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ENSAIOS FILOSÓFICOS

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Coleção Ethos

Coordenação: Claudenir Módolo Alves

• Cérebro e o robô (O): inteligência artificial, biotecnologia e a nova ética, João de Fernandes Teixeira• Conceito de Deus após Auschwitz (O): uma voz judia, Hans Jonas• Economia e bem comum: o cristianismo e uma ética da empresa no capitalismo, Élio Estanislau Gasda• Ensaios filosóficos, Hans Jonas• Ética de Gaia: ensaios de ética socioambiental, Jelson Roberto Oliveira; Wilton Borges dos Santos • Ética e cidadania na educação: reflexões filosóficas e propostas de subsídios para aulas e reuniões, Antônio Bonifácio Rodrigues de Sousa• Ética pós-moderna, Zygmunt Bauman• Ética, direito e democracia, Manfredo Araújo de Oliveira• Ética, direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, Paulo César Nodari• Hans Jonas e a filosofia da mente, Wellistony C. Viana• Karl-Otto Apel: itinerário formativo da ética do discurso, Antonio Wardison C. Silva• Morte social (A): mistanásia e bioética, Luiz Antonio Lopes Ricci• Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade, Hans Jonas• Tratado de bioética, Christian Byk• Vida, técnica e responsabilidade: três ensaios sobre a filosofia de Hans Jonas, VV.AA.

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Hans JonasTradução de Wendell Evangelista Soares Lopes

ENSAIOS FILOSÓFICOSDA CRENÇA ANTIGA AO HOMEM TECNOLÓGICO

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Direção editorial: Claudiano Avelino dos SantosCoordenação de revisão: Tiago José Risi LemeCapa: Anderson Daniel de OliveiraEditoração, impressão e acabamento: PAULUS

1ª edição, 2017

© PAULUS – 2017

Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 – São Paulo (Brasil)Tel.: (11) 5087-3700 • Fax: (11) 5579-3627paulus.com.br • [email protected]

ISBN 978-85-349-4594-3

Seja um leitor preferencial PAULUS.Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções:paulus.com.br/cadastroTelevendas: (11) 3789-4000 / 0800 16 40 11

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Jonas, Hans, 1903-1993Ensaios filosóficos: da crença antiga ao homem tecnológico / Hans Jonas; tradução de Wendell Evangelista Soares Lopes. – São Paulo: Paulus, 2017. Coleção ethos.

Título original: Philosophical essays: from ancient creed to technological man.

ISBN: 978-85-349-4594-3

1. Ensaios filosóficos 2. Filosofia I. Título.II. Série.

17-04217 CDD-102

Índice para catálogo sistemático:1. Mistanásia: Abordagem bioética 177

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SUMÁRIO

Introdução .......................................................................................... 09

Parte ICIÊNCIA, TECNOLOGIA E ÉTICA

1. Tecnologia e responsabilidade: reflexões sobre as novas tarefas da ética ........................................ 23

2. Elementos judaicos e cristãos na filosofia: sua participação na emergência da mente moderna ....................... 51

3. Do século XVII em diante: o significado das revoluções científica e tecnológica ....................... 85

4. Conhecimento socioeconômico e ignorância de metas ................... 141

5. Reflexões filosóficas sobre a experimentação com sujeitos humanos ....................................... 177

6. Contra a corrente: comentários sobre a definição e a redefinição da morte ..................................... 219

7. Engenharia biológica — uma previsão ........................................... 233

8. Problemas contemporâneos da ética desde uma perspectiva judaica ......................................... 273

Parte IIORGANISMO, ESPÍRITO E HISTÓRIA

9. Os fundamentos biológicos da individualidade ............................... 295

10. Spinoza e a teoria do organismo .................................................... 325

11. Visão e pensamento: uma resenha do livro Pensar visual ................ 351

12. Mudança e permanência: sobre a possibilidade de compreensão da história .......................... 371

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Parte IIIO PENSAMENTO RELIGIOSO

DOS PRIMEIROS SÉCULOS CRISTÃOS

13. A síndrome gnóstica, tipologia de seu pensamento, imaginação e disposição espiritual .................. 407

14. O Hino da Pérola: estudo de caso de um símbolo e as reivindicações de uma origem judaica do gnosticismo .................... 429

15. Mito e misticismo: um estudo sobre objetificação e interiorização no pensamento religioso ................... 449

16. A metafísica de Orígenes acerca do livre-arbítrio, da queda e da salvação: uma “Divina comédia” do universo ......................... 469

17. A alma no gnosticismo e em Plotino .............................................. 497

18. O abismo da vontade: meditação filosófica sobre o sétimo capítulo da Epístola de Paulo aos Romanos ...................... 513

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Com duas exceções, os ensaios reunidos neste volume foram publicados durante os anos de 1965 até 1973. Alguns passaram por revisão e aumento em graus variados para a sua republicação aqui. Agradecimento se deve enormemente aos editores que gentilmente deram permissão para republicar os artigos referidos.

Desejo agradecer ao Dr. Adolph Lowe e ao Dr. Robert Heil-broner por seu útil conselho concernente à ordem e título desta coletânea.

Leon R. Kass, M.D., forneceu valiosas observações – a respeito do manuscrito não publicado sobre engenharia biológica – que receberam de bom grado minha atenção. As muitas dívidas de gratidão que tenho para com meus colegas do Institute of Society, Ethics, and the Life Sciences [Instituto de Sociedade, Ética e Ciências da Vida] pelos benefícios que obtive da colaboração com eles podem ser apenas coletivamente reconhecidas aqui.

Quero agradecer a meu assistente, o senhor Richard Rainville, por sua diligência na preparação do manuscrito para impressão e na conferência de minhas revisões.

AGRADECIMENTOS

PARA ADOLPH LOWE,meu atento crítico e amigo.

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INTRODUÇÃO

É de praxe que um autor que reúna uma variedade de ensaios em um único volume lhe ofereça um prefácio com umas

poucas palavras de justificativa para tal procedimento. Algo além desse ritual é exigido quando a variedade de temas é tal como a que o índice deste volume revela a uma primeira vista. Minha justificativa nas páginas seguintes é intelectual, bem como bio-gráfica. Esse último aspecto não pode ser evitado, na medida em que matiza o primeiro aspecto com aquele elemento irredutível de contingencia, de que um século como o nosso não poupou a vida do intelecto. A despeito dessa intromissão do acidente biográfico, espero oferecer algumas justificações prévias sobre a unidade do propósito filosófico que une a ampla temática espa-lhada por esses artigos escritos durante a última década.

Tendo me formado, durante a década de 1920, na escola de professores tais como Husserl, Heidegger e Bultmann, comecei meu próprio trabalho acadêmico no campo do pensamento cris-tão primitivo e clássico tardio. Meu primeiro livro publicado foi sobre o embate de Agostinho com o problema do livre-arbítrio no curso da controvérsia pelagiana;1 e, por muitos anos após essa publicação, toda minha energia teórica foi absorvida pelo fenômeno do gnosticismo e seu papel no mundo da Antiguidade em declínio. Comprometi-me com uma tarefa analítica compre-ensiva e, talvez, superambiciosa e sintética, que estava destinada a nunca se completar (não até o presente dia, pelo menos) em seu escopo inicialmente concebido. O primeiro volume2 encontrou

1 Augustin und das paulinische Freiheitsproblem [Agostinho e o problema paulino da liberdade] (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1930; 2ª ed. 1965).

2 Gnosis und spätantiker Geist I [A gnose e o espírito tardo-antigo I] (Göttingen, 1934; 2ª ed. 1954; 3ª ed. 1964).

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uma publicação em 1934, na Alemanha, que eu deixara no ano anterior, e não antes de vinte anos depois recebeu um segundo volume,3 cujo lume fora anunciado como iminente na capa do primeiro livro. Pois, a partir desse período em diante, eventos históricos bastante conhecidos para que se exija sua narrativa aqui interviram no destino da obra, não apenas no que se refere aos prospectos de sua eventual publicação em minha terra nativa, mas também no que se refere à minha habilidade de completá-la sob as condições de exigências adaptativas de uma nova vida no que era então a Palestina. Ainda assim, a obra permaneceu comigo durante todos esses anos antes da Segunda Guerra Mundial; e dentro do pequeno, mas intenso, mundo da academia jerusalemi-ta, fui rotulado como um especialista nesse campo. Quanto esse rótulo de especialista era o caso — com a carreira apócrifa do livro publicado na Alemanha — na então remota cena europeia, fui descobrir apenas mais tarde.

Durante cinco anos fiz parte do exército britânico na guerra, lutando contra Hitler, e isso inaugurou o segundo período de minha vida teórica. Longe dos livros e de toda aquela parafernália da pesquisa, fui forçado a parar de trabalhar no projeto sobre o gnosticismo. Mas algo mais substancial e essencial estava envol-vido. O estado apocalíptico das coisas, o colapso que ameaçava o mundo, a crise climática da civilização, a proximidade da morte, a total nudez em relação à qual todas as questões da vida eram expostas, todas essas coisas foram razão suficiente para que eu lançasse um novo olhar sobre os próprios fundamentos de nosso ser e revisse os princípios com os quais guiamos nosso pensar em relação àqueles fundamentos. Assim, largado a meus próprios recursos, fui lançado na tarefa fundamental do filósofo e em seu fazer mais próprio — o pensar. As circunstâncias da existência

3 Gnosis und spätantiker Geist II [A gnose e o espírito tardo-antigo II] (Göttingen, 1954; 2ª ed. 1966).

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eram marcadas pela necessidade de ter que viver em tendas e barracas, marchar ou ficar em posição, seja apenas portando armas ou mesmo as disparando em combate; enfim, todo o primiti-vismo e as sucessivas perdas de vidas de soldados que marcam uma longa guerra. E, embora essas circunstâncias sejam muito desfavoráveis para o trabalho acadêmico, elas não impedem, mas são até mesmo eminentemente propícias ao pensar — desde que exista uma vontade para tal.

Os resultados de meu repensar sobre os fundamentos durante aqueles anos aparentemente infindáveis estabeleceram minha tarefa filosófica pelas duas décadas posteriores. As principais verdades, embora poucas, que então percebi e das quais passei a tirar conclusões foram estas:

(a) Que a linha dominante da filosofia em que me formara na Alemanha, a saber, o idealismo da consciência — seja na forma do neokantismo, da fenomenologia, ou do existencialismo, irmãos de sangue no que se refere ao foco exclusivo dado ao aspecto mental — expôs não mais do que a ponta do iceberg de nosso ser e deixou submersa a ampla base orgânica na qual o milagre do espírito [mind] está assentado;

(b) Que essa era a herança do dualismo cartesiano, que tinha cindido a realidade em res cogitans e res extensa (o que o até en-tão desconhecido para mim Alfred North Whitehead chamou de “a bifurcação da natureza”), e cuja permanência continuada, sob uma forma ou outra, durante toda a teorização subsequente afetou a questão ontológica em suas raízes;

(c) A reclusão da filosofia na parte mental da dicotomia — que deixou toda a “natureza” para a ciência vitoriosa e substituiu a filosofia da natureza por uma epistemologia da ciência natural, fazendo com que a própria ideia de uma filosofia da natureza fosse renunciada — não foi apenas um escândalo da filosofia em si mesma, mas viciou o seu trabalho no campo residual de sua escolha (ou cativeiro);

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(d) Que, portanto, revisar a premissa dualista e, antes de tudo, repensar o próprio problema do dualismo tornaram-se a principal tarefa da crítica filosófica; e, quanto a sua tarefa positiva,

(e) Que o organismo, com sua insolúvel fusão entre interio-ridade e exterioridade, constituía a contraevidência crucial à divisão dualista e, por nosso privilegiado acesso experiencial a ele [o orgânico], o paradigma primevo para a filosofia do ser concreto e não cerceado — de fato, a chave para a reintegração da fragmentada ontologia em uma uniforme teoria do ser.

Em relação aos propósitos práticos, seguiu-se dessas afirmações que o que se refere à consecução da última meta ainda muito distante, uma interpretação ontológica do ser orgânico, trans-cendendo as cristalizadas dicotomias do passado, era claramente o primeiro passo indispensável para tanto. Para a filosofia, algo estranho de se dizer, isso era quase uma terra virgem! Claramente, também a execução desse primeiro passo levaria além do confi-namento antropocêntrico da maior parte da filosofia moderna, quer dizer, ao reino vivo, do qual o homem é uma parte. De uma perspectiva histórica, a tarefa implicava a crítica de teorias passadas marcadas pelo dualismo, e precisava ao mesmo tempo salvar as verdades duradouras que o dualismo conquistou para o pensamento durante seu domínio histórico. De uma perspectiva sistemática, a tarefa envolvia uma atenção séria, mas não servil, aos ensinamentos da ciência natural, especialmente da biologia. Portanto, um programa exigente de longa extensão estava to-mando corpo. Com esse esboço de pontos teóricos, peço licença para retornar à narrativa.

Ansioso para iniciar a nova tarefa, e também convencido de que doze anos de investigação sobre um tema de caráter histórico foram o bastante para a aprendizagem de um filósofo, retornei à vida civil determinado a deixar para trás meus estudos sobre o gnosticismo no ponto em que o acidente da guerra os tinha interrompido, dedicando os anos subsequentes totalmente ao

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desenvolvimento da filosofia do organismo cujas linhas gerais tinha concebido e começado a anotar durante o fértil interme-zzo. Logo aprendi que a tentativa de escapar do início de nossa carreira não é facilmente permitida pelo mundo e, por razões internas, isso também nunca pode ser feito de maneira total. O primeiro sinal disso apareceu antes que eu tirasse o uniforme, quando fui para a então devastada Alemanha, junto com as forças de ocupação (tornando verdadeira, a propósito, a promessa que fiz quando deixei a Alemanha doze anos antes, a saber: de não voltar senão como soldado de um exército conquistador). No reencontro profundamente comovente com os poucos imacula-dos, tomei conhecimento do impacto que o primeiro volume de Gnosis und spätantiker Geist teve durante aqueles anos sombrios, sem o benefício de uma revisão pública, um impacto que me era desconhecido, indo além das minhas expectativas, e também muito além dos limites especializados do tópico. Foram notí-cias gratificantes — e, acidentalmente, uma demonstração da verdade provavelmente mais geral de que um livro pode tomar seu caminho, por assim dizer, pelas costas do júri oficial. Mas os apelos quase apaixonados de homens tão reverenciados como Bultmann e Jaspers para que eu desse continuação ao trabalho e publicasse a prometida Parte II misturou a gratidão com um conflito de lealdades acerca de tarefas — em relação a um con-trato antigo [os estudos sobre gnose] e a um novo compromisso [a filosofia do organismo], com a primeira tarefa tendo recebido a força da tentadora armadilha do sucesso. Um subproduto mais superficial, mas tenaz, dessa situação foi o fato aparentemente crescente de que aos olhos do meio acadêmico internacional meu nome passou a ser identificado com o gnosticismo. Uma vez outorgado, um título cola com uma adesividade espantosa; e, embora ele não obrigue o sujeito do estranho consenso, ele pode levar a encontros curiosos com a imagem imposta — até o ponto da total incredulidade de que o Hans Jonas dos estudos

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posteriores sobre biologia filosófica seja o mesmo que o Jonas do gnosticismo. O lado não cômico desse fato recorrente era que, com a expectativa criada em função do título e mesmo a reprovação, ele alimentava um tormento da consciência, em relação ao qual o conflito real de lealdades de qualquer forma já tinha dado origem. Em suma, daqueles primeiros encontros do pós-guerra em diante, descobri que teria de servir meus novos compromissos acompanhado pela sombra de um não remida dívida. De minha própria parte, há que se acrescentar que o novo compromisso não tinha relegado a fascinação pelo antigo tema a uma mera memória de uma paixão juvenil, ou diminuído minha convicção de sua relevância filosófica; do mesmo modo, não fiquei de maneira alguma insensível ao desafio levantado pela grande quantidade de descobertas de novos textos que, do final dos anos de 1940 (exatamente quando pretendi dizer adeus) até os atuais dias, mantêm a amizade dos estudiosos do gnosticismo em todo o mundo ligados entre si. Mesmo conexões filosóficas secretas desse tópico improvável com meus novos interesses apareceram nas pesquisas posteriores. A esta última observação, embora ainda enigmática, devo retornar mais tarde quando da consideração da unidade interna de minha obra. A atual consideração não é mais que uma explanação biográfica da multiplicidade que o leitor encontrará neste livro, e que só em relação a ela poderia bem ser tratada como acidental. Mas o fato de que, entre os ensaios ora publicados, os quais nenhum apareceu antes de 1965, o leitor encontrará todo um grupo que recai sob a área que fora tratada como abandonada em 1945, mostra que o conflito de lealdades narrado levou a compromissos cuja história seria muito tediosa para se contar, mas cujo resultado está documentado em meu registro de publicação, seja antes ou depois da data que marca o aparecimento da presente coletânea.

De qualquer modo, até meados dos anos sessenta foi a elabo-ração dos insights ou sugestões dos anos de guerra que ocuparam

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o centro do palco de meus esforços teóricos; com exceção dos compromissos mencionados (isto é, os retornos intermitentes ao campo inicial), o Organismo foi seu tema unificante. Mas nem bem esses novos esforços teóricos encontraram sua primeira aproximação de uma posição sistemática em meu livro The phe-nomenon of life [O fenômeno da vida] (1966) — que reunia o conjunto dos estudos que foram aparecendo de 1950 em diante — um novo conjunto de problemas começou a atrair a minha atenção filosófica: os desafios morais da tecnologia moderna. Mais uma vez não posso resistir à indulgência de uma digressão autobiográfica.

Voltei da experiência da guerra, e do pesadelo que a precedeu, dominado por um certo otimismo interior quanto à situação do mundo prestes a emergir do holocausto. A humanidade, assim me parecia, passara por uma crise que, a um custo excessivo e totalmente inaceitável, teria o efeito de uma catarse, ou pelo me-nos de uma calmaria depois da tempestade. Tratava-se da ilusão de que ao ser acertado por um mal supremo, isto é, depois de ele ter tomado seu curso terrível, o poder público do mal em geral pararia em seguida por um bom tempo, mesmo que apenas por pura exaustão. Possuía boas esperanças — paradoxalmente derivadas das mais assustadoras heranças tecnológicas — acerca das melhores coisas para as quais a humanidade poderia voltar-se. Ainda me lembro vividamente de uma conversa que tive com Karl Jaspers logo após o lançamento da bomba atômica (para cuja necessidade militar alguém que outrora fora um soldado por muitos anos se endureceu obrigatoriamente), em que resumi o que eu antecipava como uma virada nos assuntos humanos que inauguraria o uso pacífico da energia atômica. Nada menos que uma nova civilização de ócio, com vastos potenciais huma-nísticos, surgia diante de meus olhos a partir do prospecto de um poder mecânico ilimitado — uma mudança radical, e para melhor, dos problemas e metas herdados pela humanidade. “Sehr

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schön” [muito bem], disse Jaspers em sua consideração, “Sehr schön!”. Por uma vez, ao menos, sucumbi ao encanto da utopia baconiana e tive a expectativa, se não da salvação, pelo menos de algum fomento do bem humano, mesmo que apenas uma nova chance, uma nova esfera de ação para a liberdade, com as promessas da tecnologia.

Tais esperanças vãs podiam ser deixadas para si mesmas. Quan-to à modesta antecipação de um mar em calmaria, não tinha, durante muitos anos, na relatividade de tais julgamentos, razão para questionar a licença temporária da história do mundo que as necessidades de minha contemplação pedia. Pois aquele que passou pelos horrores dos anos trinta e quarenta e teve de viver o resto de seus dias com a sombra de Auschwitz, o beco sem saída da Guerra Fria era, de fato, algo mais suave. Mesmo em relação à frágil intimidação nuclear, tive uma visão apática — seja em função de uma sobriedade judiciosa ou de uma sensibilidade embotada. Por certo tempo, não nutri ilusões sobre o poder da razão no governo dos assuntos humanos, e dei grande importância, junto com o velho Hobbes, ao poder saudável de um temor puro; e, muito embora se superestime perigosamente a magnitude da estupidez humana e a capacidade que ela possui de conduzir ao desastre, pode-se dar ainda chances reconfortantes ao temor de algo extremo que se mostra de maneira iminentemente vívida. Até agora, felizmente, essa visão, até certo ponto sobriamente serena, não foi refutada pelos acontecimentos, que, claro, não deram prova de seu acerto ou mesmo de seu caráter louvável.

O que me convocou da imparcialidade teórica para a res-ponsabilidade pública e colocou uma nova tarefa para o meu filosofar — certamente a última, haja vista a minha idade — foi a realização crescente dos perigos inerentes da tecnologia como tal — não de seus perigos repentinos, mas antes os perigos tar-dios; não suas ameaças a curto prazo, mas suas ameaças a longo prazo; não de seus abusos criminosos que, com certo cuidado

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[watchfulness], pode-se ter a esperança de controlar, mas de seus usos mais benevolentes e legítimos, que são a própria razão de sua posse ativa. O fim dos anos sessenta, e nosso século fatídico, assistiu à emergência da crise mais aguda e interna do ideal ba-coniano, comparada com a qual todos os outros desafios externos anteriores dos românticos, tradicionalistas ou descontentes, foram brincadeira de criança.

Como entrementes isso se impregnou profundamente na mente das pessoas, não me é necessário enunciar as questões que aqui se levantam; a mera menção do complexo ecológico, por um lado, e da “engenharia” humana, especialmente genética, por outro, é o suficiente. Embora não seja prima facie óbvio que a primeira temática tenha relação com a filosofia (o que, de fato, é o caso), é mais evidente para a segunda temática [a da engenharia genética]. Pois aqui, onde as normas de uso dos novos poderes opcionais são exigidas, uma imagem de Homem deve fornecer sua base não-arbitrária; e, com o eclipse da revelação, esta imagem é responsabilidade única da filosofia. Aqui também a ligação com a antropologia filosófica, a qual qualquer filosofia do organismo digna de nome deve oferecer, e, portanto, a ligação com meu tema teórico precedente, é manifesta o bastante.

Mas o fato mais óbvio é que encontrar os desafios da tecnologia é um assunto para a ética; e com a novidade sem precedentes de alguns de seus desafios, para os quais nenhuma ética anterior tinha nos preparado, se estabelece a necessidade de uma busca pelos princípios que nos capacite a lidar com questões que o gênero humano nunca teve de lidar anteriormente. Assim, ocorreu que desde o final dos anos sessenta eu me vi — através da transição da razão “teórica” para a razão “prática”, transição esta exigida pela própria pressão dos acontecimentos e ainda mais pelas pos-sibilidades colossalmente iminentes no horizonte — engajado em questões de teoria ética e finalmente em uma busca pelos fundamentos de uma ética adequada às questões a respeito das

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quais agora ou em breve teremos que nos posicionar. Recente-mente, isto me levou aos primeiros estágios da escrita de um livro sobre tecnologia e ética, o que por alguns anos ainda impedirá qualquer apresentação fragmentária na forma privilegiada de ensaios. Dadas as céticas crenças epistemológicas de nosso tempo, a aventura [do futuro livro sobre tecnologia e ética] soa, e de fato pode vir a ser, quixotesca; mas este é o meu último chamado ao serviço militar, que não me deixa outra escolha senão aceitá-lo tal como ocorreu com o chamado real há mais de trinta anos atrás e, claro, sem qualquer garantia de sucesso. Seja como for, este me pareceu ser o momento de reunir os ensaios publicados nos últimos sete ou oito anos, nos quais o novo tema aparece, embora junto com os outros dois de minha carreira teórica, em um volume dividido em três partes de acordo com o assunto particular desses estágios intelectuais. E, com isso, volto-me à pro-metida tentativa de mostrar o vínculo interno que liga os temas díspares entre si, além dos vínculos biográficos recém narrados.

Essa promessa é de fácil cumprimento no que se refere aos dois últimos temas. Sua conexão mútua já fora indicada com a menção à antropologia filosófica e é manifesta por si mesma. O simples fato de que os novos problemas têm a ver, inter alia, com a integridade de nosso ser orgânico, e que, da integridade (ou o “bem” próprio) de algo, só podemos ter uma ideia esclarecida — e uma possível norma — se a natureza que deve ser protegida, salva, ou melhorada, for conhecida, fornece uma ligação substancial entre a teoria do organismo e a ética da intervenção tecnológica. Esta é uma ligação que se estende retroativamente do interesse ético para o suporte cognitivo que lhe é necessário. Mas há uma ligação mais profunda, própria de um impulso independente e intrínseco da própria teoria orgânica em sua exigência de uma futura complementação ética. De fato, The phenomenon of life explicitamente projetava essa ilustre complementação em seu Epílogo, onde afirmo:

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Abrimos este volume com a afirmação de que a filosofia da vida abrange a filosofia do organismo e a filosofia do espírito. Ao final, e à luz do que aprendemos, podemos acrescentar uma nova afirmação, implícita naquela primeira, mas estabelecendo uma nova tarefa: uma filosofia do espírito abrange a ética — e através da continuidade do espírito com o organismo e do organismo com a natureza, a ética se torna parte da filosofia da natureza... Apenas uma ética que está fundada no espectro do ser, não meramente na singularidade ou peculiaridade do homem, pode ter significância no esquema das coisas. Ela o tem, caso o homem tenha tal significância; e, se ele a possui, precisamos aprender a partir de uma interpretação da realida-de como um todo. Mas, mesmo sem qualquer defesa de uma significância transumana para a conduta humana, uma ética que não seja mais fundada na autoridade divina precisa estar fundada num princípio passível de ser descoberto na natureza das coisas, sob pena de cair vítima do subjetivismo ou de outras formas de relatividade. Por mais longe, portanto, que a busca ontológica possa ter nos levado do homem, isto é, na teoria geral do ser e da vida, ela não nos afastou da ética, mas buscou por sua possível fundamentação.

Quando escrevi essas palavras, estava apenas vagamente cons-ciente da possibilidade de que o que eu delineara como uma tarefa teórica — a continuação do argumento ontológico na ética — po-deria, através do curso dos assuntos humanos, tornar-se um dever ético. Com efeito, a pressão das coisas, na maior parte não filosófi-cas, forçaram minha mão e venceram minha hesitação determinada pelo sentimento de não estar pronto ainda (ou nunca) para a tarefa mais exigente. Tendo agora mergulhado nela (não sem certo estí-mulo do amigo a quem este livro é dedicado), estou bem ciente de que, para bem ou mal, sua execução coloca à prova o último livro sobre o organismo em cujas conclusões ele precisa se apoiar.

Não tão clara é a conexão de cada um desses temas ou de ambos com o gnosticismo. Mas mesmo aqui uma ligação pelo menos deve ter se insinuado ao leitor informado acerca do conceito de dualismo, que figurou de maneira tão ampla na história do que

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conduziu a, e está envolvido em, uma filosofia do organismo. O gnosticismo foi a encarnação mais radical do dualismo a ter aparecido no palco da história, e sua exploração forneceu um estudo de caso de tudo o que está implicado nele: a separação entre Eu [self] e mundo, a alienação do homem da natureza, a desvalorização metafísica da natureza, a solidão cósmica do es-pírito e o conseqüente niilismo das normas mundanas, o estilo geral do extremismo — tudo isso tinha sido representado naquele drama profundamente agitado. A “modernidade” analógica do gnosticismo antigo, ou o “gnosticismo” oculto na mente moder-na, chamou-me a atenção muito cedo e como tese foi proposta já em 1952 num ensaio específico.4 Uma vez que as condições intelectuais e existenciais engendradas pela ciência moderna, com a qual a filosofia do organismo tem de lidar, estão relacionadas ao domínio do dualismo, o paradigma gnóstico, em que tudo se destaca com nitidez e ingenuidade descaradas, provou ser de uma ajuda iluminadora. Outra conexão, estendendo-se através da segunda até a terceira fase, pode ser designada “crise”. Ela é uma expressão tão representativa da situação contemporânea que sua pertinência para a síndrome tecnológica não precisa de uma consideração complementar. Aqui, mais uma vez, a época do gnosticismo é o caso clássico de uma crise humana em uma escala histórica ampla, e considerações similares valem para a relevância de sua lição acerca da atual crise do homem ociden-tal — consequentemente também para qualquer busca tateante por uma ética em resposta a ela — enquanto aplicada ao caso do dualismo. Na verdade, “o Homem em Crise” estava entre os primeiros títulos sugeridos para esta coleção, e foi descartado apenas por receio de estridência.

4 “Gnosticism and modern nihilism”, Social Research, 19 (1952); depois acrescentado como Epílogo da segunda edição de The gnostic religion [A religião gnóstica] (Boston: Beacon Press, 1963). Uma versão alemã foi incluída no meu livro Zwischen Nichts und Ewigkeit [Entre o nada e a eternidade] (Gottingen, 1963).

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Com isso termino as considerações. Em última instância cabe ao leitor decidir se os ensaios reunidos aqui falam em uníssono, não como expressão do seu autor, mas também, menos dire-tamente talvez, de seu múltiplo tema. A sequência em que são apresentados inverte a ordem cronológica de seus assuntos, bem como de sua autoria. Adotei primeiro a ordem “natural”. Muito embora não me restasse muito a escolher entre as duas alternati-vas, decidi finalmente (atento à distinção aristotélica entre o que é primeiro na ordem do conhecimento e primeiro na ordem das coisas) que ao leitor deveria se permitir fazer seu próprio caminho a partir do que é próximo e atual ao que é distante no tempo e no conhecimento, em vez de lançar sobre ele desde o início coisas que lhe são distantes e estranhas.

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Capítulo I

TECNOLOGIA E RESPONSABILIDADE: REFLEXÕES SOBRE AS

NOVAS TAREFAS DA ÉTICA*

Todas as éticas anteriores – seja na forma da emissão de injunções diretas para fazer e não fazer certas coisas, ou na

forma de princípios definidos para tais injunções, ou na forma do estabelecimento do fundamento da obrigação de se obede-cer a tais princípios – tinham em comum as seguintes premissas tacitamente interligadas: que a condição humana, determinada pela natureza do homem e a natureza das coisas, foi dada de uma vez por todas; que, com base nela, o bem humano era facilmente determinável; e que a extensão da ação humana, e, portanto, da sua responsabilidade, era rigorosamente circunscrito. O que minha argumentação busca é mostrar que essas premissas não mais se sustentam, e refletir com isso sobre o significado desse fato para nossa condição moral. Mais especificamente, defenderei que, com certos desenvolvimentos de nossos poderes, a natureza da ação humana se alterou, e uma vez que a ética se ocupa da ação, deveria se seguir que a alterada natureza da ação humana exige uma mudança também na ética: isso deve ser entendido não meramente no sentido de que novos objetos da ação foram acrescidos ao caso material em que regras de conduta em vigor devem ser aplicadas, mas no sentido mais radical de que a natu-reza qualitativamente nova de algumas de nossas ações abriu toda

* Originalmente apresentada como um discurso plenário para o International Congress of Learned Societies in the Field of Religion realizado em Los Angeles, em setembro de 1972, e incluído no livro Religion and the Humanizing of Man, org. James M. Robinson (Council on the Study of Religion, 1972). Subsequentemente publicado em Social Research 15 (Spring 1973).

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uma nova dimensão de relevância ética para a qual não existe precedente nos padrões e cânones da ética tradicional.

IOs novos poderes que tenho em mente são, claro, aqueles da

tecnologia moderna. Desse modo, meu primeiro passo é pergun-tar como essa tecnologia afeta a natureza de nosso agir, de que maneiras ela torna o agir que se encontra sob o seu domínio diferente do que ele tem sido ao longo das épocas. Uma vez que ao longo das épocas o homem nunca passou sem a tecnologia, a questão envolve a diferença humana da tecnologia moderna em relação à precedente. Comecemos com uma opinião antiga sobre os poderes e feitos do homem que num sentido arquetípico faz soar, por assim dizer, uma nota tecnológica – o famoso coro da Antígona, de Sófocles.

Muitas são as maravilhas, mas nenhuma é mais maravilhosa que o homem.Ele cruza o mar em meio à tempestade de inverno,Fazendo seu percurso através das ondas que ao redor rugem.E ela, o mais excelso dos deuses, a Terra – Sendo imortal e inatingível – é por ele exauridaÀ medida que os arados sobem e descem, de ano em ano, E suas alimárias fertilizam o solo.Ele captura os bandos de aves ligeiras, as raçasde todas as feras selvagens e também os cardumes dos pro-fundos mares, com as redes envolventes que ele produz, esse homem engenhoso. Controla com astúcia as feras agrestes,que correm pelos montes. Amansa o cavalo com sua crina abundante,e põe-lhe arreio, atrelado ao pescoço,fazendo o mesmo com o vigoroso touro das montanhas.

Fala e pensa tão rápido quanto o vento,e as leis que constroem as cidades,ele forjou para si, bem como o abrigo contra o frio,

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e o refúgio para proteger-se da chuva. Sempre previdente ele é.Não enfrenta o futuro despreparado. Apenas contra a morteclama, em vão, por socorro. Mas contra muitas doenças des-concertantes forjou remédios.

Engenhosa além do que se poderia imaginara arte inventiva que é a sua, o que pode levá-lo, vez ou outra, para o bem ou para o mal.Quando ele honra as leis de sua terra e a seus juramentos para com Deus,elevada é sua cidade; mas sem pátria é o homemque se atreve a fazer o que é abominável.(Versos 335-370)

Esta aterradora homenagem ao poder do homem fala de sua irrupção violenta e violadora no interior da ordem cósmica, da arrogante invasão dos vários domínios da natureza por sua engenhosidade irrefreável; mas também da construção – através da das faculdades autodidatas da fala e do pensamento e do sen-timento social – do lar para sua própria humanidade, o artefato da cidade. A violação da natureza e a sua civilização caminham de mãos dadas. Ambas desafiam os elementos: a primeira ao aventurar-se neles e ao subjugar suas criaturas; a outra ao garantir um enclave contra eles no refúgio da cidade e de suas leis. O homem é o criador da sua vida enquanto humana, submetendo as circunstâncias a sua vontade e necessidades, e, exceto contra a morte, ele nunca está desamparado.

Todavia, há uma espécie de moderação e temerosidade nesse louvor do prodígio que é o homem, e não se pode confundir isso com bazófia imodesta. Com toda sua engenhosidade ilimitada, o homem ainda é pequeno em relação à medida dos elemen-tos: precisamente isso torna suas incursões neles tão ousadas e permite que aqueles elementos tolerem sua ofensiva. Mesmo que o homem se permita fazer todo tipo de coisa, livremente, com os habitantes da terra, do mar e do ar, ele ainda deixa a

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natureza abrangente daqueles elementos inalterada, e seus po-deres regeneradores, intactos. Ele não os pode causar dano por talhar seu pequeno domínio a partir do deles. Eles permanecem, enquanto os empreendimentos humanos possuem vida curta. Por mais que ele rasgue a Terra, o mais excelso dos deuses, ano após ano com seu arado – ela é perene e incansável; em sua paciência duradoura ele precisa e pode confiar, e ao seu ciclo deve se conformar. E igualmente perene é o mar. Apesar de toda a pesca dos peixes do mar, a desova do oceano é inexau-rível. Nem se machuca com o amontoamento de navios, nem é maculado pelo que se abandona em suas profundezas. E, não importa quantas enfermidades ele consiga curar, a mortalidade não se dobra à sua astúcia.

Tudo isso é válido, porque as incursões do homem na na-tureza, tais como ele mesmo as percebia, eram essencialmente superficiais e sem o poder de perturbar seu equilíbrio vigente. Nem há, no coro da Antígona ou em qualquer outro lugar, a sugestão de que isso é apenas o começo e que coisas maiores do artifício e do poder estão ainda por vir – que o homem embarcava num curso de conquistas sem fim. Ele foi até o ponto de reduzir a necessidade; ele aprendeu, através de sua perspicácia, a extorquir dela aquela quantidade necessária à humanidade de sua vida, e ao chegar a esse ponto ele podia parar. O espaço que ele produziu foi, então, preenchido pela cidade dos homens – destinada a incluir, e não a expandir –, e, por isso, um novo equilíbrio foi imposto ao equilíbrio maior do todo. Todo o bem ou o mal, ao qual a arte inventiva do ho-mem pode o impulsionar vez ou outra, está dentro do enclave humano e não toca a natureza das coisas.

A imunidade do todo, imperturbado em sua profundidade pelos infortúnios do homem, isto é, a essencial imutabilidade da Natureza enquanto uma ordem cósmica, era, de fato, o pano de fundo de todos os empreendimentos mortais do homem,

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incluindo suas intromissões naquela mesma ordem. A vida do homem se desenrolou entre a permanência [abiding] e a mudança: a permanência era a Natureza, a mudança, as suas próprias obras. A maior dessas obras foi a cidade, e a ela ele pôde conferir boa dose de estabilidade [abidingness] em função das leis que ele fez para ela e que se encarregou de honrar. Mas nenhuma certeza de longo alcance pertencia a essa forjada estabilidade. Enquanto um artefato precário, ela pode caducar e extraviar-se. Nem mesmo dentro de seu universo artificial, com toda a liberdade que ela concede à determinação do ho-mem acerca de si mesmo, pode o arbitrário sequer substituir os termos fundamentais de seu ser. A própria inconstância da fortuna humana assegura a constância da condição humana. Acaso, sorte e estupidez, os grandes niveladores nos assuntos humanos, atuam como uma espécie de entropia e fazem todos os projetos definidos ao longo do tempo inverter a norma perene. Cidades se erguem e caem, regras vêm e vão, famílias prosperam e declinam; nenhuma está aí para ficar, e no fim, com todos os desvios temporários que se compensam reciprocamente, o estado do homem se encontra como sempre esteve. Assim, aqui também, em seu próprio artefato, o controle do homem é pequeno e sua natureza permanente prevalece.

Ainda assim, nesta cidadela de sua própria criação, claramente distinta do resto das coisas e confiada a ele, encontrava-se todo o domínio único da ação responsável do homem. A Natureza não era um objeto da responsabilidade humana – ela toma conta de si mesma e, com certa lisonja e preocupação, também toma conta do homem: não a ética, mas apenas a engenhosidade se aplica a ela. Mas na cidade, onde os homens lidam com homens, a engenhosidade deve estar casada com a moralidade, pois esta é a alma de seu ser. Nessa estrutura intra-humana reside toda a ética tradicional, correspondendo à natureza da ação delimitada pela sua estrutura.

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IIDevemos extrair do que acabamos de dizer aquelas caracterís-

ticas da ação humana que são relevantes para uma comparação com o estado de coisas atual.

1. Todo trato com o mundo não humano, isto é, todo o do-mínio da techne (com exceção da medicina), era eticamente neutro – em relação tanto ao objeto quanto ao sujeito da ação: em relação ao objeto, porque ela [a techne] contava pouco para a natureza autossustentável das coisas e, consequentemente, não levantava a questão de dano permanente à integridade de seu objeto, a ordem natural como um todo; e em relação ao sujeito da ação era eticamente neutro porque a techne enquanto uma atividade concebia a si mesma como um tributo determinado à necessidade, e não como um progresso indefinido e que se autojustifica como meta principal da humanidade, reivindican-do para sua busca o máximo esforço e interesse do homem. A verdadeira vocação do homem se encontra em algo mais. Em suma, a ação sobre coisas não humanas não constituía uma esfera de autêntica significância ética.

2. A significância ética pertencia ao trato direto de homens com homens, incluindo a relação consigo mesmo: toda ética tradicional é antropocêntrica.

3. Pois a ação, neste domínio, o ente “homem” e sua condição fundamental era considerada constante em essência, não sendo ela mesma um objeto da reconfiguração própria da techne.

4. O bem e o mal a respeito dos quais a ação tinha de se pre-ocupar estavam próximos ao ato, seja na práxis mesma ou em seu alcance imediato, e não eram uma questão de planejamento de longo prazo. Essa proximidade de fins pertencia ao tempo bem como ao espaço. O alcance efetivo da ação era pequeno, o intervalo de tempo para previsão, definição de metas e impu-tabilidade era curto, e o controle das circunstâncias, limitado. A conduta adequada tinha seu critério imediato e uma consumação

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quase imediata. O longo prazo das consequências para além era deixado ao acaso, ao destino e à providência. Desse modo, a ética se referia ao aqui e agora, às ocasiões tal como aparecem entre os homens, às situações recorrentes, típicas da vida privada e pública. O homem bom era aquele que encontrava essas contingências com virtude e sabedoria, cultivando essas capacidades em si mes-mo, e quanto ao mais se resignando em relação ao desconhecido.

5. Todos os mandamentos e máximas da ética tradicional, materialmente diferentes como são, revelam esse confinamento ao círculo imediato da ação. “Ama o teu próximo como a ti mesmo”; “Fazeis aos outros aquilo que queres que te façam”; “Instrui a criança no caminho da verdade”; “Esforçai pela exce-lência por meio do desenvolvimento e realização das melhores potencialidades de seu ser enquanto homem”; “Subordina seu bem individual ao bem comum”; “Nunca trates o teu próximo apenas como meio, mas sempre também como um fim em si mesmo” – e assim por diante. Note-se que, em todas essas máximas, o agente e o “outro” de sua ação compartilham um presente comum. Trata-se daqueles que vivem agora e que têm alguma relação comigo; que possuem algo a exigir de minha conduta enquanto ela os afeta seja por algum feito ou omissão. O universo ético é composto de contemporâneos, e o horizonte do futuro está confinado pelo período previsível de suas vidas. De maneira similar, confinado está seu horizonte do espaço no qual os humanos interagem uns com os outros. Toda moralidade era guiada por esse raio imediato da ação.

IIISegue-se que o conhecimento que se exige – além da vontade

moral – para assegurar a moralidade da ação corresponde a esses termos limitados: não se tratava do conhecimento do cientista ou do especialista, mas do conhecimento de um tipo já dispo-nível a todos os homens de boa vontade. Kant foi tão longe

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que chegou a dizer que “a razão humana pode, em matéria de moralidade, alcançar um elevado grau de exatidão e completude mesmo na inteligência mais comum”;1 que “não há necessidade de ciência ou filosofia para saber o que o homem tem de fazer para ser honesto e bom, e até mesmo para ser sábio e virtuoso... [A inteligência comum] pode ter tanta esperança de atingir o alvo quanto qualquer filósofo pode prometer para si mesmo”;2 e novamente: “não preciso de acuidade elaborada para encontrar o que tenho de fazer para que minha vontade seja moralmente boa. Mesmo sem experiência quanto ao curso do mundo, sendo incapaz de antecipar todas as contingências que nele ocorrem”, posso ainda saber como agir em conformidade com a lei moral.3

Nem todo pensador da ética, é verdade, foi tão longe na atitude de dispensar o lado cognitivo da ação moral. Mas, mesmo quan-do ele recebeu uma ênfase bem maior – como em Aristóteles, para o qual o discernimento da situação e do que é adequado para ela faz exigências consideráveis à experiência e o juízo –, um tal conhecimento nada tem a ver com a ciência das coisas. Ele implica, claro, uma concepção geral do bem humano como tal, uma concepção baseada em presumíveis invariáveis da na-tureza e da condição do homem, que podem ou não encontrar expressão em uma teoria propriamente dita. Mas essa tradução requer, na prática, um conhecimento do aqui e agora, e isso é completamente não teórico. Este “conhecimento” próprio à virtude (do “onde, quando, para quem e como”) permanece com o problema imediato, em cujo contexto definido a ação enquanto a ação do próprio agente segue seu curso, e dentro do

1 Immanuel KANT, Groundwork of the metaphysics of morals, “Prefácio”.2 Op. cit., capítulo I.3 Ibid. (Segui a tradução de H. J. Paton com algumas mudanças).

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qual ela termina. O que é bom e mau na ação é totalmente decidido dentro de um contexto de curto prazo. Sua qualidade moral resplandece a partir dela, visível para sua testemunha. Ninguém era considerado responsável por efeitos involuntários posteriores de seu agir bem-intencionado, bem ponderado e bem realizado. O braço curto do poder humano não exigia um braço longo para o conhecimento preditivo; a curteza do primeiro é tão pouco culpável quanto a do outro. Precisamente porque o bem humano, conhecido em sua universalidade, é o mesmo em qualquer momento, sua realização ou violação ocorre num dado momento, e seu lugar próprio é sempre o presente.

IVTudo isto se alterou de maneira decisiva. A tecnologia moderna

introduziu ações de escala, objetos e consequências tão novos que a estrutura da ética antiga não pode mais enquadrá-las. O coro de Antígona sobre o espantoso poder do homem teria de ser lido de maneira diferente agora; e sua admoestação ao indivíduo para que ele honre as leis da sua pátria não seria mais o bastante. Para que fique claro, as antigas prescrições da ética do “próximo” – aquela concernente à justiça, à caridade, à honestidade e assim por diante – ainda permanecem [válidas] para sua imediaticidade íntima em relação à esfera mais próxima, do dia a dia, própria da interação humana. Mas essa esfera é ofuscada por um domínio crescente da ação coletiva onde o agente, o feito e o efeito não são mais o mesmo já que eles faziam parte da esfera próxima, e que pela enormidade de seus poderes reclamam da ética uma nova dimensão de responsabilidade nunca antes sonhada.

Considere, por exemplo, como primeira e principal mudança no quadro que nos é legado, a vulnerabilidade crítica da natureza em relação à intervenção tecnológica do homem – outrora igno-rada, ela passou a se mostrar a partir dos danos já produzidos. Esta

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descoberta, cujo choque levou ao conceito e à ciência nascente da ecologia, altera a própria visão que temos de nós mesmos enquanto fator causal no esquema mais amplo das coisas. Ela traz à luz, através dos efeitos, o fato de que a natureza da ação humana de facto mudou, e que um objeto de ordem inteiramente nova – não menos que toda a biosfera do planeta – foi acres-centado àquilo pelo que precisamos ser responsáveis por causa do poder que possuímos sobre tal referido objeto. E que objeto de importância incomparável, que faz os anteriores objetos do homem ativo parecerem minúsculos! A Natureza enquanto uma responsabilidade humana é certamente um novum a se pensar na teoria ética. Que tipo de obrigação está em jogo em relação a ela? Trata-se de algo mais que um mero interesse utilitário? É apenas prudência que nos obriga a não matar a galinha dos ovos de ouro, ou cortar o ramo em que nós estamos sentados? Mas o “nós” que aqui senta e pode cair no abismo é toda a fu-tura humanidade, e a sobrevivência das espécies é mais do que um dever prudencial de seus membros atuais. Na medida em que é o destino do homem, enquanto afetado pela condição da natureza, que nos faz nos preocuparmos com a preservação da natureza, um tal importar-se ainda retém admitidamente o foco antropocêntrico de toda ética clássica. Ainda assim, a diferença é grande. A contenção da proximidade e da contemporanei-dade se foi, varrida pela distribuição espacial e temporal das sequências de causa e efeito que a prática tecnológica coloca em movimento, mesmo quando empreendidas tendo em vista fins próximos. Sua irreversibilidade associada a sua magnitude global introduz um novo fator na equação moral. A isso se soma seu caráter cumulativo: seus efeitos se acumulam eles mesmos entre si. E a situação para a ação e o existir posteriores se torna crescentemente diferente da que era o caso para o agente ini-cial. A autopropagação cumulativa da mudança tecnológica do mundo supera constantemente, portanto, as condições dos atos

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que contribuíram para o seu estabelecimento e se move não através de alguém, mas através de situações inéditas, para as quais as lições da experiência de nada adiantam. E, não bastando ter modificado seu início ao ponto da total irreconhecibilidade, a acumulação como tal pode consumir a base de toda a série, a sua própria condição. Tudo isso teria de ser igualmente intentado pela vontade da ação particular se ela quisesse ser uma ação mo-ralmente responsável. A ignorância não mais a oferece um álibi.

O conhecimento, sob essas circunstâncias, torna-se um dever primário além de qualquer coisa reivindicada em relação a ele daqui em diante, e o conhecimento precisa ser proporcional à escala causal de nossa ação. O fato de que ele não pode, de fato, ser assim proporcional – isto é, que o conhecimento preditivo sempre está aquém do conhecimento técnico que nutre o nosso poder de agir – assume ele próprio uma importância ética. O reconhecimento da ignorância se torna o anverso do dever de conhecer e, desse modo, faz parte de uma ética que precisa re-ger o sempre mais necessário autopoliciamento de nosso poder descomunal. Nenhuma ética precedente teve de considerar a condição global da vida humana e o futuro distante, e até mesmo a existência, da espécie. O fato de tudo isso ter se tornado um problema exige, em suma, um novo conceito de deveres e direitos, para os quais a ética e a metafísica precedentes não forneciam sequer os princípios, quanto mais uma doutrina pronta.

E o que aconteceria se o novo tipo de ação humana signifi-casse que mais do que apenas o interesse do homem devesse ser considerado – isto é, que nosso dever se estendesse para além dele e o confinamento antropocêntrico da ética antiga não se sustentasse mais? Não é mais sem sentido, pelo menos, perguntar se a condição da natureza extra-humana, a biosfera como um todo e em suas partes, agora sujeita ao nosso poder, se tornou algo confiado ao homem e possui uma espécie de reivindicação moral sobre nós não apenas no que diz respeito a nós mesmos

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em última instância, mas por si mesmo e por seu próprio direito. Se esse fosse o caso, ele exigiria uma boa dose de reflexão sobre os princípios fundamentais da ética. Isto significaria procurar não apenas o bem humano, mas também o bem das coisas extra--humanas, isto é, estender o reconhecimento de “fins em si” para além da esfera do homem e fazer com que o bem humano inclua o cuidado para com elas [as coisas extra-humanas]. Para um tal papel de mordomo, nenhuma ética anterior nos preparou – e a visão científica dominante da Natureza ainda menos. De fato, a visão científica enfaticamente nos nega todos os meios concei-tuais para pensar a Natureza como algo a ser honrado, já que a reduziu à diferença entre necessidade e acidente, despojando-a de qualquer dignidade de fins. Mas ainda assim um apelo mudo pela preservação de sua integridade parece ecoar da plenitude ameaçada do mundo vital. Deveríamos dar ouvidos a esse apelo, deveríamos garantir sua reivindicação como sancionada pela natureza das coisas, ou recusá-lo como um mero sentimento de nossa parte, ao qual podemos dar vazão tanto quanto quisermos e pudermos fazê-lo? Se tivermos de aceitar o primeiro caso, isto obrigaria (se tomado seriamente em suas implicações teóricas) um necessário repensar que vai além da doutrina da ação, isto é, a ética, até a doutrina do ser, isto é, a metafísica, na qual toda ética precisa em última instância estar fundada. Sobre este tema especulativo nada mais direi aqui do que o fato de que deverí-amos nos manter abertos à ideia de que a ciência natural não é a única que tem algo a dizer sobre a Natureza.

VVoltando a considerações estritamente intra-humanas, há outro

aspecto ético relacionado ao crescimento da techne enquanto uma busca além dos termos pragmaticamente limitados próprios dos tempos antigos. Outrora, como vimos, a techne era um tributo cobrado pela necessidade, não a estrada para a meta escolhida pela

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humanidade – um meio com um medida finita de adequação aos bem definidos fins próximos. Agora, a techne, na forma da tecnologia moderna, transformou-se num impulso infinito de nossa espécie para além de si mesma, seu empreendimento mais significativo, cujo progresso permanente e autotranscendente até coisas sempre maiores tende a ser visto como a vocação do homem, e cujo sucesso de controle máximo sobre as coisas e sobre si mesmo aparece como a consumação de seu destino. Assim, o triunfo do homo faber sobre o seu objeto externo tam-bém significa seu triunfo sobre a constituição interna do homo sapiens, de quem aquele costumava ser uma parte subsidiária. Em outras palavras, independentemente de suas obras objetivas, a tecnologia assume uma significância ética pelo lugar central que ela agora ocupa no interior dos propósitos humanos. Sua criação cumulativa, a expansão do ambiente artificial, reforça continuamente os poderes particulares no homem que a criou, ao compelir o seu incessante uso inventivo na gestão e posterior progresso, e ao recompensá-lo com um sucesso adicional – que apenas se soma à reivindicação implacável. O feedback positivo entre necessidade funcional e recompensa – em cuja dinâmica o orgulho da realização não deve ser esquecido – assegura a as-censão crescente, por um lado, da natureza humana sobre todas as outras, e inevitavelmente à sua custa. Se nada é tão bom como o sucesso, nada também aprisiona tanto como o sucesso. O que quer que pertença à plenitude do homem, seja o ofuscamento do prestígio ou a carência de recursos, a expansão de seu poder é acompanhada por uma contração de sua autoconcepção e ser. Na imagem que ele possui de si mesmo – a poderosa autofórmula que determina o seu ser verdadeiro tanto quanto o reflete –, o homem é agora cada vez mais o criador do que ele tem feito e o agente do que ele pode fazer, e principalmente o preparador daquilo que ele será capaz de fazer a seguir. Mas nem eu ou você: o que conta aqui é o coletivo, e não o agente ou feitos individuais;

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e o que constitui o horizonte relevante da responsabilidade é o futuro indefinido, antes que o contexto contemporâneo da ação. Isso exige imperativos de um novo tipo. Se o domínio da cria-ção invadiu o espaço da ação essencial, então a moralidade deve invadir o domínio da criação, da qual ela anteriormente tinha ficado distante, e deve fazê-lo na forma da política pública. Com problemas de tamanha abrangência e extensões da antecipação, a política pública nunca precisou lidar antes. De fato, a alterada natureza da ação humana altera a própria natureza da política.

Pois as fronteiras entre a “cidade” e a “natureza” foram obli-teradas: a cidade dos homens, outrora um enclave dentro do mundo não humano, espalha-se sobre o todo da natureza terrestre e usurpa o seu lugar. A diferença entre o artificial e o natural desapareceu, o natural foi engolido pela esfera do artificial, e ao mesmo tempo o artefato total, as obras do homem que operam nele e através dele, gera uma “natureza” que lhe é própria, isto é, uma necessidade com a qual a liberdade humana tem de compe-tir num sentido completamente novo. Outrora poderia ser dito Fiat justitia, pereat mundus, “que a justiça seja feita, mesmo que o mundo pereça” – onde “mundo”, claro, significava o enclave renovável no todo imperecível. Nem mesmo retoricamente o mesmo pode ser dito mais quando o perecimento do todo através dos feitos do homem – sejam eles justos ou injustos – se tornou uma possibilidade real. Questões que nunca passaram pelo crivo de uma legislação ingressam no circuito das leis que a cidade total precisa dar-se para que exista um mundo para as gerações futuras do homem.

Que deva existir em todo tempo futuro um tal mundo adequado para a habitação humana, e que ele deva ser habitado, no futuro, por uma humanidade digna do nome humano, será prontamente afirmado como um axioma geral ou uma vontade persuasiva da imaginação especulativa (tão persuasiva e indemonstrável como a proposição de que existir um mundo é “melhor” do que não

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existir nenhum): mas, como uma proposição moral – a saber, uma obrigação prática em relação à posteridade de um futuro distante e um princípio de decisão para a ação atual –, é algo diferente dos imperativos da antiga ética da contemporaneidade; e ela entrou na cena moral apenas com os novos poderes e alcance da presciência.

A presença do homem no mundo tem sido um dado inquestionável, do qual partia toda a ideia de obrigação para a conduta humana. Agora ela própria se tornou um objeto da obrigação – a obrigação de assegurar a própria premissa de toda obrigação, isto é, o ponto de apoio para um universo moral no mundo físico –, a existência de meros candidatos para uma ordem moral. A diferença que isso faz para a ética pode ser ilustrada com um exemplo.

VI

O imperativo categórico de Kant dizia: “age de tal modo que tu possas querer que a máxima de tua ação se torne o princípio de uma lei universal”. O “possas” aqui invocado é aquele da razão

e sua consistência em relação a si mesma: dada a existência de

uma comunidade de agentes humanos (seres de ação racional),

a ação precisa ser tal que ela possa sem autocontradição ser ima-

ginada como uma prática geral daquela comunidade. Note-se

que a reflexão básica da moral aqui não é ela mesma moral, mas

lógica: o fato de “eu poder querer” ou “não poder querer” expressa

compatibilidade ou incompatibilidade lógica. Não expressa apro-

vação ou desaprovação moral. Mas não há contradição [lógica]

na ideia de que a humanidade chegue em algum momento a ter

um fim, portanto também não há nenhuma autocontradição na

ideia de que a felicidade das gerações atuais e seguintes fossem

compradas com a infelicidade e mesmo não existência das gera-

ções futuras – tampouco, afinal, como na ideia contrária de que

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a existência ou felicidade das gerações futuras fosse comprada

com a infelicidade ou mesmo extinção das atuais gerações. O

sacrifício do futuro pelo presente não está logicamente aberto

ao ataque em maior grau do que o sacrifício do presente pelo

futuro. A diferença é apenas que em um caso a série continua,

e no outro, não. Mas que ela deva continuar, independentemen-

te da distribuição de felicidade ou infelicidade, mesmo com a

preponderância persistente de infelicidade sobre a felicidade, ou

até mesmo da imortalidade sobre a mortalidade4 – isso não pode

ser derivado da regra de autoconsistência no interior da série, por

maior ou menor que seja sua extensão: trata-se de um manda-

mento de um tipo muito diferente, estando fora da série como

um todo e lhe sendo “anterior”, e seu fundamento último só

pode ser metafísico.

Um imperativo que responda ao novo tipo de ação humana e

que seja voltado para o novo tipo de agente que o opera poderia

ser o seguinte: “age de modo que os efeitos de sua ação sejam compatíveis com a permanência de vida humana genuína”; ou expresso negativamente: “age de modo que os efeitos de sua ação não sejam destrutivos para a futura possibilidade de tal vida”; ou simplesmente: “não comprometas as condições de uma continuação indefinida da humanidade na terra”; ou de maneira mais geral: “em suas atuais escolhas, inclui a futura totalidade do Homem entre os objetos de sua vontade”.

É imediatamente óbvio que nenhuma contradição racional está envolvida na violação desse tipo de imperativo. Posso querer o bem presente sacrificando assim o bem futuro. Também é evidente que o novo imperativo está voltado para a política pública antes

4 Sobre este último ponto, o Deus bíblico mudou de ideia para um abrangente “sim” depois do dilúvio.

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que para a conduta privada, que não está na dimensão causal a que se aplica o imperativo. O imperativo categórico de Kant estava voltado para o indivíduo, e seu critério era instantâneo. Ele convidava cada um de nós a considerar o que aconteceria se a máxima de nossa ação atual se tornasse, ou se neste exato momento fosse, o princípio de uma legislação universal; a autoconsistência ou inconsistência de uma tal universalização hipotética se torna a prova para minha escolha privada. Mas ela não desempenha papel nenhum no raciocínio de que existe alguma probabilidade de minha escolha privada se tornar, de fato, lei universal, ou que ela pudesse contribuir para que ela se tornasse tal coisa. A uni-versalização é um experimento mental que o agente deve fazer de maneira privada para pôr à prova a moralidade imanente de sua ação. De fato, as consequências reais não são de modo algum consideradas, e o princípio não se refere a uma responsabilidade objetiva, mas à qualidade subjetiva de minha autodeterminação. O novo imperativo invoca uma consistência diferente: não aquela consistência do ato consigo mesmo, mas aquela de seus eventuais efeitos com a continuação da ação humana nas épocas futuras. E a “universalização” que ele tem diante de si não é de maneira alguma hipotética – isto é, uma transferência puramente lógica do individual “eu” para um “nós todos” (“se todos agissem desse modo”) imaginário e causalmente sem conexão com ele; muito pelo contrário, as ações sujeitas ao novo imperativo – ações de um todo coletivo – têm sua referência universal em seu real escopo de eficácia: elas se “totalizam” no progresso de seu momento e, portanto, desembocam forçosamente na modelação da distribuição universal das coisas. Isso acrescenta um horizonte de tempo para o cálculo moral que está completamente ausente da operação lógica instantânea do imperativo kantiano: enquanto este último se estende a uma ordem sempre presente de compatibilidade abstrata, o nosso imperativo se estende a um futuro real previsível enquanto uma dimensão inacabada de nossa responsabilidade.

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VIIComparações similares poderiam ser feitas em relação a todas

as outras formas de éticas da contemporaneidade e imediatistas. A nova ordem da ação humana exige uma ética de previsão e responsabilidade que lhe seja correspondente, ética que é tão nova quanto os problemas levantados pelas obras do homo faber na era da tecnologia. Mas entre essas novas obras não tínhamos mencionado ainda a classe potencialmente mais funesta delas. Tínhamos considerado a techne apenas como aplicada ao domínio não humano. Mas o próprio homem foi acrescentado aos objetos da tecnologia. O homo faber está voltando-se para si e se prepara para recriar o criador de todo o resto. Esta consumação de seu poder, que pode bem pressagiar a subjugação do homem, esta imposição final da arte sobre a natureza, exige o esforço últi-mo do pensamento ético, o qual nunca antes teve de enfrentar alternativas eletivas para o que seriam os termos definidos da condição humana.

a. Considere, por exemplo, o mais básico desses “dados”, a mortalidade do homem. Quem alguma vez precisou decidir sobre sua medida desejável e opcional? Nada existia a se escolher sobre o limite extremo, os “setenta anos, ou quando muito oitenta anos”. Sua regra inexorável foi objeto de lamento, resignação ou sonhos vãos (para não dizer tolos) sobre possíveis exceções – es-tranhamente, quase nunca de anuência. A imaginação intelectual de um George Bernard Shaw e de um Jonathan Swift especulou sobre o privilégio de não ter de morrer, ou sobre a maldição de não ser capaz de morrer (com esta última alternativa, Swift foi o mais perspicaz dos dois). Mito e lenda brincaram com esses temas sob o inconteste pano de fundo do imutável, que fez o mais sério dos homens antes dizer “ensina-nos a contar nossos dias para que possamos alcançar um coração sábio” (Salmo 90). Nada disso estava no domínio do fazer e da decisão efetiva. A questão era apenas como lidar com esse fato bruto.

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Mas, mais tarde, a nuvem escura do inevitável parece ir em-bora. Uma esperança prática é prometida por certos avanços da biologia celular que, talvez, permitam prolongar indefinidamente e estender a duração da vida através da atuação contra processos bioquímicos de envelhecimento. A morte não aparece mais como uma necessidade pertencente à natureza da vida, mas como uma disfunção orgânica evitável, ou pelo menos, a princípio, tratável e adiável por um longo tempo. Um desejo perene do homem mortal parece estar próximo de realização. E pela primeira vez temos seriamente que fazer a questão: “O quanto isso é desejável? Quanto é desejável para o indivíduo, e quanto o é para a espécie?”. Essas questões envolvem o próprio significado de nossa finitude, a atitude em relação à morte, e a significância biológica geral do equilíbrio entre morte e procriação. Mesmo antes dessas questões últimas se encontram aquelas mais pragmáticas de quem deveria ser eleito para um tal benefício: pessoas de qualidade particular e mérito? De eminência social? Aquelas que podem pagar por ele? Todas as pessoas? A última alternativa pareceria ser a única opção justa. Mas ela teria de ser paga pela extremidade oposta, na fonte. Pois, claramente, numa ampla escala populacional, o preço pela idade estendida precisa ser a diminuição proporcional da reposição – isto é, o acesso diminuído – de novas vidas. O resultado seria uma proporção decrescente de juventude numa população crescentemente envelhecida. O quanto isso é bom ou ruim para a condição geral do homem? A espécie ganharia ou perderia? E o quanto seria certo ocupar o lugar da juventude? Ter de morrer está ligado a ter nascido: a mortalidade não é senão o outro lado da primavera perene da “natalidade” (para usar o termo de Hannah Arendt). As coisas sempre foram assim, mas agora o seu sentido precisa ser repensado na esfera da decisão.

Para tomar o caso extremo (o que não quer dizer que ele seja alcançado): se abolirmos a morte, precisaremos abolir também a procriação, pois a última é a resposta da vida para a primeira, e

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assim teríamos um mundo de idosos sem juventude, e de indi-víduos conhecidos, sem a surpresa própria daqueles que nunca existiram antes. Mas esta, talvez, seja precisamente a sabedoria na dura disposição de nossa mortalidade: que isso nos garanta uma promessa eternamente renovada do frescor, imediatismo e avidez da juventude, oferecendo junto com isso a alteridade como tal. Não há substituto para isso mesmo na maior acumulação de uma experiência prolongada: esta não pode jamais readquirir o privilégio único de ver o mundo pela primeira vez e com novos olhos, nem salvar o espanto que, segundo Platão, é o início da filosofia, nem a curiosidade da criança, que no adulto raramente permanece a mesma na ânsia por conhecimento, até se paralisar aí também. Este início renovado, que só pode ser obtido à custa de um fim sempre repetido, pode bem ser a esperança da huma-nidade, sua salvaguarda contra a queda no tédio e na rotina, sua oportunidade de reconquistar a espontaneidade da vida. Também o papel do memento mori para a vida do indivíduo precisa ser considerado, e o que sua atenuação para a indefinição pode lhe oferecer. Talvez um limite não negociável para nossa expectativa de vida seja necessário para cada um de nós como um incentivo para contarmos os nossos dias e fazê-los valer.

Então poderia ser que o que pela intenção é uma dádiva da ciência para o homem, a consecução parcial do mais antigo de seus desejos – escapar à maldição da mortalidade –, se vire contra o próprio homem. Não estou me entregando à mera especulação sobre o futuro, nem na emissão de um juízo de valor, embora minha opinião seja evidente. O que destaco é que mesmo a pro-metida dádiva levanta questões que nunca precisaram ser feitas antes em termos de escolha prática, e que nenhum princípio das éticas anteriores, que tomavam como garantidas as constantes humanas, tem competência para lidar com essas questões. E, todavia, elas precisam ser tratadas eticamente, atendendo-se a um princípio e não apenas à pressão de interesses.

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b. O mesmo ocorre com todos os outros poderes quase utópicos prestes a estarem disponíveis futuramente com os progressos da ciência biomédica à medida que são transformados em tecno-logia. Desses, o controle comportamental está muito mais próximo de alcançar um estágio de aplicação prática do que o prospecto ainda hipotético que acabei de discutir, e as questões éticas que ele levanta são menos profundas, mas possuem um impacto direto na concepção moral do homem. Aqui novamente, o novo tipo de intervenção vai além das antigas categorias éticas. Elas não nos preparam, por exemplo, para nos posicionarmos a respeito do controle mental à base de meios químicos ou através da ação elétrica direta no cérebro por meio do implante de eletrodos – mesmo que suponhamos que essas ações empreendidas tenham fins defensáveis e mesmo louváveis. A mistura de potenciais benéficos e perigosos é óbvia, mas as linhas não são fáceis de determinar. O alívio mental de pacientes em relação aos seus sintomas estressantes e incapacitantes parece ser inequivocamente benéfico. Mas, a partir do alívio do paciente, uma meta própria da tradição da arte médica, pode-se facilmente passar para a liberação da sociedade da inconveniência do difícil comportamento indivi-dual de seus membros: isto é, existe a possibilidade da passagem da aplicação médica para a social; e isso abre um campo ilimitado de potenciais graves. Os perturbadores problemas da ordem e da anomia na moderna sociedade de massa tornam a extensão desses métodos de controle para categorias não médicas algo extremamente tentador para a administração social. Inúmeras questões de dignidade e direitos humanos aparecem. A questão difícil entre assistência preventiva e curativa exige respostas con-cretas. Devemos induzir atitudes de aprendizagem em crianças de nível escolar através da administração maciça de remédios, deixando de lado o apelo à motivação autônoma? Devemos superar a agressividade através da pacificação eletrônica de áreas cerebrais? Devemos gerar sensações de felicidade e prazer ou pelo

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menos de contentamento através da estimulação independente (ou tranquilizante) de centros apropriados – independentes quer dizer independentes dos objetos de felicidade, prazer ou con-tentamento e sua consecução na vida e no desempenho pessoal? Os exemplos poderiam ser multiplicados. As firmas de negócios poderiam ficar interessadas em algumas dessas técnicas tendo em vista o aumento da performance de seus funcionários.

Independentemente da questão da compulsão ou do consen-timento, e independentemente também da questão dos efeitos colaterais indesejáveis, sempre que formos além do modo hu-mano de lidar com problemas humanos, fazendo com que eles entrem em curto-circuito em função de mecanismos impessoais, arrancamos algo da dignidade da ipseidade e damos um passo adiante na estrada que leva de sujeitos responsáveis a sistemas de comportamento programados. O funcionalismo social, embora importante, é apenas um lado da questão. Decisiva é a questão acerca de que tipo de indivíduos a sociedade é composta – para tornar sua existência valiosa como um todo. Em algum lugar dessa linha de crescente administrabilidade social que se realiza ao custo da autonomia individual, a questão de se a empresa humana vale de algum modo a pena precisa ser levantada. A resposta a isso envolve a imagem de homem da qual nos servimos. Precisamos repensá-la novamente à luz das coisas que podemos fazer-lhe agora e que nunca poderíamos ter feito antes.

c. Isto vale ainda mais para este último objeto de uma tec-nologia aplicada ao próprio homem – o controle genético dos futuros homens. Este é também um tema muito amplo para um tratamento genérico. Aqui deixo apenas indicado este que é o mais ambicioso dos sonhos do homo faber, resumido na afirmação de que o homem tomará em suas mãos sua própria evolução, com a meta de não apenas preservar a integridade da espécie, mas de modificá-la com melhoramentos de sua própria inven-ção. Se temos o direito de fazê-lo, se estamos qualificados para

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esse papel criativo, esta é a questão mais séria que pode ser feita ao homem, que se encontra de repente diante da possibilidade de tais poderes fatídicos. Quem serão os criadores de uma tal imagem [do homem], segundo quais parâmetros, e com base em quê conhecimento? Do mesmo modo, a questão do direito moral de experimentar com seres humanos futuros precisa ser feita. Essas e outras questões similares, que exigem uma resposta antes que embarquemos numa viagem ao desconhecido, mos-tram da maneira mais vívida possível o quanto a potencialidade de nosso agir tem nos arrastado para além dos termos de toda ética precedente.

VIIIA característica comum eticamente relevante em todos os

exemplos salientados é aquilo que gostaria de chamar de impulso inerentemente “utópico” de nossas ações que se estabelecem sob o signo das condições da tecnologia moderna, seja operando em relação ao não humano ou em relação à natureza humana, e sendo a “utopia” no fim da estrada algo planejado ou não. Em função da qualidade e da grandeza de seus efeitos ao es-tilo de uma bola de neve, o poder tecnológico nos arrasta em direção a objetivos de um tipo que no passado pertenciam ao domínio das Utopias. Para explicitar isso de outra maneira, o poder tecnológico transformou o que costumava ser e deveria ser jogos experimentais, e possivelmente instrutivos, da razão especulativa em esboços concorrentes de projetos executáveis, e, ao escolher entre eles, temos de escolher entre os extremos dos efeitos de longo prazo. A única coisa que realmente po-demos saber a seu respeito é o seu extremismo como tal – o fato de que eles [os efeitos] dizem respeito à condição total da natureza em nosso planeta e ao próprio tipo de criaturas que devem ou não fazer parte dele. Como consequência da escala inevitavelmente “utópica” da tecnologia moderna, a distância

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salutar existente entre as questões cotidianas e últimas, entre as ocasiões para a prudência habitual e as ocasiões para a sabedoria iluminada, está desaparecendo. Ao vivermos agora, constante-mente, à sombra do utopismo indesejado, velado e autônomo, somos constantemente confrontados com questões cuja escolha positiva exige sabedoria extrema – uma situação impossível para o homem em geral, porque ele não possui essa sabedoria, e especialmente para o homem contemporâneo, que nega a própria existência de seu objeto, a saber, o valor objetivo e a verdade. Estamos precisando da sabedoria exatamente quando menos acreditamos nela.

Se a nova natureza de nosso agir então exige uma nova éti-ca de responsabilidade de longo-prazo e coextensiva com a amplitude de nosso poder, ela chama em nome dessa mesma responsabilidade também para um novo tipo de humildade – uma humildade não como a do passado, isto é, própria de nossa pequenez, mas própria da grandeza excessiva de nosso poder, que se expressa pelo excesso de nosso poder de agir em con-traposição à nossa capacidade de prever e à nossa capacidade de avaliar e julgar. Em face dos potenciais quase escatológicos de nossos processos tecnológicos, a ignorância das implicações últimas [desses processos] se torna ela mesma uma razão para a limitação responsável – como a segunda melhor alternativa para a posse da própria sabedoria.

Outro aspecto da necessária nova ética da responsabilidade, pelo futuro distante e para ele, é digno de nota: a insuficiência do governo representativo de dar conta das novas demandas atendendo apenas a seus princípios usuais e sua mecânica normal. Pois de acordo com eles, apenas os interesses atuais fazem-se ouvir e sentir, forçando então sua consideração. É a eles que os agentes públicos devem prestar contas, e este é o modo em que concretamente o respeito aos direitos aparece (enquanto distinto de seu reconhecimento abstrato). Mas o futuro não tem

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quem o represente, ele não é uma força que se possa pesar na balança. O não existente não possui lobby, e os não nascidos são impotentes. Assim, a prestação de contas em relação a eles não possui realidade política na atual tomada de decisão, e quando eles puderem fazer sua acusação, nós, os acusados, não estaremos mais aí.

Isso levanta, para um último passo, a antiga questão do poder do sábio, ou a força das ideias, quando não ligadas ao autoin-teresse, no corpo político. Qual força deve representar o futuro no presente? Entretanto, antes que esta questão [da representa-ção política das gerações futuras] possa se tornar candente em termos práticos, a nova ética precisa encontrar sua teoria, na qual o que se pode fazer e o que não é permitido possa estar baseado. Isto é: antes da questão de qual força, vem a questão de que insight ou conhecimento axiológico deve representar o futuro no presente.

IXE aqui é onde emperro, e onde todos nós emperramos.

Pois o mesmíssimo movimento que nos fornece os poderes que precisamos regular agora com normas – o movimento do moderno conhecimento chamado ciência – destruiu, através de uma complementaridade necessária, os fundamentos a partir dos quais se poderiam derivar as normas; ela destruiu a própria ideia de norma como tal. Não destruiu, felizmente, o sentimen-to em relação a normas, e especialmente em relação a normas específicas. Mas esse sentimento se torna incerto a respeito de si mesmo quando contraposto por um suposto conhecimento ou quando pelo menos lhe é negado qualquer sanção que seja. De mais a mais, ele terá tempos bastante difíceis contra as fortes reivindicações de cobiça e temor. Agora, ele precisa se enver-gonhar, ademais, ante o olhar suspeitoso de um conhecimento superior, já que visto por este como infundado e incapaz de

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H a n s J o n a s

fundamentação. Primeiro, a Natureza foi “neutralizada” no que diz respeito aos valores, depois o próprio homem. Agora treme-mos na nudez de um niilismo em que a quase onipotência está pareada com o maior dos vazios, uma maior capacidade com um menor conhecimento de para que ela serve. Com a poten-cialidade apocalíptica de nossas ações, o mesmo conhecimento que nos falta se tornou mais urgentemente necessário do que em qualquer outro estágio da aventura humana. Infelizmente, a urgência não é promessa de sucesso. Pelo contrário, é preciso notar que a procura por sabedoria hoje exige uma boa dose de insensatez. A própria natureza da época que clama por uma teoria ética a torna suspeitosamente aparentada a uma loucura errante. Todavia, não temos outra escolha senão tentar.

Permanece uma questão se, sem a restauração da categoria do sagrado – a categoria mais destruída de uma parte a outra pelo esclarecimento científico –, poderemos ter uma ética capaz de fazer frente aos poderes extremos que possuímos hoje e que aumentam constantemente, quase forçando-nos a utilizá-los. No que concerne àquelas consequências, iminentes o bastante como são para nos acertar, o temor pode fazer o trabalho – já que tão frequentemente é o melhor substituto para a virtude genuína ou a sabedoria. Por esses meios, fracassamos em relação a prospectos mais distantes, que aqui são os que mais importam, especialmente porque a pequena magnitude das coisas parece mais inocente quando elas ainda estão no início. Apenas a pro-fanação do sagrado, com seu veto indiscutível, é independente dos cálculos do temor mundano e o consolo para a incerteza acerca das consequências distantes. Mas a religião, enquanto uma força determinadora da alma, não está mais aí para ser chamada em socorro da ética. A última precisa se estabelecer sobre o seu solo mundano – isto é, sobre a razão e sua adequação à filosofia. E enquanto, a respeito da fé, pode-se dizer que ela pode existir ou não, da ética há que se dizer que ela precisa existir.

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Ela precisa existir porque os homens agem, e a ética tem como função a ordenação das ações e regulação do poder de agir. Ela deve existir tanto mais, então, quanto maiores forem os poderes de ação que precisarem ser regulados; e, em função de sua grandeza, o princípio ordenador precisa ser um que lhe seja adequado. Assim, os novos poderes de ação requerem novas normas éticas e, talvez, até mesmo uma nova ética.

“Não matarás” foi enunciado porque o homem tinha o poder de matar, bem como a ocasião e mesmo a inclinação para isso – em suma, porque matar é algo que realmente acontece. É apenas em função da pressão de hábitos reais da ação – e geralmente do fato de que sempre a ação já aconteceu, sem que isto tenha sido ordenado antes de tudo – que a ética, enquanto regulação desse agir tendo em vista o critério do bem ou do permitido, entra em cena. Tal pressão emana dos novos poderes tecnológicos do homem, cujo exercício é dado com sua existência. Se eles real-mente são tão novos como aqui defendido, e se pelos tipos de suas consequências potenciais eles realmente aboliram a neutralidade moral que o comércio técnico com a matéria até agora possuía – então sua pressão exige que se procure por novas prescrições éticas que sejam competentes para assumir sua orientação, mas que, antes de tudo, possam sustentar-se teoricamente contra aquela mesma pressão. Este ensaio foi dedicado à demonstração dessas premissas. Se forem aceitas, então nós, que fazemos do pensar o nosso ofício, temos uma tarefa a legar para o nosso tempo. Devemos fazer isso a tempo pois, já que de um um jeito ou de outro acabamos agindo, devemos ter, de qualquer forma, algum tipo de ética, e sem o esforço supremo de determinar o caminho certo podemos acabar nos enveredando, por descuido, em um caminho errado.

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