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Encarceramento Feminino Aluna: Thábata Souto Castanho de Carvalho Orientadora: Marcia Nina Bernardes I Introdução A Constituição Federal, promulgada em 1988, prevê, em seu artigo 5º, inciso I, que homens e mulheres são iguais em direitos e em obrigações. No entanto, na dinâmica de uma sociedade patriarcal fortemente calcada em um padrão masculino dominante, o mero enunciar dessa igualdade não é o suficiente para que ela, de fato, aconteça. O presente trabalho, porém, vai além da mera desigualdade de gênero que ocorre diuturnamente no cotidiano das pessoas, pois tem um enfoque específico, qual seja, o sistema penitenciário e as mulheres encarceradas como seu principal objeto de estudo. É, portanto, um relatório que pretende avaliar a desigualdade e a precariedade do sistema penitenciário em relação às mulheres encarceradas. O enfoque da pesquisa se reveste de relevância peculiar, vez que precisamos entender as desigualdades de gênero existentes nos institutos penais e de execução penal para, só então, podermos dar efetividade aos princípios mais basilares da Constituição Federal, como o princípio da igualdade material e o princípio da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, pretende-se, em um primeiro momento, analisar a Lei de Execuções Penais e as alterações pertinentes no que diz respeito ao encarceramento feminino e suas peculiaridades. Assim, nesse primeiro momento da pesquisa, pretendemos demonstrar as legislações e os disposições normativas relevantes no que tange à mulher no sistema prisional nacional. Ainda assim, é certo que a mera modificação legislativa não é capaz de, por si só, permitir que haja a igualdade material essencial para alcançarmos a real igualdade de gênero. Exatamente por isso é que, em um segundo momento, pontuaremos as problematizações referentes ao encarceramento da “mãe/mulher”. Importante consignar, desde já, que este trabalho não se propõe a exaurir a problemática trazida, eis que há diversas questões que precisam ser levantadas. Assim, o objetivo central da pesquisa relatada é pontuar as questões tidas como as mais importantes e que denotam uma grave valoração de gênero quando da criação e implementação dos institutos penais e de execução penal. II Objetivo Tem-se como objetivo analisar as condições e as problemáticas acerca do encarceramento feminino, contrastando as previsões legislativas, com as disparidades e os papéis de gênero existentes na sociedade atual.

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Encarceramento Feminino

Aluna: Thábata Souto Castanho de Carvalho

Orientadora: Marcia Nina Bernardes

I – Introdução

A Constituição Federal, promulgada em 1988, prevê, em seu artigo 5º, inciso

I, que homens e mulheres são iguais em direitos e em obrigações. No entanto, na

dinâmica de uma sociedade patriarcal fortemente calcada em um padrão masculino

dominante, o mero enunciar dessa igualdade não é o suficiente para que ela, de

fato, aconteça.

O presente trabalho, porém, vai além da mera desigualdade de gênero que

ocorre diuturnamente no cotidiano das pessoas, pois tem um enfoque específico,

qual seja, o sistema penitenciário e as mulheres encarceradas como seu principal

objeto de estudo. É, portanto, um relatório que pretende avaliar a desigualdade e a

precariedade do sistema penitenciário em relação às mulheres encarceradas. O

enfoque da pesquisa se reveste de relevância peculiar, vez que precisamos entender

as desigualdades de gênero existentes nos institutos penais e de execução penal

para, só então, podermos dar efetividade aos princípios mais basilares da

Constituição Federal, como o princípio da igualdade material e o princípio da

dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, pretende-se, em um primeiro momento, analisar a Lei de

Execuções Penais e as alterações pertinentes no que diz respeito ao

encarceramento feminino e suas peculiaridades. Assim, nesse primeiro momento

da pesquisa, pretendemos demonstrar as legislações e os disposições normativas

relevantes no que tange à mulher no sistema prisional nacional.

Ainda assim, é certo que a mera modificação legislativa não é capaz de, por si

só, permitir que haja a igualdade material essencial para alcançarmos a real

igualdade de gênero. Exatamente por isso é que, em um segundo momento,

pontuaremos as problematizações referentes ao encarceramento da “mãe/mulher”.

Importante consignar, desde já, que este trabalho não se propõe a exaurir a

problemática trazida, eis que há diversas questões que precisam ser levantadas.

Assim, o objetivo central da pesquisa relatada é pontuar as questões tidas como as

mais importantes e que denotam uma grave valoração de gênero quando da criação

e implementação dos institutos penais e de execução penal.

II – Objetivo

Tem-se como objetivo analisar as condições e as problemáticas acerca do

encarceramento feminino, contrastando as previsões legislativas, com as

disparidades e os papéis de gênero existentes na sociedade atual.

Dessa forma, pretendemos demonstrar como os papéis de gênero ainda

permeiam a estrutura penal e penitenciária existente no Brasil e como tais papéis

são exercidos dentro da realidade de privação de liberdade.

Pretende-se, portanto, fazer um breve estudo acerca das condições de

encarceramento e o reforço dos papéis de gênero à luz do princípio da igualdade

de gênero consagrado na Constituição Federal.

III – Metodologia

O trabalho foi desenvolvido em conjunto com o Grupo Gênero, Democracia

e Direito. Para alcançar o objetivo já exposto, realizou-se amplo levantamento

bibliográfico concernente à temática proposta. Assim, a questão foi tratada de

forma crítica sob o crivo da teoria feminista, a qual foi discutida e cotejada

conjuntamente do supramencionado grupo, a fim de viabilizar a aferição dos

papéis de gênero que são reforçados dentro da seara penitenciária.

III - Privação de Liberdade:

a) A Lei de Execução Penal

A principal legislação pertinente ao cumprimento de pena em privação de

liberdade é a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) e, exatamente por isso,

começamos o estudo analisando os dispositivos legais pertinentes à mulher

encarcerada.

A supramencionada legislação foi promulgada sem considerar a figura da

mulher enquanto sujeito de direito. Esse fato decorre, especialmente, em razão da

criminalidade feminina ser considerada como algo extremamente inferior,

havendo índices bastante reduzidos. Em que pese isso, ao analisarmos o texto

original da lei, podemos perceber que há dispositivos que tratam especificamente

da mulher enquanto mãe1 ou da mulher devendo ser tratada de acordo com “sua

condição”2 – sem especificar, contudo, qual seria esta suposta condição.

No que diz respeito à condição da mulher suscitada pela Lei de Execução Penal,

o professor Mirabete, ao analisar o referido dispositivo, interpreta a supracitada

expressão como “o sexo, as condições fisiológicas e psicológicas da mulher”3.

Essas diferenças demonstram de forma clara e inequívoca a existência de uma

discriminação e de um preconceito de gênero, na medida em que deixam claro que

1 Art. 117. Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular

quando se tratar de:

[...]

III - condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental;

IV - condenada gestante. (grifo nosso) 2 Art. 19. O ensino profissional será ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico.

Parágrafo único. A mulher condenada terá ensino profissional adequado à sua condição (grifo nosso) 3 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: Comentários à Lei nº 7.210/84. 9º Edição. São Paulo:

Atlas, 2000.

sua condição de mulher é peculiar, conquanto a do homem é tida como normal –

ou seja, o padrão é patriarcal, pois leva a mulher como o ser anormal, “o outro”4 .

Além das disposições acima, precisamos analisar o artigo 37 do Código Penal

que preceitua, in verbis:

“Regime especial

Art. 37 - As mulheres cumprem pena em estabelecimento próprio,

observando-se os deveres e direitos inerentes à sua condição

pessoal, bem como, no que couber, o disposto neste

Capítulo. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”

Conforme se depreende do artigo supra colacionado, há a menção ao que seria

a “condição pessoal” da presidiária. A expressão “condição pessoal”, portanto,

denotaria a mesma discriminação de gênero que se encontra lastreada no artigo 19

da Lei de Execução Penal. O artigo 19 assevera que a mulher condenada terá

ensino profissional adequado à sua condição. Retomamos, portanto, o termo

“condição” quando nos referimos ao corpo feminino.

As referidas normas pressupõem que algumas profissões não seriam para as

mulheres, enquanto a primeira caracteriza a mulher como uma condição a ser

tratada em específico – como se, o fato de ser mulher, implicasse alguma condição

médica, alguma abnormalidade.

O artigo 82, § 1º da Lei de Execução Penal, por sua vez, assevera que as

mulheres deverão ser recolhidas a estabelecimento prisional próprio, adequado à

sua condição pessoal. Novamente, estamos retornando à expressão “condição

pessoal”, como se a mulher fosse aberração, como se o sistema penitenciário não

fosse criado pensando nela.

Apesar das várias menções acerca do estabelecimento prisional destinado às

mulheres necessitar de diferenciações em contrapartida ao dos homens, verifica-se

que não há qualquer norma infraconstitucional que estabeleça as adequações

necessárias aos estabelecimentos para atender às “condições pessoais” da mulher

privada de liberdade.

O artigo 117, inciso III e V da Lei de Execuções Penais estabelece, ainda, que

a progressão para o regime aberto, na modalidade de prisão de albergue domiciliar,

somente poderá ser concedida a beneficiária condenada com filho menor ou

deficiente físico ou mental, assim como a condenada gestante. Esse artigo

consagra, de forma bem clara e definitiva, que o papel da mulher é ser mãe. A

sexualidade da mulher, portanto, é reforçada quando identificada ao papel

materno5.

4 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos 5 ESPINOZA, Olga. A mulher encarcerada em face do poder punitivo. São Paulo. IBCCRIM, 2004.

Nesse contexto, frisa-se que estamos cientes e consideramos a importância de

haver normas regulamentando a questão da mulher encarcerada enquanto mãe,

porém entendemos que as mulheres não podem ser tratadas apenas com o enfoque

à questão da maternidade, sob pena de obrigar à mulher o único e exclusivo papel

de ser mãe.

Entendemos que, em que pese o fato de que uma das maiores especificidades

do sexo feminino é a possibilidade de engravidar e, portanto, essencial que a

legislação em comento abarque essa questão, a legislação deveria considerar a

mulher para além da gravidez e da maternidade. Explica-se: há outras questões

essenciais a serem analisadas no que diz respeito à mulher. A questão dos

requisitos essenciais para o presídio feminino, por exemplo, deveria ter sido

trabalhada no plano da norma infraconstitucional, com o intuito de possibilitar o

maior conforto possível às presas e as suas especificidades biológicas.

Diante do acima exposto, importante concluir que se a LEP discrimina a mulher

pelo que diz, também discrimina a interna por aquilo que deixa de dizer6. A

discriminação que se encontra amplamente descrita na lei pode ser afastada

utilizando-se do princípio da igualdade7. Contudo, a discriminação por omissão é

mais difícil de ser superada, posto que dificulta o devido exercício dos direitos das

presas. Como exemplo da desigualdade por omissão, devemos citar o caso da visita

íntima: é que não havendo expressa menção ao direito da visita íntima, não há

qualquer norma infraconstitucional que assegure à mulher a obter o benefício.

Dessa forma, enquanto no Estado do Rio de Janeiro, as mulheres obtiveram o

direito a visita íntima nos anos 70, o Estado de São Paulo, por sua vez, só permitiu

a visita íntima às mulheres em privação de liberdade em 2001.

Conclui-se, portanto, que a Lei de Execuções Penais, para melhor incluir e

tutelar a mulher encarcerada, necessita de amplas revisões, não só para afastar as

terminologias eivadas de preconceito, como também para esclarecer as situações

específicas relativas à mulher, visando resguardar de forma efetiva e incisiva seus

direitos essenciais e não apenas àqueles concernentes ao exercício da maternidade.

b) A Maternidade Enclausurada

Em que pese considerarmos que a maternidade não é a única questão essencial

ao analisamos a problemática das mulheres encarceradas, para a elaboração do

presente trabalho foi necessário delimitarmos quais, especificamente, seriam os

problemas levantados e analisados. Assim, considerando o viés extremamente

maternal da presa consagrada na Lei de Execução Penal, consideramos que essa

questão necessitaria de avaliação mais cuidadosa e pormenorizada. Dessa forma,

6 CASTILHO, E. W. V. Execução da Pena Privativa de Liberdade para Mulher: A urgência de Regime

Especial. In Justitia. São Paulo, 64 (197), julho/dezembro 2007. Disponível em

<http://revistajustitia.com.br/revistas/w3137c.pdf> - Acessado por último em 28 de julho de 2016, às 4:40 7 Ibidem.

ainda que entendamos que há diversas questões em voga, o objeto da presente

pesquisa delimita-se à maternidade no cárcere.

Feita essa breve consideração, conforme asseveramos no início da abordagem,

é certo que a letra fria da lei é incapaz de demonstrar a vivência das mulheres

encarceradas. Assim sendo, além de analisarmos a mera legislação em vigor, a

presente pesquisa necessitou avaliar quais eram as condições de encarceramento

feminino na prática das penitenciárias brasileiras.

Nesse diapasão, importante salientarmos que as experiências que serão

relatadas a seguir, e que são utilizadas para melhor ilustrarmos a questão da

maternidade das internas, não são oriundas desta pesquisa. Os casos relatados são

oriundos de extensa pesquisa realizada pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania

(ITTC) e do Projeto Pensando o Direito, do Ministério da Justiça e que foi utilizada

na presente pesquisa para ilustrar as problemáticas relacionadas à maternidade8.

Feita essa breve introdução, utilizaremos os relatos levantadas pelas

pesquisas acima citadas para apresentar algumas questões relevantes acerca da

maternidade no cárcere, sob o crivo da teoria feminista crítica, conforme

analisaremos a seguir.

A Menina que não conhecia as estrelas9:

A institucionalização da infância

No que diz respeito ao texto frio da Lei de Execução Penal, é garantido à mulher

mãe o direito de amamentar seu filho até, no mínimo, seis meses de idade,

conforme preconizado em seu artigo 83, § 2º. Dessa forma, ainda que a mulher se

encontre acautelada, ela tem o direito de manter a criança pelo período mínimo de

seis meses, para que possa realizar o aleitamento.

O artigo 89 do mesmo diploma legal, determina:

Art. 89. Além dos requisitos referidos no art. 88, a penitenciária de

mulheres será dotada de seção para gestante e parturiente e de creche

para abrigar crianças maiores de 6 (seis) meses e menores de 7

(sete) anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja

responsável estiver presa. (Redação dada pela Lei nº 11.942, de

2009) (grifo nosso)

Nesse quesito, importante salientarmos que a Lei de Execução Penal prevê que

o tempo máximo para a permanência das crianças dentro do estabelecimento

prisional é até os 7 anos incompletos. Assim, o projeto Pensando o Direito, do 8 A citada pesquisa encontra-se disponível em <http://www.justica.gov.br/noticias/201clugar-de-crianca-

nao-e-na-prisao-nem-longe-de-sua-mae201d-diz-pesquisa/pesquisa-dar-a-luz-na-sombra-1.pdf>.

Acessada em 26 de julho de 2016, às 14:50 9 “A criança que não conhecia as estrelas” é o relato de um dos muitos casos levantados pela pesquisa

“Dar à luz na sombra”, que se encontra disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=5zocq4vU77Y&index=2&list=PLiwFot-6o3W_W1dIA4-

wyjoC5Jls_UG2Z>. Acessado em 26 de julho de 2016, às 13:50.

Ministério da Justiça, relatou um curioso caso que demonstra uma das

consequências do encarceramento de mãe e de sua filha.

Ao visitarem a Penitenciária de Salvador, as pesquisadoras do projeto

encontraram crianças de quatro a cinco anos de idade que permaneciam junto com

suas mães. Na dinâmica de um sistema penitenciário, existe o momento em que as

internas são colocadas novamente nas celas, o que geralmente ocorre por volta de

17 horas, conforme relatado pelas pesquisadoras.

A criança que não conhecia as estrelas refere-se à uma menina de quatro

anos que nunca havia saído da penitenciária e que, na primeira vez que viu o céu

noturno, alarmou-se, começando a gritar e ter uma relação de estranhamento. Ela

nunca havia visto o céu noturno, posto que era colocada de volta à cela às 17 horas,

não chegando, jamais, a ver a noite.

A problemática aqui apresentada é bem complexa: por um lado, devemos

garantir às crianças o convívio familiar e comunitário; por outro, devemos garantir

que essa criança tenha direito à liberdade, eis que não cometeu nenhum crime para

se ver privada do direito mais básico – o de existir além grades.

Dessa forma, vemos que o sistema penitenciário não foi capaz, nesse caso

concreto, de garantir o real direito das mulheres/mães encarceradas: de

acompanhar o desenvolvimento da criança, sem que o infante esteja sujeito à

sensação de privação de liberdade. Não houve, de fato, a criação de

estabelecimento prisional compatível com as necessidades da criança que, para

permanecer com o ente materno, é obrigada a sujeitar-se à privação de liberdade

tal qual a de alguém condenado por ato ilícito.

Importante consignar que a presente problemática está relacionada à

maternidade no cárcere e à uma discriminação de gênero. Explica-se: em que pese

a lei exigir que os estabelecimentos prisionais femininos sejam adequados à

condição da mulher, a administração penitenciária brasileira não propicia espaços

apropriados à sua condição biogenética, tal qual os cuidados específicos do pré-

natal durante a gestação, período do aleitamento materno10 ou até mesmo com os

verdadeiros cuidados de exercer a maternidade em seu grau mais pleno – permitir

o desenvolvimento sadio dos filhos da mulher encarcerada.

10 CHESKYS, Débora. Mulheres Invisíveis: uma análise da influência dos estereótipos de gênero na vida

das mulheres encarceradas. 2014. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em <http://www.patriciamagno.com.br/wp-

content/uploads/2015/08/PM_Mulheres-Encarceradas-Debora-Cheskys.pdf?f00170>. Acessado em 28 de

julho de 216, às 14:55.

Hiper e Hipomaternidade11:

O (não) exercício autoritário da maternidade

“Ela está na cadeia. Tudo que ela estava

fazendo, escola, trabalho, para e ela passa a

cuidar 24 horas por dia do filho”12

As pesquisadoras do Pensando o Direito, relatam que, a partir do momento

em que a interna dá à luz ao bebê, as suas atividades habituais são cortadas, sendo

de sua responsabilidade, então, cuidar do neném durante 24 horas por dia, todos os

dias. Essa realidade, conforme relatado pela pesquisa, demonstra que, a mulher, ao

ser efetivamente mãe, ou seja, ao parir a criança, deixa de exercer as suas funções

habituais, e é forçada a exercer a maternidade.

Neste ponto, importante esclarecermos que, quando a/o presa/o se encontra

custodiado, ainda que esteja em regime fechado, é possível exercer atividades

laborais ou intelectuais dentro do presídio. Dessa forma, dentro do estabelecimento

prisional, há trabalhos e cursos/aulas a serem exercidos ou frequentados pelas/os

detentos.

Salienta-se, por oportuno, que o trabalho exercido ou os cursos frequentados

não só possuem o condão de permitir a ressocialização da/o interna/o, como são

capazes de permitir a remição da pena privativa de liberdade. Quando a presa está

exercendo alguma função dentro do presídio, seja estudando ou trabalhando, ela

tem o direito à remição – instituto previsto na Lei de Execução Penal que

possibilita a redução da pena de acordo com os dias trabalhados ou com as horas

estudadas.

Assim, ainda que o bebê necessite ser amamentado e ter os devidos

cuidados providos pelo ente materno, consideramos que privar a mulher de todas

as outras responsabilidades não está realmente condizente com as necessidades do

bebê. Isso porque, se, por um lado, estamos beneficiando àquela mulher para que

ela possa exercer o papel de mãe, também estamos prejudicando o cumprimento

de sua pena privativa de liberdade. Quando a mulher é impedida de exercer as

atividades disponíveis dentro do presídio, ela também é impedida de remir a sua

pena e, portanto, resta impossibilitada de diminuir o seu tempo de permanência

dentro do sistema prisional.

11 Tais conceitos foram cunhados pela pesquisa elaborada pelo grupo Pensando o Direito, disponível em

<https://www.youtube.com/watch?v=4cNRK4bh-nc&index=3&list=PLiwFot-6o3W_W1dIA4-

wyjoC5Jls_UG2Z>. Acessado em 28 de julho de 206, às 14:40. 12 A pesquisadora Bruna Angotti, do Projeto Pensando o Direito, ao atuar na pesquisa “Dar à Luz na

Sombra”, utiliza essa frase para explicar o fenômeno da hipermaternidade.

Da mesma forma, quando a interna/mãe é impedida de estudar ou trabalhar,

estamos prejudicando a sua reinserção no mercado de trabalho e,

consequentemente, prejudicando a sua ressocialização. Ao impedirmos que a

mulher estude ou trabalhe, estamos proibindo que esteja criando o seu futuro além

dos muros do sistema penitenciário.

Ademais, a presente questão perpassa a mera remição, posto que também

se encontra relacionada com o fato da mulher ser obrigada a ser mãe 24 horas por

dia. Imaginemos um mundo em que as mulheres são obrigadas a serem mães

durante todas as horas do dia. Não há qualquer hora para o lazer. Não há qualquer

tempo para que aquela mulher deixe de ser mãe. A sua única função na vida, o seu

único objetivo, é existir para aquele infante. É esse o fenômeno relatado pelas

pesquisadoras do Pensando o Direito, como a hipermaternidade.

Por outro lado, a hipomaternidade é justamente quando, sem qualquer aviso

ou adaptação, a criança é retirada do convívio com a mãe, para ser encaminhada à

um abrigo ou para a família extensa. A faceta danosa de tal fenômeno sequer

necessita de esclarecimento: é danosa tanto à criança, que perde totalmente o

contato com a mãe, quanto à mãe, que é impossibilitada de ver o seu filho crescer

de forma saudável.

Os dois fenômenos demonstrados acima ilustram o fato do sistema

penitenciário não permitir o exercício autônomo da maternidade. Ora a

maternidade é imposta como forma de vida, ao passo em que a mulher fica

impedida de ter contato com outras atividades alheias ao fato de ser mãe, ora a

maternidade é imposta como sua força nula, na ausência de ser mãe.

Entendemos, portanto, que parte da ideologia de gênero existente na Lei de

Execução e na execução penitenciária, é a questão da maternidade não poder ser

exercida de forma autônoma pelas mulheres. Isso porque embora, historicamente,

caiba à mulher o papel de mãe e cuidadora dos filhos, a partir do momento em que

comete um crime, passa a ser vista, de forma automática, como péssima mãe, ou

como alguém que não merece ter ou criar seus filhos13.

Dessa forma, compreendemos que, quando a mulher se encontra

encarcerada, há uma tentativa de impor aqueles mesmos limites à mulher: ela deve

retornar à maternidade e aos serviços usuais (costura, limpeza – os trabalhos tidos

como domésticos).

Para justificar e exemplificar o que expomos acima, consideramos essencial

trazermos ao presente trabalho um breve histórico do encarceramento feminino.

As primeiras penitenciárias femininas foram administradas por ordens religiosas

13 Julita Lemgruber afirma, no livro “O Cemitério dos Vivos – análise sociológica de uma prisão de

mulheres”, que uma vez tendo passado pela prisão, a mulher será julgada como uma irresponsável que não

se preocupou com seus filhos. Relata, a seguir, a fala de um membro da administração de um presídio no

Rio de Janeiro: “mulher pra mim que delinquisse pela segunda vez, eu mandava esterilizar, não devia ter

direito a ser mãe, porque não teria as mínimas condições de educar uma criança”.

em diversos países, dentre eles o Brasil. As autoras Soares e Ilgenfritz apontam

que o primeiro estabelecimento penitenciário destinado às mulheres foi

administrado pelas Irmãs do Bom Pastor14. O regulamento da prisão formulado e

aplicado pelas religiosas, conhecido como Guia das Internas, apontava que só

havia dois caminhos para a salvação eram o retorno ao convívio social e da família

e o abraço à vida religiosa, no caso das solteiras, idosas ou sem vocação para a

vida religiosa.15 Importante esclarecer que ambos os caminhos implicavam que as

mulheres se dedicassem às tarefas domésticas de bordado, costura, cuidado da casa

e dos filhos.

Em que pese o fato da administração penitenciária feminina não estar mais

a cargo das ordens religiosas, tal fato ocorreu somente em meados do século XX

e, portanto, ainda podemos perceber – conforme demonstramos no presente

trabalho – que ainda há um sistema de controle, que visa determinar quais seriam

os papéis aceitáveis da mulher encarcerada.

As mulheres que cometeram crimes romperam com o normativo de gênero

atribuído à sua identidade enquanto mulheres e, exatamente por isso, é que o

sistema penitenciário, para elas, deve ser retratado como um local em que elas

serão, obrigatoriamente, devolvidas ao espaço privado e ao seu “papel como

mulher”, eis que:

“[...] cometer crimes, ser violenta, infringir a lei e as

normas sociais não parecem ser papéis compatíveis ao

gênero feminino, pois a cristalização de discursos e

representações acerca da passividade, delicadeza,

modelos de virtude e dos bons costumes, foram muito

recorrentes ao longo da história, no que tange à

identidade atribuída às mulheres.”16

Dessa forma, encerramos o presente tópico ressaltando que a mulher

encarcerada, em razão de ter rompido com a normativa de gênero, sofre com

intensa privação de autonomia. Tal privação afeta, inclusive, a forma com que ela

exerce (ou não) a maternidade. Concluímos então, que os fenômenos da hiper e

hipomaternidade são meras expressões de um sistema penitenciário que não

permite a autonomia da maternidade, de tal sorte que o próprio exercício da

maternidade se torna uma forma de controle penitenciário.

14 SOARES, Bárbara. ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras: vida e violência atrás das grades. Rio de Janeiro:

Garamond, 2002. 15 LIMA, Elça Mendonça. Origens da prisão feminina no Rio de Janeiro. P. 79-89 16 PRIORI, Cláudia. A Construção Social da identidade de gênero e as mulheres na prisão”

Reforço de Papel de Gênero:

O aborto paterno

Outra questão relevante, sob à ótica da maternidade, é observarmos a total

ausência de referências legislativas no que concerne à paternidade. É certo que a

Lei de Execução Penal não demonstrou qualquer preocupação em determinar que

os estabelecimentos prisionais masculinos possuam local próprio para bebês ou

crianças que sejam filhas/os dos internos do sexo masculino.

É certo que a mulher tem a possibilidade de amamentar e que o preso do

sexo masculino jamais poderia usurpar para si tal função. Contudo, após a fase de

aleitamento, resta evidente que a criança deveria ter o mesmo direito de

permanecer com o pai que se encontra privado de sua liberdade. Da mesma forma

como existem mães que estão presas, a lei vigente deveria enxergar a possibilidade

de pais estarem em privação de liberdade e necessitarem do convívio com a(o)

filha(o).

O cerne da questão é que a Lei de Execução Penal, ao omitir-se acerca da

obrigatoriedade de creches e locais propícios para infantes no âmbito da

penitenciária masculina, reforça um papel de gênero. Reforça, de forma clara e

inequívoca, que compete à mulher exercer à maternidade e que eventuais proles

são de responsabilidade somente da mulher.

Nesse sentido, importante esclarecermos:

“Não há qualquer outra menção sobre creches,

filhos ou crianças na lei, como se os homens

presos não tivessem filhos, não devessem

conviver com eles ou não pudessem ser eles os

principais responsáveis na criação das crianças.

É uma clara reafirmação de um estereótipo que

dá à mãe o papel principal na tarefa de educar os

filhos.17”

17 CHESKYS, Débora. Mulheres Invisíveis: uma análise da influência dos estereótipos de gênero na vida

das mulheres encarceradas. 2014. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em <http://www.patriciamagno.com.br/wp-

content/uploads/2015/08/PM_Mulheres-Encarceradas-Debora-Cheskys.pdf?f00170>. Acessado em 28 de

julho de 216, às 14:55.

Dessa forma, em que pese a Constituição Federal brasileira consagrar que

homens e mulheres são iguais em direitos obrigações, a Lei de Execução Penal, ao

revés do princípio constitucional da igualdade, oferece ao preso homem tratamento

deveras diferente daquele oferecido à presa mulher. Entendemos que tal

tratamento, conforme já analisamos acima, decorre da legislação em comento

ainda estar eivada de estereótipos de gênero.

Ademais, concluímos que a ausência de menções à paternidade, reforça a

ideia da maternidade forçada. A Lei, ao omitir-se em relação à paternidade,

reforça, por sua omissão, a importância da maternidade.

A omissão apontada acima revela de forma clara a dicotomia no que tange

ao âmbito público e ao âmbito privado da pena privativa de liberdade. Enquanto a

privação de liberdade da mulher possui valores fortes no que diz respeito à

maternidade, eis que há dispositivos específicos que versem sobre berçários,

creches e direito de conviver com as crianças, ao homem preso é negada a

importância de conviver com seus filhos e educa-los, posto que esse não seria o

papel do homem.

Por fim, compreendemos que, ao tratar da maternidade, a lei de execução

penal demonstra uma punição no âmbito privado: a maternidade imposta à mulher

condenada, a partir do momento em que ela pare o filho dentro do sistema

prisional. Por outro lado, a LEP não tem qualquer dispositivo que verse acerca do

papel paternal do homem privado de sua liberdade, eis que tal matéria não

competiria ao Estado.

Assim, em que pese o presente trabalho pautar-se na análise das questões

relativas à maternidade da mulher encarcerada, concluímos que a total ausência de

paternidade enclausurada tem reflexos de gênero e, portanto, mereciam o destaque

aqui lhes oferecido.

IV – Conclusão

A legislação penal, historicamente, proporcionou o fenômeno da

invisibilidade da mulher criminosa, e que, por seu turno, permitiu que resquícios

dessa invisibilidade ainda permeassem o cotidiano da mulher infratora nos dias

atuais. Conforme analisamos neste trabalho, a estrutura penitenciária, criada

quando do estabelecimento da Lei de Execução Penal, em 1984, foi pensada para

a promoção da Justiça e do aprisionamento masculino. E, a despeito das tentativas

legislativas, as modificações que incluíram maior especificidade à figura feminina,

se tornaram, na verdade, modificações com viés de gênero.

Assim, em um primeiro momento, o trabalho tratou, tão somente, da análise

dos dispositivos legais que mencionavam à figura feminina. Nessa parte do

trabalho, concluímos que a figura da mulher era tratada como a outra, em

contraposição à figura do homem. Dessa forma, a LEP, anteriormente, destinava-

se ao preso do sexo masculino, sendo posteriormente modificada para abarcar o

sexo feminino.

Observamos, contudo, que mesmo nos dispositivos em que havia uma clara

enunciação à mulher, tais disposições referiam-se à mulher relacionando-a com

“sua condição pessoal” ou quando havia questões relativas à maternidade ou à

crianças e bebês.

Em um segundo momento, visamos delimitar e enunciar algumas das

problemáticas havidas no que diz respeito ao fenômeno da maternidade. Nesse

caso, separamos a presente questão em três partes diferentes: a primeira, na

institucionalização da infância; a segunda, na hipomaternidade e na

hipermaternidade; e, por fim, na ausência da paternidade.

Nas duas primeiras partes, relacionamos os dispositivos da Lei de Execução

Penal com a pesquisa realizada pelo grupo Pensando o Direito, coordenado pelo

Ministério da Justiça. Fizemos, assim, uma análise sobre os fenômenos relatados

pelo referido grupo, com o que acreditamos ser viés de gênero tanto na Lei de

Execução Penal quanto na administração penitenciária como um todo.

Na terceira parte, quando versamos sobre a ausência da paternidade, não

tivemos a oportunidade de buscar qualquer caso concreto, eis que, conforme o

próprio nome enuncia: não há paternidade exercida dentro do sistema

penitenciário.

Feita essa breve retrospectiva acerca do trabalho realizado, concluímos que

a Lei de Execução Penal e, por consequência, a execução penal – a administração

penitenciária – reflete discriminações de gênero, na medida em que determina o

exercício da maternidade para a mulher, enquanto omite-se em relação ao exercício

da paternidade. Tais formulações estão fortemente calcadas nos papéis de gênero

que estão presentes nas sociedades patriarcais: compete à mulher o papel do ser

maternal, de cuidar dos filhos e gerir a casa – a mulher deve permanecer no âmbito

privado das relações pessoais. Por outro lado, ao homem não há qualquer

imposição acerca da paternidade – justamente porque, ao homem, não deve ser

relegado o papel de cuidar da prole, eis que o ser homem deve permanecer no

âmbito público das relações.

Concluímos que os direitos das mulheres em situação de privação de

liberdade ainda permanecem constantemente sendo desrespeitados, eis que suas

condições específicas não têm recebido o devido amparo quando privadas de

liberdade. Isso porque, na verdade, não há qualquer menção da LEP às suas

verdadeiras especificidades, mas tão somente à sua maternidade.

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