicitação de bens culturais de uma maneira bastante incisivae em uma espécie de acordo mínimo quanto a certas virtudes dos missionários,mostram os Padres como um elemento para a composição do lugar.

Considerações Finais

Quando a Capitania se integrava na ordem econômica local por volta de1720 e, portanto, seu mundo de possibilidades estava aberto, a atividade daCompanhia é interrompida alguns decênios depois, em 1759. A maior atençãode Portugal em relação ao Brasil eram as fronteiras da Amazônia e as do Suldo território. Desse modo, as políticas estabelecidas para estas regiõesacabaram por se estender ao conjunto do território, dando-nos, assim, osentido da mobilidade das fronteiras. O Tratado de Madri marcou o fim dafase de expansão colonial para oeste da linha de Tordesilhas dividindo, emáreas de influência, o rio da Prata para Espanha e o Amazonas para Portugal.Esta expansão havia sido determinada pela exploração aurífera no interior dacolônia, mas na década de 1750 ocorre justamente o auge e também o declínioda produção aurífera, quando o Brasil começava a superar Portugal em termosde economia e demografia. Daí vem, então, toda a política modernizadora,que não é apenas a do Marquês de Pombal, senão a da nova modernidadeiluminista pressionando o curso da historia. A posição de isolamento para aregião, determinada seja pela política dos latifundiários do gado que queriampreservar seus domínios, seja pela política monárquica portuguesa, a quemnão interessava o desenvolvimento incontrolado da Colônia, ensaiava já aordenação geopolítica do espaço que aparece com mais nitidez no séculoXIX.

O projeto de legislação indigenista no contexto das reformas pombalinas,quando, entre 1757 e 1798, se organizou o Diretório de Índios, códigolegislativo que extinguiu o sistema de missões e secularizou a administraçãodos aldeamentos de índios e a Companhia de Jesus foi expulsa do Brasil,estimulou a secularização das aldeias e sua integração na organização formaldas instituições urbanas européias: freguesias e vilas. As aldeias tornaram-sevilas e suas terras foram repartidas. Desde 1654 se havia iniciado esta tendênciana administração urbana mas, em 1750, com o fim da ação missionária oficialna região e com as novas determinações que a estabilização da posse da terraocasionava, começa, com maior determinação, a organização de novas

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30 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João V. Lisboa, 5 jun. 1731. AHU, Doc. 153:1731, 05 de Junho, Lisboa, rolo 02, 232.

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cidades. Tem início, então, uma política de mestiçagem entre índios eportugueses como forma de aumentar a população das fronteiras. Os índiosse converteriam em súditos da Coroa, aculturados, assalariados e aptos paratrabalhar ou desempenhar funções militares. Os civis assumiriam a direçãodas aldeias nas quais se elaborava esta política cultural racial e linguística,proibindo-se a difusão da língua-geral tupi-guarani e formando escolas paraos jovens índios, e é quando, então, o moderno passa a ser o laico e civil.

O governo de Pombal termina em 1776 e durante esse tempo manteveuma política dura contra índios, negros e mestiços, traduzidas em umaestabilização do espaço e da economia sem eliminar as revoltas indígenas queseguiram de forma intermitente no espaço riograndense. Em 1798, quandohavia menos de 20.000 índios nas aldeias da bacia amazônica e nos interioresdo Brasil, o Diretório dos Índios foi dissolvido diante das denúncias decorrupção e abusos cometidos pelos administradores e demais autoridades.Na época da abolição do Diretório, o Alvará de 23 de Novembro de 1799concedia a posse da terra, a regulamentação interna da administração e acondição civil aos índios aldeados. Foi justamente neste período que ocorreuuma baixa demográfica na vilas e essas terras indígenas coletivas foramespoliadas pelos colonos. Carta de 1804 do capitão-mor do Rio Grande, LopoJoaquim de Almeida Henriques, ao príncipe regente D. João, informa sobre ainexistência de Corporações Religiosas na Capitania, havendo apenas visitasirregulares de religiosos das corporações da Paraíba e Pernambuco. Enquantouma importante dinâmica econômica, política e social se desenvolvia nasregiões do sudeste do país, desde finais meados do século XVIII, especialmenteMinas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, a cultura e economia açucareira comcentro em Pernambuco e Bahia se encerrava em seus processos internosdesenvolvidos ao longo dos séculos XVI e XVII.

A circunstância de fronteira experimentada pela Capitania do Rio Grandeao longo de sua história colonial não foi vivida passivamente por nenhum deseus setores – moradores, índios, oficiais. Seria nos caminhos da segundamodernidade, a modernidade Iluminista, que desautorizou o discurso dohumanismo cristão, que haveria que buscar os novos problemas lançados àregião. Existe uma tensão entre as culturas que se deu no contexto da históriada América, mas também nas fronteiras européias, projetando uma dimensãodo processo não exclusiva ao mundo americano, que nos coloca na dimensãoda cultura moderna.

Contemplar esta cultura transtornada que se desenvolvia nas fronteirascomo fenômeno existente por direito próprio, certamente levou osmissionários a prescindirem das descrições idílicas, abundantes e generosasdo primeiro período e limitar-se ao que se poderia configurar como a ordemdo dia: administrar os conflitos. Quando estes se tornam intensos, a descriçãose desvia do discurso sobre a diferença étnica e se detém no que já épropriamente a cultura local, tornando-se então inventário e diagnóstico darealidade política. Deste modo, a compreensão, a última etapa do processo

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de conhecimento, vai derivar no entendimento do que ocorre e deve serfeito, um momento bastante pragmático. Neste momento “a humanidade éuma”30 nas cartas jesuíticas do Rio Grande porque todos os índios com osquais contataram os padres eram compreendidos como integrados na ordemhumana do mundo enquanto um dever-ser: deviam adequar-se a umadeterminada ordem econômica e cultural que se vinha impondovitoriosamente desde a conquista da fronteira em 1597, e já antes, e que aosjesuítas cabia administrar eticamente.

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31 HANKE, Lewis. La Humanidad es una: estudio acerca de la querella que sobre la capacidadintelectual y religiosa de los indígenas americanos sostuvieron en 1550 Bartolomé delas Casas y Juan inés Sepúlveda. Ciudad del México: FCE, 1985 [1974].

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este ensaio apresentamos os resultados da análise de doisconjuntos de fontes de origem indígena, escritas por índiosPotiguara5 em sua língua nativa, o Tupi, que são poucoconhecidas e/ ou discutidas pela historiografia brasileira. Atravésdelas, e a partir da argumentação sustentada em princípios

POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIOHOLANDÊS: UMA ANÁLISE DOS DOCUMENTOS TUPIS

(1630-1656)1

Regina Célia Gonçalves2

Halisson Seabra Cardoso3

João Paulo Costa Rolim Pereira4

religiosos e políticos, pretendemos perceber a perspectiva dos indígenas emrelação às alianças estabelecidas com os europeus durante a guerra luso-holandesa (1630-1654)6.

1 Este texto é resultado do desenvolvimento do projeto de pesquisa de mesmo título,financiado pelo PIBIC/ UFPB/ CNPq e executado entre agosto de 2007 e julho de 2009.

2 Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professora Adjunta doDepartamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação emHistória da Universidade Federal da Paraíba. Líder dos Grupos de Pesquisas Estado eSociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq) e Saberes Históricos:Ensino de História, Historiografia, História da Educação e Patrimônios (PPGH-UFPB/Diretório CNPq). E-Mail: <[email protected]>.

3 Graduando em História pela Universidade Federal da Paraíba. Exbolsista PIBIC/UFPB/CNPq. E-Mail: <[email protected]>.

4 Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba. Exbolsista PIBIC/UFPB/CNPq. E-Mail: <[email protected]>.

5 Antes da conquista portuguesa da foz do Rio Paraíba, em 1585, o território Potiguaraestendia-se pela faixa litorânea compreendida entre este rio e o baixo Jaguaribe, noCeará. A partir daquela data a ocupação colonial foi, aos poucos, estendendo-se parao norte e promovendo o despovoamento indígena da área. Os remanescentes dosPotiguara vivem atualmente nos municípios da Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto,no litoral norte da Paraíba. “Variantes do nome nos documentos históricos são: Potygoar,Potyuara, Pitiguara, Pitagoar, Petigoar, entre outros. Não há acordo sobre o significado donome, que geralmente é traduzido como ‘pescadores de camarão’ ou ‘comedores decamarão’”. MOONEN, Frans & MAIA, Luciano. Mariz. Etnohistória dos Índios Potiguara.João Pessoa: Procuradoria Geral da República - PB/ SEC-PB, 1992, p. 93.

6 Para um entendimento geral, não só das razões que levaram à ocupação das Capitaniasdo Norte (Pernambuco, Paraíba e Rio Grande) do Estado do Brasil pela Companhia dasÍndias Ocidentais, mas também da guerra travada pela disputa do território e daorganização do Brasil holandês, é indispensável consultar as obras de Evaldo Cabralde Mello. Ver: MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: Guerra e açúcar no Nordeste,1630-1654. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio:o imaginário da restauração pernambucana. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.

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O primeiro conjunto é composto pelas chamadas “cartas Tupi”, escritasem 1645 e 1646, em meio à Guerra de Restauração, por Pedro Poty7, cristãoreformado, Regedor dos Índios da Paraíba, aliado dos holandeses e AntonioFelipe Camarão8, cristão de fé católica, Capitão-mor dos Índios, súdito fiel dorei de Portugal, ambos da nação Potiguara. Esses documentos fazem partede um conjunto de cartas que foram trocadas entre os principais líderes dastropas de índios que se encontravam em lados opostos no conflito luso-holandês9. Ainda no século XVII foram enviadas para a Holanda, aos cuidadosdos administradores da Companhia das Índias Ocidentais (WIC) no intuito deque fossem traduzidas por algum dos religiosos protestantes que estiveramem missão no Brasil e que, portanto, tivessem conhecimento da língua Tupi.Por fim, coube ao pastor Johannes Eduardus fazer a tradução.

Encontradas, na década de 1880, no arquivo da WIC em Haia, pelopesquisador pernambucano José Higino Duarte, que as fez copiar, algumasdessas cartas, traduzidas do tupi para o português, foram, em 1906,publicadas pelo historiador Pedro Souto Maior, na Revista do InstitutoArqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (vol. XII) sob o título “CartasTupis dos Camarões”. Em nossa pesquisa usamos também a edição de DarcyRibeiro e Carlos Moreira Neto10. A partir de inferências que faz com base nasAtas Diárias do Governo Holandês do Recife, Frans Schalkwijk11 afirma que,além das publicadas por Souto Maior, existiriam outras cartas (dez no total),parte delas traduzida para o holandês, nos arquivos da Holanda.

A carta de Pedro Poty é uma resposta às várias correspondências enviadaspor Antonio Felipe Camarão e seus subordinados. Através dela podemosconcluir que Poty vinha sendo constantemente instado a deixar os holandesese se submeter à autoridade da Coroa portuguesa. Ele, por sua vez, responderebatendo os argumentos do Capitão-mor, desafiando-o a fazer o mesmo e7 Em 1625, depois da derrota na Bahia, a esquadra holandesa comandada pelo Almirante

Hendrykzoon aportou na Baía da Traição (Capitania da Paraíba) onde recebeu o socorrodos Potiguara que ali viviam. A repressão portuguesa que se seguiu dizimou inúmerosíndios e escravizou outros tantos. Vários fugiram para os sertões, enquanto que algunsforam levados, pelos holandeses, para a Europa onde foram educados e convertidosao cristianismo sob a fé da igreja reformada. Dentre esses estava Pedro Poty queretornaria, em 1634, para organizar e comandar parte de seu povo na luta contra osportugueses, ao lado dos holandeses. Sobre o tema, consultar: GONÇALVES, ReginaCélia. Guerras e Açúcares: política e Economia na Capitania da Paraíba (1585-1630).Bauru: Edusc, 2007, p.83-85.

8 Sobre sua biografia, consultar: MELLO, José Antônio Gonsalves de. D.A ntonio FelipeCamarão: capitão mor dos índios da costa do Nordeste do Brasil. Recife: Universidadedo Recife, 1940.

9 Apesar de haver outras cartas enviadas por subordinados de Antonio Felipe Camarão,tais como o Sargento-mor Diogo Camarão, para Pedro Poty e Antônio Paraupaba, nosrestringimos a analisar apenas as que foram assinadas por ele.

10 RIBEIRO, D. & MOREIRA NETO, C. de A. A fundação do Brasil: testemunhos: 1500-1700.Petrópolis: Vozes, 1992.

11 SCHALKWIK, F. L. Igreja e Estado no Brasil Holandês. 3ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2004,p. 249.

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se unir aos holandeses:

Eu me envergonho da nossa família e nação ao me ver induzido portantas cartas vossas à traição e deslealdade, isto é, a abandonar osmeus legítimos chefes, de quem tenho recebido tantos benefícios(...) Não, Felippe, vós vos deixais illudir (...) Abandonai, portanto,primo Camarão, esses perversos e perigosos Portugueses e vindejuntar-vos comnosco (...) Formaremos uma força respeitável eexpulsaremos esses trapaceiros e traidores. Mantenhamo-nos comos extrangeiros que nos reconhecem e tratam bem na nossa terra(...). [Sou] christão e melhor do que vós: creio só em Christo, semmacular a religião com idolatria, como fazeis com a vossa. Aprendia religião christã e a pratico diariamente, se vós a tivésseisaprendido, não servirieis com os perfidos e perjuros portugueses(...).12

A missiva de Camarão é uma circular enviada a todos os índios aliados dosholandeses e, nela, ao mesmo tempo em que os ameaça e acusa Pedro Poty eAntonio Paraupaba13 de heresia, insiste em oferecer uma nova oportunidadede arrependimento conclamando-os a aceitarem a autoridade da Coroaportuguesa e da igreja católica. Camarão se põe, na carta, como o verdadeirochefe indígena Potiguara que tem por obrigação zelar pelos seus: “Não possodeixar de cumprir as promessas e deveres contrahidos com meus avós, isso é, devos guardar assim como a todos os da nossa raça (...)”. Nesse sentido, em todoo texto mostrará grande preocupação com a “salvação” desses irmãos“insurgentes”, fosse ela física ou espiritual, tentando convencê-los a deixaremos holandeses. Acusa Pedro Poty e Antônio Paraupaba de os induzirem à“perdição”, por serem tão “hereges” quanto os holandeses. É bastanteemblemática a maneira como finaliza a carta:

E pensai na vossa salvação, porquanto; como verdadeiros christãosque sois, tendes não somente de cuidar da vida mas também daalma, e deveis saber que eu, vós e todos que estão convosco somossubditos de Sua M. Catholica o Rei de Portugal (...).14

É importante percebermos que essas expressões de cunho religioso usadasnas cartas vão além de uma contenda entre católicos e protestantes. Podemosconsiderar que, ao proferirem tais considerações acerca de suas respectivascrenças, e atacando a fé do outro, estão, implicitamente, evidenciando umposicionamento político. Essa idéia fica ainda mais patente no segundoconjunto documental por nós analisado.

12 SOUTO MAIOR, Pedro. Cartas Tupis dos Camarões. Revista do Instituto Arqueológico,Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, IAHGP, v.XII, 1912.

13 Filho de Gaspar Paraupaba que, junto com Poty e outros índios da Baía da Traição, foilevado para a Holanda em 1625 e, como ele, ocuparia papel central no comando dosPotiguara aliados dos holandeses durante a guerra no Brasil.

14 SOUTO MAIOR, Cartas Tupis...

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Este é constituído pelas “Remonstrâncias” de Antônio Paraupaba, Regedordos Índios do Rio Grande durante o governo holandês. Trata-se de duasrepresentações em que pedia, aos Estados Gerais15, ajuda aos indígenas aliadosdos holandeses que, após a capitulação em 1654, haviam se refugiado naSerra da Ibiapaba, sertão do Ceará. Esses documentos também foramtraduzidos por Souto Maior. Concentramos, no entanto, nosso estudo naversão do pesquisador holandês Lodewijk Hulsman reproduzida em artigopublicado, em 2006, na Revista de História da Universidade de São Paulo.Além de proceder à atualização da língua conforme o português corrente, oautor compara a versão de Souto Maior com o texto original que se encontranos arquivos holandeses, identificando novos trechos que haviam sidoomitidos e que são importantes para o avanço nos estudos a respeito darelação entre os Potiguara e os holandeses. As “Remonstrâncias” foramescritas logo que Paraupaba retornou aos Países Baixos, ao final do conflitoluso-holandês no Brasil, em 1654. Ainda naquele ano escreveu sua primeiraexposição, um curto requerimento aos Estados Gerais, em nome dos Potiguaraque sempre lhes haviam sido fiéis e que assim se mantinham, emboracontinuassem a sofrer, mais do que antes, a perseguição dos portugueses.

Dois anos mais tarde, ainda vivendo na Holanda, escreveu sua segundaexposição e, nela, ficam explícitos o seu descontentamento e a sua indignaçãocom as autoridades pelo fato de não terem ainda atendido o seu pedido deajuda. Por conta disso, faz uma espécie de retrospectiva das relações e aliançasfirmadas entre seu povo e os holandeses. Na realidade o seu intuito, ao fazeruma “renovação da memória”, é mostrar que os Potiguara foram fiéis ecumpriram suas obrigações em relação aos Estados Gerais e à Igreja CristãReformada, conforme haviam sempre “acordado”. Trata-se da reclamaçãoque um parceiro faz a outro pelo descumprimento de um trato. Cobra ocumprimento, pelos holandeses, da sua obrigação de zelar pelos Potiguaraenquanto estes fossem fiéis ao estado e à fé reformada:

Declarando em nome de Deus que isso será feito com nenhum outroobjetivo no mundo a não ser o de renovar a memória daquelesnessa presente reunião ilustre de V.as Ex.as, que ainda se lembra doque se passou, e informar àqueles que desconhecem, sobre osserviços prestados por essa nação com toda lealdade, para assimdespertar nos corações de ambos uma compaixão cristã para comesta nação (...) queiram V.as Ex.as observar que tudo que essa naçãomiserável encontrou no serviço das V.as Ex.as e que foi agüentado esuportado por ela tão corajosamente, não foi feito por um povosem conhecimento do Deus verdadeiro, mas por um povo que com

15 Nome pelo qual era conhecido o conselho soberano da República dos Países BaixosUnidos. HULSMAN, Lodewijk. Índios do Brasil na República dos Países Baixos: asrepresentações de Antônio Paraupaba para os Estudos Gerais. Revista de História. SãoPaulo, n.154, 2006, p.39.

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a aliança com V.as Ex.as também abraçou e adotou a verdadeiraReligião Reformada Cristã.16

Além disso, ao longo do texto nos deparamos com várias expressões quealudem a ensinamentos bíblicos, a exemplo da “parábola dos talentosescondidos”. Paraupaba a utiliza para lembrar as autoridades neerlandesasque elas têm um dever, diante de Deus, de promover a propagação daverdadeira fé: “Como agradou a sua Majestade Divina chamar e usar as V.as Ex.as

(que também foram redimidos do paganismo) para pregar a eles [os índios] oseu evangelho”17. Ou seja, argumenta que eles têm que ajudar àquele povoque se converteu ao protestantismo por sua causa, e que sem o seu auxílio,se acabará, será destruído, e toda a obra evangelizadora terá sido em vão, eDeus, enfim, haverá de os chamar para prestar contas dos “talentos” que nãoutilizaram. O interessante aqui é notar que Paraupaba utiliza a parábola cristã,ensinada pelos holandeses, e a reverte em uma retórica própria para cobrá-los em sua própria “linguagem”.

Contudo, aquilo que nos parece mais emblemático nesse documento é aanálise que faz da figura de Pedro Poty que, ao tempo desta exposição, jáhavia sido morto pelos portugueses. Ele o usa como um exemplo de fidelidadee respeito à aliança f irmada entre as duas nações, e que, sobretudo,pressupunha a fidelidade aos Estados Gerais e à fé reformada:

Aquele Grande Deus de misericórdia fortaleceu aquela cana frágil(...) transformando-a em um forte pilar da fé (...) Finalmente, queestava pronto a morrer firme no seu alto juramento feito a Deus eaos Estados Gerais (...) morri como súdito fiel. E dizei aos da minhanação que os exorto a permanecerem por toda a vida fiéis a Deus eaos Estados Gerais.18

Por que é tão importante para Paraupaba, sempre que possível, reafirmara lealdade à fé reformada? Além de ser uma espécie de “cláusula contratual”,nos parece que, ao fazê-lo, está demonstrando também um posicionamentopolítico e militar, que precisa ser constantemente reforçado, de solidariedadeàqueles com quem compartilhavam o objetivo de derrotar os portugueses.

Se lermos os documentos de maneira menos cuidadosa, ou de uma formamais literal, poderíamos concluir que Poty, Paraupaba e Camarão,incorporaram de tal maneira a cultura cristã européia, que acabaram porprofessar sua fé e sua lei para si. Contudo, a pesquisa nos revelou que algo nacultura Tupi abria a possibilidade de adesão à novas formas de interações, eisso, de certa maneira, possibilitou a articulação com outros povos, o quelhes permitiu, inclusive, resistirem na luta em defesa do seu território.

Segundo Eduardo Viveiros de Castro, a cultura Tupi assim se coloca, poisé receptiva à presença do outro, e quanto a isso é bastante diferente da

16 HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 55.17 HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 55.18 HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 59.

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cultura cristã para a qual o outro é uma ameaça constante e precisa sertransformado. Nesse sentido, quando aqueles líderes utilizam um discursocom elementos alheios à sua cultura, estão interagindo e dialogando comaquela a partir da sua própria. Portanto, ao lermos os documentos, temosque ser sensíveis para perceber que ali se encontra o produto de contatosculturais complexos, rearticulados através de anos de convivência – quasesempre não pacífica, muito pelo contrário, em que ambos os lados setransformam e são transformados.

Os estudos realizados por inúmeros pesquisadores, dentre eles, FlorestanFernandes19, John Manuel Monteiro20 e Eduardo Viveiros de Castro21

ressaltaram que, pelo menos os Tupi, o grupo que é melhor conhecido pornós, emergem, desde os primeiros relatos dos cronistas quinhentistas, comoportadores de um cultura especialmente atenta à lógica de outros povos.Viveiros de Castro no ensaio “O mármore e a murta: sobre a inconstância daalma selvagem”, aprofunda a análise desta característica indígena e nosfornece a chave para o entendimento da autoconstrução de sua identidade –especialmente dos Tupi –, a partir da análise do Sermão da Sexagésima deAntonio Vieira (1655), em que o pregador se refere aos índios comparando-os à murta, que não se deixa esculpir, a não ser aparentemente e por brevetempo, nem pelo mais competente dos jardineiros. Tal como a murta, afirmaum desalentado Vieira, os “brasis” se deixam evangelizar para, logo emseguida, retomarem os antigos hábitos, o seu ancestral modo de vida,esquecendo todos os ensinamentos dos soldados de Cristo22. Neste sermão,o jesuíta faz uma comparação entre a murta e o mármore, que representam,respectivamente, o indígena do Brasil e o nativo do Oriente. Essa analogia serefere à aparente “facilidade” com que os missionários catequizavam os índios,assim como o jardineiro trabalharia uma escultura de murta. Dizia Vieira:

Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrinada fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes, e constantes,as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seusantepassados; resistem com as armas, duvidam com oentendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam,argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas,uma vez rendidas, uma vez que recebem a fé, ficam nelas firmes econstantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar

19 FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade Tupinambá. 2. ed. SãoPaulo: Pioneira; Edusp, 1970.

20 MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de SãoPaulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuiase historiadores: estudos de História Indígena e do indigenismo. Tese de Livre Docência.Universidade Estadual de Campinas, 2001.

21 CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios deAntropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

22 VIEIRA, António. Sermões. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2001, p. 53-70.

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mais com elas. Há outras nações, pelo contrário – e estas são as doBrasil – que recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidadee facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, semresistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e atesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à brutezaantiga e natural, e a ser mato como dantes eram (...).23

Foi buscando desvendar essa dita inconstância que Viveiros de Castrolevanta a tese de que os Tupi tinham uma maneira totalmente diferente domodo ocidental de se relacionar com outras culturas. Enquanto, para osocidentais, a sociedade tem que se preservar para não perder sua identidade,pois, uma vez que um dos elementos que a constituem seja modificado, tendea acreditar que ela já não é mais a mesma e, principalmente, que não voltaráa ser a mesma, para os Tupi, a lógica é inversa. Ela pressupõe a interação como outro. A alteridade é uma constante para essa sociedade; nesse sentido sãopovos abertos a novas formas, assimilam e incorporam práticas e costumesdo outro, mas isso não os torna menos si próprios, ao contrário, agindoassim, reafirmam a sua cultura:

Nossa idéia de cultura projeta uma paisagem antropológica povoadade estátuas de mármore, não de murta (...) entendemos que todasociedade tende a perseverar no seu próprio ser (...), mas,sobretudo, cremos que o ser de uma sociedade é seu perseverar: amemória e a tradição são o mármore identitário de que é feita acultura. Estimamos, por fim, que, uma vez convertidas em outrasque si mesmas, as sociedades que perderam sua tradição não têmvolta (...) talvez, porém, para sociedades cujo (in)fundamento é arelação aos outros, não a coincidência de si mesmas, nada dissofaça o menor sentido.24

Essa “inconstância” indígena no tocante à guerra também impressionavaos europeus, que tinham dificuldade para compreender a facilidade com queos grupos se aliavam para guerrear e, ao mesmo tempo, desfaziam tais aliançasse unindo a outros para lutarem contra os “ex-aliados”. Apesar disso, noentanto, os europeus souberam utilizar astutamente esta característica dosTupi a seu favor ao longo da colonização.

Enfim, o que julgamos importante destacar é que este período foi marcadopor um intenso “processo de trocas” culturais, um verdadeiro contato entreos mundos e, a complexa comunicação dos índios com o cristianismo e asalianças militares com os europeus, são exemplos que reafirmam talintensidade. Tais aspectos revelam, também, o vigoroso caráter “negociador”dos povos Tupi, que fica muito visível nas alianças estabelecidas com oseuropeus; são provas de que os índios atendiam a intenções próprias nessesdiversos momentos. Eles processavam aspectos da lógica da guerra européia

23 VIEIRA, Sermões, p. 54.24 CASTRO, A inconstância..., p. 195.

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em razão de suas lógicas tradicionais, se mostrando hábeis interlocutorescom os costumes dos conquistadores. A assimilação do que é “do outro”, daslógicas e características alheias já era comum das tradições indígenas.

Os relatos mais antigos sobre eles, como já dissemos, são elucidativos aeste respeito, e é possível perceber tal característica, por exemplo, nas práticasrituais antropofágicas. Isso se evidencia em relatos como o de Hans Staden25.O guerreiro ali sacrificado seria ingerido em banquete ritual partilhado pelosintegrantes do grupo e as suas qualidades seriam, então, absorvidas poreles. Dessa forma, se o cativo demonstrasse covardia frente à morte iminente,revelando-se fraco e comportando-se de forma inadequada para um bomguerreiro, os comensais se sentiam “enojados”, incomodados por assimilaremuma característica negativa. Outra prática em que se faz notar a capacidadede percepção da alteridade pelos índios e seu cuidado quanto a isto eramseus tabus alimentares. Eles se privavam da ingestão de animais quedemonstrassem fraqueza e lentidão, por exemplo, pois ambas eramcaracterísticas que não coadunavam com as de um valoroso guerreiro.

O espanto do europeu diante dessa “inconstância” é, por exemplo, aindavisível dezenove anos depois do contato com os holandeses, quando o AltoConselho do governo da WIC no Brasil se refere a seus aliados, Pedro Poty eAntônio Paraupaba, como sendo “mais perversos e selvagens na maneira deviver do que os outros brasilianos”26, ou ainda que os cronistas do século XVII –inclusive catequizadores católicos – se referindo aos índios aliados dosportugueses, não cansem de mencioná-la porque continua a dificultar o bomandamento da conversão deste gentio.

Talvez o mais interessante na discussão sobre o nosso corpus documentalseja o fato de que seus autores escrevem como “membros” inseridos nasociedade colonial, inclusive usando as regras de conduta da mesma para secomunicarem. Apesar disso, no entanto, é possível perceber evidências datradição indígena que revelam um entendimento claro, por parte dessaslideranças, do que significava a estrutura social que se implantava nas terrasda “América portuguesa” depois da conquista e da colonização européia. Potyexpressa a visão indígena: “Vinde, pois, enquanto é tempo para o nosso ladoafim de que possamos com o auxílio dos nossos amigos viver juntos neste paiz queé a nossa pátria e no seio de toda a nossa família”, ou ainda mais esclarecedor,“Mantenhamo-nos com os extrangeiros que nos reconhecem e tratam bem nanossa terra”, diz Poty falando dos holandeses27.

Como já dissemos, alianças e coalizões, em diversos âmbitos das suassociedades, já eram comuns entre os povos Tupi, que mantinham acordosintergrupais e extragrupais com o intuito, dentre outros, de servirem-se naguerra. O fato é que essas alianças não implicavam a perda de suas terraspara os novos aliados e, talvez, tenha sido por isso que apoiaram os franceses

25 STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. São Paulo: Beca, 2000.26 HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 43,27 RIBEIRO & MOREIRA NETO, A fundação..., p. 230. Destaques nossos.

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– envolvidos no negócio do pau-brasil – que chegavam sem pretensões deocupação e domínio territorial (pelo menos em princípio) e, depois, osholandeses que, por mais que se empenhassem em uma colonizaçãopropriamente dita, tomaram o cuidado de manter políticas essenciais para amanutenção do apoio indígena, inclusive lhes “permitindo viver como índios”.Essa política talvez explique, inclusive, a manutenção dos nomes indígenas –Poty e Paraupaba – dos Potiguara aliados dos holandeses, em contrapontoaos católicos conversos, inclusive no nome, Antonio Felipe e Diogo Camarão,aliados dos portugueses.

O fato é que, nessa passagem de Poty, é possível perceber um dos aspectosda visão indígena em relação aos holandeses, a de que esses seriam, umaliado “estrangeiro”, externo, portanto. Um aliado que conhecia e respeitavaos direitos indígenas e que estava disposto a ajudar a expulsar os portuguesese, ao mesmo tempo, viver em paz na terra. Logo, a intenção era unir-se comestes “estrangeiros” “afim de que possamos com o auxílio dos nossos amigosviver juntos neste paiz que é a nossa pátria”28. A posse da terra seria, então,dos detentores de direito, isto é, os que aqui estavam antes mesmo da chegadade qualquer caravela. Este era um argumento muito forte.

Ao apontarmos o caráter negociador das sociedades nativas da Américaportuguesa, da vinculação do que era tradicional ao que era novo, falamostambém da capacidade dessas mesmas sociedades de perceber, assimilar ereconhecer a alteridade; sociedades que elaboram a re-interpretação do novoe o enquadram, em certa medida, no que lhes é tradicional. Os casos em queos índios interagem com a cultura dos colonizadores na expectativa deobterem algo em troca são inúmeros e são relatados tanto pelos cronistas daigreja empenhados na conversão e catequização dos índios, como Vieira,quanto por pessoas vinculadas aos setores militares, às guerras, inclusivecom e contra nativos, como Hans Staden. Os casos não eram poucos e, maisuma vez, Viveiros de Castro é elucidativo a este respeito. A inconstância daalma selvagem está geralmente presente em qualquer escrito que mencioneos primeiros habitantes destas terras. Eles agem, procuram, ao longo dotempo, garantir sua sobrevivência e a de seu povo em um novo sistema social.É importante lembrar que esta característica não é exclusivamente indígena,nem muito menos só dos indígenas aliados aos holandeses. Outros povostambém a manifestavam, inclusive os colonizadores. Exemplo disso foi aatuação da Companhia de Jesus na catequização, na América e na Ásia, aofazer uso das tradições dos povos locais para levar adiante a sua intenção deremissão dos “bárbaros”.

Na passagem da segunda exposição de Paraupaba aos Estados Geraisfalando sobre a situação de Poty no cativeiro, tal aspecto fica evidente:

Além disso, [os portugueses] empregaram todos os meios para que

28 RIBEIRO & MOREIRA NETO, A fundação..., p. 230.

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Poti [sic] induzisse os outros da sua nação, que se conservavam fiéisno serviço de V.as Ex.as, a passarem para o partido deles,prometendo dar-lhes imediatamente a patente de capitão egarantindo-lhes maiores vantagens para o futuro.29

Estes benefícios são, sem dúvida, uma das molas mestras das aliançasindígenas. A guerra estava em suas veias sociais e, cerca de um século e meioantes, um novo participante direto havia entrado neste processo. As aliançase as dissidências neste mundo onde isto já era comum, não podiam ser muitodiferentes neste caso específico.

Na organização social dos povos nativos americanos, que FlorestanFernandes estudou especificamente quanto aos tupinambás, povos quesintetizavam os fundamentos sociais da maior parte dos povos tupis da regiãonordeste do Brasil, a guerra desempenhava, sem resquício de dúvida, umfator crucial. Ela atendia a lógica de uma relativa “subordinação” de aldeias,garantia alguma vantagem com relação ao mantimento e o controle demelhores nichos ecológicos, fundamentava, em parte, a estrutura dos núcleosfamiliares, definia a organização de trabalho, incidia sobre a educação dascrianças e permeava o imaginário a partir da concepção de morte que advinhado campo de batalha. Não é à toa que, como demonstram pontos coincidentesnos relatos dos cronistas dos séculos XVI e XVII, a guerra era um fator socialde extrema importância nestas sociedades.

Levando em consideração toda a influência e importância da guerra emuma sociedade como essa havemos de convir que colocá-la em um novoconfronto não haveria de ser, nem seria, uma das coisas mais difíceis domundo; desde que se conhecesse a fundo parte dos processos necessáriospara isso. Foi o que fizeram os colonizadores europeus. A aliança com osindígenas respondia a grande parte do problema de estarem em terrasestranhas, cercados por potenciais inimigos. Atendia também à necessidadede contingentes militares para a operação da conquista e do estabelecimentoda colonização.

Assim, os índios serviam a este fim motivados por algo que já lhes erapróprio, que era característico de sua própria sociedade e uniam suas lógicastradicionais à dos recém-chegados para tentar obter proveito de toda essasituação, ao mesmo tempo em que se defendiam. Logo, se faz necessáriotambém analisar o outro lado deste processo, já que seu usufruto não foibenefício exclusivo dos colonizadores. A guerra aos inimigos, como já foidito, era intrínseca à sociedade indígena. As alianças com outros grupos eram,muitas vezes, definidoras destas guerras contra seus inimigos.

Essa constante de guerras e alianças fazia parte da dinâmica dos povostupis, e é nesta dinâmica que os europeus são inseridos. Em princípio, oseuropeus foram inimigos ou aliados dos índios contra outros índios, depoiscom a presença de outros europeus, inimigos entre si, estes passaram também

29 RIBEIRO & MOREIRA NETO, A fundação..., p. 231.

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a serem incorporados à mesma lógica, vistos como potenciais aliados contraoutros brancos. Sendo assim, o apoio destes novos aliados que, saídos domar, portavam artefatos nunca vistos, mas bastante úteis, acabava sendoconsiderado importante pelos grupos nativos.

A força motriz da guerra indígena era a vingança. Não é à toa que tãorepetidas vezes se remetam a esta nos documentos tupis; ela se mantém“fresca” na memória mesmo com toda a aproximação com os europeus etoda intervenção de suas culturas. Esta vingança era alimentada no decorrerdas gerações e apregoada nas suas tradições pela lembrança dosantepassados, pelo embate iminente entre tribos rivais que, por sua vez,tinham uma origem comum, como nos revelam, entre outras pistas, algunsaspectos da língua tupi. A vingança se faz presente no cotidiano, é alimentada,desde a infância, pela imagem dos guerreiros de destaque das tribos, comseus nomes enormes e seus corpos marcados por tatuagens, ambosdecorrentes da assimilação dos daqueles inimigos tornados reféns e, depois,sacrificados. É avivada também pelo sacrifício ritual. Não só o ato da bordoadaé símbolo do desejo de vingança, mas todo o processo que envolve a troca dexingamentos, o juramento que, por sua vez, o refém faz de que também serávingado até, e principalmente, o diálogo final entre as partes diretamenteenvolvidas, a vítima e seu carrasco. A vingança, no entanto, não era apenasuma maneira de se eliminar as tensões entre os grupos pela morte de umparente, como entende Florestan Fernandes. Mais que isso, era a reafirmaçãodos laços sociais e das alianças. Ela não se encerrava na morte do cativo,antes ela era renovada, envolvento todo o grupo naquele evento: “(...) acontinuidade da vindita era fundamental para uma sociedade em que sua únicacerimônia coletiva tinha, em seu centro, o inimigo, e não a imagem unificadorada chefia”.

Como se pode perceber, a reutilização de aspectos da tradição indígena,adicionando-se a esta, outros de culturas alheias, não era algo incomum entreeles. Um bom exemplo é a “re-interpretação”, por parte deles, da vingançarelacionada ao processo ritualístico da guerra. Como já vimos, a vingançaritualística era culturalmente a força motriz das guerras entre naçõesindígenas, já que cumpria a função de realizar o intuito dos homens devingarem seus antepassados; vingança que se processava por meio dacaptura de reféns a serem sacrificados e devorados em cerimônias e banquetesrituais. Podemos, à luz disto, enunciar o fato de que a vingança seria, então,obra dos homens, decorrente de responsabilidades adquiridas em relaçãoaos seus antepassados.

Após o contato com os europeus e, depois das constantes e inúmerasondas evangelizadoras por parte das igrejas cristãs com intuito de conversão– em parte “aceitas” pelos indígenas –, a propagação dos aldeamentos, a

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30 FAUSTO, Carlos. Fragmentos de história e cultura Tupinambá: da etnologia comoinstrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CUNHA, Manuela C. da Cunha(org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 393.

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educação dos índios pela igreja, as capturas com pretensões escravistas, asdescidas dos tapuias, dentre outros fatores, os convertidos e as comunidadesaldeadas que, então, começavam a engrossar as fileiras das tropas de batalhados europeus, passaram a lidar de outra maneira com a vingança. Paraupaba,cristão reformado, educado nos Estados Gerais, Regente das tropas indígenasdo Rio Grande, cita a bíblia e expressa esse novo sentido:

O primeiro contato com V.as. Ex.as foi pago tão caro que esta naçãopode dizer com razão que a sua primeira união com este Estado foiassinada e selada, de sua parte, com o sangue das suas maisvalorosas jóias, através do ódio eterno e intransigente contra aquelesPortugueses sanguinários. Quais torturas, quais tormentas e quaismassacres eles sofreram e suportaram desde aquele tempo até achegada do General Waerdenborgh. Nem a língua pode falar, nema caneta pode escrever. Só o conhece o onisciente Deus que diz: avingança é Minha (...).31

Esta é apenas uma das muitas passagens dos documentos Tupis que sereferem à vingança a partir deste ponto de vista. Agora, quem supre estanecessidade é o deus cristão. Podemos nos perguntar: o que vemos nestecaso, em vez de uma “re-interpretação” não seria uma sobreposição da culturaeuropéia em detrimento da cultura dos nativos da América portuguesa? Naverdade não. Parece-nos que o que mudou foi o agente da vingança, porém,o processo permaneceu em clara relação com o formato anterior no sentidode que ainda causava, sob uma perspectiva cultural, certa influência sobre amente dos aborígines. Esse aspecto também fica explícito, por exemplo, naspalavras de Poty: “Os ultrajes que nos têm feito mais do que aos negros e acarnificina dos da nossa raça, executada porelles na bahia da Traição, aindaestão bem frescos na nossa memória”32. As guerras continuaram ocorrendo,porém, agora, respondendo aos desígnios divinos com forte caráterritualístico.

Nestes documentos encontramos mais do que as impressões destesindivíduos sobre o conflito ou sua conjuntura. Neles observamos uma retóricapeculiar pautada em argumentos de diferentes naturezas, nos quais podemosperceber elementos culturais dos agentes envolvidos na guerra. Para nós, talpresença expressa o profundo contato, quase nunca pacífico, que osindígenas da região em que ocorreu o conflito tiveram com os portuguesesao longo de um século, desde o início da colonização na década de 1530, ecom os holandeses, desde o início da guerra, em 1630. Procuramos, assim, oentrelaço dos elementos culturais dos agentes envolvidos, para perceber deque maneira a cultura do outro foi sendo incorporada e rearticulada conformese intensificavam os contatos e, conseqüentemente, os conflitos. É possívelobservar no discurso elaborado por lideranças indígenas que estavam

R. C. GONÇALVES, H. S. CARDOSO & J. P. C. R. PEREIRA

31 HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 56. Destaque nosso.32 RIBEIRO & MOREIRA NETO, A fundação..., p. 230.

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diretamente ligadas às esferas de comando, e que, portanto, tinham oconhecimento das conjunturas interna e externa dos acontecimentos, asrearticulações simbólico-culturais que fundamentaram a política de aliançasque estabeleceram com os europeus.

Além de nos darem uma idéia de como aqueles agentes conheciam bemtoda a conjuntura da guerra, tecendo argumentos de variada natureza paraconvencerem seus interlocutores, os documentos nos revelam aspectos dosmais diversos a respeito da relação entre nativos, portugueses e holandeses.Ao lermos esse material nos saltam aos olhos várias passagens em que osautores fazem uso de expressões provenientes, por exemplo, da doutrinacristã – seja católica, como a dos portugueses, ou reformada, tal qual a dosholandeses. Perceber isso é imprescindível para compreendermos o contatoestabelecido entre os agentes, atentando para a dinâmica de suas relações.Considerando essa relação, analisamos o discurso cristão/ocidental presentena documentação, observando de que maneira aqueles indígenas seapropriaram de argumentos dos seus aliados, declarando a todo o momentoa fé do outro para si, rearticulando-os a partir de elementos da sua própriacultura, criando um discurso próprio.

Nesse sentido, questionamos o mito da passividade indígena, recorrentedurante longo tempo na historiografia brasileira, mas que, infelizmente, aindaestá presente na cultura histórica de grande parte da nossa sociedade.Buscamos mostrar que, ao contrário do papel de coadjuvantes atribuído aospovos indígenas por aquela historiografia, não apenas na ocasião dessaguerra, mas também em toda a formação histórico-social do Brasil, na nossaperspectiva, estes são agentes, e como tais, ativos em todo o processo. Sãosujeitos que operam e continuam a operar com certo grau de autonomia ecapacidade de decisão, tanto que, dependendo do posicionamento tomadopor eles, como podemos verificar em diversos momentos do período queestudamos, alguns episódios estariam fadados ao sucesso ou ao fracasso.

Assim, os aspectos característicos da religião cristã, contidos nosdocumentos, ao contrário do que à primeira vista possa parecer, nãosignificam simplesmente mais um modo de submissão indígena à culturaeuropéia, mas, também, podem ser lidos como um artifício usado parafirmarem alianças que lhe fossem úteis, tanto com os católicos portuguesesquanto com os reformados batavos Desta forma, aquilo que pareceriaestritamente argumento ou simples retórica religiosa, para nós, marca umposicionamento político dessas lideranças indígenas frente ao conflito queocorre em suas terras ancestrais.

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VIDAL DE NEGREIROS:UM HOMEM DO ATLÂNTICO NO SÉCULO XVII1

Ângelo Emílio da Silva Pessoa2

De André Vidal direi a V.M. o que não atrevi até agora, por me não apressar; e,porque tenho conhecido tantos homens, sei que há mister muito tempo para seconhecer um homem. Tem V. M. mui poucos nos seus reinos que sejam comoAndré Vidal; eu o conhecia pouco mais que de vista e fama: é tanto para tudo odemais como para soldado: muito cristão, muito executivo, muito amigo dajustiça e da razão, muito zeloso do serviço de V.M. e observador das suas reaisordens, e sobretudo muito desinteressado, e que entende mui bem todas asmatérias, posto que não fale em verso, que é a falta que lhe achava certo ministrogrande da corte de V.M.Pelo que tem ajudado a esta cristandade lhe tenho obrigação; mas pelo que tocaao serviço de V.M. (de que nem ainda cá me posso esquecer) digo a V.M. queestá André Vidal perdido no Maranhão, e que não estivera a Índia perdida seV.M. lha entregara.

Carta do Pe. Antônio Vieira ao Rei D. João IV, Pará, 6 dez. 1655.3

oi nesses termos que o grande pregador seiscentista PadreAntônio Vieira se referiu ao então Governador do MaranhãoAndré Vidal de Negreiros, quando este se afastava do governodaquela Capitania para assumir a governança de Pernambuconaquele mesmo ano. A fama de Vidal vinha desde os tempos

das lutas contra os holandeses pela restauração do nordeste açucareiro paraa Coroa portuguesa. Ao longo de sua vida obteve posições de importânciano âmbito do mundo colonial, e sua trajetória é, sob todos os aspectos, umainteressante caminhada de um filho de portugueses que nasceu na colônia ealcançou uma destacada posição na hierarquia do poder no âmbito do Império.

Vidal nascera na Paraíba, em data ignorada, no início do século XVII; asfontes secundárias discordam quanto a datas possíveis que vão de 1602 a16204. Sua filiação também não é das mais conhecidas, se para alguns se

1 Este ensaio é resultado preliminar de uma pesquisa que desenvolvemos junto aoDepartamento de História da Universidade Federal da Paraíba. O autor agradece assugestões de Rosa Godoy Silveira e Paulo Valadares.

2 Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Pesquisador dos Grupos dePesquisas Estado e Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq) eSaberes Históricos: Ensino de História, Historiografia, História da Educação e Patrimônios(PPGH-UFPB/ Diretório CNPq). Professor Adjunto do Departamento de História,Coordenador do Curso de Graduação em História e Docente Permanente do Programade Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. E-Mail:<[email protected]>. Blog: <http://terrasdehistoria.blogspot.com/>.

3 VIEIRA, Pe. Antônio (1608-1697). Cartas do Brasil. Organização de João Adolfo Hansen.São Paulo: Hedra, 2003, p. 455-456.

4 Não há indicações precisas sobre o nascimento de Vidal, mas tudo indica que o mesmoera nascido na Paraíba, entre esses anos. Seu principal biógrafo, Luiz Pinto, indica que

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atribui ao seu pai a condição de dono de engenho, de pequeno lavrador decanas ou um bombardeiro, para uma sarcástica fonte holandesa da épocaseu pai era um modesto carpinteiro: “André Vidal de Negreiros apareceu emRecife, sob o pretexto transparentemente frágil de dizer adeus ao velho pai,que era um pobre carpinteiro da Paraíba, a quem estava ele tão ansioso de reverquanto eu estaria de ver o rei do Congo”5. O certo, porém, é que o jovem Vidaltornou-se, em sua carreira, um militar de renome, homem de fortuna edesempenhou importantes cargos nos governos das colônias. Nos séculosque se seguiram à sua morte, foi elevado à condição de um dos heróis donativismo brasileiro, com direito a estátuas, nome de praças e avenidas,imagem em selos postais, entre outras6.

Essa questão do nascimento é elemento importante para entender aspossibilidades de ascensão de um homem naquela sociedade. Um nascimentonuma determinada família conferia distinção aos seus membros e certasmarcas – ou defeitos de sangue ou mecânicos, na linguagem da época –poderiam criar sérios obstáculos aos mesmos. O drama de Filipe Pais Barretonos primeiros anos do século XVIII, impedido de integrar os quadros da Ordemde Nosso Senhor Jesus Cristo, em função de uma suposta ascendência cristã-nova de uma de suas avós, explorada por seus inimigos, retrata bem essaquestão7. De forma similar, em 1740, o Capitão Mor da Paraíba, Pedro Monteirode Macedo, reclamava, em Carta na qual solicitava o Hábito da Ordem deCristo, que certos padres franciscanos satirizavam os governantes locais coma difamação de judeus8. Não obstante, apesar do nascimento, os méritos oua riqueza poderiam, em alguns casos, atenuar ou até mesmo apagar algumasmarcas desfavoráveis do nascimento. O caso de João Fernandes Vieira erasingular; sua origem relativamente obscura para a época, na cidade deFunchal, na Ilha da Madeira, chegou a ser alvo de comentários considerados

à época da ocupação holandesa da Bahia, em 1624, sua idade era de 18 anos, o quecoloca o seu nascimento por volta de 1606; também se refere ao fato de ser filho deum senhor de engenho. PINTO, Luiz. Vidal de Negreiros: afirmação e grandeza de umaraça. São Paulo: Alba, 1960, p. 28.

5 BOXER, Charles R. Os Holandeses no Brasil (1624-1654). São Paulo: Companhia EditoraNacional, 1961, p. 228.

6 Em 1942 seus restos mortais, junto aos de João Fernandes Vieira, foram transferidos empréstito solene para a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres dos Montes Guararapes,onde repousam na condição de heróis do nativismo brasileiro. Na ocasião o Arcebispoda Paraíba, D. Moisés Coelho, fez o elogio do herói: “Aqui ao clarão destes sepulcros,onde repousam em cinzas gloriosas os corpos de Vidal de Negreiros e João Vieira, estará oBrasil, em constantes romarias, não só para cultuar seus nomes, mas também para inspirar-se nos seus exemplos de patriotismo e de fé, e ainda para afinar seus próprios sentimentosnaqueles sentimentos de verdadeiro patriota e brasileiro, os quais sempre animaram ocoração e a alma dos ímclitos [sic] lutadores”. In: Revista do Instituto Arqueológico Históricoe Geográfico Pernambucano, Recife, n. 38, 1943, p. 224.

7 Esse drama está estudado com argúcia em MELLO, Evaldo Cabral de. O nome o sangue:uma fraude genealógica no Pernambuco colonial. São Paulo: Companhia das Letras,1989.

8 AHU_ACL_CU_014, Cx. 11, D. 927.

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desairosos, conforme um anônimo coevo: “veyo este Senhor a esta terra eCapitania de Pernambuco da Ilha da Madeira donde he natural e filho de umamulata rameira a quem chamão a Bemfeitinha e de hum homem que lhe dão porpay, que foi ali degredado em titolo de ladrão”9. Entretanto, independente daveracidade dessa suposta origem desabonadora – há outras possibilidadesnesse caso – Vieira tornou-se membro proeminente da sociedade local ehomem respeitado por seus pares.

O caso de Vidal de Negreiros é pouco claro e essa questão continuadependente de novas investigações. Na História da Guerra Brasílica, deFrancisco de Brito Freire, o primeiro comentário sobre Vidal é o seguinte:

o ajudante André Vidal de Negreiros; donde o feriram pelos peitosde um chuçasso. E donde, com esforço singular e singular fortuna,principiando a crescer nos postos por que foi subindo a mestre-de-campo e aos governos do Maranhão, Pernambuco e Angola, nãoteve pequena parte, assim no trabalho como na glória de quanto sefoi obrando na guerra e na restauração do Brasil.10

Assim, de acordo com a fonte holandesa já citada – provavelmenteinteressada em desqualificar Vidal – esse era homem de modestas origens;seu biógrafo e seus panegiristas já fizeram questão de aludir uma origemligada à propriedade da terra, tal como as principais famílias da colônia; jáBrito Freire, embora não faça menção às suas origens, destaca seus méritos,o que, ao final, serviu de base para apagar qualquer mancha ou defeito que,por acaso, seu passado familiar pudesse apresentar. Sobre essa questão,valem as considerações de Eduardo d’Oliveira França sobre as origens devários homens e famílias enriquecidos no mundo colonial:

O magnata colonial, em que pesem suas genealogias indígenas, nãofoi geralmente fidalgo de linhagem. Um senhor de engenho era umburguês com a vida afidalgada pela fortuna... Homens que sobre otrabalho escravo nos canaviais tinham erigido um edifício de poder.11

No Mundo dos Engenhos

O mundo no qual Vidal de Negreiros nasceu era uma das mais recentesfronteiras da conquista portuguesa em terras americanas. Como jámencionamos, as fontes secundárias indicam datas de nascimento em 1602,1606 e 1620 Considerando-se essas marcas cronológicas, Vidal nascera entre17 e 35 anos após a fundação da Cidade de Filipéia de Nossa Senhora das

9 MELLO, José Antônio Gonsalves de. João Fernandes Vieira: Mestre de Campo do Terço deInfantaria de Pernambuco. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dosDescobrimentos Portugueses; Centro de Estudos de História do Atlântico, 2000, p. 23.

10 FREIRE, Francisco de Brito. Nova Lusitânia, História da Guerra Brasílica [1675]. São Paulo:Beca, 2001, p. 236-237. Grifo nosso.

11 FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997,p. 175.

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Neves, que marcara a conquista portuguesa da região e a instalação daCapitania Real da Paraíba, após longas lutas envolvendo portugueses,franceses, potiguaras e tabajaras. Essa conquista, ainda instável, demandavaum esforço intenso para consolidar a presença portuguesa nessa fronteira; apenetração do litoral para áreas mais interioranas mal começara através deexplorações na Serra da Copaoba e da concessão de sesmarias na várzea doParaíba12. Os relatos de Brandônio e do Governador holandês da Paraíba EliasHerckmans, escritos na segunda e na quarta décadas do século XVII, dãonotícias das penetrações realizadas, até aquele momento, no sertão daCapitania da Paraíba, que mal era conhecido e explorado. O mapa holandêsde George Marcgrave, que cartografou a Paraíba na primeira metade do séculoXVII, dá uma representação que mostra, para o sertão, de maneira um poucomais detalhada, o Rio Mamanguape até suas nascentes na Serra da Copaoba(Serra da Raiz), no norte da Capitania, e o resto do território não estárepresentado, pelo pouco conhecimento que se tinha da área13.

As complexas relações com os povos indígenas na região significavam umelemento central para a expansão das atividades econômicas pretendidaspelos colonos, uma vez que a Capitania Real da Paraíba representava umaexpansão da economia açucareira que se desenvolvia a partir de Pernambuco.A instalação dos primeiros engenhos e fazendas implicava na necessidade deocupar terras com condições favoráveis, de obter mão de obra abundante ea custos acessíveis, de garantir a segurança dos colonos e seu abastecimento;questões essas cruciais para o sucesso da empreitada. A escravização de índiosapresentava problemas consideráveis, envolvendo não apenas indígenas ecolonos (o que, não raro, levava a enfrentamentos armados de diferentesmagnitudes), mas também missionários das ordens Católicas, que instalaramos primeiros aldeamentos nas cercanias da Cidade nas décadas imediatas àfundação. A relação entre essas Ordens, os colonos e as autoridades,especialmente no que tange aos jesuítas, tornou-se um ponto importante deconflitos que se estabeleceram em todo o território da colônia14. Também

12 As complexas situações referentes à conquista e consolidação da presença portuguesano território da Capitania Real da Paraíba podem ser vistos em PRADO, João Fernandode Almeida. A conquista da Paraíba. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. LINS,Guilherme Gomes da Silveira d’Ávila. Páginas de História da Paraíba: revisão crítica sobrea identificação e localização dos dois primeiros engenhos de açúcar na Paraíba. JoãoPessoa: Empório dos Livros, 1999. GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e Açúcares: políticae economia na Capitania da Paraíba (1585-1630). Bauru: EDUSC, 2007.

13 Veja-se BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil [1618]. 3. ed.Recife: Fundaj/ Massangana, 1997. HERCKMANS, Elias. Descrição geral da Capitania daParaíba [1639]. João Pessoa: A União, 1982.

14 Nos anos que se seguiram à fundação da Capitania da Parahyba, entre finais do séculoXVI e início do XVII, ordens como os jesuítas, os franciscanos, os beneditinos e oscarmelitas se estabeleceram na região e desenvolveram atividades ligadas à catequesedos índios, tal como acontecera em Pernambuco anos antes. Veja-se HOORNAERT,Eduardo et al. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo.(Primeira Época). Tomo II, vol. 1. 4 ed. Petrópolis: Paulinas; Vozes, 1992.

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começava por esse momento a se generalizar, estabilizar e regularizar oproblemático emprego da mão-de-obra escrava africana, através daconsolidação de fluxos oceânicos que envolviam portos brasileiros e africanos,muito embora esse processo demandasse situações bastante conflituosas,que se demonstraram um dos pontos nevrálgicos da expansão da colonizaçãolusitana em território americano.

Assim, o jovem Vidal deve ter vivido num mundo marcado pela incerteza epela presença da guerra no horizonte próximo. A instalação dos engenhos, apartir do próprio Regimento do Governador Tomé de Souza (em 1549, emtorno de seis a oito décadas antes do nascimento de Vidal), pressupunha aconstrução de torres e o seu aparelhamento com armas, em função dasprementes necessidades de defesa. As incursões de índios contra colonos oude colonos contra índios, ou ainda de corsários europeus, era um fator presentena vida cotidiana. Se analisarmos o conjunto da colônia, mesmo regiões deocupação mais antiga e consolidada como a Bahia, São Vicente, Rio de Janeiro,ou a vizinha Capitania de Pernambuco, ainda tinham a incerteza e o temor daguerra como fatores marcantes na vida dos moradores15. Por outro lado, essapresença constante da guerra no horizonte de possibilidades, abria condiçõespara que homens de origens modestas aspirassem uma ascensão social, emfunção de notórios feitos de armas que viessem a realizar.

O Açúcar, a Guerra e outros conflitos

Em 1630, a sociedade açucareira que se construía em Pernambuco e nasCapitanias vizinhas foi sacudida com o assalto holandês a Olinda, que setornou o primeiro ato de um conflito de décadas pelos territórios do nordesteaçucareiro. As diversas fases da ocupação holandesa, estudadas por EvaldoCabral de Mello em seu clássico Olinda Restaurada16, resultaram numa ordemquase que permanente de conflitos e na necessidade de reconfiguração dasestruturas de produção e comércio do açúcar, bem como do trato de escravosna África, para atender às novas demandas que se impunham. Ao final de 24anos de presença batava, a restituição da região aos domínios lusitanos,através de uma prolongada guerra em que se notabilizaram indivíduos comoVidal, João Fernandes Vieira, Antônio Filipe Camarão e Henrique Dias, nãosignificou a imediata resolução dos problemas, mas trouxe à tona toda umasérie de questões que marcariam aquela sociedade ao longo dos anosseguintes. Por outro lado, a situação mesma da metrópole, restaurada daesfera de controle espanhol a partir de 1640, permaneceu periclitante nas

15 Para as dificuldades e incertezas que acompanharam as conquistas dessas Capitaniase da instalação das suas Cidades, Vilas, engenhos e fazendas veja-se para o Rio deJaneiro. Ver: BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no séculoXVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de.Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro.Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

16 MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630/1654.Rio de Janeiro: Forense Universitária; São Paulo: Edusp, 1975.

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próximas décadas e não foi tarefa fácil garantir a própria independênciaportuguesa e a integridade de seus domínios coloniais, frente às forçaseuropéias que se digladiavam no cenário mundial.

Inicialmente, a questão da reorganização da produção açucareira implicavana necessidade de fontes de financiamento para compra de escravos e re-equipamento dos engenhos, mas os capitais eram escassos e a situação seagravou gradualmente com a entrada em cena, nas décadas subsequentes,do açúcar das Antilhas, que passou a fazer concorrência ao açúcar nordestino.Por outro lado, instalou-se um conflito generalizado em torno do direito depropriedade sobre terras confiscadas pelos holandeses e compradas porparticulares. O retorno de antigos proprietários, anteriores à ocupaçãoholandesa, que reivindicavam a devolução de suas antigas propriedades,resultou em batalhas jurídicas e ódios pessoais que sacudiram a vida daCapitania.

Os orgulhosos donos de engenhos e escravos da região (chamados porCabral de Mello de açucarocracia) se viam endividados com comerciantes dapraça portuária de Recife e reivindicavam proteção e benesses à Coroa, umavez que entendiam que tinham devolvido as Capitanias do Nordeste à Coroapor seu próprio esforço, à custa de seu sangue e fazendas, sendo súditosmais do que leais, que faziam jus a um tratamento todo especial.

Como os governantes nomeados para a região iriam resolver esses conflitosera questão das mais delicadas. Além de tudo, a reorganização administrativaresultava na disputa sobre a amplitude de certas jurisdições, que opunhamautoridades diversas, seja por motivos substantivos e negócios, seja porrivalidades e ódios pessoais que contribuíam para envenenar ainda mais oambiente.

Assim como outros chefes restauradores, Vidal recebeu, da Coroa, honrariase o reconhecimento de seus serviços, através de sua nomeação para o governodo Maranhão, onde chegou em 1655 e permaneceu até o ano seguinte. Emterras maranhenses Vidal se defrontou com uma precária presença portuguesana região, após a expulsão dos franceses em 1615 e uma breve ocupaçãoholandesa entre 1641 e 1642; tal situação se agravava com um crescente conflitoentre colonos locais e a Companhia de Jesus pela catequese e controle damão-de-obra indígena. Nessa acesa questão, Vidal estava munido de umRegimento e usou seu prestígio para impor alguns limites a determinadaspráticas dos colonos, de acordo com reivindicações dos Jesuítas, o que lhevaleu o reconhecimento do Pe. Antônio Vieira que, então, estava envolvidocom atividades missionárias na região. Assim, determinava o item 3 doRegimento:

favorecereis muito aos Religiosos e Pregadores, e a todas as outraspessoas Eclesiásticas que nele hão de tratar da conversão dos Infiéis,procurando que sejam muito respeitados dos Portugueses, e detoda a outra gente, como é devido, para que com este exemplo, semovam mais os gentios e sejam de mais frutos as pregações entre

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Seja como for, Vidal não permaneceu tempo suficiente para se envolverde forma mais aguda no desgaste dos conflitos maranhenses e, nos anosseguintes à sua saída, essas disputas recrudesceram e os jesuítas acabaramexpulsos, em 1661, por colonos descontentes.

Assumiu o governo de Pernambuco em 1657, o que atestava seu prestígioestando à frente de uma das Capitanias mais importantes do Impérioportuguês. Substituía a Francisco Barreto de Menezes, que exercera o governono momento delicado da restauração, para o que obtivera poderes muitoamplos e especiais. Vidal lutou para confirmar essas prerrogativas para seugoverno e entrou em atritos com o mesmo Francisco Barreto que, então,acabara de assumir o Governo Geral na Bahia. Nessa contendas por jurisdiçãocom a Bahia, além do fogo das vaidades e brios pessoais, pesava o controlede importantes postos de governo e a definição de políticas que interessavamdiretamente à açucarocracia local e influíam nos negócios de produtores e

comerciantes de açúcar.

VIDAL DE NEGREIROS

eles.17

Fig. 1 – Retrato de Vidal de Negreiros, anônimo do século XVII.Museu do Estado de Pernambuco.

17 O Regimento de Vidal de Negreiros está reproduzido em MENDONÇA, Marcos Carneirode. Raízes da formação administrativa do Brasil. Tomo II. Rio de Janeiro: IHGB; Brasília:Conselho Federal de Cultura, 1972, p. 695-714.

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O confronto entre Vidal e Barreto opunha, de certa forma, as aspiraçõesde maior autonomia dos senhores de engenho pernambucanos, queaspiravam um governo mais ao seu talante, para determinarem as políticas aserem aplicadas para a recuperação econômica da região, desejavam se livrardas amarras políticas mais estreitas das autoridades da Coroa, bem como dasamarras econômicas dos comerciantes portugueses instalados na praça doRecife. Restabelecer a plenitude da economia açucareira, livrar-se do pesosufocante das dívidas e obter benesses governamentais eram objetivos dosgrandes proprietários e de suas famílias. Subordinar-se às autoridadesbaianas, além de ferir os orgulhos locais, signif icava perder certasprerrogativas de ação. Vidal, que representava os interesses da açucarocracia,tendo ele mesmo se tornado um importante senhor de engenhos, procurougarantir a nomeação dos principais cargos, a definição de certas questões emalçadas governamentais das Capitanias vizinhas, a execução de determinaçõesda Coroa que estariam na esfera do Governo-geral, entre outras questões.Barreto revidou institucionalmente e essa situação de conflito de autoridadese exacerbou, usando Vidal de todo o seu prestígio para garantir essasprerrogativas18. Esse enfrentamento entre autoridades, que representavamos diferentes grupos de interesses em conflito, prolongou-se nas décadasseguintes e teve seu ápice no início do século XVIII, quando os senhores deengenho pernambucanos, especialmente organizados em torno da Câmarade Olinda, partiram para o enfrentamento armado contra os comerciantes deorigem lusitana, que dominavam a Câmara da Vila do Recife, que então obtinhaa sua autonomia, no episódio que ficou celebrizado como a Guerra dosMascates.

A luta pelas mãos e pés do senhor de engenho

A célebre frase de Antonil, que comparava os escravos às mãos e pés dossenhores de engenho, tinha toda a razão de ser no universo do mundocolonial. Desde as últimas décadas do século XVI a escravidão se generalizoue, além da sempre controversa escravidão indígena, se estabeleceu um fluxocrescente e contínuo de escravos africanos, que abasteciam os portos daBahia, Rio de Janeiro e Pernambuco com cativos para servir de mão-de-obrapara as lavouras, mineração e diversas outras atividades econômicas que seestabeleciam na colônia.

Essa questão capital se mostrou com toda a sua amplitude quando se deua ocupação holandesa de Pernambuco e das Capitanias vizinhas a partir de1630. Ciente de que, para efetivar o domínio do Brasil e a produção açucareira,era necessário garantir as fontes de abastecimento de escravos na África, aCompanhia das Índias Ocidentais determinou as atividades de corso contranavios traficantes de escravos portugueses e acabou por determinar a efetiva

18 Um interessante estudo sobre esses conflitos entre Vidal e Barreto é o de ACIOLI, VeraLúcia Costa. Jurisdição e conflitos: aspectos da administração colonial – Pernambuco –Século XVIII. Recife: Ed. UFPE, 1997.

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ocupação dos principais entrepostos escravistas africanos, e assim se deu,em 1637, com a ocupação de São Jorge da Mina, na costa da Guiné, e em 1641,de São Paulo de Luanda, em Angola. Havia uma clara consciência doscontemporâneos sobre a importância vital do tráfico escravista, como dissePuntoni, a partir de diversos documentos coevos, “perder a África era perdero Brasil”19.

A recuperação das praças africanas era, assim, condição não apenas paraa eventual recuperação de Pernambuco e das Capitanias vizinhas, mas tambémpara a manutenção e exploração econômica da Bahia e do Rio de Janeiro.Tanto assim que, em 1648, Salvador Correia de Sá e Benevides, comandandoforças que saíram do Rio de Janeiro, retomou as praças de Luanda, Benguelae São Tomé20. Nesse contexto, além da restauração do poder da Coroaportuguesa sobre Angola, era inegável a influência da presença de interessesde colonos do Brasil na região. Era, como denominado por Luiz Filipe deAlencastro, uma Angola brasílica que se delineava, uma espécie de controlemuito direto de interesses de colonos do Brasil na região, que se colocava decerta forma à margem do controle mais direto de autoridades metropolitanas.Reconstruir as rotas de tráfico de escravos se tornou objetivo imediato dosrestauradores de Angola ao âmbito da monarquia lusa.

Após o Governo de Salvador de Sá (1648-1652) e seus sucessores imediatosem Angola, coube o seu governo a João Fernandes Vieira (1658-1661), queacabara de sair do Governo da Paraíba, o qual havia recebido logo após àrestauração pernambucana. No governo angolano, Fernandes Vieira dedicou-se a restabelecer a plenitude do tráfico de escravos e entreteve relações comas chefias locais, no sentido de explorar as guerras africanas em benefício doapresamento de escravos. Vidal se afastou do governo de Pernambuco, em1661, para assumir o governo de Angola no ano seguinte.

Em Angola, Vidal continuou a política de João Fernandes Vieira dereestruturação das complexas redes de tráfico de escravos. Desde a retomadaluso-brasileira de Luanda, a situação na região se mostrava bastante instável.As ofensivas desenvolvidas nos anos subsequentes a partir do governo deLuanda visavam garantir a lealdade dos chefes aliados e submeter a ferro efogo os inimigos. Pressão especial passou a ser exercida sobre o Rei do Congoque, apesar de ser considerado pela Monarquia portuguesa um aliado cristão,acabava por opor alguns obstáculos à expansão dos interesses escravistas,vitais para a reorganização da produção açucareira na outra margem doAtlântico. Os Reis do Congo ostentavam o título de reis cristãos e aliados dosportugueses, tendo recebido do próprio Papa, em Roma, uma Coroa quesimbolizava esse reconhecimento de integrar o grêmio da Igreja Católica, mas

19 Essa questão pela disputa do tráfico atlântico de escravos entre portugueses e holandesespode ser vista em PUNTONI, Pedro. A mísera sorte: a escravidão africana no Brasilholandês e as guerras do tráfico no Atlântico Sul, 1621-1648. São Paulo: Hucitec, 1999.

20 BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola (1602-1686). São Paulo:Companhia Editora Nacional; Edusp, 1973.

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Vidal buscou contornar os obstáculos de ordem jurídica e religiosa paraconstruir uma justificativa para atacar o reino do Congo.

Em 1665, Vidal manobrava junto a autoridades religiosas locais para atribuirao Rei D. Antônio I do Congo, o Mani Mulaza, o caráter de rei cismático eidólatra, criando um pretexto para um ataque justo àquele reino. Obtendoconcordância de algumas dessas autoridades, as tropas de Vidal desbarataramo exército de D. Antônio I, na Batalha de Ambuíla, nesse mesmo ano, matandoo Rei e determinando o fim da monarquia congolesa. A Coroa foi remetida aPernambuco para ser depois enviada a Lisboa, mas Antônio Curado Vidal,sobrinho do Governador, responsável pela sua guarda, provavelmente deusumiço na mesma. Depois da batalha de Ambuíla o reino do Congo foi divididopor lutas intestinas e os interesses dos mercadores de escravos forambastante favorecidos21.

O retorno e o legado de Vidal

Do outro lado do Oceano as coisas se precipitavam. O governador dePernambuco, Jerônimo de Mendonça Furtado, conhecido com Xumbregas,enfrentava forte oposição da açucarocracia local para impor certasdeterminações da Coroa, além de negócios que realizava à socapa, e taisdivergências evoluíram para um conflito agudo. Em 1666, num hábil engodo,alguns senhores de engenho de Olinda aprisionaram o governador e oenviaram de volta a Portugal, com um vasto rol de queixas ao Rei. Os ecos dadeposição do governador agravaram uma forte tensão política que seagudizou até às primeiras décadas do século seguinte22.

De retorno a Pernambuco no início do ano seguinte, após o cumprimentode seu governo angolano, Vidal foi escolhido pela açucarocracia para substituirMendonça Furtado. A Coroa prudentemente aguardou o desenlace do casopara evitar ferir suscetibilidades e agravar ainda mais o quadro. Assim, manteveVidal temporariamente no governo (até pelo seu grande prestígio) e escolheuo novo Governador para sucedê-lo alguns meses depois. Apesar da ousadiados senhores de engenho pernambucanos de aprisionar um governadornomeado pelo Rei e colocar outro no seu lugar, a Coroa evitou uma reaçãomais enérgica, até devido às circunstâncias muito particulares do momento,com a extrema delicadeza do controle luso sobre o conjunto de suas vastaspossessões.

Após essa segunda passagem pelo governo, Vidal já estava envelhecido eretirou-se da esfera política passando a administrar mais diretamente os seusnegócios. Nos anos seguintes instalou-se em seu engenho Itambé, ondefaleceu em 1680. Em seu testamento instituiu o Morgado de Nossa Senhora

21 ALENCASTRO, Luís Filipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul.São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

22 MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates - Pernambuco1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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do Desterro, em favor de seu filho Matias Vidal de Negreiros, mas a fortunanão permaneceu nas mãos da família, que se engalfinhou em acerbas disputaspelos bens e acabou por dispersá-los entre vários herdeiros. Mais de umséculo depois, acusações ainda eram trocadas por descendentes de Vidalsobre o destino dos bens. Em carta atribuída a Manuel Arruda da Câmara aoPadre João Ribeiro, em 1810, o cientista fazia acusações sobre os destinosdos bens de André Vidal, que seria antepassado do destinatário e que “padreMatias Vidal de Negreiros e Marquês de Cascais hão despojado dos bens do dito

general furtivamente”23.

A par de não ter conseguido consolidar uma posição de maior proeminênciaou de poder para seus descendentes, o que fora conseguido por algumasoutras famílias da colônia, esse homem notável foi elevado à condição de umdos heróis da nacionalidade, destacado por Francisco Adolfo de Varnhagencomo o legítimo representante dos brasileiros na gloriosa restauração dosolo nordestino ao corpo da nação. Nos termos do próprio historiador emsua História Geral do Brasil:

André Vidal era homem tão superior que necessitara um Plutarcopara apreciá-lo. Enquanto empreendeu, sempre com muito esforçoe valor, não levara a mira no prêmio, nem talvez nesse mesmofantasma da glória que tantas vezes nos embriaga; tudo fez pelozelo e amor do Brasil, ou por caridade cristã.24

Segundo essa perspectiva, as lutas em torno da expulsão dos holandeses,especialmente as Batalhas dos Guararapes representavam os germes danacionalidade que brotava no combate ao invasor estrangeiro e não-católico.Na tetrarquia de heróis que se criou posteriormente em torno da restauração,Vidal representou o elemento branco de origem brasileira, que unido a umreinol (Vieira), a um índio (Camarão) e a um negro (Dias), representariam asíntese do nativismo que se afirmaria na luta contra o invasor. Ainda, segundoVarnhagen, o papel de Vidal seria superior ao de Vieira e outros restauradorese caberia a ele o lugar de verdadeiro e inequívoco herói da nacionalidade.

Erigida como uma ermida por Francisco Barreto de Menezes, por volta de1654/1655, a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres dos Montes Guararapes,serviu para marcar a memória dos soldados que combateram nas Batalhasdos Guararapes (1648 e 1649). No século XVIII recebeu acréscimos eembelezamento. Foi tombada como Patrimônio Histórico Nacional em 193825.Em 1942 foram trasladados, para a sua Capela Mor, os restos de André Vidalde Negreiros, João Fernandes Vieira, Francisco Barreto de Menezes (os restos23 Carta atribuída a Manuel Arruda da Câmara, endereçada ao padre João Ribeiro. In:

CÂMARA, Manuel Arruda da. Obras Reunidas c.1752-1811 (coligida e com estudo biográficode José Antônio Gonsalves de Mello). Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife,1982, p. 263.

24 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. Tomo III. 8. ed. São Paulo:Melhoramentos; Brasília: INL, 1975, p. 94.

25 Processo IPHAN 05-T-38.

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26 Processo IPHAN 523-T-54.27 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio

de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.28 A historiadora Ana Beatriz R. B. Silva escreveu instigante artigo sobre a construção

desse herói paraibano, especialmente a partir da obra do historiador Luiz Pinto. Ver:SILVA, Ana Beatriz Ribeiro Barros. André Vidal de Negreiros: a necessidade da construção

Fig. 2 - Igreja de Nossa Senhora dos Guararapes, erguida no século XVII, no atualParque Histórico Nacional dos Guararapes, local de importante celebração dos eventos

relativos à guerra contra os holandeses (Jaboatão dos Guararapes - PE).Foto: Ângelo Pessoa, 2008.

de Henrique Dias e Filipe Camarão não foram encontrados), reunindo oschamados heróis restauradores. Em 1961 foi criado o Parque Histórico Nacionaldos Guararapes26, pertencente ao exército. À entrada, placas indicam que ovisitante está entrando no território onde se forjou o sentimento nativista, oberço da nacionalidade e do exército brasileiro. Na Igreja realizam-se, aindahoje, romarias em homenagem a Nossa Senhora dos Guararapes. É nesseambiente que se forjou todo um ideário heróico que tem a restauraçãopernambucana como marco de estabelecimento do sentimento nativista emterras brasileiras27.

Além de ter sido exaltado, por parte da historiografia, à condição de heróinacional, Vidal de Negreiros também contou com uma trajetória peculiar emais pontual para ser elevado à condição de herói local. Na esteira do que seestabeleceu a partir do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o seucongênere, Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, trabalhou paraenaltecer Vidal como herói paraibano28. Diversos logradouros de João Pessoa,

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de um herói verdadeiramente paraibano. Saeculum - Revista de História, João Pessoa,DH/PPGH-UFPB, n. 14, jan./jun. 2006, p. 159-171.

29 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para o estudodas alterações ultramarinas e das práticas políticas no Império Colonial português,séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Diálogos oceânicos: Minas Geraise as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. BeloHorizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 197-254.

o 15° Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército, além de outrashomenagens levam seu nome e rendem tributo à sua memória como herói.

Considerando essas questões, em âmbito ainda bastante preliminar,podemos enxergar esse personagem como um verdadeiro homem do Atlânticono século XVII, que esteve ligado às vicissitudes do Império colonial portuguêsque então se reconfigurava em função do avanço de novos impérios quelutavam pela hegemonia no mundo colonial. Portugal, que estivera nadianteira da expansão marítima de fins do século XV e início do XVI, recuavafrente ao surgimento de novas potências, que acabaram por impor pesadasperdas ao império lusitano. Boa parte das possessões asiáticas foram perdidaspara os concorrentes e foram necessários muitos esforços para garantir asobrevivência, mesmo de Portugal, nessa nova ordem, ou como disse comfelicidade o historiador Luciano Figueiredo, o “Império estava em apuros”29.De acordo com as esperanças do Padre Vieira, a Índia não estaria perdida,caso houvesse por lá homens como Vidal de Negreiros. Não poderíamosgarantir que tal acontecesse, mas podemos deduzir que começou a se forjarpor ali a legenda do herói.

Fig. 3 - Lápide da Sepultura do General André Vidal de Negreiros,onde se exalta a sua condição de herói nacional.

Foto: Mirza Pellicciotta, 2008.

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o século XVII o Império Português, dentro do contexto da UniãoIbérica e depois dela, susteve um calendário de festas públicasque exaltavam a glória do rei e da Igreja com celebraçõesritualizadas, onde a pompa estava nos objetos de cena, comoaltares, arcos de triunfos, mas também nos gestos das

FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRANO SÉCULO XVII:

A AÇÃO DE GRAÇAS PELA RESTAURAÇÃO DACAPITANIA DE PERNAMBUCO

CONTRA OS HOLANDESES

Kalina Vanderlei Silva1

1 Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Líder do GEHSCAL -Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina (UPE/ Diretório CNPq).Professora Adjunta da Faculdade de Formação de Professores de Nazaré da Mata, daUniversidade de Pernambuco, e Docente Colaboradora do Programa de Pós-Graduaçãoem História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Pesquisadora financiadapela FACEPE. E-Mail: <[email protected]>.

2 Para as festas barrocas, ver: SILVA, Kalina Vanderlei. Cerimônias públicas de manifestaçãode júbilo: símbolos barrocos e os significados políticos das festas públicas nas vilasaçucareiras de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. In: ______ (org.). Ensaios culturaissobre a América Açucareira. Recife: Edupe, 2008. Já para as comemorações das entradasreais em Lisboa, ver: MEGIANI, Ana Paula. O rei ausente: festa e cultura política na visitados Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004. Para a comemoraçãodas armas de Castela contra Barcelona, ver: DE LA FLOR, Fernando & BLASCO, Esther.Política y fiesta en el Barroco - 1652: descripción, oración y relación de fiestas en Salamancacon motivo de la conquista de Barcelona. Salamanca: Ediciones Universidad deSalamanca, 1994.

autoridades que delas participavam. Essas festas, de caráter nitidamentebarroco, abundavam nas cortes ibéricas, mas também nas grandes cidadesdos dois impérios, e incluíam desde entradas solenes, como as dos Filipes emLisboa, até datas sagradas como Corpus Christi e comemorações deconquistas, como a celebração da vitória castelhana sobre Barcelona em 16522.

Organizadas pelas câmaras municipais, as festas barrocas tinham, assim,a função principal de celebrar a glória da Coroa e garantir a lealdade de seusvassalos, além de marcar as hierarquias de poder das autoridades da cidadeque a organizava perante os olhares dos expectadores. E, nesse contexto, acomemoração de uma vitória bélica constituía um dos momentos privilegiadospara essas festas, pois permitia à cidade afirmar sua lealdade ao rei e aomesmo tempo cantar sua própria magnificência.

Nesse sentido, a festa barroca que comemorava o sucesso das armas do

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rei se traduzia em uma tentativa da elite urbana reafirmar seu próprio status,demarcando a hierarquia entre seus pares, demonstrando seu prestígioperante o povo e, ao mesmo tempo, sua lealdade perante a Coroa. Semesquecer que a elite local aproveitava ainda para relembrar ao rei seus serviçosprestados.

Imagem paradigmática dessa funcionalidade foi a comemoração daconquista de Barcelona pela Coroa castelhana em uma festa organizada ecelebrada em Salamanca em 1652, com direito a toda a pompa barroca epublicação de relação comemorativa. E se tais eventos não eram raros naPenínsula Ibérica de então, também as câmaras municipais americanas doperíodo procuravam se manter ao corrente dos padrões festivos europeus.Assim foi que, poucas décadas depois, Olinda seguiu muito de perto o modelode Castela ao promover a festa de ação de graças pela Restauração da Capitaniade Pernambuco contra os holandeses. Festejo que, assim como sua congênerecastelhana, assumiu uma função múltipla de espaço de demarcação deprestígios locais, lealdades régias e de reafirmação de uma identidade fidalgapor parte da elite açucareira. Identidade essa construída em torno daRestauração de Pernambuco e da memória desse fato.

Olinda, a Elite Açucareira e a Restauração

Em 1654 terminava a ocupação da Capitania de Pernambuco, e anexas,pela WIC, a Companhia das Índias Ocidentais, que desde 1630 controlava aregião. A chamada guerra de Restauração, que opusera os senhores deengenho de Pernambuco e seus aliados à WIC, durara de 1648 a 1654 e deixaraum saldo de destruição nos canaviais, nas cidades e nas fortunas, permitindoà Coroa portuguesa retomar o poder sobre a Capitania, inclusive de formamais presente e intrusiva que antes de 1630, visto que nesse segundo períodode governo português os donatários de Pernambuco haviam dado lugar aosgovernadores metropolitanos3.

As muitas modificações sociais, econômicas e políticas da Capitania haviamatingido todos os grupos sociais, dos escravos que fugiram para o quilombode Palmares, passando pelos homens livres ingressos nas inchadas fileiras doexército ou moradores da crescente povoação do Recife, até a elite desenhores de engenho que encabeçara a guerra. Esses senhores, que sedenominavam restauradores, viram seu prestígio perante a Coroa atingir oápice com os sempre lembrados serviços prestados na devolução da capitaniaao império. Um prestígio que lhes garantiu a manutenção de seu poder políticomesmo quando, no século XVIII, os mercadores já haviam se tornado umgrupo hegemônico4.

3 A guerra de Restauração é bastante conhecida a partir do estudo clássico de MELLO,Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. São Paulo:Topbooks, 1998.

4 A situação da capitania no pós-guerra pode ser vista em SILVA, Kalina Vanderlei. ‘NasSolidões vastas e assustadoras’: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas

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Foi essa elite de senhores, auto-intitulada ‘nobreza da terra’, que projetoue realizou a festa da Restauração em celebração de seus próprios feitosheróicos, conseguindo, para tanto, o beneplácito da Coroa portuguesa.

Foram eles que, no século XVII, após retornarem à jurisdição portuguesa,esmeraram-se em fazer das ruas de Olinda, e mais tarde de Igarassu, palcopara as festividades barrocas do calendário régio, adotando as festasregulares e extraordinárias da Coroa portuguesa, com procissões, entradasde governadores, celebrações de casamentos e mortes da realeza, emcerimônias que desfilavam nas ruas e praças e tomavam espaços especiaisnas igrejas. Nelas encontrando o perfeito cenário para o desenvolvimento deseus papéis de ‘fiéis vassalos’ da Coroa.

Nessas ocasiões, os senhores de engenho, traduzidos em oficiais dascâmaras, realizavam performances que afirmavam ou confirmavam seusstatus sociais, assegurando-lhes prestígio e honra. Em cada festa, fosseprocissão pelas ruas ou celebração na Igreja da Sé, os espaços de poder eramrigidamente demarcados: nas procissões, estar mais próximo aos símbolosde autoridade religiosa ou leiga, como o pálio que guardava o SantíssimoSacramento, informava aos espectadores a importância daquele ator. Nãopoucas vezes, governadores, bispos e oficiais das câmaras de Olinda eIgarassu se engajaram em disputas entre si devido a diferenças de opiniãosobre onde deveria se sentar o governador quando em presença do SantíssimoSacramento, ou onde, na procissão, deveria ser alocado o pendão quesimbolizava a câmara, ou ainda onde deveria se situar o governador durantea assistência de uma cerimônia organizada pela câmara5.

Exemplo dessas querelas foi a disputa entre a Câmara de Olinda e oGovernador de Pernambuco, no final do século XVIII, em torno do ritual deencontro entre essas duas instâncias de poder. Nessa ocasião, a câmaraescreveu ao príncipe regente, então D João, sobre o assunto:

Porquanto Vossa Alteza Real pelas cartas régias que vão insertasnas certidões em anexo decidiu que este Senado, debaixo doestandarte de que jamais nunca se devia separar, não representavamenos a Sua Real Pessoa do que os governadores. Porquanto semembargo de se achar assim decidido, os governadores pretendem,

açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Recife: CEPE, 2009. E a ascensão da elite mercantilem SOUZA, George Cabral. Elite y ejercicio de poder en el Brasil Colonial: La CámaraMunicipal de Recife (1710-1822). Tesis Doctoral. Facultad de Geografía y Historia de laUniversidad de Salamanca. Salamenca, 2007.

5 Por exemplo, REQUERIMENTO do Bispo de Pernambuco ao Rei pedindo se remeta aoDesembargador do Paço a representação dos conflitos com o governador dePernambuco sobre o cerimonial romano e o lugar que deve ocupar o assento dogovernador na Igreja. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa- AHU_ACL_CU_015, cx. 16.1636; PARECER incluso na carta do capitão-mor de Igarassu, Francisco Xavier Carneiroda Cunha, ao rei, D Jose I, sobre as dúvidas a respeito dos assentos nas festas eprocissões daquela vila assistidas pela câmara. AHU_ACL_CU_015, Cx. 081, D. 6751.

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quando este senado se encontra com eles por ocasião das festasreais, que este senado debaixo de estandarte os vá receber aosadros das igrejas, como se este senado representasse pessoa inferiora que eles representam. E porquanto finalmente nos parece que osgovernadores não podem pretender semelhante obséquio, quesomente lhes deveria ser feito se este senado não representasse aReal Pessoa de Vossa Alteza assim e do mesmo modo que lhesrepresentam. Portanto suplicamos a vossa alteza real aja por bemdecidir em que lugar deve esse senado receber aos governadores,e aos excelentíssimos reverendíssimos bispos em semelhantesocasiões.6

Nessa carta, a Câmara de Olinda insistia nas mesmas reivindicações que jávinha fazendo desde o século XVII sobre seu papel como representante daCoroa. A mesma reivindicação que fez, por exemplo, em 1677, quando, depoisdo estabelecimento dos governadores do rei na capitania, em geral sediadosno Recife, os senhores de Olinda começaram a disputar com eles a posição derepresentantes da Coroa, como podemos ver na ordem régia passada emjulho daquele ano:

Oficiais da Câmara da Capitania de Pernambuco. Eu o Príncipe vosenvio muito saudar. Havendo mandado ver o que me escrevestesem carta de 10 de junho do ano passado, sobre as diferenças quetivésseis com o Vigário Geral da Matriz da Vila de Olinda acerca dolugar em que nas procissões havia de ir o pendão da Câmara, porquerer que saísse adiante do pálio, fora do corpo da câmara e o quesobre isso resolveu o governador D. Pedro de Almeida, e porqueconvém atalhar diferenças, me pareceu dizer-vos que o governadornão representa mais minha pessoa do que a representa o senado: eassim não havia de resolver que nas procissões que não fosse opendão porque só quando eu vou nelas deixa de ir o pendão e nasmais começa do pendão o corpo do senado da câmara, e nestaforma se deve observar daqui em diante; e assim o mando advertirao Vigário Geral, e que não inquiete meus ministros contra o estilodos [ ] de que não registra indecência alguma.7

Essa reclamação da Câmara de Olinda é eloquente sobre sua vontade einsistência em ser reconhecida pelos altos funcionários da burocracia régiacomo parte integrante e importante do poder imperial, representando elamesma o rei. Uma representação que deveria ser feita através da investidura

6 CARTA dos oficiais da Câmara de Olinda ao Príncipe Regente, D João, sobre as dúvidasacerca de onde deveria ir o pendão da câmara nas procissões. AHU_ACL_CU_015, Cx.212, D. 14418.

7 REGISTRO da carta de S. majestade escrita aos oficiais da câmara, sobre ir, ou não opendão da câmara nas procissões. Escrita a 18 de julho de 1677. Livro de Registro decartas, provisões e ordens régias. L. 1º. Arquivo Público Jordão Emerenciano - APEJE.

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de símbolos, aqui o pendão da câmara. É sabido que o Antigo Regimeenfatizava a representação do rei ausente nas muitas localidades do impérioa partir de uma série de símbolos que assumiam a papel do rei em pessoa,como os retratos reais, da mesma forma que o Santíssimo Sacramento erainvestido da função de representar o corpo de Deus nas cerimônias. Nessemesmo contexto, o pendão da câmara assumia, para o Senado de Olinda, umpapel vital no espetáculo festivo, representando não apenas a câmara, mas opróprio rei8.

A carta de 1799, por sua vez, continuou a insistir no mesmo tema, deixandoclaro ainda o importante papel que a etiqueta barroca tinha nesse cenário:nas festas reais todos os gestos e espaços eram rigidamente hierarquizados,ocupados de acordo com uma escala de prestígio que deveria informar quemestava submisso a quem. Nesse sentido, se os oficiais da Câmara de Olindafossem obrigados a ir receber o governador fora das igrejas, mesmo estandoem formação oficial junto ao pendão que simbolizava a câmara, estariam secolocando em posição inferior ao governador. Contra isso, invocavam peranteo rei o seu próprio papel de representantes da Coroa.

Essa situação de eterna competição com os governadores pelo privilégiode simular a Coroa em solo americano tornava cada festa um momento dedisputa, compreensível quando se entende que o status público da elite estavavinculado ao papel que representariam na encenação pública.

As festas barrocas foram sempre, na Península Ibérica, uma vitrine para ademonstração do status e prestígio das autoridades perante o povo, a Coroae entre elas mesmas. O mesmo ocorreu com a América açucareira, onde ossenhores, assentados nas câmaras, tanto tinham o dever de organizar epromover as festas anuais e extraordinárias do calendário régio, quanto odireito de aproveitarem esse momento para ostentar seu status. Em geral, asfestas camarárias eram as mesmas para todo o império, pois seguiam umcalendário ditado pela Coroa, no caso das anuais, e ordens específicas, nocaso das extraordinárias9. Existia, dessa forma, um modelo imperial pré-estabelecido, e ao passar as ordens para as festas extraordinárias, porexemplo, que deveriam comemorar as vitórias e efemérides da realeza, a Coroajá determinava como ela deveria ser feita: com luminárias e salvas de artilharia,

8 Para Roger Chartier as sociedades do Antigo Regime empregavam a noção derepresentação em dois sentidos: como manifestação de uma ausência ou comoapresentação pública de algo. Os festejos camarários apontam os dois significadosdessa noção, pois as festas funcionavam como espaços de representação do rei ausente,mas também como espaço de apresentação pública da hierarquia da elite açucareira.Nesse caso específico, do pendão da câmara, era o papel de representação do rei quese sobressaia. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a História entre certezas e inquietudes.Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2002, p. 74.

9 Para as festas barrocas camarárias no Império Português ver: SANTIAGO, CamilaFernandes. A vila em ricas festas: celebrações promovidas pela Câmara de Vila Rica –1711-1744. Belo Horizonte: Fumec-Face; C/Arte, 2003; CATÃO, Beatriz. O Corpo de Deus naAmérica: a festa de Corpus Christi nas cidades da América Portuguesa, século XVIII. SãoPaulo: Annablume, 2005.

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como na celebração da paz com Castela, ordenada à Câmara de Olinda em171510.

Mas, em Pernambuco, a festa de Ação de Graças pela Restauração daCapitania contra os holandeses assumiu um caráter nitidamente local,elaborada e organizada pela elite açucareira, tendo por base o padrão festivoibérico. Celebração por excelência de Olinda, seu caráter localista ilustrava aativa manutenção do calendário festivo régio na capitania e a adaptação etransformação que a elite açucareira realizava sobre os valores ibéricos.

Essa elite, no Pernambuco seiscentista, grupo social que controlava apolítica da capitania, batendo-se com governadores e outros representantesrégios, era constituída por senhores de engenho e lavradores de cana11. Até aascensão de uma elite mercantil sediada na vila do Recife, no século XVIII,esses senhores, que tinham Olinda como base, foram hegemônicos no cenáriopolítico e cultural da sociedade açucareira, dominando os principais núcleosurbanos de Pernambuco, como Igarassu, e mantendo relações de parentescocom os senhores das capitanias anexas.

Ocupando os assentos na Câmara de Olinda, mas também em outrasinstituições como a Santa Casa de Misericórdia e a Irmandade do SantíssimoSacramento, a elite açucareira não apenas exercia controle sobre a políticalocal, mas ditava as normas cultas da sociedade, traduzindo um imaginárioinfluenciado pela Igreja, pela Coroa e pela cultura fidalga ibérica. Em todo oimpério era tarefa das câmaras patrocinarem as festas públicas e dever daIrmandade do Santíssimo se encarregar de algumas das cerimônias maisimportantes da vida católica dessas cidades, como a procissão do viático e afesta de Corpus Christi. Funções que a elite açucareira assumiu de formaentusiástica em Pernambuco, por lhe permitir ocupar esses espaços de podere aparecer como responsável pelo cerimonial oficial da capitania, além deatuar como uma nobreza local12.

10 “Juiz, Vereadores e Procurador da Cidade de Olinda. Eu El Rei vos envio muito saudar: Porestar confirmada e ratificada a paz que celebrei com El Rei de Castela, e ser esta nova degrande gosto, é justo que como tal se festeje no Reino, a mandeis publicar no 1º do presentemês de maio na [forma] que vereis na cópia inclusa, com a demonstração de luminárias,repique, e salvas de artilharia na noite do dia da publicação e nos dias seguintes, e da mesmasorte o fareis assim executar pela parte que vos toca”. REGISTRO da carta de S. Majestadepara os oficiais da câmara pela qual manda se festeje a paz que se celebrou com el reide Castela. Escrita em 15 mai. 1715. LIVRO de registro de cartas, provisões e ordensrégias da Câmara de Olinda. L 1º, fl. 125. APEJE.

11 Para a definição da elite açucareira, ver: ACIOLI, Vera Lúcia. Jurisdição e conflito: aspectosda Administração Colonial. Recife: Ed. UFPE, 1997; FERLINI, Vera Lúcia. Terra, trabalhoe poder: o mundo dos engenhos no Nordeste Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1988.Em Acioli encontramos também os conflitos dessa elite com os governadores dePernambuco e Bahia.

12 O imaginário da fidalguia ibérica pode ser visto em: FRANÇA, Eduardo D’Oliveira.Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec. 1997. Sobre o viático e seus rituais,ver: CAVALCANTI, Viviane. Religiosidade e morte: instrumentos do projeto colonialportuguês. Columbia: The University of South Carolina, 1995. A Irmandade do Santíssimo

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Que tal elite se esmerava em se manter dentro de padrões culturaisaceitáveis pela nobreza reinol vemos no pedido daqueles dentre seus membrosque ocupavam assentos na Santa Casa de Misericórdia em Olinda, em 1672,ao solicitarem ao rei que esta instituição gozasse dos mesmos privilégiosconcedidos à Santa Casa da Bahia, que, por sua vez, já gozava dos privilégiosda Santa Casa de Lisboa. Diziam os irmãos de Olinda servirem com todo o zeloe que sua casa “no ornato e dispêndio lhe não excede a da Bahia”13. Afirmaçãocom a qual esperavam demonstrar a lealdade apropriada aos valores danobreza ibérica, como o zelo devocional e a ostentação pública.

Assim como os papéis de ‘irmãos’ das Santas Casas e irmandades doSantíssimo conferiam fidalguia, a participação dos senhores nas câmaras portodo o império lhes garantia acesso permanente aos meios para a manutençãodo prestígio social e de um permanente estado de ostentação de luxo,exigência para o status de ‘nobreza da terra’. Não apenas pela natureza oficialdo cargo em si, mas pelas possibilidades que suas muitas cerimônias públicase símbolos ofereciam de tornarem mais visíveis seus portadores para umpúblico de espectadores. Os cargos camarários faziam os senhores visíveistambém, e principalmente, para a Coroa, garantindo que pudessemcomprovar sua lealdade e vassalagem ao celebrarem a glória real nas festaspúblicas, o que abria as portas para futuras solicitações de mercês.

E, na segunda metade o século XVII, os senhores de Olinda empregaramtodos os meios possíveis para conservar os favores da Coroa. Nesse momentoainda sustinham o poder político da capitania, mas enfrentavam a contestaçãodessa posição pelos governadores régios, tanto na própria capitania quantona Bahia. Por outro lado, a ascendente elite mercantil do Recife estava parase tornar um problema bem maior, que estouraria nas primeiras décadas doséculo XVIII. Assim, os senhores olindenses, de seus assentos como oficiaisda câmara, tentavam se manter no controle travando brigas pela sede dacapitania e promovendo festas públicas para reafirmarem status de nobrezada terra e fiéis vassalos.

E nesse contexto procuravam sempre recordar a restauração da capitania,fosse em seus pedidos de pensões e cargos, fosse na própria festa de ação degraças. A guerra em si abrira as portas para múltiplas possibilidades deascensão social em Pernambuco, principalmente através de serviços militaresprestados. Mesmo soldados e henriques, os milicianos pretos, conseguiramregalias a partir de solicitações com base nas justificativas desses serviços. Já

Sacramento e a Santa Casa de Misericórdia enquanto instituições de elite, em ASSIS,Virgínia Almoêdo de. Pretos e brancos: a serviço de uma ideologia de dominação (Casodas Irmandades do Recife). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal dePernambuco. Recife,1988; e RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casada Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Ed. UnB, 1981.

13 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao Príncipe Regente D. Pedro sobre requerimentodo provedor e irmãos da Santa Casa de Misericórdia de Olinda, pedindo a concessãode um alvará para que a dita casa goze dos privilégios e provisões concedido a Casa daBahia. AHU_ACL_CU_015, Cx. 10, D. 946. 16 jun. 1672.

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em 1651, a Câmara de Olinda solicitara da Coroa que seus heróis, os futurosrestauradores, fossem aproveitados nos principais postos de comando dacapitania, no que foram atendidos quando terminou a guerra14. E todas asreivindicações pós-restauração foram feitas empregando fórmulas querelembravam à Coroa portuguesa os benefícios que os mazombos dePernambuco lhe haviam feito: ‘às custas de nosso sangue, vida e despesas’,afirmavam os oficiais da Câmara de Olinda ainda em 165115. Os mesmos quemais tarde se apresentariam como ‘fiéis vassalos’ da Coroa16.

Assim, se por um lado as últimas décadas do Seiscentos viram os senhoresde Olinda entrarem em disputas políticas com os representantes da Coroa,por outro os viram também sustentar, perante a mesma, um prestígio em altadevido a seu status de restauradores da capitania, responsáveis peladevolução desta ao Império português. E aproveitaram esse prestígio parasolicitar mercês e aumentar seu status pessoal e privilégios camarários. Nessesentido, a comemoração da expulsão dos holandeses assumia umaimportância vital ao recordar à Coroa os serviços prestados por seus vassalospernambucanos. Mas tudo isso, recordar serviços prestados e manter umaimagem pública prestigiosa, passava pela construção de uma memória emque essa elite era a responsável pela conquista da capitania aos holandeses.Ou seja, uma memória que deveria ser preservada a todo custo, razão pelaqual foi elaborada a festa de Restauração.

A Festa, a Identidade Fidalga e a Memória da Restauração:

A festa de ação de graças pela Restauração data da segunda metade doséculo XVII, quando começou a ser celebrada em Olinda pela câmara que,seguindo a tradição das festas régias, esperava que essa cerimônia pudesseser, a cada ano, uma recordação dos feitos heróicos da elite açucareira. Asfestas barrocas que almejavam celebrar as glórias da monarquia em geralcostumavam ser pródigas construtoras de memória17. E nesse aspecto a açãode graças pela Restauração se constituiu no principal fenômeno de construção

14 ACIOLI, Jurisdição e conflito, p. 18.15 CÂMARA de Pernambuco e Povos das Capitanias do Norte do Brasil a D João IV.

Biblioteca da Ajuda, 1654, apud MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário daRestauração Pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008, p. 92.

16 A expressão “fiéis vassalos” vem do próprio discurso da câmara de Olinda e da Coroaportuguesa, como no expresso no REGISTRO da Carta de S. Majestade para a câmara,de agradecimento pelas festas que fizeram no nascimento da Infanta. 12 out. 1699.Livro de registro de Cartas, Provisões e ordens régias da Câmara de Olinda. L. 1º, fl. 95.APEJE, onde o rei agradece as festas que em Olinda se fizeram pelo “nascimento daSereníssima Infanta, minha muito amada e prezada filha”, afirmando que “pareceu de tãobons, fiéis e honrados vassalos, que não faltam a mostrar nela o vosso amor, por ser tantogosto para esse reino e de todos os seus domínios”.

17 O fenômeno de fabricação de memória nas festas públicas foi estudado por LOPES,Emílio Carlos Rodrigues. Festas públicas, memória e representação: um estudo sobre asmanifestações políticas na Corte do Rio de Janeiro, 1808-1822. São Paulo: EDUSP,2004.

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da identidade dos restauradores em Pernambuco, juntamente com aelaboração de obras literárias como o Valeroso Lucideno, publicada em 1648 eescrita pelo frei Manuel Calado de Salvador, e o Castrioto Lusitano, de 1679, doFrei Rafael de Jesus. Ambas encomendadas pelo principal líder da restauração,João Fernandes Vieira18.

Nessas obras apologéticas, assim como nos retratos e murais tambémfeitos por encomenda tanto quanto na festa de Restauração, transparece aintencionalidade da criação de uma imagem de lealdade e heroísmo na qualinvestiram os restauradores pernambucanos. O frei Manuel Calado, porexemplo, não se furtou a fazer os mais altos elogios a João Fernandes Vieiraem seu O Valeroso Lucideno, seguindo um modelo ibérico de panegírico queprocurava ressaltar o valor heróico da nobreza. Assim, cantou o frei:

A Liberdade restaurada canto,Obrada por a espada portuguesaGuiada pela luz do Pólo Santo,(terrena obra, mas celeste empresa)Canto um João, que é terror, e espantoDo belga, e quebrantou sua braveza,E de seus esquadrões em tempo breveMuitos triunfos, e vitórias teve.”19

Nas palavras de Calado a imagem de bravura cultivada por seu patrono,Vieira, e pelos restauradores de Olinda.

Com essas práticas a elite açucareira apenas se situava no sistema de valoresda fidalguia ibérica, ávida por construir uma imagem ideal de si através deobras encomendadas, fossem pinturas, peças, panegíricos ou mesmo festaspúblicas. E o caráter de encomenda que as obras artísticas barrocas possuíammarcou o ato de criar memória e identidade tanto na nobreza ibérica quantona elite açucareira.

Assim foi que, seguindo os padrões ibéricos, os senhores de Pernambucose esmeraram em encomendar crônicas de seus feitos heróicos e retratospintados. E muito comum ao mundo ibérico do Seiscentos e Setecentos eramos textos panegíricos dentre os quais as descrições de festas públicas eramtão populares que constituíam um gênero literário próprio, a relação. Dessegênero são exemplos a relação das festas celebradas em Salamanca pela vitóriada Coroa espanhola sobre a revolta de Barcelona em 1652, e as memóriasimpressas das entradas solenes dos Filipes em Portugal ao longo do XVI eXVII.

Da América portuguesa, por sua vez, partiram descrições de festividadespúblicas de intrínseco caráter barroco no século XVIII, celebradas com o recursoà arquitetura efêmera, com arcos de triunfo, decoração nas janelas, luminárias

18 MELLO, Rubro veio, p. 63.19 CALADO, Frei Manuel. O Valeroso Lucideno e o Triunfo da Liberdade. 2 vols. Recife:

FUNDARPE, 1985, Vol. 1, p. 25.

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à noite e cortejos rigidamente hierarquizados nos quais tremulavam ospendões de câmaras e outros símbolos políticos e que eram acompanhadospor coreografias de corporações de ofício e outros grupos populares20.Exemplo de minuciosas memórias de celebrações barrocas são o TriunfoEucarístico, de Simão Ferreira Machado, publicado em Lisboa em 1734 e quedescrevia a inauguração da Igreja de Nossa Senhora do Pilar em Vila Rica em1733, e o Áureo Trono Episcopal, publicado em Lisboa em 1749 por FranciscoRibeiro da Silva, descrevendo a festa realizada por ocasião da investidura dedom frei Manuel da Cruz como bispo de Mariana em 174821.

Pernambuco também conheceu memórias escritas de festas celebradasem seu solo, aparentemente todas datadas do século XVIII: sobre a festa deaclamação de d José I, Relação das Festas que se Fizeram em Pernambuco pelafeliz aclamação do alto e poderoso rei de Portugal, d José I. 1751-1752, e sobre afesta de São Gonçalo Garcia, em 1745, a Súmula Triunfal da Nova e grandeCelebridade do Glorioso e Invicto Mártir São Gonçalo Garcia, de Sotério da SilvaRibeiro, e o Discurso Histórico, Geográfico, genealógico e político e encomiástico,de Frei Jaboatão22.

Todas essas obras esperavam criar uma memória a partir de uma efeméridefestiva significada como marco de algum momento solene para a Coroa, fosseespanhola ou portuguesa. Por outro lado, como toda obra barroca, seu caráterde encomenda dizia muito sobre os personagens que a encomendavam: alémde celebrar os feitos da monarquia, as festas e suas relações enfatizavam aimportância fundamental dos encomendadores, as elites locais, na celebraçãoem questão.

As obras panegíricas patrocinadas pelos restauradores de Pernambuco,como o Valeroso Lucideno, reproduzem tanto quanto a festa de Restauração,muito dos valores barrocos que a elite açucareira procurava assimilar edemonstrar, em sua busca por nobilização: valores como heroísmo, lealdadee coragem eram idealizados pela nobreza ibérica, reproduzidos nas obrasliterárias espanholas e portuguesas do século XVII e assimilados pela elite

20O modelo ibérico de festas barrocas, assim como a descrição de suas práticas, pode servisto em ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco - Vol. 1: uma linguagema dos cortes, uma consciência a dos Luces. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 144-154.

21MACHADO, Simão Ferreira. Triunfo Eucarístico, Exemplar da Cristandade Lusitana em PúblicaExaltação da Fé na solene Transladação do Diviníssimo Sacramento da Igreja da Senhora doRosário, para um novo Templo da Senhora do Pilar em Vila Rica, etc. Lisboa Ocidental: Oficinade Música, 1734, apud ÁVILA, O Lúdico...; AUREO Trono Episcopal, Collocado nas Minas deOuro, ou Notícia Breve da Criação do Novo Bispado marianense, da sua felicíssima posse, epomposa entrada do seu meritíssimo primeiro Bispo,e da Jornada, que fez do Maranhão, etc.Lisboa: Oficina de Miguel Manascal da Costa, 1749, apud ÁVILA, O Lúdico...

22 Ambas as relações, assim como a da aclamação de d José, foram transcritas por JoséAderaldo Castello em O Movimento Academicista Brasileiro, apud ARAÚJO, Rita de Cássia.A redenção dos pardos: a festa de São Gonçalo Garcia no Recife, em 1745. In: JANCSÓ,Istvan & KANTOR, Iris (orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa. Vol.1. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial, 2001, p. 419-444.

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açucareira de Pernambuco que se queria barroca23.

A festa da Restauração tentava celebrar esses valores e, ao mesmo tempo,marcar no imaginário coletivo a importância dos feitos heróicos da elite. Erarealizada em Olinda todo dia 27 de janeiro, com sermão, Te Deum, missacantada na Sé e desfile dos corpos militares. Mas aparentemente ela nuncamereceu uma relação impressa. O único de seus sermões panegíricos que seviu publicado foi o pregado por Frei Jaboatão em 1731, publicado muito maistarde pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 186024.

Essa festa era agrupada pela Câmara de Olinda, desde 1690, com as festasanuais pelas quais o tesoureiro-geral solicitava à Fazenda Real pagamento depropinas, gratificações, para os oficiais que delas haviam participado. As outrasfestas anuais eram as de São Sebastião e a de Corpus Christi, pelos registrosde 1690, às quais se somava o Anjo Custódio em registros de 1738. Otesoureiro, ao contabilizar os gastos totais da câmara com as festas naqueleano, e que somavam a quantia de 78 mil e 280 réis, descreveu os itens festivosnos quais esse valor havia sido alocado: cera para as velas, castiçais, missacantada e sermão, sacristão, escravos carregadores, além de outros gastosnão especif icados25. Objetos que iam compor o cenário para aquelesespetáculos festivos nas igrejas e nos cortejos, bem iluminados à luz de muitasvelas e embalados pelo som de música religiosa e sermões em latim. Já então,em 1690, o tesoureiro listava a festa da Restauração como anual, o que sugereque aquele não era o primeiro ano em que era celebrada.

E era celebrada sempre em Olinda, pelo menos até a década de 1740 quandoa Câmara de Igarassu procurou também implantá-la. O caráter de celebraçãoda elite açucareira era tão marcante que a festa não parece ter sido realizadano Recife apesar dessa povoação, depois de elevada à vila em 1711, tentar seadaptar ao padrão festivo da Coroa, promovendo sua cota de festas públicas.A câmara da nova vila estava ansiosa por demonstrar sua lealdade à Coroa eangariar para seus oficiais uma quantidade respeitável de prestígio. E, paraisso, insistiu na realização de sua própria festa de Corpus Christi, a maisimportante celebração dos impérios português e espanhol, concorrendo e

23 Vemos esses valores em MARAVALL, José Antonio. A cultura do Barroco: análise de umaestrutura histórica. São Paulo: Imprensa Oficial; Edusp, 1997; e FRANÇA, Portugal ... Queos mesmos eram conhecidos e reproduzidos pela elite açucareira vemos na obra deum de seus expoentes máximos, Duarte de Albuquerque Coelho. COELHO, Duarte deAlbuquerque. Memórias diárias da Guerra do Brasil. São Paulo: BECA, 2003.

24 MELLO, Rubro veio, p. 28.25 REQUERIMENTO do tesoureiro-geral da câmara de Olinda, cap. Feliciano de Mello da

Silva, aos oficiais dela, para que se passasse mandado de despesas das festas religiosasque o senado mandou fazer este ano. AHU_ACL_CU_015, D. 1537. Já em documento de1738, vemos a Coroa estabelecendo a quantia de 30 mil réis para a realização dasfestas de São Sebastião, da Restauração e do Anjo Custódio do Reino, todas realizadasna catedral com o Santíssimo Sacramento exposto. CARTA dos oficiais da câmara deOlinda ao rei, d. João V, pedindo um aumento nas verbas concedidas ás despesas comas festas de são Sebastião, da Restauração frente ao holandês e do anjo custódio doreino. AHU_ACL_CU_015, Cx. 52, D. 4537.

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disputando com a de Olinda. Por outro lado, a ação de graças pela Restauraçãonão atraiu sua atenção, celebração que era dos feitos dos senhores deengenho olindenses, enquanto em Recife dominavam os comerciantes degrosso trato26.

E não apenas o Recife não organizou festa semelhante, como nãoprestigiou a comemoração em Olinda, como demonstra a reclamação que acâmara daquela cidade fez ao rei a respeito da ausência do governador, entãosediado em Recife, e demais autoridades na ação de graças de 1725 e 1726.

Em 1725, escreveu o rei ao governador de Pernambuco, então D. ManuelRolim de Moura, reproduzindo a queixa dos oficiais da Câmara de Olindasobre a ausência das autoridades na comemoração da “memória da gloriosarestauração da capitania” que se fazia por ordem régia todos os anos. A cartarégia descreve a organização da cerimônia com missa, Santíssimo Sacramentoexposto e sermão na Santa Sé, assistida pelos terços de Olinda e Recife, alémdos ministros, oficiais de Justiça e Fazenda. Mas no ano em questão só seachavam presentes os oficiais da Câmara de Olinda. A essa reclamaçãorespondeu então o governador dizendo que

Sempre a assisti e os ditos ministros em a dita festa, como tambémtodo o terço inteiro da cidade marcha para a Sé como é estilo, enão tenho notícias que o terço do Recife se achasse também emoutros anos na tal celebridade, como afirmam os ditos oficiais.27

No ano seguinte os oficiais de Olinda voltaram a reclamar ao rei, solicitandoque, como era costume em anos anteriores, na festa da Restauraçãomarchassem os dois terços, o de Olinda e o de Recife, com seus mestres decampos, além do terço dos henriques com mestre de campo, e que todosrecebessem pólvora para uma salva de artilharia em memória do dia. Alémdisso, reiteravam seu pedido de que o governador, ministros e oficiais, etodas as “pessoas da nobreza” dentro de duas léguas da cidade fossemobrigados a comparecer a festa28.

26 As querelas de jurisdição entre Olinda e Recife em torno da festa de Corpus Christiestão registradas em documentos como a CARTA dos oficiais da câmara de Olinda aorei [d João v], sobre a pretensão da câmara de Recife de fazer a procissão do corpo deDeus no mesmo dia em que se faz em Olinda. AHU_ACL_CU_015, cx 63, D. 5386, eCARTA dos Oficiais da Câmara do Recife ao rei [D João V], sobre se realizar a procissãode Corpo de Deus no Recife devido à isenção do seu povo e clero de comparecerem àde Olinda. AHU_ ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3499.

27 CARTA do governador da capitania de Pernambuco ao rei sobre a ordem para quetodos os ministros, oficiais de justiça e fazenda, governador, senado e todos os terçosde Recife e Olinda participem dos festejos da Restauração. AHU_ACL_CU_015, Cx. 31,D. 2849. Pernambuco, 18 jul. 1725.

28 CARTA dos oficiais da câmara de Olinda ao rei, d. João V, sobre a ordem para que nafesta de ação de graças de 27 de janeiro, marchem os terços e compareçam ogovernador, ministros e oficiais. AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, D. 2950.

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Essa repetida queixa deixa claro o desrespeito das elites de Recife com acelebração da nobreza olindense, que se queria fidalga. Clara também fica ainsistência dessa ‘nobreza da terra’, já então em pleno processo de perda dehegemonia política sobre a capitania, na festa como marco de sua importânciasocial e política. Uma insistência que enfatizava a memória do feito que estacelebração deveria comemorar.

E, apesar dessa decadência, ou por causa dela, a elite açucareira continuoua insistir na festa da Restauração pelo menos até a década de 1740, quando aimplantou também em Igarassu:

Prostrados aos benignos pés de Vossa Real Majestade, que Deusguarde, como mais leais e fiéis vassalos, damos conta a VossaMajestade, que sendo essa vila de Santos Cosme e Damião deIgarassu a mais antiga desta capitania de Pernambuco, e fazendona cidade de Olinda no dia vinte e sete de janeiro, anualmenteação de graças a Deus Nosso Senhor por ser o dia em que se restaurouesta terra do poder do holandês, nesta vila se não faz ato algum delembrança, e parecendo ser necessário, fazermos a mesma açãode graças no dito dia, para lembrar aos presentes o que fielmenteobraram os nossos antepassados; Demos conta a Vossa majestade,que sendo servido, nos mandar ordem para a podermos fazer, coma mesma despesa, que se costuma fazer nesta vila a do AnjoCustódio, paga das sobras do Concelho.29

Era a reafirmação da memória dos feitos gloriosos dos senhores deengenho que, em 1740, enfrentavam o crescimento do Recife e sua elitecomercial. Uma última tentativa de fixar na memória coletiva da capitania osfeitos pelos quais a elite açucareira tanto se orgulhava e sobre os quais baseavatodas as suas reivindicações de nobreza. Uma tentativa de “lembrar aospresentes o que fielmente obraram os nossos antepassados”, segundo aspalavras da própria câmara. Afirmação que enfatiza a função da festa comoato de criar e cristalizar uma memória, ao mesmo tempo oficial e coletiva, emtorno dos fatos em questão.

Se as festas públicas do Antigo Regime deveriam instituir memória aocristalizarem determinadas representações sobre o passado, representaçõesessas que traziam a público uma memória selecionada, um passado que sequeria recordar, tal papel foi assumido à perfeição pela festa de ação degraças pela Restauração da capitania de Pernambuco que procuravacomemorar e construir uma dada memória de feitos heróicos da eliteaçucareira.

Mas se a festa barroca tinha a função de construir memória, também tinha

29 CARTA dos oficiais da câmara de Igarassu ao rei, d. João V, pedindo ordem para fazeração de graças pela Restauração da capitania de Pernambuco do poder dos holandeses,como se faz anualmente em Olinda, no dia 27 de janeiro. AHU_ACL_CU_015, Cx. 59, D.5054.

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a de reafirmar privilégios, o que dependia de rígidas definições nos papéissociais de cada personagem no cerimonial, e do estabelecimento bem definidoda geografia política dos espaços de privilégio nessas festividades. E comotodas as cerimônias públicas barrocas, a festa da Restauração demarcavalugares de poder, fosse na procissão, fosse na Igreja. As autoridades, comogovernador, ministros, mestres de campos, tinham seus lugares pré-determinados, seguidos de personagens de menor status mas cuja presençaservia para validar a das grandes autoridades, como os soldados que deveriamacompanhar os mestres de campos. Os gestos eram medidos, como as salvasde artilharia e os sermões. Os símbolos do poder absoluto da Igreja e daCoroa estavam presentes, como no Santíssimo Sacramento. E em torno delesse repartiam as posições hierarquicamente predeterminadas de prestigio,equivalente ao status de cada participante.

A elite açucareira de Pernambuco muito fez para ser lembrada comorestauradora. Esse epíteto lhe dava privilégios perante a Coroa portuguesapara quem, a seu ver, tinha restituído uma parte importante do império.Muitos dos discursos dessa elite pós 1654, então, giraram em torno dacomemoração da Restauração, tanto os discursos políticos expressos naspetições e requerimentos endereçados à Coroa, quanto o discurso artísticoem obras devidamente encomendadas pelos líderes da guerra. E se a festa daRestauração era o ápice desse espírito de celebração/construção de umamemória, visto que reproduzia os bens sucedidos mecanismos de espetáculodo barroco ibérico, por outro lado ela não cresceu para além da sede da eliteaçucareira, nunca conseguindo convencer os opositores, a elite mercantil doRecife. Enquanto durou, todavia, foi responsável pela fixação pública daidentidade da elite açucareira enquanto fidalguia, pelo menos no imaginárioda própria elite açucareira.

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PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO ECONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA:

PERNAMBUCO, SÉCULO XVIII

George F. Cabral de Souza1

s origens da Câmara do Recife estiveram marcadas pelo conflito.Desde a segunda metade do século XVII as diferenças entre ossenhores de engenho e os mascates deram o tom das tensõespolíticas em Pernambuco. Um dos seus reflexos mais visíveis foia disputa pelo poder municipal. Ainda que a solução mais simples

fosse a transferência da sede da capitania de Olinda ao Recife e a aberturados cargos municipais aos comerciantes, a coroa optou por uma saída maisaparatosa: a criação de uma nova municipalidade aberta também aosnegociantes do Recife, a maioria deles de origem portuguesa.

O fato de que entre as duas sedes dos dois governos municipais nãohouvesse mais que uma légua de distância não foi levado em conta. Segundoas normas da coroa portuguesa para a colônia, devia-se observar umadistância de pelo menos seis léguas entre uma vila e outra. Isso garantia umespaço mínimo de três léguas entre duas sedes municipais. O imenso territórioe os poucos recursos, muito mais que a recomendação legal, acabaram porfazer a dispersão muito mais frequente que a concentração de sedesmunicipais. O fato mais usual na América Portuguesa foi a grande distânciaentre os centros urbanos e as instâncias administrativas, distâncias estas queconstantemente provocavam ocos de poder em largas extensões territoriais2.A conflituosa coexistência de dois centros tão ativos política eeconomicamente representa, pois, um especial atrativo para o historiador.

No momento da elevação do Recife à qualidade de vila não foram tomadasmedidas para determinar os limites de jurisdição dos ofícios municipaissecundários entre os dois poderes locais. Em relação ao patrimônio territorialdo Recife, não ficou claro se a separação do termo de Olinda compreendiatanto a administração como a posse. Assim, no ambiente inflamado dos anospós Guerra dos Mascates, nos quais a nobreza da terra sofreu duros golpes

1 Doutor em História pela Universidade de Salamanca. Pesquisador do Grupo de PesquisasO Mundo Atlântico (PPGH-UFPE/ Diretório CNPq). Professor Adjunto do Departamentode História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em História daUniversidade Federal de Pernambuco. Associado efetivo do Instituto Arqueológico,Histórico e Geográfico Pernambucano. Pesquisador financiado pela FACEPE. E-Mail:<[email protected]>.

2 LOBO, E. M. L. Processo administrativo ibero-americano. Rio de Janeiro: Bibliex Editora,1962, p. 144. VIANNA, O. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999,p. 133 e ss. OMEGNA, N. A cidade colonial. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1961, p.34-35.

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políticos, foi necessário também definir claramente toda uma série de questõesde escopo político, administrativo, econômico e, inclusive, religioso, uma vezque a existência do padroado régio mesclava os temas eclesiásticos com osdemais. Observemos alguns aspectos específ icos destes conflitos,concretamente no que tange às questões relacionadas com a formação dopatrimônio da câmara do Recife, ao longo do século XVIII.

As câmaras municipais possuíam um conjunto de despesas e receitas quedeviam gerenciar para cumprir suas obrigações legais. As municipalidadesdesfrutavam de alguma autonomia fiscal, mas as fontes de renda costumavamser exíguas e pouco estáveis. Os recursos para custear as despesas municipaiseram arrecadados pela própria câmara, e a origem deles era local. SegundoHespanha, as principais fontes de financiamento das câmaras eram: 1) osrendimentos de bens patrimoniais como edifícios alugados na sede da vila ouem seu termo; 2) direitos cobrados pela utilização dos bens comunais comopastos e bosques; 3) multas por descumprimento das posturas; 4) aspenalidades aplicadas pelos almotacés; 5) as penas pecuniárias aplicadas pelosjuízes; e, também, 6) os tributos municipais, como as portagens, as taxascobradas sobre o valor das mercadorias que entravam ou saíam da sede davila, e os terrádigos, um imposto cobrado sobre as transferências de terrenospor venda. No caso de necessidade, se recorria às fintas e talhas. Essascontribuições oficialmente eram voluntárias e se adequavam a cada um deacordo com o nível de propriedade3. Na realidade, eram contribuiçõesobrigatórias para custear obras de defesa, pontes, estradas, caminhos, oenvio de procuradores à corte, festas, procissões ou para colaborar no esforçode defesa mais amplo juntamente com outras municipalidades.

No quesito de despesas, ainda segundo Hespanha, figuravam comoprincipais gastos: 1) um terço da arrecadação que era repassada ao tesourorégio; 2) o pagamento de funcionários da câmara e a profissionais de interessepúblico (boticários, médicos, professores entre outros); 3) o salário dos juízesde fora sempre que estes não recebessem diretamente do tesouro real; 4) aassistência aos expostos, pobres e doentes; 5) gastos para as solenidades,procissões, festas, casamentos ou funerais reais; 6) envio de procuradores;7) gastos com correios; 8) solicitações extraordinárias do Rei (pedido do Rei);e, finalmente, 9) os pequenos gastos cotidianos da câmara.

Na realidade colonial, este perfil nem sempre se aplicava completamente,existindo variações consideráveis segundo as características econômicas edemográficas locais. A falta de recursos costumava ser comum e as fintaseram impostas à população com alguma frequência e nem sempre dentro doespírito de equilíbrio previsto na lei. Zenha, em seu estudo sobre as

3 VIDIGAL, L. O municipalismo em Portugal no século XVIII. Lisboa: Horizonte, 1989. p. 76-77.ZENHA, E. O município no Brasil, 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948,p. 125-126. HESPANHA, A. M. História das instituições: épocas medieval e moderna.Coimbra: Livraria Almedina, 1982, p. 240-241. Ordenações Filipinas, Livro I, tít. 66, par.40.

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municipalidades coloniais nos século XVI e XVII, questiona como instituiçõeseconomicamente tão débeis puderam impor-se social e politicamente como ofizeram as câmaras.

No caso da Câmara de Olinda, condições particulares locais fizeram comque a municipalidade assumisse a administração de praticamente todo oorçamento da capitania de Pernambuco. Para compreender os problemassurgidos com o desmembramento da municipalidade recifense, sobretudoaqueles vinculados com os conflitos sobre a propriedade territorial, temosque atentar, ainda que tangencialmente, para alguns aspectos do patrimôniomunicipal de Olinda.

O primeiro grande aporte patrimonial recebido pela edilidade olindenseteve lugar no início da colonização efetiva de Pernambuco. Duarte Coelhorealizou, no momento da fundação da vila, a doação de vastas extensões deterrenos através do Foral de Olinda. Entre os locais doados aparecia “o Recifedos navios com suas praias”, referência mais remota à localidade onde seergueria o povoado ao redor do principal porto da capitania4. A Câmara deOlinda dispunha, assim, da possibilidade de tributar os ocupantes destesterrenos através da cobrança dos foros. Naquele momento, muitos destesterrenos eram nada mais que areia ou manguezais. Mas, o incremento dapopulação e a ampliação das áreas ocupadas, modificaram o quadro. Aolongo de seus quase cinco séculos de existência, a administração municipalde Olinda continuou (e continua) a cobrar esta taxa.

No século XVII, novas atribuições foram concedidas ao poder municipalolindense. A invasão da West Indische Compagnie em Pernambuco, em 1630, eos posteriores esforços para sua expulsão entre 1645 e 1654, fizeram daCâmara de Olinda o epicentro político da resistência pernambucana. Desdeentão, coube a ela a arrecadação e a administração dos tributos na capitania,fato que garantia sua preeminência como a “cabeça do povo de Pernambuco”.Em 1713, por exemplo, o montante total de recursos geridos pela Câmara deOlinda alcançou os 26:000$000. O grosso deste orçamento vinha daadministração dos contratos de arrecadação de tributos. Este era um dosprincipais atrativos do poder municipal em Olinda, pois as concessões, muitasvezes dadas através de leilões fraudulentos, permitiam a formação de clientelaspolíticas5. Esta posição destacada se manteve até 1727, quando mudançasadministrativas retiraram de Olinda suas atribuições supramunicipais em

4 PEREIRA DA COSTA, F. A. Anais pernambucanos. 2. ed. Recife: Fundarpe, 1983. Vol. I, p.267; Vol. II, p. 135.

5 MELLO, E. C. de. Fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715.São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 62-67. A grande quantidade de rendasadministradas pela Câmara de Olinda despertava cobiça entre os funcionáriosmetropolitanos em Pernambuco. Além disso, as irregularidades eram frequentes e ascontas, no mínimo, obscuras. Daí que depois da Restauração, vários governadores eoutros funcionários terem tentado limitar as atribuições f iscais da “Câmara dePernambuco”, agravando as tensões entre os interesses locais e o poder central.

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matérias fiscais, passando-as à Provedoria6.

Em 1710 a criação da nova vila do Recife provocou uma série de questõessobre o patrimônio. Primeiro a separação das três freguesias rurais do termode Olinda e sua incorporação ao Recife. As freguesias eram as da Muribeca,Ipojuca e Cabo. De acordo com as normas do Antigo Regime, retirar territóriose jurisdição de uma vila ou cidade era considerado uma violação de privilégiosgarantidos pela coroa. Este tipo de acontecimento costumava provocargrandes disputas judiciais. Os oficiais da câmara que perdia território noprocesso de criação de uma nova unidade administrativa protestavaminclusive por questões práticas de repercussão imediata: a redução deimportância do concelho7; o aumento das taxas per capita, pois cada vizinhotinha que suportar um valor mais alto a pagar; a mesma situação se davaquando uma finta era convocada, já que uma quantidade menor de vizinhostambém significava uma carga tributária maior para cada um deles8.

A gestão e o aproveitamento do patrimônio territorial municipal foramsempre uma questão delicada. Às vezes os conflitos por esse temaultrapassavam os limites jurisdicionais do município envolvendo funcionáriosreais e o poder central. Bicalho chama a atenção para os constantes problemasrelacionados com a distribuição de terrenos nas praias pertencentes àmunicipalidade do Rio de Janeiro e os conflitos que houve sobre a questãocom as autoridades reais e a coroa. A Câmara do Rio de Janeiro gozava daprerrogativa de arrendar entes terrenos a interessados em construir neles.Essa era uma das principais fontes de renda para a edilidade. Era tambémuma excelente oportunidade de auferir ganhos privados para os oficiaismunicipais, seus parentes e achegados. Em 1732, o governador da capitaniado Rio de Janeiro, Luis Vahia Monteiro, denunciou à coroa que as concessõesde terrenos públicos nunca eram feitas de forma a atender o bem comum,senão que aos interesses dos que controlavam o poder municipal e os seusapaniguados.

6 MELLO, E. C. de. Rubro veio: o imaginário da Restauração Pernambucana. 2. ed. SãoPaulo: Topbooks, 1997, p. 150-151. Veja-se ainda: AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2307, 12set. 1713.

7 “Cada novo concelho era uma amputação a um outro território concelhio, era uma limitaçãonão apenas espacial, mas social da jurisdição. O que não deixava de ser recebido da piormaneira. Onde os interesses em jogo eram relativamente insignificantes a luta podiaestender-se durante longos anos sem turbulências, enredando-se os papéis nos tribunais régiospela chicana dos procuradores”. MAGALHÃES, J. R. Reflexões sobre a estrutura municipalportuguesa e a sociedade colonial brasileira. Revista de história económica e social. Lisboa,v. 16, 1985, p. 18.

8 HESPANHA, A. M. Vísperas del Leviatán. Madrid: Taurus, 1989, p. 83-84; MELLO, Frondados mazombos, p. 228-229. Mello destaca que os vereadores de Olinda tentaram umasaída jurídica baseada na salvaguarda desse tipo de privilégios jurisdicionais parafechar a recém-instalada Câmara do Recife. Para um interessante caso de disputapatrimonial na América Hispânica ver: PÉREZ, J. M. S. Élites, poder local y régimen colonial:el Cabildo y los regidores de Santiago de Guatemala, 1700-1787. Cádiz: Universidad deCádiz, 1999, p. 274-303.

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Em fins dos anos 1770 uma denúncia assinada pelos moradores do Rio deJaneiro informava à coroa que os protegidos dos oficiais municipais enchiamsuas arcas sub-arrendando parcelas de terrenos urbanos concedidos pelaedilidade. O mecanismo era simples e lucrativo: os vereadores arrendavamterras públicas por foros baixíssimos a pessoas próximas a quem nãointeressava construir, e sim repassar as concessões aos que de fato buscavamespaço para novas edificações. Estes últimos se viam obrigados a pagar forosmuito mais elevados aos primeiros arrendatários. Com o respaldo damunicipalidade aplicavam cobranças cada vez mais altas segundo o valor daárea se incrementava, novas construções eram feitas ou as já existentes erammelhoradas9.

Por outro lado, além do problema das freguesias rurais anexadas à novavila, chegou de Lisboa a ordem de que se procedesse ao inventário dos benspatrimoniais de Olinda, exatamente na época em que ocorriam os momentoscríticos do enfrentamento entre nobres e mascates. O trâmite era necessáriopara que se comprovasse a confirmação real das doações de terrenos feitaspor Duarte Coelho à Câmara de Olinda em 1537. A câmara solicitava estaconfirmação porque os documentos originais se perderam durante a invasãoholandesa. Em 1678 a coroa confirmou uma parte das possessões de Olinda,mas os terrenos ocupados por particulares deviam ser judicialmentereivindicados. Daí a necessidade de proceder a catalogação, o que dava umaexcelente oportunidade para importunar a gente do Recife, pois muitosocupavam terrenos de Olinda sem pagar o foro devido10.

A autonomia política do Recife ficou garantida com a retomada definitivado funcionamento da nova municipalidade sob o governo de Félix José deMachado em 18 de novembro de 1711. Ainda assim, o suporte financeiro dainstituição tardaria várias décadas até se consolidar. A falta de recursosimpedia o cumprimento das obrigações básicas de uma municipalidadelusitana. Uma das ocasiões mais importantes do calendário litúrgico era aprocissão de Corpus Christi, e sua realização era uma das atribuições dascâmaras. Além do mais, era o momento ideal para as representações simbólicasdo poder no Antigo Regime. Há um longo rol de contendas entre as duas

9 BICALHO, M. F. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2003, p. 190, 210-220. Também sobre os conflitos entre a Câmarado Rio e os funcionários da coroa acerca de questões patrimoniais ver os seguintesartigos: SANCHES, M. G. O rei visita os seus súditos...: a Ouvidoria do Sul e as correiçõesna Câmara do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio deJaneiro, IHGB, ano 164, n. 421, 2003, p. 130-131. IGREJAS, C. dos A. F. Centralizaçãojoanina e realidade colonial: a ação de Luís Vaía Monteiro no Rio de Janeiro. Revista doInstituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, IHGB, ano 164, n. 421, 2003,p.175-177.

10 A provisão régia foi passada em 20 fev. 1709 atendendo a um requerimento da Câmarade Olinda. A conclusão do trâmite, levado a cabo pelo ouvidor de Pernambuco, JoséInácio de Arouche, se deu em 23 set. 1710. PEREIRA DA COSTA, Anais pernambucanos,vol. V, p. 154-157. MELLO, Fronda dos mazombos, p. 232-233.

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câmaras sobre a realização destas solenidades11.

Para o leitor atual, essencialmente laico, isso poderá parecer uma questãomenor. Mas não era para aquelas pessoas. Figurar em uma procissão ouparticipar de uma irmandade representava, no mundo colonial ibero-americano, muito mais que um ato de fé. Eram oportunidades inigualáveispara ostentar limpeza de sangue e status, em uma sociedade tão hierarquizadae cheia de preconceitos. Participar em uma procissão significava, sobretudo,marcar uma clara clivagem frente à plebe que tinha que se contentar em verpassar o cortejo.

Por outro lado, as festas promoviam a consolidação de uma identidadecomum, permitindo a interiorização de valores e práticas coletivasfundamentais para a legitimação de estruturas coloniais e reinóis, ao mesmotempo em que estreitavam os laços mentais de unidade dos dois lados doAtlântico. As ordens religiosas e as irmandades realizavam muitos desteseventos, mas eram as câmaras as que habitualmente organizavam este tipode celebrações12.

Apesar de sua importância as procissões foram suspensas em váriasocasiões por falta de recursos. A meados do século XVIII, o ouvidor da capitaniaenviou um informe sobre a petição de dinheiro para a realização das procissõese o pagamento das propinas que os oficiais municipais deviam receber nestasocasiões. Neste documento, a máxima autoridade judicial em Pernambucoponderava que “não havendo vila donde não se celebre esta grande festividade,ainda nas mais ordinárias, não é bom que se não faça nesta, que pela sua grandezapodia ser tida como uma das maiores cidades do Reino”.

Houve ocasiões, como na morte de D. João V, em que os vereadores tiveramque pedir empréstimos para patrocinar as manifestações de luto ou de júbilopela família real. Em outros momentos, arrecadou-se entre os vereadores asquantias necessárias para realizar as festas e procissões, ou para os consertosnecessários na casa de câmara e cadeia. Em 1752 se queixavam de que apesarda Câmara do Recife não ter patrimônio, não recebia nenhuma ajuda daFazenda Real para este tipo de celebrações, enquanto que outrasmunicipalidades tinham patrimônio e recebiam recursos das arcas régias paraa realização das festas13.

11 Ver SOUZA, G. F. C. de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: la Cámara Municipal deRecife (1710-1822). Tese de doutorado. Universidade de Salamanca, 2007.

12 BOXER, C. R. A idade de ouro do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 145.“Muitos poucos tinham entre suas fileiras a dignidade da representação e estar entre os quedesfilavam significava se diferenciar da plebe”. FURTADO, J. F. Homens de negócio: ainteriorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec,1999, p. 31, 141 e 220. RAMINELLI, R. Festa. In: VAINFAS, R. (org.). Dicionário do BrasilColonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 233-234.

13 Consulta do Conselho Ultramarino a D. José I, 2 dez. 1754, AHU_ACL_CU_015, Cx. 77, D.6450. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. José I, AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D.6134. Certificado do escrivão da Câmara do Recife que atesta os ingressos desta câmara,

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Os problemas causados pela falta de recursos para os gastos da câmaraprovocavam também efeitos mais “terrenais”. Uma das rubricas do orçamentode um município colonial estava destinada à assistência aos expostos e aosdoentes. As Santas Casas de Misericórdia normalmente se encarregavam deconstruir as rodas de enjeitados, e muitas vezes estas instituições recebiamfundos especiais destinados à sua manutenção e ao cuidado destas crianças.Não obstante, a responsabilidade de organizar e financiar as casas de expostose as amas-de-leite ou famílias para cuidar deles correspondia às câmaras.

Em Olinda, por exemplo, a câmara destinou, em 1765, 120$000 para opagamento das mulheres responsáveis pelos cuidados dos enjeitados. Issorepresentava cerca de 10% do total das despesas municipais. Por essa épocaeste tipo de despesa ainda não aparecia nas contas do Recife, ainda que emmuitas ocasiões os vereadores tenham solicitado ao Rei fundos para essefim. Já em 1729 a câmara informava ao monarca que a falta de recursos paraa manutenção de um local adequado para acolher as crianças fazia com quefossem abandonados à sua sorte pelas ruas, resultando disso “amanheceremmuitos meninos comidos dos cães e porcos”.

A assistência aos enfermos também ficava comprometida pela falta demeios. Em 1722, o médico Domingos Felipe Gusmão solicitava ao governadorda capitania que seu salário, pago pela edilidade recifense, “fosse de cento ecinquenta mil réis anuais, à imitação do médico da cidade de Olinda”. Osvereadores responderam ao governador que não havia dúvida da conveniênciaque a presença de um médico representava para a população da vila.Entretanto, afirmavam também que “é menos sem dúvida que esta câmara,por ser recentemente criada, se acha ainda sem patrimônio, nem renda algumaem que se possa fazer tal côngrua, nem nenhuma de outras coisas de quenecessita, para o que se espera a Real Providência”14.

Segundo os vereadores, a pobreza do Senado do Recife era tão grandeem 1738 que a casa de câmara e cadeia não possuía um sino, utilizado pelasinstituições municipais para indicar a realização de atos da câmara e do toquede recolher pela noite. As obras de conservação urbana também estavamcomprometidas. Dada a configuração geográfica da sede da vila, as principaisestruturas urbanas eram as pontes. Através delas se dava a circulação depessoas e mercadorias entre a hinterland e o porto, assim como entre o Recifee a Ilha de Antônio Vaz.

5 mar. 1759, AHU_ACL_CU_015, Cx. 90, D. 7250. Carta dos oficiais da Câmara do Recifea D. José I, 28 jun. 1752, AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D. 6134.

14 SILVA, M. B. N. da. História da família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1998, p. 208-209. FARIA, S. de C. Roda dos expostos. In: VAINFAS, Dicionário..., p. 512-513. Receita e despesa da Câmara de Olinda, 1766, e Receita e despesa da Câmara doRecife, 1766, ambos em AHU_ACL_CU_015, Cx. 104, D. 8069. Carta da Câmara doRecife ao Rei D. João V sobre as rendas e despesas da câmara, 17 mai. 1729,AHU_ACL_CU_015, Cx. 41, D. 3671. Carta da Câmara do Recife ao Governador dePernambuco, 26 mar. 1722. Registros da Câmara (LRCMR), 1733-1808, f. 109v, InstitutoArqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

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A manutenção das pontes excedia a capacidade financeira da vila edependia, portanto, das quantias arrecadadas nas povoações dePernambuco. Como sabemos, a administração fiscal de Pernambucopermaneceu até 1727 sob controle da Câmara de Olinda. Devido aos choquespolíticos entre as duas municipalidades, a transferência destes recursossempre provocou tensões. Em 1720, o Rei determinou que fosse usada umaparte das rendas dos impostos do Dote da Rainha da Grã-Bretanha e da Pazde Holanda para custear a reforma das pontes da Boa Vista e de Afogados.No ano seguinte os vereadores do Recife denunciaram que, não obstantetivessem sido agraciados pela coroa com esta decisão, as pontes continuavamsem os devidos consertos, “pelo que já têm acontecido algumas mortes e outrosdesastres”, acrescentavam com evidente exagero15.

Os terrenos do Foral de Olinda passaram, então, a ser objeto de cobiçapor parte da Câmara do Recife. As manobras para impedir a transferência dasfreguesias rurais para a jurisdição do Recife não tiveram o êxito esperado.Entretanto, apesar de possuir autoridade administrativa e jurídica sobre estesterritórios meridionais da capitania, a Câmara do Recife não detinha a possee o direito de cobrar foros, inclusive nos terrenos centrais da vila. Osvereadores recifenses repetiram as súplicas para que a propriedade entrasseno patrimônio da vila. Foram feitas pelo menos oito representações entre1718 e 175216.

Em todas elas a argumentação refletia a tensão gerada pelodesmembramento do termo da cidade de Olinda. Os vereadores do Recifereconheciam que antes da criação da nova vila, a Câmara de Olinda cobravaos foros a que tinha direito, pois os territórios do que era então a povoaçãodo Recife estavam sob jurisdição da cidade duartina. Mas, uma vez que seprocedeu a separação dos territórios, lhes parecia que se anulava asubordinação à jurisdição de Olinda, ficando os habitantes do Recife isentosde pagar qualquer taxa à edilidade vizinha. Alegavam que a permanência dacobrança destes foros constituía uma invasão de jurisdição e umadesobediência à vontade régia que, dando autonomia a uma vila, lhe concediatambém automaticamente a posse e o atributo de cobrar as rendas dosterrenos sob seu poder. Em uma representação feita em 1733, os vereadores

15 Carta da Câmara do Recife a D. João V, 20 mar. 1738, LRCMR, f. 177, IAHGP. Por outrolado, “o sino da casa de câmara era um verdadeiro símbolo edilício, a par do pelourinho, quedemarcava esta espécie de ‘noblesse de cloche’ ainda que o símbolo português fosse maissonoro…”. VIDIGAL, O municipalismo..., p. 62. ACIOLI, V. L. C. Jurisdição e conflito. Recife:UFPE, 1997. p. 37-38. Carta da Câmara do Recife a D. João V, 28 abr. 1721, LRCMR, f.103v, IAHGP.

16 MELLO, Fronda dos mazombos, p. 233 e ss. 3º volume de Cartas de Pernambuco (CP),AHU, Cód. 258, f. 184v, 21 mar. 1718. 4º volume de CP, AHU, Cód. 259, f. 192.AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3497, 20 jul. 1729. AHU_ACL_CU_015, Cx. 41, D. 3671, 15/9/1730. AHU_ACL_CU_015, Cx. 44, D. 4002, 20 jun. 1733. Carta da Câmara do Recife a D.João V, 20 mar. 1738, LRCMR 1733-1808, hoja 177, IAHGP. AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D.6134, 28 jun. 1752.

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do Recife lamentavam que, ainda que a vila fosse a mais importante dacapitania, a situação financeira de sua câmara era das piores.

A pretensão da Câmara do Recife não se concretizou. Os foros continuarama ser cobrados por Olinda, e os documentos que se conservaram damunicipalidade olindense nos permitem ver que, nas ruas principais da vilado Recife, muitos dos moradores pagavam o foro, inclusive os que ocupavamos cargos municipais. As irmandades e ordens também tinham de pagar osforos sobre algumas das propriedades incorporadas por herança ou doaçãodos fiéis17.

A correspondência entre os dois órgãos locais e a coroa não esclarecequando o governo central negou definitivamente a solicitação recifense. Aúltima notícia, em 1752, não é conclusiva. Por outro lado, não localizamosnovos pedidos posteriores a esta data. Desde o principio da disputa, osinformes das autoridades locais eram desfavoráveis ao pedido do Recife. Ogovernador Duarte Sodré Pereira Tibão, por exemplo, que tomava sempreposições favoráveis à câmara, chegando inclusive a declarar, em carta ao Rei,que “este Senado da Câmara serve à Vossa Majestade com muito zelo e fidelidade(...) e na execução das ordens de Vossa Majestade são prontíssimos e por estasrazões deve Vossa Majestade honrá-los”. Entretanto, na mesma carta declaravaque não acreditava que fosse conveniente conceder a súplica dos recifensespara evitar choques com a Câmara de Olinda18. Era evidente que não seriapoliticamente prudente reduzir as fontes de renda da municipalidadeolindense que, como sabemos, já havia perdido a administração dos contratose tributos da capitania em 1727.

Se, por um lado, a Câmara do Recife não conseguiu adquirir a potestadesobre os terrenos pertencentes a Olinda, por outro, conseguiu a posse dealguns ofícios locais. Estes também foram solicitados com frequência,aparecendo normalmente associados à petição por foros de Olinda. Outravez, como no caso da definição da posse das terras municipais, a coroa hesitouem decidir, temendo acirrar os conflitos entre as duas municipalidades. Nestecaso a situação foi consideravelmente mais complexa, pois estavam envolvidos,além dos interesses institucionais, os dos particulares que eram proprietáriosdos ofícios ou os de quem os arrendavam.

Observemos dois casos em que houve problemas no momento de definira jurisdição e a propriedade dos ofícios municipais secundários de Olinda por

17 Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 29 jul. 1729, AHU_ACL_CU_015, Cx.39, D. 3497. Carta dos of iciais da Câmara do Recife a D. João V, 20 jun. 1733,AHU_ACL_CU_015, Cx. 44, D. 4002. O conjunto de documentos que registra ospagamentos e as dívidas dos foros de Olinda se encontra em vários volumes, jádevidamente transcritos e catalogados disponíveis na Secretaria da Fazenda de Olinda.Os índices permitem localizar as unidades tanto pelo nome do proprietário do imóvel,como pelo terreno tributado.

18 Carta do governador de Pernambuco a D. João V, 15 set. 1730, AHU_ACL_CU_015, Cx.41, D. 3671.

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ocasião da criação da vila do Recife. Os dois ofícios eram o de alcaide e o deescrivão da câmara. Esses eram remunerados de acordo com as solicitaçõesde seus serviços através da cobrança de emolumentos aos usuários. Seusproprietários ou arrendatários adquiriam o ofício e eram compensados comestes emolumentos. Tratava-se de um arranjo muito comum na administraçãoportuguesa, que assim conseguia garantir o adiantamento da arrecadaçãodos tributos sem a necessidade de aumentar o número de funcionários.Normalmente se associa esta prática ao império espanhol, mas sua presençano mundo colonial português é considerável19.

Outra maneira de aceder a um cargo deste tipo era como recompensa porserviços prestados à coroa. Por serviços prestados devemos entender umavariada gama de ações, desde a participação direta ou indireta na defesa dacapitania até o empréstimo a autoridades locais para acudir a gastos urgentes,quase nunca previstos nos deficitários orçamentos imperiais. No casoconcreto de Olinda e Recife, no momento da separação administrativa em1710-1711, os proprietários se encontraram numa situação pouco usual.

Em primeiro lugar existia a dúvida sobre a extensão de sua autoridade notermo da nova vila. Para o escrivão, esta questão era ainda mais importante,pois, além da questão patrimonial, havia o problema político. O proprietáriodo oficio era Manuel de Miranda de Almeida, que exercia pessoalmente ocargo. Dada a tensão existente entre os dois “partidos” locais – mazombos emascates – qualquer possibilidade de ingerência da Câmara de Olinda nanova Câmara do Recife, era capaz de suscitar desconfianças entre os oficiaisdesta última.

O escrivão de uma câmara exercia uma posição fulcral. Além de ser oresponsável pela produção e guarda dos documentos do Senado, era oencarregado da correspondência com a coroa e com as autoridades, fossemas locais, as da sede do governo-geral em Salvador ou as metropolitanas. Apresença de um mesmo escrivão nas duas municipalidades era simplesmenteimpossível no contexto das relações Olinda-Recife do século XVIII.

Como se isto não bastasse, o escrivão em questão havia tido sériosproblemas durante a Guerra dos Mascates. Nos meses cruciais do conflito,quando governava Pernambuco Sebastião de Castro e Caldas – o governadorque era o alvo de todo o ódio mazombo por seu posicionamento pró-mascates– a Câmara de Olinda tentou enviar Manuel de Miranda de Almeida a Lisboa.Ia como procurador especial e levava consigo cartas com denúncias contra a

19 A lista completa das atribuições dos alcaides e de todos os ofícios citados aquí pode serencontrada em SALGADO, G. (org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil Colonial.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. HESPANHA, A. M. A constituição do Impérioportuguês: revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, J.; BICALHO, M.F.; GOUVÊA, M. de F. (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa(séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 182 e ss. GALLO, A. Lavenalidad de ofícios públicos en Brasil durante el siglo XVIII. In: BELLINGERI, M. (org.).Dinámicas de Antiguo Régimen y Orden Constitucional: representación, justicia yadministración en Iberoamérica, siglos XVIII-XIX. Turín: Otto Editore, 2000. p. 97-175.

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“tirania” do governador. O plano foi tecido em segredo, mas as más condiçõesclimáticas não permitiram a saída da frota na qual o escrivão tentava passarao reino escondido. Descoberto o plano, e estando a frota ainda ancorada, ogovernador ordenou a prisão do enviado de Olinda. Já desde este momento,isto é, da primeira vereação do Recife, a que não conseguiu concluir seumandato devido ao levantamento da nobreza em 1710, se discutia a separaçãodo oficio de escrivão.

Para a Câmara do Recife, a presença de um escrivão que ao mesmo temposervia na Câmara de Olinda e que esteve envolvido nos planos de rebeliãodos mazombos era uma ameaça. A carta da Câmara do Recife de 9 de agostode 1715 esclarece bem o risco que representava a presença deste escrivão deOlinda em suas reuniões. Queixavam-se os vereadores que ele “fica sabendodos segredos desta vila”. Ademais, era interessante dispor do ofício comoparte do patrimônio da câmara, pois se tratava de uma fonte de ingressos.Por outro lado, interessava à Câmara de Olinda poder controlar osmovimentos dos seus inimigos políticos. Hespanha destaca que, muitas vezes,o interesse nos ofícios deste tipo se dava mais pelas possibilidades políticas,pois, “nesse tipo de cultura política – que era o da Europa moderna e das suascolônias –, os documentos escritos eram decisivos para certificar matériasdecisivas, desde o estatuto pessoal aos direitos e deveres patrimoniais”20.

Em toda esta peleja não podemos esquecer a posição do escrivão. É difícilsupor até que ponto ele se envolveu nas tensões políticas daquele momentopor afeto à causa ou por pressões de seus companheiros na municipalidadeolindense. Talvez pouco lhe importasse o que os vereadores do Recifeescrevessem ou deixassem de escrever ao Rei. Possivelmente, o que mais opreocupava em toda a disputa era a considerável redução que seusrendimentos experimentariam se perdesse o direito de exercer o cargo noRecife. Sabemos que a praça desde meados do século XVII, havia superadoem importância econômica e demográfica a cidade. Logo, era no Recife e nãoem Olinda – onde poucos viviam e não havia o mesmo nível de relações entreparticulares e instituições no âmbito jurídico-legal – onde se necessitava dosofícios de um funcionário deste tipo.

O outro ofício em questão era de alcaide e também exemplifica bem ascomplicadas negociações para a formação do patrimônio da Câmara do Recife,negociações nas quais se mesclavam aspectos institucionais e interessesprivados. Naquele momento o alcaide de Olinda e seu termo exercia tambéma posição de carcereiro. Em 1693 a propriedade do ofício fora dada, por JoãoSalvador, à sua filha infanta Ana Lara, como dote para seu casamento.Durante algum tempo esteve arrendado e rendia à sua proprietária 50$000.Já em 1713, Ana Lara requisitou ao monarca que a jurisdição do cargo que

20 MELLO, Fronda dos mazombos, p. 243. Carta do governador de Pernambuco a D. João V,24 jul. 1710, AHU_ACL_CU_015, Cx. 24, D. 2174. Carta dos oficiais da Câmara do Recifea D. João V, 9 ago. 1715, AHU_ACL_CU_015, Cx. 27, D. 2458. HESPANHA, A constituição...,p. 186.

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possuía continuasse sendo a antiga, isto é, abarcando os termos das duasmunicipalidades. Queixava-se ao Rei que a Câmara do Recife proibira aoarrendatário do ofício exercer no termo da nova vila, o que lhe parecia umabuso, pois o ofício tinha sido dado ao seu pai pelo Rei, por serviços prestados,e esse tipo de concessão real não costumava ser revogável.

Na noticia seguinte que temos sobre o ofício, este aparece sendo exercidopor Sebastião Pereira da Costa, cunhado de Ana Lara. Em 1717 ele solicitou aoRei que, se por fim fosse obrigado a renunciar à jurisdição de seu cargo emum dos dois municípios, que pudesse ao menos escolher a praça do Recife,pois ali teria mais rendas que em Olinda. Depois de informar estes aspectos,apontava os prejuízos que tinha tido o escrivão Manuel de Miranda, ao qualjá nos referimos. A seu favor estava a opinião do ouvidor-geral da capitania21.

Manuel de Miranda de Almeida teve que se contentar com seu posto menoslucrativo em Olinda. Mas a disputa pelo posto de carcereiro havia apenascomeçado. Com o passar do tempo, o crescimento do Recife fez com que oofício de alcaide e carcereiro se tornasse mais lucrativo. A princípios da décadade 1730, Recife já possuía sua prisão. Segundo os vereadores, havia sidoconstruída com as contribuições voluntárias do povo através de uma finta. Arecém-construída prisão da vila, pela sua segurança, se transformourapidamente no local preferencial para a custódia de prisioneiros oriundos detodos os rincões da capitania de Pernambuco e de suas anexas. No Recifeeram reunidos os presos que eram enviados para julgamento na Relação daBahia bem como os que tinham recebido sentença de desterro para Angola.Deve-se considerar também que no Recife permaneciam, quasecontinuamente, as autoridades principais, apesar do fato de que Olindacontinuava a ser a capital.

O rendimento do ofício de carcereiro triplicou desde o começo do século.Seus proprietários tinham conseguido manter a unidade da jurisdição nasduas municipalidades. O posto de alcaide e carcereiro oferecia menos riscospolíticos que o de escrivão naqueles momentos iniciais da municipalidaderecifense. Mas, quando em 1733 morreu o titular do ofício, os vereadores doRecife viram a possibilidade de açambarcar um rendimento nada desprezívelpara o patrimônio municipal. Imediatamente solicitaram ao Rei que concedessea propriedade do posto à câmara. Em 1757, a Câmara do Recife voltou a solicitaro ofício para seu patrimônio, mas, estranhamente, a representação somentepassou pelo Conselho Ultramarino e foi posta “na real presença” da rainha

21 Requerimento da infanta Ana de Lara a D. João V, ant. a 29 abr. 1713, AHU_ACL_CU_015,Cx. 25, D. 2285. O costume de recompensar os vassalos por serviços prestados à Coroaera uma constante no Império Português. Inclusive nas camadas superiores daadministração os pedidos dos herdeiros de governadores e vice-reis eram frequentese muitas vezes as recompensas eram concedidas não só às esposas e filhos, mastambém a netos, cunhados ou sogros. MONTEIRO, N. G. F. Trajetórias sociais e governodas conquistas: notas preliminares sobre os vice-reis e governadores-gerais do Brasil eda Índia nos séculos XVII e XVIII. In: FRAGOSO, BICALHO, GOUVÊA (orgs.), O AntigoRegime..., p. 270-274. AHU_ACL_CU_015, Cx. 28, D. 2506, 9 mar. 1717.

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Maria I em 1779. O governador de Pernambuco naquele momento, José Césarde Menezes, confirmou a vacância do citado ofício22, mas outra vez asolicitação se emaranhou nas teias burocráticas de Lisboa e até 1782, data emperdemos seu rastro, não havia ainda sido resolvida23.

A Câmara do Recife conseguiu a propriedade de outros ofícios. A eles sejuntou a administração de alguns contratos de arrecadação. Para isso tevetambém que enviar representações repetidas vezes, expressando nelas apobreza do Senado. Vimos os problemas acerca da propriedade dos ofíciosde escrivão e alcaide-carcereiro. Já em 1715 o Rei ordenou ao ouvidor dePernambuco que informasse sobre a petição dos vereadores da concessãode uma parte da renda do contrato das carnes. Em 1729, pediu-se a propriedadedo ofício de escrivão do alcaide fosse acrescentada ao patrimônio municipal.

Em data anterior a 1732, os vereadores solicitaram a propriedade de trêsofícios vinculados ao juiz de fora e dos órfãos de Olinda e Recife, os derequeridor, inquiridor e contador, que deveriam ser exercidos por um sóoficial. Além disso, pediram a propriedade do cargo de escrivão da almotaçaria.O informe do governador Duarte Sodré Pereira Tibão foi favorável ao pedidodos vereadores do Recife com a condição de que o ofício de escrivão daalmotaçaria tivesse jurisdição separada da de Olinda, opinião acatada peloConselho Ultramarino. No final da década de 1740, a câmara dispunha dosingressos oriundos do contrato da verificação dos pesos e balanças, masreclamava que este rendia muito pouco. Para compensar a poucarentabilidade deste contrato, pediam os ofícios de juiz, escrivão e feitor daalfândega, que eram muito mais rentáveis24.

22 Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 20 jun. 1733, AHU_ACL_CU_015, Cx.44, D. 4006. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 19 ago. 1769,AHU_ACL_CU_015, Cx. 107, D. 8315. O Recife se tornou a capital de Pernambuco somenteem 1827. MELO, M. Genealogia municipal de Pernambuco. Revista do InstitutoArqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, IAHGP, v. XXXII, n. 151-154, p.23-25. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 20 jun. 1733, AHU_ACL_CU_015,Cx. 44, D. 4006. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. José I, 25 mai.1757, OrdemRégia de 21 jul. 1779 e Carta do Governador de Pernambuco a D. Maria I, 22 mar. 1780.Todos em: AHU_ACL_CU_015, Cx. 84, D. 6977.

23 No despacho do Conselho, datado de 1º de março de 1782, na carta do Governadorcitada na nota anterior, se pedia informe sobre as receitas e despesas da Câmara doRecife, provavelmente para verif icar a real necessidade de concessão do ofício,AHU_ACL_CU_015, Cx. 84, D. 6977.

24 Carta de D. João V ao Ouvidor de Pernambuco, 25 mai. 1715, 3º volume de CP, AHU,Cód. 258, f. 74. Salgado não define as atribuições do oficio de escrivão do alcaide, maspodemos supor que sua principal obrigação fosse registrar as incidências policiaischegadas ao conhecimento do alcaide a quem estava subordinado. Carta dos oficiaisda Câmara do Recife a D. João V, 29 jul. 1729, AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3497. Cartade D. João V ao governador de Pernambuco, 13 out. 1732, Carta do governador dePernambuco a D. João V, 27 jun. 1734 e despacho do Conselho Ultramarino sobrepedido da Câmara do Recife, 30 abr. 1735, todos em AHU_ACL_CU_015, Cx. 47, D. 4158.Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 8 jul. 1747, AHU_ACL_CU_015, Cx.66, D. 5586.

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Nem sempre a solicitação era feita pelos vereadores para que se desse umoficio. Houve um caso em que se pediu que fosse extinto o ofício de cordeadore arruador25, e que o salário pago pela Fazenda Real ao seu ocupante fossedestinado à câmara26. Em outra ocasião, a câmara tentou vincularindevidamente os ofícios de justiça da capitania submetidos ao mando do juizde fora. Sabemos que a câmara recebeu a concessão real da propriedade dospostos secundários vinculados ao juiz de fora em 1735. Quando João de SouzaMenezes Lobo, que era juiz de fora de Olinda e Recife em 1744, assumiu tambémo posto de provedor dos defuntos e ausentes, os vereadores do Recifetrataram de açambarcar os ofícios de avaliador e partidor27 daquela repartição.Isso provocou uma disputa entre o juiz de fora e a câmara. O ministro régioalegava que os ofícios eram independentes uns dos outros e, ao mesmotempo, ordenou à câmara que justificasse sua pretensão de nomear para oofício em questão. Como não havia nenhum registro de nomeações feitaspelo senado e como também não houve manifestação similar da Câmara deOlinda, a disputa acabou resolvida de forma desfavorável para amunicipalidade recifense.

A concessão por parte da coroa da propriedade de um cargo não significavaem absoluto garantia de que os ingressos gerados pela função concedidafossem regularmente arrecadados. Também não estava garantida a nãointerferência de outras autoridades na nomeação. Havendo recebido apropriedade do ofício de escrivão do alcaide e da almotaçaria, a câmara viusuas atribuições violadas pelo governador Henrique Luis Pereira Freire. Osvereadores se queixaram ao ouvidor, em 1749, que o governador desacatouo privilégio real que a câmara ostentava de designar ocupante para estasfunções, e estava exigindo que os arrendatários pagassem um donativo parareceber provimento para a função. A obrigação de pagar essa taxa reduzia ovalor dos ofícios e causava prejuízo às combalidas finanças municipaisrecifenses. Anos depois, os vereadores exigiam outra vez que as nomeaçõesfeitas pela câmara para os cargos de sua propriedade não dependessem daaprovação dos governadores.

Por outro lado, os ocupantes dos cargos arrendados pela câmara nemsempre cumpriam suas obrigações, recusando-se a pagar o valor definidopela avaliação dos ofícios. Em 1759 a municipalidade denunciou ao Rei que o

25 Pereira da Costa define o termo “cordear”: “determinar o alinhamento de uma rua, ou deum prédio que se vai construir, de acordo com o traçado do respectivo arruamento; cordear,dar cordeação, cujo serviço era feito pelo cordeador da municipalidade, depois engenheirocordeador”. PEREIRA DA COSTA, F. A. Vocabulário pernambucano. 2. ed. Recife: Secretariade Educação e Cultura do Governo de Pernambuco, 1976, p. 266.

26 Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 20 jul. 1729, AHU_ACL_CU_015, Cx.39, D. 3501.

27 Na obra organizada por Salgado, o mais completo guia dos cargos da administraçãocolonial, não há referência a estes ofícios, mas podemos supor que se tratavam dosencarregados de avaliar os bens deixados e proceder a divisão destes bens, nos casosnos quais houvesse mais de um herdeiro.

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ocupante dos ofícios de inquiridor, distribuidor e contador do juiz de forainsistia em pagar as rendas de seu ofício pelo valor antigo, anterior à novaavaliação feita pelo juiz28.

Fracassada a pretensão de tributar os terrenos pertencentes a Olinda, aCâmara do Recife utilizou o recurso de alugar propriedades imóveispertencentes à municipalidade. Há referências, por exemplo, ao aluguel delojas construídas sobre a ponte do Recife a princípios dos anos 1740. A câmarafoi autorizada a cobrar as rendas destas pequenas lojas, pois, antes de suaconstrução já existia a prática de cobrar pelas permissões para vender tecidose miudezas na referida ponte. As antigas autorizações custavam 5$000 anuais.Com a edif icação das lojas, os rendimentos poderiam alcançar até aconsiderável soma de um conto de réis anuais. A preocupação dos vereadoresradicava na possibilidade de que este dinheiro fosse desviado de seu objetivoinicial que era o de custear a manutenção das pontes, e escapasse, portanto,ao controle da municipalidade. Por isso pediam garantias ao Rei de que nãohouvesse intervenções externas na gestão destes fundos, ao mesmo tempoem que se comprometiam a prestar contas anualmente da aplicação dasrendas.

Em 1788, a câmara inaugurou, com grande solenidade, as casinhas, ospequenos estabelecimentos do novo mercado da Praça da Polé, atual praçada Independência, uma das mais movimentadas da cidade do Recife. Nainauguração estiveram presentes inclusive as mais altas autoridades dacapitania: o governador e o bispo. Para financiar a obra, a municipalidadelevantou um empréstimo de pouco mais de 800$000 junto ao Hospital dosLázaros29. Eram um total de 62 lojinhas que foram alugadas a comerciantes equitandeiros, gerando ingressos anuais de quase um conto de réis. Dozeanos depois encontramos duas quitandeiras negras tentando alugar umadestas lojinhas da Praça da Polé, “que foram edificadas (...) para aformosear amesma Praça, para fazer-se patrimônio e rendimento para o Senado, e finalmentepara o Mercado Público comodidade para os que vendem”30.

O longo processo de formação do patrimônio municipal da Câmara do

28 Carta do governador de Pernambuco, a D. João V, 3 out. 1744, carta do Juiz de Fora deOlinda e Recife ao governador de Pernambuco, 5 mar. 1746 e certificado do escrivãoda Câmara do Recife, 4 mar. 1746, todos em AHU_ACL_CU_015, Cx. 62, D. 5346. Cartada Câmara de Recife ao ouvidor geral de Pernambuco, 20 abr. 1749, AHU_ACL_CU_015,Cx. 69, D. 5816. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. José I, 16 mai. 1756,AHU_ACL_CU_015, Cx. 81, D. 6738. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. José I,21 mar. 1759, AHU_ACL_CU_015, Cx. 90, D. 7248.

29 Certificado do escrivão da Câmara do Recife, 3 out. 1744, carta de D. João V ao governadorde Pernambuco, 28 jan. 1744 e carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 3 out.1744, todos em: AHU_ACL_CU_015, Cx. 61, D. 5189. Ata de sessão, 21 set. 1788, Livro deAtas da Câmara do Recife, n. 4, f. 46, IAHGP. PEREIRA DA COSTA, Anais pernambucanos,vol. VI, p. 138.

30 Carta da Câmara do Recife ao governador de Pernambuco, 18/6/1800, LRCMR 1733-1808, f. 94, IAHGP.

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Recife reflete, em seus meandros, várias facetas da sociedade de AntigoRegime nos trópicos. Interesses privados se mesclam com questões públicasde ordenamento administrativo. Poderes locais exercidos por fraçõesantagônicas das elites locais se atritam na defesa de seus interesses.Funcionários régios e autoridades locais se aliam e se combatem em torno atemas tão variados como a alimentação de crianças e enfermos ou a realizaçãode procissões e festas. Percebemos assim como o estudo das municipalidadescoloniais e das elites que as ocupavam pode resultar em interessantes miradassobre a sociedade colonial ibero-americana e sua cultura política.

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o governo de D. José I as muitas Missões jesuíticas que existiamnas capitanias do Norte do Brasil foram elevadas à situação deVilas coloniais, com Câmaras, pelourinhos e vereadores, como jáhavia acontecido nas capitanias do Estado do Maranhão e Grão-Pará. A criação dessas Vilas foi desdobramento das chamadas

CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS:NOVOS INTERLOCUTORES NAS VILAS DE ÍNDIOS DA

CAPITANIA DO RIO GRANDE1

Fátima Martins Lopes2

“Leis de Liberdade”, especialmente a de 6 de junho de 1755, que restituía aosíndios do Maranhão e Grão-Pará a liberdade, e também o Alvará de 7 de junhodo mesmo ano, que aboliu o poder temporal dos missionários sobre os índiosaldeados. Ambas foram estendidas ao Estado do Brasil pelo Alvará em Formade Lei, de 8 de maio de 1758.

Quando cópias do Alvará chegaram à Capitania de Pernambuco e suasanexas em fins de 1758, uma das primeiras providências do GovernadorGeneral, Luiz Diogo Lobo da Silva, encarregado de criar as novas Vilas, foiconvocar os Principais3 dos povos moradores nas Missões Jesuíticas do Cearáe Rio Grande do Norte que seriam elevadas a Vilas, para comparecerem aoRecife para serem informados sobre as novas leis. O Governador temia que aordem de saída dos missionários dessas Missões causasse distúrbios e conflitosentre os índios e os novos funcionários régios que deveriam assumir o lugardos religiosos4.

Além disso, a necessidade de preparar a instalação das Vilas, conforme asimposições das novas leis, fazia o Governador procurar estabelecer bonsrelacionamentos com os Principais, concedendo-lhes honrarias para que asconversações pudessem surtir o efeito desejado, isto é, facilitar a execuçãodo projeto de controle laico da população indígena, contando com eles paraintermediação.

1 O presente texto faz parte da tese Em nome da liberdade: as vilas e índios do Rio Grande doNorte sob o Diretório Pombalino no século XVIII, defendida na Universidade Federal dePernambuco em 2005, com apoio da CAPES.

2 Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Líder do Grupo dePesquisas Formação dos Espaços Coloniais: economia, sociedade e cultura (PPGH-UFRN/Diretório CNPq). Professora Adjunta do Departamento de História e DocentePermanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal doRio Grande do Norte. E-Mail: <[email protected]>.

3 Principal é a forma encontrada na documentação consultada para o tratamento doschefes indígenas tradicionais.

4 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ) – II-33,6,10, doc. 2, fl. 7-12, Carta do Gov.de Pernambuco ao Secretário de Estado, 13 jun. 1759.

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Na chegada dos Principais convidados ao Recife, o Governador deu-lhes,e às suas mulheres, trajes de presente5, conforme a determinação do Diretóriodos Índios, que era o novo regimento utilizado para a administração dosíndios vilados e que incitava que se introduzisse entre eles o uso devestimentas “decorosas e decentes”, persuadindo-os a “... que se possam vestirà proporção da qualidade de suas pessoas e das graduações dos seus postos...”6.Já não bastava mais que se vestissem para esconder a nudez, como já eramobrigados pelos missionários, mas sim que o fizessem diferentemente entresi, de acordo com os seus cargos e posições, como uma forma de identificaçãovisual da distribuição do poder dentro do grupo, a fim de facilitar uma mudançana cultura e na identidade étnica, contribuindo para o estabelecimento dahierarquização social pretendida pela colonização.

Como adverte Maria Regina Almeida, essa distinção hierárquica atravésdas vestimentas diferenciadoras era típica do Antigo Regime e, ao serintroduzida entre os índios aldeados, será assumida pelos detentores de cargose funções de destaque para se adequarem ao modelo do “fidalgo ibérico”,como apontado por Serge Gruzinski, ou para afirmarem a sua proeminênciaeconômica e social, como afirmou Nathan Wachtel7.

É nesse sentido que se entende a petição dos índios Oficiais da Câmara daNova Vila de Arez, na capitania do Rio Grande, no ano de 1761. Beneficiadoscom pequenas porções de gado na repartição dos bens da antiga Missão,eles desejaram ter roupas distintas daquelas de tecidos grosseiros usualmenteutilizadas pelos índios, e consultaram o Diretor dos Índios da nova Vila sepoderiam vender algumas cabeças para comprarem roupas e poderem vestir-se “adequadamente”8.

Tais atitudes eram as desejadas pela Coroa, pois, na nova legislaçãopombalina, principalmente os Principais deveriam ser tratados como“verdadeiros vassalos”, através das distinções que lhes eram oferecidas, comoas vestes, porque participariam na administração das novas Vilas, atuandocomo Capitães Mores ou outros cargos das Ordenanças, ou como Vereadoresnas Câmaras, mesmo que dirigidos pelo Diretor dos Índios9.

5 Ibidem.6 DIRETÓRIO que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão

enquanto Sua Majestade não mandar o contrário [1757]. Boletim de Pesquisa da CEDEAM,Manaus, v. 3, n. 4, jan./ dez. 1984. Parágrafo 15. Foi estendido ao Estado do Brasil peloAlvará em forma de Lei de 17 de agosto de 1758. O Diretório foi o criado pelo Governadordo Maranhão e Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, a ser usado pelosDiretores das Vilas de Índios na administração dos índios das novas Vilas.

7 ALMEIDA, Maria Regina. Metamorfoses indígenas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,2003, p. 159.

8 BNRJ–I-12,3,35, fl. 83-84, Carta do Gov. de Pernambuco ao Diretor da Vila de Arez, 22ago. 1761. Diretores de Índios são os novos funcionários régios que deveriam administraros índios nas Vilas recém-formadas.

9 Sobre o aliciamento dos Principais na colonização cf. DOMINGUES, Ângela. Quando osíndios eram vassalos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dosDescobrimentos Portugueses, 2000, p. 169-176. PIRES, Maria Idalina. Resistência

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No Diretório dos Índios, acusava-se os missionários de terem mantido osíndios na “rusticidade e abatimento” através da não observância às “honrariase os privilégios” referentes aos postos oficiais ocupados por alguns indígenas.Advertia-se que, nas novas Vilas, deveria se respeitar a “diversa graduação depessoas a proporção dos ministérios que exercitam” e, por isso, dispunha queos índios deveriam ser tratados com as honrarias que se deviam aos cargosoficiais, “conforme as suas respectivas graduações, empregos e cabedais”, tantopública como privativamente, extensivo a sua família. Seu objetivo foiclaramente apresentado no regimento: “... para que vendo-se estimadospublicamente, e particularmente, cuidem em merecer com o seu bomprocedimento as distintas honras com que são tratados...”10.

Entende-se que as honrarias que deveriam ser prestadas aos Principais,aos Oficiais Militares e àqueles que eram designados a cargos de administraçãoa partir do Alvará de 7 de junho de 1755 (Vereadores, Juizes Ordinários edemais Oficiais da Justiça que comporiam as novas Câmaras) seriam umaforma de inserção desses elementos indígenas na estrutura social hierarquizadada colônia. Ao mesmo tempo, as distinções sociais impingidas dividiriam ogrupo, diminuindo a força da resistência, tornando-se, nesse entendimento,uma estratégia de dominação de elementos que se sobressaiam nacomunidade e que poderiam eventualmente encabeçar novas revoltas.

Tal forma de dominar não era novidade, pois foi posta em prática desde oinício da conquista com o estabelecimento dos Terços dos Índios e seusrespectivos cargos militares, distribuídos entre os guerreiros daqueles povosque estabeleceram alianças com os conquistadores para lutarem contra outrosgrupos indígenas resistentes à conquista11. Vale ressaltar que essas medidasocorriam em momentos de redefinição das relações internas dos gruposindígenas que sofriam a pressão da conquista, e não se pode descartar opoder de atração que títulos e cargos militares fariam em povostradicionalmente guerreiros.

Para Carlos de Araújo Moreira Neto, os principais “passos da dominação”da população indígena na colonização no norte do Brasil foram o descimentoe a “... sistemática destruição dos modos tradicionais de organização e de controlesocial do grupo e de sua herança cultural”. Essa destruição se alcançaria através

indígena nos sertões nordestinos na pós-conquista territorial: legislação, conflito enegociação nas vilas pombalinas. Tese de Doutorado. Universidade Federal dePernambuco. Recife, 2004, p. 99-102. SAMPAIO, Patrícia. Espelhos partidos: etnia,legislação e desigualdade na colônia. Tese de Doutorado. Universidade FederalFluminense. Niterói, 2001, p. 195-196. SILVA, Isabelle Braz. Vilas de Índios no Ceará Grande:dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino. Tese de Doutorado. Universidade Estadualde Campinas. Campinas, 2002, p. 182-188. FARAGE, Nádia. Muralhas do sertão. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1991, p. 161.

10 DIRETÓRIO..., parágrafo 19.11 Cf. MONTEIRO, John. Negros da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 29-36;

LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do RioGrande do Norte. Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado, 2003, p. 27-51.

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do combate a seus pajés e chefias tradicionais, da eventual eliminação deseus mitos e língua, substituídos por rudimentos de valores e crenças cristãose pela introdução da língua geral. E o elemento viabilizador deste processo,era a constante presença dos missionários e de seus prepostos indígenas,isto é, os “capitães” 12.

Para ele, os chamados “capitães” eram indígenas especialmente escolhidose “... colocados na direção de grupos e povoações indígenas por autoridadesoficiais, missionários ou simples particulares, como seus delegados...”.Geralmente, em substituição dos líderes tradicionais, eram indicados aquelesmais “dóceis aos interesses do colonizador”, para servirem de contato ou“intermediários entre seus grupos e as autoridades coloniais”13. Esses Capitães,ou também chamados Capitães Mores, dirigiam as companhias de Ordenançasque foram criadas ainda nas Missões tanto para segurança das mesmasquanto para a da Coroa, principalmente contra outros grupos indígenasresistentes à colonização ou mesmo contra povos estrangeiros.

Com a mesma perspectiva sobre a valorização das lideranças nativas noperíodo colonial, como parte do projeto de conquista e colonização, MariaRegina Almeida lembra que os cargos de chefia entre os povos Tupi eramalcançados tradicionalmente pelo prestígio que o escolhido tinha entre seuspares, baseado em qualidades e méritos individuais, principalmente deliderança guerreira. Na colonização, porém, o enobrecimento através doscargos de chefia tornou-se delegado pela Coroa ou seus funcionários, sendo“... firmado com base na própria tradição tupi, porém acrescida dos novoselementos introduzidos pelos portugueses e incorporados pelos índios ao seupróprio modo”14. Como, por exemplo, o uso das vestimentas diferenciadoras.

Nas Missões, apesar de haver vários líderes, inclusive de etnias diferentespor causa dos descimentos impostos, o chamado Capitão Mor da Aldeia,principal líder do aldeamento, era geralmente o Principal do grupo dominanteà época do seu estabelecimento e recebia provisão escrita pelos Governadores.Para Maria Regina Almeida, os missionários e colonizadores

(...) preocupavam-se em tratar especialmente os Principais a fimde que convencessem seus seguidores às alianças, chegando ainstituir uma ‘nobreza indígena’ por meio de concessão de favores,títulos, patentes militares e nomes portugueses de prestígio aalgumas chefias que desempenhavam papel fundamental no

12 MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia: de maioria a minoria (1750-1850).Petrópolis: Vozes, 1994, p. 47.

13 MOREIRA NETO, Índios da Amazônia..., p. 56.14 ALMEIDA, Metamorfoses indígenas, p. 155. Sobre o papel das lideranças, ver também:

DOMINGUES, Quando os índios..., p. 169. Para ela os Principais eram identificados peloscolonizadores entre os indivíduos “com prestígio social ou com atitudes de comando”que detinham “poder político e social persuasivo e pouco coercitivo”, e tornaram-se os“interlocutores por excelência no processo de negociação nos descimentos e aldeamentos”.

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processo de integração de seus subordinados ao sistema colonial.15

A mesma autora concluiu que a introdução da nova política metropolitana,detalhada no Diretório dos Índios na segunda metade do século XVIII,aprofundaria essa política de enobrecimento através da concessão de cargosoficiais nas novas Câmaras e nas Ordenanças, estabelecendo como deverdos Diretores persuadirem aos Capitães Mores de que os serviços na terranão os inabilitariam aos empregos honoríficos16. Concordando com esta idéia,Moreira Neto adverte, porém, para uma pequena diferença entre as liderançasindígenas nas Missões e nas Vilas: nestas últimas, “... a autoridade (poucoconvincente e de duvidosa legitimidade) de índios e mestiços convertidos emjuizes e vereadores – [eram] funções vedadas, via de regra, às liderançastradicionais do grupo”17.

Com efeito, nas Vilas de Índios do Rio Grande do Norte observou-se queos postos mais elevados das Ordenanças eram exercidos continuamente poraqueles indicados e nomeados pelo Governador de Pernambuco18 até quefossem substituídos, ou por não mais aguentarem o cargo ou por não seremmais interessantes à Coroa. Nessas indicações ou nas substituições porconfronto com as determinações da Coroa, foi possível observar que asnomeações poderiam não recair sobre aqueles designados como Principaistradicionais, mas sim naqueles que eram mais favoráveis às imposiçõescoloniais.

Em 1760, na nova Vila de São José do Rio Grande, Leandro de Souza,Principal tradicional, era Capitão Mor dos Índios desde o tempo dosmissionários capuchinhos, mas teve conflitos com o último missionário, FreiAníbal de Gênova, que se queixara ao Governador de Pernambuco e tentaratirá-lo do cargo. Na época da extinção de Missão e criação da nova Vila, oGovernador decidiu mantê-lo na função, mas o advertiu que cumprisse asOrdens Régias e o Diretório, que obedecesse ao Diretor e estivesse sempre“... pronto no cuidado de animar os seus índios a obedecerem-lhe e a concorreremcom inteira vontade ao adiantarem as suas lavouras e fazendo florente estapovoação”19.

Observa-se que a tradicionalidade no cargo não era o que tinha feito oPrincipal Leandro ser mantido na função de Capitão Mor, mas sim apossibilidade de que mantivesse seus subordinados sob controle nummomento de transição que poderia suscitar confrontos.

Apesar das Câmaras terem o poder de indicar um nome para ocupar oCargo de Capitão Mor, a aceitação do Governador de Pernambuco era

15 DOMINGUES, Quando os índios..., p. 158.16 DOMINGUES, Quando os índios..., p. 159.17 MOREIRA NETO, Índios da Amazônia..., p. 245.18 A Capitania do Rio Grande era Anexa à Capitania Geral de Pernambuco desde 1701,

devendo partir do Governador de Pernambuco as provisões aos cargos militares.19 BNRJ– I-12,3,35, fl. 8-8v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Capitão-mor dos Índios da

Aldeia de Mipibu, 29 dez. 1760.

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essencial, pois era dele a jurisdição de confirmar o indicado no cargo atravésde Carta Patente e também só a ele cabia o direito de tirá-lo. Isso é o que sepode perceber no episódio ocorrido na mesma Vila de São José, já em 1779,quando os Oficiais da Câmara queixaram-se ao Ouvidor Geral e Corregedor,Sebastião José Rebelo de Gouveia e Melo, sobre “os desaforos que o Capitão-mor dos Índios dessa Vila obra e tem obrado” e pediam para tirá-lo da função.O Corregedor respondeu que ele não podia suspender o Capitão Mor por serfunção pertinente apenas ao Governador de Pernambuco, porém, eles opodiam suspender interinamente enquanto davam parte ao Governador e oesperavam deliberar sobre a matéria20.

Em outra ocasião, em março de 1784, os Oficiais da mesma Câmara de SãoJosé se queixaram do Capitão Mor dos Índios diretamente ao Governador dePernambuco sobre o “... estado deplorável em que se acha esta Vila por causada incapacidade do Capitão-mor dela, que continuamente anda embriagadocometendo várias desordens.” O Governador ordenou, então, que os Oficiaisfizessem uma nova indicação de “... pessoas mais beneméritas... para servircom honra o dito posto de Capitão-mor, a qual me será enviada para mandarpassar patente a quem me parecer mais justo e para este fim lhe mostrarãoVossas mercês esta carta”21. A indicação dos “mais beneméritos” queria dizer aindicação daqueles que, se presumia, cumprissem o que lhes fosse ordenadopelas autoridades coloniais e agissem em conformidade com os desígniosmorais da metrópole.

Assim, de fato, após a escolha feita pela Câmara, o Governador dePernambuco, em 12 de dezembro, passou Carta Patente ao índio JuvenalBatista Pereira para o cargo de Capitão Mor dos índios da Vila de São José,af irmando que era “... em respeito... e em reconhecimento do bomprocedimento do mesmo, no posto de Capitão-mor”22. A Carta Patente incluíatambém as obrigações e direitos do novo Capitão Mor:

Esperar dele que nas obrigações do dito posto se haverá muitocomo deve a boa confiança que na sua pessoa faço. Hei por bem naconformidade das Reais Ordens de onze de abril de 1723, referendaro dito índio Juvenal Batista no posto de Capitão-mor dos Índios daVila de São José da Capitania do Rio Grande do Norte, com o qualposto não haverá soldo algum, mas gozará de todas as honras,graças, franquias, liberdades, privilégios e isenções com que emrazão dele lhes pertencerem.23

20 Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), Livro de Cartas eProvisões da Câmara de São José de Mipibu, fl. 139, Carta do Ouvidor Geral e Corregedorda Comarca à Câmara da Vila de São José, 7 out. 1779.

21 Idem, fl. 163v., Carta do Gov. de Pernambuco à Câmara de São José de Mipibu, 4 mar.1784.

22 Idem, fl. 177-177v., Carta Patente do Capitão-mor do Índio Juvenal Batista Pereira, 12dez. 1789.

23 Ibidem.

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De forma semelhante, em Vila Flor, os Oficiais da Câmara, em 1777,presididos pelo Corregedor da Comarca, indicaram o índio Francisco XavierMachado, para o cargo de Capitão Mor das Ordenanças que estava vagoporque o antecessor, Caetano Freire de Melo (também índio), renunciou porestar adoentado e idoso. O Governador de Pernambuco, José Cezar deMenezes, confirmou-o no posto por Carta Patente, enfatizando que “... como qual [posto] não haverá soldo algum, mas gozará de todas as honras, graças,despachos, liberdades, privilégios e isenções que em razão dele lhe competem...”e advertia ao indicado que “...satisfaça inteiramente as obrigações que lhecompetem, bem como deve a boa confiança que faz de sua pessoa”24. Dentreessas obrigações estavam arrolados o combate à ociosidade e à embriaguez:

Será obrigado a remover dos índios seus subordinados os vícios daociosidade e ebriedade, fazendo-os aplicar às culturas de suaslavouras, pelo que ordeno ao respectivo Diretor e Câmara por tal oreconheçam, honrem e estimem, conferindo-lhe a posse e juramentode estilo, do que se fará assento nas costas desta, e a todos os seussubordinados que lhe obedeçam e cumpram as suas ordens relativasao Serviço Real, assim como devem e são obrigados.25

Vê-se que as obrigações do novo Capitão Mor eram aquelas mesmasimpostas, desde longa data, pelos missionários aos interlocutores escolhidospara intermediar os dois mundos – o colonial e o indígena –, e em nada eramligadas às obrigações tradicionais das lideranças indígenas. Eram, ao contrário,impostas para se cumprir as determinações legais do Reino e com elas modificarculturalmente as populações indígenas.

Quando os novos indicados não cumpriam corretamente essas“obrigações” eram substituídos. Foi o que ocorreu com o Capitão Mor da Vilade Arez, quando, em 1761, o Diretor da Vila, Domingos Jacques da Costa,informara ao Governador Luiz Diogo Lobo da Silva as “desordens” que oCapitão Mor Sebastião Lopes fazia, como: “... dar rapazes e trabalhadorespara circunvizinhos, sem que intervenha ajuste do Diretor, na conformidade doDiretório...” e sair da Vila sem a prévia licença do Diretor, como havia feitonaquele momento ao ir a Recife falar com o Governador, levando outrosíndios com ele. O Governador respondeu ao Diretor que, de fato, o CapitãoMor tinha estado em Recife, que ele o havia recebido e ouvido, mas nãoaceitara as suas desculpas por sair sem permissão. Por isso, havia mandadoprendê-lo na Fortaleza das Cinco Pontas e repreendeu a todos os demaisíndios que o acompanharam, mandando-os de volta ao Rio Grande26. O

24 IHGRN, Livro de Registro da Antiga Vila Flor, fl. 150-150v., Carta Patente do Governadorde Pernambuco ao posto de Capitão-mor das Ordenanças dos Índios de Vila Flor, 4fev. 1777.

25 Ibidem.26 BNRJ – I-12,3,35, fl. 84-84v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Diretor da Vila de Arez, 24

ago. 1761.

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Governador apontava o exemplo da prisão do Capitão Mor na frente dosseus subordinados como forma de manter os índios sob controle:

Persuado-me que a vista do procedimento que viram praticar como dito Capitão-mor e a advertência que lhes fiz, de que não deviamsair para parte alguma fora dessa Vila, sem permissão de V. M.,nem intrometer-se de dar rapazes e trabalhadores... ficarãointeiramente certos para se absterem de seguir este desmancho, aque os encaminha a persuasão daquelas pessoas que solicitam commão coberta os progressos desses estabelecimentos.27

Ainda tratando desse mesmo episódio, os Oficiais da Câmara de Arezfizeram um requerimento ao Governador em que pediam que depusesse oCapitão Mor Sebastião Lopes de seu posto, alegando:

(...) as repetidas desordens que tem cometido, contra as ReaisOrdens, e notório prejuízo do adiantamento dessa V ila etranquilidade de seus moradores; mormente quando com perniciosoexemplo e renitente desobediência se opunha ao fim da civilidadedos seus habitadores para que devia concorrer como era obrigação.28

Isto é, para os Oficiais da Câmara, a substituição do Capitão Mor devia serfeita porque ele não era o agente dócil esperado. Frente a essas informações,o Governador resolveu que ele era incapaz para o cargo, mandando prendê-lo em Fernando de Noronha, “... aonde existiria o tempo competente a purificaras suas culpas”29.

Utilizando o exemplo e a ameaça como forma de controlar os oficiaismilitares índios, o Governador nomeou outro índio, Francisco Xavier da Silva,para ocupar o cargo que ficara vago na Vila de Arez, porém advertiu-o paraproceder com obediência, pois, caso contrário, sofreria “... da mesma sorteque todo aquele que faltar em concorrer para a boa harmonia e em se mostrarmenos ativo e obediente ao Diretor e justiças”30.

Ao mesmo tempo, o Governador advertiu aos Oficiais da Câmara que aobediência era o principal requisito para a manutenção dos postos ocupados,pois também eles poderiam perder os seus próprios cargos, caso não agissemem conformidade com as necessidades e interesses da Coroa e de seusfuncionários em comando:

Espero que Vs. Ms. da sua parte ajudem ao dito Diretor noadiantamento dessa Vila e não consintam se dêem índios ou rapazespara os trabalhos e casas dos moradores circunvizinhos, sem a suaintervenção e ajuste, animando a conservação da escola e ensino

27 Ibidem.28 BNRJ – I-12,3,35, fl. 84v-85, Carta do Governador de Pernambuco aos Oficiais da Vila de

Arez, 24 ago. 1761. (grifo nosso).29 Ibidem.30 Ibidem.

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das raparigas e fazendo aumentar quanto possível a cultura ecriações de gado, para o que é necessário não faltarem ao castigodaqueles que justamente o merecem, quando assim odesempenhem terão a minha vontade muito pronta para em tudolhes dar gosto.31

Na nova configuração das Vilas de Índios, as Câmaras investiram-se a sicomo protetoras das leis, como se esperava de um órgão administrativocolonial, principalmente porque nelas também passaram a atuar os novosmoradores brancos. Há que se considerar que, desde a formação das Câmarasnas novas Vilas de Índios do Rio Grande, os colonos lusobrasileiros começarama participar das eleições, tanto como eleitores como eleitos, tal como os índios,daí não ser difícil entender os pedidos de substituição dos Capitães Moresdas Ordenanças dos Índios que não atendessem aos interesses da Coroa.Entretanto, os índios que atuavam como Capitães Mores ou como Oficiaisdas Câmaras eram importantes para a colonização por exercerem a função deintermediários entre o mundo colonial e os seus subordinados, fiscalizandoas próprias instituições coloniais, assim como a população vilada em geral.

Assim como os camaristas lusobrasileiros, também os Párocos tentavaminfluir na indicação ou substituição dos Oficiais das Ordenanças, apesar denão terem mais poder para atuar no âmbito temporal, e um episódio queocorreu na Vila de Estremoz é um bom exemplo. O Capitão Mor dos Índios,Marcelino Carneiro, queixou-se, por carta, ao Governador de Pernambuco,de que o Vigário Antônio de Souza e Magalhães lhe encarregou de cobrar asconhecenças32 que alguns moradores lhe deviam. Executando a tarefa por“obséquio” – como asseverou, pois não era sua obrigação – verificou quemuitos devedores precisavam de um tempo maior para fazer o pagamento, oque foi informado ao Pároco na Igreja. Não contente com o resultado obtido,o Vigário teria xingado o Capitão Mor, “... descompondo-o de ridículopublicamente e outros nomes injuriosos”33. Provavelmente, o Vigário o chamoude “ridículo” por este não ter a autoridade que seu cargo pressupunha e nãoconseguir fazer com que seus subalternos fizessem o pagamento que deviam.

Ao que parece, a precariedade da autoridade dos Capitães Mores eraevidente aos colonos, como Henry Koster registrou mais tarde, em 1810,quando visitava as Vilas de Índios de Pernambuco e suas anexas:

Os indígenas têm também seus Capitães-mores cujo título é vitalícioe dá algum poder sobre os seus companheiros, mas como não hásalário, o Capitão-mor é muito ridicularizado pelos brancos e, com

31 Ibidem. (grifo nosso).32 Conhecença é a oferta pecuniária dada a um cura, em lugar de rendimentos regidos por

dízimos.33 BNRJ – I-12,3,35, p. 42-42v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Vigário de Estremoz, 25

mai. 1761.

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efeito, um oficial meio nu, com sua bengala de castão de ouro namão, é um personagem que desperta o riso aos nervos mais rijos. 34

Frente a este tipo de atitude de menosprezo, o Capitão Mor Marcelinorelatou que, movido pelos xingamentos do Pároco e “... levado por uma poucacólera de se ver desatendido contra as Ordens de Sua Maj. F. na presença daspessoas que governa...”, revidou, chamando também o Vigário de “ridículo”.Talvez, motivado pela mesma precariedade de autoridade dos novos Párocos,comparada ao poder que os antigos missionários regulares tinham. Frenteao revide, o Pároco declarou publicamente que o Capitão Mor estavaexcomungado e destituído da autoridade do seu posto, e começou a formarum Sumário de Testemunhas contra ele, acusando-o também deamancebamento e outros crimes35.

Ambos queixaram-se ao Governador e, em resposta ao Vigário, oGovernador lembrou que as testemunhas que o Pároco arrolara eram inimigasdo Capitão Mor, como, por exemplo, o Capitão Constantino Dias, de quemtivera “notícias do espírito de parcialidade que o predomina” e que já tentaraficar com o cargo do Capitão Mor. Ordenou, então, que o Pároco cancelasseo Sumário, pois não era da sua competência. Da mesma forma, cancelava adestituição do cargo de Capitão Mor, que também não lhe cabia. Além disso,declarou que, no seu entendimento, o Capitão Mor Marcelino não era homemde causar problemas, pois, num tempo que permaneceu em Recife por trêsmeses, não tivera notícia do

(...) mais leve desmancho seu, e só muito cuidado em que a suagente vivesse em paz e observassem as Ordens Régias, pode seressa a culpa que se lhe ache, e que aqueles que não gostam de asverem executadas por quererem indiretamente fazer renovar osantigos abusos, sejam os mesmos que lhe procurem semelhantesembaraços.36

Isto é, para o Governador de Pernambuco, o Capitão Mor Marcelino estavadevidamente envolvido pela colonização, servia aos interesses da Coroa e,portanto, deveria ser mantido no cargo que ocupava, apesar dos apeloscontrários do Pároco que queria exercer uma autoridade sobre os índios quelhe era impedida.

Por outro lado, percebe-se também que a fidelidade encontrada no CapitãoMor Marcelino não era a mesma que o Governador observava no CapitãoConstantino Dias, o pretendente ao cargo do Capitão Mor. Por isso, em cartaao Diretor de Estremoz, Antônio de Barros Passos, o Governador afirmouque, mesmo que o índio Marcelino fosse culpado, o índio Constantino “...

34 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: Gov. do Estado de Pernambuco,1987, p. 133.

35 BNRJ – I-12,3,35, p. 42-42v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Vigário de Estremoz, 25mai. 1761.

36 Ibidem. (Grifo nosso).

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nunca seria admitido a suceder-lhe nele, mormente sendo de gênio inquieto eapto a formar parcialidades”37.

Observa-se, então, uma luta pelo poder entre os índios: o Capitão MorMarcelino parecia bem acomodado ao cargo por sua aceitação do comandocolonial, como queria o Governador. Já seu opositor, o Capitão Constantino,parecia querer insuflar sua gente contra as Ordens Régias, daí sua luta paratentar obter o cargo o Capitão Mor. Entende-se, portanto, porque oGovernador apoiava o Capitão Mor contra o que pretendia o seu opositor.

A proteção que o Governador fazia em favor do Capitão Mor Marcelino foivista também em outras oportunidades, como, por exemplo, quando ele foidenunciado pelo Diretor de Estremoz de portar aguardente, o que era proibidopelo Diretório. O Governador alegou que o Capitão Mor seria inocente porqueestaria acompanhado de 30 homens que estavam tirando casca do mangue,e que a quantidade da bebida era apenas para “... as arranhaduras que tivessem,por ser natural experimentá-las entre os mangues e taliças das praias”38. Noentanto, em um episódio semelhante envolvendo outros índios, o Governadorreafirmou peremptório o impedimento do uso da aguardente:

Não duvido do prejuízo e distúrbios que seguem entre os índios porconta da aguardente e do conhecimento do muito que lhe é nocivoo uso deste gênero, tem Sua Maj. F. dado e insinua o Diretório osmeios por que se deve embaraçar a liberdade de o venderem, queV. M. deve executar inviolavelmente.39

Em outra feita, o Governador defendeu-o também contra a acusação deque teria sonegado farinha que serviria à comitiva do Ouvidor que fora criara Vila, dizendo que, ao contrário, o Capitão-mor fora previdente, pois “... eleas não tirou a seus donos e só lhe segurou as não vendessem enquanto se nãoviam se eram necessárias para a Comitiva, pagando-as pelo seu dinheiro”40.Porém, em outra ocasião, o Governador admoestara o Capitão Mor daCapitania do Rio Grande do Norte a conseguir farinha a qualquer custo, poisera para o serviço real.

Portanto, conclui-se que era a capacidade dos índios indicados aos cargosoficiais em concordar com as determinações do Governador e das leis quegarantia a indicação e a permanência neles, mesmo contra a vontade de outrasautoridades e mesmo tendo-se que relevar os pequenos defeitos e infraçõesque cometiam, contanto que se conformassem aos interesses da Coroa.

Se as indicações aos cargos oficiais carreavam poder e prestígio aos

37 BNRJ – I-12,3,35, fl. 43-44, Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor de Estremoz,25 mai. 1761. (Grifo nosso).

38 Ibidem.39 BNRJ – I-12,3,35, fl. 161v.-162v., Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor de

Estremoz, 22 dez. 1761.40 Idem, fl. 43-44, Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor de Estremoz, 25 mai.

1761.

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beneficiados, a ponto de suscitar articulações para suas substituições, poroutro lado, os títulos e cargos definidos pelas novas Leis de Liberdade tambémgarantiam um diferencial nas relações econômicas entre os índios. Conformeo Diretório, os oficiais e camaristas índios não poderiam ser repartidos paraos trabalhos aos colonos e não precisariam ir pessoalmente coletar os produtossilvestres – como as cascas do mangue – mas poderiam mandar outros índiosem seus lugares. Assim, os Principais poderiam mandar até seis índios aosertão; os Oficiais Militares até quatro índios; e os demais Oficiais, dois índios,pagando-lhes o devido salário pelo trabalho41. Na falta de dinheiro para opagamento devido, os Oficiais deveriam assinar um “escrito de dívida”(promissória), para ser pago ao final dos trabalhos com os resultadosobtidos42.

Essas práticas pretendiam a introdução de um processo de individualizaçãonas relações de produção entre os índios, pois os Oficiais passariam a terprivilégios no campo econômico-produtivo distintamente dos demais índios,conformando uma diferenciação social como parte de um processo detransformação cultural necessária à dominação colonial e exploração dotrabalho indígena. Conforme Maria Regina Almeida, aceita-se que a

(...) política de enobrecimento de parte das lideranças indígenasfazia-se com concessão de privilégios e títulos que visavam introduzirhábitos e costumes e valores do mundo mercantilista e cristão paraenvolver esses homens na ordem colonial, de forma a queconduzissem seus liderados à obediência e disciplina nas aldeias.43

Afinal, os postos de comando, as vestimentas, os papéis de concessão(Cartas Patentes) e os privilégios especiais eram símbolos de poder e prestígiovalorizados no novo mundo em que os índios viviam e foram assumidos pelosOficiais e Capitães Mores indicados pelo Governador.

Na compreensão desses “direitos”, o mesmo Capitão Mor dos índios,Marcelino Carneiro, queixou-se que alguns de seus privilégios anteriores foramretirados pelas novas determinações do Diretório e pediu ao Governador dePernambuco que eles fossem restaurados. Em carta datada de julho de 1759,o Capitão Mor queixava-se que fora dito aos Oficiais das Ordenanças daantiga Missão de Guajiru que:

(...) daqui por diante não podiam estes, nem ainda eu, como Capitão-mor desta Missão, valer-me de serviço algum dos índios destecontinente sem lhes satisfazer seu diário trabalho; se impossibilitapoder haver nas Missões capitães-maiores, pois impedidos estes aque os tais índios o sustentem com lhes fazerem uma costumadaroça, e ainda por se ir eles pescarem e darem água necessariamente,há de o Capitão-mor e sua mulher sem distinção carregarem a

41 DIRETÓRIO... , parágrafo 50.42 Idem, parágrafo 71.43 ALMEIDA, Metamorfoses indígenas, p. 161.

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precisa para o seu gasto, e irem roçar para se poderem manter,com cujo contínuo trabalho forçosamente não poderão assistir maisnas povoações de suas Missões, por lhes ser necessário fazerem atal assistência em roçados, pescarias e o mais conducente paraconservação da vida, e assim espero de V. Excia. a providêncianecessária nesta matéria ou haver-me por escuso de meu posto porme ser impossível com este poder sustentar-me e viver com distinçãoque pelo dito posto se me permite, e sempre me submetereiobediente a tudo quanto me ordenar V. Excia.44

Efetivamente, segundo o Diretório, no parágrafo 63, da mesma formaque os índios não poderiam prestar serviços aos colonos sem pagamento,também não mais poderiam prestar serviços aos Principais e Oficiais sempagamento. Isso bem lembrou o Diretor da Vila de Estremoz, Antônio deBarros Passos, ao Governador, ao pedir conselho sobre o que deveria fazerquanto à prática proibida pelo Diretório, principalmente porque o CapitãoMor Marcelino Carneiro alegava que “... ir trabalhar, carregar água e lenha”era impróprio ao seu posto e que seria melhor não ser mais Capitão Mor, “...pois o não sendo era como os mais para trabalhar para se sustentar”. O Diretorinformava ainda ao Governador que, sem que ele os mandasse, os índios jáhaviam deixado de trabalhar de graça para o Capitão-mor45.

Percebe-se que as diferenciações de privilégios tinham sido incorporadaspelo Capitão Mor Marcelino e mesmo que ele não tivesse todos os privilégiosque pretendia, aqueles que ele efetivamente possuía (como o de dirigirpetições diretamente ao Governador) o colocavam em situação socialdiferenciada na comunidade. Como foi bem observado por Patrícia Sampaio,

(...) o Diretório, ao enfatizar a diferenciação social como indicadorda civilização, criou um mecanismo que podia funcionar como umsignificativo fator de cooptação, mas que no limite, resultava nadiferenciação econômica e social desses indivíduos do conjunto dapopulação aldeada.46

Tudo isso poderia gerar conflitos entre os Capitães das Ordenanças e osseus comandados, sem que, no entanto, os afastassem de seu papel deliderança. No entanto, com a garantia de privilégios distintivos, criavam-seefetivamente novas práticas culturais que possibilitavam a consolidação dacolonização. E, esse processo de individualização poderia também contribuirpara uma diferenciação econômica entre os índios, que foi iniciada através dadistribuição diferenciada de bens e terras a elementos escolhidos.

Para o Governador de Pernambuco, Luiz Diogo Lobo da Silva, no momento

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44 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Cód. 1822, fl. 34 v.-35, Carta do Capitão-mor dosÍndios da Missão de Guajiru ao Governador de Pernambuco, 3 jul. 1759.

45 Idem, fl. 38-42, Carta do Diretor de Estremoz ao Governador de Pernambuco, 2 jul. 1759.46 SAMPAIO, Espelhos partidos, p. 195.

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mesmo da criação das primeiras Vilas entre 1759 e 1762, devia-se premiar algunsíndios escolhidos com mais terras que outros, principalmente porqueacreditava que, além da diferenciação social, isso os levaria ao desenvolvimentoeconômico da povoação e ao aumento consequente dos dízimos a seremrecolhidos. Assim, determinara ao responsável pelo estabelecimento das novasvilas que “... além das [terras] que tivessem bem fabricadas e povoadas lhesdesse as que lhes tocam pelo Diretório, querendo-as e sendo-lhes precisas”47.

Como justificativa as suas decisões de dar a alguns índios de sua jurisdiçãomais terras do que estava previsto no Diretório dos Índios, o Governadoralegava que incentivava a “boa disposição” dos Principais em acatar as novasleis:

Da nova forma que se lhes dá, se mostram contentes e protestamem todo o tempo ser pela sua Fidelidade agradecidos, sujeitando-se a esquecerem-se da língua em que até agora os entretinha eaplicarem-se com cuidado à Portuguesa e a toda instruçãonecessária a civilizarem-se e serem bons cultores para por estesmeios se poderem habilitar a igualdade que aspiram lograr com osmais vassalos que temos a honra de o ser de S. Mag. F. em que lhessegurei que para o conseguirem se careciam de se fazerem dignospela regularidade de seu bom procedimento.48

Porém, nesta passagem, muito mais do que incentivar a “boa disposição”dos Principais, se percebe que o Governador os ameaçava com seu poder.Assim, da mesma maneira que os índios Principais poderiam contar com o seuapreço, enquanto se f izessem “dignos pela regularidade de seu bomprocedimento”, também poderiam contar com a sua oposição quando assimnão agissem, como se viu nos episódios relatados anteriormente sobre asubstituição nos cargos oficiais.

Constata-se, portanto, que sob os acordos, negociações e privilégios dosPrincipais existiam as ameaças e o controle da colonização. O que demonstraque o “governo” que esses Principais tinham sobre seus pares era parcial,posto que controlado pelas ameaças das autoridades. A aceitação das novasleis, ou, pelo menos, a disposição em aceitarem-nas, era forjada pela força decoerção.

Apesar de tudo, conforme Maria Regina Almeida, estas diferençaseconômicas e sociais permitiam aos Oficiais das Ordenanças uma acumulação,ainda que em pequena escala, identificada pela posse de gado, terras própriase por rendimentos anuais superiores aos demais índios49.

No Rio Grande do Norte, viu-se através de algumas listagens de índiospagadores de dízimos que, efetivamente, os Capitães Mores das Ordenanças

47 BNRJ – II-33, 6, 10, doc. 2, fl. 7-12. Carta do Governador de Pernambuco ao Secretário deEstado, 13 jun. 1759.

48 Ibidem (Grifo nosso).49 ALMEIDA, Metamorfoses indígenas, p. 160.

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de Índios e seus oficiais tinham uma renda que ficava pouco acima da médiados demais moradores. Na maioria dos casos, eles não apareceram como osmaiores pagadores de dízimos, mas também não ficaram entre os menores.De qualquer forma, a sua identificação nominal na lista já é uma boa indicaçãode que tinham uma posição social diferenciada nas comunidades, visto quenenhuma outra forma de distinção, prof issional ou hierárquica, foiencontrada.

As listagens de índios pagadores de dízimos identificadas foram de trêsVilas do Rio Grande: Estremoz, Vila Flor e São José. Foram as únicas encontradase apenas para os anos identificados, mas possibilitam uma mostra da realidadeque se percebe comum nas três Vilas. Observa-se que, na análise das listas deíndios pagadores de dízimos, alguns nomes dos pagadores não se repetemem todos os anos. Talvez porque não tenham produzido o suficiente para seravaliado para a cobrança. Talvez se deva à forma de se recolher a informação,muitas vezes anotada nos Cadernos dos Diretores e só muito mais tardepassada à Provedoria.

Na série de cinco anos dos índios pagadores da Vila de Estremoz, a médiados valores pagos pelos Oficiais das Ordenanças foi de 392 réis e ficou poucoacima do que foi pago pela maioria dos índios listados: em 1783, 69,3% doshomens listados pagaram menos que $320 de dízimo; em 1784, foram 87,5%;em 1785, 50%; em 1786, 70%; e em 1787, 66,6% pagaram menos que trezentose vinte réis de dízimo50.

Ressalta-se que as funções militares das Ordenanças não eramremuneradas e que os dízimos eram calculados apenas sobre o que eraproduzido na terra ou obtido nos trabalhos prestados a colonos ou obtidocom o trabalho de outros índios, não havendo, portanto, ligação direta entreo valor do dízimo e a hierarquia dos postos da Ordenança. Por isso, encontrou-se um Sargento ou um Tenente pagando dízimo maior que um Capitão Mor.

Sobre os índios pagadores de dízimo de Vila Flor, podem ser feitas asmesmas observações: inexistência de relação entre os valores pagos e ahierarquia militar e pagamento de dízimos pelos Oficiais das Ordenanças acimada média do restante da população indígena. A maioria da população (58,9%)pagou valores abaixo de 120 réis, mas os Oficiais das Ordenanças identificadospagaram valores médios de 211 réis. O que indica que também tinham umarenda superior ao da maioria da população, mesmo que em pequena escala51.

Para a Vila de São José só foi encontrada a listagem de índios pagadoresde dízimos do ano de 1787, que, apesar da pequena mostra, também indicasituações semelhantes às já vistas nas outras Vilas: os Oficiais pagaram valoressuperiores aos 160 réis pagos pela maioria dos demais índios listados.

50 IHGRN, Cx. Dízimos Reais (1773-1826), Dízimos dos Índios da Vila de Estremoz (1783 a1787).

51 Idem, Dízimos cobrados dos Índios de Vila Flor (1783 a 1794).

CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS

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Nas mesmas listas de pagadores de dízimos, encontraram-se alguns índiosque se distinguiram da maioria pelo valor pago muito acima da médiaobservada e que não faziam parte das Ordenanças e nem tinham qualqueroutra forma de informação que os identificasse socialmente.

Por exemplo, em Estremoz, em 1783, o índio Antônio Pinto pagou 1920réis de dízimo. No ano seguinte, dois índios, Ângelo Mendes e Miguel Coelho,pagaram cada um 960 réis. Em 1785, Florêncio da Rocha pagou 1000 réis, eem 1792, o valor de 960 foi pago pelo índio João Soares Jr.52. Todos eramexceções, pois os valores médios pagos pela população, e mesmo pelos oficiaisdas Ordenanças, como se viu, estavam muito abaixo disso53.

Como não se encontrou listas nominais de colonos lusobrasileirospagadores de dízimos, não se pôde fazer uma comparação com os valorespagos pelos índios para se avaliar o nível de acumulação que alguns poderiamter. Mas, de qualquer forma, admite-se que era uma pequena acumulação, sepensarmos na afirmação de Henry Koster que viajou por Pernambuco e suasanexas e percorreu as Vilas de Índios: “Não há exemplo de um indígena rico”54.

Também não foi possível identificar a atividade que permitia um maiorrendimento entre alguns índios, mas se pode afirmar que as situaçõeseconômicas diferenciadas dentro das Vilas envolviam outros índios, além doscomponentes do Oficialato das Ordenanças. Por exemplo, alguns dessespagadores dos maiores valores poderiam ser aqueles que prestavam serviçoà Coroa, como o caso do “criador” do gado de Arez, como se verá a seguir.

Quando os missionários das Missões partiram do Rio Grande em 1759, osbens das Missões, principalmente o gado, ficaram com um responsável – ocriador – para cuidar dele enquanto não se decidia como seria feita a suadistribuição. O índio Jerônimo de Andrade era o criador da Vila de Arez quedeveria receber, em pagamento pelo serviço prestado, a quarta parte dascabeças nascidas durante o seu cuidado. Contudo, apesar de já ter o seugado garantido, ele não se satisfazia e agia de forma a obter maiores cabedais:na ocasião da distribuição dos bens da Missão, em 1762, o criador pleiteou aoDiretor, que além da quarta parte que lhe era devida, deveria receber umaquantia maior pelo trabalho como depositário 55.

Além dos benefícios econômicos, ele também pleiteava privilégios especiais,como quando solicitou ao Governador de Pernambuco permissão para manter

52 Idem, Dízimos dos Índios da Vila de Estremoz (1783 a 1787).53 Idem, Dízimos cobrados dos Índios de Vila Flor (1783 a 1794): em Vila Flor, um único

índio, Manuel de Sepúlveda, foi o detentor do título de maior pagador: em 1789,pagou $480; em 1790, $320; em 1791, $640; em 1792, $480 e em 1794, pagou $620; Idem,Dízimos dos Índios da Vila de São José (1787): na Vila de São José, em 1787, o maiorvalor pago foi $640.

54 KOSTER, Viagens ao Nordeste..., p. 35.55 BNRJ – I-12,3,35, fl. 83-84, Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor da Vila de

Arez, 22 ago. 1761.

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o gado sem pastor e sem recolhê-los aos currais à noite56. Ou ainda, quandopleiteou que seu filho não fosse alistado para o serviço nas Ordenanças, nemprestasse serviço a terceiros fora da Vila57.

Os pedidos quanto ao gado foram negados pelo Governador que ordenouao Diretor Domingos Jacques da Costa que o criador fosse preso por dez diasna Cadeia da Vila, por ter se ausentado da Vila sem licença, “... para que tenhao castigo da liberdade e insolência com que se houve.” Quanto aos pedidospara o filho, o Governador resolveu que o jovem, “visto ter qualidade deíndio,” deveria ser alistado nas Ordenanças e “... regular-lhe o serviço pelaescala com aos demais soldados...”58.

As respostas negativas aos seus pedidos não impede que se perceba queo criador tinha uma situação econômica diferenciada dos outros índios parapoder sustentar o filho sem que fosse necessário que ele trabalhasse, comoera ordenado no Diretório. Além disso, o que é ainda mais interessante é queele desejava se beneficiar de privilégios diferenciadores e que acreditava quepoderia pleiteá-los livremente.

Este episódio, somado à constatação da existência de índios pagadoresde dízimos bem mais elevados que a maioria, demonstra que a política colonialde diferenciação social e econômica acabou por tocar outros elementos dacomunidade e não apenas o Oficialato das Ordenanças, sem prejuízo desteter sido o alvo favorito do Diretório.

Apesar de os Oficiais das Ordenanças, principalmente os Capitães Mores,não serem os únicos a se integrarem a essa política diferenciadora, eram,porém, aqueles que tinham o direito de fazer requerimentos e por isso mesmo,em muitos casos, continuavam a ser os interlocutores entre as comunidadese as autoridades coloniais. Interlocutores que, como se viu, muitas vezesutilizaram seus direitos de pleito para benef iciarem-se econômica esocialmente. Conclui-se, portanto, que ao se apropriarem dos valoreseuropeus em benefício próprio, constituíram-se em novos interlocutores entreo mundo colonial e o indígena, podendo ter contribuído para muitas dasredefinições culturais desses últimos frente à colonização.

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56 Idem, fl. 27-27v., Carta do Governador de Pernambuco aos Oficiais da Câmara da Vilade Arez, 15 abr. 1761.

57 Idem, fl. 28-29, Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor da Vila de Arez, 16 abr.1761.

58 Ibidem.

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ste ensaio pretende, a partir da pesquisa em fontes primáriasoriundas do Arquivo Histórico Ultramarino e da BibliotecaNacional do Rio de Janeiro, acompanhar a trajetória de algunsgrupos indígenas existentes no sertão da capitania da Paraíbano século XVIII. Para tanto, analisa a política de alianças e as

CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO: TRAJETÓRIAS DEPOVOS INDÍGENAS E ÍNDIOS ALDEADOS NA CAPITANIA

DA PARAÍBA DURANTE O SÉCULO XVIII

Ricardo Pinto de Medeiros1

guerras contra os conquistadores, a participação de lideranças militaresindígenas da capitania na implantação da política pombalina e suasconsequências para as populações indígenas reduzidas em vilas.

A história dos povos indígenas que se encontravam no século XVIII noterritório do que hoje é o Estado da Paraíba, e mais especificamente, nasregiões atuais do Agreste e Sertão, apresenta-se como um desafio para opesquisador, principalmente em função das dificuldades relativas à poucadocumentação, e ao fato de que praticamente tudo o que foi escrito, o foi naperspectiva e na visão dos brancos e vencedores. Além disso, existe umproblema quanto aos etnônimos, e o que eles traduzem de fato, dasconformações socioculturais e da identidade étnica dos povos a que sereferem. Basta pensar em um povo que se encontrava espalhado por umespaço determinado, que não tinha nada a ver com a organização espacialimposta pelos colonizadores e que foi recebendo denominações diferentes,à medida que foi sendo contatado.

Uma situação bastante comum é a modificação do etnônimo, que ésubstituído no processo de contato, pelo nome de um principal importantedo grupo. É o caso dos Ariú, trazidos por Teodósio de Oliveira Ledo, no anode 1697, ao aldeamento chamado Campina Grande, cujo principal se chamavaCavalcanti.

No princípio de dezembro do ano de 97 veio a esta cidade o capitão-mor das Piranhas e Piancó, Teodósio de Oliveira Ledo, (...) trouxeconsigo, Senhor uma nação de tapuias chamados Ariús, que estãoaldeados junto aos Cariris aonde chamam Campina Grande, equerem viver como vassalos de Vossa Majestade e reduzirem-se a

1 Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor Adjunto doDepartamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação emArqueologia da Universidade Federal de Pernambuco. Docente Colaborador doPrograma de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Líder doGrupo de Pesquisas Etnoarqueologia no Nordeste (PPGA-UFPE/ Diretório CNPq) epesquisador do Grupo de Pesquisas Estado e Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq). E-Mail: <[email protected]>.

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nossa santa Fé Católica dos quais é principal um tapuia de muitoboa traça e muito fiel segundo o que até o presente tem mostradochamado Cavalcanti (...).2

Em 1761, em uma relação das aldeias que há no distrito do governo dePernambuco, e capitanias anexas, de diversas nações de índios, podemosobservar que a mesma aldeia da Campina Grande é agora habitada por índiosda nação Cavalcanti3.

Apesar das dificuldades acima mencionadas, acreditamos que algunsetnônimos como Pega, Panati, Corema, Cariri, Xucuru e Icó, que aparecemcom bastante frequência na documentação do século XVIII, relativa ao sertãoda Capitania da Paraíba, referem-se a situações étnicas diferenciadas e quevão se transformando ao longo do processo de contato. A opção de trabalharcom o século XVIII, deve-se ao fato de que é o momento onde se encontrouum volume maior de documentos que fazem menção a estes etnônimos, quevão desaparecendo na segunda metade do mesmo século, à medida que osíndios que estabeleceram pazes e foram reduzidos em aldeias, tiveram assuas aldeias transformadas em vilas e povoados, dentro das transformaçõesimpostas pela política indígena do período pombalino.

Assim, esse foi um século em que os povos indígenas do sertão da capitaniaque fizeram pazes e se aldearam junto aos portugueses desde o final doséculo anterior, vivenciaram diversas situações relativas ao contato: guerras,acordos de paz, redução, participação militar nos conflitos com outros gruposindígenas e o impacto que a política pombalina teve no processo dedesenraizamento espacial e cultural das identidades étnicas existentes e aconstrução de novas identidades.

Uma das primeiras referências aos Corema encontradas na pesquisa é dofinal do século XVII. Trata-se de uma carta do capitão mor dos sertões dePiranhas, Cariris e Piancó, Teodósio de Oliveira Ledo, ao Governador da ParaíbaManoel Soares de Albergaria em 6 de agosto de 1698.

(...) com o favor de Deus cheguei com tudo a salvo e em paz a esteArraial do Pau Ferrado nos primeiros de abril e dali a nove dias deminha chegada me veio um aviso do meu gentio, que distante doarraial três léguas estavam em como com eles se haviam encontradotrinta ou quarenta tapuias brabos, que vinham em busca de paz eque em todo caso os socorresse pelo receio que tinham de que lhesucedesse algum dano, o que fiz logo (...) eram de uma aldeiachamada Corema a pedir-me paz dizendo que queriam ser leais a ElRei meu Senhor; eu lhes concedi com ditame de procederem contraos nossos inimigos e com obrigação de conduzirem o seu mulheriopara o arraial debaixo das armas; aceitaram o partido (...).4

2 Carta do Governador da Paraíba Manoel Soares de Albergaria ao Rei de Portugal D.Pedro II, de 14 mai. 1699. AHU_ACL_CU_014, Cx. 3, D. 226.

3 AHU_ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, p. 298-304.

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Em julho de 1709, em correspondência ao governador de Pernambuco, orei comenta uma carta que havia recebido do capitão mor da Paraíba,informando que o capitão mor dos sertões daquela capitania, Teodósio deOliveira, teria comunicado que havia, naqueles sertões, uma nação de Tapuiaschamados Pega, e outra, chamada de Corema, que inquietavam os moradores.O motivo da inquietação era por se achar a nação Pega com cabo e com maisde mil e tantos arcos, de que se procedia não se povoarem aqueles sertões ese aumentarem os currais. Na mesma data, o rei escreve ao capitão mor daParaíba ordenando mandar o capitão mor Teodósio de Oliveira, com sua gentee índios, reprimir os danos que os índios levantados tentavam fazer, e se nãofosse possível, escrevesse ao governador de Pernambuco para dar o socorronecessário para empreender essa guerra5.

Logo em seguida, encontramos uma consulta do conselho ultramarino de19 de janeiro de 1711, sobre o que escreveu o capitão mor da Paraíba a respeitoda devassa da guerra que os moradores das Piranhas fizeram aos tapuias,que apurou que os tapuias atacavam isoladamente para furtar e não emcomum e, dessa forma, os moradores das Piranhas não poderiam ter-lhesdeclarado guerra6. No dia 09 de março do mesmo ano o rei escreve ao capitãomor da Paraíba, mandando castigar os índios e soldados que foramconsiderados culpados e ordena que, suposto o que diz o juiz PantaleãoLobo, que os moradores da Piranhas não querem consentir que o gentioPanati torne para as terras que lhes foram assinadas naquele sítio, donde olançaram fora com a injusta guerra que lhes deram, lhe dê posse das ditasterras7.

É interessante observar como a presença e participação do elementoindígena no processo de conquista e colonização das terras situadas no sertão,na primeira metade do século XVIII, aparece na distribuição de sesmarias nacapitania da Paraíba. A análise das obras de Irineu Joffily e João de LyraTavares8, que apresentam praticamente as mesmas doações de terras, nospermite identificar as estratégias de alguns povos da região em sua dinâmicacom a sociedade colonial. Grande parte das doações de terras é feita como

4 Carta do capitão-mor dos Sertões de Piranhas, Cariris e Piancó Teodósio de OliveiraLedo ao Governador da Paraíba Manoel Soares de Albergaria, de 06 ago. 1698.AHU_ACL_CU_014, Cx. 3, D. 226.

5 LIVRO DE REGISTO de cartas régias, provisões e outras ordens para Pernambuco, doConselho Ultramarino. 1698-1713. AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 257,f. 250-250v.

6 Consulta do Conselho Ultramarino. 19 jan. 1711. LIVRO DE REGISTO de consultas dePernambuco, do Conselho Ultramarino. 1673-1712. AHU_ACL_CU_CONSULTAS DEPERNAMBUCO. Cód. 265, f. 238-239.

7Carta do rei ao capitão mor da Paraíba. 9 mar. 1711. LIVRO DE REGISTO de cartas régias,provisões e outras ordens para Pernambuco, do Conselho Ultramarino. 1698-1713.AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 257, f. 312 e 312v.

8 C.f. JOFFILY, Irinêo. Synopsis das sesmarias da Capitania da Paraíba. Tomo I. Cidade daParahyba do Norte: s.r., 1894. TAVARES, João de Lyra. Apontamentos para a HistóriaTerritorial da Parahyba. Cidade da Parahyba do Norte: Impressa Official, 1910.

CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO

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prêmio pela conquista e pazes com os índios, como é o caso da doação feitaem 1708, ao sargento mor Antônio José da Cunha, que solicita doação deterras próximas a um riacho descoberto por ele chamado do Peixe, habitadopela nação Icó-Pequeno, com os quais dizia, o suplicante, ter estabelecidopaz9. Mas, o mais interessante são as doações de terras feitas aos Cariri, Pegae Xucuru na primeira metade do século XVIII. Em 1714, Os Cariri, através doseu governador D. Pedro Valcacer, situados na missão de N.S. do Pilar doTaipu, solicitam terras no lugar chamado Bultrins, em remuneração dos seusserviços como leais vassalos no que são atendidos10. Em 1718 é a vez dosXucuru:

Os Índios Sucurus, representados por seo capitão-mor Sebastiãoda Silva, dizem que por ordem do meu antecessor vieram com suaaldeia para esta capitania a defender e reparar os assaltos quedavão os Tapuias barbaros levantados, em que faziam grandeestrago e se situaram na serra Boa Vista, no olho d’agua, aondeestavão assistindo de baixo de missão; e como para sua assistenciaera mais conveniente para defensão desta capitania a dita paragem,por estar nas cabeceiras do districto della, como era entre oCurimataú e Araçagy, por onde estavão os Tapuias levantados afazer o maior damno nesta capitania – requerião uma legoa deterra em quadro fazendo peão no Olho d’agua do meio –(...)paraque podesse elle supplicante com sua aldeia viver e plantar suaslavouras para se sustentarem.Fez-se a concessão com a clausula denão poder ser alheiada a terra e ficar devoluta no caso de mudançada aldeia, uma legoa em quadro aos 4 de Agôsto de 1718.11

Finalmente, em 1738, os Pega, através do seu capitão mor, Francisco deOliveira Ledo, solicitam doação de terras no sertão das Piranhas, para quenelas possam situar sua aldeia, no que são atendidos12.

Essas doações de terras mostram que alguns povos indígenasaproveitaram as brechas oferecidas pela Coroa portuguesa e conquistaramum espaço dentro da nova ordem estabelecida, mesmo que de formasubalterna; estratégia que garantiu um pouco mais a sua sobrevivência étnica.

O que se observa paralelamente a essas doações são os constantes conflitoscom os índios pela posse da terra. Esses conflitos podem ser exemplificadospelo ocorrido com os Corema, entre 1733 e 1736. Por uma sentença conseguidapelos moradores do Piancó, os Corema foram transferidos para o lugar Riachodo Aguiar, tendo voltado para o seu local de origem, o que gerou insatisfaçãoentre os moradores. Baseado no ocorrido o rei solicita ao governador daParaíba um parecer sobre o assunto13.

9 Cf. JOFFILLY, Synopsis..., p. 40; e TAVARES, Apontamentos..., p. 70.10 Cf. JOFFILLY, Synopsis..., p. 60 e TAVARES, Apontamentos..., p. 87.11 Cf. JOFFILLY, Synopsis..., p. 74.12 Cf. JOFFILLY, Synopsis..., p. 127-128.

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A resposta do capitão mor ao rei de Portugal é contra a transferência ebastante ilustrativa dos conflitos existentes entre os índios e os fazendeirosdo sertão. Nela informa que:

É sem dúvida que os índios fazem grande dano aos gados, matandomuitos para comer, porém a necessidade em que os põem os naturaisos precisa a maior excesso, por que esta gente estava acostumadaa viver, como eles dizem de corso andando continuamente pelosmatos a buscar o mel que produzem as abelhas em grandequantidade nos troços das árvores, e debaixo da terra, frutas, todoo gênero de caça, não perdoando à imundície alguma, e para a suavivenda necessitam de que as terras tenham a comodidade referida,o que nada acharão no Riacho do Aguiar (...) e como no sítio em quese acham de presente lhes impedem as suas caças, e ainda operemroças nas mesmas terras que lhes deu o procurador da torre comoconsta das suas mesmas petições, e ainda a tirar pedra para fazerigreja, forçosamente há de cometer grandes excessos, enquanto senão reduzirem a forma de viver enquanto homens, o que se deveesperar, se o missionário que de presente está se não retirar comopretende, tendo as perseguições com que lhe impedem a reduçãodaquelas almas, (...).14

Os Panati também sofreram com a tentativa de mudança do local de suaaldeia. Em 1752, encontramos uma certidão do ouvidor-geral da Paraíba, emque relata a transferência realizada por ele dos Panati para uma terras natravessia do Pajaú.

(...) vindo em correição neste sertão do Piancó, achei ao tapuia danação Panati, quase levantado; em razão de não querer ir, paradonde a Junta das Missões determinava, por terem morto quase ogado todo das fazendas deste distrito e achando-se já algumasdespovoadas, e sem missionário, por este se ter retirado, com receiodo dito tapuio, que andava tudo no mato, ao qual reduzindo, paraque obedecesse, e se retirasse deste distrito, (...) e tendo notíciade algumas que se achavam na Travessia do Pajeú, recomendei aocoronel da cavalaria João leite Ferreira, para que por serviço deSua Majestade fosse descobrir as ditas terras, o qual foi com variaspessoas, e os tapuias a sua custa;(...), para assistência dos ditostapuias para donde se conduziram, ficando os moradores emsossego, concorrendo o dito coronel, com toda a atividade ediligência, para se fazer a dita condução, em que fez um grande

13 Carta do rei ao capitão-mor da Paraíba. 14 fev. 1733. LIVRO DE REGISTO de cartas régias,provisões e outras ordens para Pernambuco, do Conselho Ultramarino. 1731-1744.AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 260, f. 109.

14 Carta do capitão-mor da Paraíba Pedro Monteiro de Macedo ao Rei de Portugal D. JoãoV. 22 abr. 1736. AHU_ACL_CU_014, Cx. 10, D. 798.

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serviço a Deus e Sua Majestade e se faz digno, o dito senhor, lhefaça toda a graça, e favor, que a sua real grandeza for servido.15

A versão dos Panati pode ser percebida na carta endereçada ao rei dePortugal, assinada por Vicente Ferreira Coelho, em cinco de maio de 1755:

(...) No distrito da capitania da Paraíba estavam os índios Panatisaldeados e tiveram os moradores do sertão do Piancóprincipalmente o capitão-mor José Gomes de Sá poderes e astúciade os fazerem despejar com o pretexto de que comiam e furtavam-lhes os gados, e indo todos os índios com o seu missionário o padreCustódio de Oliveira para se acomodarem no sertão do Pajaú, nãoos consentiram, nem acharam modos e o necessário para sealdearem, e menos os quiseram no sertão das Piranhas, aondeforam, e correram os moradores com estes dizendo-lhes que fossempara a sua aldeia da Casa Forte donde haviam sido despejados porcuja razão se viram precisados a recorrer ao governador da Paraíbaque os mandou para o excelentíssimo general de Pernambuco, oqual ordenou que se metessem e ficassem na sua mesma antigaaldeia, contanto que o capitão-mor dos índios fizesse prenderqualquer que cometesse furto dos gados e o entregasse ao capitão-mor para o remeter para Pernambuco, cuja ordem o capitão-moríndio fez publicar na Matriz do Piancó e na sua aldeia (...).16

Esse incidente provocou a ira dos moradores contra os índios,principalmente o seu capitão mor, que acaba sendo preso, torturado eassassinado. Isto teria ocorrido em 1753 e em 1755, outro índio chamadoAntônio Dias, foi morto com um tiro, tendo o juiz de Piancó, mandado soltaros acusados. Diante disto, os índios dirigem-se nos seguintes termos ao rei:

Nestes termos os índios da nação dos Panatis com toda humildaderepresentam a Vossa Majestade que sendo os mais leais vassalosque nunca em tempo algum deixaram de merecer o mesmo nome,nem tomaram vinganças dos brancos nas ocasiões que lhes têmdado, se vêm hoje os mais perseguidos e desgraçados, sem proteçãodas justiças por serem muito pobres, que não possuem que lhes dar,assim como tem os delinquentes, e só de Vossa Majestade se valem,e pedem vingança das mortes referidas do seu capitão-mor e dooutro índio, e esperam que Vossa Majestade os não desampare, edê a providência o castigo merecido como for servido: e por nãosabermos escrever pedimos a Vicente Ferreira Coelho esta por nósfizesse e se assinasse.17

15 Certidão do ouvidor-geral da Paraíba, José Ferreira Gil. 25 jan. 1752. AHU_ACL_CU_014,Cx. 16, D. 1321.

16 Carta de Vicente Ferreira Coelho ao Rei de Portugal D. José I. 5 mai. 1755.AHU_ACL_CU_014, Cx. 18, D. 1435.

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Baseado na seguinte representação dos índios Panati o rei envia em 15 deoutubro de 1755 uma carta ao ouvidor da Paraíba ordenando tirar uma devassacontra os excessos cometidos contra eles. Na mesma data, escreve outracarta ao governador da capitania da Paraíba, ordenando ter especial cuidadocom estes índios para que se conservem nas suas aldeias e castigar com rigoros culpados18.

É interessante ressaltar, que em função de características particulares dospovos indígenas que se encontravam no sertão da capitania da Paraíba noséculo XVIII: sua mobilidade, o reduzido número de índios nas aldeias, aconstante falta de missionários,em comparação com as aldeias do litoral; oprocesso de transformação de aldeias em vilas do período pombalino, aocontrário com o que aconteceu com as aldeias maiores, principalmente asjesuíticas, resultou na transferência compulsória de uma parte destes índiospara vilas maiores, criadas com a união de várias aldeias e “índios dispersos”e na manutenção de alguns povoados e aldeias de índios no sertão.

A escassez de missionários nas aldeias do sertão da Paraíba é constantena primeira metade do século XVIII. Em 1715, o capitão mor da Paraíba escreveao Rei de Portugal, informando que a nação dos Corema, Panati, Fagundes,Icós, Pegas, Canindé e Caburé, se achavam sem missionário, embora a maiorparte deles já tivessem tido19.

A situação parece não ter melhorado, pois em maio de 1726 o rei escreveao bispo sobre o que havia informado o capitão mor da Paraíba de que seachavam naquela capitania diferentes aldeias de índios e nações de Tapuiasem missionários e algumas delas não os tiveram nunca, como eram osFagundes, Cavalcanti e Corema e outras que pela falta de zelo dos que tinhamessa obrigação ficaram sem missionário, como era a aldeia dos Cariri que osPadres de São Francisco haviam deixado havia três anos e a dos Xucuru emque estava um clérigo provido pelo cabido, que nela nunca assistira. Diantedisto, o rei ordena dar a providência necessária em matéria tão importante.Dois anos depois, o rei escreve ao mesmo bispo, agradecendo ter provido demissionários todas as aldeias da capitania da Paraíba20.

Em reunião do Conselho Ultramarino de outubro de 1735 é discutida umacarta do bispo de Pernambuco onde informava o miserável estado em que seachavam os índios da dita capitania pela falta de missionários, das côngruasque havia arbitrado a estes, e o parecer que havia dado de como as missõesdeveriam ser distribuídas entre as ordens religiosas. A lista compunha-se de

17 Idem.18 LIVRO DE REGISTO de cartas régias, provisões e outras ordens para Pernambuco, do

Conselho Ultramarino. 1744-1757. AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 261,f. 235-235v.

19 Carta do capitão-mor da Paraíba João da Maia da Gama ao Rei de Portugal D. João V.11 ago. 1715. AHU_ACL_CU_014, Cx. 5, D. 349.

20 LIVRO DE REGISTO de cartas régias, provisões e outras ordens para Pernambuco, doConselho Ultramarino. 1724-1731. AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 259,f. 64v e 155.

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cinquenta e três aldeias, com a informação das que tinham missionário.Segundo ele, aos capuchinhos italianos seria muito conveniente se lhesentregassem as do distrito da capitania do Piancó se eles tivessem para issoreligiosos de que estavam faltos21.

Na reunião da Junta das Missões de Pernambuco de 17 de outubro 1739, opadre superior dos capuchinhos italianos não duvidou em tomar todas astrês aldeias do Piancó: dos Panati, Corema e Icó, unindo os Panati com osCorema no sítio do Boqueirão, onde estavam os Corema, e quanto aos Icó,situados na Serra Branca, tomaria a aldeia quando esta fosse reposta no sítiodo Jardim, de onde a retiraram22.

A “relação das aldeias que há no distrito de Pernambuco e capitanias daParaíba sujeitas à Junta das Missões deste bispado” publicada na Descrição dePernambuco em 1746, nos dá uma idéia de como se encontrava a distribuição

REGIÃO ALDEIA MISSIONÁRIO POVOS

abíaraP acocaJ onitideneBaugníLedsolcobaC

lareG

abíaraP agnitU onitideneBaugníLedsolcobaC

lareG

epaugnamaM oãçiarTadaíaB amrofeRadatilemraCaugníLedsolcobaC

lareG

epaugnamaM açiugerP amrofeRadatilemraCaugníLedsolcobaC

lareG

epaugnamaM atsiVaoB.atSedosoigileR

asereTurucuXeédninaC

upiaT siriraC ohnihcupaC aiupaT

iriraC ednarGanipmaC ordeP.SedotibáH itnaclavaC

iriraC ojerB ohnihcupaC sednugaF

ócnaiP itanaP.atSedosoigileR

asereTaiupaT

ócnaiP ameroC atíuseJ aiupaT

sahnariP ageP oiránoissim/s aiupaT

exiePodoiR oneuqePócI oiránoissim/s aiupaT

21 AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 911, f. 125-126v.22 AHU PE – documentos avulsos (d a). 10 dez. 1739.

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das aldeias no sertão da capitania da Paraíba pelas ordens religiosas e ospovos indígenas por elas missionados23.

O conhecimento sobre a relação das populações indígenas com os atuaismunicípios e a transformação de aldeias em vilas e povoados na capitania daParaíba no período pombalino é um tema que apesar de ter sido exploradopela historiografia paraibana, merece um aprofundamento ainda maior, porpossibilitar uma visibilidade maior à presença e ressaltar a importância dospovos indígenas na história do Estado da Paraíba.

Horácio de Almeida, na sua História da Paraíba, indica a posição de algumasaldeias, relacionando-as a municípios atuais:

São oito as aldeias carirys, mencionadas nos documentos públicos:aldeia Icós Pequenos, (Souza); aldeia dos Pegas, (Pombal); aldeiada N. S. do Rosário do Curema; aldeia de S. José do Panaty, (Piancó);aldeia de S. João do Brejo de Fagundes; aldeia do Pilar; aldeia deSanta Thereza e S. Antonio da Boa Vista, das tribos Sucurús eCanindés; não falando na primeira de todas, a do Boqueirão, no rioParaíba.24

Ainda segundo ele “A primeira vila que se criou na Paraíba foi a de Alhandra,sediada na aldeia de Aratagui, dos índios potiguaras. Sua criação data de 1758,mas só foi instalada em 1765”25.

Celso Mariz, nos seu Apanhados Históricos da Paraíba apresenta asseguintes informações, no entanto não fornece uma cronologia precisa paraa fundação das vilas e povoados:

Souza formou-se de uma aldeia ou missão de Icós; Pombal, funda-se de uma tribo de Pegas, Teodósio de Oliveira Ledo que tambémem 1697 traz os Arius e inicia com ele a atual cidade de CampinaGrande; Manuel de Araújo instala, no Boqueirão do Piancó, os seuscoremas domados, e Luís Soares, obtendo na guerra dos Tapuias adefecção dos Sucurus, vem aldeá-los no Araçagi.26

Elza Régis de Oliveira fornece a seguinte cronologia para a elevação daspovoações à categoria de vilas no século XVIII: 1758- Alhandra e Pilar; 1762,São Miguel da Bahia da Traição e Monte-Mor da Preguiça, 1768 – Conde, 1772-

23 A mesma relação encontra-se com pequenas alterações na “Informação geral da Capitaniade Pernambuco em 1749”, publicada nos Anais da Biblioteca Nacional. Descrição dePernambuco com parte de sua história e legislação até o governo de D. MarcosNoronha, em 1746: e mais alguns documentos até 1758. Revista do Instituto ArqueológicoHistórico e Geográfico Pernambucano, Recife, n. 11, 1904, p. 168-180; e Anais da BibliotecaNacional, Rio de Janeiro, v. 28, 1906, p. 117-496.

24 ALMEIDA, Horácio de. História da Paraíba. 2. ed. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1978, Vol. II, p.120.

25 Cf. ALMEIDA, História da Paraíba, Vol.II, p.70.26 Cf. MARIZ, Celso. Apanhados históricos da Paraíba. 2. ed. João Pessoa: Editora Universitária/

UFPB, 1980, p. 42.

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Pombal, 1790- Campina Grande, 1800 – Cariris Velhos, posteriormente VilaReal de São João e Jardim do Rio do Peixe, posteriormente Sousa27.

Após um primeiro momento da implantação da política indigenistapombalina, que se dirigiu especificamente às aldeias administradas pelosjesuítas e que foram transformadas em vilas, a responsabilidade pela ereçãodas vilas e povoados foi atribuída pelo governador de Pernambuco ao juiz defora, Miguel Carlos de Pina Castelo Branco que ficou responsável por 23 aldeiasnas capitanias do Ceará, Paraíba e Pernambuco e ao ouvidor geral das Alagoas,Manuel de Gouveia Alvares, que ficou responsável por 24 aldeias da regiãosul da Capitania de Pernambuco28, onde estavam localizadas as missões dosfranciscanos e dos capuchinhos italianos, que também foram expulsos dassuas missões e os seus bens inventariados e vendidos, tendo o fruto da vendasido aplicado nas vilas e povoações criadas.

Na parte do sertão da capitania da Paraíba, que coube ao juiz de foraMiguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco, observou-se um processo deredução e transferência compulsórias. Em julho de 1761, o governador dePernambuco escreve ao Secretário de Marinha e Ultramar informando quesabendo da pouca utilidade que tinham as terras das aldeias dos Pega, foiinvestigar e constatou que as terras eram impróprias para a agricultura, masboas para o gado. A povoação possuía pouco mais de uma dúzia de casas depalha sem igreja. Por essa razão, resolveu unir os Pega aos de Mipibú, porémnão consultou os índios sobre a mudança de lugar da sua aldeia, contrariandoas normas do Diretório dos Índios. Propôs aos índios irem para o Apodi, maseles alegaram que eram inimigos dos vizinhos de lá.

A estratégia para convencer os índios para irem para Mipibú foi publicarque queria lhes passar mostra. No dia combinado os Pega compareceramcom algumas espingardas e todos de arco e flecha. À medida que os índiosiam se alistando seus arcos e flechas iam sendo recolhidos com o argumentoque aquelas armas eram reprovadas pelo rei que só queria que os seussoldados usassem espingardas. Em seguida os colocou em marcha para anova localidade no Mipibú.

27 OLIVEIRA, Elza Régis de.Capitania da Paraíba. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.).Dicionário da História da Colonização Portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994, p. 614.

28 Ano de 1761 – Relação das aldeias a que vai o dr. ouvidor geral da comarca das Alagoas,Manuel de Gouveia Álvares, por ordem de S. Magestade Fidelíssima, dar nova formade vilas, e lugares, reduzindo-as ao número competente, e estabelecendo-lhe o regime,e polícia que as leis, e bulas pontificiais transcrevem, e reconheceu a inata piedade domesmo senhor, ser indispensável para se acabarem de cristianizar os seus habitantes,e florescerem como se procura, com o meio mais apto a brindar os índios silvestresque residiam no mato, despidos das luzes do Evangelho, a unirem-se as mesmas, ecessarem as irregularidades com que até agora eram dirigidas, de que se seguia ohorror com que as desamparavam e se perpetuavam no paganismo e Relação dasaldeias a que vai o Dr. Juiz de Fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco, porordem de S. Magestade F idelíssima, dar nova forma de vilas, e lugares, (...) ,ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f. 322-337.

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Depois os bens dos Pega foram inventariados, a serra em que viviam e oterreno de suas roças foram arrendados e os seus animais vendidos, devendoo dinheiro ser empregado na construção de novas casas para os mesmos.Informou também que os índios da nação Icozinho eram de agrado se uniraos do Apodi e que havia juntado a nação dos Caboré também naquela vilado Apodi e pretendia juntar a aldeia do Panati à do Miranda. Um mês depois,em carta escrita ao dito secretário, o referido governador informa que osPega aldeados no Mipibu, fugiram motivados pelos seus principais, mas foramalcançados em Mamanguape e presos29.

Pelo termo oriundo da junta realizada em 24 de agosto de 1761 no PalácioEpiscopal da Soledade em Recife, com a presença do Bispo da diocese, dogovernador e do juiz de fora, ficamos sabendo que o juiz havia mudado:

as nações Pegas e Icozinhos, aqueles para a aldeia de Mipibu e estespara a do Apodi, aonde tinha ajuntado e aldeado o resto que hojeexistia da nação dos Caburés, e vários casais, que residiam nas serrase fazendas dos sertões do Piancó e Açu, e porque querendo erigirem vila a dita povoação do Apodi, foi informado pelo seu diretorJosé Gonçalves da Silva não havia terra capaz de plantas, que serepartisse a todos os moradores, e lhe constou que dentro do espaçode 12 léguas há a serra chamada dos Martins, extensa, fertilíssima,de grande negociação, e muitos habitantes, os quais, congregadoscom os índios do Apodi, constituirão talvez a maior vila destegoverno depois da sua capital, julgava seria de grande conveniênciaa translação da vila para a dita serra, dando-se ao sesmeiro destaem troca todas as terras do referido lugar do Apodi, ou parte delas,(...), transferindo-se as imagens da Paróquia para a Igreja do Apodi,e as desta para uma capela que há na serra. Aonde com a finta dosfregueses da dita paróquia para a sua matriz, se constituiria a dafutura vila.30

O juiz também havia ponderado que a Casa da Torre pretenderia apossar-se das terras dos índios Panatis, quando estes fossem unidos à missão doMiranda, na capitania do Ceará, porque as havendo dado para a habitaçãodos ditos índios, julgaria que as deixando estes, lhe deveriam ser restituídas,como tinha intentado em casos semelhantes, no rio de São Francisco, mascomo a dita Casa havia feito a doação das ditas terras, não a podia revogar,nem tomar a si o que uma vez deixou de ser seu. A junta resolveu a

29 IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) códice 1.1.14 – Correspondência doGovernador de Pernambuco – 1753-1770.Cartas do governador de Pernambuco aFrancisco Xavier Mendonça Furtado. 15 jul. 1761, f. 277v-284v, e 9 ago. 1761, f. 284v-285v.

30 Termo sobre o que há de seguir o dr. Juiz de Fora Miguel Carlos Caldeira de Pina CasteloBranco a respeito dos novos estabelecimentos e o mais que neles se contém. Recife,24 ago. 1761. BN - I - 12,3,35, f 87-88.

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transferência da aldeia do Apodi para a Serra dos Martins, assentando quepara os trânsitos dos índios de umas aldeias para outras, se fintassem osmoradores que tivessem conveniências em separar aqueles das vizinhançasdas suas fazendas. Em 27 de setembro do mesmo ano, os moradores da ditaserra escrevem uma petição ao governador solicitando que a transferêncianão seja feita, no entanto, não são inicialmente atendidos. Finalmente, apósvários entendimentos, os índios da missão do Apodi foram transferidos paraa Serra do Regente, onde foi criada a vila de Portalegre31.

Não foi possível ainda acompanhar todas as transferências, reduções eereção de vilas e povoados realizadas na capitania de Paraíba, tarefa que foiconfiada inicialmente ao juiz de fora Miguel Carlos Caldeira de Pina CasteloBranco. No entanto, através dos autos de uma devassa sobre as vilas deíndios, posterior a 1763, identificamos mais algumas transferências na capitaniada Paraíba: os índios Fagundes, da Povoação do Brejo do Sertão do Cariri deFora, foram transferidos para a Baía de São Miguel, antiga Baía da Traição, eos índios da aldeia da Campina Grande, para Monte-mor-o novo32. SegundoFátima Lopes, na criação de Vila Flor, na Capitania do Rio Grande, também sãoagregadas as aldeias de Macacau, Tapissurema e Utinga, esta última dacapitania da Paraíba33.

O mapa geral de todas as vilas e lugares que se tem erigido de 20 de maio de1759 até o último de agosto de 1763 das antigas aldeias do gov.de PE e suascapitanias anexas, apresenta aalgumas informações interessantes sobre a açãodo Juiz de Fora na Capitania da Paraíba. Nessa Capitania foram criadas asseguintes vilas e lugares, a partir de antigos aldeamentos indígenas: Vila daBaía de São Miguel, em 28 de novembro de 1762; Vila de Montemor, em 8 dedezembro de 1762, Vila de Nossa Senhora do Pilar, em 5 de janeiro de 1763; edois que são citados de forma incompleta, sem informar nome ou data decriação: um de língua geral a que se uniu os Panati, e outro, de Aratahuy, aque se uniu a aldeia do Ciry34.

É interessante observar que nos sertões da capitania de Pernambuco edas capitanias anexas, além das aldeias existentes, havia ainda gruposindígenas que não estavam aldeados, vivendo ou tendo voltado a viver de

31 Termo sobre o que há de seguir o dr. Juiz de Fora Miguel Carlos Caldeira de Pina CasteloBranco a respeito dos novos estabelecimentos e o mais que neles se contém. Recife,24 ago. 1761; Petição dos moradores da serra dos Martins para que se não mude paraela a missão do Apodi e despacho nela proferido. 27 set. 1761. BN - I - 12,3,35, f 87-88e 102-103; e LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do RioGrande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado emHistória). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2005, p.141-144.

32 Processo dos autos de devassa sobre as vilas de índios. [post. 10 fev. 1763]AHU_ACL_CU_015, Cx. 99, D. 7735.

33 LOPES, Em nome..., p. 159.34 Livro Composto, principalmente de cartas, portarias e Mapas versando sobre vários

assuntos, relacionados com a administração de Pernambuco e das capitanias anexas.Recife, 1760-1762. Biblioteca Nacional – Códice: I – 12,3,35.

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“corso”, tendo sido fundamental no processo de implantação da ordempombalina no sertão de Pernambuco, o trabalho inicialmente realizado pelosargento mor Jerônimo Mendes da Paz, que contou com a participação dosíndios do sertão da capitania da Paraíba.

Em 23 de dezembro de 1759, o governador de Pernambuco e capitaniasanexas, Luiz Lobo Diogo da Silva, expede portaria ordenando que os capitãesmores dos distritos e aldeias, a quem o sargento mor Jerônimo Mendes daPaz entregaria carta sua, providenciassem relação da gente necessáriaacompanhada da dita portaria, e a remetessem com toda brevidade ao lugardesignado, para se unirem com ele e seguirem suas ordens35.

A instrução passada ao sargento mor Jerônimo Mendes da Paz pelogovernador, no dia seis de janeiro do ano seguinte, fornece informaçõespreciosas de como foi pensada a implantação das modificações do períodopombalino nos sertões de Pernambuco. Segundo as informações recebidas,os índios da nação Paraquio e Pipipam haviam voltado a viver de corso, commais vigor, por se unirem aos Mangueza, Guegue e Xocó, com os quais haviamacertado fazerem um levante contra os moradores das ribeiras do Moxotó eBuíque. O resultado foi a prisão dos índios Paraquió criminosos, sendotransferidos cento e sessenta e tanto menos culpados para a missão deNossa Senhora das Montanhas do Ararobá. Não foi possível reduzir à paz asoutras nações, que passavam de 400 arcos, tendo-se determinado, em junta,que o sargento mor, Jerônimo Mendes da Paz, fosse ao dito distritoacompanhado das milícias e índios que achasse necessário, procurando línguascapazes de expor às ditas nações que delas se pretendia a paz e sujeição à suaMajestade Fidelíssima. O projeto seria repartir estas nações nas novas vilas aserem erigidas. Na documentação encontra-se também a recomendação arespeito de que, nos distritos onde ele iria atuar, havia muitas aldeiascompostas de poucos casais, e as ordens mais recentes não consentiam quetais vilas se formassem com menos de cento e cinquenta deles. Assim, hátambém a recomendação de que ele procurasse unir o competente númerode casais, situando as aldeias em terras que facilitassem o adiantamento daagricultura36.

Logo em seguida às ordens recebidas do governador de Pernambuco, odito Sargento Mor escreve, do Ararobá, ao Capitão Mor do Piancó, Franciscode Oliveira, em fevereiro de 1760, solicitando brancos e índios para a empresaque estava iniciando:

É preciso que vossa mercê dessa parte do Piancó faça por prontosaté trezentos homens capazes de guerra moços os mais robustos,acostumados a entrar nos matos municiados de munições de guerra

35 Portaria do governador general de Pernambuco e suas capitanias anexas. 23 dez. 1759.ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f.65-65v.

36 Instrução do governador general de Pernambuco Luiz Diogo Lobo da Silva a JerônimoMendes da Paz. Recife, 6 jan. 1760, ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919,f.65v-72.

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e balas e armados das melhores armas e entre elles alguns índiosdos mais fiéis e valorosos que houverem nesse distrito armados deseus arcos e flechas quando não tenham boas armas de fogo. 37

Em carta de 2 de julho de 1760, o sargento mor escreve do Alojamento dasFlores da Ribeira do Pajaú, no sertão da Capitania de Pernambuco, a FrutuosoBarbosa da Cunha, capitão mor dos índios da nação Icozinho, localizada nosertão da capitania da Paraíba:

E assim me parece dizer a vossa merce, e por esta ordenar-lhe quefaça logo voltar todos os soldados que se retiraram e fugiramvergonhosamente da bandeira do Piancó e busque que até encontraros Xocós, os Oguêz, ou Pipipans, ou Humans, ou Caracuis, (...) quelhes não hei de fazer mal; por que eu não venho mais que a reduzi-los por bem à obediência de nosso rei, e pô-las em estado de elesgozarem das muitas felicidades que lhe quer logrem todos os seusvassalos e muito principalmente os indios a quem o nosso rei quermuito bem. Porem se eles não quiserem obedecer os prenda a todose os traga a minha presença nesta Ribeira do Pajaú. (...) se recearque sejam muitos ajuntem-se com os Panatis, ou Pegas, ou com agente do rio de São Francisco, ou com qualquer outra bandeira. 38

Dois dias depois, Jerônimo Mendes da Paz ordena também a Pedro Soaresde Mendonça, este sargento mor dos índios da mesma nação, que com suagente auxiliem no combate aos índios das nações Xocós, Oguês, Mangueses,Pipipans, Umans e Caracuis, desde Santa Luzia e cabeceiras do Rio Piranhas,no sertão da Capitania da Paraíba até o rio Pajau, no de Pernambuco, erecomenda que os Icós soldados não cometam mortes, nem crueldades, nemmaltratem os presos, nem façam agravos aos moradores onde passarem enem causem prejuízos nos gados e lavouras39. Três dias depois, JerônimoMendes da Paz passa uma ordem aos capitães dos Panatis, Cosme Dias daSilva e João Reis da Cunha, dando instruções na condução da bandeira contraos “Xocoz Oguez Pepipans Manguenzes Caracuiz, Humary40.

O mesmo Jerônimo Mendes da Paz, em carta ao governador dePernambuco escrita da Ribeira do Pajeú, em 6 de julho de 1760, narra quesoube que no distrito do Piancó os índios Corema haviam se levantado. Estes

37 Carta de Jerônimo Mendes da Paz para o capitão mor do Piancó Francisco de OliveiraLedo. Ararobá, 19 fev. 1760, ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f. 100-100v.

38 Carta de Jerônimo Mendes da Paz para Frutuoso Barbosa da Cunha Capitão Mor dosíndios da nação Icozinho. Alojamento das Flores da Ribeira do Pajaú, 2 jul. 1760,ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f. 115.

39 Cópia da ordem passada por Jerônimo Mendes da Paz a Pedro Soares de Mendonçasargento Mor dos indios da nação Icozinho da Aldeia de Santa Luzia. Alojamento dasFlores. 4 jul. 1760. ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f. 116.

40 Cópia da ordem passada a Cosme Dias da Silva e Joam Roiz da Cunha capitães dosíndios Panatis. 7 jul. 1760. AHU_ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919.

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eram do missionário capuchinho italiano Frei Próspero. Informa também queforam aprendidos alguns mangueses pela bandeira do Piancó, composta pelosíndios da nação Icozinhos, Panatis e Oguês. Mas todos os Icozinho e algunsPanati desertaram, só ficando dos Icozinho o cabo que era seu sargentomor41.

A correspondência de Jerônimo Mendes da Paz com capitães mores índiosda capitania da Paraíba demonstra, especialmente, como os povos indígenasdo sertão da capitania da Paraíba tinham uma importância significativa doponto de vista estratégico e militar, posição essa que foi perdendo força àmedida que os índios perdiam as suas terras e eram transferidos para asnovas vilas criadas. Esse processo teve como resultado o encobrimento e, emmuitos casos, o desaparecimento de sua identidade étnica, processo queperdura até os dias atuais. Atualmente não há, nessa região que compreendiao sertão da capitania da Paraíba, nenhum grupo indígena reivindicando suaidentidade étnica.

41 Carta do Sargento-mor Jerônimo Mendes da Paz ao governador e capitão geral dePernambuco. Alojamento das Flores Ribeira do Pajaú. 6 jul. 1760. ACL_CU_LIVROS DEPERNAMBUCO, Cód. 1919, f.89-92v.

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retendemos fazer uma análise comparativa entre as principaisfestas públicas realizadas na Colônia do Sacramento e em Natal,durante o século XVIII, que visavam à representação do poderda monarquia portuguesa na América. Tomamos como pontode análise essas duas localidades, situadas nas extremidades sul

CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DAAMÉRICA PORTUGUESA:

NATAL E A COLÔNIA DO SACRAMENTONO SÉCULO XVIII

Paulo César Possamai1

e norte da América portuguesa a fim de melhor avaliarmos o quanto ascondições específ icas de cada uma interferiam na padronização dascelebrações que eram ordenadas pela Coroa, na metrópole e nas suas colônias.

Natal foi fundada no fim do século XVI, numa data que ainda gera polêmica,do mesmo modo que a sua condição jurídica inicial, se povoado ou cidade2.De qualquer modo, surgiu nas proximidades da fortaleza dos Reis Magos,criada para afastar os franceses do litoral e servir como ponta-de-lança para aconquista da região aos indígenas e garantir o avanço para os territóriossituados a oeste e noroeste3.

Por volta de 1730, Sebastião da Rocha Pitta assim descrevia a cidade deNatal:

(...) de mediana grandeza, e habitação, com matriz suntuosa eboas igrejas. Está fundada meia légua distante do seu porto, capazde todo o gênero de embarcações, em cuja entrada tem a fortalezados Santos Reis das mais capazes do Brasil em sítio, firmeza,regularidade e artilharia, edificada sobre uma penha de grandezadesmedida com quatro torreões. Há na cidade capitão-mor que agoverna, sargento-mor e outros cabos, com bom presídio: abundade todos os mantimentos necessários para o sustento de um povo

1 Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto doDepartamento de História da Universidade Federal de Pelotas. Pesquisador dos Gruposde Pesquisa Formação dos Espaços Coloniais: economia, sociedade e cultura (PPGH-UFRN/Diretório CNPq), América Platina: poder, idéias e relações regionais (UFPel/ Diretório CNPq)e Sociedades de Antigo Regime no Atlântico Sul (IFCH-UFRGS/ Diretório CNPq). E-Mail:<[email protected]>.

2 MEDEIROS FILHO, Olavo de. Notas para a História do Rio Grande do Norte. João Pessoa:UNIPE, 2001, p. 54-59.

3 LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos, missionários na colonização da capitania do RioGrande do Norte. Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado; Natal: Instituto Histórico eGeográfico do Rio Grande do Norte, 2003, p. 54-55.

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maior que o de que ela consta 4, pois não passa de quinhentosvizinhos. 5

No ano de 1744, o bispo de Olinda, frei Dom Frei Luís de Santa Teresa,visitou Natal. No seu relatório, de 1746, descreve-a “tão pequena, que além dotítulo de Cidade, Igreja Paroquial e poucas casas, nada tem que represente aforma de Cidade”. Não deixou de anotar um gracejo sobre a “cidade de Natal,ou não tal (como em vista do seu tamanho, por graça se diz)...”6.

A próxima descrição da cidade que temos conhecimento é datada de 1756,ano em que foi elaborada uma Relação de toda a extensão desta Capitania doRio Grande, enviada pelo Senado da Câmara do Natal ao Ouvidor GeralDomingos Monteiro da Rocha:

Em toda esta Capitania acham-se cinco freguesias. A primeira de N.Senhora da Apresentação; nesta tem uma cidade chamada Natal,que terá de povoado quatrocentas braças de comprido e de largocinquenta, com cento e dezoito casas; no fim desta, no lugar chamadoa Ribeira, há um rio de água salgada, a que chamam Rio Grande, etem sua barra, donde há uma fortaleza da invocação dos SantosReis, que nasce no mesmo mar, navegável, e entra pela terra adentro quatro léguas.7

Em 1810, o inglês Henry Koster foi mais um visitante que se espantou como reduzido tamanho de Natal, exclamando: “se lugares como esses sãochamados cidades, como seriam as vilas e aldeias?” Ele mesmo deu a resposta:“muitas aldeias, no Brasil mesmo, ultrapassam esta cidade. O predicamento nãolhe foi dado pelo que é, ou pelo que haja sido, mas na expectativa do que venhaa ser para o futuro”. Observou que a cidade concentrava-se ao redor da praça,que era cercada de casas térreas. Ainda segundo Koster, três ruas semcalçamento desembocavam na praça. Os principais edifícios eram três igrejas,o palácio do governador, a Câmara e a prisão. Calculou a população da Natal

de então entre setecentos e oitocentos habitantes8.

4 Não conhecemos um estudo sobre o abastecimento interno da capitania até a primeirametade do século XVIII. Dessa data em diante temos a pesquisa de Thiago Alves Dias,que contradiz o cronista, pois existe farta documentação que mostra a precariedadedo abastecimento da cidade de Natal. Consultar: DIAS, Thiago Alves. Carne, farinha eaguardente: o Senado da Câmara de Natal e o abastecimento alimentício interno (1750-1808). Monografia (Bacharelado em História). Universidade Federal do Rio Grande doNorte. Natal, 2007.

5 PITTA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. São Paulo: W. M. Jackson

Editores, 1958, p. 75-76.6 O que era Natal em 1746 (Do relatório de Frei Luís de Santa Teresa à Santa Sé, em 1746).

In: MEDEIROS FILHO, Olavo de. Terra natalense. Natal: Fundação José Augusto, 1991, p.101.

7 Relação de toda a extensão desta Capitania do Rio Grande (1756). In: MEDEIROS FILHO,Terra natalense, p. 111.

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Porém, ou o cronista se limitou a contar os homens brancos ou a maiorparte da população se encontrava na área rural da cidade, pois um mapa dapopulação da Capitania do Rio Grande do Norte, de 1805, registra um total de6.693 habitantes em Natal. A população dividia-se então em 1.416 brancos,1.082 brancas, 634 negros, 618 negras, 1.371 mulatos e 1.572 mulatas9. Deve-se considerar que, se por volta de 1730, Natal já teria cerca de quinhentosvizinhos, ou seja, moradores chefes de famílias, a população deveria ser aindamaior, já que os escravos não entravam nessa categoria, assim como muitosdos desclassificados da sociedade colonial que não tinham moradia fixa sendo,por isso, chamados de vagabundos10.

Em todo o caso, Natal não se distinguia por sua população ou riqueza nocontexto da América portuguesa, muito pelo contrário. Inexistia comérciodireto entre o Rio Grande e a metrópole, pois não havia grande produçãoaçucareira na capitania, não havia alfândega e, desde 1701, ela estavasubordinada ao governo de Pernambuco. Portanto, a maior parte do comércioera feita com a Capitania Geral de Pernambuco, que se constituía no principalmercado consumidor dos produtos do Rio Grande11.

A maior riqueza da região era o gado. As primeiras fazendas se instalaramno sertão no último quartel do século XVII, gerando atritos entre colonos eindígenas que desencadearam a chamada “Guerra dos Bárbaros”. Com adestruição das tribos que impediam o avanço da colonização, o século XVIIIfoi marcado pela expansão da pecuária, mas Natal não se tornou o centroonde se comercializavam as manadas, que seguiam pelo interior até a zona damata das capitanias vizinhas, especialmente para Pernambuco12.

O conhecimento das condições socioeconômicas da Natal setecentista,que apontamos acima, é necessário para analisarmos em que medida asautoridades locais, representadas na Câmara e a autoridade nomeada pelaCoroa, o capitão-mor, se engajaram nas celebrações em honra à monarquiaportuguesa.

Por sua vez, a Colônia do Sacramento foi fundada à margem esquerda doRio da Prata, em 1680, por D. Manuel Lobo, obedecendo ao plano do prínciperegente D. Pedro de expandir os domínios portugueses na América a fim deassegurar vantagens territoriais e econômicas à Coroa portuguesa. O

8 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; EditoraMassangana, 2002, p. 158-159.

9 Mapa da população da Capitania do Rio Grande do Norte. AHU_ACL_CU_18, CX 9, D.623.

10 Sobre a questão da “vizinhança” em Portugal e em suas colônias, consultar: HESPANHA,António Manuel. Porque é que foi “portuguesa” a expansão portuguesa? ou orevisionismo nos trópicos. Lisboa: s.r., s.d., p. 13. Disponível em: <http://www.hespanha.net/papers/2005_porque-foi-portuguesa-a-expansao-portuguesa.pdf>.Acesso em: 8 mar. 2008.

11 LOPES, Índios..., p. 62.12 MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à história do Rio Grande do Norte. 3. ed. Natal:

EDUFRN, 2007, p. 63-64.

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fundador planejava criar uma cidade que se chamaria Lusitânia, nasproximidades da fortaleza do Santíssimo Sacramento que estava a erguer.Porém, a isolada fortaleza de D. Manuel Lobo não pôde resistir ao ataquecombinado das forças coloniais espanholas e dos exércitos indígenas dasmissões jesuíticas, grupos para os quais a presença portuguesa no Rio daPrata constituía uma grande ameaça. A destruição de Colônia, levada a cabooito meses após sua fundação, levou a Coroa portuguesa a ameaçar a Espanhacom uma guerra, impasse que foi resolvido com a restituição do território deSacramento através do Tratado Provisional de 1681. A Coroa espanhola foiobrigada a ceder por meio da diplomacia o que seus vassalos na Américahaviam conquistado pelas armas, situação que voltaria a se repetir em 1715 eainda em 1763, refletindo a contradição que podia haver entre os interessesna defesa dos domínios ultramarinos e a posição da metrópole na conjunturaeuropéia13.

A história da Colônia do Sacramento apresenta diversas facetas que foramdiferentemente realçadas pelos historiadores. Centro de contrabandistas,mas também posto avançado da fronteira e núcleo de povoamento,Sacramento é um tema fascinante pela sua história sui generis dentro doquadro do sistema colonial da América portuguesa, onde a riqueza estava naagricultura ou nas minas e as invasões estrangeiras constituíram-se emepisódios isolados e inconstantes.

A Colônia do Sacramento constituía-se num dos mais rentáveis entrepostoscomerciais portugueses. Além da possibilidade de trocar, com muitavantagem, produtos coloniais brasileiros e tecidos europeus por couros (daregião) e prata (do Alto Peru), o comércio realizado em Colônia tinha ainda avantagem de ser geralmente feito à vista, ao contrário do que ocorria namaior parte dos domínios portugueses, uma vez que o caráter ilícito dasrelações comerciais travadas entre portugueses e espanhóis na região platinaimpedia a criação de um eficiente sistema de crédito.

Temos uma idéia do tamanho da população e do número de casas daColônia do Sacramento através das cartas que os governadores enviaram aorei. Em 1718, o governador Manuel Gomes Barbosa informava ao rei que viviamem Colônia e em seus arredores mais de 1.040 habitantes14. No ano seguinte,o mesmo escrevia que se erguiam no recinto interno da praça cinquenta euma casas de pedra e barro e dezesseis ou dezessete feitas de couro, ondeviviam os soldados casados pobres15.

Em outubro de 1722, o governador Antônio Pedro de Vasconcelosrelacionou em Sacramento e nas suas proximidades, 235 fogos, cuja populaçãofoi calculada em 630 homens, 172 mulheres, 99 meninas, 123 meninos, 45

13 POSSAMAI, Paulo. A vida quotidiana na Colônia do Sacramento: um bastião português emterras do futuro Uruguai. Lisboa: Livros do Brasil, 2006, p. 21-23.

14 Carta de Gomes Barbosa ao vice-rei, 12 de abril de 1718, in: Documentos Históricos, vol.LXXI, p. 31.

15 Carta de Gomes Barbosa ao rei, 9 de dezembro de 1719: AHU_ACL_CU_012, cx. 1, D. 44.

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índios, 16 índias, 204 escravos e 90 escravas. O Terço de infantaria estavaconstituído de 267 homens, enquanto havia 129 inscritos na cavalaria eartilharia16. Em 1730, o governador indicava a existência de 329 fogos, sendoque rara a casa que não estivesse coberta de telhas e que deixasse de tersuficientes alfaias17.

Em 1735, Silvestre Ferreira da Sylva, alferes que descreveu o cerco impostopelos espanhóis entre 1735 e 1737, escrevia que o povoado era formado por327 casas, térreas na sua maioria, distribuídas ao longo de dezoito ruas,dezesseis travessas e quatro praças. O mesmo calculou a população de Colôniaem duas mil e seiscentas pessoas, entre as quais estavam incluídos os efetivosda guarnição. No interior da fortaleza, situavam-se a igreja paroquial, a casado governador, o hospital real, a residência dos franciscanos, a casa daartilharia, os quartéis e o corpo da guarda principal18.

A monarquia e sua representação no Antigo Regime

Antes de analisarmos as festas realizadas nos espaços que delimitamospara nosso estudo, salientaremos a importância das celebrações públicas nocontexto do barroco ibérico. Entendemos o barroco não somente como umestilo artístico, mas também como um estilo de vida. Segundo D’OliveiraFrança, o barroco “é a expressão da época da hegemonia ibérica na Europa,associada à reação católica procedente do Concílio de Trento. Educada pelosjesuítas. Policiada pela Inquisição. Governada por um rei absoluto, autoritário”19.Se o barroco marcou a Espanha do século XVII, foi no século XVIII que ele seinstalou em sua plenitude em Portugal, com a consolidação da dinastia deBragança e a descoberta de minas de ouro no Brasil.

O modelo cortesão espanhol, “grave, austero e circunspecto, fundadonaquele que, nos alvores do século XVI, Carlos V trouxera da Borgonha, destinadoa realçar a essência sagrada da realeza”20, lentamente foi cedendo lugar emLisboa ao modelo cortesão francês, desde o casamento de D. Afonso VI comMaria Francisca Isabel de Sabóia (1666), que selou a aliança entre Portugal ea França. Durante os reinados de D. Pedro II e D. João V a influência culturalfrancesa aumentou, não só em Portugal, mas em todas as cortes européias,que criaram suas próprias versões de Versalhes.

O monarca que, por excelência, encarnou o absolutismo foi o rei Luís XIVda França. A hierarquização da sociedade francesa, representada pela etiquetaque regia a vida na corte, foi admirada e serviu de modelo para as outrasmonarquias européias. A estrita obediência da etiqueta, com a qual o soberano

16 Mapa geral… AHU_ACL_CU_012, Cx. 1, D. 86.17 Carta de Vasconcelos ao rei. 5 abr. 1730: AHU_ACL_CU_012, Cx. 2, D. 220.18 SYLVA, Silvestre Ferreira da. Relação do sítio da Nova Colônia do Sacramento. Facsímile da

edição de 1748. Porto Alegre: Arcano 17, 1993, p. 61-71.19 FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997,

p. 50.20 BRAGA, Paulo Drumond. D. Pedro II (1648-1706): uma biografia. Lisboa: Tribuna, 2006, p.

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“aproveitava suas atividades mais particulares para marcar as diferenças denível, distribuindo suas distinções, provas de favorecimento ou desagrado”21,garantia a proeminência do rei na sua corte. Porém, para manifestar o poderdo monarca fora da sua capital havia dois meios: as guerras expansionistasou a representação do poder da Coroa por meio de festas espetaculares. LuísXIV utilizou ambas as estratégias.

Enquanto as monarquias rivais preferencialmente se serviam da guerracomo instrumento de prestígio, D. João V buscou o mesmo através dadiplomacia, desviando para os domínios ultramarinos todas as ambições deglória de seus vassalos através do serviço militar. Mas, se a política depacifismo iniciou-se com o fim da Guerra de Sucessão Espanhola, a ambiçãode equiparar a monarquia portuguesa com as principais cortes católicaseuropéias era um sonho antigo, que vinha do tempo da Restauração.Timidamente esboçada durante o reinado de D. Pedro II, no período joaninodesenvolver-se-ia uma política de espetáculo que seria utilizada pela Coroacomo afirmação grandiosa de soberania e instrumento de negociação22.

Segundo Jaime Cortesão, foi o ouro brasileiro que deu a D. João V ascondições necessárias para implementar a sua política de espetáculo, situaçãoque explica o anacronismo de Portugal se tornar o país mais tipicamentebarroco no século XVIII, quando esse estilo de arte e de vida já não era maispredominante na maior parte da Europa. Outro fator que teria contribuídopara a duração da era barroca em Portugal, na análise de Cortesão, seria aconstituição da sociedade portuguesa, na qual faltava uma burguesia forte,circunstância que tornava o domínio da aristocracia incontestável23.

Contudo, não bastava organizar festas magníficas para a corte, pois aexaltação da monarquia deveria ser pública a fim de ser vista por todos ossúditos. De fato, “a introdução do conceito cênico do barroco revela-se essencialao exercício do poder, que se afirma perante os súditos pelo seu caráter visual”24.Segundo Santiago: “Nas comemorações dos nascimentos e casamentos demembros da Família Real, os festejos visavam construir, por meio de supostoregozijo comum, uma identidade entre a Coroa e os súditos das mais distantes

paragens”25.

21 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 102.22 PIMENTEL, António Filipe. Arquitectura e poder: o real edifício de Mafra. Coimbra: Instituto

de História da Arte, Universidade de Coimbra, 1992, p. 76.23 Para Cortesão: “O barroco foi em Portugal, mais do que em nenhures, um estilo de império.

Para exprimir, quer a onipotência dum regime – o absolutismo – e duma classe – a nobreza,quer a majestade do divino, o artista, na lógica do barroco, funde todos os elementos do faustoimperial. (...) E é no Brasil, que o barroco, de origem e importação portuguesa, se tornou pordefinição o estilo dum Estado colonizador e absolutista e, por consequência, o mais apropriadopara exprimir em arte, por todos os ilusionismos duma força e grandeza sem limites, o domínioda Coroa sobre os seus vassalos”. CORTESÃO, Jaime. O tratado de Madrid. Brasília: SenadoFederal, 2001, tomo 1, p. 85-86.

24 PEREIRA, Ana Cristina Duarte. Princesas e Infantas de Portugal (1640-1736). Lisboa: Colibri,2008, p. 31.

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Para Lopez, os festejos se relacionavam com o espaço vivido, pois sedesenvolviam no palácio, onde a corte deveria mostrar sua fidelidade aomonarca, e na rua, onde arcos, luminárias e fogos de artifício serviam paracongregar todos os súditos à ordem monárquica: “Havia assim uma ‘geografiada festa’. A rua era vista pelos dirigentes como espaços do povo; o Paço era olocal da nobreza, e as Igrejas o lugar do clero. Os grandes festejos, como asAclamações reais, entrelaçavam esses vários lugares, permitindo o contato entremúltiplos segmentos sociais”26. Mas, se as celebrações públicas visavam antesde tudo o enaltecimento da monarquia, também serviam para que as eliteslocais mostrassem seu poder e riqueza. Nas procissões, os desfiles dos juízese oficiais da Câmara eram um modo eficiente de mostrar o poder das eliteslocais, que não podia prescindir do espaço urbano, onde a população seconcentrava para ver a representação da sociedade hierarquizada27.

D. João V, respaldado pelos quintos do ouro brasileiro, iniciou um reinadoinspirado no de Luís XIV. Em 1708, uma brilhante embaixada portuguesa foienviada a Viena para ajustar o casamento do rei com a arquiduquesa Mariana.Em 1713 e 1714, foram dadas festas memoráveis em Utrecht em comemoraçãoaos nascimentos dos príncipes D. Pedro (em breve falecido) e D. José, o futuroherdeiro do trono. Em 1715, o embaixador português fez uma esplêndidaentrada em Paris, quando foram distribuídos, à mão larga, dinheiro e objetosde valor entre os cortesãos de Luís XIV, enquanto às pessoas queacompanharam o cortejo foram distribuídas duzentas medalhas de ouro e milde prata com a efígie do rei de Portugal.

O fausto da entrada em Paris seria superado, três anos depois, quandoAndré de Melo e Castro, elevado ao cargo de embaixador extraordináriojunto à Santa Sé, fez sua entrada oficial em Roma. Foi tão rica a comitivaportuguesa que, por muitos anos, os demais países europeus deixaram deorganizar entradas solenes de embaixadores na Cidade Eterna, já que nenhumse propôs a igualar a cerimônia patrocinada pelos portugueses. Outraembaixada, desta vez enviada à corte de Pequim, entre 1725 e 1728, serviu denova ocasião para alardear a riqueza e o poder de D. João V, quando foramenviados riquíssimos presentes ao imperador da China28.

Se a representação faustosa da Coroa portuguesa era importante nascortes estrangeiras e na metrópole, também o era no império colonial, onde,“embora o rei não estivesse presente fisicamente, de certo o estava no que dizia

respeito ao seu segundo corpo, político ou místico, como queiramos chamar”29.

25 SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. A vila em ricas festas: celebrações promovidaspela Câmara de Vila Rica, 1711-1744. Belo Horizonte: FACE-FUMEC, 2003, p. 41.

26 LOPEZ, Emilio Carlos Rodrigues. Festas públicas, memória e representação: um estudosobre manifestações políticas na Corte do Rio de Janeiro, 1808-1822. São Paulo:Humanitas;FFLCH-USP, 2004, p. 30.

27 LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na Américaportuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 53.

28 BEBIANO, Rui. D. João V, poder e espectáculo. Aveiro: Estante, 1987, p. 109-118.

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D. João V incentivou a proliferação de festejos em todos os domíniosportugueses, “na medida em que enrijeceu o cerimonial, normatizandominuciosamente, de acordo com a etiqueta, a forma das celebrações. As festasse tornariam artifícios de representação e exaltação do monarca, especialmenteimportantes nos confins ultramarinos, devido à distância do centro do poder”30.

De fato, todas as ocasiões propícias ao enaltecimento da monarquiadeveriam ser convenientemente festejadas. A chegada de um bispo, aaclamação do soberano, seu casamento, seu funeral, o nascimento do futurosoberano, o aniversário do rei, da rainha, dos príncipes ou o do supremorepresentante do rei na colônia deveriam ser enaltecidos através de festaspúblicas. Mais que estimular, as autoridades obrigavam a participação dapopulação nessas solenidades. As leis do Reino, as Ordenações Filipinas,mandavam que assim fosse até para o morador a menos de uma légua da vilaou cidade em que se fizesse uma procissão31. “Assim todo mundo já esperava,por exemplo, que o governador mandasse ‘lançar bando, com todas as caixas dopresídio, publicando o efeito que aquela noite e nas duas seguintes todos osmoradores ornassem suas janelas com luminárias”32.

Características das festas barrocas, as luminárias e os fogos de artifíciogarantiam o caráter espetacular da comemoração. Segundo Maravall, “comsuas luzes, essas artes correspondiam ao afã de deslocar o dia para a noite,vencendo a escuridão por meio de puro artifício humano”33. Outro elementoimportante da celebração era o caráter religioso vinculado à mesma, com arealização de missa solene e procissão, pois assim “a potestade divina e apotestade civil que amparava e honrava a primeira na terra ficavam igualmenteenaltecidas”34.

As festas oficiais do Antigo Regime português dividiam-se em anuais ouordinárias, ligadas ao calendário litúrgico católico (Corpus Christi, AnjoCustódio do Reino e Visitação de Nossa Senhora a Santa Izabel) e reais ouextraordinárias (nascimentos, casamentos, aclamações e exéquias da famíliareal)35.

Dentre as festas reais que marcaram o fausto do período joanino cumpredestacar os casamentos entre os príncipes do Brasil e das Astúrias com asinfantas Mariana Vitória de Bourbon e Maria Bárbara de Bragança, na fronteiraluso-espanhola, em 1729. Os matrimônios dos príncipes herdeiros de Portugale da Espanha deram lugar “a um dos mais impressionantes momentos de

29 MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho: a monarquia portuguesa e a colonizaçãoda América, 1640-1720. São Paulo: Hucitec; FAPESP, 2002, p. 168.

30 SANTIAGO, A vila..., p. 20.31 Código Filipino ou Ordenação e Leis do Reino de Portugal, livro 1, título 66, parágrafo 48.32 ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana

colonial. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997, p. 131.33 MARAVALL, José Antonio. A cultura do barroco: análise de uma estrutura histórica. São

Paulo: Edusp, 1997, p. 384.34 MARAVALL, A cultura..., p. 378.35 SANTIAGO, A vila..., p. 41

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visualização do fausto joanino, num espetáculo sem precedentes de rivalidade eemulação entre duas Cortes que coincidem no mesmo local”36.

As festas da monarquia em Natal

Em 10 de maio de 1729, o capitão-mor do Rio Grande, Domingos de MoraisNavarro, escrevia ao rei informando que, conforme lhe fora ordenado pelocapitão-geral de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira T ibão, festejaracondignamente os casamentos dos príncipes. Antes da descrição dascelebrações, Navarro começou seu relato salientando seu esforço emorganizar os festejos “não obstante a esterilidade e a limitação do país e desuas posses”. As celebrações duraram nove dias sucessivos, com comédias,máscaras, cavalhadas, fogos de artifício, salvas de artilharia e missa solenecantada e procissão. Ordenou três noites de luminárias e, para dar o exemplo,Navarro mandou acender mais de oitenta luzes cada noite no frontispício dacasa onde morava. Não deixou de ressaltar que as festividades causarammuita alegria aos vassalos, “por nunca terem visto outra semelhante celebridadee especialmente aos muitos índios e tapuias das aldeias desta capitania, queficaram admirados, fazendo mais apreensão da Real Grandeza de VossaMajestade”37.

O capitão-mor estava realmente muito empolgado com as festas queorganizou, pois, arrematava dizendo que “da capitania de Pernambuco paraas mais do norte [a do Rio Grande] se avantajou a todas na magnificência dosaplausos que nas outras se fizeram” 38. Porém, para iluminar a sua casa recorreraaos recursos da capitania e, como não havia legislação que garantisse essaapropriação, dizia que merecia a mesma regalia que o governo da Paraíba,que tinha o subsídio de quatro arrobas de cera para celebrar semelhantessolenidades. Caso o rei julgasse que ele não deveria ter usado os recursos dacapitania para o pagamento da cera, se comprometia a devolver o valorretirado.

Por sua vez, D. João V escreveu ao governador de Pernambuco solicitandoseu parecer com relação ao pedido feito pelo capitão-mor do Rio Grande.Duarte Sodré respondeu que Navarro havia festejado os casamentos dospríncipes “com mais aplauso do que pedia a terra” 39, ressaltando assim oempenho do capitão-mor na realização de celebrações numa região que eraconhecida pela sua pobreza. De fato, em 18 de maio de 1729, o Senado daCâmara de Natal havia pedido ao rei a suspensão dos tributos que ele mandaracobrar para financiar os casamentos dos príncipes, tendo em vista que seteanos sucessivos de seca haviam dizimado o gado do sertão40. Por isso, Duarte

36 PIMENTEL, Arquitectura e poder, p. 78.37 Carta de Domingos de Morais Navarro ao rei. 10 mai. 1729. AHU_ACL_CU_018, Cx. 2, D.

136.38 Carta de Domingos de Morais Navarro ao rei. 10 mai. 1729. AHU_ACL_CU_018, Cx. 2, D.

136.39 Carta de Duarte Sodré Pereira Tibão ao rei. 13 mar. 1732. AHU_ACL_CU_015, Cx. 42, D.

3801.

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Sodré era favorável a que Navarro recebesse uma arroba e meia de cera, pois“além das referidas despesas, serviu a Vossa Majestade com bom procedimentoneste lugar”41. O parecer do governador de Pernambuco foi aprovado peloConselho Ultramarino que, em 1732, manifestou-se favoravelmente à entregauma arroba e meia de cera a Domingos de Morais Navarro.

O problema do financiamento da iluminação pública durante os festejosera antigo. Já em julho de 1713 a Câmara de Natal pedia ao rei os mesmossubsídios que a Câmara da Paraíba recebia da Coroa para a realização defestas religiosas42. Embora a Coroa tenha formalmente regulamentado ahierarquia entre as diferentes autoridades coloniais, na prática, ela encorajavaa autonomia das capitanias com o objetivo de “dissipar o aparecimento deuma mentalidade colonial separada, ou de uma estrutura colonial interna quepudesse desenvolver-se independentemente do controle metropolitano”43. Adesigualdade de tratamento que a Coroa dava às diferentes capitanias eranorma durante o Antigo Regime, quando as relações entre os monarcas e ascidades ou províncias eram regidas de acordo com as circunstâncias, queditavam as mercês concedidas pelos reis, mas, como vimos acima, nem porisso os pedidos de equiparação entre as diferentes circunscriçõesadministrativas deixavam de ser feitos.

A falta de recursos para as celebrações oficiais era constante e talvez osmembros do Senado da Câmara de Natal estivessem satisfeitos em responderque não havia dinheiro para as cerimônias que deveriam ser realizadas porocasião da morte de D. José I44. O protesto contra a falta de verbas era dirigidocontra a própria instituição monárquica, pois os funerais da família real tinhamum importante caráter de celebração litúrgica45. Situação semelhanteaconteceu em 1786, quando o Senado da Câmara escreveu ao ouvidor gerale ao corregedor que, devido à falta de verbas, não se realizaram as celebraçõesordenadas pelo corregedor em honra aos casamentos dos príncipes. Nãohouve o Te Deum cantado na matriz e a única homenagem prestada foi ailuminação da casa da Câmara46.

Possuímos ainda alguns registros de festas religiosas que foram realizadasem Natal de acordo com ordens vindas de Lisboa. Em primeiro de maio de

40 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 18 mai. 1729. AHU_ACL_CU_018, Cx. 2, D.140.

41 Carta de Duarte Sodré Pereira Tibão ao rei. 13 mar. 1732. AHU_ACL_CU_015, Cx. 42, D.3801.

42 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 17 jul. 1713. AHU_ACL_CU_018, Cx. 1, D. 69.43 SCHWARTZ, Stuart. O Brasil no sistema colonial. In: BETHENCOURT, Francisco &

CHAUDHURI, Kirti (orgs.). História da expansão portuguesa - vol. III: O Brasil na Balançado Império, 1697-1808. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, p. 148.

44 Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN). Senado da Câmara deNatal, Livro de Termos de Vereação, Cx. 1, f. 226v-227, 18 jun. 1777.

45 MARTINS, Maria Cristina Bohn. Sobre festas e celebrações: as reduções do Paraguai(séculos XVII e XVIII). Passo Fundo: UPF Editora, 2006, p. 46.

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1757, a Câmara informava a D. José I que registrara os decretos reais queordenavam a realização de festas em honra a São Francisco de Borja e a NossaSenhora47. Deve ter havido algum pedido de subsídio para financiar os gastoscom os festejos, pois, em 1759, a Câmara voltou a informar o recebimento dasordens para a realização das mesmas festas, porém desta vez acrescentou:“sem fazermos despesas para as ditas solenidades e nem levarmos propinaalguma”48.

Era importante para os camaristas salientar o não recebimento de propinas,pois, como eles não recebiam salários, mas propinas relativas a serviçosprestados, as mesmas eram cobiçadas por compensar gastos e serviços. Asfestas públicas podiam ser interessantes financeiramente, já que criavamoportunidades para os membros da Câmara obterem benefícios monetários,como destaca Camila Santiago, que estudou as festas patrocinadas pelaCâmara de Vila Rica49. Porém, no caso de Natal, observamos que a Câmarabuscava subtrair-se da responsabilidade de financiar as celebrações em honraà monarquia ou à religião, provavelmente devido às dificuldades financeirasda cidade, que impediam o ressarcimento dos gastos realizados. Adocumentação não mostra muito entusiasmo da Câmara em promover ascelebrações, mesmo as de caráter estritamente religioso. O termo de vereaçãode 26 de abril de 1712 registra laconicamente: “Decidiram fazer a festa doCorpo de Deus por ser Festa Real e o senado é obrigado a fazê-la”50.

Com relação às festas locais parece ter havido mais interesse. O termo devereação de 07 de dezembro de 1767 registra que os camaristas “acordarammais em mandar ao procurador comprar seis velas de libra para se darem àCâmara e ao governo no dia seguinte na festa da Nossa Senhora da Apresentação,orago da matriz desta cidade e de tarde acompanhar a procissão como de costumeantigo”51. Se havia pouco entusiasmo em efetuar gastos que dificilmente seriamressarcidos, era importante marcar a presença da Câmara na festa em honraà padroeira da cidade. Além disso, “ostentar velas na procissão era um elementoa mais de representação, distinguindo seus portadores e favorecendo oreconhecimento de seu status social”52.

O fenômeno observado por Chartier nas cidades francesas do Antigo

46 IHGRN. Senado da Câmara de Natal, Livro de Termos de Vereação. Cx. 2, liv. 1784-1803,f. 23.

47 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 1 mai. 1757. AHU_ACL_CU_018, Cx. 7, D.403. Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 1 mai. 1757. AHU_ACL_CU_018, Cx. 7,D. 404.

48 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 6 fev. 1759. AHU_ACL_CU_018, Cx. 7, D.414.

49 SANTIAGO, A vila..., p. 117.50 IHGRN. Senado da Câmara de Natal, Livro de Termos de Vereação. Cx. 1, liv. 1709-1721,

f. 59v.51 IHGRN, Senado da Câmara de Natal, Livro de Termos de Vereação. Cx. 2, liv. 1793-1802,

f. 10-10v.

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Regime, onde: “a festa urbana tornou-se assim um instrumento político quepermite a afirmação da cidade perante o príncipe, a nobreza e as outrascidades”53, também se deu no Novo Mundo, especialmente nas cidades maisricas. Santiago afirma que, em Minas Gerais, “é possível afirmar que a Câmarade Vila Rica apropriava-se das festas que promovia com fim de representaçãode seu poder”54.

Tanto as festas ligadas à celebração da monarquia como as religiosas eramuma ocasião propícia para a representação do poder das Câmaras, que podiamaté vender seus bens para patrocinar os festejos, como aconteceu em Salvadorem 1641, quando os camaristas votaram a favor da venda da prataria da Câmaraa fim de financiar a procissão de Santo Antônio, pois os recursos destinadosa ela já haviam sido gastos nas festas pela aclamação de D. João IV55.

Como vimos anteriormente, o maior empenho em celebrar a monarquiaem Natal foi obra do capitão-mor do Rio Grande, Domingos de Morais Navarro,e não do Senado da Câmara. A última festa em homenagem à Coroaportuguesa em Natal que conhecemos foi registrada em 14 de outubro de1821, quando o governador da província do Rio Grande do Norte, José InácioBorges, escreveu ao secretário de Estado, da Marinha e do Ultramar que anotícia da chegada a salvo do rei a Lisboa fora comemorada com salvas deartilharia, três noites de luminárias e um solene Te Deum na matriz da cidade56.Outra vez observamos que a iniciativa partiu do governador e não do Senadoda Câmara.

Nossa análise da documentação nos leva a crer que o pouco entusiasmoda elite natalense em financiar celebrações públicas devia-se à dificuldade deressarcimento dos gastos efetuados. A constante falta de recursos da Câmarade Natal refletia o pequeno desenvolvimento econômico da cidade, queimpedia a elite local de afirmar seu poder através de celebrações memoráveis,a exemplo do que ocorria nas cidades mais ricas da América portuguesa. Porsua vez, os representantes diretos da Coroa na Capitania estavam interessadosem celebrar as datas importantes da monarquia a fim de ressaltar a suafidelidade à dinastia, para garantir deste modo sua ascensão nos quadrosadministrativos no Reino ou nas colônias. A elite local preferia concentrarseus poucos recursos na celebração das festas religiosas, particularmente dapadroeira da cidade, ocasião em que mostrava seu poder à população, assimcomo sua ligação a terra em que vivia.

As festas reais na Colônia do Sacramento

Como praça fronteira ao império colonial espanhol, a Colônia do

52 SANTIAGO, A vila..., p. 9353 CHARTIER, Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Unesp, 2004, p. 31.54 SANTIAGO, A vila..., p. 71.55 SCHWARTZ, Stuart. Cerimonies of public authority in a colonial capital. Anais de história

de além-mar. Lisboa, 2004, v. 5, p. 11.56 Carta de José Inácio Borges ao rei. 14 out. 1821. AHU_ACL_CU_018, Cx. 10, D. 655.

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Sacramento não deixou de participar da política de glorificação da monarquiaportuguesa. Para festejar o casamento do príncipe D. José com a infanta D.Mariana Vitória, o governador Antônio Pedro de Vasconcelos tomou porencargo a realização de uma grande festa, uma vez que o povoado não tinhaCâmara, a quem incumbia a organização de semelhantes eventos. Ogovernador salientou a importância da realização do festejo em Colônia,dizendo que “foi forçoso encarregar-se dele e sem atender à despesa nem àcircunstância de cair em empenho, por ser aquela praça fronteira, e iremtestemunhá-lo de Buenos Aires pessoas graves e de caráter, que aceitaram seuconvite”. As festividades constaram de “três noites de luminárias, fogos deartifício e descargas de artilharia, festa de igreja acabando por uma soleneprocissão, cavalhadas, touradas e comédias, dando trinta dias sucessivos, quedurou a festividade, mesa pública às pessoas de distinção e aos vizinhoshóspedes”57.

Para além da função de glorificação da monarquia, a festa contribuía paraa aproximação dos povos, pois tudo indica que o convite “à nobreza e [aos]militares da cidade de Buenos Aires” para celebrar os casamentos reais emSacramento ajudou a melhorar as relações entre portugueses e espanhóis. Ogovernador Antônio Pedro de Vasconcelos informou à Coroa que ogovernador de Buenos Aires lhe escrevera que “os convidados voltavam muiagradados do agasalho e cortejo que lhe fez pelo decurso de trinta dias que ali sedetiveram, experimentando desde então distinta correspondência do que atéali tinham”58.

As celebrações não deveriam cair no esquecimento, por isso se deu apublicação, em castelhano, da relação dos festejos. Também foi publicado osermão a São Pedro de Alcântara, pregado em Colônia por ocasião dadedicação de uma nova capela em homenagem ao santo durante as festasem comemoração ao casamento dos príncipes59. Como ressalta Megiani, aimpressão dos relatos das festas oficiais era um elemento muito importanteda propaganda monárquica, pois visava transformar as imagens emmemória60. Deve ser ainda ressaltado que “o sermão servia para exaltar a datareligiosa ou o monarca que se homenageava, muito mais do que para evocar umareflexão de tipo moral ou dogmática”61.

A maior parte dos gastos com os festejos correu por conta do governador,orçados em cinco mil cruzados, segundo o mesmo. Vasconcelos buscouressarcimento dessa quantia através de um pedido de aumento do seu soldoem mil cruzados anuais, retroativo ao dia da sua posse no governo da Colônia

57 Consulta do Conselho Ultramarino. 3 jul. 1734. IHGB, Arq. 1.1.26.58 Consulta do Conselho Ultramarino. 19 abr. 1730. IHGB, Arq. 1.1.26, f. 67-71v.59 ALMEIDA, Manuel Lopes de (org.). Notícias históricas de Portugal e Brasil (1715-1750).

Coimbra: Coimbra Editora, 1961, p. 165.60 MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes

a Portugal (1581 a 1619). São Paulo: Alameda, 2004, p. 189.61 MARTINS, Sobre festas..., p. 53.

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do Sacramento. Seu pedido recebeu parecer favorável do Procurador daFazenda do Rio de Janeiro e do Conselho Ultramarino, que ressaltou que eleprocedia “com probidade, zelo e acerto” no governo da praça62.

A preocupação em garantir que os grandes acontecimentos da cortefossem condignamente festejados na Colônia do Sacramento servia para fazerver aos estrangeiros, principalmente aos súditos da Coroa da Espanha, opoder e a riqueza do monarca lusitano. Negligenciar as festividades seriaofuscar o brilho da Coroa portuguesa frente à espanhola, uma vez que emBuenos Aires realizavam-se festas públicas por ocasião da aclamação dosmonarcas espanhóis. A preservação da memória também era umapreocupação dos espanhóis, seja pela publicação dos relatos das festas sejaatravés da distribuição de medalhas comemorativas, como veremos a seguir.

A primeira celebração pela aclamação de um novo rei em Buenos Airesocorreu em 16 de janeiro de 1600, em homenagem a Filipe III. A pobreza dacidade não possibilitou uma comemoração faustosa. Do alto de um tablado,erguido na Praça Maior, o governador aclamou o novo soberano diante doestandarte real, enquanto os soldados davam tiros e a fortaleza fazia umasalva de canhão. O desenvolvimento da cidade proporcionou mais grandezaàs celebrações que se seguiram. As mais faustosas se deram por ocasião daaclamação de Carlos III, iniciadas em 10 de novembro de 1760. O alferes real,don Jerônimo Matorras presidiu às celebrações, tendo em vista a ausência dogovernador, dom Pedro de Cevallos. Um cortejo iniciado por músicos, seguidospor um esquadrão de dragões, precedia a elite portenha, liderada pelo alferes,que empunhava o estandarte real. A procissão se dirigiu à Praça Maior, ondese erguiam dois estrados, um ocupado por um grupo de músicos, enquantoo outro era ocupado pelo alferes real, pelo alcalde de primeiro voto e peloescrivão do Cabildo. Então o alferes pediu por três vezes silêncio à multidãoque assistia e desfraldou o estandarte real proclamando: “España y las Yndias;España y las Yndias; España y las Yndias por el Rey Nuestro Señor Don Carlos III” 63.Seguiram-se à proclamação as salvas dos canhões da fortaleza e o repiquedos sinos da catedral. Para recordar o acontecimento, D. Jerônimo Matorrasdistribuiu entre a população seiscentas medalhas de prata com a efígie donovo rei e as armas da cidade no verso, enquanto as pessoas de distinçãoreceberam medalhas de ouro. A mesma cerimônia foi repetida em outraspraças da cidade e nos dias seguintes os festejos prosseguiram com cerimôniasreligiosas, banquetes, saraus, representações teatrais, fogos de artifício etrês noites de luminárias. As festas prosseguiram por vinte e um diasconsecutivos, dos quais os três últimos foram destinados a saraus realizadosno pátio da casa do alferes real, onde o mesmo mandou instalar um retratoequestre do novo soberano.

Outra festa realizada na Colônia do Sacramento, cujo relato possuímos,

62 Carta de Vasconcelos ao rei. 30 dez. 1734. AHU_ACL_CU_012, Cx. 3, D. 301.63 TORRE REVELLO, José. Cronicas del Buenos Aires Colonial. Buenos Aires: Taurus, 2004, p.

61-71.

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deu-se em 1752 para celebrar a aclamação de D. José I. Em primeiro de fevereiro,acompanhado pelos oficiais militares, o governador Luiz Garcia de Bivar dirigiu-se à igreja matriz para assistir à benção do estandarte real. O fim da cerimôniafoi saudado com uma salva de artilharia. No seguimento, o meirinho, o escrivãoe o porteiro saíram acompanhados de trombetas para proclamar pela praça obando do governador que ordenava três dias de luminárias em honra aonovo monarca.

Na manhã do dia 2, reuniram-se na casa do governador os funcionáriosreais, os oficiais militares, o clero e seis representantes da comunidade doscomerciantes. Procedido por trombetas e timbales e escoltado pela companhiade granadeiros, o grupo percorreu as principais ruas do povoado até chegarao arco triunfal montado na praça. Ali, à vista da tropa formada, o governadorsubiu numa plataforma onde fez correr as cortinas de dossel, apresentando,assim, o retrato do novo rei de Portugal à população e à tropa. Aos vivasjuntaram-se descargas de mosquete e salvas da artilharia da praça, da fortalezada ilha de São Gabriel e dos navios que se encontravam no porto. O cortejoentão se dirigiu para a igreja matriz, especialmente enfeitada e iluminadapara a ocasião, onde se entoou um solene Te Deum, acompanhado pelosmúsicos que o governador contratou em Buenos Aires. Após colocar-se oestandarte real ao lado do evangelho, celebrou-se a missa, cujo fim foisaudado por nova salva de artilharia.

Durante três dias, Luiz Garcia de Bivar ofereceu bailes de máscaras e jantaresa mais de setenta “pessoas de distinção”, entre as quais, alguns convidadosde Buenos Aires. No terreiro em frente ao portão, realizaram-se as atividadesao ar livre que incluíram a apresentação de exercícios militares realizados pelacompanhia dos granadeiros, cavalhadas e touradas, para as quais foramcontratados toureiros espanhóis. Numa sala do trem, os convidados puderamassistir a danças, uma tragicomédia apresentada pelos estudantes, e duascomédias, uma portuguesa e uma espanhola.

Todavia, os festejos não se limitaram à elite, pois o governador libertou ospresos e fez repartir esmolas entre os pobres. Durante os seis dias de festa,liberou-se o uso de máscaras, mas o governador fez questão de recomendar“sossego com a ameaça do castigo”. Bivar fez questão de frisar na relação dasfestas que elas foram realizadas sem os recursos da Fazenda Real, mas comseus próprios meios, sendo ajudado nas despesas por seis pessoas dentre osprincipais moradores da Colônia do Sacramento64. Contribuir para ascomemorações ligadas à casa real significava mostrar engajamento e fidelidadeà instituição monárquica. Como ressalta Maravall, a festa na época barroca

era “um instrumento, até mesmo uma arma, de caráter político”65.

Em janeiro do ano seguinte, foram realizados novos festejos, por ocasiãoda chegada a Colônia do general Gomes Freire de Andrade, encarregado pela

64 RELAÇÃO das festas que fez Luiz Garcia de Bivar. Lisboa: Oficina de Pedro Ferreira, 1753.65 MARAVALL, A cultura do barroco, p. 382.

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Coroa de chefiar a comissão demarcadora portuguesa do Tratado de Madrino Sul. No dia 25, Gomes Freire se encontrou com o governador Luiz Garcia deBivar a um quarto de légua de Colônia. O governador o esperavaacompanhado de trinta dragões montados, com seus oficiais. A comitivaseguiu, então, para o povoado, encontrando-se com a infantaria, próximo àchácara do almoxarife, ainda fora dos muros da praça. Ao chegar ao portão,todos desmontaram, sendo que o general foi recebido por seis oficiais dasordenanças, que representavam os oficiais da Câmara, inexistente emSacramento. Sob o pálio que sustentavam os oficiais, Gomes Freire ouviu odiscurso do governador e recebeu do sargento-mor as chaves da praça numabandeja de prata.

O cortejo seguiu então para a igreja, sendo o pálio acompanhado pelaCompanhia de Granadeiros, que seguia o general em duas alas. Antes dechegar à matriz, onde foi cantado um Te Deum, Gomes Freire foi saudado pelaartilharia da praça e do forte de São Gabriel com 21 tiros, o que voltou a serepetir quando o cortejo deixou a igreja. O general foi hospedado na casa dogovernador, onde foi brindado com uma ceia na qual compareceram mais detrinta pessoas. Os banquetes se repetiram nos dias seguintes com aparticipação dos oficiais e na noite do dia 26 foi realizado um sarau com maisde trinta mascarados, todos vestidos com guarnições de ouro e prata eensaiados pelo mestre de dança André da Costa, bem conhecido em Lisboa.Na noite do dia 27, houve um concerto de cinco rebecas, sendo tocadas muitassonatas e cantadas muitas árias italianas.

No dia 19 de fevereiro chegou ao Arraial de Veras o marquês de Valdelírios,comissário espanhol para a demarcação no sul. Gomes Freire foi buscá-lo nacarruagem do governador, acompanhado de alguns oficiais. A artilharia dapraça saudou o marquês com 21 tiros e a infantaria com três descargas. Nosdias seguintes, renovaram-se as festas. No dia 20 houve um concerto demúsica; no dia seguinte, sarau com mais de cinquenta mascarados, e grandemesa de doces e no dia 25 cavalhadas durante o dia e sarau à noite66.

A Colônia do Sacramento nunca contou com uma Câmara durante odomínio lusitano e as festas reais ficaram ao encargo dos governadores.Embora Natal tivesse uma Câmara, ela não parece ter se interessado tantoquanto os governadores em patrocinar as celebrações em homenagem àdinastia reinante. Em dois espaços muito diversos, um, rico pelo comércio, eoutro, frequentemente em dif iculdade por causa das secas queperiodicamente desorganizavam a economia local, os representantes da Coroafaziam o que podiam para festejar com brilho a casa real portuguesa. Osinteresses se interligavam: para a Coroa, se tratava de assegurar a fidelidadedos vassalos à monarquia; para os governadores o empenho na organizaçãodas festas representava uma oportunidade garantir sua ascensão nos

PAULO CÉSAR POSSAMAI

66 GOLIN, Tau. A guerra guaranítica. Porto Alegre: UFRGS; Passo Fundo: Ediupf, 1998, p.255-261.

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quadros administrativos; para as elites locais era um momento para mostrarseu poder e riqueza e, para o povo, que participava ou se limitava a assistir,uma ocasião de romper com monotonia do cotidiano.

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Casa de Oração – ou Casa de Exercícios – da Venerável OrdemTerceira da Penitência do Convento de Santo Antônio da Paraíbaé uma das mais significativas capelas erguidas durante o séculoXVIII na velha sede da Capitania. Seu forro é mais uma, dentreas inúmeras pinturas existentes em igrejas barrocas no Brasil,

ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL:O FORRO DA CASA DE ORAÇÕES DOS TERCEIROS

NO CONVENTO DE SANTO ANTÔNIO1

Carla Mary S. Oliveira2

das quais não se conhece a autoria e, tampouco, se encontrou, até hoje,algum documento que aponte qualquer pista a este respeito.

O apuro da execução da pintura do forro, com inúmeras sacadas ebalaustradas em efeito trompe l’oeil3 e vários querubins completando oconjunto, não deixa nada a desejar se a compararmos a outras obras domesmo período existentes nos maiores centros de então, como Recife,Salvador, Vila Rica ou Mariana. Mas há uma pequena diferença: a Paraíba dasegunda metade do século XVIII era uma Capitania em franca decadência

1 Este trabalho foi apresentado, numa versão reduzida e preliminar, sob o título “O forroda Casa de Orações dos Terceiros no Convento de Santo Antônio da Paraíba: algumasquestões sobre suas imagens e a vida de São Francisco de Assis”, no Simpósio Temático“Imagens de Arte: fronteiras disciplinares entre história da imagem e história da arte”,durante o XXIV Simpósio Nacional de História da ANPUH - “História eMultidisciplinaridade: Territórios e Deslocamentos”, realizado na UNISINOS, em SãoLeopoldo (RS), entre 15 e 20 de julho de 2007.

2 Historiadora, Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. ProfessoraAdjunta do Departamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Coordenadora do projetode cooperação acadêmica “Patrimônios - Conexões Históricas” (PROCAD-NF Capes no

2338/2008 - PPGH-UFPB/ PPGHis-UFMG). Líder do Grupo de Pesquisas Estado e Sociedadeno Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq) e pesquisadora dos Grupos dePesquisa Saberes Históricos: Ensino de História, Historiografia, História da Educação ePatrimônios (PPGH-UFPB/ Diretório CNPq) e Perspectiva Pictorum (PPGHis-UFMG/ DiretórioCNPq). No segundo semestre de 2009 desenvolveu Estágio Pós-Doutoral junto aoPrograma de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, coma pesquisa “O Barroco no Brasil: (des) conexões entre Minas Gerais e o litoral doNordeste”, sob supervisão da Profa Dra. Adalgisa Arantes Campos, com bolsa financiadapela Capes. E-Mail: <[email protected]>. Sítio eletrônico: <http://cms-oliveira.sites.uol.com.br/>.

3 Expressão francesa utilizada para designar uma pintura que contenha artifícios deperspectiva, cores e formas a fim de criar uma ilusão de realidade para o observador,como se o espaço da pintura fosse uma continuação do ambiente que a abriga.Literalmente, a expressão pode ser traduzida como “engana o olho”.

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econômica – situação que se arrastava desde o século anterior, mas que setornou mais evidente com a anexação a Pernambuco, em dezembro de 17554.

Qual seria, então, a função de uma obra artística dessa envergadura, numaCapitania periférica que enfrentava dificuldades comerciais, de produção –seus engenhos nunca mais renderam como antes da invasão pela West IndischeCompagnie5, no século anterior – e administrativas?

Embora não haja, necessariamente, uma ligação direta entre opulênciadecorativa e aumento da riqueza local, o inverso é paradoxalmente maiscomum do que se imagina: ostentar riqueza, quando ela não existe, pode sermuito importante numa sociedade permeada por interesses e poderessimbólicos, tal como o era a do Brasil colonial.

O Forro da Capela e a vida de São Francisco

Com 268 metros quadrados, o forro da Casa de Orações é pintura comforte efeito trompe l’oeil, apresentando sacadas e colunas de um prédioimaginário que se avoluma em formas sinuosas sobre as cabeças dos fiéis. Hávários detalhes que merecem atenção nesta obra – a começar pela tezamorenada de alguns dos querubins que brincam entre as balaustradas e osquatro homens negros que, como atlantes, sustentam os arremates do forrosobre o altar e acima da entrada da sacristia – mas certamente o espectador élogo atraído para seu tema principal: numa área elíptica, ao centro, apareceuma carruagem subindo aos céus, puxada por dois cavalos e conduzida porum homem barbado, adulto, trajando um hábito franciscano, com a cabeçacoberta. Por trás do condutor, chamas flamejantes dão um aspecto fantásticoà cena.

Até hoje perdura certa indefinição sobre que cena está ali retratada. OCônego Florentino Barbosa – padre secular e um dos primeiros estudiosos doBarroco local – acreditava que ela seria a representação do profeta Elias sendoarrebatado aos céus6. Sua versão foi aceita localmente, e os historiadoresque estudaram os franciscanos e sua arte na Paraíba sempre tangenciaramessa discussão7.4 É possível considerar que o ato administrativo que extinguiu o governo local e submeteu

a Capitania da Paraíba à de Pernambuco, uma Resolução Real datada de 29 de dezembrode 1755, quase dois meses depois do terremoto que devastou Lisboa em 1º de novembrodo mesmo ano, tenha sido apenas uma dentre inúmeras outras medidas que visavamdiminuir as despesas da Coroa nas colônias, com o intuito de concentrar os gastos doTesouro na reconstrução da capital do Império, tarefa a que o Marquês de Pombal sededicou com extremo afinco por vários anos. Levando-se em conta que a decadênciaeconômica da Paraíba já se arrastava desde o século anterior, e que essa decisãoadministrativa poderia ter sido tomada bem antes e não deve ter ocorrido apenas porinteresses e acordos políticos, não é de se estranhar que o cataclismo que se abateusobre o Reino a precipitasse.

5 Companhia das Índias Ocidentais.6 BARBOSA, Cônego Florentino. Monumentos históricos e artísticos da Paraíba. João Pessoa:

A União, 1953, p. 51.7 Refiro-me aqui, especialmente, a Glauce Burity e Humberto Nóbrega. Ver: BURITY, Glauce

Maria Navarro. A presença dos franciscanos na Paraíba através do Convento de Santo Antônio.

CARLA MARY S. OLIVEIRA

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Fig. 1 - Anônimo; Querubim; segunda metade doséculo XVIII. Madeira policromada; detalhe doforro, Casa de Oração dos Terceiros;Convento de Santo Antônio da Paraíba,João Pessoa. Foto: C.M.S. Oliveira, 2001.

ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL

Fig. 2 - Anônimo; Atlante Negro;segunda metade do século XVIII.

Madeira policromada; detalhe doarremate do forro sobre a

entrada da sacristia, Casa deOração dos Terceiros; Convento

de Santo Antônio da Paraíba,João Pessoa.

Foto: C.M.S. Oliveira, 2001.

Fig. 3 - Anônimo; São Francisco no carro defogo; segunda metade do século XVIII. Madeirapolicromada; detalhe do forro, medalhãocentral, Casa de Oração dos Terceiros;Convento de Santo Antônio da Paraíba, JoãoPessoa. Foto: C.M.S. Oliveira, 2001.

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Contudo, há outra possibilidade para a interpretação desta imagem, e umdos principais motivos reside no fato de que não há qualquer ligação, naliturgia franciscana, entre Elias e a Ordem Seráfica. Ao contrário: o profeta éconsiderado como um dos fundadores da Ordem Carmelita, e em muitas dasigrejas e capelas desta Ordem espalhadas pelo Brasil há representações decenas de sua vida, inclusive desse arrebatamento aos céus. Possivelmente amais conhecida dentre elas seja a do forro da Igreja de Nossa Senhora doCarmo em Sabará, pintada por Joaquim Gonçalves da Rocha entre 1812 e 1813.

Rio de Janeiro: Bloch, 1988. NÓBREGA, Humberto Carneiro da Cunha. Arte colonial daParaíba. João Pessoa: UFPB, 1974.

8 Fonte da ilustração: FALCÃO, Edgard de Cerqueira. Relíquias da Terra do Ouro. São Paulo:F. Lanzara, 1946.

Fig. 4 - Joaquim Gonçalves da Rocha, Santo Elias subindo aos céus observado por SãoEliseu, 1812-1813. Madeira policromada; detalhe do forro, medalhão central; nave

principal da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo,Sabará, Minas Gerais8.

CARLA MARY S. OLIVEIRA

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Se houve equívoco quanto à identificação inicial da pintura paraibana, elenão é de explicação difícil: talvez o episódio da vida de Elias narrado noSegundo Livro dos Reis do Antigo Testamento seja dos mais conhecidos entreos cristãos em geral. Quando o Cônego Barbosa começou a estudar o Barrocona Paraíba há muito já não funcionava o convento franciscano, nem haviaatividades regulares dos Terceiros na cidade. Mas qualquer Terceiro, FradeMenor ou Clarissa conhece o episódio da vida de São Francisco a que, muitoprovavelmente, se refere a pintura da Casa de Exercícios do Convento deSanto Antônio: sua primeira representação pictórica conhecida foi feita poucomais de setenta anos após a morte do fundador da Ordem Seráfica, ainda noséculo XIII, por Giotto da Bondone, em um dos afrescos laterais da navecentral da Basílica Superior de Assis, na Úmbria.

Para Rosalind Brooke, a ligação de São Francisco ao sol ou a imagens deluzes e fogo, ao menos em descrições orais, iniciaram-se menos de dois anosapós sua morte, ocorrida na noite de 3 de outubro de 1226, e sua expressãomais clara seria a descrição do poverello d’Assisi 10 presente no sermão proferidopelo papa Gregório IX – amigo próximo e protetor de Francisco e seusseguidores – na cerimônia oficial de canonização, ocorrida em Assis no dia 16

9 Fonte da ilustração: <http://www.sanfrancescoassisi.org/>.10 Forma carinhosa pela qual contemporâneos de São Francisco o chamavam e que, entre

seus devotos, se perpetuou até nossos dias. Literalmente, pode ser traduzida como“pobrezinho de Assis”.

Fig. 5 - Giotto da Bondone, Legenda de São Francisco, Oitava Cena: Visão do Carro de Fogo,1297-1299. Afresco em painel de parede lateral; 270 X 230 cm;

nave central da Basílica Superior de São Francisco, Assis, Itália9.

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de julho de 1228: “como a estrela da manhã entre as nuvens,/ como a lua em seucompleto esplendor,/ como o sol brilhando no Templo do Altíssimo” 11.

A cena do carro de fogo, por sua vez, foi detalhadamente narrada emvárias das biografias do santo escritas por membros da Ordem àquela época.Tomás de Celano, frade que conviveu com Francisco, provavelmente foiincumbido pelo próprio Gregório IX de escrever uma “vida” do religioso recémcanonizado, trabalho que deve ter concluído entre 1229 e 1230. Conhecidocomo Primeira Vida de São Francisco, o texto descreve brevemente em seucapítulo XVIII a aparição do santo, num carro de fogo, a alguns frades menoresem oração, e talvez este seja o primeiro relato escrito daquela cena fantástica:

Lá pela meia-noite, quando alguns frades descansavam e outrosrezavam em silêncio com devoção, entrou pela pequena porta umrutilante carro de fogo, deu duas ou três voltas para cá e para lá nacasa, tendo sobre ele um globo enorme, que era parecido com o sole iluminou a noite. Os que estavam acordados se espantaram e osque estavam dormindo se assustaram, pois sentiram uma claridadenão só corporal mas também interior.12

Outra das muitas descrições desta aparição está também na Vida de SãoFrancisco13 de Juliani di Spira14, que foi escrita por volta de 1232 para uso naFrança, onde o frade alemão desenvolvia trabalho missionário. Entretanto, aversão mais difundida do episódio talvez seja aquela presente na LegendaMaior, escrita por São Boaventura15 após o Capítulo16 de Narbonne (1260) e

11 BROOKE, Rosalind B. The image of St. Francis: responses to sainthood in the Thirteenthcentury. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 8. O texto da versão eminglês: “like the morning star among the clouds,/ like the moon at the full,/ like the sun shiningon the Temple of the Most High”.

12 TOMÁS DE CELANO. Primeira vida de São Francisco de Assis. São Paulo: Província dosCapuchinhos de São Paulo, s.d. [c. 1229-1230], cap. XVIII, § 47: 3-4. Disponível em:<http://www.procasp.org.br/>. Acesso em: 21 out. 2006.

13 Considerada, em sua maior parte, como cópia resumida da obra de Celano, salvo emseus trechos finais.

14 JULIANI DI SPIRA. Vida de São Francisco. São Paulo: Província dos Capuchinhos de SãoPaulo, s.d. [c. 1232-1235], cap. V, § 29. Disponível em: <http://www.procasp.org.br/>.Acesso em: 21 out. 2006.

15 Nascido em 1221, em Bagnorea, nas cercanias de Viterbo, e batizado com o nome deGiovanni di Fidanza, conta-se que foi curado de grave doença, ainda criança, através daintercessão do próprio São Francisco, que ao recebê-lo nos braços teria exclamado “oh!Buona Ventura”, e a partir daí o menino passou a ser chamado por este nome. Foiteólogo, doutor da Igreja, Cardeal de Albano e Ministro Geral dos franciscanos, tendomorrido em Lyon, em 16 de julho de 1274. Foi canonizado em 14 de abril de 1482, pelopapa Sisto IV. ROBINSON, Pascal. “St. Bonaventura” (verbete). In: New Advent CatholicEncyclopedia. Vol. II. New York: Robert Appleton Company, 1907. Disponível em: <http://www.newadvent.org/>. Acesso em: 15 jan. 2007.

16 Nome dado à assembléia de religiosos que decide sobre matérias relativas à província,congregação ou ordem católica de que seus membros fazem parte ou, por extensão, olocal em que se reúne essa assembléia.

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publicada em 1263, no Capítulo de Pisa, para uso oficial em todas as ProvínciasFranciscanas a partir de então:

Como o varão devotado a Deus pernoitasse na oração a Deus, comocostumava, num tugúrio que ficava na horta dos cônegos, ausentecorporalmente dos filhos, eis que, lá pela meia-noite, enquantoalguns frades descansavam e outros continuavam rezando, um carrode fogo de admirável esplendor entrou pela porta da casa e virandode um lado para o outro por três vezes no domicílio. Sobre elepermanecia um globo luminoso, com o aspecto do sol, e fez a noiteficar clara. Os que estavam acordados ficaram estupefatos, os quedormiam foram acordados apavorados, e não sentiram menos aclaridade do coração que a do corpo, pois em virtude da luzadmirável, a consciência de cada um ficou despida diante dosoutros. Compreenderam, todos de acordo, vendo cada um tudoque havia nos corações dos outros, que o santo pai, ausente decorpo, estava presente em espírito, transfigurado naquela imagem,irradiado pelos fulgores supernos, e inflamado pelos ardores. Ocarro resplandecente pela virtude sobrenatural e ao mesmo tempode fogo, lhes estava sendo mostrado pelo Senhor para que comoverdadeiros israelitas caminhassem atrás daquele que, como outroElias, tinha sido feito para Deus carro e condutor dos varõesespirituais.17

É interessante que São Boaventura compare Francisco a Elias, no entantoparece muito mais provável que a cena retratada no teto da Casa de Oraçãodos Terceiros da Paraíba seja a da vida de São Francisco. Não bastassem asdescrições existentes em suas biografias medievais, há também outro detalheque justifica essa identificação: o santo italiano teria aparecido desse modo aseus irmãos frades que, recolhidos à noite, rezavam contritamente numcasebre nas cercanias de Assis. Não seria esse um episódio extremamenteapropriado para decorar uma Casa de Exercícios franciscana e incentivar aprática da oração?

Não se pode esquecer que havia, no Brasil colonial, o costume de fazercircular entre os fiéis e religiosos um sem número de breviários ilustrados egravuras avulsas que, quase sempre reproduziam, mesmo que toscamente,pinturas sacras de mestres europeus consagrados18. A imagem de SãoFrancisco no carro de fogo feita por Giotto, portanto, além de retratar umfato que não devia ser novidade para os Terceiros, por estar presente nasbiografias do santo, também era, provavelmente, conhecida dos irmãos edos frades através desse tipo de reprodução.

17 SÃO BOAVENTURA. Legenda Maior de São Francisco. São Paulo: Província dos Capuchinhosde São Paulo, s.d. [1263], cap. IV, § 4: 2-4. Disponível em: <http://www.procasp.org.br/>.Acesso em: 21 out. 2006.

18 A esse respeito, ver: LEVY, Hannah. Modelos europeus na pintura colonial. Revista doPatrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, SPHAN, n. 8, 1944, p. 7-66.

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Exemplo disso é o forro da Igreja da Ordem Terceira da Penitência de SãoFrancisco, em São Paulo, em que aparece a mesma cena, com um desenhomais próximo, até, daquele do afresco de Giotto, salvo pela ausência doscavalos à frente da carruagem. Lá estão, atônitos, os frades menores quepresenciaram a aparição de seu mestre no meio da noite de vigília e oração,detalhe que falta à cena de João Pessoa. Ao contrário da pintura existente naParaíba, o forro da Igreja dos Terceiros de São Paulo tem sua execução, possívelautoria e pagamentos correspondentes documentados nos livros contábeisda ordem. Sua feitura se deu por volta de 1792, e teria sido obra do mestre-pintor paulista José Patrício da Silva Manso19.

Fig. 6 - José Patrício da Silva Manso (atribuído),São Francisco no Carro de Fogo, c. 1792.Madeira policromada; detalhe do forro, navecentral da Igreja da Ordem Terceira da Penitênciade São Francisco, São Paulo, capital20.

19 ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. O painel do forro da capela-mor da igreja dos terceirosfranciscanos. Fênix - Revista de História e Estudos Culturais, Uberlândia, NEHAC-UFU, v. 3,n. 3, jul./ set. 2006, p. 9-10. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br/>. Acesso em:16 out. 2006.

20 Fonte da ilustração: ARAÚJO, O painel....

A força simbólica desta passagem da vida de São Francisco de Assis éinegável: trata-se de uma representação da transcendência do santo aindaquando estava entre seus seguidores, e mostraria que sua santidade já sefirmava antes mesmo de ele deixar o mundo dos vivos, pois tal tipo dearrebatamento aos céus, em meio a labaredas ou algo semelhante, nashistórias bíblicas e na hagiografia cristã, só se dava quando o indivíduodeixava o plano dos simples mortais e ia ocupar seu lugar na morada celeste.A imagem pode ser vista como uma representação emblemática da própriavisão que os Terceiros tinham sobre a Ordem dos Frades Menores, sobre seufundador e também sobre si mesmos: se São Francisco era tão especial, aoponto de protagonizar tal cena fantástica, seus seguidores também o seriam,

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pois trilhavam o caminho por ele iniciado...

Os Terceiros Franciscanos: alegoria e status na Paraíba colonial

Até hoje não se sabe de registros documentais do surgimento dos TerceirosFranciscanos em terras paraibanas. Contudo, Frei Antônio de Santa MariaJaboatão destaca, em seu Novo Orbe Seraphico Brasilico, que havia menção,em um sumário da ordem21, a um terceiro que atuava como “syndico da cazada Paraiba” já no século XVII22, o que leva o cronista a inferir que a OrdemTerceira deve ter surgido poucos anos após a instalação dos Frades Menoresna cidade.

É certo que os Terceiros utilizavam, ao menos durante a primeira metadedo século XVIII, outro espaço do conjunto franciscano para seus serviços,novenas, exercícios espirituais e orações: a Capela da Ordem Terceira – ouCapela Dourada, perpendicular à nave da igreja principal do convento – queos padres da mesa23 decidiram mandar erigir em setembro de 1704. Aindasegundo Jaboatão, “não consta, porem, quando se lhe desse principio, nem sedicesse a primeyra missa” 24.

A Casa de Exercícios, contudo, já estava em uso – mas possivelmente aindacom sua decoração por terminar – quando Jaboatão escrevia sua crônica, em175125, ano em que foi Guardião do convento paraibano:

(...) e se lhe lançou a prymeira [pedra] no seo alicerce a vinte deMayo de 1748, sendo comissario da ordem o Irmão Pregador Fr.Manoel das Chagas, Ministro o R. cura do Taypú Joseph de AndradeSouza, e vice-Ministro Domingos Baptista de Siqueira.26

Construída paralelamente à Igreja de Santo Antônio e comunicando-secom ela pela sacristia da Capela Dourada e por uma varanda que dá acesso àgalilé27, na entrada do convento, a Casa de Exercícios é templo espaçoso, comuma nave iluminada por amplos janelões que se abrem para o poente e a

21 Provavelmente Jaboatão se refere a uma crônica da ordem escrita por Frei Vicente doSalvador antes de sua História do Brasil, de 1627, mas hoje perdida. ILHA, Frei Manuelda. Narrativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil (1584-1621). Edição bilíngue, traduzidado manuscrito original em latim e comentada por Fr. Ildefonso Silveira, OFM. Petrópolis:Vozes, 1975, p. 144, nota 30.

22 JABOATAM, Frei Antonio de Santa Maria. Novo Orbe Seraphico Brasilico ou Chronica dosfrades menores da Provincia do Brasil. Reprodução facsimilar da edição de 1888. 2 vols.Recife: Assembléia Legislativa de Pernambuco, 1980 [1761], vol. 2, parte II, p. 386.

23 Os padres da mesa atuam como conselheiros do superior - no caso dos franciscanos,do guardião - de um convento.

24 JABOATAM, Novo Orbe..., vol. 2, parte II, p. 387.25 Terminada somente dez anos depois.26 JABOATAM, Novo Orbe..., vol. 2, parte II, p. 387.27 Termo com origem no francês medieval (galilée), por sua vez inspirado pelo topônimo

latino Galilæa, considerada no Antigo Testamento como a região dos gentios, emoposição à Judæa, terra do povo eleito. Por extensão, passou a designar o átrio ouvaranda de entrada nas igrejas, único local de onde os pagãos ainda não batizados

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paisagem do antigo Varadouro. Em seu subsolo há um carneiro – ou cripta –que servia como ossuário para os Terceiros28, a que se tem acesso por umaescada de calcário, coberta por um gradil de madeira-de-lei, logo em frente aoaltar-mor – passagem que possivelmente ficava oculta por um tapete duranteo uso cotidiano do templo.

O delicado acabamento das sanefas sobre as janelas, bem como a refinadatalha de seu altar-mor e de seus altares laterais juntam todas as característicasdo barroco franciscano que se espalham pelo Convento e que a Ordem foisistematizando no litoral do Nordeste brasileiro entre os séculos XVI e XVIII.Decorados com colunas salomônicas recobertas de folhagens e detalhes aouro, os altares da Casa de Oração mostram bem o gosto requintado – ou, aomenos, a tentativa de mostrar certo requinte – por parte dos Irmãos Terceirosda Paraíba.

Se em outras capitanias a Venerável Ordem Terceira da Penitência de SãoFrancisco reunia sempre os chamados bons homens da elite local, o padrãodevia se repetir na Paraíba. Por isso mesmo, o ar de requinte que os altarescedem ao ambiente da Casa de Exercícios se justifica, exatamente pelanecessidade de marcar o status de seus frequentadores em relação à sociedadeem que viviam.

A existência de uma representação de São Francisco no carro de fogo naParaíba, nesse sentido, pode ser entendida através de diversos prismas: talvezo mais interessante seja o de tentar compreendê-la como uma alegoriarelacionada ao lugar social dos frequentadores daquele espaço. O templonormalmente não devia ficar aberto para uso cotidiano da população dacidade, salvo em ocasiões especiais, como festas do calendário litúrgico ouexéquias de algum irmão terceiro, o que era usual no caso das capelas eigrejas de irmandades das Ordens Terceiras no Brasil colonial.

Assim, aquela aparição de um santo, tal qual teria acontecido no séculoXIII, poderia significar que os bons homens que tinham livre acesso àquela

podiam assistir aos serviços religiosos, sendo de uso corrente a partir do século XVII.No Brasil colonial, muitas vezes servia de local de reunião para as irmandades, quandoestas não possuíam capela ou igreja própria. Trata-se de solução arquitetônica comumnos conventos franciscanos e nas capelas rurais setecentistas do Nordeste. CORONA,Eduardo & LEMOS, Carlos A. C. Dicionário da arquitetura brasileira. São Paulo: EDART,1972, p. 236. HOUAISS, Antônio (ed.). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Edição online. São Paulo: Objetiva, s.d. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/>. Acesso em: 11mar. 2007.

28 O uso do carneiro parece ter sido interrompido a partir da década de 1830. IrineuFerreira Pinto transcreve, em seu Datas e Notas para a Historia da Parahyba, um ofício dopresidente da Província ao Guardião do Convento, de 23 de dezembro de 1831,reafirmando a determinação de construir um cemitério no terreno dos franciscanos,“tão necessaria quão vantajosa obra”, que serviria a toda a população da cidade e nãoapenas aos Frades Menores e Irmãos Terceiros. A obra, contudo, nunca foi efetivada.PINTO, Irineu Ferreira. Datas e notas para a Historia da Parahyba. Volume II. Cidade daParahyba do Norte: Imprensa Official, 1916, p. 119.

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igreja e faziam parte da Ordem Terceira Franciscana se colocavam no mesmopatamar dos Frades Menores que presenciaram a cena miraculosa, ou seja,por serem Terceiros Franciscanos, esses irmãos se diferenciavam do restantedos moradores da cidade, eram parte de um petit cortège que gravitava asesferas do poder local, frequentando cargos e disputando campos deinfluência política, utilizando-se, para isso, de um capital simbólico específico.

Ora, a idéia fulcral da alegoria barroca é justamente esta: deixar claro,somente aos iniciados, uma mensagem específica, transcrita em símbolos erepresentações que adquirem um novo sentido, dependendo do contexto elocal em que são utilizados.

À guisa de conclusão...

Discutir a arte barroca existente na Paraíba é, também, uma forma detentar compreender as relações de poder que ali se construíam durante operíodo colonial. Especialmente no século XVIII se configura uma situação suigeneris: apesar da decadência econômica e da falta de força política na relaçãocom a metrópole, a Capitania viu surgir os mais rebuscados templos barrocosde sua história.

São justamente desse período as obras de f inalização do conjuntofranciscano, incluindo a decoração dos tetos da igreja conventual e da capelados Terceiros, e a reconstrução e finalização da Igreja do Carmo e da Igreja deSanta Teresa. Todas obras de acabamento esmerado e significativa importâncianos ritos sociais – sagrados e profanos – dos moradores da sede da Capitania.

A situação de periferia na estrutura colonial – que a Paraíba sempreocupou, aliás – não basta para explicar os motivos de tanto fausto presentena decoração destas igrejas. Na verdade, certos tipos de representaçãopresente nas pinturas do conjunto franciscano só podem existir, certamente,por se encontrarem na periferia: jocosas citações a papas, cardeais e bispos,como as da igreja conventual franciscana, não existiriam em centros maisnevrálgicos do Brasil colonial. Assim, a representação da cena fantástica noforro da Casa de Orações dos Terceiros ganha um outro contorno, bem maispolítico e hierárquico, dentro dessa sociedade de lugares sociais que sediferenciavam, às vezes, apenas no campo simbólico. Como alegoria, trata-sede uma cena que nem todos estavam aptos a compreender, tanto que com ofim das atividades da irmandade na cidade se passou a interpretá-la comoutro sentido.

Como alegoria, portanto, o forro da Casa de Orações no Convento deSanto Antônio da Paraíba só tinha sentido enquanto ela era frequentadapelos Terceiros. Servia como um lembrete de sua distinção. Parece-me seresta, exatamente, a função do São Francisco no carro de fogo no forroparaibano: mostrar que os irmãos Terceiros estavam, na “hierarquia celeste”,um degrau acima dos outros simples mortais que porventura vislumbrassemaquela imagem. Trata-se, sem dúvida, de um sinal de que os irmãos faziamparte de uma casta privilegiada, num mundo em que quase sempre eram o

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29 Sobre a formação da elite paraibana nas primeiras décadas da colonização e o jogo depoderes e interesses envolvido neste processo, que certamente se estendeu pelosséculos seguintes, ver: GONÇALVES, Regina Célia. Guerra e açúcar: a formação da elitepolítica na Capitania da Paraíba (sécs. XVI-XVII). Portuguese Studies Review, Peterborough,Canadá, Trent University, v. 14, n. 1, 2006, p. 35-64.

status e o prestígio entre os pares que contavam pontos decisivos e serviamde moeda de troca para a obtenção dos disputadíssimos cargos públicos – esuas correspondentes rendas, monetárias ou simbólicas – e das raríssimasmercês da Coroa29.

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or quarenta e quatros anos esteve a Capitania da Paraíbasubordinada a Pernambuco. Segundo o decreto real deanexação, datado de 29 de dezembro de 1755, D. José, apósconsulta ao Conselho Ultramarino, resolveu extinguir o governoda Paraíba. Se a posição favorável do Conselho sobre a anexação

ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS:A CAPITANIA DA PARAÍBA NA VIRADA DO SÉCULO XVIII1

Mozart Vergetti de Menezes2

Yamê Galdino de Paiva3

externava, de um lado, a falência da Provedoria da Fazenda paraibana, quantoa sua capacidade de reproduzir a administração local, por outro, antecipavaas prédicas da política pombalina de centralização e racionalização do Estadoportuguês, principalmente no que diz respeito à contenção de gastos econcentração de recursos4.

Durante o período da anexação, o capitão-mor, Jerônimo José de Melo eCastro, relatou exaustivamente as dificuldades de se administrar um governosubordinado. Estando à frente da Paraíba por 33 anos, com certeza o governomais longo numa capitania, Melo e Castro escrevia reiteradamente o quãoinviável era manter-se sem a autoridade de governador que deveria revestirsua função, uma vez que devia obediência ao general governador dePernambuco, necessitando da aprovação deste para resoluções de questõesadministrativas e militares. Os conflitos de jurisdição incrementavam o rol dequeixas do capitão-mor da Paraíba. As súplicas rogadas ao rei para que “secompadeça de quem há 29 anos geme na rigorosa Subordinação” e o transfirapara um governo livre a fim de que “possa testificar a honra com que sirvo aVossa Majestade”5 foram inúteis. Melo e Castro faleceu em 1797 na Paraíbasem ter presenciado a realização de seu principal desiderato: o fim da

1 Este texto deriva de um projeto de iniciação científica intitulado Fernando Delgado Freirede Castilho, governador da Capitania da Paraíba: um ilustrado nos trópicos, financiado peloPIBIC/UFPB/CNPq e executado entre agosto de 2007 e julho de 2009.

2 Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto doDepartamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação emHistória da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador do Grupo de Pesquisas Estadoe Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq). E-Mail:<[email protected]>.

3 Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba. Exbolsista PIBIC/UFPB/CNPq. E-Mail: <[email protected]>.

4 MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em Ação: fiscalismo, economia e sociedadena Capitania da Paraíba (1647-1755). Tese de Doutorado (História Econômica). Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Humanas; Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005.

5 AHU_ACL_CU_014, Cx. 31, D. 2264 e AHU_ACL_CU_014, Cx. 30, D. 2229, respectivamente.

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anexação.

Desta feita, o desenlace político-administrativo separando as duascapitanias só foi anunciado pela carta de 17 de janeiro de 17996, ou seja,durante o governo de Fernando Delgado Freire de Castilho. Sendo o últimocapitão-mor subordinado e o primeiro da situação subsequente, FernandoDelgado é considerado um dos porta-vozes da desanexação.

Designado, por carta régia de 23 de outubro de 1797, para investigar asituação da Capitania, principalmente nos aspectos fiscais e produtivos,Fernando Delgado assumiu o governo da Paraíba com uma importante missão:analisar as vantagens ou desvantagens da subordinação da Paraíba aPernambuco. Em cumprimento às determinações metropolitanas, escreveuuma memória sobre a Capitania na qual descreveu suas características naturais,as produções desenvolvidas e comercializadas, a situação da segurança, oscorpos militares, os obstáculos que retardavam seu crescimento, os prejuízosprovocados pela subordinação a Pernambuco, o desprezo da autoridade e asvantagens que a Fazenda Real e os habitantes obteriam com a separação dePernambuco7.

Em diversas correspondências à Secretaria de Estado da Marinha e DomíniosUltramarinos, Fernando Delgado foi categórico e incisivo nos seus argumentossobre as agruras da anexação. Reclamava da falta de regimento pelo qualpudesse se guiar, das arbitrariedades e abusos do general governador dePernambuco, dos prejuízos do comércio e da falta de negociantes. Ressaltavatambém as potencialidades da Paraíba e suas possibilidades de crescimento.Pode-se inferir que as demonstrações favoráveis de Castilho sobre a capitaniaque administrava embasaram a decisão régia pela desanexação.

Incumbido de apresentar, como dissemos, as inconveniências ou não dese manter na Paraíba um governo subordinado, Fernando Delgado, nas suasmissivas, apresentara uma postura ilustrada que pode ser visualizada namaneira como conduz e constrói seu discurso8. Seus ofícios, memórias e cartascompõem preciosas informações acerca da Paraíba de fins do século XVIII.Seu olhar ilustrado, aprimorado, num sentido mais amplo, pelo movimentode profusão das ciências naturais em Portugal, captou as potencialidades daCapitania, legando à posteridade valorosas avaliações sobre o quadro natural,humano e econômico destas fainas setentrionais.

No conjunto de levantamentos realizados sobre a Capitania, ematendimento à referida ordem de 23 de outubro de 1797, insere-se umasequência de dados relativos à produção/ consumo/ exportação/ importação,número de habitantes, de casamentos, nascimentos e mortes, moléstias

6 A carta régia que determina o fim da subordinação da Paraíba a Pernambuco encontra-se em: PINTO, Irineu Ferreira. Datas e notas para a Historia da Parahyba. Volume I. Cidadeda Parahyba do Norte: Imprensa Official, 1908, p. 214.

7 AHU_ACL_CU_014, CX. 34, D. 2471.8 Fernando Delgado frequentou a Universidade de Coimbra e possuía estudos

matemáticos, conferir em: AHU_ACL_CU_014, Cx. 32, D. 2372.

M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA

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obituárias e ocupação dos habitantes da Paraíba. Esses dados encontram-sedisponíveis para os anos de 1798 a 1805 (não há, contudo mapas para o anode 1803), extrapolando, portanto, o governo de Fernando Delgado eabrangendo o dos seus dois sucessores, Luís da Motta Fêo e Amaro JoaquimRaposo de Albuquerque. O escopo da avaliação neste texto incide na análisedos mapas de exportação/ importação e dos números de habitantes daCapitania9. Procuramos, então, através dos mesmos, verificar as comunicaçõescomerciais da Capitania, os produtos exportados e importados, os valoresdessas transações e levantar quantitativamente sua composição demográfica.

A Capitania da Paraíba, da mesma forma que o restante da colôniabrasileira, sentia os efeitos das mudanças políticas vivenciadas em Portugal.Para compreender de maneira mais apropriada as manifestações ocorridasna dimensão local, faz-se necessário unir os extremos do Atlântico, uma vezque os ditames políticos metropolitanos encontravam acolhida, ou ecoavamde maneira mais sutil, nas administrações ultramarinas. É adequada, portanto,uma breve digressão a fim de observar como as mudanças ocorridas noPortugal setecentista repercutiram na formação e nas ações de FernandoDelgado.

Certo isolamento cultural caracterizava Portugal até a primeira metade doséculo XVIII10. O diminuto país, circunscrito pelas terras de Espanha e pelaságuas do Atlântico, compensava sua pequenez geográfica projetando-se noalém-mar através de suas possessões, que margeavam a própria circunferênciado planeta, formando uma área de poder e influência caracterizada peladescontinuidade territorial e pluralidade cultural11.

Uma habilidade administrativa dotou Lisboa, centro político do mundoportuguês e do ultramar, de faculdades que lhe permitiu gerenciar tão vastoe diversificado império. Derivada da confluência de pessoas de diversas partesdo mundo e de variadas posições sociais, Lisboa, desde o século XVI, eraconsiderada uma cidade cosmopolita, ambiente “colorido e multiétnico”12.

Estranhamente, o Portugal agregador de povos de diferentes origens,especialmente da África e Ásia, distanciava-se do restante da Europa. Aprivilegiada abertura marítima o levou a conectar-se muito mais com os outros

9 A documentação em tela integra o conjunto de documentos avulsos da Capitania daParaíba existentes no Arquivo Histórico Ultramarino.

10 NOVAIS, Fernando Antônio. Aproximações: ensaios de história e historiografia. SãoPaulo: Cosac Naify, 2005, p. 167.

11 HESPANHA, Antônio Manuel & SANTOS, Maria Catarina. Os poderes num Impériooceânico. In: MATTOSO, José (dir). História de Portugal. Quarto volume: o Antigo Regime(1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1998. BICALHO, Maria Fernanda Baptista.Mediação, pureza de sangue e oficiais mecânicos. As câmaras, as festas e a representaçãodo Império Português. In: PAIVA, Eduardo França & ANASTÁCIA, Carla Maria Junho(orgs.). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e viver (séculos XVI a XIX). São Paulo:Annablume; PPGHis-UFMG, 2002.

12 GRUZINSKI, Serge. 1480-1520: as origens da colonização. São Paulo: Companhia dasLetras, 1999, p. 53.

ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS

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continentes do que com seus “irmãos europeus”. Essa atitude promoveu oencapsulamento português com relação à cultura desenvolvida pelos paísesde vanguarda, ou seja, França, Inglaterra, Alemanha e Itália. Durante muitotempo, Portugal não recebeu a iluminação do ideário da Razão num fluxocontínuo. O “obscurantismo” que o acometia na esfera das ciências começou,timidamente, a dissipar-se no alvorecer do século XVIII. Contudo, teria queesperar mais alguns decênios para que esse quadro fosse revertido e Portugalpudesse compartilhar do que havia de mais sofisticado em termos deIlustração.

A Ilustração portuguesa possui uma singularidade: a da precocidade dasreformas e da importação das idéias. Característica esta decorrente dofechamento de Portugal para com a cultura desenvolvida nos centrosirradiadores do movimento ilustrado, bem como do seu atraso econômico.Este constituía motivo de preocupação dos homens de governo desde finsdo século XVII. Visando à reversão dessa situação, buscou-se compreenderas causas de tal retardamento e os meios para superá-lo.

Na medida em que o ‘atraso’ era visto em relação à Europa dealém-Pirineus, é claro que se entendia que, para explicá-lo, seimpunha a mobilização da nova Filosofia dos países adiantados –daí o caráter de importação das idéias, de atualização. Por outrolado, as reformas eram vistas não apenas como a ‘promoção dasLuzes’, mas também como uma maneira de superar o atraso, tirara diferença (...).13

Inicialmente, a discussão sobre temas ilustrados ficou circunscrita àssociedades filosóficas e aos debates privados, assim como no restante daEuropa. No caso português, os padres oratorianos tiveram atuaçãoimportante na penetração e difusão das idéias iluministas. Um outro redutode florescimento da filosofia racionalista foi o do grupo dos “estrangeirados”,assim chamados, pejorativamente, “devido à sua obsessão por modelosestrangeiros”. Composto por homens pertencentes ao governo metropolitanoe ultramarino, os estrangeirados discutiam essencialmente sobre economia epolítica. Um dos principais expoentes do grupo foi D. Luís da Cunha. Suaestada na Inglaterra, França e outros países como embaixador portuguêsproporcionou-lhe uma larga experiência em diplomacia. Amparado em suavivência internacional, Luís da Cunha buscou compreender a fragilidade dePortugal no contexto europeu e do império e a sua dependência para com aInglaterra. Ele atribuía a situação econômica de Portugal, em parte, a umestado mental da população, isenta de empreendedorismo. O excesso dereligiosos, a funesta Inquisição e a perseguição aos judeus tambémcontribuíam para a fraqueza do Estado português, segundo Da Cunha14.

13 NOVAIS, Aproximações, p. 168.14 A Congregação do Oratório ingressou em Portugal após 1640 e seus representantes

foram notáveis defensores das ciências naturais, das experimentações científicas e de

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Ao báratro do fanatismo e ignorância em que a alma portuguesa,no meado do século XVIII, mergulhava, alguns privilegiados espíritosescapavam ainda. Na muralha que oprimia as inteligências haviafendas.15

D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão, Sebastião José de Carvalho eMelo e posteriormente Rodrigo de Sousa Coutinho eram os indivíduosdotados de um apanágio que lhes permitia uma ampla e aguçada visão sobrea administração e o governo portugueses. Sebastião José, o ministroplenipotenciário de D. José I (1750-1777), foi um dos ávidos representantesdas idéias ilustradas. Como enviado português em Viena (1744-1749) eembaixador na Inglaterra (1739-1743), o futuro Marquês de Pombal amealhouconhecimentos sobre economia, política e diplomacia que foramindispensáveis para sua compreensão acerca do descompasso entre Portugale os centros difusores do Iluminismo. Mais especificamente, Pombal estavainteressado em entender os fatores que promoviam o crescimento econômicoda Inglaterra, visando, com isso, ao sobrepujamento da dependênciaportuguesa para com aquele país.

Inspirado em teóricos clássicos, especialmente Colbert, Pombal procedeua uma política econômica amparada no mercantilismo. Um mercantilismobastante ibérico, tendo em vista que não atendia exclusivamente o âmago dapolítica mercantilista, isto é, a ação do Estado na busca da manutenção deuma balança comercial favorável. “Seu objetivo era utilizar técnicasmercantilistas – companhias de comércio, regulamentação, taxação e subsídios– para facilitar a acumulação de capital por comerciantes portugueses,individualmente”16. Sebastião José buscava, com tais medidas, fomentar umacamada de comerciantes portugueses capazes de competirinternacionalmente e de rivalizar com os ingleses. Portanto, o mercantilismopombalino intentava menos aumentar o fluxo de metais preciosos paraPortugal do que mantê-lo internamente. Afinal, os metais preciosos,especialmente o ouro brasileiro, que chegavam a Lisboa eram transferidos,majoritariamente, para a Inglaterra em decorrência dos tratados comerciaisexistentes entre os dois países, a exemplo do Tratado de Methuen (1703), oque acarretava graves prejuízos para o Estado português.

Durante os 27 anos que esteve à frente da Secretaria de Estado do Reino(1750-1777), Pombal realizou mudanças substanciais, tanto em Portugal

métodos pedagógicos baseados no aprendizado da ortografia e gramática portuguesasdiretamente, sem a intermediação do latim. Um dos oratorianos mais atuantes emPortugal, especialmente na área pedagógica, foi Luís Antônio Vernei, autor de Overdadeiro método de estudar que lhe rendeu vários agraves com os jesuítas, principaisresponsáveis pelo ensino superior em Portugal. Sobre isto e sobre a geração dosestadistas estrangeirados: MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo doIluminismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 11-16.

15 AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e a sua época. São Paulo: Alameda, 2004,p.96.

16 MAXWELL, Marquês de Pombal, p. 67.

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quanto no restante do império. Suas ações incidiram basicamente nos camposadministrativo, econômico, fiscal, político, legislativo, religioso e educacional.As reformas pombalinas ambicionavam a modernização do Estado portuguêse a racionalização da máquina administrativa. O Estado passava a ampliar suaárea de influência e a agir de maneira mais contundente nas diversas esferasda sociedade. Na educação, as ações do Marquês estavam direcionadas aoensino de técnicas – a exemplo da difusão das partidas dobradas –, para oscomerciantes, através das Aulas de Comércio e à formação de um corpoburocrático que desse prosseguimento às suas reformas. Visava, assim, numadimensão mais ampla, à criação de uma burguesia nacional forte. Ademais,reformou a Universidade de Coimbra (1772) e incluiu nos currículos escolaresdisciplinas de latim, retórica, f ilosofia, química, etc., ou seja, camposvalorizados pela Ilustração. Outrossim, ganhou destaque a medicina peloestabelecimento de laboratórios nas universidades e pela possibilidade dedissecação de cadáveres, prática antes não permitida pela influência dosjesuítas na cultura e educação portuguesas17.

Com relação às políticas voltadas para a colônia brasileira, destacam-se acriação das Companhias de Comércio do Grão Pará e Maranhão (1755) e a dePernambuco e Paraíba (1759), o fim da discriminação dos ameríndios e oincentivo à miscigenação entre estes e os brancos, a instituição da derrama, aproibição de comércio com os comissários volantes, a expulsão dos jesuítas,a transferência da capital política de Salvador para o Rio de Janeiro, adiversificação agrícola, entre outras. Carvalho e Melo procurava, com isto,reforçar os laços comerciais entre a colônia brasileira e a metrópole portuguesa.A dependência de Portugal para com o Brasil era evidente e a crise do SistemaColonial já se anunciava, daí a necessidade de revigorar os vínculos entre osdois lados do Atlântico.

As políticas pombalinas não foram de todo desfeitas com a Viradeira,designação dada ao governo de D. Maria I por reverter o direcionamentopolítico e econômico do Marquês. É certo que parte do corpo de funcionáriosfoi mudada e que algumas realizações empreendidas por Pombal foramalteradas, como a extinção das referidas Companhias de Comércio. Apesardisto, muitos dos direcionamentos de Pombal foram mantidos e outros,intensificados.

(...) a queda do marquês de Pombal, que ocorreu em seguida àmorte de José I, sua perseguição, a libertação dos presos políticos,enfim, a “viradeira”, não passaram de fenômenos conjunturais. Aequipe dirigente, de índole ilustrada, continuou basicamente amesma, com novos acréscimos. Ainda mais: as reformas ensejandoos primeiros frutos, as iniciativas foram avante, ampliando o raiode ação. O final do século, longe de um retrocesso, marca um

17 Para um panorama geral do período pombalino ver: MAXWELL, Marquês de Pombal.Para a política econômica, ver: FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina:política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982.

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avanço, aparece como um desdobramento: o ponto mais alto daIlustração em Portugal.18

No reinado de D. Maria I (1777-1816)19, a presença fisiocrática fez-se sentirde maneira mais aguda. A atenção dada durante o governo pombalino àspráticas agrícolas ficou mais circunscrita ao mundo ultramarino, o qual deveriafornecer matérias-primas para a incipiente indústria portuguesa. Na regênciamariana, a agricultura ganhou um destaque especial. Incentivaram-se váriosestudos sobre os recursos e as potencialidades da natureza em Portugal enas colônias, a fim de se elaborar uma História Natural do Reino e Ultramar.Nesse sentido, a atuação da Academia Real de Ciências de Lisboa20, criada em1779, foi fundamental. As viagens filosóficas, estimuladas pelo governo,tinham como principal finalidade o inventário do Novo Mundo. Imbuídos deuma olhar cientificista, naturalistas e viajantes deveriam diagnosticar demaneira pragmática a natureza, coletando e identif icando espécies edescrevendo o povo e os ambientes. Os agentes da Coroa tambémparticipavam desse levantamento empírico de dados, através da confecçãode memórias sobre as terras de sua jurisdição. “Das memórias (...), váriaspodem ser consideradas ‘regionais’, isto é, dizem respeito a uma província,região, capitania, ou um simples conselho”21.

As memórias constituíram um importante instrumento de conhecimentodo Novo Mundo, uma vez que apresentavam, em sua maioria, a geografiafísica e econômica de determinada área, incluindo-se aí o caráter moral doelemento humano, além de apontar os problemas e sugerir soluções. Assim,a mineração, as matérias-primas, o sal, os pigmentos, as madeiras e aagricultura foram temas sobressaltantes nesse tipo de documentação. Anatureza passava a adquirir um sentido utilitário e inteligível pela razão. Comoa intenção da metrópole lusa era promover o desenvolvimento econômicodo reino, tornava-se imprescindível a perscrutação das virtualidades da suaprincipal colônia – o Brasil.

No bojo das transformações sofridas por Portugal através das reformaspombalinas, do despertar de um cientificismo visualizado nas mudançaspedagógicas, do estímulo às ciências naturais, do tumultuado governo de D.Maria I e do avanço da cultura ilustrada, insere-se Fernando Delgado Freirede Castilho. Designado a assumir o governo da Capitania da Paraíba em 1797,

18 NOVAIS, Aproximações, p. 168.19 A partir de 1792, em virtude dos problemas de saúde de D. Maria, seu filho D. João VI

assume o trono como príncipe regente.20 Um interessante estudo sobre a atuação e o significado das práticas ilustradas

promovidas pela Academia Real das Ciências de Lisboa encontra-se em: MUNTEALFILHO, Oswaldo. A Academia Real das Ciências de Lisboa e o Império ColonialUltramarino (1779-1808). In: FURTADO, Júnia Ferreira (org). Diálogos Oceânicos: MinasGerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

21 NOVAIS, Aproximações, p. 169.

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Fernando Delgado sintetiza a nova fase da ilustração portuguesa. “Filho”das reformas pombalinas, especialmente no concernente às alterações nocampo econômico, com a criação da Escola do Comércio, e às pretensões domarquês em formar funcionários com uma mentalidade e conhecimentosteóricos adequados à etapa de reestruturação do Império português queiniciava, e sendo coevo da ampliação do campo científico promovido pelaAcademia Real das Ciências de Lisboa, pode-se considerar Fernando Delgadocomo um ilustrado a serviço da Coroa.

No contexto de investigação das plagas brasileiras, acima falado, Castilhorecebeu ordens régias para realizar um levantamento da capitania que iriaassumir. Muito mais do que um estudo direcionado a conhecer os fatoresbióticos e abióticos da Capitania, as instruções dadas ao mesmo tinham umobjetivo mais específico: o de averiguar a conveniência ou não da anexaçãoda Paraíba a Pernambuco. Segundo a resolução de D. Maria I,

Havendo S. Mag.e nomeado V. Mce para o governo da Paraíba, é amesma senhora servida, que eu lhe dê as seguintes instruções, queé consequente às suas luzes, conhecimentos e zelo com queprocurará distinguir-se no real serviço. Havendo-se essa capitaniada Paraíba incorporado na de Pernambuco, a que está sujeita, emconsequência de uma Consulta do Conselho Ultramarino, ordena S.Mag.e que V. Mce examine com a maior imparcialidade se a utilizaçãoque tira a Real Fazenda desta incorporação pela economia que sepode resultar de não manter um governo totalmente independente,e equivale aos prejuízos que pode receber seja da falta de execuçãodas reais ordens, seja da menos ativa cobrança das dívidas reaisdependente de Pernambuco, seja de se manter um conflito dejurisdição igualmente nocivo ao Real Serviço e aos interesses doshabitantes da capitania, que também podem receber algumvexame de um sistema, que os faz dependentes para o seu comércioda praça de Pernambuco.V. Mce fará subir a Real Presença não só a fiel exposição de tudo oque acabo de notar-lhe, mais ainda as reflexões que lhe sugerir oestado atual da capitania e das suas produções afim de V. Mce abracea mais justa resolução sobre a conveniência de fazer esse governoindependente ou de o conservar dependente. 22

Esta era, pois, a missão precípua de Fernando Delgado. Procedendo a umexame da situação econômica da Capitania, suas produções e comércio, dosrecursos existentes, da segurança e do corpo militar, o atual capitão-mordeveria, após a exposição e análise de tais aspectos, informar à Secretaria deEstado da Marinha e Domínios Ultramarinos se a subordinação da Paraíba àCapitania de Pernambuco era onerosa ou não para aquela e para a FazendaReal. Como governador, era sua obrigação “animar e promover as culturas já

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22 PINTO, Datas e notas..., p. 180.

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existentes e introduzir as que possam ser novas e venham a concorrer paraenriquecer esta capitania”. Não obstante, era responsável também por“promover o consumo de todos os produtos do Reino como são, vinhos, azeite,sal e todas as manufaturas”23.

As luzes de Castilho extrapolavam, contudo, essa resolução específica.Além da memória escrita sobre a Capitania, que abordava os itens expostosnas instruções recebidas, ele foi autor de outras cartas, relatórios e memóriasnas quais expunha as potencialidades da Capitania da Paraíba e de outrosespaços24. Em suas correspondências, Fernando Delgado fala da abundânciade ricas matas, de rios navegáveis, bons portos e ancoradouros, da fertilidadeda terra para o desenvolvimento de diversas produções, desde o açúcar atéos gêneros alimentares, das excelentes ribeiras propícias para a criação degado, da prontidão e lealdade dos habitantes para com os interesses da Coroa,entre outros aspectos. A seu ver, o principal problema da capitania encontrava-se na subordinação da mesma à vizinha Pernambuco. Para ele, o fim daanexação seria o passo inicial e mais importante para melhorar o estado daCapitania, especialmente através da agricultura e comércio, considerados “osmais importantes ao aumento e riqueza desta capitania e que necessitam deuma independência absoluta de Pernambuco”25.

Como resultado da supracitada ordem régia de 1797, foi confeccionadauma série de mapas sobre produção/ consumo/ exportação/ importação epopulação – número de habitantes, de casamentos, nascimentos e mortes,das principais moléstias obituárias e de ocupação dos habitantes – da Capitaniada Paraíba entre os anos de 1798 e 1805. Antes de apresentarmos asinformações relativas aos circuitos mercantis e à população da Capitania daParaíba, no intervalo de 1798 a 1805, faz-se necessário uma reflexão sobre asituação econômica da mesma no período final da anexação.

A historiografia clássica paraibana é consensual quanto à debilidadefinanceira e produtiva da Capitania da Paraíba. A exiguidade das rendas, abaixa lucratividade do açúcar, a escassez de mão-de-obra escrava africana, odiminuto nível de produção dos gêneros de subsistência e o fraco e quase

23 PINTO, Datas e notas..., p. 181-182.24 Dentre a produção de Fernando Delgado destacam-se a memória escrita sobre a

capitania (AHU_ACL_CU_014, Cx. 34, D. 2471); a descrição das técnicas e culturas dacana-de-açúcar e do algodão (PINTO, Datas e notas..., p.189-198) e as memórias sobre asmatas da Paraíba e sobre a Ilha de Fernando de Noronha (AHU_ACL_CU_014, Cx. 33,D. 2436). Outrossim, durante seu governo (1798-1802), foram enviadas amostras deespécies vegetais e um relatório sobre a fauna e flora do sertão da Capitania(AHU_ACL_CU_014, Cx. 35, D. 2509) elaborado por Manuel de Arruda Câmara, incumbidotambém de fazer uma memória sobre as potencialidades para o fabrico de linho naParaíba (AHU_ACL_CU_014, Cx. 36, D. 2610). Segundo Celso Mariz, Fernando Delgadoera favorável à substituição das bolandeiras de descaroçar algodão, bastanterudimentares, pela invenção de Francisco de Arruda Câmara. MARIZ, Celso. Evoluçãoeconômica da Paraíba. 2 ed. João Pessoa: A União, 1978, p.15-16.

25 Narração de Fernando Delgado sobre o estado em que se acha a Capitania da Paraíbaem 1799. PINTO, Datas e notas..., p. 209.

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inexistente comércio interno são os principais fatores apontados para explicaro estado crítico no qual estava mergulhada a Paraíba. Segundo Horácio deAlmeida,

(...) o estado em que [Fernando Delgado] encontrou a Capitaniaera de estagnação geral.Fontes de rendas esgotadas. Engenhos desprovidos de safra eescravos. Aparelhamentos fabris estragados. Produtos agrícolassem preço no mercado. Comércio inexistente. Os negociantes dapraça não passavam de meros agentes do Recife e nesta qualidadeoprimiam o povo.26

É certo que o período de subordinação (1755-1799) da Paraíba aPernambuco correspondeu a uma difícil fase para a primeira. Não se pode,todavia, reduzir unicamente esse “atraso” da Capitania ao julgo político-administrativo no qual esteve submetida por mais de quarenta anos. Váriosfatores concursaram para debilitá-la. Às dificuldades de gerenciar um governosubordinado, somam-se as discutidas consequências provocadas pela atuaçãoda Companhia de Comércio, as secas que assolavam as produções e apopulação, e os próprios obstáculos impostos à reestruturação da Capitaniaapós a expulsão definitiva dos holandeses em 1654. Não se deve esquecerainda das iniquidades e usurpações dos administradores, práticas comuns àcolônia como um todo, que prejudicavam qualquer esforço direcionado àpromoção da agricultura, comércio e aumento das rendas reais. Havia também,no caso da Paraíba, o entrave colocado pelo eterno atraso do envio do dízimo27

pela Alfândega de Pernambuco para esta Capitania.

Não obstante a fragilidade da Capitania da Paraíba no momento em queFernando Delgado foi investido no cargo de capitão-mor, os mapas deprodução, importação e exportação mostram as principais produções daCapitania, destinadas ao consumo interno e/ou à exportação, bem como osartigos importados pela mesma. Se os números relativos à totalidade daprodução, consumo, exportação e importação apresentam verossimilhançacom o estado da capitania acima exposto, significa que a Paraíba tinha ótimaspossibilidades de crescimento mediante sua agricultura e comércio. Mas,parece-nos haver uma incoerência entre os dados e uma economiapraticamente paralisada, como dizem os coevos e os historiadores clássicos.

26 ALMEIDA, Horácio de. História da Paraíba – Vol. II. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1978, p. 87.

27 Desde 1723 a arrematação do dízimo da Paraíba se dava na praça de Pernambuco, emum só contrato. Pernambuco ficava responsável por enviar vinte mil réis anuais àParaíba, quantia, teoricamente, considerada equivalente à arrecadação desse impostonesta capitania. As delongas no envio desta importância e mesmo a sua não remessageravam atritos entre o governador da Paraíba e o de Pernambuco. Não raro, aquelesubia à real presença a pouca atenção e mesmo o descuido do general governador dePernambuco na execução de sua obrigação. Para mais informações, ver: MENEZES,Colonialismo..., capítulo IV.

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A quantidade do que era produzido e exportado e os respectivos valores emdinheiro arrecadado evidentemente não caracterizam uma opulência.Contudo, espelha a potencialidade econômica da mesma. Os artigosimportados e seu consumo interno, especialmente para a área do sertão daCapitania, corroboram para a sustentação dessa idéia: a Paraíba não pareciatão decadente quanto se coloca(va).

Os mapas de exportação e importação das vilas e freguesias da Capitaniada Paraíba explicitam a existência de circuitos mercantis envolvendo essaslocalidades e as demais Capitanias do Norte – Rio Grande do Norte, Ceará ePernambuco. Sempre se apontou o porto do Recife como sendo a principal,e/ ou mesmo, a única via de escoamento das produções da Paraíba. Segundoesse entendimento o porto da Paraíba nunca apresentou grande atividade.Permaneceu sufocado pelo da capitania vizinha que embarcava quase atotalidade das mercadorias da Paraíba, seja do litoral ou do interior, comoafirma Almeida:

A estrada principal que vinha do sertão fazia ligação direta com oRecife, que absorvia tudo quanto a Paraíba produzia. Uma varianteé a que tomava rumo da capital paraibana. Pela estrada principalescoavam-se os produtos do sertão. 28

Mais recentemente, a mesma acepção é encontrada em Roberto Smith,que, ao falar do perímetro da Capitania de Pernambuco, composto porAlagoas (parte integrante do seu território) e as capitanias a ela anexas, istoé, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, afirma que essa área correspondia à“região de controle mercantil e colonial exercida a partir da cidade e porto deRecife, único ponto de entrada e saída do comércio monopolizado através daCapitania com a Metrópole”29.

Algumas vias de comunicação da Capitania da Paraíba com suas vizinhasforam reverenciadas por alguns autores como Caio Prado Júnior e IrineuJoffily. O primeiro, no capítulo sobre vias de comunicação e transporte deFormação do Brasil Contemporâneo, diz que o ponto central desses caminhosque interligavam o espaço que hoje compõe o atual Nordeste encontrava-seno Piauí. Daí partia três outras vias, dirigidas para leste, sudeste e sul. A linhado leste atingia parte do território da Capitania da Paraíba, maisespecificamente Pombal e Patos, incrustados no sertão paraibano, mastambém passando pela atual Itabaiana – localizada na área que hojecorresponde ao agreste –, onde se bifurcava em duas direções, uma queconduzia à Cidade da Paraíba, e outra que descia para Pernambuco. Em suaspalavras:

28 ALMEIDA, História da Paraíba, p. 87.29 SMITH, Roberto. A presença da componente populacional indígena na demografia

histórica da Capitania de Pernambuco e suas anexas na segunda metade do séculoXVIII. In: XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Anais... OuroPreto: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2002, p.7.

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A linha leste dirige-se para o Ceará, onde passa por Arneirós e Icó;daí se dirige à Paraíba, que atravessa pelo eixo do seu território,tocando em Pombal e Patos, alcançando o rio Paraíba queacompanha até o lugar onde hoje está Itabaiana. Aí se bifurca,continuando um ramo pelo mesmo rio até a capital da capitania;infletindo o outro para o sul em demanda de Pernambuco.300

Irineu Joffily também distingue alguns caminhos que intercomunicavacomercialmente a Paraíba às capitanias vicinais. Reconhecendo CampinaGrande como importante conduto de integração entre litoral e sertão, vistoque a mesma constituía uma feira de gado, Jofilly identifica-a como o pontode união das duas artérias do sertão, denominadas estradas do Seridó e deEspinharas. Diz o autor:

A primeira [estrada do Seridó] tomava o rumo de noroeste, passandopelos lugares onde hoje estão as povoações de Pocinhos e S.Francisco e territórios adjacente à de Pedra Lavrada, onde descia aBorborema (fralda ocidental), dava no rio Seridó, e acompanhando-lhe as margens penetrava na Capitania do Rio Grande do Norte atéos sertões do baixo Piranhas e Apody.Transpondo os limites destacapitania, de um lado, procurava de novo o Paraíba pela ribeira dePorcos ou Patú, e de outro atingia as águas do baixo Jaguaribe, noCeará.A estrada de Espinharas tomava a direção de oeste passando porgrandes travessias; tocava na pequena ribeira de Santa Rosa, adez léguas, e nove mais adiante na povoação dos Milagres, no rioTaperoá; e acompanhando mais ou menos as margens deste rio,tocava na lagoa do Batalhão, e descendo a Borborema seis léguasalém dava nas águas do rio Piranhas ou Espinharas, queacompanhava até o lugar onde hoje é a vila de Patos. Aí dividia-sea estrada; à esquerda dirigia-se para o Piancó, tendo umdesenvolvimento de cerca de 40 léguas até os confins da respectivaribeira; à direita seguia em linha reta para a povoação das Piranhas,depois vila e cidade de Pombal; continuando para Sousa, no rio doPeixe, passaria depois mais ou menos próximo aos lugares hojeocupados pela Vila de S. João do rio do Peixe e cidade de Cajazeiras,em seguida penetrava na capitania do Ceará, onde subdividia-seservindo a todo o vale dos Cariris Novos e sertões do Icó, Inhamúnse Crateús, por onde entrava na capitania de Piauí.Esta foi a grande artéria que ligava à capital aos sertões maisafastados da capitania, ligando igualmente estes aos de suasvizinhas, e esta comunicação tem-se mantido sem a menor

30 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense,2004, p. 241.

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interrupção até hoje. 31

Estas estradas constituíam algumas vias pelas quais circulavam os produtosidos da e vindos para a Paraíba. Os mapas de exportação e importação indicamos portos de origem e destino dessas mercadorias. Aracati, Açú, Mossoró,Paraíba, Recife, Goiana, Itamaracá, Olinda, Lisboa e Porto compunham ospontos de embarque das produções da capitania e/ ou de recebimento dosartigos enviados da metrópole. Esta constatação rompe o monopólio exclusivoexercido pelo porto do Recife sobre as produções da Paraíba. Certamente,Recife continuava a ser o principal local de escoamento dos produtos daquelae de entrada de outros, mas deixa de ser pensado como a única via de fluxode mercadorias, seja saída ou abastecimento.

O litoral compreende as paróquias da Cidade de Nossa Senhora das Neves,do Conde, Alhandra, Taipú, Bahia de São Miguel, Mamanguape e Monte Mór.Já o sertão corresponde às paróquias de Pombal, Patos, Pilar, Sousa, VilaNova da Rainha, Cariri Velho, Cariri de Fora (posterior Vila Real de São João doCariri), Santo Antônio do Piancó. Sabemos da tenuidade que é dividir aCapitania da Paraíba em dois grupos tão rígidos. Contudo, essa separaçãopermite uma profícua visualização das atividades econômicas e da distribuiçãoda população. O critério adotado foi o da produção econômica local. Assim,as localidades cuja principal atividade estava direcionada à agroexportaçãoaçucareira foram classificadas como pertencentes ao litoral. Já àquelasvoltadas para as culturas do algodão e da pecuária e seus derivados passarampara o grupo do sertão. A vila de Pilar gerou uma dificuldade. Segundo a

31 JOFFILY, Irenêo. Notas sobre a Parahyba. 2. ed. facsimilar. Brasília: Thesaurus, 1977, p.225-226.

32 AHU_ACL_CU_014, Cx. 33, D. 2423, AHU_ACL_CU_014, Cx. 35, D. 2510, AHU_ACL_CU_014,Cx. 36, D. 2617, AHU_ACL_CU_014, Cx. 38, D. 2711, AHU_ACL_CU_014, Cx. 39, D. 2764,AHU_ACL_CU_014, Cx. 41, D. 2890, AHU_ACL_CU_014, Cx. 41, D. 2891,AHU_ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3273, AHU_ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3274,AHU_ACL_CU_014, Cx. 47, D. 3318, AHU_ACL_CU_014, Cx. 47, D. 3319.

GRÁFICO 1: EXPORTAÇÃO E IMPORTAÇÃO NA CAPITANIA DA PARAÍBA(1798-1805)32

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atual classificação geográfica, Pilar pertence à região geográfica da Depressãoe à mesoregião da Mata Paraibana. Considerando-a no limiar dos dois grupos,optamos por colocá-la no Sertão, visto que, segundo os mapas econômicostrabalhados, os principais gêneros produzidos e exportados pela vila eramalgodão e couros.

As quantias resultantes dos movimentos de importação e exportação paraas paróquias do litoral e do sertão da Capitania da Paraíba revelam apredominância do primeiro espaço nas rendas da Capitania.O litoral, lugarpor excelência da agromanufatura açucareira, era responsável por mais de50% do volume das importações e exportações da Capitania. Emcontraposição, ao sertão é reservada a importância de até 40% dessasdemandas. Não diminuindo a influência da economia litorânea para as receitasda Paraíba, queremos destacar a atuação do sertão para o aumento daquelas.Em outro estudo constatamos, já para 1732, a importância do imposto dosubsídio da carne para o incremento da receita paraibana. Apesar de ofornecimento da carne ser uma atividade de abastecimento interno,chamamos a atenção para esse espaço, que a partir da primeira metade doséculo XVIII começa a florescer economicamente 33.

Isto pode ser verificado nas ligações mantidas pelas vilas do sertão com asCapitanias de Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e a própria Paraíba. Adocumentação permite evidenciar um afluxo de manufaturas e mercadoriasvariadas vindas pelos portos dessas capitanias. Se produtos como tecidosfinos, chapéus, louças, etc., afluíam para aí, é porque havia um mercadoconsumidor para os mesmos. Consequentemente, as atividades econômicassertanejas deveriam gerar condições para comercialização e consumo dessestipos de bens.

Os produtos exportados pela Capitania da Paraíba consoam com a suacondição colonial. São gêneros de subsistência, couro e seus derivados, açúcar,tabaco, algodão, gado vacum e cavalar, farinha, mel, aguardente, azeite,madeira, entre outros. Quanto à importação destacavam-se tecidos devariados tipos (panos de algodão, linho e seda; cassas finas e grossas; crês;durantes; druguetes; chitas; bretanhas; holandas; baetas; riscados; lila;gangas; casimiras), vinho, pólvora, louça, vinagre, carne seca, sal, ferro,manteiga, chapéus e papel. A circulação dessas mercadorias pelas Capitaniasdo Norte e a renda derivada dessa movimentação comercial ratificam a idéiaexposta de não total apatia da economia da Paraíba. Evidentemente, o volumedas transações comerciais da capitania, quando comparado com a datotalidade do território colonial, possuía um peso pouco significativo34 No

33 MENEZES, Colonialismo..., p. 132.34 Segundo José Jobson de Arruda a Paraíba, nos anos 1796 e 1797, ocupou o sétimo lugar

no comércio de importação da colônia brasileira, subindo para a sexta posição a partirde 1798, ocupada antes por Santos. Com relação à exportação, aparece na sextaposição em 1796, não constando na Balança Comercial (1796-1811) em 1797 e 1798,reaparecendo em 1799 e 1800, para voltar a sumir nos anos seguintes. Diz ainda que,“uma comparação com as demais colônias portuguesas demonstra-nos a insignificância do

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entanto, não está em questão aqui o valor da mesma para a Coroa. Cabeapenas verificar, através desses dados, que a capitania não produzia apenaspara consumo interno. Atendendo ao seu próprio status de colônia, ela geravariquezas, comprava manufaturas da metrópole e ainda contribuía para aprópria reprodução do corpo de of iciais régios no além-mar, sendoresponsável pela manutenção do aparato administrativo da Capitania daParaíba. Cumpria, pois, o papel a ela designado.

População da Capitania da Paraíba na virada para o século XIX

Tarefa árdua é lidar com população do período colonial brasileiro. Fontesfragmentadas, esparsas, mal conservadas tornam-se cotidiano do historiadorafeito pela demografia. Para o século XVIII há alguns recenseamentosrealizados na área das Capitanias do Norte. Por não apresentarem um padrãohomogêneo, é difícil traçar uma evolução da população a partir dos seuscomponentes. Quando um deles aparece em determinado ano, somem noseguinte, ressurgindo no subsequente. Se atualmente uma idéia exata dapopulação não pode ser garantida, muito menos se deve esperar exatidãopara os homens coloniais. Contudo, isto não invalida os dados por elesfornecidos.

Dentre os levantamentos realizados durante o século XVIII, os que seiniciam em 1797, prolongando-se até 1830, são os que apresentam maisdetalhes, sendo, por isso, os mais completos. A partir daí se “introduzaperfeiçoamentos no processo de recenseamento das populações no Brasil.O recenseamento passa a incorporar um conjunto de informações econômico-mercantis e maior abrangência das informações populacionais”35. SegundoSmith, amparado na divisão (fase proto-estatística) proposta por Marcílio36, aetapa 1797-1830 se inicia com a ordem régia de D. Maria I, datada de 21 deoutubro de 179737. A partir dela, o Conselho Ultramarino emite um dispositivodirigido aos capitães-mores do Brasil expressando:

Desejando Sua Majestade que a esta corte cheguem anualmentenoções muito exatas, e individuais de cada uma das capitanias doBrasil, foi servida ordenar que se preparassem os mappas queacompanham esta carta, e que os remettesse a VMCE, afim de quese principie um trabalho, por meio do qual se possa chegar aoconhecimento: 1) dos habitantes que existem na Capitania; 2) dasoccupações dos mesmos habitantes; 3) dos casamentos annuais,

movimento comercial da Paraíba. É inferior ao comércio da África e das Ilhas. Assim comoSantos”. ARRUDA, José Jobson de. O Brasil no comércio colonial. São Paulo: Ática, 1980,p. 271-272.

35 SMITH, A presença..., p. 2. Neste trabalho o autor da uma idéia da população dasCapitanias de Pernambuco e suas anexas com base nos recenseamentos realizados noséculo XVIII.

36 MARCÍLIO, Maria Luíza. Levantamentos censitários da fase proto-estatística do Brasil.Anais de História, Assis, v. II, p. 63-75 (apud SMITH, A presença..., p. 2).

37 MARCÍLIO apud SMITH, A presença..., p. 2.

ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS

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nascimentos e mortes; 4) da importação; 5) da exportação; 6) dasproduções da Capitania, consumo e exportação das mesmasproduções; 7) dos preços correntes dos gêneros; 8) do número dosnavios que entram e saem. A estes 8 mappas se ajunta uma instruçãopara o modo de os formar, a qual com os referidos mappas Vmcecomunicará a pessoa incumbida d’este trabalho.38

Muito provavelmente, Fernando Delgado, como capitão-mor nomeadoem 1797, recebeu exatamente estas instruções, uma vez que esse conjuntode informações foi por ele recolhido nos moldes que acima se apresentam. János referimos aos mapas de produção, exportação e importação. Passemosagora aos de habitantes da Capitania.

A Capitania da Paraíba apresentava, nos anos 1798 a 1805 uma populaçãoentre 40 e 60 mil habitantes. Quando dividida entre litoral e sertão, os númerosdenotam um certo equilíbrio entre os valores totais de habitantes para essaduas áreas. No entanto, ao passo que tomadas em sua dimensão territorial,verifica-se que a população do sertão encontra-se diluída num amplo espaço,enquanto que a do litoral concentra-se numa curta faixa de terra. Isto éjustificado pelo fato de o litoral ser o espaço inicial de ocupação da Capitania,enquanto que as fronteiras do sertão só foram “abertas” a partir da segundametade do século XVII. Não obstante o retardamento do povoamento dessaárea, sua ocupação foi relativamente rápida ao longo do século XVIII. Se parao ano de 1798, o sertão aparece como responsável por 38% do total dehabitantes da Capitania, o que nos infere a acreditar numa sub escrituraçãopor faltar algumas freguesias, presentes nos outros anos posteriores, vemos,de maneira mais consistente, o salto nos números para o ano de 1800, com51%; e seguintes: 1801, 43%; 1802, 48%; 1804, 56% e 1805, 54%.

No atinente à composição da população livre, os resultados mostram queos mulatos eram responsáveis pelo maior montante na Capitania, chegando,em média, para os anos em tela, a cerca de: 32%, em 1798; 39% em 1799, 38% em1800, 36% em 1801, 40% em 1802, 33% em 1804 e 38% em 1805. Contrário,portanto, ao número de brancos que representavam apenas 32%, 26%, 28%,31%, 28%, 30% e 26% respectivamente para os mesmos anos.

Quanto aos cativos, contudo, a Capitania da Paraíba apresenta um baixopercentual demográfico, verificando-se, para o período como um todo, umnúmero nunca superior a 25%. Valor esse que, no que tange a relação entrelitoral e sertão, apresenta certa proporcionalidade para os anos de 1800,1804, 1805, como demonstra a tabela a seguir, desmistificando a idéia de queo litoral sempre esteve hegemonicamente mais servido de escravos que ointerior.

O que chama a atenção são os valores de negros, principalmente os pretosescravos, para a área do sertão. A historiografia paraibana tendeu adesconsiderar a última categoria nesse espaço. Apoiados em autores clássicos,

38 AHU - Mato Grosso, maço 24. In: MARCÍLIO, apud SMITH, A presença..., p. 2-3.

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como José Américo de Almeida e o já citado Irineu Jôffily, reitera-se aconcepção da ausência ou pouca importância do negro na economia sertaneja,especialmente na atividade da pecuária. Diz Américo de Almeida:

(...) no sertão o cruzamento se operou entre índios e portugueses,quase com a exclusão do negro. As condições do meio, que nãopermitiam o trabalho agrícola, prescindiam da escravaria. Demais,o indígena é, de seu natural, apto ao pastoreio.40

A mesma idéia está presente em Joffily:

Depois que a colonização estendeu-se à todo o território dacapitania, com o desenvolvimento da cultura do algodão nascaatingas, aumentou o elemento africano, sem que contudo, elechegasse a preponderar em parte alguma pelo número;principalmente no sertão, onde foi sempre fraco, porque para ostrabalhos pastoris era muito mais apropriado o americano.41

No fim da década de 1970, Diana Galliza, em O declínio da escravidão naParaíba (1850-1888), caminha na contramão da noção exposta pelos autoressupracitados, ao reconhecer que “embora tenha sido desprezada pelosestudiosos da história da Paraíba a participação do escravo na zona criatória,sua presença foi marcante no sertão paraibano. Durante a segunda metade doséculo XIX, foi acentuado o número de escravos na área sertaneja”42. Desde ofim do século XVIII é possível atestar a presença do elemento negro, seja elelivre ou escravo, no sertão da Capitania da Paraíba. Para 1798, primeiro ano

39 AHU_ACL_CU_014, Cx. 33, D. 2423, AHU_ACL_CU_014, Cx. 35, D. 2510, AHU_ACL_CU_014,Cx. 36, D. 2617, AHU_ACL_CU_014, Cx. 38, D. 2711, AHU_ACL_CU_014, Cx. 39, D. 2764,AHU_ACL_CU_014, Cx. 41, D. 2890, AHU_ACL_CU_014, Cx. 41, D. 2891,AHU_ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3273, AHU_ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3274,AHU_ACL_CU_014, Cx. 47, D. 3318, AHU_ACL_CU_014, Cx. 47, D. 3319.

40ALMEIDA, José Américo de. A Paraíba e seus problemas. 3 ed. João Pessoa: A União,1980, p. 524.

41 JOFFILY, Notas..., p. 235.

ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS

TABELA 1: PRETOS E MULATOS CATIVOS NA CAPITANIA DA PARAÍBA ENTRE OSANOS 1798 E 1805, COM A ESPECIFICAÇÃO ENTRE LITORAL E SERTÃO39

ANO

LITORAL SERTÃO

PRETOS CATIVOS MULATOS CATIVOS PRETOS CATIVOS MULATOS CATIVOS

8971 %21 %2 %5 %2

0081 %7 %2 %8 %1

1081 %01 %3 %6 %1

2081 %8 %2 %5 %2

4081 %7 %2 %8 %2

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para o qual possuímos o conjunto de informações levantado por FernandoDelgado, os valores de pretos e mulatos cativos não são nem um poucotímidos, seja para sertão ou para o litoral. Os livres, no entanto, suplantamnumericamente aqueles e representam boa parcela da população total.

Por fim, é importante salientar o diminuto percentual, para todos os anos,de índios quer no sertão, que não passava de 1%, ou do litoral, cuja populaçãonão ultrapassava os 7%. Todavia, apesar de a documentação não deixar claro,acreditamos que os índios computados nos mapas sejam os aldeados, daí suapouca presença naquele espaço43. Uma hipótese para o elevado índice demulatos parece-nos ser a de miscigenação entre brancos, negros e índios.Principalmente como resultado dos estímulos de Pombal que tinha namiscigenação do índio fator determinante para o aumento demográfico nacolônia. Segundo essa conjectura, os mulatos não corresponderiam apenas àpopulação mestiça de cor, na concepção comum que só a enxerga no tocanteao cruzamento de brancos e negros, mas a qualquer cruzamento entre osgrupos anteriormente citados.

Considerações Finais

Os mapas de consumo, exportação e importação da Capitania da Paraíba,correspondentes aos anos de 1798 a 1805, legados por Castilho e seus doissucessores, evidenciam ligações comerciais existentes entre a Paraíba e ascapitanias vizinhas a ela, isto é, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará. Apercepção desses circuitos mercantis torna-se fundamental para matizar aexclusividade exercida pelo porto do Recife quanto ao escoamento dasproduções e abastecimento da Paraíba. A documentação exibe outrostrânsitos portuários existentes que promoviam as transações de compra evenda das mercadorias exportadas e importadas. Vale ressaltar que odesvelamento dessas outras vias de comunicação mercantil não retira aimportância de Recife para o fluxo mercatório da Paraíba, mas suaviza qualquer

42 GALLIZA, Diana Soares de. O declínio da escravidão na Paraíba (1850-1888). João Pessoa:Editora Universitária/UFPB, 1979, p. 54.

43 Segundo Ricardo Medeiros, Pombal ordenara que se transformassem “em vilas asmissões de Pernambuco e suas anexas administradas pelos jesuítas [...], que nas missões desua jurisdição, que eram administradas pelos jesuítas, fossem criadas vigarias colativas,substituindo os missionários por clérigos regulares”. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Políticaindigenista do Período Pombalino e seus reflexos nas Capitanias do Norte da Américaportuguesa In: OLIVEIRA, Carla Mary S. & MEDEIROS, Ricardo Pinto de (orgs.). NovosOlhares sobre as Capitanias do Norte do Estado do Brasil. João Pessoa: Editora Universitária,2007, p.128. Além disso, Maria do Céu Medeiros diz que “como a legislação sobre o índioprevia a união de aldeias, quando estas não atingiam um determinado número de casais, oGovernador de Pernambuco ordenou a transferência de índios do interior para o litoral, no anode 1780”. Daí a desproporcionalidade existente entre as aldeias do litoral e as dointerior. MEDEIROS, Maria do Céu. O trabalho na Paraíba escravista (1585-1850). In:MEDEIROS, Maria do Céu & SÁ, Ariane Norma de Menezes. O trabalho na Paraíba: dasorigens à transição para o trabalho livre. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB,1999, p.46.

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inconteste monopólio dado àquela praça. Além disso, inviabiliza a idéia deesterilidade da Capitania como consequência dos quarenta e quatro anos desubordinação. Os mapas de habitantes, por sua vez, permitem estabeleceruma idéia acerca da população da capitania. Pode-se perceber, a partir deles,um não esvaziamento do sertão. Se tomados em valores absolutos, o númerode habitantes do sertão, com exceção dos anos 1798 e 1799, apresentamoscilações entre 45 e 55%. Evidentemente, a densidade demográfica dessaárea é mais baixa do que a do litoral, tendo-se em vista sua amplitude territorial.

Muito mais do que apresentar um retrato da Capitania, a documentaçãopesquisada possibilita voltar o olhar para o sertão. A imagem da “civilizaçãodo couro”, legada por Capistrano de Abreu, apresenta o sertão comometonímia da pecuária e sua indústria. Assim, as boiadas, vaqueiros rústicose índios revoltos tornam-se os símbolos desse espaço. Os mapas de exportaçãoe importação viabilizam a percepção da movimentação da economia sertaneja.Exportava-se gado, couros miúdos, atanados, sola, algodão e tabaco emcorda e importava-se, basicamente, vinho, tecidos diversos, chapéus e sal. Ocontato das paróquias do sertão com os portos de Aracati, Açú, Mossoró,Goiana e Recife são nítidos. Havia uma integração comercial entre os sertõesdas Capitanias do Norte, evidenciada pelos circuitos mercantis. Dessa maneira,o sertão nos é apresentado não como um ambiente hostil e marcado pelomarasmo, mas, em termos econômicos, bastante dinâmico, pulsante e geradorde um mercado interno através da circulação de produtos ainda muito poucoestudado.

ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS

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O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕESCOMPLEMENTARES:

SANTOS, BAHIA E PERNAMBUCO, 1765-18221

Denise A. Soares de Moura2

destas partes do território do Brasil ao conjunto da Monarquia portuguesa eaos principais centros mercantis europeus especialmente após a aberturados portos em 1808.

Essas relações mercantis serão chamadas de complementares porque osdados levantados na documentação demonstraram que, embora o maiorvolume das importações do segundo principal porto da costa centro-sul,Santos, proviesse do Rio de Janeiro, pólo de redistribuição das mercadoriaseuropéias, asiáticas e africanas obtidas no comércio atlântico e índico, existiuum intercâmbio com as capitanias do norte, especialmente a Bahia, que nãose restringiu ao circuito mercantil do sal.

Entende-se que este comércio com os dois principais pólos mercantis dascapitanias do norte completava a demanda por mercadorias européias,africanas e asiáticas existente no centro-oeste-sul e que a praça do Rio deJaneiro não dava conta de atender.

O caráter mais inquiridor das linhas que seguem deve-se à dificuldade doassunto, apesar da vasta produção bibliográfica existente3, tanto nacional

1 Pesquisa parcialmente financiada pelo CNPq e pelo programa de Estágio Pós-Doutoralpromovido pela UNESP/ Banco Santander, que me permitiu a permanência de doismeses e meio em Lisboa, onde me beneficiei de pesquisas realizadas na Torre doTombo e de muitas idéias discutidas nos seminários promovidos pelo Centro de Estudosde Além Mar (CHAM) da Universidade Nova de Lisboa e pelo Instituto de CiênciasSociais da Universidade de Lisboa. Parte das indagações levantadas nestas linhasforam provocadas por seminários e reuniões ocorridas no núcleo Dinâmicas Econômicase Sociais no Império português do Atlântico, da Cátedra Jaime Cortesão, da Universidadede São Paulo. Meus mais sinceros agradecimentos a Maximiliano Max Menz por cedercópia dos mapas de importação e exportação que digitalizou para sua pesquisa sobreo Rio Grande.

2 Pós-Doutora em História pela Universidade Nova de Lisboa, Doutora em HistóriaEconômica pela Universidade de São Paulo. Professora Assistente do Departamentode História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus deFranca.

3 Três teses norte americanas podem ser consideradas ponta de lança para as pesquisassobre o comércio na América portuguesa e, especialmente, na Bahia. Duas foram

ste texto tem apenas a intenção de problematizar as relaçõesmercantis entre o centro-sul e as capitanias mais ao norte,especialmente as da Bahia e de Pernambuco, ao longo dealgumas conjunturas do período 1765-1822 e sugerir que atravésdo giro das mercadorias coloniais e européias havia a integração

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como estrangeira, à ausência de dados alfandegários regulares, o que obrigao investigador a permanecer no plano indagativo das fontes administrativase à própria extensão da pesquisa que o tema exige.

A opção pelo termo monarquia, ao invés de império, como amplamentedebatido e usado pela historiografia4, diz respeito à forma de governo. Emtodos os territórios sob domínio português, da América a Goa, o chefe deestado tem título de rei ou rainha. Império pode ter ou não governomonárquico.

Em termos políticos, a coroa, o cetro e o trono português uniram partesheterogêneas, estabelecendo um elemento comum, bem definido pelamanifestação dos deputados da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricase Navegação do Estado do Brasil e Domínios Ultramarinos ao juiz da alfândegado porto de Santos, ao solicitarem a confecção de mapas de importação eexportação. Falavam em nome de “Dom João por graça de Deus Príncipe Regente

defendidas no Texas e uma em Nova York. Em data muito próxima à defesa destasteses foi publicado no Brasil, por José Jobson de Arruda, um trabalho de fôlego,redigido em 1973, sobre o comércio colonial nas várias partes do Brasil. Um trabalhoque inaugurou uma nova linha teórico-metodológica fundado no debate dos anos 80,em torno da categoria de Antigo Sistema Colonial, foi o de João Fragoso. Nahistoriografia portuguesa destacam-se os importantes trabalhos de Jorge Pedreira,com investigação prosopográfica que muito tem influenciado a historiografia brasileira,e de Leonor Costa. SMITH, David Grant. The mercantile class of Portugal and Brazil in theseventeenth century: a socio-economic study of the merchants of Lisbon and Bahia,1620-1690. PhD Thesis. The University of Texas. Austin, 1975; FLORY, Rae Jean Dell.Bahian Society in the mid-colonial period the sugar planters, tobacco growers, merchantsand artisans of Salvador and the Reconcavo, 1680-1725. PhD Thesis. The University ofTexas. Austin, 1978; LUGAR, Catherine. The merchants community of Salvador, Bahia,1780-1830. PhD Thesis. State University of New York. Stoney Brook, 1980. ARRUDA,José Jobson de Andrade. O Brasil no comércio colonial. São Paulo: Ática, 1980. FRAGOSO,João Luís R. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil doRio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. Jorge Miguel deMelo Viana. Os homens de negócio da praça de Lisboa de Pombal ao vintismo (1755-1822).Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa, UniversidadeNova de Lisboa, 1995. COSTA, Leonor Freire. Império e grupos mercantis: entre o Orientee o Atlântico. Lisboa, Livros Horizonte, 2002.

4 A historiografia nacional e estrangeira há tempo tem tomado emprestado e aplicadoreflexivamente o conceito de Império de Charles Boxer, explicando a realidade colonialdos domínios das várias coroas européias de modo mais complexo, colocandoquestões novas e, no caso do Brasil, ampliando muitas daquelas pioneiramentelançadas por clássicos da historiografia, como Formação do Brasil Contemporâneo ePortugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial. Cf. BOXER, Charles. O ImpérioMarítimo Português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; FRAGOSO, J. L.R. (org.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; BICALHO, M. F. B & FERLINI, VeraLúcia A. (orgs.). Modos de governar: idéias e práticas políticas no Império Português. SãoPaulo:. Alameda, 2005; ELLIOT, J. H. Empires of the Atlantic World: Britain and Spain inAmerica, 1492-1830. New Haven & Londres: Yale University Press, 2007; FRAGOSO, J. L.R. (org.). Nas rotas do Império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundoportuguês. Vitória: EDUFES; Lisboa: IICT, 2006.

DENISE A. SOARES DE MOURA

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de Portugal dos Algarves, daquém, dalém Mar em África de Guiné”5.

Percepção que teve Caio Prado Jr. ao definir em ensaio que o que havianesta parte do oceano, aos olhos da administração metropolitana “eram váriascolônias ou províncias, até mesmo ‘países’, se dizia às vezes, que, sob o nomeoficial de capitanias, se integravam no conjunto da monarquia portuguesa e aconstituíam de parceria com as demais partes dela: as províncias do Reino dePortugal e as dos de Algarve, os estabelecimentos da África e do Oriente”.Acrescentando ainda que “a monarquia forma um complexo heterogêneo dereinos, estados, províncias européias e ultramarinas, capitanias e outrascircunscrições sem título certo”6.

Esta compreensão dos domínios como reino ou estados da monarquiaportuguesa está no título das balanças ou mapas de exportação e importação:resumo dos mapas de importação e exportação dos estados da Índia, Áfricae Brasil. Sendo o Brasil, ainda, formado por partes distintas: a “capital do Riode Janeiro”, os Estados do Brasil (Santos e parte meridional); Bahia ePernambuco.

Monarquia mercantil porque em termos econômicos o comércio integravaestas partes heterogêneas, estabelecendo unidade na diversidade. Asmercadorias circulavam de um território a outro da monarquia portuguesa,ligando direta ou indiretamente as partes. O comércio foi um norteador daexpansão marítima européia desde o século XV e especialmente da sociedadeportuguesa7.

Nos territórios onde inexistiam mercadorias para pronta troca, osportugueses criaram uma sociedade original, ocuparam, transplantaraminstituições administrativas, implantaram um sistema produtivo, almejandoatingir os “tradicionais objetivos mercantis que assinalam o início da expansãoultramarina da Europa”8.

Desde o final do século XVII os domínios americanos da monarquiamercantil portuguesa tornaram-se o centro de seus interesses mercantis, emespecial a parte centro-sul, devido a mineração. O esgotamento do potencialaurífero do interior do continente coincidiu com crises internas da economiaportuguesa e a reação régia para criar oportunidades favoráveis.

A crise da segunda metade do século XVIII forçou um novo modelo de

5 Alfândega – almoxarifado 1722-1822. AESP. Santos, C. 00227, ordem 227, maço 1, pasta21, doc. 1-21-3.

6 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Martins, 1942, p.301-302.

7 PRADO JÚNIOR, Formação..., p. 16-17.8 PRADO JÚNIOR, Formação..., p. 25. Em Fernando Novaes este sentido mercantil da

colonização moderna corporificou-se no conceito de Antigo Sistema Colonial: “acolonização guardou na sua essência o sentido do empreendimento comercial donde proveio;a não existência de produtos comercializáveis levou à sua produção e disto resultou a açãocolonizadora. Assim se ajustavam as novas áreas aos quadros das necessidades decrescimento da economia européia”. NOVAES, Fernando. Portugal e a crise do AntigoSistema Colonial (1777-1808). São Paulo: HUCITEC, 1979, p. 68.

O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES

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colonização9, que na América portuguesa representou intensif icação ediversificação produtiva e mercantil e deslocamento do foco de interessespolíticos para o centro-sul.

Nos domínios americanos o coração da monarquia mercantil portuguesapassou a ser a zona centro-meridional, tendo em vista a própria necessidadede assegurar o domínio luso em áreas há muito ambicionadas e disputadaspelos castelhanos, como as zonas fronteiriças do Rio Grande e Mato Grosso.

Transformar o Rio de Janeiro em sede administrativa do vice-reino, em1763 e reabilitar a autonomia administrativa de São Paulo em 1765 foram duasmedidas chave para a realização de um novo modelo de colonização quevisava, a partir do centro-sul, preservar a parte americana da monarquiamercantil portuguesa que mais mercadorias poderia proporcionar para ainserção competitiva da economia lusa no comércio europeu.

Portos periféricos, como o de Santos, na capitania de São Paulo, foramestratégicos neste processo por proporcionarem uma via de escoamento demercadorias européias, asiáticas e africanas na costa e no interior docontinente.

O comércio atlântico e índico, dado seu alto nível de investimentos e custos,concentrava-se nas mãos de uma pequena parcela de grandes negociantes10,mas a distribuição das mercadorias adquiridas nestes empreendimentosmarítimos exigia um esforço de distribuição pela costa que nem sempreinteressava ao grande negociante e abria um campo de oportunidades paraos negociantes das praças periféricas.

Desde o início do século XVIII a tendência da política metropolitana foi deestreitar as ligações entre o Rio de Janeiro e as zonas auríferas tradicionais deMinas Gerais, inclusive com propósitos tributários e para melhor enfrentar arealidade concreta do contrabando do ouro.

As terras do sertão da Farinha Podre, no centro oeste mineiro, passagempara Goiás e Mato Grosso, onde em 1736 foi fundada uma povoação, oDesemboque11, ao lado esquerdo do Rio das Velhas, áreas de povoamento eexploração tardia do metal, tenderam a permanecer sob a órbita de São Paulo.

A movimentação de paulistas em direção a estas áreas, indicada peladocumentação, sugere a existência de uma demanda por mercadoriaseuropéias, asiáticas e africanas nesta parte interior do continente, que aintegrava ao conjunto da monarquia mercantil portuguesa. A vila marítima

9 ARRUDA, José Jobson de Andrade. Decadence or crisis in the Luso-Brazilian Empire: anew model of colonization in the Eigtheenth Century. Hispanic American HistoricalReview, v. 80, n. 4, 2000, p. 865-878.

10 FRAGOSO, Homens de grossa...; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Os homens de negóciodo Rio de Janeiro e sua atuação nos quadros do Império português (1701-1750). In:FRAGOSO, O antigo regime...

11 DANTAS, Sandra Mara. A fabricação do urbano: civilidade, modernidade e progresso emUberabinha - MG (1888-1929). Tese de Doutorado. Universidade Estadual Paulista Júliode Mesquita Filho. , 2009.

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de Santos, o Caminho do Mar e a cidade de São Paulo formaram um sistemaque promoveu esta integração.

Embora a maior atividade mercantil da praça de Santos ocorresse com oRio de Janeiro, havia relações com as praças do norte, especialmente com aBahia e em segundo lugar com Pernambuco. Se o circuito não se restringia àpraça carioca, certamente existia demanda notória nas zonas de povoamentoe exploração aurífera tardia e autonomia dos negociantes que atuavam emSantos em relação aos do Rio de Janeiro, pois esta praça não dava conta dademanda interior da parte centro oeste do continente.

Este texto explorará esta questão. A idéia central é a de que existiramrelações mercantis complementares entre o centro-sul e as capitanias do nortee o porto de Santos, na parte centro-sul, desempenhou o papel de distribuidorde mercadorias européias, africanas e asiáticas no centro-oeste do territóriodo Brasil.

O nível de atividade de exportação costeira deste porto periférico foi baixo,o que sugere a existência de uma economia interior capitalizada, que nãofazia giro do comércio com mercadorias, mas com valores monetários, queainda não é possível quantificar, mas apenas inferir na documentaçãoadministrativa e alfandegária.

A argumentação será construída em documentação que parte da base damonarquia, ou seja, a câmara municipal e se estende até aquela de ordemcentral, como a correspondência trocada entre autoridades régias coloniais emetropolitanas e os mapas de importação e exportação ou balanças decomércio da vila de Santos, Bahia e Pernambuco.

O caráter integrador dos portos periféricos

Ainda existem questões a serem levantadas na investigação sobre ofuncionamento do comércio colonial, pois os portos que poderiam mostraroutros patamares hierárquicos do seu funcionamento despertaram poucointeresse, como as praças marítimas menores, integradas e integradoras deregiões ao conjunto da Monarquia portuguesa, indiretamente e por intermédiode outras praças, como Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco12. Tais praçasformaram sub-sistemas econômicos, como o porto de Santos e a Paraíba,centros polarizadores de mercadorias coloniais e européias em suasrespectivas capitanias.

Qual o papel político e econômico que uma vila marítima periférica nocentro-sul pode ter tido no Estado do Brasil e no conjunto da Monarquiamercantil portuguesa? Em termos econômicos e tendo em vista o sistema daexploração colonial, a função econômica destas vilas foi a de centralizar aexportação de produtos coloniais e importação de mercadorias européias,

O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES

12 Exceção ao trabalho de Maximiliano Menz. MENZ, Maximiliano M. Centro e periferiascoloniais: o comércio do Rio de Janeiro com Santos e Rio Grande (1802-1818). Revistade História, São Paulo, n. 154, 2006, p. 251-266.

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africanas e asiáticas nas principais praças mercantis que praticavam o comércioatlântico, como o Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco.

Como parte de um território pensado como unidade administrativa desde

o final do século XVII, a vila de Santos tinha articulações mercantis mais diretascom ao Rio de Janeiro, mas as demandas abertas pelo novo padrão decolonização da segunda metade do século XVIII fez com que tivesse certonível de integração com as capitanias do norte, que funcionaram como centroscomplementares do comércio colonial no centro-oeste-sul do continente doBrasil.

A vila de Santos não só manteve relações comerciais com Bahia ePernambuco, como foi um pólo de atração para negociantes e homens denavegação que atuavam nestas duas praças e que movimentaram-se noterritório atraídos pelas novas expectativas político-econômicas apresentadaspelo centro-sul desde a transferência da sede administrativa da Américaportuguesa para o Rio de Janeiro13.

Os produtos coloniais, europeus e do estado da Índia, os escravos d’Áfricacomercializados pela cidade marítima de Santos integravam14 partes do interiordo continente, como a capitania de São Paulo, o oeste mineiro, Goiás e MatoGrosso ao Recife e Bahia e, indiretamente, através destes portos, a Lisboa,costa da África e Goa confirmando o que, em certa medida, já havia intuídoCaio Prado Júnior: de que existiam outros sistemas que asseguravam o sentidooriginal da colonização.

A vila de Santos funcionou como parte de um conjunto territorial e unidadeadministrativa mais larga, o centro-sul, formado e articulado pela exploraçãoaurífera. A criação da Repartição Sul15, em 1608, demonstra o redirecionamentodos interesses econômicos e da política administrativa da Coroa portuguesapara esta região desde o século XVII.

13 Esta constatação deve-se à pesquisa realizada nas Habilitações de Familiar do SantoOfício e Ordem de Cristo, na Torre do Tombo, em Lisboa. Um banco de informaçõesconstruído a partir dos Maços de População de Santos, disponível no Arquivo doEstado de São Paulo, permitiu chegar aos nomes de negociantes. De onze habilitadosna Familiatura, seis estabeleceram-se primeiro no Rio de Janeiro, Bahia, Recife ouminas de Goiazes.

14 Júnia Furtado constatou processo semelhante no circuito Minas-Gerais/Bahia. Não setratava de movimento unidirecional, litoral-interior, mas interior-litoral, pois osviandantes de volta de Minas levavam para o porto de Salvador produtos coloniais,como couro e tabaco, empregado no comércio de escravos na África. As zonastradicionais da extração do ouro faziam parte de um amplo circuito envolvendo Salvador,Lisboa e África. Devo fazer a mesma conexão, como o circuito Santos/ Recife combinavao interior, outros portos do sul e capitania, África e Lisboa. FURTADO, Júnia Ferreira.Teias de negócio: conexões mercantis entre as Minas do ouro e a Bahia, durante oséculo XVIII. In: FRAGOSO, Nas rotas..., p. 170.

15 Divisão formada pelas capitanias de São Vicente, Espírito Santo e Rio de Janeiro,separada da Bahia e outras capitanias que constituíam o Estado do Brasil. ApudBELLOTTO, Heloisa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo doMorgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). 2. ed. São Paulo: Alameda, 2007, p. 22.

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São Paulo e Bahia foram irradiadores originais do povoamento do interiordo continente, onde surgiu uma constelação de núcleos urbanos. MinasGerais, Goiás e Mato Grosso, os mais densos, formaram as três principaiscapitanias do centro-oeste, administrativamente articuladas ao Rio de Janeiropela política da Coroa portuguesa somente nos primeiros anos do séculoXVIII.

O povoamento do interior do território da colônia provocado pelamineração levou a monarquia portuguesa a organizar administrativamente ocentro-sul em conjunto em dois momentos do século XVIII: nas quatroprimeiras décadas e na segunda metade. Neste processo, a importânciageopolítica da capitania de São Paulo colocou-a no foco das ações régias,com reflexos na vila de Santos.

Em 1709, um ano após o conflito dos emboabas e respondendo ao esforçodos paulistas de interiorização e descoberta das minas metalíferas, foi criadaa capitania de São Paulo e Minas do Ouro16, em substituição à capitania deSão Vicente, cuja sede, desde 1681 estava situada na vila de São Paulo.

A preocupação despertada na Coroa portuguesa por esta ação expansivados paulistas e a necessidade de controlar com maior rigor as zonas auríferas,com total potencial de enriquecimento da fazenda real, levaram à oficializaçãoda autonomia de Minas Gerais em 1720 e à criação, em 1747, das capitanias deGoiás e Mato Grosso.

A parte meridional do território do Brasil correspondente ao Rio Grande ea ilha de Santa Catarina foi agregada à capitania do Rio de Janeiro. Restava aSão Paulo apenas o território que envolve atualmente o estado do Paraná e oprocesso de retalhamento territorial e das atribuições jurisdicionais destacapitania, foi definitivamente concluído com a abolição de sua autonomiapolítico-administrativa em 174817.

A valorização e o caráter estratégico de pontos da costa centrossul noprocesso de reordenamento administrativo desse período, pode serevidenciado não apenas pela ampliação das prerrogativas políticas eadministrativas da futura sede do vicereinado – o Rio de Janeiro – , mas pelaatribuição da autoridade militar da capitania de São Paulo ao governador dapraça de Santos, que por sua vez ficaria sob a jurisdição do governador doRio de Janeiro. Mas na prática as obrigações deste governador foram maisamplas do que as meramente militares, conforme queixou-se Luis de Sá eQueiroga a Gomes Freire de Andrade18.

Se a metrópole procurou restringir as ligações terrestres entre a capitaniade São Paulo e as áreas tradicionais mineiras de exploração aurífera,

O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES

16 Para uma interpretação sobre a política de concessões e mercês da Coroa portuguesaem relação aos paulistas, ver: BLAJ, Ilana. A trama das tensões: o processo demercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São Paulo: Humanitas; FFLCH-USP;FAPESP, 2002.

17 QUEIROZ, Suely Robles Reis. São Paulo. Madri: Editorial Mapfre, 1992.18 BELLOTTO, Autoridade e conflito..., p. 32.

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colocando-as diretamente na órbita do Rio de Janeiro, o mesmo não ocorreucom as zonas de povoamento e exploração metalífera tardia, como o oestede Minas, Goiás e Mato Grosso, onde foram encontrados os aluviões maisprósperos somente a partir de 1718.

A centralização dos esforços tributário-administrativos metropolitanos nasáreas tradicionais, a extensão do interior do continente, território com muitaspartes ainda por desbravar e difíceis caminhos por abrir e percorrer, habitadopor brava gente indígena, pode ter levado a Coroa a fazer vistas grossas àação dos paulistas na parte centro-oeste do interior, deixando-a gravitar naórbita de seus interesses. Esta hipótese em grande medida pode explicar agrande ligação que existe ainda hoje entre esta região e São Paulo.

Para penetrar na parte centro-oeste do continente o caminho se dava porterra e rio. Ao norte, por Mogi, havia o caminho terrestre dos Guaiases, quelevava às minas de Goiás, na direção do atual Triângulo mineiro. O caminhopara o Mato Grosso era basicamente fluvial, pelo Tietê, a rota das monções, oque estimulou a formação do porto de Araritaguaba, um porto de embarque,posteriormente denominado Porto Feliz19.

A integração da parte centro-oeste do continente no conjunto daMonarquia portuguesa ocorria, portanto, através destas duas rotas, aterrestre dos Guaiases ou a fluvial das monções. Primeiro o desembarque sedava no porto de Santos, com a “sua barra profunda, larga e bem abrigadapela ilha fronteira de Santo Amaro”. A vila de Santos tinha o único porto naturalda costa centro-sul20.

Separando o litoral do planalto havia a Serra do Mar. Sua subida, conhecidacomo Caminho do Mar, iniciada por Cubatão, onde havia um registro, formavacom São Paulo o sistema de cidade conjugada que Caio Prado Jr. identificouao longo de toda a Serra21. Pode-se dizer que o sistema Santos/ Caminho doMar/ São Paulo foi o integrador do oeste de Minas Gerais, Goiás e Mato Grossoao conjunto da Monarquia portuguesa e através do comércio costeiro efetivocom o Rio de Janeiro e complementar com Bahia e Pernambuco.

O comércio como re-integrador dos domínios da Monarquia portuguesa

A reabilitação da autonomia administrativa da capitania de São Paulo levadaà cabo por D. Luis de Sousa Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, foi partede um esforço maior e oficial da Coroa portuguesa em assegurar os domíniosdo centro-oeste-sul do continente do Brasil, que não se restringiu aos aspectosmilitarizadores22, mas incluiu também o incentivo ao comércio e à produção.

19 PRADO JÚNIOR, Caio. O fator geográfico na formação e desenvolvimento da cidade deSão Paulo. In: Evolução política do Brasil e outros estudos. 8. ed. São Paulo: Brasiliense,1972, p. 104.

20 PRADO JÚNIOR, Caio. Contribuição para a geografia urbana da cidade de São Paulo. In:Evolução política..., p. 117.

21 PRADO JÚNIOR, Contribuição..., p. 117.22 Heloisa Liberalli Bellotto enfatiza os aspectos militares. BELLOTTO, Autoridade e conflito...

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Para a Monarquia portuguesa a segunda metade do século XVIII foi dereintegração de seus domínios na América. Na parte correspondente àcapitania de São Paulo, parcela do conjunto territorial do centro-oeste-sul,onde se centralizaram os interesses político-tributários metropolitanos, foinecessária a ação conjunta das autoridades régias e homens de negócio paraexteriorizar sua economia.

Até então a política da Metrópole fora a de estimular a interiorização doscolonos de São Paulo, pois o projeto político da Monarquia era o de pacificaras partes do interior do Brasil e descobrir metais preciosos. Na segunda metadedo XVIII, como parte de suas intenções oficiais de inserção competitiva nocomércio europeu, Portugal tornara-se um dos principais re-exportadores demercadorias européias e asiáticas, especialmente tecidos da Índia.

O ajustamento do centro-oeste-sul do território do Brasil a esta nova faseda política metropolitana obrigava reorientar a economia da capitania paulistae incentivar a atividade mercantil em sua costa. É neste contexto que seentende o reposicionamento da vila de Santos, a importância política eeconômica que adquiriu, a atenção que passou a receber da política régia, aatração que exerceu sobre os homens de negócios locais e de outras partesdo Brasil.

Este processo de exteriorização ocorreu deixando um rastro de conflitoscom a tradição interiorizadora dos caçadores de metais e com as tendênciasdominantes, mas não exclusivas, do senado da Câmara de São Paulo, cabeçaadministrativa da capitania, certamente mais cioso de firmar a autoridade eautonomia recém reconquistada através da manutenção do bom governo dalocalidade.

No fim do governo de D. Luís de Sousa Botelho Mourão, os oficiais daCâmara escreveram uma carta a D. Maria I, sugerindo que houvessenovamente permissão para desentranharem ouro. Viam com muita dificuldadea vida dos moradores que recorriam às mercancias, trazendo bebidas efazendas com “evidente risco de suas vidas e perda de seus bens principalmenteno mar o qual necessariamente se navega” 23.

O governador D. Luís e os negociantes, alguns ligados ao senado daCâmara de São Paulo, outros atuantes na vila de Santos coincidiam em seusinteresses de estimular o comércio externo da capitania, o que implicava emlevar a produção do interior para o litoral, onde arribavam, com frequênciasdistintas, sumacas e bergantins das várias partes da Monarquia portuguesa.

O governador queria que este comércio se desse diretamente com o Reino,mas os negociantes, conforme mostrou o tempo, agiam movidos pela lógicado comércio e se concordaram em juntar-se à voz do governador foi porque

naquele momento ela era a oportunidade para realizarem seus negócios.

23 Carta dos oficiais da Câmara de São Paulo à rainha [D. Maria I] expondo as dificuldadesde comércio de São Paulo com as outras capitanias. AHU - São Paulo, Cx. 7, D. 13, D. 469no catálogo, 1777.

O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES

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A exportação dos gêneros coloniais produzidos serra acima, na capitaniaou áreas limítrofes à cidade de São Paulo, como a parte sul de Minas Gerais,prejudicava o abastecimento da cidade, situada a meio caminho entre o interiore o litoral e a efetivação dos contratos públicos de venda de gênerosalimentícios, que geravam renda municipal.

Conjunturas de maior demanda interna por alimentos podem terexasperado os conflitos entre a tradição do bom governo das cidades dascâmaras e o projeto atlantizador e mercantil da metrópole e dos negociantesde atuação local, pois a câmara manifestou-se indignada em certas ocasiõesquanto “a falta de mantimentos que tem experimentado os povos dePernambuco, Bahia, Angola e Benguela” que ao soar aos ouvidos de várioscomerciantes, “entraram a formar negociações destes gêneros”. Com isso,começaram a “atravessar pelos portos da marinha desta capitania toda a farinha,feijão e arroz que lhes foi possível; e não satisfeitos com este monopólio, passarama mandar várias pessoas disfarçadas para esta cidade e seu termo, onde tematravessado para cima de 850 porcos e considerável número de alqueires defarinha, e feijão, tudo para transportarem para os diversos portos, que lhes ditaa sua ambição”. Os atravessadores que andavam por Nazareth, Atibaya,Jaguary e outras partes eram acusados de atravessarem “todos quantos porcosacharam colhido e toda quanta mandioca acharam em termos de colheita”24.

A defesa da câmara de São Paulo ao bom governo da cidade, procurandoassegurar a política de abastecimento local, setor que também fortalecia suaautoridade e assegurava a governabilidade pode ter sido um obstáculo paraa política régia de exteriorizar a economia da capitania através do comérciode sua produção de gêneros coloniais, mas a exteriorização através daimportação de gêneros europeus e asiáticos não enfrentou obstáculos locaise pode ser considerada a área de interesses dos negociantes que atuavam emSão Paulo e Santos.

O radicamento de interesses dos negociantes paulistas no comércio deimportação pode ter deixado o comércio exportador num plano secundário,dificultado ainda pelos interesses da Câmara em garantir o abastecimentolocal, antes de permitir que os cargueiros de alimentos descessem a serra domar.

A tradição de comércio costeiro da capitania e centralizado pelo porto deSantos pode ter sido reforçada pelos interesses do município de São Pauloem torno da conservação do comércio de abastecimento local. Ao governadore de acordo com o interesse da Coroa coube a tarefa de lutar contra estecostume, como fez em 1768, condenando em ofício o costume antigo decorrespondência dos negociantes da vila de Santos com o Rio de Janeiro,donde lhes vinha fazendas de Inglaterra, não comprando gêneros da terrapara carregá-los para o Reino. Neste ano 4 navios haviam arribado no porto,mas foram carregar na Bahia e no Rio de Janeiro.

24 Atas da Câmara, vol. XIX, 1793, p. 368-372.

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João Francisco de Oliveira, produtor de açúcar e correspondente denegociantes da praça de Lisboa atuante em Santos ao ser advertido pelogovernador, alegou que toda a carga de um navio sob sua responsabilidadeestava pronta na Bahia e que ele não tinha ordens do dono para comprarefeitos na capitania “o que sucederia se em Lisboa soubessem que neste porto ecapitania há efeitos que se possa carregar (...) e para isto se conseguir erapreciso que os lavradores dos efeitos e serradores de madeiras se antecipassema fabricá-las, te-los promptos para quando chegasse qualquer navio, pois docontrário será preciso estar aqui um navio hum ano de espera de alguma carga,e isto he perdição para os donos” 25.

Da Bahia e do Rio de Janeiro vinham fazendas e este deveria ser um negóciopromissor para o negociante estabelecido na capitania, pois as embarcaçõesarcavam com os custos de não carregar no porto, mas apenas descarregar.Certamente estes custos eram repassados para os preços, como aconteciacom o sal, mais caro em São Paulo do que em qualquer outro ponto da costa.

Nesse caso, os negociantes atuantes na vila de Santos, serra acima, emSão Paulo e no interior dispunham de recursos monetários suficientes paraadquirir as fazendas em valores elevados e as repassava por custo alto e ogiro do comércio na região não se restringia a mercadorias, pois o a aquisiçãode tecidos, por exemplo, era feita apenas em dinheiro.

Os poucos dados gerais de entrada e saída de sumacas no porto de Santosde fato comprovam que as entradas eram superiores às saídas. Tendo emvista que o foco deste texto é o do comércio complementar de Santos com ascapitanias do norte os dados estão restritos à Bahia e Pernambuco.

25 Relação das cartas de serviço do governador e capitão general da capitania de SãoPaulo, Morgado de Mateus. AHU - São Paulo, Cx. 5, D. 24, D. 340 no catálogo, 1768.

TABELA 1: NÚMERO DE EMBARCAÇÕES QUE ENTRARAMNO PORTO DE SANTOS PROVENIENTES DE CAPITANIAS DO NORTE

ANOS BAHIA PERNAMBUCO

8081 51 10

8181 11 30

Fonte: Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227.

O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES

TABELA 2: NÚMERO DE EMBARCAÇÕES QUE SAÍRAMDO PORTO DE SANTOS COM DESTINO ÀS CAPITANIAS DO NORTE

ANOS BAHIA PERNAMBUCO

8081 20 10

8181 70 50

Fonte: Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227.

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Apenas com propósito comparativo, em 1808, 29 embarcaçõesprovenientes do Rio de Janeiro entraram no porto de Santos. Estasembarcações eram de natureza variada, conforme demonstram dados de1818. Incluíam navios, bergantins, sumacas e lanchas. Predominaram assumacas (31), pequena embarcações de dois mastros, seguidas das lanchas(18), bergantins (7) e navios (1). As entradas no porto de Santos oriundas doRio de Janeiro tenderam a aumentar, pois nesse ano de 1818 o total deembarcações subiu para 57.

A principal praça que mantinha negócios com o porto de Santos, portanto,era o Rio de Janeiro e em termos de circuitos mercantis complementaresprevalecia a Bahia, devido a proximidade entre os dois portos, mas deve-setambém considerar o papel conjunto destas duas regiões – Bahia e São Paulo- no processo de ocupação das áreas tradicionais da mineração, o que podeter promovido a formação de uma rede de conhecimentos e contatos entrenegociantes atuantes nas duas áreas.

Antonio da Silva Prado, negociante de animais e arrematador de contratospúblicos, no início do século XIX comprava escravos também na Bahia, emCaetité26. No século XVIII o comércio de tecidos serra acima, em direção aocentro-oeste era conjunto ao comércio de escravos realizado com a Bahia.

Francisco Pereira Mendes, natural da região do Minho, como a maioriados negociantes portugueses estabelecidos no continente do Brasil, moravaem São Paulo e tinha negócios em Goiás. Com dinheiro, conforme informaramtodas as testemunhas do seu processo de habilitação à Ordem de Cristo,comprava fazendas do Rio Janeiro.

Este negócio era firmado na vila de Santos, pois casou-se com uma filhada região. Almocreves conduziam estas fazendas para Goiás, por via terrestre,seguindo o caminho dos Goiases, pelo oeste de Minas Gerais. Em Goiás estasfazendas eram vendidas em loja, “com receita enfardadas e atacadas”.

O dinheiro gerado nestas vendas era empregado na aquisição de escravosda Bahia. De fato os registros das balanças de comércio da Bahia com Santosmostram a entrada de cativos, 28 e 100 escravos novos adquiridos,respectivamente em 1814 e 1821. Pernambuco também vendeu escravos para

Santos, totalizando 5 em 1816.

O recurso monetário era a base desta negociação, ou seja, tratava-se deuma economia monetarizada que contava com um suporte creditício deantigos negociantes estabelecidos neste circuito, pois o início dosempreendimentos de Francisco Pereira Mendes só foi possível graças a umparente já estabelecido em Goiás, que “deu-lhe crédito e abonos para ir aoRio de Janeiro comprar fazendas e algumas vezes escravos”27.

Os dados das duas tabelas acima não permitem falar sobre a evolução dos

26 PETRONE, Maria Teresa. O Barão de Iguape: um empresário da época da independência.São Paulo: Companhia Editora Nacional; Brasília: INL, 1976 (Col. Brasiliana, vol. 361).

27 Francisco Pereira Mendes. ANTT, Hábitos da Ordem de Cristo, Maço 4, D. 7, 1753.

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negócios no porto, pois envolvem apenas dois anos que representamconjunturas muito específicas, de transferência da corte para o Rio de Janeiroe de conflitos independentistas no norte. Ambos interferiram diretamentenos ritmos da navegação mercantil.

Mas esses números possibilitam pensar sobre a existência de relaçõescomplementares ligando partes da Monarquia portuguesa e que no interiordo território, a partir da vila de Santos, subindo a serra do mar e seguindo nadireção centro-oeste havia uma demanda por importação de mercadoriaseuropéias e uma capacidade inferior de exportação de mercadorias coloniais.

Pesquisas já demonstraram o caráter deficitário da praça de Santos28,característica inclusive das grandes praças, como indica a leitura dos dadosdas balanças de comércio. No caso de São Paulo, o comércio de animais e o detecidos de luxo no oeste de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás pode termonetarizado a economia da capitania a ponto de evitar o estrangulamentode seu principal porto.

Embora deficitária, a tendência das exportações em Santos foi decrescimento. Já no final do século XVIII era informado que a praça exportavapara “Lisboa e Rio de Janeiro oitenta mil arrobas de açúcar, pouco mais oumenos que se vai em cavalgaduras da vila de Itu e outras de serra acima paraesta, aonde se encaixou e como também outros feitos e mantimentos eproduções das ditas vilas que nesta se exportam para a Bahia, Rio de Janeiroe Rio Grande e que tudo aqui faz e maior tráfico, como vila, porto de mar maisnotável e interessante a esta capitania29.

Essa tendência pode ser observada ao longo dos primeiros anos do séculoXIX no caso do açúcar e de outros gêneros coloniais:

28 MENZ, Centro e periferias..., p. 251-266.29 Mapa da exportação dos produtos da paróquia da vila de Santos no ano de 1798.

Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227, D. 1-25-2.

O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES

ANOS NO DE BARCOS EXPORTAÇÃO TOTAL EXPORTAÇÃO DO AÇÚCAR

1081 2 001$532;12 002$141:91

2081 2 000$510:66 005$510:06

3081 3 046$282:67 004$171:06

4081 4 041$140:491 084$449:141

5081 8 045$039:372 002$452:691

6081 7 041$064:591 002$722:301

7081 01 060$020:922 009$237:68

Fonte: Holanda, S. B. op. cit., p. 419.

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Da praça de Santos exportava-se couros, café, tabaco e algodão. Adiminuição do volume de exportações do açúcar foi relativamentecompensada pelo crescimento vertical das exportações de couro e arroz, quepassaram respectivamente, entre 1801 e 1807, de 298$400 a 52:389$480 e de79$500 a 45:618$24030.

O mapa de exportação de 1798 oferece um quadro mais amplo, indicando,aguardente, goma, farinha de mandioca, madeira com tabuado, azeite debaleia, peixe seco31. Parte destas mercadorias exportadas eram produzidasna própria vila, pois em 1815 a Câmara informava que os produtos locais eramaguardente, farinha de mandioca, arroz em casca, feijão, milho e café,perfazendo um total de 12:240$000, sendo que a farinha de mandiocaenglobava os maiores valores, 5:698$80032.

Em dados da alfândega de Santos para os anos de 1816 e 1818 nota-se umamaior diversificação das importações da Bahia e Pernambuco em Santos,especialmente com relação a gêneros produzidos em Minas Gerais, como osderivados do porco, queijos, fumo ou tabaco e doces33.

Nenhum destes gêneros da indústria mineira aparecem nos mapas deexportação da Bahia e Pernambuco, o que indica que eram estritamenteempregados no consumo interno da região.

No caso da Bahia, ao cruzar os gêneros importados de Santos entre 1808e 1809 com os exportados para outras partes da Monarquia percebe-se quearroz, café e tabaco seguiram para Portugal, Ilha da Madeira; tabaco para aCosta da Mina e Goa. Parte destas mercadorias exportadas certamente era

TABELA 4: CÁLCULO REALIZADO SOBRE OS DADOS DA TABELA 3

ANOS VALOR TOTAL DAS EXPORTAÇÕES DE OUTROS GÊNEROS

1081 009$390:2

2081 005$999:5

3081 042$111:61

4081 069$690:25

5081 043$676:77

6081 049$232:29

7081 061$782:241

30 HOLANDA, Sérgio Buarque. São Paulo. História Geral da Civilização Brasileira - tomo 2 -vol. II. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 420.

31 Mapa comparativo das produções da paróquia da vila de Santos com a especificaçãodo que se consumiu na mesma e dela se exportou no ano de 1798. Alfândega –almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227, D. 1-25-1.

32 Câmara Municipal, Ofícios, 1721-1822. Santos. AESP COO236, D. 10-7-1933 PRADO JÚNIOR, Formação..., p. 148, p. 197-198, p. 203.

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proveniente de Santos. Pernambuco não teve, entre 1811-1815, qualquer tipode comércio com a Ásia, ao contrário da Bahia e exportou para o Porto eLisboa arroz, um dos produtos que também adquiria em Santos.

Arroz, tabaco, café, mercadorias que faziam parte do conjunto deexportações de Santos para Bahia e Pernambuco eram resultado de um circuitomercantil controlado por este porto na costa da capitania e que envolviaUbatuba, Ilhabela, São Sebastião, Iguape, Paranaguá e Santa Catarina.

O comércio de Santos com as capitanias do norte foi complementar ao doRio de Janeiro porque o conjunto das mercadorias importadas era bastantesemelhante. Em 1798 foram importados vinhos de Lisboa, azeite, vinagres,panos de lã, baetas, chapéus, fitas, lenços, todos finos e ordinários, meias deseda, chitas finas e ordinárias, sal de contrato, vinho do porto, linhas finas,ordinárias e grossas, panos de linho fino e ordinário, baetas dos paísesestrangeiros, bertanhas, baetões, durantes finos e ordinários, duquetescastores e ordinários, melanias, retrós do porto, enxadas, pregos, pomadas,louça dos portos do Brasil, pano de algodão, aguardente, feijão, toicinho34.

Observando os mapas de importação e exportação das duas principaispraças deBahia e Pernambuco, entre os anos 1808-1809 e 1811-1815, nota-seque tecidos de luxo vinham especialmente do Recife. Essa praça não teve

34 Mapa dos preços correntes na paróquia da vila de Santos nos meses do ano de 1798.Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227, D. 1-25-4.

O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES

TABELA 5: GÊNEROS EXPORTADOS PARA AS CAPITANIAS DO NORTE

Fonte: Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227.

ANOS BAHIA PERNAMBUCO MARANHÃO

6181

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comércio com a Ásia neste intervalo, o que indica que a mercadorias vinhaespecialmente da Europa, Portugal e Grã Bretanha, tendo em vista que aliberdade de comércio já estava estabelecida. Da Bahia vinham vários tecidosadquiridos em Goa, mas todos ordinários.

Em 1809 a pauta de importações da Bahia em Goa incluía anil, baetas,canela, chá, chalés, chitas, coromandeis, drogas, gangas, gantaz, gengibre,golas, linhas surrates, lenços, maragazes, manodiz, morins, pimentas,prócolos, pimenta, sanas, zuartes35. Entre 1814-1816-1817-1821 Santos importouda Bahia baetas, chalés de seda, sanas, gangas (tecido vulgar), zuarte (tecidode algodão ordinário) e drogas, mercadorias que este porto compravatambém na Ásia36.

As mercadorias de luxo também eram provenientes de Pernambuco.Tomando apenas o ano de 1816 aparecem na listagem das mercadoriasimportadas: chapéus finos, vestidos, guarda sol, chalés, meias, tudo em seda.Seguiam ainda gêneros de consumo alimentar europeu, como manteiga,queijos flamengos, bacalhau, vinho, azeite, vinagre. Como produto colonialdestacam-se os “cocos de cumer”. Estes “cocos de cumer” eramcomercializados na costa sul, especialmente em Santa Catarina.

O que leva a crer que os tecidos e vestimentas de luxo adquiridas nosportos das capitanias do norte, complementado o que já vinha do Rio deJaneiro, subia a serra é a constatação, através dos registros de exportação deSantos, que estas mercadorias não eram distribuídas na costa da capitania.Para Iguape, Paranaguá, Rio de São Francisco seguiram apenas panos ouvaras de panos de algodão e pacotes de fazenda.

As mercadorias européias, asiáticas e escravos da costa da África adquiridospor Santos via capitanias do norte integravam, portanto, o interior da capitaniae o oeste de Minas Gerais e Goiás à Monarquia portuguesa. Os portos menoresda costa eram agregados ao conjunto da Monarquia portuguesa comofornecedores de mercadorias coloniais, seguidos via Santos para as principaispraças atlânticas e para Goa.

O comércio complementar aperfeiçoava o comércio colonial, possibilitandoo acesso às mercadorias européias, viabilizando sua redistribuição em partesisoladas e distantes da costa, ampliando a margem de circulação dasmercadorias coloniais e assegurando a organicidade da Monarquiaportuguesa.

35 Mapa da importação que fez Portugal e navios estrangeiros, África, Ásia e Portos doBrasil sobre a Bahia em todo o ano de 1808.

36 Mapa da Importação e Exportação do Porto de Santos nos anos de 1814, 1816, 1817,1821.

DENISE A. SOARES DE MOURA

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s compromissos dos agentes da Coroa nos domínios colonizadostêm, por muito tempo, sido descritos nos termos de suas relaçõesjunto a grupos bem situados nas redes políticas e econômicasdo Império. A outros sujeitos sociais caberiam, no mais das vezes,disposições reativas e pontuais, em especial de caráter

A OFICINA DOS RITOS: ARTÍFICESNO ARSENAL DE GUERRA DE PERNAMBUCO

Acácio José Lopes Catarino1

repressivo.

As investigações vêm crescentemente considerando estes poderes parabem além da imagem usual de entidades distantes, irresolutas e paquidérmicas.Entretanto, sem recair numa visão dicotômica2, é necessário problematizar apresença dos delegados da Coroa nos diversos âmbitos espaciais einstitucionais nas quais se insere.

A partir de uma série documental sobre o Arsenal de Guerra de Pernambuco(referenciado até os anos 1820 como o Trem de Artilharia), pretende-se aquiabrir uma pequena janela sobre como impactos fundamentais nas condiçõesde trabalho de muitos homens livres, como os artífices, não teriam se efetivadosem o concurso dos órgãos da Coroa.

O período que decorre das reformas empreendidas por Lisboa desde oMarquês de Pombal representa, para a vila do Recife e seus habitantes, omomento em que novos atores adquirem visibilidade nos registros dasautoridades, seja originadas pelos delegados da Corte ou pelos representantesdos poderes locais. No caso dos primeiros, percebe-se o estabelecimento decanais diretos com a população livre urbana de modos muito diversos, quevão desde sua participação nas obras públicas até o apoio direto a associaçõescaracteristicamente pertencentes a estes moradores, como a Irmandade deSão José do Ribamar dos Quatro Sagrados Ofícios3.

Nesse sentido, as necessidades de abastecimento dos corpos militares deprimeira linha ou de milícias vão gerar um circuito de produção e consumoque se inicialmente limitou-se à compra de gêneros e artefatos para os quartéis

1 Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto doDepartamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação emHistória da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador do Grupo de Pesquisas Estadoe Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq).

2 Como exemplar entre muitas obras neste sentido, ver: MELLO E SOUZA, L. O sol e asombra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

3 Para maiores aprofundamentos, ver o primeiro capítulo de: CATARINO, Acácio JoséLopes. A interface regional: militares e redes institucionais na construção do Brasil(1780-1830). Tese de Doutorado (História Econômica). Faculdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas; Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002.

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e vilas, iriam progressivamente incluir a contratação de artífices e mesmo suaconscrição. Uma relação nova e problemática institui-se então para estessoldados-especialistas, até então forjados pelos padrões da economia moral4

em suas of icinas, e que os coloca sob uma hierarquia que é não sóburocratizada como também militarizada, com suas lógicas próprias.

Este jogo iria se desdobrar para além da esfera dos mestres e oficiais,chegando ao estabelecimento de oficinas de aprendizes, assim afetandoprofundamente a reprodução de toda esta camada A atribuição de sua(possível) decadência pela concorrência das mercadorias européias após aabertura dos portos (a partir de 1808-10) tem que ser assim relativizada pelaintervenção destes aparatos militares.

Nos limites deste trabalho, será privilegiada a experimentação de moldesburocráticos adequados ao gerenciamento de grupos de trabalhadores nasoficinas do Arsenal de Pernambuco a partir de 1811, quando se inicia a sériedocumental, ao final do Primeiro Reinado, após o qual se assiste a profundasrevisões no papel dos militares na construção do Estado. Entretanto, paraque não sejam entendidas como uma série de ações localizadas é importanteretomar brevemente como os formuladores das políticas de modernizaçãoabsolutista5 na cultura política luso-brasileira pretendiam refazer este setor.

Com relação aos artífices, já há algum tempo estavam sob pressão daprópria Corte. Marcelo Caetano demonstrou como desde 1761 decretos régiosproporcionaram à Junta de Comércio assumir uma jurisdição paracorporativa,deslocando a anterior autonomia da Casa dos Vinte e Quatro e da Câmara6. D.José I pôs-se à frente das reformas dos regimentos dos mesteres de Lisboa apartir de 1771, cujas consequências seriam o aperto sobre os jornais pagos e auniformização dos padrões produtivos.

Estas intervenções caminham a par de um renovado interesse pelasmanufaturas, a princípio associadas ao fornecimento da Casa do Rei e dosregimentos do exército (como os lanifícios da Covilhã, Fundão e Porto Alegre).Há movimentos entretanto num sentido mais articulado ao Império, como aobrigatoriedade de todos os teares de seda de Lisboa e seu termo a integraremuma única corporação, o que possibilitava à Real Fábrica de Sedas do Ratoconcentrar a limitada e dispersa produção doméstica e das oficinas de modoa estabelecer um fluxo regular, adequado à exploração pelas companhias decomércio dos monopolizados mercados coloniais. Não demorou muito paraque este circuito fosse considerado por um contemporâneo de D. Maria I “o

4 No sentido indicado Por E. Thompson: “O meu objeto de análise era (...) a cultura política,as expectativas, as tradições e até as superstições dos trabalhadores (...); e as relações – àsvezes negociações – entre a multidão e seus governantes (...)”. THOMPSON, E. Costumesem comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 204.

5 Nos termos do segundo capítulo, “La modernidad absolutista” de F. Guerra. GUERRA, F.Modernidad e independencias: ensayos sobre las Revoluciones Hispánicas. 2. ed. Ciudaddel México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 55 e ss.

6 CAETANO, M. A Antiga Organização dos Mesteres da Cidade de Lisboa. In: LANGHANS,F. As corporações dos ofícios mecânicos. Lisboa: Imprensa Nacional, 1943, p. IX-LXXV.

ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

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esteio do império”.

No entanto, o alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibia manufaturas delinho, lã, seda e algodão nos domínios da América, reconhece que “a verdadeirae sólida riqueza [consiste] nos frutos e produções da terra, os quais somente seconseguem por meio de colonos e cultivadores e não de artistas e fabricantes”7.Mas seria enganoso deixar-se levar apenas pela sua implícita valoraçãofisiocrática, ou assumir que com a política de contenção do contrabandofossem os únicos móveis a respaldar os interesses em torno desta questão.

O lugar reservado às atividades dos artífices em textos econômicos de umdoutrinador paradigmático pode exemplificar outras razões por onde sebuscava encaminhar este setor na virada do século XVIII para o XIX8. Tomandocomo ponto de partida e de chegada de sua reflexão a articulação equilibradaentre as diferentes partes do Império, Azeredo Coutinho admite suanecessidade para a autonomia do Reino frente a outras monarquias da Europa,mas adverte para os cuidados na implementação dos estabelecimentos.

A todo custo deveria ser evitado o excessivo afluxo de riquezas nestesetor para não desequilibrar aos demais nem encarecer em demasia a mão-de-obra. O fabrico de artigos de luxo exigiria artífices qualificados, aliás maiscomuns nas potências concorrentes e, portanto, não deveriam serconsentidos. Mas o mais interessante é a relação que tece entre razão deEstado e os homens livres que andavam à margem dos benefícios do progressomaterial do Império. Os estabelecimentos a serem fundados deviamsimultaneamente promover a fixação dos pobres e ocupá-los nos serviçosvitais à República, ou seja, na produção de vestuário e armas para o exército,velas e cordas para a marinha, além do couro e do papel.

Deste modo, os arsenais de guerra (e de marinha) tinham uma funçãoimplícita de integrar os desocupados ao impedi-los de servir a si próprios,guiando-os em direção aos interesses maiores da nação. Na capitania dePernambuco, este papel pode ser creditado primordialmente à Inspetoria doTrem Militar. Como o Trem encontrou a sua forçada clientela e como podeadaptá-la aos seus propósitos?

Para isto é importante avaliar as dimensões externas e internas queconformaram a oficina urbana. Em primeiro lugar, o serviço de Sua Majestaderequeria não apenas homens livres mas também sua fixação, sua constância,sua regularidade. Estas premissas estavam ausentes das experiênciascotidianas dos artífices coloniais e, por conseguinte, sua integração trazia anecessidade de modificar, pelo menos em parte, a postura de incorporaçãoeventual em favor de outros modos de controle, mais sofisticados que osusuais e mais adequados ao manejo de homens e coisas nas atividadesartesanais.

7 NOVAIS, F. A proibição das manufaturas no Brasil e a política econômica portuguesa nofim do século XVIII. Revista de História, São Paulo, n. 67, p. 165.

8 COUTINHO, J. de A. Ensaio sobre o comércio de Portugal e suas colônias. In: HOLANDA,S. B. de (org.). Obras econômicas de Azeredo Coutinho (1794-1808). São Paulo: CompanhiaEditora Nacional, 1966, p. 55-172.

A OFICINA DOS RITOS

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Seria necessário, desse modo, inserir uma cunha regeneradora nos hábitosdestas camadas. Não havendo possibilidade de maiores reformulaçõestecnológicas ou de importação maciça de mão-de-obra qual poderia ser asaída? A resposta poderia estar na subversão da hierarquia tradicional daoficina pela sua subordinação ao controle militar direto.

O que representava subverter esta hierarquia? Já não se tratava apenasde encaminhar novas ordens e diretivas gerais e esperar vê-las atendidas;significava, de um só golpe, penetrar na normatividade consuetudinária daoficina para enfraquecê-la em seu interior e reconstruí-la num outro campodo jogo de representações simbólicas do trabalho. A burocracia busca entãoser o elemento coesionador ao romper com alguns dos pontos-chave destasrelações tradicionais, pois ao submetê-la a uma ambiência institucionalizadaemprestou-lhe um caráter como que obrigatório, dotado de uma lógica fixa,ao contrário do personalismo e da aleatoriedade que regiam a oficina nacidade colonial.

De qualquer modo, é possível começar a caracterizar quais são as balizasdesta mudança de perspectivas ao rever o comportamento dos personagensinseridos na oficina tradicional. Uma gravura de Debret sintetiza um dia naoficina de um sapateiro. Embora as prateleiras envidraçadas e os calçados deseda colorida demonstrem uma boa situação do mestre, também o mostratrabalhando cercado por seus escravos, desvelando uma ambiência comum aoutros artífices. A punição como parte do rito cotidiano é assinalada pelotexto explicativo que acompanha a gravura, como um castigo recebido “de

ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

Fig. 1 – Jean-Baptiste Debret, A Loja do Sapateiro.Gravura publicada no Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.

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acordo com a falta” – para aquele que a aplica e inclusive para quem a sofre9.

Esta cena, que é registrada com certa ansiedade por outro dos escravospresentes, é observada por sua mulher através da porta que comunica aoficina aos aposentos domésticos. Esta aparente intimidade é ainda maisressaltada por estar amamentando uma criança. Ao mesmo tempo, o interiorda of icina não parece estar vedado à entrada livre de fregueses oucompanheiros dos sapateiros

A partir da identificação da oficina como ponto de interseção do espaçodoméstico com a rua, o artesão reagia costumeiramente aos diversos estímulosdestes ambientes de forma mais ou menos livre, retardando ou acelerandoencomendas segundo sua conveniência, num procedimento quepossivelmente causava estranheza a estrangeiros, oriundos de sociedadesaonde a ética do trabalho abstrato já se vulgarizara em amplos setores.

Neste enquadramento oficinal também a compulsão tinha seu lugar –como foi dito, um dos trabalhadores é punido de forma dolorosa –, mas estahierarquização centrada na figura do mestre era contrabalançada pelo fatode que a tradição limitava seu alcance ao inscrever num mesmo horizontecultural os integrantes da oficina. Num quadro de escassa mobilidade social ecultural-valorativa, isto acabava por gerar um encadeamento de atitudes eexpectativas circulares quanto à sua inserção no local de trabalho e na vidasocial – neste período fortemente imbricados –, que se por um ladoestabilizaram a rotina das oficinas, por outro lado as tornaram poucoadaptáveis às novas necessidades do século XIX, que no Brasil também foium período de mutações generalizadas.

O Trem impacta-se à esta iniciação pela sabedoria “comum”, tradicional.Ao controle pessoal, opõe a ordenação institucional e impessoal; ao saberimplícito no fazer, explicita um discurso racionalizante e transcendental, queapela ao serviço da Pátria e do imperador. Um mantém-se pela reiteração dosatos cotidianos, outro procura reproduzir-se pelo efeito teatral ou coercivo,adaptável segundo as exigências das diferentes conjunturas.

A superposição do militarismo ajudou a este tráfego: vincula-se melhor otrabalhador à defesa da nação, à manutenção da soberania. Na fala dosinspetores foi muito forte a perspectiva ordenadora universalizante: No Trem,“como Casa Real”, trabalha-se “por conta da Nação” porquanto “é a primeiraobrigação do vassalo habilitar-se no exercício das armas para defender o seusoberano e sua Pátria”. Não por acaso os inspetores estavam no epicentro dopoder militar da capitania, assinando seus documentos a partir do “Quartelde Pernambuco” 10.

O Trem, portanto, foi um dos efetivadores desta passagem vital – necessária

9 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. 2 vol. São Paulo: Martins;Edusp, 1972, p. 251.

10 Respectivamente, Arsenal de Guerra (AG). AG-1, 5.6.1818, f. 242; AG-1, 29.9.1823, f. 150;AG-1, 11.3.1819, f. 277.

A OFICINA DOS RITOS

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mas não suficiente para instalar mecanismos de controle especificamentecapitalistas – da inversão da equação:

TRABALHO = ESPAÇO DA RUA + ESPAÇO DOMÉSTICO

para a relação:

TRABALHO = CONTROLE INSTITUCIONAL X NÃO-TRABALHO = CASA/RUA.

Se a primeira equação tendia a equilibrar os laços que unem os estímulosda rua às exigências da casa, a segunda operou uma ruptura ao instituir umapolarização completa entre estes espaços, absolutizando a prioridade dotempo de trabalho sobre as demais atividades do artífice.

Estes instrumentos de controle do trabalhador generalizaram-se a tal pontoque por vezes se torna difícil percebê-los como fatos históricos, isto é,construídos; mas para os que sofreram esta implementação, devem teradquirido uma dimensão bem mais chocante do que poderia pareceratualmente. Como alguém já disse, os homens do século XIX não sabiam queatitude tomar frente ao trabalho; já no século XX não se sabe o que fazer forado trabalho.

Estas modificações podem ser inicialmente diferenciadas segundo suasconsequências diretas ou indiretas sobre o processo de produção. Asinstalações do Trem dispunham-se de modo trinário, com oficinas, quarteldos educandos e armazéns. Isto dará origem a um dos maiores problemasenfrentados pelos inspetores: a dispersão por vários pontos da cidade daestrutura física do Trem.

As oficinas ocupavam parte do antigo Colégio dos jesuítas (tambémutilizado como Palácio de despachos dos governadores desde o final do séculoXVIII), defronte ao cais que passou a ser chamado “do arsenal”, facilitando orecebimento de materiais de grande porte ou número por via marítimo-fluvial.

O parque do Trem estava situado em uma casa no extremo norte do bairrode Santo Antônio, junto ao Palácio Velho; armazenando madeirame, reparose carros de artilharia de posição e de campanha11. A ele estava anexo oLaboratório pirotécnico, que devido ao manejo de materiais explosivos nãopodia situar-se dentro do arruado12. Já o quartel dos educandos ficou próximoao Trem, permitindo que circulassem por duas vezes a cada expediente entreas oficinas e o quartel para as refeições, aulas e dormida13.

Esta configuração tornou quase impossível o acompanhamento imediatodos serviços e deixou certamente aberturas para o enraizamento de atitudesindependentes nas oficinas. No mínimo trouxe dif iculdades para umacoordenação ampliada das oficinas, condição básica para sua transformação

11 Respectivamente, AG-1, 2.11.1818, f. 253 e 8.2.1819, f. 265.12 Apesar de que por vantagens na vigilância o inspetor procurou trazê-lo para o Convento

do Carmo. AG-1, 23.2.1818, f. 240.13 AG-2, 10.2.1824, f. 175 e 175 v.

ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

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em manufatura orgânica. Não é de admirar que o inspetor Amaro de Mouratenha proposto em 1828 o desligamento do parque (que deveria voltar aocontrole do regimento de artilharia) e dos educandos, que poderiam ficaradscritos ao Liceu provincial14.

Já o inspetor Michiles considerava que o problema principal do Trem nãoestava tanto no sistema de administração e nem mesmo na prejudicial formade compras pela Fazenda Real, mas na falta de controle da entrada e saídados trabalhadores; por algum tempo sua preocupação girou em torno daconstrução de um novo edifício, cujo plano deveria ordenar os fluxos segundoas necessidades do trabalho contínuo nas oficinas, evitando deste modo aintromissão de particulares, as ausências dos artífices e o sumiço dos produtos:sem isso, “as faltas continuam e só se podem conhecer segurando o contorno doTrem e fechando algumas oficinas”15.

Parecia que ao tentar estabelecer registros contábeis e dispor as instalaçõesfísicas de modo a disciplinar o artífice, a nova ordem precisava ao mesmotempo murar-se para resguardar-se de um ambiente hostil. A segregação seexprimiu através de diversos modos de controle destes intercâmbios.

Em uma relação enviada ao presidente da província caracteristicamentedividiram-se os empregados do setor de apoio burocrático entre os quecuidavam da guarda (dos objetos), da vigilância (dos trabalhadores) e daescrituração16. O controle diário de presença era realizado pelo fiel doalmoxarife, mas a barreira que gerou mais tensões no dia-a-dia foi a efetivadapelo porteiro, encarregado não só da abertura do expediente como dainspeção no encerramento, acompanhado do oficial ajudante-de-ordens doinspetor, o que resultou em diversas prisões e rixas17.

As licenças também permitiram regular as saídas mais prolongadas,intermediadas pela autoridade dos médicos do Hospital Militar ou abonadaspelo inspetor àqueles mais disciplinados, constituindo-se em mais um espaçode negociação entre as partes18.

A melhor expressão pictórica desta mudança é o mapa de presença: divididouniformemente, sequenciado de oficina em oficina pela escala hierárquica,não apresenta nomes e sim uma contabilidade que diz respeito ao tamanhodo plantel empregado e às somas despendidas em pessoal e material.

Esta contabilidade (que tinha sua origem também nas demandas dosdemais órgãos públicos, claro) exigia e justif icava a presença de umaburocracia anexa, guardiã das regulamentações e canal privilegiado dasrelações do Trem com o mundo exterior, do qual tentará filtrar apenas aquelesestímulos condizentes com os fins ideais da instituição. Muitas vezes os

14 AG-2, 17.6.1828, f. 37. Deve ser lembrado que não só as armas dos milicianos foramcontroladas pelos inspetores, como também a ferraria da intendência.

15 AG-1, 19.11.1818, f. 255; AG-1, 2.11.1818, f. 252 v e AG-1, 28.11.1818, f. 256 v.16 AG-1.21.10.1825, f. 113.17 AG-1, 1.10.1821, f. 219; AG-1,14.10.1825, f. 98; AG-2, 9.9.1831, f. 163.18 AG-1, 18.6.1824, f. 188; AG-1, 24.4.1823, f. 128; AG-1, 28.7.1820, f. 311.

A OFICINA DOS RITOS

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inspetores não aceitaram ordens “bocais”, como diziam, insistindo natransmissão escrita dos requerimentos.

Estas regulamentações acabam por imprimir um sentido diverso docotidiano das oficinas, manifestado pela precoce autoconsciência destesempregados. Contrariamente ao que ocorria na área empenhada naprodução, onde prevalece a improvisação (que às vezes é uma virtude noartíf ice), estes funcionários estavam em boa posição para barganharvantagens. Conhecedores dos códigos do aparelho do Estado e munidos deinformação a que somente eles poderiam ter acesso (como por exemplo ossalários na intendência e no Erário), demonstram a tendência dehomogeneização do incipiente organismo público entre os serviços-meio,introduzindo por vias transversas no Trem princípios mais sofisticados eabstratos de avaliação e valorização da força de trabalho.

Embora procurando inserir suas atividades “no meio deste comumLaboratório” para melhor justificarem suas necessidades, sua especificidadecomo articuladores bem pode ser aquilatada pelas consequências da fuga eprisão do fiel do almoxarife durante o cerco da Junta de Goiana: fome entreos setenta e três educandos, atraso nos jornais dos artífices, descontrole dosregistros de presença e perda durante semanas dos contatos com a FazendaReal19.

Através desta burocracia, portanto, se produziam novos modos dereferenciação do trabalho, que repercutiram do um modo ou de outro nointerior das oficinas. Procurou-se estabilizar uma mecânica disciplinar atravésda regulamentação das funções, de modo a uniformizar os castigos segundoa hierarquia; se, como diz Mello e Souza, a pena e o castigo são o próprio meiode conversão do desclassificado em homem livre útil, os inspetores do Tremprocuraram ultrapassar a simples resolução deste ônus, tanto ao considerarque a eficácia dependia de contrapartidas – “o Estado ganha em lhes pagarbem e castigá-los melhor” – como ao buscar a reprodução em novos termosdos trabalhadores ao constituírem uma oficina de educandos20.

Estes inspetores, inclusive, aliavam à sua autoridade o conhecimento doespecialista na artilharia e engenharia – alguns deles chegaram a publicarescritos em Portugal e no Brasil. Na Europa, foi através de construtores –como Brunelleschi – e principalmente através dos militares – como Vauban,fundador da engenharia militar, a “matriz das engenharias” – que aracionalidade realista e funcional abriu brechas iniciais no domínio dos ofíciospelas corporações artesanais; “o soldado da engenharia é o soldado coletivo,programado”, que fornecia modelo para a organização manufatureira dotrabalho21.

A lógica do soldado casa-se até certo ponto com a do artífice: foram dos

19 AG-1, 10, 16, 21 e 28.2.1821, f. 207 a 210 v; AG-1, 1 e 16.10.1821, f. 219 e 221.20 AG-1, 28.11.1818, f. 256; AG-1, 28.2.1821, f. 208 v. MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados

do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 74.21 GAMA, R. Engenho e tecnologia. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 243.

ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

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primeiros a viverem de soldo na cidade colonial, bem como sua gradaçãocorporativa possuía elementos comuns – seus graduados se identificavamcomo “mestres” e “oficiais”. Mas não há dúvidas que as sobreposiçõeshierárquicas ocorridas no Trem indicavam a predominância dos componentesmilitarizantes: “O Trem é um estabelecimento militar, o inspetor dele um oficialmilitar e sobre um e outro (exceto o caso da compatibilidade) só Vossa Excelênciagoverna” 22. Os artífices nele “assentam praça”, as oficinas são supervisionadaspor militares de alta patente e ponto capital para o provimento do mestre erasua subordinação – a existência de oficinas sem mestres pode também dever-se a essas exigências.

Entretanto, os limites técnicos deste controle não apenas faziam com quea coerção direta fosse utilizada alternadamente a outros meios, como seexpressavam inclusive pela manutenção das anteriores subdivisões dos ofícios,posto que favoreciam a vigilância mais estrita dos mestres e diminuía os meioshumanos e materiais postos a sua disposição, como o mostra a punição domestre da ferraria – que havia destratado o coronel de artilharia encarregadodas oficinas de fundidores e funileiros:

Remeti-o outra vez para a cadeia e rogo a / V. Excelência que nocaso em que ele insista / em não vir ao Trem, o mande carregar deferros / e que se disser que está doente o faça curar / preso noHospital Real Militar à sua custa. Este / homem tem a seu cargo eresponsabilidade muito / ferro, aço, limas e ferramentas, emostrando-se / ressentido por haver sido preso pelo Major Michiles/ ou não querendo trabalhar no Trem por / assistir o Capitão Miranda

torna-se uma cabeça de / motins. 23

Como se pode depreender, todas aquelas modificações introduzidas pelaburocratização do trabalho na oficina foram na prática vivenciadas comouma desqualificação no estatuto destes trabalhadores, seja através daspenalidades ou pela assimilação ao trabalho compulsório, seja pelorompimento dos laços corporativos ou pela perda de sua relação direta como mercado. De qualquer modo, seria a Coroa que por meio de suas vertentesmilitares tentou recriar a figura do artífice na urbe, concretizada através dasua instrumentalização pelos arsenais régios, seguindo os objetivos daproposta coutiniana de manufatura.

22 AG-1, 29.4.1819, f. 295 v.23 AG-1, 4.3.1819, f. 273 v.

A OFICINA DOS RITOS

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Este livro foi impresso nas oficinas gráficas da Editora Universitária,em papel Pólen 80g/m2 (miolo) e papel Supremo 240g/m2 (capa),

com tiragem de 500 exemplares, em dezembro de 2009.Sua editoração utilizou os softwares Adobe PageMaker e CorelDRAW!

O corpo do texto foi composto com a fonte Candara.As capitulares foram retiradas do livro Les singvlarites de la France

Antartiqve, avtrement nommée Ameriqve: & de plvsievrs Terres et Islesdecouuerts de nostre Temps, do Fr. André Theuet, publicado em Paris no ano

de 1557 pelos herdeiros de Maurice de la Porte, com privilégio real(exemplar da Biblioteca do Congresso dos EUA,

disponível no portal web Google Books).

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