encontro real

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Encontro Real O relógio aponta para a madrugada e dentro da cozinha todos se amontoam; principalmente entre os fogões o agito é incessante. Apesar de chamado de “Chinês” pelos amigos, o garçom que acaba de entrar com um novo pedido é um verdadeiro cidadão do mundo, daqueles que já morou nos cinco continentes. A movimentação no salão costuma ser o oposto da cozinha. Tudo o que se ouve são conversas em baixo tom misturadas com ruídos de talheres e suavizadas pelo fundo de música clássica. Uma agitação na rua chama a atenção dos olhos mais atentos: dois carros mais negros que a própria madrugada estacionam ali na frente, como se não houvesse o aviso de proibido da prefeitura. Desembarcam pessoas tão intimidantes quanto os próprios veículos e seguem para o restaurante. O Chinês, que acaba de voltar para o salão, percebe os murmurinhos como um vírus que rapidamente se espalha, passando a tornar-se uma massa de som, que concorre com a música ambiente, que cessa. Todo o barulho que preenchia o ar foi empurrado pelo silêncio para dentro de cada um dos presentes, em forma de apreensão. A tensão é quebrada pela voz do maître, que – sem conseguir esconder por completo o entusiasmo - informa: -Senhoras e senhores, é com grande orgulho que temos hoje no Empório Ravióli a presença de um rei! Com o oportunismo de quem já viveu as mais diversas situações, Chinês resolveu tirar o máximo dessa história. Motivado pela comoção que tomou conta do pessoal, comentou com outros funcionários do estabelecimento que “pagaria uma pinga pro rei, se fosse verdade”. Mexeu seus pauzinhos para poder atender à mesa. Aproximou-se da mesa e com o inglês que pegou aqui e ali, lançou a pergunta sorrateira. Descobriu que sim, era ele rei africano e, não bastasse, estava acompanhado de seu filho. Eles queriam algo com um toque típico brasileiro, mas com um detalhe: que levasse farinha de trigo. Era uma questão de tradição familiar. O primeiro prato a comer em terras estrangeiras deveria conter esse ingrediente, apreciado pelos seus antepassados, que há mais de 3 mil anos viveram no Egito e migraram mais tarde para a província. Sabia que o chef poderia cuidar disso e foi logo para a

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Um conto culinário

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Page 1: Encontro Real

Encontro RealO relógio aponta para a madrugada e dentro da cozinha todos se amontoam; principalmente entre os fogões o agito é incessante. Apesar de chamado de “Chinês” pelos amigos, o garçom que acaba de entrar com um novo pedido é um verdadeiro cidadão do mundo, daqueles que já morou nos cinco continentes.

A movimentação no salão costuma ser o oposto da cozinha. Tudo o que se ouve são conversas em baixo tom misturadas com ruídos de talheres e suavizadas pelo fundo de música clássica.

Uma agitação na rua chama a atenção dos olhos mais atentos: dois carros mais negros que a própria madrugada estacionam ali na frente, como se não houvesse o aviso de proibido da prefeitura. Desembarcam pessoas tão intimidantes quanto os próprios veículos e seguem para o restaurante.

O Chinês, que acaba de voltar para o salão, percebe os murmurinhos como um vírus que rapidamente se espalha, passando a tornar-se uma massa de som, que concorre com a música ambiente, que cessa.

Todo o barulho que preenchia o ar foi empurrado pelo silêncio para dentro de cada um dos presentes, em forma de apreensão. A tensão é quebrada pela voz do maître, que – sem conseguir esconder por completo o entusiasmo - informa:

-Senhoras e senhores, é com grande orgulho que temos hoje no Empório Ravióli a presença de um rei!

Com o oportunismo de quem já viveu as mais diversas situações, Chinês resolveu tirar o máximo dessa história. Motivado pela comoção que tomou conta do pessoal, comentou com outros funcionários do estabelecimento que “pagaria uma pinga pro rei, se fosse verdade”. Mexeu seus pauzinhos para poder atender à mesa.

Aproximou-se da mesa e com o inglês que pegou aqui e ali, lançou a pergunta sorrateira. Descobriu que sim, era ele rei africano e, não bastasse, estava acompanhado de seu filho.

Eles queriam algo com um toque típico brasileiro, mas com um detalhe: que levasse farinha de trigo. Era uma questão de tradição familiar. O primeiro prato a comer em terras estrangeiras deveria conter esse ingrediente, apreciado pelos seus antepassados, que há mais de 3 mil anos viveram no Egito e migraram mais tarde para a província.

Sabia que o chef poderia cuidar disso e foi logo para a cozinha. O resultado, criado ali na hora, foi um macarrão ao molho de feijão. Enquanto o prato era preparado, providenciou uma dose de pinga para cada: o príncipe bicou a bebida como um pássaro diante de um lago, já o rei virou o copo como um errante quando encontra água.