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Revista de Sociologia e Política ISSN: 0104-4478 [email protected] Universidade Federal do Paraná Brasil Zuin Soares, João Carlos Political and cultural endeavors of Paulo Emilio Salles Gomes: 1935-1945 Revista de Sociologia e Política, núm. 17, noviembre, 2001 Universidade Federal do Paraná Curitiba, Brasil Available in: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=23801709 How to cite Complete issue More information about this article Journal's homepage in redalyc.org Scientific Information System Network of Scientific Journals from Latin America, the Caribbean, Spain and Portugal Non-profit academic project, developed under the open access initiative

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Revista de Sociologia e Política

ISSN: 0104-4478

[email protected]

Universidade Federal do Paraná

Brasil

Zuin Soares, João Carlos

Political and cultural endeavors of Paulo Emilio Salles Gomes: 1935-1945

Revista de Sociologia e Política, núm. 17, noviembre, 2001

Universidade Federal do Paraná

Curitiba, Brasil

Available in: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=23801709

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 107-125 NOV. 2001

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 17, p. 107-125, nov. 2001

EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EMPAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945

Este artigo propõe-se a fornecer elementos para estudar o papel intelectual desempenhado por PauloEmílio Salles Gomes nos anos trinta e quarenta, especialmente na revista Clima. Por meio de um relatobiográfico, analisamos o processo de formação de um intelectual crítico em meio às lutas políticas e sociaisque caracterizaram o período, tanto no Brasil quanto em nível mundial. O relato esclarece o esforço dePaulo Emílio em constituir e difundir a noção de um socialismo independente no Brasil, contrapondo-setanto ao fascismo e à ditadura de Getúlio Vargas quanto ao stalinismo e ao trotskismo, favorável àemancipação do homem e à revolução social, e mantendo como valores básicos a liberdade individual e acivilização ocidental.

PALAVRAS-CHAVE: Paulo Emílio Salles Gomes; intelectual; empenho político e cultural; socialismoindependente; democracia.

I. INTRODUÇÃO

Empenhado em combater o avanço da correntede idéias nostálgicas celebradas pelos filósofos eescritores alemães avessos à marcha da liberdadedo mundo moderno, o filósofo alemão Hegelafirmava que “os cursos de água que não sãomovidos pelo vento tornam-se pântanos” (apudLOSURDO, 1983, p. 159). Exprimia, assim, tododesconforto e aversão que sentia no cenário davida cultural e política da sociedade alemãestagnada e imóvel, bem como criticava a fortetendência de evasão da realidade presente nasidéias que glorificavam o espírito teutônico e osvalores do passado, sobremodo expressa nosdesejos de volta à “idade de ouro” medieval. Tomode empréstimo a sentença de Hegel parademonstrar o profundo empenho político e culturalde Paulo Emílio Salles Gomes na sociedadebrasileira dos anos quarenta. Desse modo,procuramos usar a expressão de Hegel para tentarentender um dilema caro na vida cultural brasileira:a profunda sensação de mal-estar e debilidade dopensamento em orientar-se na problemáticarealidade brasileira. Não seria de todo errado dizerque um sentimento de mal-estar e desconfortoatravessa a história das idéias no Brasil. Usando asentença de Hegel, podemos dizer que o intelectualdeve contribuir objetivamente para transformar asociedade brasileira do pântano em que está inserida

a cultura e a política num riacho que tenhamovimento próprio, autonomia, enfim: vida.Buscaremos, aqui, demonstrar que não outro foioutro o alvo do empenho político do jovem PauloEmílio Salles Gomes. Com a categoria “empenhopolítico” pretendemos caracterizar o modo comoo jovem Paulo Emílio buscou orientar-se e agir nararefeita atmosfera ideológica das décadas de trintae quarenta, período dos mais vivos e dramáticosda civilização moderna.

Seguimos, aqui, as observações do filósofoitaliano Domenico Losurdo que contrapõe acategoria empenho, ou melhor, o termo“engagement objetivo” desenvolvido por ArturoMassolo, ao termo francês engagement. Porempenho ou “engagement objetivo” Losurdocompreende que “se Hegel tem ensinado ainevitabilidade da situação histórica, Marx ensinaa inevitabilidade, no interior da situação histórica,dos conflitos político-sociais. É essa dupla radicalimanência que define a nova qualidade do discursofilosófico. Após Marx, acrescenta Massolo, ofilósofo ‘sabe que está objetivamente engagé’”(idem, p. 128). Se o empenho político ou o“engagement objetivo” possui raízes na tradiçãoque vai de Hegel a Marx, o termo francêsengagement “pressupõe a imaculabilidade doprocesso de produção intelectual [...]. É umaforma de idealismo subjetivo que configura um

João Carlos Soares ZuinUniversidade Estadual de Londrina

ARTIGOS

EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945

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retorno aquém de Marx, e ainda de Hegel, emúltima análise encontra-se em Fichte” (idem, p.129).

II.PRIMEIRA ENTRADA NA MODERNIDADE:O DESEJO DE SER MODERNO

No início dos anos trinta o jovem Paulo EmílioSalles Gomes cultivava um forte desejo de sermoderno. Conforme expôs no artigo Um discípulode Oswald em 1935, resultado de um exercício devolta ao passado que tanto lhe era caro (comoatesta Décio de Almeida Prado), tal desejo tomavaforma “em 1935, pois aderia a tudo que me pareciamoderno: comunismo, aprismo, Flávio deCarvalho, Mário de Andrade, Lasar Segall, GilbertoFreyre, Anita Malfati, André Dreyfus, Lenine,Stálin e Trotski, Meyerhold e Renato Viana. Aconfusão era maior ainda. Quando fui ao Riorecolher artigos para a revista que estava fundandocom Décio de Almeida Prado, Movimento, visiteiLúcia Miguel Pereira, Gilberto Amado, Pontes deMiranda e Maurício de Medeiros...” (GOMES,1982a, p. 440). Um arrebatador impulso de adesãoàs idéias e aos autores que fossem ouestimulassem alguma expressão do moderno, talera o sentimento que dirigia os esforços do jovemacadêmico na vida cultural e política naprovinciana cidade de São Paulo. Muito impulso epouco senso, como não poderia deixar de ser,emanavam de seu desejo de adesão ao moderno.Na descrição de sua eclética imagem do moderno,cuja discrepância e confusão não foram ocultadastrinta anos mais tarde, Paulo Emílio retratou a suaprocura por orientação no interior da sociedadebrasileira.

Paulo Emílio viveu e refletiu profundamente adesventura de crescer e envelhecer na atmosferararefeita de uma sociedade autoritária, elitista egolpista. Dilema que se iniciou em dezembro de1935, quando então completara dezenove anos eera membro da Juventude Comunista paulistana.O jovem estudante preso na onda de repressão aomovimento comunista era conhecido pela políciapor suas participações políticas nos comícios daAliança Nacional Libertadora e pelos artigospublicados nos periódicos de esquerda comoVanguarda estudantil, A platéia e no jornal Correiopaulistano. Seus artigos de juventude resultavamde uma mistura fina formada pelo uso do humor eda piada originários do primeiro momento domodernismo paulista (o da “descoelhonização” daliteratura nacional), por uma disposição ideológicaproveniente dos modernistas paulistas que

procuraram “desperrepizar o Brasil” e domarxismo. Nos ensaios do jovem Paulo Emíliopodemos observar a presença das duas fases quemarcam o modernismo paulista: a ironia contidanas sentenças que buscavam livrar a literaturanacional do “último heleno” Coelho Neto e aparticipação dos modernistas nos movimentospolíticos que procuraram renovar o Brasil no iníciodos anos 30. Décio de Almeida Prado acentua essesdois traços principais da personalidade juvenil dePaulo Emílio, afirmando ainda que “é provável queno seu espírito os dois movimentos, o artístico eo político, corressem paralelos”, pois “os doissignificavam um começo, não um apogeu, muitomenos um fim de jornada” (PRADO, 1986, p. 21).Logo, no início dos anos trinta, o jovem acadêmicoextraía do modernismo e do marxismo os argu-mentos e modelos de orientação no interior dasociedade brasileira.

Sua concepção de mundo juvenil eraconstituída pelos valores e normas oriundos docomunismo romântico dos anos vitoriosos daRevolução de Outubro. Uma verdadeira “paixãopela Rússia” (GOMES, 1982c, p. 358) norteavatodo o seu modo de agir e sentir o mundo moderno.Numa passagem escrita nos anos sessenta sobrea sua ação política na tumultuada década de 30,Paulo Emílio traçou um importante auto-retrato:“a Rússia foi o país que mais me interessou edurante mais tempo. O motivo era político, maseu me pergunto se esta expressão é a maisadequada para resumir o estado de espírito dosjovens brasileiros que abordavam os problemasrussos nos anos imediatamente anteriores eposteriores a 1930. Durante os últimos cento etantos anos não houve país que suscitasse, comoa Rússia, tanta paixão. Para encontrar algo desemelhante é preciso reportar aos fins do séculodezoito e início do dezenove, à França nova emodelada pela Revolução. Os estímulos afetivosprovocados pela transformação da Rússia emUnião Soviética ultrapassaram amplamente o quese designa por política. Ou melhor, a políticanaquele tempo aparecia para muitos como aatividade humana mais completa que se pudesseimaginar, envolvendo todas as preocupações, dasmorais às estéticas. Era difícil encontrar pessoascom o sentimento de estarem sacrificando àpolítica o desenvolvimento destas ou daquelasfacetas de sua personalidade. O comunismooferecia uma concepção de mundo e normas decomportamento” (idem, p. 357).

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Na narração de Paulo Emílio sobre os dilemaspolíticos de sua juventude e de sua geração, é claroo sentido originário de sua adesão ao comunismo.Paulo Emílio concebia o comunismo como ummovimento libertário da humanidade, a nova luzque iluminava o caminho que deveria ser trilhadopela humanidade após a barbárie da PrimeiraGuerra Mundial e a crise da modernidade. Logo,para o jovem militante comunista a participaçãona vida política estava ligada à convicção de queos antigos conteúdos culturais se haviam tornadoobsoletos e sem vida e, em conseqüência,vinculada também a uma atenção apaixonada àhistória entendida como locus da renovação radical,da emancipação humana. Uma crença quenorteava suas ações e juízos, a ponto de que nasua revista Movimento definir o tempo históricoem que vivia como aquele no qual “todas asenergias devem ser empregadas tendo em vistaum só objetivo – o socialismo” (GOMES, 1986b,p. 31).

No final de julho de 1935, poucos meses antesde ser preso, Paulo Emílio idealizou a criação deuma revista chamada Movimento – “revista dopresente que enxerga o futuro”, cujo sentido eraassim concebido: “de uns tempos para cá, amocidade brasileira tornou-se consciente de que,por um determinismo histórico, fora extem-poraneamente [...] chamada a uma situação socialativa, situação em desequilíbrio com a sua cultura,que era escassa, e a sua experiência, que erapouca” (apud PRADO, 1986, p. 17).“Determinismo histórico” que condicionava aescolha de campo da “novíssima geração”.Compartilhava, assim, de uma nova linguagem,de uma nova postura frente à política e à sociedadebrasileira.

Nos anos que se anunciavam como anos dechumbo e desilusão, Paulo Emílio acabaria detidoapós o malogrado movimento comunista de 1935.De certo modo, sabia que não poderia sair ilesoda empreitada, como afirmou anos mais tarde:“tenho a impressão de que meus 18 anos duraramanos. Tudo aconteceu em alguns poucos mesesde 1935. No fim desse ano os comunistasensaiaram um golpe militar. Oswald se escondeu.Eu fui preso, provavelmente de acordo com meussecretos desejos, mas sem imaginar que a prisãopudesse durar tanto tempo. Quando um ano e meiomais tarde consegui fugir do Presídio do Paraíso,mal revi Oswald e viajei. E quando voltei haviaacabado a idade de ouro” (GOMES, 1982c, p.

446). Nosso autor passou quase dois anos nospresídios Maria Zélia e Paraíso, nomes sutis paracenários de crueldade e violência. Uma experiênciaque será permanentemente recordada e avaliadaao longo da sua produção intelectual,particularmente no que se refere à fuga por meiode um túnel construído junto com outros presosno Presídio do Paraíso; tão marcante que Déciode Almeida Prado procurou sempre enfatizar emseus ensaios sobre Paulo Emílio: “os meses naprisão, prolongando-se, começaram a marcarPaulo Emílio, talvez para sempre. Mas não, ounem sempre, em sentido desfavorável. Em outubrode 1936, numa carta escrita em termos livres epessoais porque não passaria pela censura, ele diziao seguinte a seu respeito: ‘eu pessoalmente voubem. Você não pode imaginar, Décio, a quantidadede ilusões que perdi, os erros que enxerguei e ascoisas que aprendi durante esses nove meses deprisão. E aqui também se firmaram certastendências da minha personalidade que até entãoestavam incertas, como por exemplo a minhadecidida vocação para a política e meuirremediável fracasso em relação à existêncianormal’” (PRADO, 1997, p. 152; sem grifos nooriginal).

Na carta endereçada ao amigo de juventude, ede sempre, na qual retrata a vida simultaneamenteprejudicada e repleta de aprendizados, o jovemmilitante revela a sua “decidida vocação para apolítica”. Um importante auto-retrato, conscientee sólido, próprio de um momento cindido,angustiante e contraditório, que revela para aqueleque o vive a possibilidade de encontrar uma novaidentidade. Não seria exagero dizer que o traumada vida na prisão e a espetacular fuga do presídiopossibilitaram a Paulo Emílio experiênciasmarcantes e duradouras.

Sua concepção de mundo moderna foireafirmada nos momentos marcados pelo “caosregenerador”, pela situação cruel e autoritária queimpunha para aquele que a vivenciava anecessidade de compreendê-la, passo necessáriona direção de efetuar uma decidida superação.Fugitivo, permaneceu escondido pela família atéo momento em que pôde embarcar para Paris - euma outra experiência tremendamente significativaocorreria na capital francesa.

III. ESTADA EM PARIS: UM MOMENTOILUMINADOR

Paulo Emílio viveu dois anos em Paris, entre

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1937 e 1939, período que pode ser consideradocomo um processo de profunda redefiniçãopolítica e de uma estimulante descoberta do cinemacomo arte moderna. Nesse curto intervalo detempo, o então jovem comunista experimentou “adescoberta crucial do século — o apocalipsestalinista — que ferreteou tantas gerações, tambémpara sempre, e de uma forma que a mesquinhariaconservadora nunca compreenderá” (GOMES,1974, p. 162), como afirmou anos mais tarde. Odesgosto político sofrido mediante o conhecimentodos processos de Moscou e da face sombria dostalinismo seria compensado com a assimilaçãoapaixonada do cinema de vanguarda, passo inicialna direção daquilo que seria anos mais tarde a suaverdadeira vocação, o exercício profissional dacrítica de cinema. Num par de frases AntônioCândido sintetizou a importância de Paris na vidae na obra de Paulo Emílio: a “estada em Paris foidos fatos mais importantes da sua vida: ela lherevelou o cinema e alterou a fundo sua visãopolítica” (CÂNDIDO, 1986, p. 56). De fato, Parissignificou algo mais do que um exílio forçado pelosacontecimentos políticos ocorridos na cidade deSão Paulo em 1935. Na verdade, Paris foi ummomento iluminado na trajetória de nosso autor,marcado por experiências políticas e culturaisplenamente vivenciadas. Um momentofundamental, como podemos observar através dareflexão de Décio de Almeida Prado: “porém, sóquando recobrou a liberdade, na França, liberdadeplena, inexistente no Brasil, não só jurídica masde irrestrita informação e reflexão política, é quefixou em definitivo a sua personalidade. E só veioa estrear em livro, fato surpreendente em pessoatão precoce e à primeira vista tão ansiosa poraparecer, vinte anos depois de ter fugido da prisãoe ter partido para a Europa. Mas já aí, em 1957,com o estudo publicado em Paris sobre Jean Vigo– outro mal ajustado ‘à existência normal’, queexprimia através da arte o seu não-conformismo–, que lhe daria renome internacional” (PRADO,1997, p. 153).

Nos meados dos anos trinta, a França da FrentePopular representava um país no qual osintelectuais perseguidos pelas ondas repressivas edestrutivas do fascismo, nazismo e stalinismopoderiam viver com alguma segurança. Em Paris,viviam os exilados políticos italianos, dentre elesos fundadores do movimento Giustizia e Libertà,os dissidentes russos que fugiam dos processosde Moscou, os escritores, poetas e intelectuais

alemães que fugiam do nazismo, entre outros.Relembrando algumas experiências pessoaisocorridas em Paris, durante o governo da FrentePopular - como a de ver o filme A grande ilusão,que lhe “evocava de forma viva minha experiênciarecente” (refere-se, aqui, à fuga que empreendeuda Prisão do Paraíso que o filme de Jean Renoir ofazia recordar mediante as cenas que retratavama fuga de prisioneiros franceses na Alemanhadurante a Primeira Guerra Mundial) - Paulo Emílioretratou o momento em que viveu na França comas seguintes palavras: “a França vivia naquelesanos um profundo movimento de opinião queassumiria em 1936 a forma do triunfo da FrentePopular e da série de leis sociais ligadas ao nomede Léon Blum. Os filmes de Renoir tinham ocolorido social característico da época [...]. AFrente Popular era muito mais um fenômeno dedefesa e suas formações heterogêneas exigiamcomo cimento de uma unidade, aliás precária, nãouma ideologia de combate mas o sentimento degenerosidade difusa, denominador comum detodas as correntes esquerdistas, que só é utilizadode forma calculada pelos quadros dirigentescomunistas. Esse clima particular de compromissoreinava na Frente Popular e se espelhava commuita fidelidade em La Marseillaise e também emA grande ilusão, filme igualmente sem vilões masonde se demonstrava que a demarcação das classessociais é mais nítida e profunda do que asfronteiras nacionais” (GOMES, 1982b, p. 330).

Assim, nos filmes a que assistia junto comPlínio Sussekind Rocha, na participação nosmovimentos culturais e políticos que eclodiam emParis, Paulo Emílio procurava absorver aefervescente atmosfera política e cultural queagitava a cidade - nela soube viver e dela soubetirar proveito. O jovem que desembarcarastalinista, conforme a norma do Partido ComunistaBrasileiro, teria contato com o “apocalipsestalinista” mediante a leitura da literatura dedenúncia e com o contato pessoal mantido comantigos bolchevistas dissidentes. Antônio Cândido,refletindo sobre a influência política de PauloEmílio, afirma que nosso autor manteve relaçõespessoais com dissidentes de esquerda, sobretudocom Victor Serge e Andrea Caffi, que o ajudarama “desenvolver uma atitude bastante crítica emrelação aos partidos comunistas, que atuavamsegundo os estritos interesses soviéticos, não osdo proletariado de seus países” (CÂNDIDO, 1986,p. 57). O depoimento de Antônio Cândido revela-

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nos uma aproximação importante para quepossamos compreender a formação da atitudepolítica de Paulo Emílio na cidade de Paris. Pormeio de Victor Serge e Andrea Caffi, Paulo Emíliomanteve contato com intelectuais e políticos quepromoviam um socialismo “irregular”,independente do imperativo modelo políticooriundo de Moscou.

É importante, aqui, ressaltarmos o peso dainfluência de Victor Serge e de Andrea Caffi navida e na obra de Paulo Emílio. Victor Serge chegouà França em 1936, um ano antes de nosso autor,após um longo exílio na Sibéria. Libertado porStálin, após uma série de pedidos e intervençõesde André Gide e de Romain Rolland, Victor Sergedesembarcou na França trazendo consigo adecepção e os pontos de vistas críticos em relaçãoao rumo da Revolução de Outubro. No seu livroDestin d’une révolution, publicado em Paris,Victor Serge denunciava a produção do regimesoviético “em contradição com tudo aquilo quehavia sido dito, proclamado, desejado, pensado,durante a revolução”, chegando a chamar ostalinismo de regime totalitário. Todavia, amanutenção da independência ideológica e a crençana sua convicção revolucionária resultaram tantono seu isolamento intelectual como numa vidamarcada por dificuldades financeiras. De certomodo, sua posição de absoluta solidão política e acrescente dificuldade econômica chamou a atençãodo jovem Paulo Emílio. É o que podemos observaratravés de Victor de Azevedo: “foi com VictorSerge que Paulo Emílio travou relações em Paris,verificando as dificuldades com que então ele vivia.Generoso como era, o emigrado brasileiro teveuma idéia: não seria possível a colaboração deVictor Serge para O Estado de São Paulo.Naturalmente seria pago em dólares... A idéia lheveio porque nessa mesma fase visitava a capitalfrancesa o diretor do grande diário, o jornalistaJúlio de Mesquita Filho [...]. O encontro, contudo,resultou satisfatório. Os objetivos de Paulo Emílioforam plenamente atingidos. Quando Victor Sergefaleceu na cidade do México, em novembro de1947, o Estado, ao pé de um breve telegrama demeia dúzia de linhas da Agence France Presse,que noticiava secamente o fato, publicou uma“Nota da Redação”, em que os traços biográficosdo extinto eram resumidos com objetividade einformações muito precisas. Na sua parte final,essa “Nota da Redação” advertia textualmente: “de1939 a 1940, esse notável revolucionário e escritor

colaborou em O Estado de São Paulo, com asiniciais K. V. (Victor Kibol’cic), escrevendointeressantíssimos artigos sobre política,especialmente européia e asiática” (AZEVEDO,1978, p. 16). Com Victor Serge, o jovem PauloEmílio conhecera os processos de Moscou, oassassinato de toda uma geração revolucionária(Zinoviev, Bukharin), o stalinismo. Todavia, nãosomente o desencantamento com a URSS de Stálinfoi absorvido das relações com Victor Serge: doexilado russo, Paulo Emílio manteve o gosto pelaindependência ideológica, a valorização do idealsocialista, a defesa da liberdade e da dignidadehumanas.

Semelhante desencantamento com o curso daRevolução de Outubro também era compartilhadopor Andrea Caffi. É o que podemos observaratravés da abordagem de Nicola Tranfaglia sobrea singularidade da participação de Andrea Caffino grupo Giustizia e Libertà na Paris dos anos de1932: “é Andrea Caffi que conhece melhor do queos outros a realidade soviética, quem escreve jáno segundo número dos Quaderni (março de1932) um longo artigo sobre a revolução russa,que Rosselli publica tomando nitidamente adistância uma vez que o escrito aparece comoapêndice ao fascículo com o título Opiniões sobrea revolução russa. Além do discursocircunstanciado que Caffi propõe, importa notara interpretação do regime staliniano comoverdadeira e própria negação do humanismosocialista e a afinidade evidente que o autorindividua entre aquele fenômeno e os outros‘monstruosos partos da nossa época’ como osfascismos” (TRANFAGLIA, 1995, p. 723). É nointerior da “crise de civilização e crise moral”,fórmula empregada por Carlo Rosseli, e adotadapelos outros membros do grupo Giustizia eLibertà , que Paulo Emílio reavaliou a suaconcepção de mundo e de ação política.

Não é preciso dizer que o depoimento de AndreaCaffi sobre a União Soviética de Stálin deve tercausado uma profunda autocrítica na concepçãode mundo do jovem comunista Paulo Emílio. Éemblemático o modo como nosso autor associa odesfecho trágico de sua idade do ouro com arevelação do stalinismo, conforme podemosobservar no artigo chamado Com Arnaldo Pedrosad’Horta, escrito em 1974: “na militância juvenilaprendi a admirá-lo e estimá-lo mas éramos entãoapenas companheiros empenhados. A amizadegratuita, irresponsável e para sempre, nasceu

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depois de cada um ter experimentado ao seu jeitoa revelação crucial do século – o apocalipse co-munista – que ferreteou tantas gerações, tambémpara sempre, e de uma forma que a mesquinhariaconservadora nunca compreenderá” (GOMES,1974, p. 162; sem grifos no original). Foi comAndrea Caffi que Paulo Emílio experimentou “arevelação crucial do século - o apocalipse comu-nista”, bem como com o amigo apreendeu sobrea crise dos regimes democráticos após 1914 e ototalitarismo, aguçou o não-conformismo, desen-volveu uma postura crítica com respeito ao soci-alismo e ao marxismo, adquiriu o gosto pela auto-nomia do juízo político e aprofundou o desejo deativa participação no destino de seu tempo histó-rico.

Nicola Tranfaglia cita uma outra passagem deAndrea Caffi, escrita nos Quaderni do agrupamentoantifascista Giustizia e Libertà, muito escla-recedora acerca dos posicionamentos políticos deCaffi e que, de certo modo, revela-nos algumasdas transformações políticas que sofria o jovemPaulo Emílio em Paris: “Andrea Caffi, porexemplo, que viveu diretamente a revolução deoutubro na Rússia e tem, por assim dizer, provadona sua pele a conseqüência das agitações ocorridasna maioria dos países no conflito mundial assinala,no final de setembro de 1932 nos Quaderni (n.4), que a peculiaridade do fenômeno nazista nãopode ser explicada simplesmente com a categoriada luta de classe. O exilado sublinhava, invés, acoexistência no movimento hitleriano da mitologiairracionalista e da exaltação da técnica e damoderna civilização da máquina” (TRANFAGLIA,1995, p. 720). Acrescentava ao problema dofascismo, da “crise da civilização e da crise moral”exposta desde 1914, o problema do stalinismo: “aditadura de Stálin é aquilo que é porque foiconstituída com os métodos da ‘inútil carnificina’e porque não tem encontrado ainda outra âncorade salvação que a centralização burocrática, omilitarismo, os arbítrios policialescos. Não é uma‘contraposição’ aos regimes de reação capitalistaque sofrem muitos países da Europa e da América;é um elemento daquela constelação reacionária;nela e por ela se sustenta” (idem, p. 723). Napostura socialista de Caffi ocupa um lugar centrala crítica ao Estado-nação entendido como umagigantesca máquina de opressão social e dedestruição da natureza e do homem. No intervalotemporal entre as duas guerras mundiais, Caffibuscou repensar o socialismo como força social

de libertação e emancipação do gênero humano,concebendo, assim, o socialismo como a con-tinuação dos acontecimentos culturais e políticosoriundos da Europa do século XVIII, sobremododos ideais universais da Revolução Francesa:liberdade, igualdade e fraternidade. O teor da duracrítica que Andrea Caffi tecia contra o fascismo eo stalinismo foi plenamente absorvido por PauloEmílio. Sua concepção de mundo socialistaindependente ou irregular que iria praticar no Brasil,após o seu regresso em 1939, é muito próxima domodelo que apreendeu nos anos de estada emParis. Num ensaio sobre Andrea Caffi escrito porGino Bianco, apontado por Nicola Tranfaglia,podemos visualizar no seu título uma claraaproximação entre ambos: Um socialista“irregolare”: Andrea Caffi intellettuali e politicod’avanguardia. Assim Bianco retrata o empenhopolítico de Andrea Caffi; de modo semelhante,poderíamos escrever a mesma frase para esboçaros contornos do empenho político que PauloEmílio realizou na sociedade brasileira.

Como conseqüência direta de tal posturaideológica independente desenvolvida com a ajudade Andrea Caffi e Victor Serge, nosso autor“chegou a uma visão fortemente anti-stalinista”,bem como “sem prejuízo da admiração pela figurae os escritos de Trotski, rejeitava também otrotskismo” (CÂNDIDO, 1986, p. 57). Repu-diando tanto o stalinismo como o trotskismo,avaliados como modelos centralistas, Paulo Emíliobuscava salvaguardar sua fidelidade à tradiçãocomunista, sobretudo para com as conquistashistóricas da Revolução de Outubro. Sua críticaao stalinismo, entendido como totalitarismo,almejava manter firme a paixão que sentia com o“enérgico fluxo progressista” oriundo de 1917.

Durante a sua estada na França, nos contur-bados anos trinta, Paulo Emílio valorizava osmovimentos políticos radicais que mantinhamvínculos com a originária tradição comunista. Foio que salientou, numa entrevista ocorrida nos anossetenta: “minha opção socialista era radical: só teriasentido um movimento socialista, revolucionário,que repudiasse, ao mesmo tempo, o comunismostalinista e a ambigüidade dos partidos socialistastradicionais [...]. O PSOR – Parti Socialiste OuvrierRévolucionaire – francês, de Marceau Pivert, seriao modelo”, sugerindo, ainda, à entrevistadora que“Você deve ler a Plataforma da nova geração, quefoi publicada em suplemento do Estadão, com oresumo das posições de nosso grupo na época”

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(BENEVIDES, 1979, p. 97).

O PSOP (Parti Socialiste Ouvrier et Paysan)fundado por Marceau Souverain Pivert era umaexpressão própria do conturbado clima interna-cional dos anos trinta na Europa. Em 1938 Mar-ceau S. Pivert rompeu com o Parti Socialistefundando uma “Esquerda revolucionária” cujo alvogirava em torno do seguinte programa de ação:“eu creio servir ao máximo os interesses do prole-tariado e da humanidade inteira perseguindo minhatarefa sobre dois planos, como havia feito desdeos vinte anos. Fazer compreender aos operáriosque o ideal de fraternidade universal não podetomar uma forma concreta, em nossa época, senãoatravés de um processo de uma revoluçãoproletária internacional à qual eles devem participarpara destruir o sistema capitalista e construir osocialismo. Fazer compreender aos trabalhadoresque suas aspirações revolucionárias não podematingir definitivamente o alvo, senão mediante umesforço permanente de observação científica dosfatos, da autocrítica, isto é, da laicidade filosóficaou da livre consciência” (apud RAYMOND, 1980,p. 30).

Na postura inconformista e no ímpeto revo-lucionário de Marceau S. Pivert, que reascendia achama da crença na revolução comunista comoemblema de uma filosofia da história que deveriaser realizada, Paulo Emílio encontrava um exemplode ação política na atmosfera em crise do finaldos anos trinta. No ideário de ação desenhado porMarceau Pivert estava presente uma decidida“condenação aos métodos sectários do trotskismo,de suas pretensões à hegemonia, sua tática dadesorganização [noyautage]. Ele rejeitou o partido-estado-maior centralizado e se manifestou pelaespontaneidade revolucionária da classe operáriaque um partido, avant-guarde democrático, deveestimular e não asfixiar” (ibidem). Relativo desin-teresse pelas Internacionais, repúdio à intolerânciaideológica e ao totalitarismo, valorização daautonomia dos pequenos partidos de esquerda comrelação aos interesses de Moscou, defesa de umsocialismo vivo que se orienta segundo as pecu-liaridades de cada país, enfim, tais eram as idéiaspresentes na concepção de mundo de MarceauPivert compartilhadas por Paulo Emílio.

Ainda no terreno especulativo a respeito dasinfluências que Paulo Emílio absorveu em Paris,acreditamos que Antônio Cândido identificou umachave importante, que nos ajuda na tarefa de

compreender a formação do empenho político dePaulo Emílio, ao revelar a sua aproximação com osocialismo democrático do movimento políticoitaliano Giustizia e Libertà dos irmãos Carlo e NelloRosselli. De fato, se examinarmos os textosescritos por Paulo Emílio no início dos anosquarenta, quando retornou ao Brasil, sobretudo oseu “Depoimento” na Plataforma da nova geraçãode Mário Neme e no “Manifesto” de fundação daUnião Democrática Socialista, veremos queexistem algumas semelhanças que devem seranalisadas. É o que procuraremos examinar notópico seguinte.

Nos dois anos em que viveu em Paris ocorreuo primeiro contato significativo de nosso autorcom o cinema. Plínio Sussekind Rocha foi o seumestre na adesão ao cinema, iniciando-o no juízode ver e entender o cinema como uma arte tãoimportante como as outras artes tradicionais. ComPlínio Sussekind Rocha, físico que realizava seudoutorado em Paris, Paulo Emílio assistiu às fitasclássicas do cinema como Outubro, Temposmodernos, A grande ilusão, aprendendo com oamigo a “ver filmes e de falar sobre cinema, deforma empenhada, militante” (GOMES, 1986b,p. 197; sem grifos no original), conforme aspalavras que usou para homenagear e definir seumestre em 1972. Contudo, na atmosferaefervescente do Front Populaire e da guerra civilespanhola, a política era o principal interesse dePaulo Emílio. A experiência com o cinema nãoalargaria o círculo inicial da paixão, ficando parao pós-guerra a passagem que daria em direção aassumir sua vocação, a de crítico profissional decinema. No curto intervalo de dois anos em quepermaneceu em Paris, nosso autor estabeleceu umforte vínculo com a política e o cinema.Poderíamos dizer que ao retornar da Europa, quemarchava rumo ao abismo de uma nova guerrade destruição total, a vocação para a política e apaixão pelo cinema formavam uma espécie deunidade na qual nosso autor encontrava subsídiose informações para como que se orientar nasociedade brasileira.

IV. EMPENHO POLÍTICO E DESEJO DE AÇÃONA SOCIEDADE BRASILEIRA

Empenho político e paixão pelo cinema, taiseram os dois interesses que Paulo Emílio cultivavaao regressar ao Brasil. A Europa mergulhada nopântano do sectarismo ideológico e às vésperasda realização de fato das sinistras palavras de

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ordem que grassavam no cotidiano, como“mobilização total” e “guerra total”, não era maisum lugar seguro para o jovem socialista.Desembarcando no final de 1939, nosso autortrouxe consigo um forte desejo de participarcoletivamente dos problemas da sociedadebrasileira. Contudo, o jovem comunista que sedesiludira com o stalinismo e que se decepcionaracom o trotskismo, não teve boa recepção na vidapolítica da provinciana cidade de São Paulo. Suanova posição política causava desconforto e mal-estar entre os companheiros da JuventudeComunista e no meio político da esquerda comoum todo. Desse modo, foi com os jovensuniversitários que pôde desenvolver seus novosvalores e a sua concepção socialista independente.Membro e mentor político dos jovens universitáriosque fundariam a revista Clima, sua ação políticamanifestou-se de modo similar no combate aofascismo e na luta pela redemocratização dasociedade brasileira1.

Em agosto de 1942 Paulo Emílio redigiu umeditorial na revista Clima chamado “Declaração”,no qual aproveitou a entrada do Brasil no estadode guerra para enfatizar a postura antifascista edemocrática do grupo de estudantes universitários.Nesse conturbado momento histórico, nosso autoriniciou seu texto afirmando uma alteraçãosubstancial na composição da revista, criada em1941, na qual seus membros haviam definido quenela “não seriam debatidos assuntos de política,nacional ou internacional. Esta orientação foiescrupulosamente seguida até o número 10. Climarecebeu, pediu e publicou ensaios, críticas e poesiasde intelectuais da mais variada procedênciaideológica, desde que não contrariassem a normade abstenção ideológica política estabelecida”(GOMES, 1942, p. 3). Criada na atmosfera políticararefeita do Estado Novo, a revista Clima surgiucomo um veículo de renovação cultural, de estudoscientíficos voltados para a compreensão das obrase dos autores que surgiam no cinema, na literatura,no teatro, na música e nas artes plásticas. Seuvínculo de nascimento era tecido diretamente como modernismo paulista conforme podemos obser-var no final do Manifesto de lançamento da revista,publicado no número inicial, no qual podemos ler

que, “para pôr em prática esse programa, con-tamos, porém, com o apoio dos mais velhos, da-queles que se interessam seriamente pelo futuro,daqueles que já lutaram – que devem lutar ainda,já que viver é lutar – daqueles que, apesar devencedores, não se fossilizaram, pondo-se acochilar sobre os louros traiçoeiros da vitória,daqueles que já se fizeram na vida, mas que aindanão se esqueceram do que isso lhes custou” (Cli-ma, 1941, p. 5-6).

O sentido originário da revista que preconizavaa “abstenção política” não significava que “osdiretores, redatores e colaboradores mais íntimosde Clima não tivessem uma unidade de vistasdiante dos problemas essenciais do nosso tempo”,conforme Paulo Emílio procura deixar claro logono início do editorial “Declaração”. Contudo, oestabelecimento da política de aliança do governode Getúlio Vargas com os países aliados permitiuque a norma inicial fosse rompida pelos membrosda revista Clima que, de ora em diante, sãoretratados como “moços intelectuais, e logo sol-dados”. Identidade clara e nítida que se mani-festava na seguinte palavra de ordem: “funda-mentalmente, a guerra de que agora participamosé uma guerra contra o fascismo” (GOMES, 1942,p. 3). Nesse artigo, Paulo Emílio utilizou a palavrafascismo para revelar algo mais do que o regimeideológico italiano. Seu emprego era usadotaticamente para diagnosticar as diversas formasde autoritarismo existentes na conjuntura políticainternacional: “Fascismo é o regime político ins-taurado notadamente na Alemanha, na Itália e naEspanha. Fascismo é o conteúdo político do movi-mento da ‘Union of Britsh Fascists’, de OswaldMosley; do movimento do padre Coughlin, naAmérica do Norte; do ‘Rexismo’, de LéonDegrelle, na Bélgica; dos partidos de La Rocque eDoriot, na França, e do integralismo, de Plínio Sal-gado e outros, no Brasil. Quisling e Laval sãofascismo. Velhas glórias militares decrépitas einconscientes, como Hindenburg e Pétain, tambémsão fascismo. Fascismo é o ataque do Japão àManchúria; é o ataque da Itália à Abissínia; é oapoio da Alemanha e da Itália aos facciosos espa-nhóis; é a invasão da Áustria e da Tchecoslováquia,é a fraqueza das grandes democracias diante dessainvasão — o pacto de Munique; é a invasão daAlbânia e da Grécia pela Itália; é o ataque daAlemanha à Polônia, Noruega, Dinamarca,Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Iugoslávia; é atraição de vastos setores das classes dirigentes e

1 Sobre a trajetória intelectual dos jovens universitários dageração Clima, ver, entre outros, Pontes (1998).

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militares da França; é o ataque da Alemanha àRússia; é o ataque do Japão aos Estados Unidos;é, finalmente, o ataque da Alemanha e da Itália aoBrasil” (idem, p. 4).

Nesta didática exposição panorâmica sobre ofascismo, em suas várias formas e nos maisdiversos países, nosso autor ressalta a brutalizaçãoda política como a principal característica desteregime político totalitário. De certo modo, buscavalançar farpas na direção dos defensores locais dapolítica de neutralidade e aos simpatizantes dofascismo no Brasil, na medida em que também osreduzia a um mesmo denominador, isto é, comoparte daquele “conteúdo político” comum presentenos movimentos fascistas dos anos trinta em paísescomo a Inglaterra, a França e os Estados Unidos.Sua intenção era clara: sem poder nomear comofascista o regime político do Estado Novo, devidoao estado de censura e repressão ainda existente,apenas insinuava ao leitor aquilo que era manifesto.Seu alvo era o de mostrar aos leitores a necessidadeobjetiva de combater o fascismo “no plano interna-cional e nacional”, pois “esta é uma guerra contrao fascismo”. Logo, caberia ao leitor a tomada deconsciência de que “os inimigos de Hitler e deMussolini, na Alemanha e na Itália, são nossosamigos. Os amigos de Hitler e de Mussolini, noBrasil, são nossos inimigos. Quando se fala dequinta coluna no Brasil, não se deve pensarunicamente em alemães, italianos e japoneses.Estes não são quinta coluna. São, em princípio,inimigos. A quinta-coluna característica é sempreformada por naturais do país. No Brasil, emprimeiro lugar, pelos integralistas. Os fascistas detodo o mundo têm um chefe, e este chefe é AdolfHitler” (ibidem).

Um outro elemento importante no seu texto éa crítica dirigida às Internacionais comunistas.Mencionadas apenas de passagem, pois nesseeditorial o alvo proposto era o de marcar a posiçãoenérgica e radical dos membros da revista Climacontra o fascismo, essa posição foi aprofundadano próximo número da revista no editorialchamado “Comentário”. Destacado por AntônioCândido como sendo “um escrito político impor-tante para o tempo, exprimindo a sua posição desocialista independente de base marxista, quealguns de nós adotariam por sua influência”(CÂNDIDO, 1986, p. 59), nele nosso autorenfatizou sua crítica ao stalinismo e às Interna-cionais comunistas, dizendo que “negamos aeficácia, para o progresso humano, diante das

novas condições que se abriram, do programa eda tática daquilo que foi um dia a TerceiraInternacional” (GOMES, 1943, p. 90). Essaruptura processou-se durante a sua estada emParis, como vimos no tópico anterior, quandoentão rejeitara o stalinismo e o trotskismo comomodelos únicos de ação prática e teórica docomunismo. Uma posição pioneira na época, quedespertou várias críticas de setores da esquerdaque seriam respondidas no editorial “Comentário”.

“Comentário” pode ser entendido como oprimeiro texto no qual Paulo Emílio esboçou asidéias políticas que aprendera na Europa durantea sua permanência em Paris. Sua redação é todavoltada para a afirmação da atitude antifascista dogrupo Clima presente no editorial “Declaração”.Comentando algumas críticas que foram dirigidaspelos comunistas e integralistas, Paulo Emílioprocura enfatizar com maior amplitude o raio desua concepção política. Respondendo às críticasfeitas por alguns membros do integralismo que ocensuravam pelo uso abusivo que fizera da palavrafascismo no editorial “Declaração”, Paulo Emíliocita algumas passagens dos livros publicados porMiguel Reale no início dos anos trinta, ABC dointegralismo e O Estado moderno, no qual esteevocava a missão histórica desenhada por Hitler eMussolini que “se universalizava, sacudindo a almainglesa com Mosley, a francesa com o ‘francismo’e o Coronel La Rocque, a holandesa, a polaca, aamericana, a mexicana, a polonesa, a belga, aaustríaca etc. etc., fazendo surgir, pela energia doBrasil novo, um maravilhoso movimento inte-gralista, orgulho do continente americano”(ibidem). Com a peculiar ironia que possuía,comentava Paulo Emílio que “não podemos agoraperder tempo no exame dessa inesperada distinçãoentre a alma polonesa e a alma polaca” procurando,antes, deixar claro através do próprio Miguel Realeo vínculo existente entre o integralismo brasileiroe a brutalização da política promovida pelo fascismoe o nazismo na Europa.

O diálogo com os setores da esquerda quecobravam de Paulo Emílio uma retratação pelacrítica que fizera às Internacionais era maisprofundo e denso. Seu interesse, aqui, não é o demarcar a fronteira com o inimigo, como o fezcom os integralistas, mas sim o de definir sua novapostura intelectual e política: “a nossa posiçãocrítica em relação à ortodoxia marxista e às suashabituais expressões políticas provocou, de umamaneira geral, reações sadias. É claro que os

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espíritos presos à rigidez da nova escolástica re-cebem sempre com desconfiança a expressão deum não conformismo. Aquelas raras pessoas quejulgam a crítica dos dogmas das internacionaishistóricas como um trabalho intelectual nefastoàs perspectivas humanas abertas pela causadefendida pelas Nações Unidas, aquelas queacreditam que se pôr em cheque as verdadesenvelhecidas redunda automaticamente noreforçamento das possibilidades fascistas - essaspessoas, que pretendem forjar as verdades inéditasdo futuro com as noções gastas do passado, essaspessoas, é claro, não podem nos aceitar. Nãopensamos absolutamente, com essas observações,em provocar polêmica. Isso seria de nossa parteum ato de má fé, porque sabemos perfeitamenteque esse gênero de polêmica é, nos dias quecorrem, impossível. Alguém poderia sugerir queesse tipo de reflexão é também válido para osfascistas. Nós respondemos que com os fascistasnão se trata hoje propriamente de polemizar, masde lutar” (idem, p. 89-90).

Nesse trecho podemos observar a presença dedois elementos fundamentais para o entendimentodos editoriais escritos por Paulo Emílio na revistaClima: o empenho político e a nova posturaintelectual crítica que surgia com a organizaçãocientífica do discurso adquirido na Universidadede São Paulo. Em Certidão de nascimento, PauloE. Arantes cita um depoimento de Antônio Cândidosobre a influência do professor de Filosofia JeanMaugüé nos jovens universitários da USP:“Discípulo de Alain, era um espírito extremamentelivre, que tencionava principalmente nos ensinar arefletir sobre os fatos: as paixões, os namoros, osproblemas de família, o noticiário dos jornais, osproblemas sociais, a política. E para isso utilizavalargamente reflexões e análises sobre literatura,pintura, cinema. As suas aulas eram extraordináriascomo expressão e criação, sendo assistidas porvárias turmas sucessivas de estudantes já formadosque não conseguiam se desprender do seu fascínio.Com ele fiz cursos sobre Kant, Hegel,Schopenhauer, Nietzsche, Max Scheler, Freud; detodos se desprendia uma espécie de inspiração queaguçava o senso da vida, da arte, da literatura, dahistória, dos problemas sociais” (ARANTES,1994, p. 65; sem grifo no original). Na constelaçãode autores que pensaram e criticaram o sentido eos limites do mundo moderno, Paulo Arantesacrescenta que “quanto a Marx (mencionadonoutros depoimentos) e Freud, é bem provável

que as aulas de Maugüé sobre eles figurem entreas primeiras tentativas universitárias de abordaresses autores à primeira vista refratários, na épocaum lance de ousadia em todos os sentidos” (idem,p. 66). Importa destacar a presença de autorescomo Kant, Hegel, Marx, que legitimaram asuperioridade do mundo moderno com relação aoantigo regime, autores que pensaram a construçãode novas formas de sociedade e de um novo sensode vida, sobretudo através da centralidade dapolítica na modernidade.

É o que podemos vislumbrar em Paulo Emílio,então responsável pela postura política da revistaClima, escrevendo editoriais e influenciandodiretamente a concepção de mundo de seusamigos, que desenvolveu uma abordagem críticasobre as Internacionais comunistas, construídatambém com o auxílio dos argumentos prove-nientes das novas ciências humanas que eramministradas pelos professores estrangeiros noscursos de Filosofia e Ciências Humanas. Tal pos-tura intelectual aparece nitidamente nestaabordagem sobre as Internacionais: “[...] negamosa eficácia, para o progresso humano, diante dasnovas condições que se abriram, do programa eda tática daquilo que foi um dia a TerceiraInternacional. Temos por ela um grande interessehistórico assim como pela Segunda ou pela Quarta.Respeitamos a dignidade de um León Blumprisioneiro e temos sempre presente o drama finalda vida exemplar do incorruptível León Trotski.Mas sabemos a função histórica da SegundaInternacional há muito terminada, e não conse-guimos nos interessar, senão intelectualmente,pelas abstrações políticas daqueles que se esfor-çam em acreditar numa Quarta Internacional. Noconjunto, olhamos com admiração para esse ciclode internacionais e, vendo perpassar por elas asmelhores energias do espírito, temos a convicçãode que colaboraram de maneira decidida para oenriquecimento do homem” (GOMES, 1943, p.90).

Assim define Paulo Emílio sua posição desocialismo independente, destacado das fórmulasoriundas do stalinismo, do trotskismo e do ideáriodas Internacionais. É importante ressaltamos,novamente, que a edificação dessa postura políticaera afirmada com o auxílio das ferramentasprovenientes das novas ciências humanas queeram ensinadas na Universidade de São Paulo. Nofinal do editorial “Comentário”, Paulo Emílioresponde à última objeção que fora feita pelos

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leitores ou adversários políticos, a saber, que oeditorial “Declaração” era substancialmentenegativo, contra o fascismo mas sem apresentarnovas diretrizes. Assim sendo, afirma nosso autorque, de fato, a redação anterior carecia de pro-postas positivas que agora seriam apresentadas.Nessa explanação final surge a similitude apontadapor Antônio Cândido entre Paulo Emílio e o ideáriodo grupo italiano Giustizia e Libertà dos irmãosCarlo e Nello Rosselli. A primeira aproximaçãoaparece quando Paulo Emílio estabelece a crençanos “princípios teóricos” dos ideais de liberdade eigualdade provenientes das tradições liberais esocialistas: “num plano, o mais geral possível,acreditamos em dois princípios teóricos funda-mentais que são defendidos pelo conjunto dasNações Unidas. Primeiro – a igualdade não sópolítica mas econômica de todos os homens.Segundo – o respeito devido à personalidadehumana, o direito da pessoa humana à liberdade[...]. No fascismo – que se opõe a esses doisprincípios, na teoria e na prática, pelas suas castasde super-homens e pelo esmagamento da perso-nalidade humana – no fascismo denunciamos operigo de ruptura histórica da civilização ocidental.Denunciamos o perigo e a possibilidade da mortedessa civilização ocidental. Denunciamos ocesarismo” (idem, p. 90-91).

Trata-se de um argumento importante, escritonum momento histórico ainda nebuloso, no qualnosso autor denuncia a concepção antidemocráticae anti-racionalista presente no regime fascista.Contra este adversário que promovia o culto aosuper-homem, o irracionalismo e o caos, a fugada história e a manipulação dos mitos, Paulo Emílioempenha-se na tarefa de resgatar os valoresfundamentais da civilização ocidental. Um em-penho político que ocorre mediante a valorizaçãoda história, das conquistas históricas que foramsolapadas pelos movimentos políticos totalitáriosnos anos trinta. Vejamos como essa explanaçãofeita por Paulo Emílio é próxima daquela que osirmãos Rosselli desenvolveram durante o exílio nacidade de Paris nos meados dos anos 30. Numartigo escrito em 1937, um mês antes de serassassinado pela milícia fascista em Paris, CarloRosselli, repensando o movimento à luz da vitóriado nacional-socialismo na Alemanha e naatmosfera da guerra civil espanhola, afirmava que:“Giustizia e Libertà é um movimento que possuium nítido caráter proletário. Não somente porqueo proletário, em qualquer parte, se mostra como a

única classe capaz de operar uma subversão deinstituições e de valores para os quais se propõe;não somente porque no seio do movimento oselementos proletários têm sempre o maior peso;mas porque na experiência concreta desta luta temdemonstrado toda a incapacidade e o esgotamentoda burguesia italiana como classe dirigente [...].Devemos nos definir simultaneamente comosocialistas, comunistas e liberais (socialista-revolucionário, comunista-liberal), de modo quepossamos reconhecer a vitalidade existente emcada uma dessas posições. No socialismo, vemosa força de ânimo de todo o movimento operário, asubstância de toda democracia real – a religião doséculo. No comunismo, a primeira aplicaçãohistórica do socialismo, o mito (infelizmente muitoenfraquecido), mas sobretudo a mais enérgicaforça revolucionária. No liberalismo, o elementode utopia, o sonho do prepotente, ainda que toscoe primitivo – a religião da pessoa” (apudTRANFAGLIA, 1994, p. 103).

Um dos principais argumentos presentes naconcepção do Socialismo liberal de Carlo Rossellié o juízo crítico dirigido sobre o stalinismo e sobreas Internacionais comunistas. O SocialismoLiberale de Carlo Rosselli pode ser entendido comoum impegno politico centrado na procura de umespaço comum entre as idéias na conturbada arenada ação política dos anos 30. Sua virtude maiorencontra-se na ampla disposição de somar asexperiências políticas contidas na história detradições tão distintas como o socialismo e o libe-ralismo. Mas como entendia tal possibilidade desíntese entre o binômio liberalismo-socialismo?Rosselli compreendia o liberalismo, basicamente,como uma valorização da autonomia e dos desejosdo indivíduo. Com relação ao socialismo, valo-rizava Rosselli a adoção da perspectiva de pensaro universal, o valor da realização prática do idealde igualdade política. O que poderia, então,significar a mescla de tarefas entre a concepçãodo liberalismo e do socialismo para Rosselli?Possivelmente, tratava-se de, primeiro, operar umamaturação na consciência civil dos indivíduos,tarefa proposta pelo liberalismo na defesa da auto-nomia da vontade, e, segundo, da universalizaçãoda igualdade política, tarefa do socialismo en-quanto força de mobilização civil das massas.Rosselli procurava entender as vantagens que tantoo liberalismo quanto o socialismo poderiam ganharno momento em que são somadas suas forças econquistas históricas. No raio de ação de seu

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pensamento, as idéias ganham potência à medidaque somam, e não enquanto servem como divisorde água e polarizadoras de verdades absolutas.Para Carlo Rosselli, a luta contra o fascismopossuía um lado prático através da criação de umaFrente Popular Italiana, que deveria incitar o povoitaliano à defesa da liberdade, combatendo,portanto, o regime de Mussolini com o intuito decriar uma sociedade livre e civil. Uma concepçãopolítica que acreditava na luta pela autoconquistada liberdade que surgiria através do combate atoda tentativa de supressão da liberdade pelosregimes totalitários.

Não é meu intuito afirmar que Paulo Emílioefetuou uma espécie de transplante ideológico,nem mesmo, insinuar que fosse um adepto doSocialismo Liberale de Carlo Rosselli, investigandouma pista apontada por Antônio Cândido a respeitoda eventual ligação entre ambos via Andrea Caffi,que o teria influenciado em Paris. Se não forçamosa mão, cremos que em “Comentário” podemosvislumbrar tal influência em quatro pontos: 1)combate enérgico ao fascismo mediante a criaçãode uma frente de resistência antifascista; 2) críticaao stalinismo e ao programa de ação dasInternacionais comunistas; 3) postura intelectuale política voltada para a síntese entre os princípiosda liberdade e da igualdade; 4) valorização daautonomia política fundada na especificidade decada país e desvinculada dos interesses deMoscou. No final do editorial “Comentário”,podemos observar claramente algumas seme-lhanças entre o discurso de ação de Paulo Emílioe as idéias dos irmãos Rosselli: “os princípios deigualdade e liberdade, transformados freqüen-temente pela história em antinomias, acham-se nomomento representados, ora um com mais desta-que, ora outro com mais ênfase, pelas três naçõesantifascistas mais enérgicas: Estados Unidos,Inglaterra e Rússia. A união dos três países noquadro das Nação Unidas para o esforço dedestruição do fascismo e de reconstrução posterioré um dos motivos que nos permitem esperar queo mundo melhor que desejamos construir se baseienuma síntese e numa efetivação final dosprincípios de igualdade e liberdade. Um mundoem que a igualdade baseada numa estruturaeconômica planificada não tenha como condiçãoo aniquilamento da liberdade. Um mundo em quea liberdade não precise estar necessariamentecondicionada pelo sistema capitalista de produção”(GOMES, 1943, p. 91).

Para o grupo de jovens universitários quemantinham a revista Clima em circulação, oseditoriais e a postura política de Paulo Emílioestimulavam a prática de um empenho intelectuale político. Antônio Cândido e Décio de AlmeidaPrado, em mais de uma ocasião, afirmaram ocrédito da formação política que possuíam paracom o amigo e mentor. Respondendo sobre a suaformação política, numa entrevista nos anos oitenta,Antônio Cândido definiu toda a importância doempenho político de Paulo Emílio afirmando quefoi ele “o fixador de idéias, o definidor da posiçãopolítica” que o “levou a não ficar nem stalinistanem trotskista, mas aceitar a posição preconizadapor Paulo de um socialismo democrático desin-teressado das Internacionais, procurando soluçõesadequadas ao país, empenhado na luta contra ofascismo, porque esta era a manifestaçãocontemporânea do cesarismo, oposto à tradiçãohumanista, que provinha do cristianismo atravésdas Revoluções dos séculos XVIII, XIX e XX”(CÂNDIDO, 1988, p. 32). Um empenho políticoindependente, tal era o sentido da ação políticadesenvolvida por Paulo Emílio no início dos anosquarenta, mas que se constituía através do diálogocom outras tendências políticas, na medida emque o momento histórico exigia a formação deuma frente única antifascista, combativa docesarismo nas suas várias formas. Uma concepçãode mundo que via no cristianismo uma forçarevolucionária e que buscava contribuir na tarefaimperiosa de restaurar a “trilogia clássica –liberdade, igualdade, fraternidade – que o ceticismoe as forças inimigas do progresso humano tinhamconseguido desmoralizar, terão sido arrancadaspelos fascistas dos edifícios públicos da Françapara, ainda uma vez, penetrarem no espírito e nocoração dos homens” (GOMES, 1943, p. 91).

V. DENTRO DO LABIRINTO DA MODER-NIDADE: O DESEJO DE AÇÃO POLÍTICA

O depoimento de Paulo Emílio Salles Gomesmarca um momento particular na Plataforma danova geração, livro que reunia os depoimentosdos jovens artistas e críticos que estreavam nocampo da cultura nos anos quarenta. Únicodepoimento que não foi publicado no jornal, devidoao fato de ser substancialmente político, nele épossível observar uma abordagem lúcida e variadade Paulo Emílio sobre a sociedade brasileira. Sequiséssemos usar uma imagem para expressar omotivo que estruturou o ensaio de Paulo Emílio,

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poderíamos dizer que se trata de um intelectualsituando, na linha de frente, as batalhas queestavam sendo travadas nos jornais, nos partidospolíticos clandestinos e na cultura brasileira. Detodos os depoimentos dos dois livros, seja noTestamento de uma geração seja na Plataformada nova geração, o de Paulo Emílio revela apresença de um empenho político que não podeser reprimido e que não se deixava cercear. Portodos esses motivos, seu depoimento foi o únicocensurado nos jornais e somente pôde aparecerno livro organizado por Mário Neme em 1945,quando a ditadura havia terminado. Assim, vere-mos um intelectual inquieto com o destino vaziooferecido pelo tempo monstruoso em sua volta,que se debatia pela defesa da liberdade e dasconquistas democráticas ameaçadas de extinçãopelas forças do fascismo e do nazismo. Um jovemque exercitava sua vocação política, portanto, queprocurava com essa vocação traçar uma posturaefetiva de ação num tempo histórico no qual, paramilhares de pessoas, o simples fato de poderdesejar já adquiria status de prazer realizado.

Paulo Emílio iniciou o seu depoimentomapeando as várias tendências das idéias políticasna sociedade brasileira, por meio da postura deobservação crítica. Para ele, o dado mais signi-ficativo do momento histórico era a inexistênciade uma “unidade ideológica em nossa geração”.Como vimos anteriormente, no momento históricomundial que estilhaçava as certezas e convicções,a vida ficara reduzida a uma dimensão pequena esem esperança de ação. Partindo dessa convicçãoPaulo Emílio procurou repensar as tendênciaspolíticas que ainda mantinham uma posição efetivana estrutura da sociedade brasileira e que, bem oumal, guardavam uma perspectiva de futuro. Assim,enumerou o integralismo derrotado pela adesãodo governo de Vargas a favor das forças aliadasque compunham as Nações Unidas, o catolicismoque procurava servir de tábua de salvação e oliberalismo inoperante e estéril das elites locais.Seu interesse era o de pensar um projeto políticopara a sociedade na qual a política nunca mostravao seu interesse à luz do dia e em projetos maiorese significativos. Nesse reino da confusão, PauloEmílio afirmava que: “é sabido que o meio decultura ideal para a proliferação fascista eneofascista é confusão. A confusão, sobretudo,entre os adversários [...]. Creio que é o momentode marcar uma posição diante da personalidadede Tristão de Athayde, o sr. Alceu Amoroso Lima.

Diante da importância do sr. Alceu Amoroso Limacomo orientador reconhecido de um considerávelnúmero de jovens da nova geração é necessáriodizer inicialmente que ele não pode merecerconfiança. Porque um homem com a sua respon-sabilidade e informação não poderia ter indicado,como indicou, aos jovens católicos brasileiros comvocação política o caminho integralista” (GOMES,1945, p. 282-283). Marcar posição e assumirconseqüências, eis um itinerário sempre presentena trajetória política de Paulo Emílio. Um outroponto importante na estrutura da crítica de PauloEmílio foi a procura incessante pela identidade desi mesmo, seja através do contraponto com ooutro, seja numa aventura que se iniciou solitáriarumo a um ideal de coletividade a ser descoberto.Na afirmação de que é preciso demarcar posiçãocom o pensamento de Tristão de Athayde era aprocura da afirmação da identidade que estava emquestão, e que era, por excelência, o terreno ondePaulo Emílio atuava com mais vontade para agir ecriticar.

Na seqüência da crítica dirigida ao catolicismoe ao liberalismo, ideologias que não possuía forçae autonomia para sugerir caminhos alternativospara o Brasil, Paulo Emílio dirigiu a sua atençãopara a análise da esquerda, promovendo umaimportante crítica sobre a sua geração. Nessa partedo depoimento, encontramos um traço que lhe émuito caro, a saber, o ato de refletir sobre asexperiências vividas procurando compreender e,portanto, dominar aquilo que ocorrera no passadorecente. Assim, discorrendo sobre a esquerda,nosso autor narrou a experiência que compartilharaem 1935 na Juventude Comunista e na prisão doParaíso, conforme podemos observar: “passadosem revista os setores secundários, podemos entrarnaquele que tem realmente significação pelaqualidade intelectual de muitos de seus membros:a corrente de esquerda da jovem intelectualidadedo Brasil. Também neste campo delimitado nãoexiste unidade de pensamento. Pior do que isto,há uma grande confusão” (idem, p. 284).

Em seu conjunto tratava-se de uma exposiçãopanorâmica das diferentes ideologias contidas nocenário nacional como o integralismo, catolicismo,liberalismo e socialismo, buscando mostrar aoleitor o estado e o valor de cada qual na conjunturapolítica brasileira. O que se iniciou como um painelilustrativo acabou por tornar-se uma significativadescrição de uma chave importante para oentendimento de uma dinâmica própria da vida

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intelectual e política brasileira, a saber, a fragilidadedo engajamento político do intelectual e o seuestado de disponibilidade moral e política. Nobalanço crítico do passado político recente PauloEmílio descreveu as contradições e alienaçõesvividas nos anos seguintes ao movimentoesquerdista de novembro de 1935, dizendo que“Os moços que têm hoje pouco menos ou poucomais de trinta anos fizeram uma primeiraaproximação com as idéias políticas e sociais deseu tempo há uns dez anos atrás. No extenso esuperficial debate de idéias sociais, literárias,artísticas e científicas (marxismo, psicanálise, pós-modernismo artístico etc.) que acompanhou avitória da também extensa e superficial revoluçãode 1930, avultava o interesse em torno da Rússiaforjada pela revolução de outubro de 1917 [...].Falava-se muito em dialética mas dificilmente seaprendia nesses meios a pensar dialeticamente. Masamava-se a Rússia. Amava-se a Rússia nos doiscampos. Através do entusiasmo pelas realizaçõesstalinistas, ou pelo criticismo trotskista, amava-se a Rússia” (idem, p. 285-286).

Contudo, malograda a Revolução de 1935,“Vieram os dias terríveis, e passados alguns anosdesapareceu no Brasil toda a espécie de organizaçãopolítica legal ou ilegal. Aqueles que mais profun-damente se haviam integrado no Partido, e viverama sua penosa dissolução interna, tinham a sensaçãode uma completa esterilização interior, quando istona realidade era uma impressão passageira, e elessaíram da prova tremendamente enriquecidos.Outros se transformaram em autônomos [sic],com o pensamento e o riso mecanizados, e o brilhodos olhos perdido. Outros ainda fugiram para cadavez mais longe, para as Guianas e para a loucura.E para alguns esses processos lentos precisaramser vividos dentro da geografia limitada das prisões.

Com a maioria, entretanto, dos jovens inte-lectuais das classes médias ou burguesas, nãoaconteceu nada disso. Eles seguiram suas vidaspessoais e houve um momento em que aparen-temente não havia mais na maioria deles, nenhumamarca do passado. Pelo fato de nunca teremestado completamente integrados no Partido, eportanto sem ligação profunda com a massa dehomens sobre a qual o Partido se apoiava, não foidifícil a esses jovens se desligarem a tempo, e noscasos em que houve a continuação de um processopolítico este se desenvolvia livremente no planoda consciência. Para estes o rompimento era sóum drama de consciência [...]. Alguns viajaram,

todos mais ou menos se lançaram pelos várioscaminhos do conhecimento científico e artísticos,da física à psicanálise, da pintura ao cinema.Conheceram o amor. Foram independentes, forammesmo mais do que isso. Conheceram a gratuidadee a disponibilidade, com as facilidades que lhespermitiam as suas condições de classe. Puderamse dar ao luxo de usar o processo de conhecimentoque consiste em acreditar-e-depois-não-mais-acreditar naquilo pelo que momentaneamente seestá interessado” (ibidem).

Na reflexão crítica do movimento comunistade 1935, são várias as questões apresentadas porPaulo Emílio Salles Gomes: crise da modernidade;amor pela Rússia como nova expressão domoderno; passado que se apaga na memória dosindivíduos sem deixar vestígio; engajamentopolítico que se desdobra no nível ameno daconsciência subjetiva e que se desfaz conforme aintensidade dos conflitos objetivos em cena; evasãoda realidade como norma. Nesse longo trecho,emotivo e límpido, o que está em questão é o frágilengajamento político do intelectual brasileiro declasse média. A debilidade da sua orientação e arenúncia à luta política comum a esse tipo deintelectual serve como uma expressão da carênciade senso político que reina solto na sociedadebrasileira, diagnosticada por Paulo Emílio com aboa fórmula “acreditar-e-depois-não-mais-acreditar naquilo pelo que momentaneamente seestá interessado”. Uma frase que ainda hoje poderiabem ser escrita para diagnosticar a fragilidade demuitos “intelectuais” na sociedade brasileira.“Intelectuais” tão duramente criticados por PauloEmílio pois renunciaram ao que há de mais carono papel do intelectual: a consciência histórica.Livre de qualquer vínculo com o passado e imunea qualquer sentimento de responsabilidade acercado curso do presente, acreditando e depois nãomais acreditando “naquilo pelo que momen-taneamente está interessado”, regride o falsointelectual à cômoda posição no interior da torrede marfim.

Criticando a postura rígida do dogmatismo quecercava os homens de esquerda, principalmenteo stalinismo, Paulo Emílio rejeita as poucas opçõeshistóricas apresentadas pelas forças de esquerdaportadoras da perspectiva de futuro. Sua críticaprocurava valorizar o sentido originário da Revo-lução Russa como um momento histórico quedeveria ser resgatado para oxigenar as então atuaisconcepções dogmáticas e sectárias. No seu

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esforço de pensar a conjuntura política nacional einternacional, Paulo Emílio promoveu umarecuperação analítica renovadora do passado,enaltecendo as conquistas históricas que deveriamser mantidas a todo custo pelas forças demo-cráticas. Desse modo, enfatizou os princípios daliberdade e da igualdade como conquistasameaçadas no interior do conflito mundial e, demaneira velada, pela ditadura de Vargas. Para ele,os países aliados representavam a junção dos ideaisde liberdade e de igualdade de condições (umafórmula do tipo (liberdade) + (igualdade) = (Ingla-terra, França e Estados Unidos) + (União Sovié-tica)), e aqueles que não se alinhavam com essesideais estavam do lado da opressão e da barbárie.Numa frase muito significativa, afirma que “aosnossos dirigentes, eu sugeriria que contribuíssempara isso com a promulgação de um decreto deanistia e liberdade de imprensa, seguidos deliberdade de organização política para as oposições.Às personalidades políticas da oposição, tantoliberais como esquerdistas, eu sugeriria uma linhade reivindicações em relação aos nossos dirigentesque facilitasse a hipótese de uma orientação comoa que ficou expressa na sugestão anterior. Aindarestam muitos problemas que exigem um estudourgente e que se enquadrariam bem num inquéritocomo este. Por exemplo: a questão da participaçãodo intelectual e da torre de marfim, de que se falatanto hoje e que tem sido sempre desenvolvida deuma maneira errada. Sem falar de toda uma sériede problemas literários e de estética. Estes últimosficariam deslocados neste depoimento. Estou,aliás, convencido de que por maiores que sejamas realizações que possam estar reservadas à minhageração no campo literário, artístico e científico,esse conjunto não pode deixar de aparecer comoum detalhe, diante do destino político, militar ereligioso de uma juventude chamada a participardo desaparecimento de um Brasil formal e donascimento de uma nação” (idem, p. 292; semgrifos no original).

Na conclusão de seu depoimento, Paulo EmílioSalles Gomes chama a atenção para a necessidadeimperativa da soma de esforços num tempo quepoderia transformar-se em numa opressãoabsoluta, se vingasse a promessa nazista doimpério dos mil anos. No seu argumento podemosestabelecer a presença de duas batalhas em doisplanos, no internacional e no local. No planointernacional, tratava-se de derrotar o fascismo eo nazismo e, no plano local, derrubar a ditadura

de Vargas e, sobretudo, lutar pela extinção “de umBrasil formal e do nascimento de uma nação”. Umprojeto moderno2, sem sombra de dúvidas,voltado para a construção de uma sociedade naqual os valores universais que fundam a eramoderna, a liberdade e a igualdade, existissem demodo real, efetivo e pleno. Um projeto de fôlego,que se iniciava mediante a efetiva compreensãodo passado histórico, passo primeiro em buscade orientação e posicionamento no presente. Afinal,como lutar pelo surgimento de uma efetiva naçãosem a orientação advinda da compreensão daorigem dos problemas históricos? Como fazervingar nas terras esterilizadas pelo fogo tenaz doautoritarismo e do passado escravocrata os direitosuniversais que constituíam o homem e a sociedademoderna? Como encontrar uma fórmula local deum socialismo revolucionário que levasse em contaa necessidade de construção das liberdadesdemocráticas?

No momento em que o amanhã estavaameaçado de não existir, Paulo Emílio portava-secomo um intelectual empenhado na linha de frentedas várias batalhas que deveriam ser travadascontra o pensamento reacionário. Numaobservação de Antônio Cândido a propósito dePaulo Emílio podemos encontrar uma síntese doespírito de luta que fazia surgir no interior da revistaClima: “inquietação e fervor; busca difícil de umaação socialista compreensiva e eficaz, semsectarismo mas sem transigência; antistalinismo,mas fidelidade à Revolução Russa; marxismo comobase, mas receptividade às correntes filosóficas epolíticas do século; como tarefa imediata, lutacontra o Estado Novo e o fascismo, seu modelo.Creio que era mais ou menos este clima intelectuale afetivo que banhava as suas idéias e que eleirradiava” (CÂNDIDO, 1986, p. 61). Nessedepoimento de Antônio Cândido podemos verressaltado o empenho político que Paulo Emílioprojetou ao longo dos anos quarenta no combateao fascismo e na luta pela redemocratização dasociedade brasileira, um retrato do projeto de açãoque os jovens universitários iniciavam em Climaa partir dos editoriais escritos por nosso autor.

2 Sobre as idéias políticas do grupo Clima ver, entre outros.Cândido (1977), Mota (1977), Arantes (1992) e Lafer(1992).

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Quando lemos os 14 números da revista, lança-dos entre 1941 e 1944, encontramos a presençade um processo de formação de uma nova identi-dade do intelectual na cidade de São Paulo.

VI. O GOSTO PELO CONCRETO

Em 1944 Paulo Emílio foi escolhido como ora-dor da turma de bacharéis da Universidade de SãoPaulo. Todavia, nosso autor redigiu um discursovoltado para enfatizar a necessidade de abater de-finitivamente o Estado Novo e tornar impossívelqualquer retorno ao estado ditatorial. Conferindoargumentos de alcance coletivo aos esforços deconstrução de uma sociedade democrática, o seudiscurso em nada lembra uma cerimônia marcadapela pompa e festividade dos formandos e convi-dados. Seu conteúdo é todo ele político, e nãoseria um exagero dizer que mais se parece comum discurso de persuasão política: “as necessida-des políticas do momento se exprimem numa pa-lavra: Democratização. Democratização significamuito. Significa levar o Brasil a um regime legal,dotado de suficiente dinamismo para todas astransformações. Democratização significa abrir odebate mais amplo e livre sobre todos os proble-mas políticos, sociais, econômicos e culturais danação. Democratização significa que este debatenão pode se processar sem liberdade de impren-sa, de reunião e de organização de partidos políti-cos. Democratização significa a completaintegração na vida política do país, das forças de-mocráticas, conservadoras, liberais ou da esquer-da. Democratização significa anistia aos presos eexilados políticos. Ao nosso ver, são grandes osmales que o regime do Estado Novo causou aoBrasil [...]. Cremos na democracia. Cremos naliberdade cada vez maior para o homem. Cremosna igualdade cada vez maior entre os homens.Sentimo-nos solidários com todas as forças queno mundo trabalham para a emancipação humana.As tiranias e as explorações do homem serãovarridas da face da terra” (GOMES, 1978b, p.20).

Seu discurso foi formulado por meio deargumentos coletivos, chamando os jovensuniversitários à luta pela eventual reorganizaçãodemocrática da sociedade brasileira no pós-guerra.Como podemos ver, Paulo Emílio utilizouabusivamente a palavra “democracia” para indicarsua inexistência na vida cultural e política brasileira.Um alvo que deveria ser construído por suageração, tal era a crença que possuía e buscava

ressaltar no discurso de formatura. Para PauloEmílio, no mundo em crise e no pântano dogolpismo e autoritarismo construído pelo EstadoNovo, a função do intelectual era a de lutar pelaefetiva democratização da sociedade brasileira.Uma tarefa histórica que acreditava ser overdadeiro destino de sua geração. Vimos que noseu depoimento à Plataforma da nova geraçãonosso autor concluiu dizendo que “estou, aliás,convencido de que por maiores que sejam asrealizações que possam estar reservadas à minhageração no campo literário, artístico e científico,esse conjunto não pode deixar de aparecer comoum detalhe, diante do destino político, militar ereligioso de uma juventude chamada a participardo desaparecimento de um Brasil formal e donascimento de uma nação” (GOMES, 1945, p.293). Ao deslocar o acento da sabedoria edificantedo douto para a arena da luta política, farpa dirigidaà castidade política do intelectual brasileiro bem-situado au-dessus de la melée, nosso autor redigiaum importante manifesto a favor de uma culturapolítica militante empenhada na tarefa deconstrução de uma efetiva sociedade democrática.

A palavra de ordem lançada no final dodepoimento à Plataforma da nova geração,“participar do desaparecimento de um Brasil formale do nascimento de uma nação”, seria plenamentedesenvolvida no Manifesto da União DemocráticaSocialista. A União Democrática Socialista surgiano clima de esfacelamento do Estado Novo e,sobretudo, com o acirramento das divergênciasideológicas entre os participantes da Frente deResistência contida na União DemocráticaNacional. Com o processo de derrocada do EstadoNovo chegava o momento do acerto de contasentre os liberais, os socialistas e os comunistas,até então aliados práticos na resistência à opressãodo Estado Novo. A respeito desse momentohistórico, da ruína da ditadura e dos atritos nacomposição política no interior da UDN, observavaPaulo Emílio que “começamos a ter reuniõesdecisivas, nas quais nossas diferenças com osliberais, antes irrelevantes, revelavam-se cruciais.Se a defesa do stalinismo nos separava doscomunistas, a defesa do capitalismo nos afastavados liberais. A fase das coisas prioritariamentepráticas passara” (BENEVIDES, 1979, p. 95).Logo, com o fim da atmosfera de compromissopolítico comum compartilhado com os liberais eos comunistas surgia na cidade de São Paulo aUnião Socialista Democrática.

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Escrito em 1945, mas originário do clima defermentação política da resistência contra o EstadoNovo, o Manifesto da União DemocráticaSocialista esquadrinhava as tarefas e os valoresdo socialismo democrático na sociedade brasileira.Antônio Cândido, relatando o clima político emque surgiu esse Manifesto, recorda que, “emboraexprimisse posições do grupo, Paulo o elaboroude maneira pessoal com base nas suas idéias,englobando contribuições de Antonio CostaCorreia e Paulo Zingg. O manifesto exprimia umaesquerda lúcida, realista, e independente, coroandodois anos de tateio e agitação clandestina”(CÂNDIDO, 1986, p. 64). Paulo Emílio condensoujá na primeira frase a finalidade do movimento aodizer que “no Brasil nunca houve democracia”. Aorigem aqui é o fim, no caso a inexistência dademocracia era diagnosticada como a meta quedeveria ajudar a construir mediante uma efetivaluta pela democratização da sociedade, tarefa essaque somente seria possível mediante a instauraçãode um “regime socialista, por uma democracia semclasses”. Contudo, a prioridade ainda era “aliquidação definitiva do Estado Novo, cujoaparelhamento de repressão continua de pé, e ocombate às manobras continuístas do ditador”,ressaltando que “a destruição definitiva do fascismosó estará consumada depois de reformas políticas,econômicas e sociais, pois o predomínio dasoligarquias poderá conduzir-nos à instauração deuma nova ditadura” (GOMES, 1986a, p. 104).Destruir completamente todas as influências doEstado Novo, nesse momento podendo seridentificado como um regime do tipo fascista,significava combater a estrutura política, social eeconômica construída e reformulada pelasoligarquias brasileiras. Logo, no momento em queo Estado Novo estava em processo dedesmoronamento, importava lutar pela “instalaçãode um regime estável, capaz de resistir a futurasinvestidas das forças reacionárias, porém dependede uma exata compreensão das bases sociais doEstado Novo e dos problemas da sua liquidação”(idem, p. 102-103).

No Manifesto, Paulo Emílio estabelecia que aorientação política do movimento deveria estar“estritamente de acordo com as peculiaridadeshistóricas e sociais do Brasil, longe das fórmulasesquemáticas e dos sectarismos facciosos” (idem,p. 101-102). Socialismo democrático independenteque se orientava pela necessidade de estudo econhecimento da realidade brasileira, tal era a con-

cepção política de Paulo Emílio na metade dosanos quarenta. Na verdade, a defesa do socialismodemocrático significava um esforço duplo quepartia da tarefa de repensar o socialismo, aomesmo tempo que este deveria ajudar a redefiniros sentidos das abstrações que reinavam soltas nanação malformada. Repensando o sentido dosocialismo democrático desenvolvido pelosmembros da UDS nos anos quarenta – processoque era capitaneado por Paulo Emílio –, AntônioCândido comentou que “[...] fiz parte de um grupode jovens que tentou, obscura e por vezespateticamente, com dilacerações e tensões de todotipo, encontrar a fórmula de um socialismo de teorrevolucionário que não sacrificasse, no processoda sua construção, as liberdades democráticas.‘Quadraturas do círculo’, ‘sonho de intelectualpequeno-burguês’, ‘ideologia de social-traidores’,– eis alguns qualificativos que recebíamos, à direitae à esquerda. Achávamos que era preciso superaro sistema capitalista, promover a humanização dasmassas escravizadas e abrir para elas o jogopolítico; achávamos que era preciso, numa palavra,fazer a revolução. Mas achávamos também que odireito à integridade física, a liberdade individual,o voto desimpedido, a liberdade de expressão, ohabeas corpus etc. não eram traços inerentes àcivilização burguesa, que pudessem serdescartados à vista de fins maiores. Mas aconquista da humanidade, a serem preservadasem qualquer regime e completadas por outrosprincípios mais recentes, como liberdade sindical,direito de greve, participação nos lucros etc. Ofato de terem sido desenvolvidas por teóricosburgueses, na fase da ascensão ideológica daburguesia, não lhes tira o caráter de valores‘gerais’” (CÂNDIDO, 1977, p. 37).

Um programa político de fôlego, que nãoresistiria às “dificuldades de arregimentar ecoordenar as tarefas para a luta eleitoral que seanunciava” (CÂNDIDO, 1986, p. 65). Dissolvidaa UDS em 1945, Paulo Emílio ainda participariada Esquerda Democrática juntamente com osamigos da revista Clima Antônio Cândido, Déciode Almeida Prado e Lourival Gomes Machado.Todavia, sua participação foi reduzida e sem omesmo brilho e estímulo que manifestou em outrosprojetos políticos.

Numa frase escrita por Antônio Cândido noensaio sobre Arnaldo Pedrosa d’Horta, podemosvislumbrar o sentido da participação política queambos realizaram na União Democrática Socialis-

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ta. Segundo ele, “passamos juntos por muita mu-dança, lutamos horas sem conta em lutas semperspectivas, esperamos sem esperança colheitasque não brotaram, ficamos homens numa ditadurae envelhecemos noutra” (CÂNDIDO, 1993, p.196). Drama da condição de intelectual quejuntamente com o amigo Paulo Emílio desem-penhou nos anos quarenta, “lutando semperspectivas” pelo socialismo democrático numasociedade na qual o liberalismo não existia demaneira efetiva e real. De certo modo, o curtoperíodo de existência da União Democrática So-

cialista pode ser compreendido como uma das“colheitas que não brotaram”, fruto de um empe-nho político que não conseguia ultrapassar os li-mites constritores da dura realidade brasileira.Assim, o fim da União Democrática Socialistamarca na vida de Paulo Emílio um ciclo que estavapor ser encerrado. Um outro ciclo estava sendogerado e seria aberto com a sua viagem rumo aocinema, na Paris do pós-guerra.

Recebido para publicação em 26 de setembro de 2001.Artigo aprovado em 17 de novembro de 2001.

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