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Ensaio REDE URBANA E FOR1v1AÇÃO ESPACIAL- UMA REFLEXÃO CONSIDERANDO O BRASIL Roberto Lobato Corrêa * A literatura sobre redes urba- nas aponta, já há algum tempo, para a diversidade dos inúmeros conjuntos articulados de centros urbanos. Di- versidade real que, entretanto, não diminui o mérito, ao contrário, enfatiza a necessidade de esforços de elabo- ração de tipos ideais e modelos hipo- tético-dedutivos sobre a rede urbana, como são, entre outras, as formula- ções de Christaller, Lõsch e Zipf . A diversidade diz respeito às possíveis combinações dos mesmos ele- mentos que, entretanto, ao se concreti- zarem o fazem de modo específico, pois cada um desses elementos assume uma própria especificidade. Entre outros ele- mentos estão a gênese dos centros, o tamanho deles, a densidade que perfa- zem no espaço, as funções urbanas e as relações espaciais que delas deri- vam. Outros elementos, de natureza política, social e cultural, considerados menos freqüentemente na literatura, podem ser agregados, explicitando mais nitidamente a rica e complexa diversi- dade de redes urbanas. Numerosas são, a este respei- to, as contribuições dos geógrafos. Berry e Barnum", por exemplo, assi- nalam o papel das diferentes densida- des demográficas das hinterlândias sobre a estrutura da rede urbana, densidade, tamanho e funções dos centros, enquanto Milton Santos res- salta a natureza dos dois circuitos da economia urbana dos países subde- senvolvidos, os circuitos superior e inferior, projetando-os sobre a rede urbana ' . Densidade demográfica e * Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. I Consulte-se, a respeito, W. Christaller, "Central Places in Southern Germany", Englewood C!iffs, Prentice-Hall Inc., 1966 (original de 1933 em alemão), A. Lôsch, "The Economics of Location", New Haven, Yale University Press, 1952, G.K. Zipf, "Human Behavior and lhe Principie of Least Effort. An Introduction to Human Ecology", Cambridge, Addison-Wesley, 1949 e, mais recentemente, a coletânea organizada por M. Timberlake, "Urbanization in the World Economy", London, Academic Press, J985. 2 B.J.L. Berry e H.G. Barnum, "Aggregate ReJations and Elemental Cornponents of Central Place Systems", Journal of Regional Science 4, 1962. 3 Veja-se M. Santos, "O Espaço Dividido - Os Dois Circuitos da Economia Urbana dos Países Subdesenvolvidos", Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1979.

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Page 1: Ensaio -  · PDF filepaisagens agrárias foram substituí-das por outras muito diferentes e, muitas vezes, após poucas décadas de existência. As áreas cafeicultoras

Ensaio

REDE URBANA E FOR1v1AÇÃO ESPACIAL-UMA REFLEXÃO CONSIDERANDO O BRASIL

Roberto Lobato Corrêa *

A literatura sobre redes urba-nas aponta, já há algum tempo, paraa diversidade dos inúmeros conjuntosarticulados de centros urbanos. Di-versidade real que, entretanto, nãodiminui o mérito, ao contrário, enfatizaa necessidade de esforços de elabo-ração de tipos ideais e modelos hipo-tético-dedutivos sobre a rede urbana,como são, entre outras, as formula-ções de Christaller, Lõsch e Zipf .

A diversidade diz respeito àspossíveis combinações dos mesmos ele-mentos que, entretanto, ao se concreti-zarem o fazem de modo específico, poiscada um desses elementos assume umaprópria especificidade. Entre outros ele-mentos estão a gênese dos centros, otamanho deles, a densidade que perfa-zem no espaço, as funções urbanas e

as relações espaciais que delas deri-vam. Outros elementos, de naturezapolítica, social e cultural, consideradosmenos freqüentemente na literatura,podem ser agregados, explicitando maisnitidamente a rica e complexa diversi-dade de redes urbanas.

Numerosas são, a este respei-to, as contribuições dos geógrafos.Berry e Barnum", por exemplo, assi-nalam o papel das diferentes densida-des demográficas das hinterlândiassobre a estrutura da rede urbana,densidade, tamanho e funções doscentros, enquanto Milton Santos res-salta a natureza dos dois circuitos daeconomia urbana dos países subde-senvolvidos, os circuitos superior einferior, projetando-os sobre a redeurbana ' . Densidade demográfica e

* Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.I Consulte-se, a respeito, W. Christaller, "Central Places in Southern Germany", EnglewoodC!iffs, Prentice-Hall Inc., 1966 (original de 1933 em alemão), A. Lôsch, "The Economics ofLocation", New Haven, Yale University Press, 1952, G.K. Zipf, "Human Behavior and lhePrincipie of Least Effort. An Introduction to Human Ecology", Cambridge, Addison-Wesley,1949 e, mais recentemente, a coletânea organizada por M. Timberlake, "Urbanization in theWorld Economy", London, Academic Press, J985.2 B.J.L. Berry e H.G. Barnum, "Aggregate ReJations and Elemental Cornponents of CentralPlace Systems", Journal of Regional Science 4, 1962.3 Veja-se M. Santos, "O Espaço Dividido - Os Dois Circuitos da Economia Urbana dos PaísesSubdesenvolvidos", Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1979.

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renda são, aparentemente, determina-ções fundamentais, interferindo nas di-versas combinações dos elementosacima indicados. A comparação darede urbana das regiões industriaiseuropéias e norte-americanas comaquela do interior da Guatemala, as-sentada sobre uma economia campo-nesa, e com a do planalto ocidentalpaulista, associada a modernos com-plexos agroindustriais", evidencia di-ferenças que, em realidade, pressu-põem determinações mais profundase complexas que densidadedemográfica e renda. Estas, por maisimportantes que sejam, são expres-sões e condições, é necessárioenfatizar, de estruturas sócio-espaci-ais mais profundas, historicamente pro-duzidas.

A análise das redes urbanasnuma perspectiva diacrônica, envol-vendo particularmente aqueles mo-mentos privilegiados da história quesão os momentos de ruptura social,expressos, entre outros aspectos, pe-las transformações tecnológicas, evi-denciou também o movimento detransformação da rede urbana, que

possibilitou a passagem de um padrãoparticular de combinação de densida-de, tamanho e funções para outropadrão. Neste sentido, a contribuiçãode Allan Pred é notável". O tempo,impregnado de processos, funções eformas, assim como das contradiçõesdelas derivadas, é um determinantefundamental que fixa, ao menos tem-porariamente, os elementos combina-dos da rede urbana. Encarrega-se detransformar esses elementos e suascombinações, ainda que nessa trans-formação a inércia das formas espa-ciais esteja em ação.

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Na inteligibilidade de uma dadarede urbana por meio do desvenda-mento das lógicas que geraram e ar-ticulam seus já mencionados elemen-tos, a estrutura social desempenha umpapel de primeira ordem. Ela nosremete ao conceito de formação es-pacial que Milton Santos desenvol-veu a partir do conceito de formaçãoeconômico-social".

~ Entre outros consulle-se C.A. Smith, "Causes and Consequenees of Central - Place Typesin Western Guatemala", in Regional Studies, part 1, Economic Systems, org. C.A, Smith, NewYork, Academic Press, 1976, D, Elias, "Meio Técnico-Científico-lnforrnaeional e a Urbanizaçãona Região de Ribeirão Preto". Tese de Doutorado, Departamento de Geografia, FFLCH, USP,1996 e R.L. Corrêa, "Repensando a Teoria das Localidades Centrais", in Novos Rumos daGeografia Brasileira, org, M. Santos, São Paulo, HUCITEC, 1982,, Allan R, Pred, "Urban Growth and the Circulation of lnformation: The United StatesSysterns of Cities - 1790-1840", Carnbridge, Harvard University Press, 1973 e, do mesmoautor, "Urban Growth and City Systems in the United States - 1840-1860", Cambridge,Harvard University Press, 1980.~ , M. Santos, "Sociedade e Espaço: A Formação Social corno Teoria e como Método", InEspaço e Sociedade. Petrópolis, Vozes, 1979.

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Rede Urbana e Formação espacial - uma Reflexão Considerando O Brasil 123

o conceito em tela é de crucialimportância para a análise geográfi-ca. Representa um esforço teóricovisando explicitar as especificidadescom que um dado modo de produçãoconcretamente se manifesta. Defini-do por meio de características princi-pais, invariantes, gerais, um dado modode produção concretiza-se em diver-sas formações econômico-sociais, suasvariantes históricas e geográficas ou,como se refere Dhoquois, suas "vari-edades regionais"? . A formação eco-nômico-social é, em realidade, umaparticularidade espaço-temporal noâmbito de um dado modo de produ-ção dominante".

Trata-se de uma estrutura téc-nico-produtiva, social e cultural, naqual o econômico, o político, o sociale o cultural estão imbricados, expres-sando-se em conjunto no espaço e notempo". Milton Santos corretamenteinsiste na necessária dimensão espa-cial da formação econômico-social, ar-gumentando mesmo que se trata de

uma formação espacial. Nela, o es-paço está imanentemente presente,participando como meio, natural ousocialmente produzido, para as ativi-dades do homem, reflexo e condiçãosocial, expressando e afetando a exis-tência e reprodução humana, afetan-do, em realidade, a própria reprodu-ção das diferenças espaciais, qualquerque seja a escala geográfica conside-rada' D. Enfatize-se que referir-se àformação espacial não é abdicar-se doeconômico, do político, do social e docultural, que são facetas de uma mes-ma totalidade que se manifesta de modointegrado no espaço e no tempo.

A importância do conceito emtela reside no fato de ele permitir quese considere processos, funções e for-mas em suas concretizações espaço-temporais diferenciadas mas, ao mes-mo tempo, particularmente sob o capi-talismo, integradas. A globalização, es-tágio mais avançado da espacialidadecapitalista, revela diferenças espaciais,antigas e novas, muito significativas.

7 G. Dhoquois, "La Formación Economico-Social como Combinación de Modos de Produción",in EI Concepto de Formación Econornico-Social, Cuadcrnos de Pasado y Presente, 39, 1973,p. 187.8 Baseio-me em G. Luckacs, "Introdução a uma Estética Marxista - Sobre a Categoria daParticularidade", Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, para referir-me à formação eco-nômico-social como uma particularidade. Ver especialmente o capítulo 3 da obra em pauta.9 Veja-se a questão da unidade do econômico, político, social e cultural, numa perspectivageográfica, em D. Cosgrove, "Em direção a uma Geografia Cultural radical: problemas da teoria",Espaço e Cultura 5, 1998.10 O papel do espaço como condição de reprodução das relações sociais tem suas raízes emHenri Lefébvre, "Espacio y Politica, Barcelona, Peninsula, 1976. Consulte-se, além de MiltonSantos, "Por uma Geografia Nova", São Paulo, HUCITEC, 1978, Augustin Berque com atemática da reprodução social por meio da paisagem, elemento constituinte de uma dadaformação espacial. Veja-se dele, "Paisagem-Marca, Paisagem-Matriz: Elementos da Problemá-tica para uma Geografia Cultural", in Paisagem, tempo e cultura, org. R. L. Corrêa e Z.Rosendahl, Rio de Janeiro, EDUERJ, 1999.

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124 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 8, pp. 121-129, jan.ljun., 2000

A diferenciação de áreas, caraaos geógrafos, principalmente aque-les envolvidos com a perspectivacorológica, constituiu-se, ainda queabordada com um viés idiográfico, noconceito que direcionava a leitura dosresultados, diferenciados em área, daação humana sobre superfície terres-tre. O conceito de formação espacialpermite integrar essa complexa diver-sidade em uma unidade conceitual e,simultaneamente, real. É, portanto, umconceito útil para a geografia regio-nal, liberando-a da abordagem calca-da na unicidade C'uniqueness") dasregiões e lugares 1 I.

III

O conceito de formação espa-cial é úti I também para a geografiasistemática. Assim, conforme pon-dera Milton Santos, a "localizaçãodos homens, das ali vidades e dascoisas no espaço explica-se tanto pelasnecessidades 'externas', aquelas domodo de produção 'puro', quanto pe-las necessidades 'internas' ..."12, di-tadas, em essência, pela formaçãoespacial. Nesse espaço particular asnecessidades externas são interpre-tadas e adaptadas, por um lado, com

base nas possibilidades reais dosagentes sociais locais e regionais e,por outro, com base na organizaçãoespacial prévia, já diferenciada emrelação a outros espaços particula-res. É na formação espacial que seentrecruzam determinações gestadasem di versas escal as, do geral e doparticular, assim como emergem con-tingências.

As transformações por quepassa a organização espacial não sãoiguais, tanto no que se refere à natu-reza, quanto à intensidade, quandose trata das áreas agrícolas e urba-nas. As primeiras, dado, via de re-gra, a menor fixidez das obras dohomem, apresentam-se mais facil-mente submetidas às transforma-ções. Veja-se, a este respeíto, queas transformações ocorridas emmuitas áreas agrícolas brasileirasnos últimos 30 anos foram notáveis:paisagens agrárias foram substituí-das por outras muito diferentes e,muitas vezes, após poucas décadasde existência. As áreas cafeicultorasdo oeste paulista e norte paranaenseque, inclusive esvaziaram-se de ho-mens, são excelentes exemplos, as-sim como as áreas pastorís de campoou cerrado que foram incorporadasao moderno complexo agroindustrial

11 A despeito das potencialidades do conceito de formação espacial, sua adoção pelos geógrafosfoi muitíssimo limitada, como discute Armen Mamigonian, "A Geografia e a Formação Socialcomo Teoria e como Método", in O mundo do cidadão: um cidadão do mundo, org. MariaAdélia A. de Souza, São Paulo, H UCITEC, 1996. Uma possível resposta a essa negligênciaresidiria no fato do conceito em tela ser, em realidade, um enfoque, operacionalizável apenaspor meio de conceitos operativos como paisagem, região, território e lugar.12 M. Santos, op. cit., p. 14.

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Rede Urbana e Formação espacial - uma Reflexão Considerando O Brasil 125

de grãos I 3. O campo se adapta,metamorfoseia-se com relativa facili-dade às demandas da formação es-pacial da qual faz parte. Fala-se em"urbanização do campo" e "industria-lização da agricultura", como expres-sões do papel da cidade, sobretudodas grandes metrópoles, na transfor-mação do campo.

A cidade, e por extensão a redeurbana, por menor que seja, apresen-ta formas dotadas de grande fixideze, por isso mesmo, apresentando umarelativamente grande capacidade derefuncionalização. Por meio desta eda continuidade do processo de cria-ção de novas funções e suas corres-pondentes formas - próprio das for-mações espaciais capitalistas - a ci-dade e a rede urbana reatualizam-se,possibilitando a coexistência de for-mas e funções novas e velhas.

Ressaltemos, agora, um pontofundamental deste ensaio. A cidadee a rede urbana, em razão da fixideze da refuncionalização, tendem aexibir, muito mais que o mundo agrá-rio, padrões de formas que contêm,ao menos parcialmente, fortes ele-mentos gerados na formação espaci-al na qual surgiram. É por isso que asrelações entre rede urbana e forma-ção espacial são muito complexas:

uma rede urbana pode exibir caracte-rísticas associadas aos diversos mo-mentos da formação em que está ins-crita, ou das diversas formações es-paciais a que esteve associada.

Nas sociedades de classes, nasquais o fato urbano emerge, as ca-racterísticas técnicas das atividadesde produção, envolvendo uma neces-sária relação com a natureza, a fina-lidade da produção, os meios de cir-culação, as relações de produção, aestrutura de poder, os valores, cren-ças, mitos e utopias - que aparecemintegradamente, definindo um dadomodo de produção e suas formaçõesespaciais - são determinantes dasdensidades demográficas, da renda esua distribuição, e dos padrões cultu-rais dominantes e subordinados. Es-tas características modelam a densi-dade de centros, o tamanho deles, asfunções urbanas e as relações espa-ciais derivadas.

É lícito supor que não apenasos modos de produção nos quais ourbano emerge, mas as suas diversasformações espaciais apresentem a suatípica rede urbana. Cada sociedadetem a sua própria geografia, que in-clui, na maioria dos casos, a sua redeurbana particular I 4. Fala-se, então, emrede urbana dos tipos solar, dendrítico,

\3 Sobre o oeste paulista, compare-se o clássico de Pierre Monbeig, "Pioneiros e Fazendeirosde São Paulo", São Paulo, HUClTEC-POLIS, 1984 com o trabalho de D. Elias, já mencionado,sobre as transformações na região de Ribeirão Preto, anteriormente analisada por Monbeig. Umexcelente exemplo de estudos sobre as transformações em área de cerrado é o de R. Haesbaert"Des-territorialização e Identidade - A Rede 'Gaúcha' No Nordeste", Niterói, EDUFF, 1997,que aborda as mudanças na geografia do oeste baiano14 A este respeito consulte-se M. Buch Hanson e B. Nielsen, "Marxist Geography and theConcept of Territorial Structure", Antipode, 9(2), 1977.

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christalleriano, axial, circular e demúltiplos circuitos, ainda que estatipologia necessite ser melhor explici-tada' s.

A rede solar, por exemplo, estáassociada às formações vinculadas aomodo de produção asiático, mas tam-bém aos pequenos países de origemcolonial, dotados de uma metrópoleprimaz, como se exemplifica com ocaso do Uruguai' 6. A rede dendrítica,por sua vez, parece estar genetica-mente vinculada a uma formação es-pacial periférica de base colonial,marcada por um específico padrão decirculação. Já as redes de múltiploscircuitos, ao que tudo indica, associ-am-se às formações espaciais dospaíses centrais, refletindo e condicio-nando a complexidade de suas orga-nizações espaciais. A questão dasrelações entre a forma e as funçõesda rede urbana e a natureza da for-mação espacial, da qual aquela é parte,é, em realidade, muito complexa enecessita muitas reflexões e estudosempíricos.

IV

A formação social brasileira,assim identificada numa dada escala,aparece como dotada de grande hete-

rogeneidade interna quando altera-sea escala de análise. A heterogeneida-

. de resulta de uma combinação desi-gual, tanto no espaço como no tempo,de processos naturais e sociais.

Visando contribuir para o deba-te a respeito da complexa espaciali-dade do território brasileiro, apresen-ta-se aqui a tese de que no Brasilcoexistem, na virada dos séculos XXe XXI, mas com gênese muito ante-rior, três formações espaciais distin-tas, mas integradas entre si, constitu-indo, no conjunto uma "diversidade naunidade": uma formação espacialfundada na grande propriedaderural, outra na pequena proprieda-de rural dos imigrantes europeus e,finalmente, uma terceira que é a for-mação espacial da fronteira. Fun-damentais, como são, estruturam ostipos básicos de rede urbana.

Ressaltemos três aspectos. Emprimeiro lugar, uma formação espaci-al não se traduz, necessariamente, emuma região. Em realidade pode-se con-ceber uma mesma formação espacialrecobrindo duas ou mais regiões; oinverso, contudo, não é possível. Aonão se confundir com a região, a for-mação espacial pode caracterizar-sepela descontinuidade espacial: é, deacordo com a literatura geográfica,um tipo espacial.

15 Consulte-se R.L. Corrêa, "Interações Espaciais", in Explorações Geográficas, organizadopor Iná E. Castro et al., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997.16 Consulte-se, respectivamente, Paul Claval, "La Logique des Villes. Essays d'Urbanologie",Paris, Librairie Techniques, 1981 e A.S. Linsky, "Some Generalizations Concerning PrimateCities", Annals of the Association of American Geographers, 55(3), 1965.

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christalleriano, axial, circular e demúltiplos circuitos, ainda que estatipologia necessite ser melhor explici-tada' 5.

A rede solar, por exemplo, estáassociada às formações vinculadas aomodo de produção asiático, mas tam-bém aos pequenos países de origemcolonial, dotados de uma metrópoleprimaz, como se exemplifica com ocaso do Uruguai' 6. A rede dendrítica,por sua vez, parece estar genetica-mente vinculada a uma formação es-pacial periférica de base colonial,marcada por um específico padrão decirculação. Já as redes de múltiploscircuitos, ao que tudo indica, associ-am-se às formações espaciais dospaíses centrais, refletindo e condicio-nando a complexidade de suas orga-nizações espaciais. A questão dasrelações entre a forma e as funçõesda rede urbana e a natureza da for-mação espacial, da qual aquelaé parte,é, em realidade, muito complexa enecessita muitas reflexões e estudosempíricos.

IV

A formação social brasileira,assim identificada numa dada escala,aparece como dotada de grande hete-

rogeneidade interna quando altera-sea escala de análise. A heterogeneida-

. de resulta de uma combinação desi-gual, tanto no espaço como no tempo,de processos naturais e sociais.

Visando contribuir para o deba-te a respeito da complexa espaciali-dade do território brasileiro, apresen-ta-se aqui a tese de que no Brasilcoexistem, na virada dos séculos XXe XXI, mas com gênese muito ante-rior, três formações espaciais distin-tas, mas integradas entre si, constitu-indo, no conjunto uma "diversidade naunidade": uma formação espacialfundada na grande propriedaderural, outra na pequena proprieda-de rural dos imigrantes europeus e,finalmente, uma terceira que é a for-mação espacial da fronteira. Fun-damentais, como são, estruturam ostipos básicos de rede urbana.

Ressaltemos três aspectos. Emprimeiro lugar, uma formação espaci-al não se traduz, necessariamente, emuma região.Em realidadepode-se con-ceber uma mesma formação espacialrecobrindo duas ou mais regiões; oinverso, contudo, não é possível. Aonão se confundir com a região, a for-mação espacial pode caracterizar-sepela descontinuidade espacial: é. deacordo com a literatura geográfica,um tipo espacial.

., Consulte-se R.L. Corrêa, "Interações Espaciais", in Explorações Geográficas, organizadopor Iná E. Castro et al., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997.16 Consulte-se, respectivamente, Paul Claval, "La Logíque des Villes. Essays d'Urbanologie",Paris, Librairie Techniques, 1981 e A.S. Linsky, "Some Generalizations Conceming PrimateCities", Annals 01 the Association oi American Geographers, 55(3), 1965.

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Rede Urbana e Formação espacial - uma Reflexão Considerando O Brasil

Em segundo lugar, a formaçãoespacial da fronteira, como que pordefinição, é marcada nitidamente pelatransitoriedade, isto é, em um deter-minado momento caracteriza umadada porção do espaço e, em outro,posterior, uma outra porção. Este tipode formação tem acompanhado a his-tória espacial brasileira há muito tem-po, sendo, em muitos casos, a matrizna qual, após, instala-se uma ou outradas duas formações espaciais supra-mencionadas. Este tipo, como os de-mais, constitui-se, em realidade, emum amplo campo para investigação.

Em terceiro lugar, estamos pen-sando uma formação espacial a partirda unidade entre produção, circula-ção, consumo, estrutura política, rela-ções sociais e padrões culturais e daprojeção espacial dessa unidade, ain-da que cada um desses elementosgoze de uma relativa autonomia. Nes-ta unidade, contudo, e dado os modoscomo o Brasil foi, e está sendo, ocu-pado, a estrutura fundiária e as rela-ções sociais a ela associada, desem-penham papel crucial na estruturaçãodas possíveis combinações entre pro-dução, circulação, consumo, estruturapolítica, relações sociais e padrõesculturais e suas projeções espaciais,definindo uma particular formaçãoespacial. Parece, então, fundamental,distinguir entre a formação espacial

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associada à grande propriedade rural,herdeira ou não do período colonial, ea formação espacial associada à pe-quena propriedade rural, fruto do pro-cesso de colonização e imigraçãoeuropéia iniciada na primeira metadedo século XIX. A partir da estruturafundiária desenvol vem-se inúmerasdiferenças no que diz respeito ao modode vida e à produção e organizaçãodo espaço, para os quais o espíritoempreendedor e os padrões de con-sumo têm papel fundamental. O es-paço, por intermédio da paisagem eda rede urbana, simultaneamente ex-pressa e condiciona estas duas for-mações espaciais. A este respeito oestudo de Bernardes sobre o RioGrande do Sul é exemplar: sãoexplicitadas características que per-mitem falar em duas formações espa-ciais, uma associando área de mata,pequena propriedade, imigração, agri-cultura, indústria e rede urbana densae outra que associa área de campo,grande propriedade, povoamento luso-brasileiro, pecuária e rede urbana combaixa densidade de centros 17.

v

Considerando as relações entrea rede urbana e as formações espa-ciais brasileiras, apresentaremos alguns

17 Consulte-se Nilo Bernardes, "As Bases Geográficas do Povoamento do Rio Grande do Sul",Boletim Geográfico (IBGE), 171, 1962 e 172, 1962, e reimpresso em 1997 com o mesmo títulopelo Departamento de Ciências Sociais da UNIJUÍ em colaboração com a Associação dosGeógrafos Brasileiros, Seção Porto Alegre.

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pontos que parecem-me clarificados.Insiste-se na complexidade dessas re-lações e na necessidade de um gran-de esforço para se avançar nessadireção. Os pontos são os seguintes:

(a) A rede urbana da formaçãoespacial associada à grande proprie-dade rural caracteriza-se por umamenor densidade de centros quandocomparada à rede urbana da forma-ção espacial calcada na pequena pro-priedade dos imigrantes. Conseqüen-temente, apresenta maior espaçamentoentre os seus centros. Os valoresrelativos às densidades e distâncias,contudo, podem variar quando se tratade áreas pastorís ou de áreas agrícolas:nas primeiras as densidades são aindamenores e as distâncias maiores.

(b) A drenagem da rendafundiária rural pela cidade, a partir doabsenteísmo dos grandes proprietári-os, constitui-se em parte integrante dasrelações espaciais da formação espa-cial calcada na grande propriedade.A modernização da agricultura crioucondições de ratificar ampliadamenteessa característica, graças às transfor-mações técnicas e sociais na agricultu-ra e à melhoria geral da circulação. Re-ferências às capitais regionais comosendo um "fazendão iluminado" ou uma"fazenda asfaltada" são reveladorasdessa concentração de grandes pro-prietários rurais nessas cidades I 8.

O impacto do absenteísmo so-

bre as cidades é enorme: lojas sofis-ticadas, clubes de luxo, restaurantes eserviços de alta qualidade, ao lado debairros suntuosos, centrais everticalizados ou em determinadossetores da periferia urbana e horizon-tais, com mansões e condomínios ex-clusi vos. Mas há uma contrapartida,expressa pelos bairros populares, mui-tas vezes produtos da ação conjunta doEstado, proprietários rurais e imobiliári-as, que produzem amplos e monótonosconjuntos habitacionais constituídos pormilhares de pequenas casinhas. Locali-zam-se em amplos setores da periferiaurbana, ratificando assim, o clássicopadrão centro-periferia das cidades bra-sileiras, herdeiro do passado. Abrigamesses conjuntos os excedentesdemográficos expulsos pela moderni-zação do mundo agrário.

(c) A rede urbana da formaçãoespacial calcada na pequena proprieda-de do imigrante, caracteriza-se por umamais nítida hierarquia de centros. Re-flete uma distribuição mais equitativa dademanda e do consumo, não mais con-centrado nas cidades mais importantes,como ocorre nas áreas de grandes pro-priedades rurais. Nessas, as pequenascidades tendem a perder, por meio dasmigrações de excedentes da moderni-zação, o seu mercado, acabando por setomarem, em muitos casos, centros deconcentração da força de trabalho domundo agrícola. I 9

I~ Consulte-se Lílian Hahn Mariano da Rocha, "O Papel de Santa Maria como Centro deDrenagem da Renda Fundiária. Dissertação de Mestrado em Geografia. UFSC, 1993.I~ Veja-se, sobre o assunto, R.L. Corrêa, "Globalização e Reestruturação da Rede Urbana -Uma Nota sobre as Pequenas Cidades". Território, 6, 1999.