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Encarceramento Feminino
Aluna: Thábata Souto Castanho de Carvalho
Orientadora: Marcia Nina Bernardes
I – Introdução
A Constituição Federal, promulgada em 1988, prevê, em seu artigo 5º, inciso
I, que homens e mulheres são iguais em direitos e em obrigações. No entanto, na
dinâmica de uma sociedade patriarcal fortemente calcada em um padrão masculino
dominante, o mero enunciar dessa igualdade não é o suficiente para que ela, de
fato, aconteça.
O presente trabalho, porém, vai além da mera desigualdade de gênero que
ocorre diuturnamente no cotidiano das pessoas, pois tem um enfoque específico,
qual seja, o sistema penitenciário e as mulheres encarceradas como seu principal
objeto de estudo. É, portanto, um relatório que pretende avaliar a desigualdade e a
precariedade do sistema penitenciário em relação às mulheres encarceradas. O
enfoque da pesquisa se reveste de relevância peculiar, vez que precisamos entender
as desigualdades de gênero existentes nos institutos penais e de execução penal
para, só então, podermos dar efetividade aos princípios mais basilares da
Constituição Federal, como o princípio da igualdade material e o princípio da
dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, pretende-se, em um primeiro momento, analisar a Lei de
Execuções Penais e as alterações pertinentes no que diz respeito ao
encarceramento feminino e suas peculiaridades. Assim, nesse primeiro momento
da pesquisa, pretendemos demonstrar as legislações e os disposições normativas
relevantes no que tange à mulher no sistema prisional nacional.
Ainda assim, é certo que a mera modificação legislativa não é capaz de, por si
só, permitir que haja a igualdade material essencial para alcançarmos a real
igualdade de gênero. Exatamente por isso é que, em um segundo momento,
pontuaremos as problematizações referentes ao encarceramento da “mãe/mulher”.
Importante consignar, desde já, que este trabalho não se propõe a exaurir a
problemática trazida, eis que há diversas questões que precisam ser levantadas.
Assim, o objetivo central da pesquisa relatada é pontuar as questões tidas como as
mais importantes e que denotam uma grave valoração de gênero quando da criação
e implementação dos institutos penais e de execução penal.
II – Objetivo
Tem-se como objetivo analisar as condições e as problemáticas acerca do
encarceramento feminino, contrastando as previsões legislativas, com as
disparidades e os papéis de gênero existentes na sociedade atual.
Dessa forma, pretendemos demonstrar como os papéis de gênero ainda
permeiam a estrutura penal e penitenciária existente no Brasil e como tais papéis
são exercidos dentro da realidade de privação de liberdade.
Pretende-se, portanto, fazer um breve estudo acerca das condições de
encarceramento e o reforço dos papéis de gênero à luz do princípio da igualdade
de gênero consagrado na Constituição Federal.
III – Metodologia
O trabalho foi desenvolvido em conjunto com o Grupo Gênero, Democracia
e Direito. Para alcançar o objetivo já exposto, realizou-se amplo levantamento
bibliográfico concernente à temática proposta. Assim, a questão foi tratada de
forma crítica sob o crivo da teoria feminista, a qual foi discutida e cotejada
conjuntamente do supramencionado grupo, a fim de viabilizar a aferição dos
papéis de gênero que são reforçados dentro da seara penitenciária.
III - Privação de Liberdade:
a) A Lei de Execução Penal
A principal legislação pertinente ao cumprimento de pena em privação de
liberdade é a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) e, exatamente por isso,
começamos o estudo analisando os dispositivos legais pertinentes à mulher
encarcerada.
A supramencionada legislação foi promulgada sem considerar a figura da
mulher enquanto sujeito de direito. Esse fato decorre, especialmente, em razão da
criminalidade feminina ser considerada como algo extremamente inferior,
havendo índices bastante reduzidos. Em que pese isso, ao analisarmos o texto
original da lei, podemos perceber que há dispositivos que tratam especificamente
da mulher enquanto mãe1 ou da mulher devendo ser tratada de acordo com “sua
condição”2 – sem especificar, contudo, qual seria esta suposta condição.
No que diz respeito à condição da mulher suscitada pela Lei de Execução Penal,
o professor Mirabete, ao analisar o referido dispositivo, interpreta a supracitada
expressão como “o sexo, as condições fisiológicas e psicológicas da mulher”3.
Essas diferenças demonstram de forma clara e inequívoca a existência de uma
discriminação e de um preconceito de gênero, na medida em que deixam claro que
1 Art. 117. Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular
quando se tratar de:
[...]
III - condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental;
IV - condenada gestante. (grifo nosso) 2 Art. 19. O ensino profissional será ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico.
Parágrafo único. A mulher condenada terá ensino profissional adequado à sua condição (grifo nosso) 3 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal: Comentários à Lei nº 7.210/84. 9º Edição. São Paulo:
Atlas, 2000.
sua condição de mulher é peculiar, conquanto a do homem é tida como normal –
ou seja, o padrão é patriarcal, pois leva a mulher como o ser anormal, “o outro”4 .
Além das disposições acima, precisamos analisar o artigo 37 do Código Penal
que preceitua, in verbis:
“Regime especial
Art. 37 - As mulheres cumprem pena em estabelecimento próprio,
observando-se os deveres e direitos inerentes à sua condição
pessoal, bem como, no que couber, o disposto neste
Capítulo. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”
Conforme se depreende do artigo supra colacionado, há a menção ao que seria
a “condição pessoal” da presidiária. A expressão “condição pessoal”, portanto,
denotaria a mesma discriminação de gênero que se encontra lastreada no artigo 19
da Lei de Execução Penal. O artigo 19 assevera que a mulher condenada terá
ensino profissional adequado à sua condição. Retomamos, portanto, o termo
“condição” quando nos referimos ao corpo feminino.
As referidas normas pressupõem que algumas profissões não seriam para as
mulheres, enquanto a primeira caracteriza a mulher como uma condição a ser
tratada em específico – como se, o fato de ser mulher, implicasse alguma condição
médica, alguma abnormalidade.
O artigo 82, § 1º da Lei de Execução Penal, por sua vez, assevera que as
mulheres deverão ser recolhidas a estabelecimento prisional próprio, adequado à
sua condição pessoal. Novamente, estamos retornando à expressão “condição
pessoal”, como se a mulher fosse aberração, como se o sistema penitenciário não
fosse criado pensando nela.
Apesar das várias menções acerca do estabelecimento prisional destinado às
mulheres necessitar de diferenciações em contrapartida ao dos homens, verifica-se
que não há qualquer norma infraconstitucional que estabeleça as adequações
necessárias aos estabelecimentos para atender às “condições pessoais” da mulher
privada de liberdade.
O artigo 117, inciso III e V da Lei de Execuções Penais estabelece, ainda, que
a progressão para o regime aberto, na modalidade de prisão de albergue domiciliar,
somente poderá ser concedida a beneficiária condenada com filho menor ou
deficiente físico ou mental, assim como a condenada gestante. Esse artigo
consagra, de forma bem clara e definitiva, que o papel da mulher é ser mãe. A
sexualidade da mulher, portanto, é reforçada quando identificada ao papel
materno5.
4 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos 5 ESPINOZA, Olga. A mulher encarcerada em face do poder punitivo. São Paulo. IBCCRIM, 2004.
Nesse contexto, frisa-se que estamos cientes e consideramos a importância de
haver normas regulamentando a questão da mulher encarcerada enquanto mãe,
porém entendemos que as mulheres não podem ser tratadas apenas com o enfoque
à questão da maternidade, sob pena de obrigar à mulher o único e exclusivo papel
de ser mãe.
Entendemos que, em que pese o fato de que uma das maiores especificidades
do sexo feminino é a possibilidade de engravidar e, portanto, essencial que a
legislação em comento abarque essa questão, a legislação deveria considerar a
mulher para além da gravidez e da maternidade. Explica-se: há outras questões
essenciais a serem analisadas no que diz respeito à mulher. A questão dos
requisitos essenciais para o presídio feminino, por exemplo, deveria ter sido
trabalhada no plano da norma infraconstitucional, com o intuito de possibilitar o
maior conforto possível às presas e as suas especificidades biológicas.
Diante do acima exposto, importante concluir que se a LEP discrimina a mulher
pelo que diz, também discrimina a interna por aquilo que deixa de dizer6. A
discriminação que se encontra amplamente descrita na lei pode ser afastada
utilizando-se do princípio da igualdade7. Contudo, a discriminação por omissão é
mais difícil de ser superada, posto que dificulta o devido exercício dos direitos das
presas. Como exemplo da desigualdade por omissão, devemos citar o caso da visita
íntima: é que não havendo expressa menção ao direito da visita íntima, não há
qualquer norma infraconstitucional que assegure à mulher a obter o benefício.
Dessa forma, enquanto no Estado do Rio de Janeiro, as mulheres obtiveram o
direito a visita íntima nos anos 70, o Estado de São Paulo, por sua vez, só permitiu
a visita íntima às mulheres em privação de liberdade em 2001.
Conclui-se, portanto, que a Lei de Execuções Penais, para melhor incluir e
tutelar a mulher encarcerada, necessita de amplas revisões, não só para afastar as
terminologias eivadas de preconceito, como também para esclarecer as situações
específicas relativas à mulher, visando resguardar de forma efetiva e incisiva seus
direitos essenciais e não apenas àqueles concernentes ao exercício da maternidade.
b) A Maternidade Enclausurada
Em que pese considerarmos que a maternidade não é a única questão essencial
ao analisamos a problemática das mulheres encarceradas, para a elaboração do
presente trabalho foi necessário delimitarmos quais, especificamente, seriam os
problemas levantados e analisados. Assim, considerando o viés extremamente
maternal da presa consagrada na Lei de Execução Penal, consideramos que essa
questão necessitaria de avaliação mais cuidadosa e pormenorizada. Dessa forma,
6 CASTILHO, E. W. V. Execução da Pena Privativa de Liberdade para Mulher: A urgência de Regime
Especial. In Justitia. São Paulo, 64 (197), julho/dezembro 2007. Disponível em
<http://revistajustitia.com.br/revistas/w3137c.pdf> - Acessado por último em 28 de julho de 2016, às 4:40 7 Ibidem.
ainda que entendamos que há diversas questões em voga, o objeto da presente
pesquisa delimita-se à maternidade no cárcere.
Feita essa breve consideração, conforme asseveramos no início da abordagem,
é certo que a letra fria da lei é incapaz de demonstrar a vivência das mulheres
encarceradas. Assim sendo, além de analisarmos a mera legislação em vigor, a
presente pesquisa necessitou avaliar quais eram as condições de encarceramento
feminino na prática das penitenciárias brasileiras.
Nesse diapasão, importante salientarmos que as experiências que serão
relatadas a seguir, e que são utilizadas para melhor ilustrarmos a questão da
maternidade das internas, não são oriundas desta pesquisa. Os casos relatados são
oriundos de extensa pesquisa realizada pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania
(ITTC) e do Projeto Pensando o Direito, do Ministério da Justiça e que foi utilizada
na presente pesquisa para ilustrar as problemáticas relacionadas à maternidade8.
Feita essa breve introdução, utilizaremos os relatos levantadas pelas
pesquisas acima citadas para apresentar algumas questões relevantes acerca da
maternidade no cárcere, sob o crivo da teoria feminista crítica, conforme
analisaremos a seguir.
A Menina que não conhecia as estrelas9:
A institucionalização da infância
No que diz respeito ao texto frio da Lei de Execução Penal, é garantido à mulher
mãe o direito de amamentar seu filho até, no mínimo, seis meses de idade,
conforme preconizado em seu artigo 83, § 2º. Dessa forma, ainda que a mulher se
encontre acautelada, ela tem o direito de manter a criança pelo período mínimo de
seis meses, para que possa realizar o aleitamento.
O artigo 89 do mesmo diploma legal, determina:
Art. 89. Além dos requisitos referidos no art. 88, a penitenciária de
mulheres será dotada de seção para gestante e parturiente e de creche
para abrigar crianças maiores de 6 (seis) meses e menores de 7
(sete) anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja
responsável estiver presa. (Redação dada pela Lei nº 11.942, de
2009) (grifo nosso)
Nesse quesito, importante salientarmos que a Lei de Execução Penal prevê que
o tempo máximo para a permanência das crianças dentro do estabelecimento
prisional é até os 7 anos incompletos. Assim, o projeto Pensando o Direito, do 8 A citada pesquisa encontra-se disponível em <http://www.justica.gov.br/noticias/201clugar-de-crianca-
nao-e-na-prisao-nem-longe-de-sua-mae201d-diz-pesquisa/pesquisa-dar-a-luz-na-sombra-1.pdf>.
Acessada em 26 de julho de 2016, às 14:50 9 “A criança que não conhecia as estrelas” é o relato de um dos muitos casos levantados pela pesquisa
“Dar à luz na sombra”, que se encontra disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=5zocq4vU77Y&index=2&list=PLiwFot-6o3W_W1dIA4-
wyjoC5Jls_UG2Z>. Acessado em 26 de julho de 2016, às 13:50.
Ministério da Justiça, relatou um curioso caso que demonstra uma das
consequências do encarceramento de mãe e de sua filha.
Ao visitarem a Penitenciária de Salvador, as pesquisadoras do projeto
encontraram crianças de quatro a cinco anos de idade que permaneciam junto com
suas mães. Na dinâmica de um sistema penitenciário, existe o momento em que as
internas são colocadas novamente nas celas, o que geralmente ocorre por volta de
17 horas, conforme relatado pelas pesquisadoras.
A criança que não conhecia as estrelas refere-se à uma menina de quatro
anos que nunca havia saído da penitenciária e que, na primeira vez que viu o céu
noturno, alarmou-se, começando a gritar e ter uma relação de estranhamento. Ela
nunca havia visto o céu noturno, posto que era colocada de volta à cela às 17 horas,
não chegando, jamais, a ver a noite.
A problemática aqui apresentada é bem complexa: por um lado, devemos
garantir às crianças o convívio familiar e comunitário; por outro, devemos garantir
que essa criança tenha direito à liberdade, eis que não cometeu nenhum crime para
se ver privada do direito mais básico – o de existir além grades.
Dessa forma, vemos que o sistema penitenciário não foi capaz, nesse caso
concreto, de garantir o real direito das mulheres/mães encarceradas: de
acompanhar o desenvolvimento da criança, sem que o infante esteja sujeito à
sensação de privação de liberdade. Não houve, de fato, a criação de
estabelecimento prisional compatível com as necessidades da criança que, para
permanecer com o ente materno, é obrigada a sujeitar-se à privação de liberdade
tal qual a de alguém condenado por ato ilícito.
Importante consignar que a presente problemática está relacionada à
maternidade no cárcere e à uma discriminação de gênero. Explica-se: em que pese
a lei exigir que os estabelecimentos prisionais femininos sejam adequados à
condição da mulher, a administração penitenciária brasileira não propicia espaços
apropriados à sua condição biogenética, tal qual os cuidados específicos do pré-
natal durante a gestação, período do aleitamento materno10 ou até mesmo com os
verdadeiros cuidados de exercer a maternidade em seu grau mais pleno – permitir
o desenvolvimento sadio dos filhos da mulher encarcerada.
10 CHESKYS, Débora. Mulheres Invisíveis: uma análise da influência dos estereótipos de gênero na vida
das mulheres encarceradas. 2014. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em <http://www.patriciamagno.com.br/wp-
content/uploads/2015/08/PM_Mulheres-Encarceradas-Debora-Cheskys.pdf?f00170>. Acessado em 28 de
julho de 216, às 14:55.
Hiper e Hipomaternidade11:
O (não) exercício autoritário da maternidade
“Ela está na cadeia. Tudo que ela estava
fazendo, escola, trabalho, para e ela passa a
cuidar 24 horas por dia do filho”12
As pesquisadoras do Pensando o Direito, relatam que, a partir do momento
em que a interna dá à luz ao bebê, as suas atividades habituais são cortadas, sendo
de sua responsabilidade, então, cuidar do neném durante 24 horas por dia, todos os
dias. Essa realidade, conforme relatado pela pesquisa, demonstra que, a mulher, ao
ser efetivamente mãe, ou seja, ao parir a criança, deixa de exercer as suas funções
habituais, e é forçada a exercer a maternidade.
Neste ponto, importante esclarecermos que, quando a/o presa/o se encontra
custodiado, ainda que esteja em regime fechado, é possível exercer atividades
laborais ou intelectuais dentro do presídio. Dessa forma, dentro do estabelecimento
prisional, há trabalhos e cursos/aulas a serem exercidos ou frequentados pelas/os
detentos.
Salienta-se, por oportuno, que o trabalho exercido ou os cursos frequentados
não só possuem o condão de permitir a ressocialização da/o interna/o, como são
capazes de permitir a remição da pena privativa de liberdade. Quando a presa está
exercendo alguma função dentro do presídio, seja estudando ou trabalhando, ela
tem o direito à remição – instituto previsto na Lei de Execução Penal que
possibilita a redução da pena de acordo com os dias trabalhados ou com as horas
estudadas.
Assim, ainda que o bebê necessite ser amamentado e ter os devidos
cuidados providos pelo ente materno, consideramos que privar a mulher de todas
as outras responsabilidades não está realmente condizente com as necessidades do
bebê. Isso porque, se, por um lado, estamos beneficiando àquela mulher para que
ela possa exercer o papel de mãe, também estamos prejudicando o cumprimento
de sua pena privativa de liberdade. Quando a mulher é impedida de exercer as
atividades disponíveis dentro do presídio, ela também é impedida de remir a sua
pena e, portanto, resta impossibilitada de diminuir o seu tempo de permanência
dentro do sistema prisional.
11 Tais conceitos foram cunhados pela pesquisa elaborada pelo grupo Pensando o Direito, disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=4cNRK4bh-nc&index=3&list=PLiwFot-6o3W_W1dIA4-
wyjoC5Jls_UG2Z>. Acessado em 28 de julho de 206, às 14:40. 12 A pesquisadora Bruna Angotti, do Projeto Pensando o Direito, ao atuar na pesquisa “Dar à Luz na
Sombra”, utiliza essa frase para explicar o fenômeno da hipermaternidade.
Da mesma forma, quando a interna/mãe é impedida de estudar ou trabalhar,
estamos prejudicando a sua reinserção no mercado de trabalho e,
consequentemente, prejudicando a sua ressocialização. Ao impedirmos que a
mulher estude ou trabalhe, estamos proibindo que esteja criando o seu futuro além
dos muros do sistema penitenciário.
Ademais, a presente questão perpassa a mera remição, posto que também
se encontra relacionada com o fato da mulher ser obrigada a ser mãe 24 horas por
dia. Imaginemos um mundo em que as mulheres são obrigadas a serem mães
durante todas as horas do dia. Não há qualquer hora para o lazer. Não há qualquer
tempo para que aquela mulher deixe de ser mãe. A sua única função na vida, o seu
único objetivo, é existir para aquele infante. É esse o fenômeno relatado pelas
pesquisadoras do Pensando o Direito, como a hipermaternidade.
Por outro lado, a hipomaternidade é justamente quando, sem qualquer aviso
ou adaptação, a criança é retirada do convívio com a mãe, para ser encaminhada à
um abrigo ou para a família extensa. A faceta danosa de tal fenômeno sequer
necessita de esclarecimento: é danosa tanto à criança, que perde totalmente o
contato com a mãe, quanto à mãe, que é impossibilitada de ver o seu filho crescer
de forma saudável.
Os dois fenômenos demonstrados acima ilustram o fato do sistema
penitenciário não permitir o exercício autônomo da maternidade. Ora a
maternidade é imposta como forma de vida, ao passo em que a mulher fica
impedida de ter contato com outras atividades alheias ao fato de ser mãe, ora a
maternidade é imposta como sua força nula, na ausência de ser mãe.
Entendemos, portanto, que parte da ideologia de gênero existente na Lei de
Execução e na execução penitenciária, é a questão da maternidade não poder ser
exercida de forma autônoma pelas mulheres. Isso porque embora, historicamente,
caiba à mulher o papel de mãe e cuidadora dos filhos, a partir do momento em que
comete um crime, passa a ser vista, de forma automática, como péssima mãe, ou
como alguém que não merece ter ou criar seus filhos13.
Dessa forma, compreendemos que, quando a mulher se encontra
encarcerada, há uma tentativa de impor aqueles mesmos limites à mulher: ela deve
retornar à maternidade e aos serviços usuais (costura, limpeza – os trabalhos tidos
como domésticos).
Para justificar e exemplificar o que expomos acima, consideramos essencial
trazermos ao presente trabalho um breve histórico do encarceramento feminino.
As primeiras penitenciárias femininas foram administradas por ordens religiosas
13 Julita Lemgruber afirma, no livro “O Cemitério dos Vivos – análise sociológica de uma prisão de
mulheres”, que uma vez tendo passado pela prisão, a mulher será julgada como uma irresponsável que não
se preocupou com seus filhos. Relata, a seguir, a fala de um membro da administração de um presídio no
Rio de Janeiro: “mulher pra mim que delinquisse pela segunda vez, eu mandava esterilizar, não devia ter
direito a ser mãe, porque não teria as mínimas condições de educar uma criança”.
em diversos países, dentre eles o Brasil. As autoras Soares e Ilgenfritz apontam
que o primeiro estabelecimento penitenciário destinado às mulheres foi
administrado pelas Irmãs do Bom Pastor14. O regulamento da prisão formulado e
aplicado pelas religiosas, conhecido como Guia das Internas, apontava que só
havia dois caminhos para a salvação eram o retorno ao convívio social e da família
e o abraço à vida religiosa, no caso das solteiras, idosas ou sem vocação para a
vida religiosa.15 Importante esclarecer que ambos os caminhos implicavam que as
mulheres se dedicassem às tarefas domésticas de bordado, costura, cuidado da casa
e dos filhos.
Em que pese o fato da administração penitenciária feminina não estar mais
a cargo das ordens religiosas, tal fato ocorreu somente em meados do século XX
e, portanto, ainda podemos perceber – conforme demonstramos no presente
trabalho – que ainda há um sistema de controle, que visa determinar quais seriam
os papéis aceitáveis da mulher encarcerada.
As mulheres que cometeram crimes romperam com o normativo de gênero
atribuído à sua identidade enquanto mulheres e, exatamente por isso, é que o
sistema penitenciário, para elas, deve ser retratado como um local em que elas
serão, obrigatoriamente, devolvidas ao espaço privado e ao seu “papel como
mulher”, eis que:
“[...] cometer crimes, ser violenta, infringir a lei e as
normas sociais não parecem ser papéis compatíveis ao
gênero feminino, pois a cristalização de discursos e
representações acerca da passividade, delicadeza,
modelos de virtude e dos bons costumes, foram muito
recorrentes ao longo da história, no que tange à
identidade atribuída às mulheres.”16
Dessa forma, encerramos o presente tópico ressaltando que a mulher
encarcerada, em razão de ter rompido com a normativa de gênero, sofre com
intensa privação de autonomia. Tal privação afeta, inclusive, a forma com que ela
exerce (ou não) a maternidade. Concluímos então, que os fenômenos da hiper e
hipomaternidade são meras expressões de um sistema penitenciário que não
permite a autonomia da maternidade, de tal sorte que o próprio exercício da
maternidade se torna uma forma de controle penitenciário.
14 SOARES, Bárbara. ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras: vida e violência atrás das grades. Rio de Janeiro:
Garamond, 2002. 15 LIMA, Elça Mendonça. Origens da prisão feminina no Rio de Janeiro. P. 79-89 16 PRIORI, Cláudia. A Construção Social da identidade de gênero e as mulheres na prisão”
Reforço de Papel de Gênero:
O aborto paterno
Outra questão relevante, sob à ótica da maternidade, é observarmos a total
ausência de referências legislativas no que concerne à paternidade. É certo que a
Lei de Execução Penal não demonstrou qualquer preocupação em determinar que
os estabelecimentos prisionais masculinos possuam local próprio para bebês ou
crianças que sejam filhas/os dos internos do sexo masculino.
É certo que a mulher tem a possibilidade de amamentar e que o preso do
sexo masculino jamais poderia usurpar para si tal função. Contudo, após a fase de
aleitamento, resta evidente que a criança deveria ter o mesmo direito de
permanecer com o pai que se encontra privado de sua liberdade. Da mesma forma
como existem mães que estão presas, a lei vigente deveria enxergar a possibilidade
de pais estarem em privação de liberdade e necessitarem do convívio com a(o)
filha(o).
O cerne da questão é que a Lei de Execução Penal, ao omitir-se acerca da
obrigatoriedade de creches e locais propícios para infantes no âmbito da
penitenciária masculina, reforça um papel de gênero. Reforça, de forma clara e
inequívoca, que compete à mulher exercer à maternidade e que eventuais proles
são de responsabilidade somente da mulher.
Nesse sentido, importante esclarecermos:
“Não há qualquer outra menção sobre creches,
filhos ou crianças na lei, como se os homens
presos não tivessem filhos, não devessem
conviver com eles ou não pudessem ser eles os
principais responsáveis na criação das crianças.
É uma clara reafirmação de um estereótipo que
dá à mãe o papel principal na tarefa de educar os
filhos.17”
17 CHESKYS, Débora. Mulheres Invisíveis: uma análise da influência dos estereótipos de gênero na vida
das mulheres encarceradas. 2014. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em <http://www.patriciamagno.com.br/wp-
content/uploads/2015/08/PM_Mulheres-Encarceradas-Debora-Cheskys.pdf?f00170>. Acessado em 28 de
julho de 216, às 14:55.
Dessa forma, em que pese a Constituição Federal brasileira consagrar que
homens e mulheres são iguais em direitos obrigações, a Lei de Execução Penal, ao
revés do princípio constitucional da igualdade, oferece ao preso homem tratamento
deveras diferente daquele oferecido à presa mulher. Entendemos que tal
tratamento, conforme já analisamos acima, decorre da legislação em comento
ainda estar eivada de estereótipos de gênero.
Ademais, concluímos que a ausência de menções à paternidade, reforça a
ideia da maternidade forçada. A Lei, ao omitir-se em relação à paternidade,
reforça, por sua omissão, a importância da maternidade.
A omissão apontada acima revela de forma clara a dicotomia no que tange
ao âmbito público e ao âmbito privado da pena privativa de liberdade. Enquanto a
privação de liberdade da mulher possui valores fortes no que diz respeito à
maternidade, eis que há dispositivos específicos que versem sobre berçários,
creches e direito de conviver com as crianças, ao homem preso é negada a
importância de conviver com seus filhos e educa-los, posto que esse não seria o
papel do homem.
Por fim, compreendemos que, ao tratar da maternidade, a lei de execução
penal demonstra uma punição no âmbito privado: a maternidade imposta à mulher
condenada, a partir do momento em que ela pare o filho dentro do sistema
prisional. Por outro lado, a LEP não tem qualquer dispositivo que verse acerca do
papel paternal do homem privado de sua liberdade, eis que tal matéria não
competiria ao Estado.
Assim, em que pese o presente trabalho pautar-se na análise das questões
relativas à maternidade da mulher encarcerada, concluímos que a total ausência de
paternidade enclausurada tem reflexos de gênero e, portanto, mereciam o destaque
aqui lhes oferecido.
IV – Conclusão
A legislação penal, historicamente, proporcionou o fenômeno da
invisibilidade da mulher criminosa, e que, por seu turno, permitiu que resquícios
dessa invisibilidade ainda permeassem o cotidiano da mulher infratora nos dias
atuais. Conforme analisamos neste trabalho, a estrutura penitenciária, criada
quando do estabelecimento da Lei de Execução Penal, em 1984, foi pensada para
a promoção da Justiça e do aprisionamento masculino. E, a despeito das tentativas
legislativas, as modificações que incluíram maior especificidade à figura feminina,
se tornaram, na verdade, modificações com viés de gênero.
Assim, em um primeiro momento, o trabalho tratou, tão somente, da análise
dos dispositivos legais que mencionavam à figura feminina. Nessa parte do
trabalho, concluímos que a figura da mulher era tratada como a outra, em
contraposição à figura do homem. Dessa forma, a LEP, anteriormente, destinava-
se ao preso do sexo masculino, sendo posteriormente modificada para abarcar o
sexo feminino.
Observamos, contudo, que mesmo nos dispositivos em que havia uma clara
enunciação à mulher, tais disposições referiam-se à mulher relacionando-a com
“sua condição pessoal” ou quando havia questões relativas à maternidade ou à
crianças e bebês.
Em um segundo momento, visamos delimitar e enunciar algumas das
problemáticas havidas no que diz respeito ao fenômeno da maternidade. Nesse
caso, separamos a presente questão em três partes diferentes: a primeira, na
institucionalização da infância; a segunda, na hipomaternidade e na
hipermaternidade; e, por fim, na ausência da paternidade.
Nas duas primeiras partes, relacionamos os dispositivos da Lei de Execução
Penal com a pesquisa realizada pelo grupo Pensando o Direito, coordenado pelo
Ministério da Justiça. Fizemos, assim, uma análise sobre os fenômenos relatados
pelo referido grupo, com o que acreditamos ser viés de gênero tanto na Lei de
Execução Penal quanto na administração penitenciária como um todo.
Na terceira parte, quando versamos sobre a ausência da paternidade, não
tivemos a oportunidade de buscar qualquer caso concreto, eis que, conforme o
próprio nome enuncia: não há paternidade exercida dentro do sistema
penitenciário.
Feita essa breve retrospectiva acerca do trabalho realizado, concluímos que
a Lei de Execução Penal e, por consequência, a execução penal – a administração
penitenciária – reflete discriminações de gênero, na medida em que determina o
exercício da maternidade para a mulher, enquanto omite-se em relação ao exercício
da paternidade. Tais formulações estão fortemente calcadas nos papéis de gênero
que estão presentes nas sociedades patriarcais: compete à mulher o papel do ser
maternal, de cuidar dos filhos e gerir a casa – a mulher deve permanecer no âmbito
privado das relações pessoais. Por outro lado, ao homem não há qualquer
imposição acerca da paternidade – justamente porque, ao homem, não deve ser
relegado o papel de cuidar da prole, eis que o ser homem deve permanecer no
âmbito público das relações.
Concluímos que os direitos das mulheres em situação de privação de
liberdade ainda permanecem constantemente sendo desrespeitados, eis que suas
condições específicas não têm recebido o devido amparo quando privadas de
liberdade. Isso porque, na verdade, não há qualquer menção da LEP às suas
verdadeiras especificidades, mas tão somente à sua maternidade.
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