ensaio sobre o feminismo marxista
TRANSCRIPT
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
1
Ensaio sobre o feminismo marxista socialistai
Elisabete Santos Licenciada em Gesto de Recursos Humanos
Comisso para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, Portugal [email protected]
Lgia Nbrega Licenciada em Sociologia
Comisso para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, Portugal [email protected]
Resumo Trata-se de um ensaio acerca do Feminismo Marxista Socialista onde so apresentados os pontos
mais marcantes desta teoria em articulao com os/as autores/as que determinaram a construo
desta corrente de pensamento em diferentes perodos da histria. Com incio em meados do sc. XIX
com Marx e Engels, os grandes mestres da ideologia marxista, continua com Bebel no seio do partido
social democrata alemo e Clara Zetkin, um importante marco na liderana feminina do socialismo
europeu.
Esta abordagem termina salientando o importante contributo da teoria feminista socialista para a
valorizao do modo de produo domstico, a situao de subordinao da Mulher, bem como a
discriminao vivenciada por outros grupos.
Palavras-Chave Modo de produo domstico
Abstract An approach about Marxist and Socialist Feminism with the explanation of the main points of this
theory trough the more representative authors in different history stages. Starting in the middle of the
XIX century with Marx and Engels the masters of Marxist ideology, goes on with Bebel from the
German social democrat party and Clara Zetkin the main feminine leader of European socialism.
This approach ends underlining the great contribution of socialist feminism theory to reveal the value
of domestic work and the subordinated situation of women and other socially discriminated groups.
Key Words Value of domestic work
Nos estudos de gnero, que na realidade comearam por ser estudos da mulher, reflectem diversas
ideologias tericas que se combinaram de acordo com diferentes tradies:
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
2
- uma tradio liberal que afirma que o problema das mulheres uma falha do liberalismo
que no lhes permitiu aceder a uma cidadania plena devido no atribuio de
igualdade de direitos;
- com um outro ponto de vista e partindo de diferentes pressupostos tericos surgiu um
feminismo marxista que reconheceu o problema da mulher enquanto um problema de
explorao econmica atravs duma abordagem, que podemos classificar como
redutora, subordinando o tema da mulher ao tema da classe social.
A associao entre feminismo e marxismo, nos momentos iniciais do feminismo contemporneo,
embora nem sempre pacfica, foi intensa e fecunda, dado que havia entre ambos uma convergncia
quase natural na luta terico-poltica que visava alcanar transformaes nas situaes de
explorao e opresso. Constata-se o paralelismo entre o materialismo histrico que um
conhecimento crtico elaborado pelo ponto de vista de explorados/oprimidos, com o do feminismo.
Num primeiro momento a luta das mulheres no dissociava a dimenso das desigualdades sociais da
opresso de gnero, o que, por sua vez, estava associado luta contra o capitalismo.
As feministas encontraram no marxismo conceitos que poderiam potencialmente explicar as
estruturas sociais atravs das quais as mulheres so exploradas e oprimidas, porm essa
aproximao no se deu de forma a-crtica, desafiando os limites do marxismo expandiram o seu
potencial terico-crtico atravs da incorporao da dimenso sexuada nas relaes sociais.
O feminismo marxista vai teorizar o gnero baseando-se nas categorias filosficas constituintes do
marxismo, partindo do principio materialista da dialctica, d centralidade, entre outras questes, s
articulaes entre vida material e simblica, estabelecendo as conexes entre produo e reproduo
social, entre diviso social e sexual do trabalho, em ltima anlise, entre o sistema de gnero e o de
classe social. Tambm as relaes entre cincia e ideologia constituem estratgias para a
desnaturalizao do gnero e as relaes entre teoria e praxis, legitimam as mulheres como sujeitos
de um conhecimento terico-prtico, potencialmente crtico e transformador.
O marxismo permitiu ao feminismo situar a sua gnese num processo gerado nas e pelas relaes
sociais, em contextos socio-histricos determinados.
No plano poltico, o feminismo marxista/socialista parte do postulado da indissocivel conexo entre a
luta das mulheres e a luta de classes, pelo facto do capitalismo ser uma totalidade social, essa luta
deve-se travar no s no plano econmico mas tambm no da cultura, o que inclui a cincia.
Em nosso entender a cultura apesar de no constituir a totalidade da vida social, uma importante
dimenso da trama humana onde se verifica a produo e a reproduo social.
Outra linha de orientao dos estudos feministas o feminismo radical que deve, em parte, a sua
emergncia ao feminismo socialista e d inicio a um interessante desenvolvimento sobre as
diferenas entre mulheres e grupos de mulheres, e no apenas entre o homem e a mulher.
Neste sentido a expresso Mulher no significa o mesmo que Mulheres, interpelao que comea
com o feminismo socialista e posteriormente desenvolvido numa perspectiva radical de que ser
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
3
mulher jovem no o mesmo que ser mulher adulta, ser mulher negra, ser mulher pobre ou ser
mulher rica.
O feminismo socialista, juntamente com o feminismo radical, estiveram na vanguarda dos feminismos
de segunda vaga uma vez que, de acordo com alguns/algumas autores/as (Vicente, 2002: 19) a
primeira vaga dos feminismos surge entre a 2 metade do sculo XIX e a 1 metade do sculo XX,
tendo-se caracterizado pela procura duma identidade prpria, do direito educao, do direito de
criar cultura, do direito de entrada em certas profisses, do direito de votar e de ser eleita. Sendo que
a segunda vaga do movimento feminista se situa por volta dos anos 60 (Nogueira, 2001: 136) e
prolonga-se mais ou menos at meados dos anos 80 e representa uma poca de grande actividade e
inovao, d-se uma viragem no abordar das questes relativas s mulheres, coloca-se um nfase
em questes como a alternidade, a diferena sexual ou a opresso cultural das mulheres.
O socialismo, na perspectiva de movimento diversificado favoreceu, desde a sua gnese o feminismo,
possivelmente, devido a duas razes centrais: o socialismo surge num estgio histrico posterior ao
individualismo, numa altura em que o feminismo j era uma ideologia conhecida, por outro lado, a
ideologia socialista desenvolve um forte antagonismo famlia enquanto instituio, o que constitua
um factor atractivo para aquelas feministas que queriam desligar as mulheres do seu papel tradicional
de famlia.
O feminismo marxista socialista, tal como outras correntes do feminismo, posiciona a situao das
mulheres como grupo ou grupos, no entanto caracteriza-se com matizes que se distinguem de outras
correntes tericas com razes ideolgicas, ou no, e que igualmente incorporaram o feminismo
enquanto movimento. Sob diferentes orientaes procura o reconhecimento da igualdade de direitos
legal, poltica e na prtica da vida do quotidiano entre mulheres e homens.
Quando fazemos referencia a esta forma de pensamento feminista, obrigatoriamente somos
levadas/os a remeter as suas bases para a ideologia Marxista que lhe foi percursora e onde
efectivamente ela teve a sua gnese, nomeadamente atravs da abordagem de uma compreenso
dialctica das relaes de classe e a teoria explicativa das mudanas sociais, onde cabem tambm
as relaes de sexo.
A teoria marxista, o feminismo marxista e o feminismo socialista no obedecem a uma continuidade
harmoniosa apresentando-se, muitas vezes, com pontos de clivagem. De facto, a teoria marxista
quando adaptada para a luta feminista foi seguramente ultrapassada em aspectos importantes que
concorrem para a perpetuao das desigualdades. Esta distino relativamente ao marxismo, embora
com outro formato, aplica-se tambm a outras tendncias de pensamento que vrias/os tericas/os
defenderam uma vez que se serviram da problematizao do feminismo socialista como suporte a
outras correntes feministas. O mesmo se verificou no sentido oposto, isto , a orientao feminista do
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
4
socialismo entrosou outros feminismos, designadamente o radical, o liberal e o ps-modernista,
assumindo no entanto uma faceta prpria que adiante passamos a descrever.
Valerie Bryson fundamenta, na sua obra sobre a teoria poltica feminista, que o termo feminismo
socialista , tambm, um pouco confuso pois tende a descrever as teorias que veem o socialismo e o
feminismo relacionados e a sintetizar as ideias dos feminismos marxista e radical (Bryson, 1992: 2).
Alguns/Algumas feministas socialistas modernos/as afirmam mesmo que a corrente socialista do
feminismo procura combinar o melhor do marxismo e do feminismo radical quando coincide na
insistncia de diminuir o poder masculino, do feminismo radical e a necessidade de tratar, sob um
ponto de vista poltico, todas as reas de vida nomeadamente as do foro privado, transferindo-as para
a esfera publica (Bryson, 1992: 4).
O pensamento marxista e o feminismo socialista
Marx e Engels, os principais marcos da ideologia marxista, acreditavam que a sociedade perfeita no
era alcanvel por si s, mas surgiria na sequncia e sob a forma de um resultado de um perodo
particular de desenvolvimento histrico.
Se inferida brevemente, podemos descrever a teoria marxista reduzindo-se anlise do sistema
econmico onde foram enquadradas todas as questes sociais tais como a famlia e as relaes de
sexo e que, semelhana de outras formas de organizao social, sero substitudas num
determinado contexto histrico para o qual se encaminha a necessria mudana do sistema, em
suma a supresso do capitalismo.
O enfoque marxista parte do pressuposto de que nas sociedades primitivas, apesar da diviso sexual
do trabalho, as relaes entre os sexos eram baseadas na igualdade. Ora, este equilbrio fica
perturbado e subvertido quando o homem adquire o direito propriedade privada, e passa a
assumir na esfera familiar uma posio de supremacia e de poder, e a transmisso do direito a essa
propriedade efectuada atravs dos familiares masculinos, ficando assim reduzido o papel feminino
funo de servido e de reproduo. Este processo explica a explorao da mulher que coincide com
o aparecimento da propriedade privada e com a sociedade de classes.
Como Marx tinha previsto, a maquinaria, ao lanar todos os membros da famlia do trabalhador no
mercado de trabalho, reparte o valor da fora de trabalho do homem por toda a famlia, rebaixa o
valor do trabalho masculino e, consequentemente, dali para diante, todos os membros da famlia
precisam de fornecer no s trabalho, mas mais trabalho para o capital, para que uma famlia possa
sobreviver. Desta forma, no s as mulheres como tambm as crianas e jovens da classe
trabalhadora so reduzidos condio de simples fora de trabalho sob explorao do capital. A
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
5
libertao das mulheres dar-se-ia com a superao do modo de produo capitalista que, em sntese,
eliminaria todas as formas de opresso, explorao e subjugao de toda a sociedade.
Engels por sua vez sublinha a importncia da incorporao das mulheres nas foras de trabalho
assalariado, j que o emprego feminino uma forma bsica para o alcance da igualdade.
Problematizou ainda a questo da reproduo e do cuidado das crianas, bem como a educao dos
menores que se deveria tornar um assunto pblico, libertando assim a mulher para o exerccio da sua
funo no sistema de produo cessando a situao de dependncia e de opresso (Engels citado
por Bryson, 1992: 71). Desta forma, a desigualdade entre os sexos ficaria reduzida desigualdade
entre classes. Poder-se-ia concluir que a resoluo da luta de classes resolveria tambm a questo
da opresso, e que com a incorporao da mulher no trabalho assalariado desapareceria a diviso
sexual do trabalho.
Engels, com base numa anlise antropolgica, contribuiu para a compreenso da famlia como
organizao social onde a diviso do trabalho tambm uma diviso sexual entre funes
masculinas e femininas. Esta anlise clarifica a explorao da mulher enquanto classe oprimida, mas
no a sua subordinao como membro da categoria mulheres (que esto num plano
hierarquicamente inferior) e que se submetem ao grupo dos homens. A situao de submisso das
mulheres ultrapassa, porm, os limites deste nexo causal, espartilhado no mbito do sistema
econmico, inscrevendo-se noutras causas tais como a tica subjacente s prticas da vida
quotidiana que, de uma forma transversal determina uma participao feminina num plano de
igualdade.
O enfoque da opresso da mulher pois enriquecido pelas/os socialistas alargando-o para a questo
da subordinao. O certo que o conceito de opresso ou explorao distingue-se do de
subordinao. Este ltimo implica algumas condies partida tais como a existncia de nveis de
hierarquizao onde determinados grupos exercem o poder e outros a eles esto submetidos. O
enfoque marxista no analisa esta premissa de submisso das mulheres pelos homens o que
precisamente retomado e analisado pelas feministas socialistas. Apesar das mulheres sofrerem uma
situao de subordinao no sentido de unidade colectiva, no so todas a vivenciar a mesma
situao de opresso ou uma opresso do mesmo tipo. Para alm disso, apesar da opresso
feminina ser uma parte da sociedade de classes no necessariamente uma caracterstica
permanente e determinante das relaes humanas.
Questes, abordagens e perspectivas do feminismo socialista
O feminismo socialista demarca-se e ultrapassa o debate do marxismo clssico sublinhando as
relaes entre o sistema econmico e a subordinao das mulheres, constatando a sua opresso
enquanto classe trabalhadora, mas tambm enquanto mulheres, compreendendo de uma forma
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
6
dialctica as relaes de sexo e de classe. estrutura de classes capitalista corresponde, como que
simetricamente, a estrutura sexual hierarquizada. Na primeira temos capitalismo que se ope e
domina a classe trabalhadora, na segunda temos o patriarcado que se ope e domina mulheres e
crianas. Desta forma, capitalismo e patriarcado, so ambos sistemas de explorao e entre ambos
se estabelece uma relao de servio mtuo, onde o sistema de valores institudo pelo patriarcado
refora, fundamenta e serve o controlo capitalista.
o feminismo socialista que introduz um novo elemento e faz emergir o Modo de Produo
Domstico para o centro da actividade produtiva, atribuindo-lhe o devido reconhecimento do seu
contributo para a economia. Num sistema de valores patriarcal e num sistema econmico, onde
domina o capital, o trabalho domstico no reconhecido nem remunerado beneficiando, desta
forma, a perpetuao de ambos os sistemas econmico e cultural. Perspectiva-se, desta forma, a
situao da mulher como uma situao de classe, tendo a sua opresso origem na existncia de
papis diferenciados hierarquicamente em funo do sexo (Maquieira e outras, 2001: 118).
A implementao da ideologia socialista, antes da Primeira Guerra Mundial, assume forte expresso
com o movimento socialista alemo tendo sido o maior e que obteve mais sucesso no mundo.
Bebel, do Partido Social Democrata Alemo, e Englesii (Bryson, 1992: 121-129) partilhavam a posio
bsica de que a opresso das mulheres era um produto da sociedade e que s terminaria quando a
revoluo do proletariado trouxesse uma sociedade socialista na qual cada mulher teria larga
independncia econmica aps a colectivizao do trabalho domstico e do cuidado das crianas.
Porm, Bebel distingue-se de Engels, quando verifica que a classe trabalhadora feminina remunerada
alm de explorada enquanto trabalhadora era tambm oprimida como mulher. Refere ainda que, de
acordo com as premissas do sistema capitalista e os padres culturais que lhe esto associados, a
remunerao da fora de trabalho feminina consequentemente inferior dos homens. O mesmo
autor defende a igualdade de direitos, considera que a desigualdade de gnero prvia
desigualdade de classes e pensa que alcanar a igualdade formal um objectivo necessrio, no
sendo porm suficiente, se, depois de alcanado, no se incorporar de uma forma automtica na
prtica.
No mesmo perodo histrico Clara Zetkin foi, entre os dois autores anteriores, a principal lder
feminina do socialismo Europeu. Concentrou as suas preocupaes nos problemas das mulheres e
como editora do jornal Equality direccionou os problemas tericos e prticos para o recrutamento de
mulheres para a causa socialista.
Para Zetkin, tal como para outras socialistas, o livro de Bebeliii foi um ponto de inspirao; aceitou as
suas teses centrais, que encadeavam os vrios factores de desigualdade que originavam opresso,
enquadramento explicativo a partir do qual se estabelecem as inter-ligaes necessrias entre as
aspiraes das mulheres e a realizao do socialismo. Foi extremamente hostil ao feminismo dito
burgus que considerava imbudo duma perspectiva individualista e envolvido numa superficial
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
7
batalha contra os homens que no permitiu o desaparecimento duma dominao sistemtica dos
homens sobre as mulheres. Revelou a sua oposio atravs de exigncias para melhorar a
educao, as perspectivas de emprego e o estatuto legal das mulheres, embora o feminismo burgus
se tenha revelado, por vezes, mais apto a identificar exemplos de opresso. Enquanto militante do
partido socialista, recusou-se a cooperar nas campanhas pelo voto, dado que, no seu entender, as
mulheres do proletariado precisavam da implementao de polticas e direitos legais que
promovessem a igualdade, o que constitua uma parte integrante da luta contra o capitalismo.
Tal como Bebel e Engels, Zetkin referiu tambm que a inexistncia de propriedade na classe
trabalhadora e a participao das mulheres do proletariado no trabalho assalariado da indstria,
significaria a cessao de bases ou motivao para a continuidade da desigualdade de gnero. As
ideias de Zetkin (Bryson, 1992: 128) foram mudadas ao longo do tempo, sobretudo atravs de
estratgias de presso exercida dentro do prprio partido socialista, de que era militante. As suas
anlises da famlia como uma instituio opressora e a sua persistncia na importncia da
participao feminina na actividade poltica, foram substitudas como contrapartida por outras verses
de que, segundo o socialismo, a famlia permaneceria como uma unidade moral. A sua determinao
radical isolou-a, no s do partido, mas de uma nova gerao de mulheres igualmente militantes do
partido socialista, que estavam preocupadas com a assistncia e bem-estar das crianas, mais do
que em desafiar a estrutura de poder ou alcanar uma grande mudana social.
O feminismo inicial na Rssia foi de alguma forma semelhante ao do Este da Europa. Em meados do
sculo XIX, as mulheres da classe mdia exigiram direito educao, carreira, igualdade plena e
direito de voto numa sociedade onde o liberalismo era fraco e s organizaes estavam preparadas
para defender seriamente as questes das mulheres. Contudo, este envolvimento feminino tornou-se
de tal forma forte e radical que se disseminou sob a forma muito prxima de terrorismo tendo
obrigado as autoridades da poca a construrem uma nova priso para mulheres.
Nadezhda Krupskayaiv foi a primeira a apelar a ateno do marxismo ortodoxo para a situao das
mulheres na Rssia. Seguindo as linhas anteriores, afirmou que a participao feminina na fora
trabalhadora era progressiva e essa libertao podia resultar da participao na luta de classes.
O prprio Lenine no mostrou indiferena ou hostilidade s exigncias que as mulheres reclamaram
relativamente situao dos homens. Ele entrou para alm das usuais questes sobre os direitos
legais, igualdade futura e insistncia na necessidade de libertar as mulheres do trabalho penoso
domstico. Contudo, a situao da opresso feminina no era, semelhana dos restantes
percursores do marxismo, uma prioridade poltica para Lenine, mais uma vez, os objectivos de
emancipao feminina ficam aqum das expectativas inicialmente definidas.
William Thompson, apesar de preconizar uma orientao claramente liberal, no incio do sc. XIX,
refora alguns dos pressupostos socialistas tendo defendido que a capacidade intelectual das
mulheres seria, pelo menos, to boa quanto a dos homens e as diferenas biolgicas nunca poderiam
ser argumento contra direitos polticos iguais. Para Thompson, independncia econmica, envolvia a
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
8
insistncia no sentido de que as mulheres teriam o direito de seguir uma carreira e participar, num
plano de igualdade, no sistema de processo produtivo. Isto s poderia ser alcanado numa sociedade
cooperante na qual o contributo das mulheres fosse apreciado e no existissem motivos para os
homens praticarem injustias ou para as mulheres se submeterem a elas. Distorcendo as influncias
de possesso e do direito de propriedade que homens e mulheres se poderiam relacionar como ser
humanos livres e iguais.
A famlia funcionava como espao privilegiado da dominao masculina, no qual as mulheres eram
isoladas com as suas crianas "reduzidas a um estado de estupidez e apatia" (Bryson, 1992: 34)
pelos homens.
Numa larga escala o fim das relaes de dependncia e de possesso na vida pessoal tornariam
possvel uma nova e forte ordem da sociedade.
Nos Estados Unidos da Amrica o feminismo no aparece ligado duma forma to evidente ao
socialismo como no Continente Europeu, no entanto podemos considerar Robert Owen (Bryson,
1992:29), no princpio do sc. XIX, como percursor de algumas ideias socialistas no continente
americano aborda pela primeira vez a problemtica da partilha de tarefas como fonte de desigualdade
para alm da propriedade privada, do matrimnio e da diviso sexual do trabalho. De acordo com
Owen, a propriedade privada, a religio e o casamento eram componentes indissociveis do mesmo
tringulo e no podiam ser erradicados. Para evitar que as mulheres fossem tratadas como
propriedade dos homens era necessrio abolir no s o casamento mas tambm a propriedade
privada. Logo, era necessrio remover o individualismo e a estrutura de organizao familiar, tal como
era ento concebida, para que a abolio da propriedade privada fosse possvel. Finalmente, para a
concretizao deste objectivo, seria necessrio abalar o motor que sustenta, que fundamenta e que
gere a sua existncia, em suma a religio.
O Owenismo, apesar de ter construdo uma base de fortes alicerces para os argumentos de
emancipao por parte da classe-trabalhadora, e esteja fortemente associado aos movimentos da
unio trabalhadora, nunca se tornou um movimento de massas. semelhana de Engels, Owen traz
para o debate a questo do privado que dever tornar-se pblico como forma de dissoluo das
desigualdades que por sua vez esto inscritas na diferenciao funcional dos diferentes sexos, ao
homem atribudo um papel produtivo que radica na esfera pblica, mulher competem funes da
esfera privada tais como a reproduo.
A conjuntura internacional, que emerge entre os anos 60 e 70 na sequncia de distintas guerras
imperialistas, associa a respectiva oposio de movimentos polticos cuja orientao ideolgica
identificada com a esquerda, bem como a necessidade de explicar a vigncia do racismo, e ainda a
implementao de sistemas econmico-polticos como o da Unio Sovitica, China e Cuba. Todos
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
9
eles englobam um conjunto de factores que contribuem para um ressurgimento ou renascimento das
teorias explicativas das mudanas sociais e das relaes sociais de dominaov.
No mbito deste enquadramento, as organizaes de esquerda desempenharam um papel
fundamental, porm, no tardou que as mulheres que integravam estas organizaes,
reequacionassem as perspectivas do marxismo clssico que apesar de renascido continuava imbudo
de premissas perigosamente sexistas. Tal como o feminismo liberal e radical, o feminismo socialista
tem afluentes na experincia e na prtica poltica das mulheres.
E na senda deste activismo poltico que um movimento de mulheres oriundas destes grupos de
esquerda (Maquieira e outras, 2001:115) denunciam a persistncia de questes relativamente
teoria marxista questionando se esta constitui uma ferramenta terica suficientemente abrangente
para explicar a opresso das mulheres, se a explorao de que so vtimas as mulheres da classe
trabalhadora semelhante que se verifica noutros estratos sociais, e, por fim, quais os instrumentos
metodolgicos vlidos que poderiam explicar a subordinao das mulheres.
O poder do feminismo inicia o seu ressurgimento no contacto das diferentes correntes tericas com a
problemtica da vida quotidiana e constitui-se num modelo de anlise que tinha a capacidade de
apreender, desconstruir e alterar esse quotidiano.
Nesta dcada de 60-70 a denominao de feminismo marxista e feminismo socialista, embora de
razes semelhantes diferenciam-se, de acordo com a anlise de alguns/algumas autores/as como o
caso de Alison Jagar que considerava o feminismo socialista mais consistente e resultante da
aplicao duma epistemologia marxista, consequentemente mais abrangente e completo que procura
ultrapassar o reducionismo econmico marxista, e apesar de utilizar a metodologia do materialismo
histrico para analisar a opresso das mulheres adopta e combina aspectos caractersticos do
feminismo radical.
Juliet Mitchell (Bryson, 1992:248-249), feminista britnicavi, pode-se situar na senda do feminismo
socialista, uma vez que s questes feministas que levanta, responde com frmulas marxistas,
complementando a questo central da subordinao das mulheres. Considera que os marxistas no
foram suficientemente ambiciosos, ao situarem a opresso da mulher no circuito das relaes de
produo, acrescentando que a esta situao de subordinao h que contemplar o facto de se
posicionarem noutras estruturas que envolvem e so adjacentes estrutura econmica e que no s
a determinam como tambm se determinam mutuamente. A instituio familiar est assente em
estruturas de reproduo, de sexualidade e da socializao das crianas, que funcionam em
interdependncia e que da mesma forma se relacionam com a estrutura produtiva.vii O papel
identificado com o sexo masculino tem um estatuto de dominao assumindo o controle do
conhecimento limitando, desta forma, a autonomia e a participao feminina. semelhana de outras
socialistas, Mitchel (Beasley, 1999:62) manteve alguns elementos do Marxismo no que diz respeito
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
10
importncia das distines de classe e de trabalho incorporando a perspectiva feminista radical de
que a opresso sexual no historicamente uma consequncia da diviso de classes.
Existem vrias verses de feminismo socialista que envolvem diferentes combinaes do feminismo
radical e Marxista e que por vezes incorporam a influncia de feminismos psicanalticos. Uma das
vertentes desta orientao envolve a preocupao com a construo social de gnero, que foi
largamente vista em termos da psicanlise freudiana. Esta aproximao tende a no considerar a
opresso sexual atravs da diferente posio scio-econmica das mulheres mas concebe a
opresso como o efeito das funes psicolgicas, ao mesmo tempo continua a usar a compreenso
Marxista das relaes de classe. Representa tambm um modelo de duplo sistema de anlises
sociais, investiga a relao entre sexo e classes de poder de acordo com diferentes procedimentos e
identifica dois sistemas de organizao social que correspondem a essas formas de poder, que so o
patriarcado e o capitalismo.
Em termos gerais um modelo psicolgico de poder sexual apresentado ao lado de uma base
econmica da corrente de classes de poder. De certa forma, trata-se mais de uma abordagem da
sobreposio dos estratos sociais que se distancia da teoria do duplo sistema como explicao para
as relaes sociais. Esta sobreposio caracteriza o trabalho desenvolvido por Juliet Mitchell.
Uma outra vertente deste feminismo socialista tenta aproximar o trabalho das Feministas Radicais e
Marxistas a uma teoria de poder onde se descreve um sistema unificado algumas vezes referido
como patriarcado capitalista, ao invs do que ocorre nas abordagens iniciais onde identificado um
sistema dualizado: patriarcado e capitalismo.
Apesar dos primeiros Marxistas estarem correctos em verem a relao das mulheres com a
produo, estas anlises ignoraram as formas cruciais pelas quais a subordinao das mulheres
mantida atravs da famlia.
Alm das estruturas de produo, tradicionalmente analisadas pela teoria Marxista, o feminismo
socialista alerta para a necessidade de examinar as estruturas de reproduo que servem de suporte
famlia, sexualidade e a socializao das crianas.
Existe um aspecto-chave na teoria de Mitchell que ainda importante referir. A explorao da teoria
psicaniltica levou-a a tentar reabilitar Freud e mostrar que, apesar do frequente uso indevido e das
crticas dos/as feministas, as suas ideias podem ser usadas nas anlises feministas. Ela afirma que
as suas esperanas e previses para o futuro so baseadas na anlise do presente, no qual as
condies econmicas podem ser fundamentais, mas que ambas as lutas, poltica e ideolgica
podem ter papel chave. No entanto, evita o cruel (Bryson, 1992:249) reducionismo econmico a que
as anlises Marxistas so propensas.
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
11
Estas anlises tambm lhe permitem advogar organizaes autnomas de mulheres, insistindo que
como um grupo oprimido necessitam trabalhar para a sua prpria libertao e defender que no
haver dissoluo automtica do patriarcado sem a luta feminista. Nas teses apresentadas por Marx
o conceito de alienao envolve uma crtica humanitria das condies de trabalho sob o Capitalismo,
defendendo que a extrema diviso de trabalho impedia uma percepo controlada desta actividade
por parte do trabalhador, elemento activo e pea-chave do processo produtivo. Atravs desta
fundamentao, as teorias marxistas, classificavam esta actividade como uma actividade alienada.
As socialistas Alison Jaggar (1996) e Foreman (cit. em Bryson,1992:251) estenderam o argumento da
alienao defendendo que para as mulheres a alienao no est confinada ao mundo do trabalho
remunerado verificando-se tambm atravs da famlia e da vida privada, o que limita o controlo da
reproduo e da sexualidade por parte das mulheres e assegura a proviso emocional e o suporte
material para os homens, desvalorizando assim as necessidades prprias das mulheres e da sua
respectiva realizao como ser humano.
Jaggar (1996) apresenta tambm as condies mnimas de adequao que dever enquadrar e
teoria feminista para uma aproximao tica. No seu texto: tica feminista: alguns temas para os
anos 90 (em Castells, 1996:29) expe que a tica feminista dever procurar desafiar e identificar
todas as formas de tica ocidental na medida em que esta excluiu as mulheres ou racionalizouviii a
sua subordinao. O objectivo da implementao duma tica feminina dever ser ento proporcionar
uma compreenso terica de um sistema de valores morais que no subordine, de forma explcita ou
implcita os interesses de uma mulher, ou grupo de mulheres a outro grupo ou indivduo.
A autora classifica como errada a postura, preconizada por parte de alguns ideais feministas, onde os
interesses das mulheres so colocados em primeiro lugar substituindo uma moral discriminatria
assente em valores masculinos por uma moral discriminatria assente em valores femininos. No
contexto social actual, as mulheres continuam numa situao de subordinao pelo que a tica
dever proporcionar um enquadramento para uma aco que permita subverter esse estado de
subordinao atravs do reconhecimento de formas, por vezes desconhecidas e pouco divulgadas,
em que as mulheres e outros membros de subclasses se negaram a cooperar e se opuseram a uma
situao de opresso/dominao tendo desenvolvido condies que proporcionaram, ou poderiam
proporcionar, a sua prpria emancipao. Esta tica, defendida por Jaggar (1996) dever tambm
contemplar questes morais de mbito privado e pblico, subjacentes a problemticas como a
partilha das tarefas domsticas, os afectos e a sexualidade, assim como o trabalho e as diversas
formas de participao na vida pblica.
A referncia indicada pela autora como ponto de partida ser a experincia moral de todas as
mulheres, embora no de uma forma acrtica.
Na abordagem dos conceitos de Igualdade e Diferena sublinha a importncia da identificao do
gnero como um sistema de normas sociais que regula a actividade dos indivduos de acordo com o
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
12
seu sexo biolgico referindo que as normas baseadas na diferenciao do gnero de uma forma
prtica ou simblica reforam a dominao dos homens em relao s mulheres. Na complexidade
que constitui o debate entre o que Igualdade e Diferena, a noo de gnero traduz uma distino
relevante entre indivduos, no entanto na prtica da sociedade ocidental contempornea tem sido
possvel constatar que igualizar no produz necessariamente igualdade como ocaso de normas
legais estabelecidas como forma de alcanar a igualdade, porm, na sua prtica, resultam em
situaes de clivagens maiores de desigualdade. De que exemplo a proteco legal especial que
proporcionada s mulheres em caso de maternidade e que originou, em alguns casos da sua
aplicao, uma maior dificuldade das mulheres em acederem ao mercado de trabalho.
A autora considera que homens e mulheres raramente enfrentam a mesma situao a partir do
mesmo plano uma vez que a cada gnero socialmente atribuda uma situao diferenciada o que
levanta uma questo que teve grande actualidade na dcada de 90 que a questo da Neutralidade.
Confere a este conceito a proeminncia que lhe foi dada tradicionalmente porque vinculado ao
conceito de igualdade, no entanto, semelhana de outras filsofas feministas, desafia-o,
argumentando que no contempla as identidades particulares, constitudas de acordo com os
projectos individuais e determinadas por relaes no controlveis. Por isso, prope a sua
reformulao, atendendo situao especfica de determinados indivduos ou grupos.
Na sequncia dos conceitos de neutralidade e de igualdade, aborda tambm a noo de autonomia e
a subjectividade moral. semelhana da neutralidade a autonomia necessita de uma reformulao
que ultrapasse o sentido da tradio kantiana de desinteresse e desprendimento por vnculos
particulares. Considera pois que o feminismo contemporneo dever insistir na autonomia moral,
intelectual e racional semelhana dos homens, mas tambm poltica, social e econmica mediante
a representao poltica, a abolio da discriminao sexual e o respeito pelas decises das
mulheres em temas como o aborto. No que respeita subjectividade moral procura relativizar o
modelo cartesiano em que o eu moral um ser descarnado, separado, autnomo, unificado e
racional, apelando a que de facto a individualidade resulta, grandemente de um eu construdo
socialmente em que as individualidades representam variveis abstractas de diferentes tipos sociais.
Aborda ainda as questes adjacentes epistemologia moral e a antiepistemologia que representam
basicamente duas orientaes feministas. A primeira, no contesta drasticamente a base do sistema
de valores existente e assenta em fundamentos de neutralidade. A segunda orientao, porm,
pretende abalar por completo com este conjunto de regras assente numa neutralidade construda de
um ponto de vista masculino: pretende, efectivamente, derrubar as regras racionalmente
estabelecidas, substituindo-as pela intuio, pela virtude e pelo carcter moral, na determinao de
como intervir numa situao especfica. Identifica uma tica do cuidado como claramente associado a
uma preocupao feminina que se movimenta no mbito do espao privado e uma tica da justia
associado ao masculino, correspondendo, na sociedade contempornea subordinao do privado
pelo pblico.
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
13
Jaggar (Castells,1996:181) procura distanciar a definio de uma tica feminista de uma ortodoxia
rgida, mas que acolhe um fermento de ideias, por vezes controversas, e que coexistem num debate
em aberto.
A discusso entre o que dever ser pblico e o que dever ser do domnio privado sempre presente
nos/as pensadores/as marxistas e socialistas, retomada, em paralelo pelo feminismo radical.
Na dcada de 80, ris Young considerada uma autora de charneira, entre feministas socialistas e
feministas radicais (Evans, 1995:109-123), ao abordar ao longo da sua obra, alguns argumentos
centrais do feminismo socialista adoptando-os e ultrapassando-os duma forma pioneira. Numa
abordagem socialista, aquilo que dever ser pblico e privado tem razes na diviso sexual do
trabalho e corresponde a um modelo de androginiaix. Young, porm, infere-a para uma perspectiva de
ginocentrismo que atende, por outro lado, s diferenas de gnero (Young, 1996).
Defende que a anlise dualista do patriarcado e do capitalismo, atribuindo a opresso de gnero ao
primeiro e a opresso econmica ao segundo, permitiu anlise econmica e social marxista
permanecer como estava, pelo que a introduo do conceito de gnero constituiu uma adio menor
sem grandes repercusses para as linhas mestras da orientao terica.
Salienta a necessidade de requisitos para um ataque mais vigoroso ao capitalismo atravs duma
integrao terica que no submeta o gnero e no ignore as preocupaes feministas.
Embora faa referncia necessidade de se tornarem pblicos alguns aspectos do privado, no
deixa de salientar a necessidade de respeitar um espao individual privado estabelecendo desta
forma a relao entre igualdade e individualismo. Sublinha a diferenciao entre os grupos, no pelas
caractersticas dos seus membros mas pela sua identidade colectiva com uma determinada situao
de opresso. Adopta, desta forma, uma poltica dos grupos e da identidade que se ope a uma
poltica de luta de classes fundamentada nas diferenas entre grupos sociais. Esta poltica dos
grupos atende liberdade individual e procura estabelecer mecanismos de participao poltica. ,
sobretudo, no atender s diferenas que constitui o enfoque do seu pensamento e que a leva a
ultrapassar a abordagem das classes dando relevncia heterogeneidade entre grupos de mulheres
e grupos em geral.
Algumas reflexes conclusivas
Embora o feminismo socialista, com razes em teorias explicativas da mudana social e das relaes
sociais, tenha ultrapassado o debate marxista clssico, deixa em aberto algumas limitaes que
progressivamente foram complementadas e expandidas por outras correntes do feminismo que j
foram aqui apontadas como o caso do feminismo radical.
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
14
A varivel dominante do mtodo de anlise socialista a econmica, que desemboca num modelo
economicista e redutor, limitando-se a uma anlise das relaes de produo no mbito do sistema
social. Fica visivelmente excluda a produo e reproduo psicolgica da Mulher que veicula a
utilizao de diversas formas de violncia que povoam claramente o quotidiano feminino com base
em razes culturais do passado mas que actualmente assumem outras manifestaes e subterfgios
que disfaram novas formas de opresso.
A violncia domstica, a prostituio, o assdio sexual ou a violao, so exemplos duma expresso
mxima que se traduzem em formas de subordinao de que o sexo feminino preferencialmente a
vtima e que corre o risco de no estar contemplada num modelo que analisa redutoramente relaes
de produo.
A teorizao do marxismo clssico, cujo paradigma desenvolvido pelo feminismo socialista
relativamente mudana social, obedece a um padro universal do desenvolvimento de organizao
familiar da primeira sociedade humana, que hoje largamente questionvel. Embora na sociedade
contempornea o modelo dominante seja heterossexual ele no nem foi o nico, proliferando outras
formas familiares como a homossexualidade e a monoparentalidade.
A proposta da sociedade socialista relativamente ao modo de produo domstico e ao cuidado das
crianas de que ambos sejam colectivizados, sendo desta forma transferido para a esfera pblica
aquilo que gerava uma relao opressiva na esfera do privado. No foi, no entanto, claramente
discutido a quem deveria ser atribuda a competncia da realizao destas tarefas, e uma vez que a
diviso sexual do trabalho, nesta sociedade dita socialista, ocorre na sequncia duma diviso natural
entre os sexos, o risco do trabalho penoso ficar para o grupo com menor capacidade de reivindicar
indiscutvel.
Ainda no que se refere ao trabalho domstico foi o feminismo socialista que ps em relevo o seu
respectivo valor no mbito do processo produtivo. E para muitas feministas marxistas a reproduo
uma componente da base material da sociedade que necessita ser incorporada numa correcta
compreenso da mesma.
Fica assim em aberto a possibilidade de uma interaco entre a produo e a reproduo, que por
sua vez se traduz na interaco da luta de classes e de sexo. Porm, a explorao da mulher pelo
homem, pelo facto do segundo no partilhar estas tarefas, no posta em evidncia, e as
dificuldades que as mulheres sentem em tentar combinar o trabalho remunerado com as
responsabilidades domsticas nunca foram analisadas luz da dupla opresso que da advm uma
vez que a grelha de anlise socialista no o permitex.
Alguns crticos defendiam que a concepo da teoria Marxista no neutra de gnero, pois no so
aplicveis s mulheres e so baseadas numa viso masculina do mundo que exclui as necessidades
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
15
e as experincias das mulheres, a vida produtiva masculina funcionava como a fora condutora da
histria humana.
Nas consideraes que tecemos visvel a relevncia do feminismo socialista numa fase inicial do
seu aparecimento uma vez que apontou questes importantes como as relaes no sistema
econmico e a subordinao das mulheres, que o marxismo clssico no debateu ou diluiu na
problemtica da luta de classes, ficando claro que a luta pela igualdade de sexos est integralmente
relacionada com a luta da classe econmica.
Embora algumas das questes apontadas pelo feminismo marxista, hoje, j no tenham a
actualidade e a pertinncia que tiveram nos primrdios da sua emergncia, a problemtica associada
ao trabalho domstico, as questes da reproduo e o sistema econmico so pontos visveis que
continuam no debate dos movimentos feministas actuais, sobretudo no que se refere problemtica e
ao valor atribudo ao trabalho remunerado e no remunerado.
O legado desta corrente continua, porm, a dar sentido existncia de um ou vrios movimentos
feministas uma vez que fica clara, atravs desta forma de anlise, a situao de desigualdade em que
continuam a persistir diferentes grupos de mulheres.
Bibliografia
Barbosa, Regina, Mulheres, Reproduo e Aids: as tramas da ideologia na assistncia sade de
gestantes de HIV+, cap. II Referencial terico e metodolgico, Fundao Oswaldo Cruz, Escola
Nacional de Sade Pblica, Brasil, 2001;
Beasley, Chris, What is Feminism?, an introduction to feminist theory, SAGE Publications Ltd.,
London, 1999;
Bryson, Valerie, "Feminist Political Theory, an Introduction", The MacMillan Press LTD, London,
1992;
Castells, Carme (Comp.) e outras, Perspectivas Feministas em Teoria Poltica, Paidos Estados y
Sociedade, Ediciones Paidos Ibrica, S.A., Barcelona, 1996;
Evans, Judith, Feminism Theory Today, na Introduction to Second-Wave Feminism, SAGE
Publications Ltd., London, 1995;
Mackinnon, Catharine, Hacia una teora feminista del Estado, Feminismos, Ediciones Ctedra,
Universitat de Valncia, Instituto de la Mujer, Madrid, 1995;
-
Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi Gnero ISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
16
Maquieira, Virginia (eds.) e outras, Feminismos, Debates Tericos Contemprneos, Cincias
Sociales, Alianza Editorial, Madrid, 2001;
Nogueira, Conceio, "Um Novo Olhar sobre as Relaes Sociais de Gnero - Feminismo e
Perspectivas Crticas na Psicologia Social", Fundao Calouste Gulbenkian, Fundao para a Cincia
e a Tecnologia, 2001;
Notas 1 Verso melhorada do trabalho publicado no livro Um Olhar sobre os feminismos pensar a democracia no mundo da vida sob a coordenao de Conceio Nogueira e outras. ii No final do Sec. XIX, primeira metade do sec. XX iii citado no livro de Bryson, Valerie Feminist Political Theory, London 1992. iv Mulher de Lenine v Inspiradas na teoria Marxista. vi 1966, Women, the Longest Revolution. vii Atravs de todas elas e da sua interdependncia se verifica a subordinao da mulher. viii No sentido de justificar e legitimar. ix Os dois sexos tm caractersticas tradicionalmente ligadas ao feminino e masculino, a forma de minimizar estas diferenas seria atravs da atribuio de direitos e competncias semelhantes (Nogueira, 2001:147-148). x Uma das situaes exemplificativas do que fica dito o facto do sexo feminino, apesar de inserido no processo produtivo, com idnticas funes e competncias s dos homens, usufruir nveis de remunerao mais baixos