educaÇÃo e emancipaÇÃo: ador o, crÍtico da …

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EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO: ADOR O, CRÍTICO DA SEMICULTURA "0pensamento aguarda que. um dia. a lem- brança do que foiperdido venha despertá-Ia e o transforme em ensinamento". Resumo: A sociedade administrada dificulta cada vez mais a sobrevivência da dimensão emanci- patória da formação. Com efeito, a semiformão apresenta-se eomo oarauto da liberdade. mas na verdade auxilia a manutenção da desigualdade e da dominação. Contudo, Adorno jádizia que se a integração é uma ideologia, é também, como ideologia, desmoronável. Portanto. é no espírito dessa assertiva quese conserva o objetivo deste artigo, a saber:contribuir para a iden- tificação, nos escritos deAdorno, de uma concepção educacional emancipatória que poderia auxiliar arealização daaUlO-reflexão ctica da formação (Bildung) que se converteu na semifor- mação (Halbbildung). Abstract: A managed society makes the survival 01' emancipatory education moredilTicult. As a malter 01' fact. semieducation, seeks toappcr as the herald 01' freedom, but brings about only inequality and domination. But adorno already saidthat ifinlegration is anideology, destroyable. The goal of this article must beseen in the contexl 01' thisassertion, namely, to contribute to the identification, in Adorno's wrilings, of a conception of emancipatory education that might help the accomplishment ofcritieal self-reOection in an education (Iiterally: formation. Bildung) whichhas literally become semieducation (semiformation. Halbbildung). Keywords: Semiculture. semieducation. semiformation. cultural industry, criticaltheory. Theodor W. Adorno. As reformas pedagógicas por si são in- suficientes paraa transformação radical do processo de difuo da semicultura. É com esse argumento, aparentemente desalentador, que Adorno inicia o texto "Theorie der Halbbil- dung" 2 Enquanto não se modificarem as con- dições objetivas. haverá um hiato entre as pre- tenes das propostas educacionais reformis- tas e suas respectivas aplicações. De fato, há uma certa dicotomia entre teoria e prática no debateeducacional que se aferra na tendência desubordinar a teoria a um certo imediatismo, cuja compreensiva impaciência pode se mclamorfosear numa irreOetida catás- trofe. Mas, justamente porqueo pensamento se encontra falsamente reconciIiado com a real ida- de, torna-se possível realizar asua autocrítica, procurando compreender quais foram os fato- res que conduziram ao seu processo de embrutecimenlO. Tendo porbase essa premis- sa, podemos observar uma importante cOlllribui- *. Profcssor-adj unto do Departamento deEducação da UFSCar.

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EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO:ADOR O, CRÍTICO DA SEMICULTURA

"0 pensamento aguarda que. um dia. a lem-brança do que foi perdido venha despertá-Iae o transforme em ensinamento".

Resumo: A sociedade administrada dificulta cada vez mais a sobrevivência da dimensão emanci-patória da formação. Com efeito, a semiformação apresenta-se eomo o arauto da liberdade. masna verdade auxilia a manutenção da desigualdade e da dominação. Contudo, Adorno já diziaque se a integração é uma ideologia, é também, como ideologia, desmoronável. Portanto. é noespírito dessa assertiva que se conserva o objetivo deste artigo, a saber: contribuir para a iden-tificação, nos escritos de Adorno, de uma concepção educacional emancipatória que poderiaauxiliar a realização da aUlO-reflexão crítica da formação (Bildung) que se converteu na semifor-mação (Halbbildung).

Abstract: A managed society makes the survival 01' emancipatory education more dilTicult.As a malter 01' fact. semieducation, seeks to appcr as the herald 01' freedom, but brings aboutonly inequality and domination. But adorno already saidthat if inlegration is an ideology,destroyable. The goal of this article must be seen in the contexl 01' this assertion, namely, tocontribute to the identification, in Adorno's wrilings, of a conception of emancipatory educationthat might help the accomplishment ofcritieal self-reOection in an education (Iiterally: formation.Bildung) which has literally become semieducation (semiformation. Halbbildung).

Keywords: Semiculture. semieducation. semiformation. cultural industry, criticaltheory.Theodor W. Adorno.

As reformas pedagógicas por si só são in-suficientes para a transformação radical doprocesso de difusão da semicultura. É com esseargumento, aparentemente desalentador, queAdorno inicia o texto "Theorie der Halbbil-dung"2 Enquanto não se modificarem as con-dições objetivas. haverá um hiato entre as pre-tensões das propostas educacionais reformis-tas e suas respectivas aplicações.

De fato, há uma certa dicotomia entre teoriae prática no debate educacional que se aferra na

tendência de subordinar a teoria a um certoimediatismo, cuja compreensiva impaciênciapode se mclamorfosear numa irreOetida catás-trofe. Mas, justamente porque o pensamento seencontra falsamente reconci Iiado com a real ida-de, torna-se possível real izar a sua autocrítica,procurando compreender quais foram os fato-res que conduziram ao seu processo deembrutecimenlO. Tendo por base essa premis-sa, podemos observar uma importante cOlllribui-

*. Profcssor-adj unto do Departamento de Educaçãoda UFSCar.

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ção de Adorno ao pensamento filosófico-edu-cacional: a de que os processos educacionaisnão se restringem ao necessário momento dainstrução, mas que certamente o transcendem.Esse tipo de raciocínio nos conduz à delimita-ção do objetivo deste artigo, a saber: contribuirpara a identificação, nos escritos de Adorno, deuma concepção educacional emancipatória quepoderia auxiliar a realizaçãoda auto-rellexãocrí-tica da formação (Bildung) que se converteu nasemiformação (Halbbildung).

A sobrevivência da formação, a qual Ador-no se refere no final do texto da Teoria da

Sel1liCllltllra,poderia ser legitimada também poruma concepção educacional que, ao negar o pro-cesso de negação de suas potencialidades, insur-gir-se-iacontra a suaprópriafetichização.A recu-peraçãoda dimensão emancipatóriada formaçãoestá condicionada à necessidade de que o con-ceito forneça condições propícias para a sua pró-pria transcendência quando remete ao não-conceitual, ou seja: quando é rompida a barreirado pensamento que se julga senhor de si ao per-mitir expressar o reca1cadoque nunca deixou dese fazer presente, sobretudo se a investigação detal recalque depara-se com o sofrimentohumanoque foi sufocado diante do fascínio das maravi-lhas tecnológicas que nos são apresentadascomoas únicas redentoras da nossa desumanização.

A concepção educacionalemancipadora de Adorno eo desejo de resistência à barbárie

A opção pelo aprofundamento da concep-ção de educação de Adorno justifica-se pelarelevância de suas contribuições para a pro-blemática educacional nas mais variadas for-mas - artigos e palestras nas escolas, univer-sidades e estações radiofônicas -. bem comopela sua influência marcante no debate educa-cional atual. Para o frankfurtiano, a educaçãotem por objetivo a emancipação. Percebe-seuma defesa radical do resgate da dimensãoemancipatória da formação (Bildung) em tem-pos nos quais predominam situações que imo-bilizam quase que por completo suas duas fa-ces centrais: a continuidade e temporal idade.

A continuidade refere-se à importância de queos conteúdos culturais permaneçam presentesno decorrer do processo ensino-aprendizagem.O não-presente não pode e não deve se trans-formar num ausente.

Contudo, é o que ocorre quando nos de-frontamos com a maneirapelaqual a semiculturase difunde. Ela exige a memorização de fórmu-las. datas e nomes que serão rapidamente es-quecidos, mediante a apresentação de um'"novo" conteúdo que precisa ser absorvidoimediatamente, evitando a religação dessasmesmas fórmulas e conceitos com a história eos interesses da humanidade. A memorizaçãodos conteúdos não deixa de ser uma etapa es-sencial para o desenvolvimento da própria for-mação (Bildung). Entretanto, não se deve es-quecer que a assimilação dos conhecimentosfica, talvez, irremediavelmente prejudicada, namedida em que os processos reflexivos subju-gam-se ao imperativo da substituição e reposi-ção urgente de conceitos que são quase queimediatamente esquecidos.

A outra característica determinante da for-mação. ou seja, a temporalidade, relaciona-secom a necessidade de que sejam consideradosos vínculos temporais entre os objetos de es-tudo. Procura-se evitar um tipo de procedimen-to que invalida a historicidade imanente dessesobjetos. Entretanto, na reposição imediata dosprodutos semiculturais, tem-se a impressão deque o passado não possui mais nenhuma liga-ção com o presente e com o futuro. Ora. essacircunstância é representativa da maneira comoa indústria cultural determina a relação entre aideologia contida no produto simbólico e a es-perança de que. enfim, encontramos um produ-to cuja embalagem refleteo brilhode nossas per-sonalidades "marcantes". A promessa de feli-cidade está vinculada a um eterno presente queadquire suas forças justamente da mentira deque somos seres emancipados.

Ao invés de sermos apenas tutelados pe-las ordens advindas das instituições religiosas,atualmente, submetemo-nos mais do que nun-ca aos comandos dos produtos semiculturais,veiculados pela pseudo democratização da pro-dução simnólica. A tutelagem, contra a qual

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Kant se opunha radicalmente quando susten-tou a importâncià~de que o homem abandonas-se sua condição de menoridade, fazendo usopúblico da razão, na sociedade capitalista con-temporânea, adquire outras cores. Mas é justa-mente dentro dessa tradição kantiana de defe-sa do esclarecimento que Adorno depreende arelação entre educação e emancipação:

De um certo modo, emancipação significa omesmo que conscientização, racional idade... Aeducação seria impotente e ideológica se igno-rasse o objetivo de adaptação e não preparas-se os homens para se orientarem no mundo.Porém. ela seria igualmente questionável seficasse nisto, produzindo nada além do wel/adjusled people. pessoas bem-ajustadas, emconseqüência do que a situação existente seimpõe precisamente no que tem de pior.'

De fato, para o frankfurtiano a educaçãoemancipadora possui tanto uma dimensão deadaptação quanto uma dimensão de distan-ciamento da realidade. Também na definição doconceito de educação faz-se presente o seu ra-ciocínio dialético concernente à análise da cul-

tura. Quando Adorno diz que a educação seriaimpotente e ideológica, caso ignorasse o obje-tivo de adaptação, está fazendo uma alusão aonecessário processo de estranhamento do es-pírito, presente na construção do conceito deformação (Bildung). No mesmo movimento, estátambém ciente do perigo de absolutização dasubjetividade que nega a história humana res-ponsável pela sua produção. Há uma outraassertiva de Adorno e Horkheimer que corro-bora essa premissa de que o duplo caráter doconceito de educação reverbera o duplo cará-ter da cultura na produção da obra de arte:

A pureza da arte burguesa, que se hipostasioucomo reino da liberdade em oposição à práxismaterial. foi obtida desde o início ao preço daexclusão das classes inferiores. mas é à causadessas classes - a verdadeira universalidade-

que a arte mantém-se fiel exatamente pela li-berdade dos fins da falsa universalidade:

Ora. a possibilidade da arte se manter livredos fins da falsa universalidade. Ollseja, da sua

submissão quase que total ao seu caráter devalor. respalda-se no distanciamento dessamesma realidade. É evidente que esse momen-to não pode ser hipostasiado quanto à sua cor-relação com o mundo fenomênico, pois é essemundo desigual que produz as condições ma-teriais para a consagração do poder de críticada própria arte. Do mesmo modo, a educaçãotambém corre o sério risco de absolutizar a sua

necessária dimensão teórica ao eleger uma de-terminada teoria pedagógica que pode por si sósolucionar as contradições sociais. Entretanto,como foi constatado, tal ideologia não comprazsomente à teoria. Quando Adorno se reporta àrelevância do processo de configuração ao real,novamente denota uma postura crítica na me-dida em que faz objeção ao processo educacio-nal que visa à formação das pessoas integra-das ao sistema atual. A concepção de educa-ção de Adorno objetiva exatamente criticar essasociedade que potencialmente carrega dentrode si o retorno da barbárie. Ela possui, antes demais nada, uma função de resistência.

Seguindo essa linha de raciocínio, talvezoutra das principais contribuições pertinen-tes às questões educacionais da teoria deAdorno refira-se à defesa intransigente de ummodo de pensar que não se entrega diante dasfacilidades de um raciocínio condicionado a

permanecer na superfície do dado imediato.O frankfurtiano defende, pelo contrário, amanutenção de um pensamento que ensina aler as entranhas de cada objeto analisado. Oparticular contém dentro de si não só suasidiossincrasias, mas também as relações so-ciais, materiais e históricas que foram respon-sáveis pela sua construção. Na elaboraçãodesse raciocínio há uma certa influência dos

escritos de Hegel, sobretudo, no que con-cerne ao conceito de negação determinada.

É verdade que os frankfurtianos, particu-larmente Adorno, criticaram a forma como

Hegel finaliza o processo do raciocínio dia-lético. convergindo as antinomias sociais en-tre sujeito e objeto no espírito absoluto. Nãoobstante, é interessante observar que Adornorecupera os elementos conceituais hegel ianospara poder não só criticar a resolução indevida

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das aporias entre o espírito e o mundofenomênico realizada por Hegel como tamhémdelimitar uma das características centrais dachamada dialética negativa: a necessidade dercapropriação do não-idêntico que se encon-tra imanentementc no idêntico. Nega-se aimediatez do ohjeto para posteriormente podercompreendê-Io como parte de um processosocial e não como uma parte isolada do todo. Eesse movimento de negação do imediato com-preende também a negação das condições so-ciais que obstaculizaram o desenvolvimento dodiferente, do mimético, ou seja, daquilo que teveque ser recalcado em nome da promessa de umasociedade igualitária. Por meio desse procedi-mento, instala-se a presença da experiênciaformativa. Para Wolfgang Leo Maar: "A expe-riência é um processo auto-reflexivo, em que arelação com o objeto forma a mediação pela qualse forma o sujeito em sua "ohjetividade".'

O juízo de valor que acompanha o dis-cernimento proveniente desse modo de pen-sar expressa a falsidade da reconciliação har-mônica entre o indivíduo e a sociedade. querseja na pretensão da ciência, quer seja na as-piração da filosofia. Na Dia/ética negativa háuma dura mas justa cobrança em relação ao de-senvolvimento do próprio conceito. O concei-to que se deixa absolutizar, de tal maneira queadquire a presunção de julgar bastar a si mes-mo, participa da mentirosa conformidade en-tre a suhjetividade e a ohjetividade, contrihu-indo decisivamente para a verdadeira ausên-cia da liherdade e da felicidade. A contestaçãoda pretensa onipotência do conceito é expos-ta por Adorno no texto de insinuante título:Desmit%gi~ação do conceito:

A vcnJ<ldeé que todos os conceitos, incluin-do os filosóficos. têm sua origem no que nãoé conceitual. j,í que são parte da re<llidadequeIhes ohriga a formarem-se. antes de mais nada.com o propósito de dominar a natureza... sóa coisificação do conceito é capaz de se isolardessa totalid<lde (a totalidade que não é con-ceitual - A.A.S.Z)."

Esse tipo de postura filosófica poderiarepresentar uma irremediável contradição com

a relevância do próprio conceito na estru-turação da formação, ou seja, da experiênciaeducacional emancipatória. Contudo, a defe-sa da não hipóstase do conceito permite reco-nhecer a sua importância tanto para a forma-ção quanto para essa experiência educacionaluma vez que "a reflexão do conceito sohre seupróprio sentido lhe faz superar a aparência derealidade ohjetiva como uma unidade de sen-tido".7 A auto-retlexão do conceito possibilitaa transcendência da aparência da realidadeobjetiva. a superação da apática limitação dopróprio conceito proveniente da sua reduçãoao princípio da identidade. Os conceitos inter-ligados nessa constelação expressam aquiloque o pensamento identificante recusou-se asi mesmo: a necessidade do ajuste de contascom o sofrimento humano. A partir do momen-to em que a filosofia procede dessa forma, umavez mais concede-se voz àquilo que foi repri-mido, mas que nunca deixou de se fazer pre-sente. Para Adorno. é justamente nesse pontoque a filosofia se aproxima viscera\mente dagrande arte, da música dodecafônica deSchõenherg ou do texto de Kafka, por exemplo.

Portanto. torna-se relevante resgatar adialeticidade do pensamento de Adorno aoidentificar a verdade de conteúdos ideológicosque são falsamente cumpridos na prática.Quando se denuncia a mentira da troca de equi-valentes no transcorrer das relações de traha-lho alUais,ao se admitir que há muito desagre-gou-se do processo de trahalho aquele con-ceito de experiência (Erfahrung) que uma veza formação designou,~fala-se tamhém em nomeda esperança de que a abstração da troca deverdadeiros iguais se concretize, de que seefetive aquilo que até o presente momento nãopassou de uma promessa:

A crítica do princípio da convertibilidadecomo instância identificadora do pensamen-to husca a realização do ideal da troca livre ejusta. que até agora não foi mais do que umpretexto. Só assim supcrar-se-ia a troca. Ain-da que a teoria crítica tenha de.smascarado atroca do igual que é. no entanto. desiguaL acrítica da desigualdade na igualdade buscatamhém a igualdade."

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Ora, há uma grande diferença entre, porum lado, buscar a identidade entre o pensa-mento e o mundo fenomênico, impulso e cul-tura, sujeito e objeto numa sociedade que ofe-reça realmente as condições necessárias paraque se cumpra a promessa da ideologia liberale, por outro lado, a conversão da identidadeem acomodação ou, melhor dizendo, integra-ção. A legítima representante dessa transfor-mação é a consciência feliz que se acomodouem lutar com todas as suas energias para quepossa ser reconhecida como "sujeito", nemque para isso pague o preço da confirmaçãoda sua pseudo-individualidade. O martírio nun-ca pode ser encarado como realmente é, poisele precisa desprender um esforço descomu-nal para a renovação perene da sua própriadebilidade. Definitivamente desmorona a idéia,a qual já indica a vulgarização do próprio con-ceito de que a indústria cultural precisa deconsumidores passivos. Na verdade, os pseu-do-indivíduos necessitam combater, principal-mente em si próprios, de forma enérgica, qual-quer tipo de práxis contrária à integração peloconsumo. Para poder ser passivo, o pseudo-indivíduo deve antes vivenciar ativamente anegação de si mesmo.

Com o objetivo de se elaborar uma críticaa essa situação, há uma série de pesquisado-res educacionais que almejam identificar sub-sídios relevantes dos pensadores da chama-da teoria crítica que poderiam auxiliar o discer-nimento e a oposição das conseqüências daprodução da semiformação, ou seja, da con-quista do espírito pela lógica do fetiche damercadoria. Seria interessante avultar nessemomento as contribuições de Adreas Gruschkae Norbert Hilbig. O título da obra de Gruschkafala por si só: "A pedagogia negativa: umaintrodução à pedagogia com teoria crítica"(Negatil'e Padagogik: Ei/lfiihnlllg i/l dief'adagogik mit Kritischer Theorie). Evidente-mente, o autor presta os devidos créditos àDia/ética lIegatil'a de Adorno nessa sua em-preitada de pensar as contribuições do pensa-dor frankfurtiano para as questões pedagógi-cas. De acordo com o pesquisador, dificilmen-te pode-se localizar nem nos poucos textos c

notas de roda pé explicitamente pedagógicosde Adorno e Horkheimer e nem nos textos im-plicitamente pedagógicos desses autoresuma pedagogia de forma inconteste. Ao in-vés disso, ele prefere destacar dos textos deAdorno e Horkheimer um meio de conheci-mento (Erke/l/lt/lismittel) e conheci mentos(Erkenlltnisse) que poderiam ser úteis à pró-pria práx is pedagógica.1O

Porém, essa justa temeridade não afasta-ria a possibilidade da construção de uma práxispedagógica negativa. O próprio título do livrojá é indicativo de essa alternativa se converternuma realidade. Para Gruschka, haveria algunsaspectos centrais que confirmariam essa suahipótese de extrair da teoria crítica um meio deconhecimento pertinente aos assuntos peda-gógicos. Primeiramente, tal proposta deveriaresgatar o sentido de um procedimento críticosemelhante àquele desenvolvido por Hork-heimel' no texto "Teoria tradicional e teoria crí-tica", sobretudo na investigação da relaçãoantagônica entre ambas.

Há uma explícita intenção de consubstan-ciar às questões pedagógicas um determina-do juízo de valor que se comprometa com aoposição à reprodução da miséria e da barbárie.Gruschka elabora uma questão que já deman-da uma resposta afirmativa se considerarmosas idéias de Horkheimer contidas nesse textode 1937, a saber: será que tal concepção peda-gógica, balizada nos conhecimentos da teoriacrítica, teria um procedimento metodológico econceitual que seria ancorado à crítica da ideo-logia do poder, tal como, por exemplo, na críti-ca da naturalização dos fenômenos sociais? Aconfirmação positiva dessa questão já indicaa propensão de uma práxis pedagógica que seopõe ao discurso de neutralidade do objeto daciência e expressa o juízo de valor de que aprodução científica não pode Se afastar docompromisso de combater sua própria fetichi-zação, auxiliando a obtenção de uma vida maisdigna e menos injusta. Outra contribuição deAdorno em relação às questões pertinentes auma possível pedagogia negativa seria a sus-tentação da prioridade do objeto (Vorrang desOhjekts). Na verdade, essa é uma das princi-

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pais elucubrações de Adorno contidas no tex-to da Dia/ética negativa. Novamente, o frank-furtiano se posiciona criticamente contra osolipsismo filosófico que procura resolver asantinomias com a realidade por meio da aplica-ção do correto procedimento metodológico,como se as contradições sociais se reduzissemapenas a alguma falhacognitiva, que poderia sersanada através da aplicação dos indefectíveissubsídios lógico-dedutivos.

Se, por um lado, o filósofo frankfurtianoalicerça seu ponto de vista na prioridade doobjeto, isso não quer dizer que se esvaece adialética entre sujeito e objeto, tal como foiexposto anteriormente na investigação do ca-ráter ambíguo da cultura e da própria educa-ção enquanto emancipação. Uma práxis peda-gógica negativa precisa aceitar o desafio derealizar a sua própria autocrítica, almejandoimpedir que ocorra a absolutização tanto dateoria quanto da prática. Desse modo, AndreasGruschka elabora uma tentativa de definiçãodo que seria o objetivo essencial dessa práxispedagógica:

Da contradição entre a pretensão e a realida-de. entre uma consciência esclarecida sobre ascondições de uma práxis pedagÓgica e suaspossibilidades de mudanças. desdobra-se nãouma progressiva conversão das promessas emum "fazer emancipado" (Mündig-Machen)através da educação. mas sim no contrário. naaceitação de seus déficits com a conseqüênciaque aquela pretensão faz cumprir freqüen-temente apenas por meio das funções de legiti-mação ideológica. 11

Percebe-se como o momento da auto-crítica dessa proposta de práxis pedagógicaé enfatizado. O tão desejado "fazer-se eman-cipado" pela educação que se julga auto-su-ficiente acaba por referendar sua participaçãona manutenção da proposta pedagógica tra-dicional alemã de incentivo ao chamado talen-to do aluno, por exemplo. A ideologia do pro-cesso educacional, que caminha numa rua demão única, isolando-se das contradições so-ci'ais que medeiam o seu desenvolvimentopretensamente linear, deve ser objeto do exer-

cício de uma crítica imanente que relacionaesses seus prejuízos não apenas com falhasdecorrentes de algum distúrbio afetivo oumesmo cognitivo, mas também com as rela-ções sociais.

É por isso que Gruschka distingue expli-citamente uma teoria pedagógica sistemáticada teoria pedagógica ancorada nas contribui-ções teóricas da Dia/ética negativa. Umaproposta pedagógica sistemática descreveriaconstrutiva e positivamente aquilo que a edu-cação poderia real izar. Os entraves possíveisdurante o trajeto do processo educacionalseriam certamente solucionados, pois ela al-cança aquilo que foi desejado teoricamenteatravés da aplicação da "correta" metodologiapedagógica. Já uma pedagogia negativa in-vestiga em cada momento específico a dife-rença entre a pretensão e a realidade dos ob-jetivos educacionais, identificando a tensadisparidade entre a teoria e a práxis pedagó-gica, bem como que tipo de clima cultural im-puta a construção de diferentes experiênciaspedagógicas e quais seriam as possibilidadesde ser encetada uma práxis comprometida coma sua autocrítica e com a ciência de não sedeixar absolutizar em relação à realidade. As-sim, para o autor, a pedagogia negativa con-solida-se ao mesmo tempo como uma críticada pedagogia e como uma introdução na ter-minologia pedagógica.'2

Se no livro de Gruschka podemos identi-ficar certa ênfase no resgate dos elementosteóricos da Dia/ética negativa para a cons-trução de uma pedagogia negativa, o livro deNorbert Hilbig objetiva esclarecer quais seriamas principais características de uma escola,cuja concepção educacional fosse pautadanos escritos de Theodor W. Adorno. O títuloda obra é: "Fazer escola com Adorno - contri-

buições para uma pedagogia da teoria crítica:teoria e práxis da prevenção da violência"(Mit Adorno Schu/e machen - Beitriige zueiner Padagogik der Krifischen Theorie:Theorie und Praxis der Gewa/tpriil'ention).

Comosepodenotar, há uma clara inten-ção de não apenas investigar as contribuiçõesdos conceitos desenvolvidos por Adorno

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nos tcxtos explícita ou implicitamente peda-gógicos, mas, especialmente, construir uma

proposta pedagógico-metodológica respalda-da no pcnsamento filosófico-educacional doteórico frankfurtiano. O aspecto essencialdessa proposta pedagógica refere-se à atua-lização de um dos objetivos mais relevantesdo texto Educação após Auschwitz, ou seja,a defcsa intransigente do combate aos ele-mentos objeti vos e, sobretudo, subjetivosdebilitadores do ego através da própria edu-cação. Ncsse texto, impera-se a desesperan-ça do frankfurtiano concernente à inevitávelperpctuação dos chamados assassinos de es-crivaninha, por outro lado, não é menor a suaesperança de que o processo educacionalpossa ser útil na luta para que o servo, opseudo-indivíduo, reflita cada vez mais sobresua participação na reprodução da barbárie.

Talvez haja a recuperação da dignidade quese fora com a servidão, na medida em que seconteste as ordens desses tiranos e não maisas execute, deixando de eliminar tanto o "dife-

rente" quanto a si próprio. 1.' Fazer escola tendopor base as idéias de Adorno, segundo Hilbig,signi fica, antes de mais nada, recuperar suasintenções de procurar realizar a denominadadesbarbarização (EI/tbarbarisienlllg) atravésde um projeto escolar humanizador; significaconstruir uma casa, ou uma escola, nas quaistorna-se possível ter uma vida que não se petri-fique e nem se endureça. 1-1Os educadores pro-curam aduzir que é possível elaborar uma práxispedagógica baseada nos fundamentos teóricosde Adorno sem quc essa própria práxis caia naarmadilha ideológica de se auto-intitular a pro-posta que acabará, de uma vez por todas, comas práticas preconceituosas e com as atitudcssadomasoquistas dcntro ou fora das salas deaula.

Seguindo essa linha de raciocínio, um dosprincipais temas desenvolvidos nesse livro éo da prevenção da violência na escola(Gell'altprÜvelltiol/ il/ der SeI1llIe). Com efei-to, a proliferação de atitudes neofascistas tam-bém por parte das crianças e adolescentes nasescolas da Alemanha requer uma prática deprevenção contrária a essas açõcs. Porém, a

tentativa de formalizar esse projeto encontravárias dificuldades. Entre os principais obstá-culos. destaca-se o de que dificilmente se po-derá descobrir as causas da atual brutalidadeem relação aos estrangeiros (Ausléil/der) sedominar a conclusão precipitada, mas em ge-ral bem-aceita, de que os estrangeiros que par-tiram de seus países de origem nunca foramcapazes de abandonar a emoção que ficou pre-servada nos seus lares e que, dessa forma,podem até mesmo trabalhar em terras distan-tcs, mas nunca serão completamente felizes.

Infere-se que os atritos entre os povosde fora e os "filhos da terra" seriam conse-qüências dessa incompatibilidade de com-portamentos e valores díspares, pois, se nosestrangeiros que seriam considerados e seconsiderariam forastciros, prevaleceria orancor de nunca poderem ser completamen-tc integrados à nova vida; já nos aboríge-nes prcdominaria a falta de tolerância e oreceio de que alguém de fora poderia "usur-par" o posto de trabalho de alguém de den-tro. Ora, a aceitação generalizada dessa raci-onalização sociopsicológica não podeobstaculizar a investigação desse fcnômc-no, cuja amplitude se faz presente em todasas instituições sociais. É por isso que paraNorbert Hilbig as causas da atual barbáriedevem ser obsérvadas

...junto aos jovens nos estádios de futebol, navida em comum na família, no abuso sexual eno estupro, na televisão e no vídeo, nos seto-res das lojas de brinquedos ou na violênciapornográfica, A brutalidade localiza-se nosfenÔmenos sociais de massa."

Se é verdade que a brutalidade não podescr apenas ohservada nos fenômenos sociaisde massa, mas também naquele pseudo-indiví-duo que qualifica a sua anedota preconceituosacomo sendo apenas uma "brincadeira", essaobservação de Hilbig serve também para apoiaro raciocínio de que a indústria cultural repro-duz uma clima cultural propício para a reincidên-cia das práticas fascistas. De fato, a perpetua-ção dos egos debilitados é uma exigência cen-tral da socicdadc, cuja integração dos pseudo-

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indivíduos se dá por meio do reforço ao nar-cisismo coletivo e à intolerância para com ooutro. Deve-se,preferencialmente,procurarcom-preender quais são as características predomi-nantes de uma sociedade, cuja produção cultu-ral parece não conhecer uma outra forma deexistência que não seja a da técnica entrelaçadacom a barbárie.

Desse modo, os pesquisadores preocupa-dos com a amplitude cada vez maior da barbáriedeveriam ser mais atentos sobre quais são asemoções que anoram nos jovens quando prati-cam os atos de vandalismo e expõem o ódioatrelado ao preconceito de forma avassaladora.Se o olhar for um poueo mais apurado nas con-versas das pessoas bem "educadas" em suassalas-de-visita, as quais entre um gole de chá ea degustação de um pedaço de bolacha sorriemde satisfação quando alguém menciona o es-pancamento de estrangeiros nas periferias deBerlim, dificilmente poderá ter sucesso a manu-tenção da dissimulação de um bucolismo e deuma singelezajá há muito carcomidos pelo ódioe pela perversão.

Ora. de uma forma ou de outra esse ódio

acaba por se fazer presente. Pode estar tantono riso zombeteiro da anedota racista como naintolerância muitas vezes não tão velada dostorcedores de uma agremiação de futebol emrelação a um fã de outra equipe. E é interes-sante notar que a polidez forçada dos pais queprecisam se conter para serem, fazendo uso deuma banalização atual, politicamente corretos,se esfacela justamente nas conversas cotidia-nas com os filhos sobre a relação entre autori-dadee força que facilmente converge para oautoritarismo. Como se sabe, as crianças sãoporta-vozes perfeitos para, num mecanismoprojetivo-patológico, exprimirem os valores enormas de um ideal egóico alicerçado no de-sejo do poder exercido pela violência.

Para que se possa oferecer certa resistên-cia à propagação desses comportamentos tan-to nas escolas quanto fora delas. Hilbig discu-te sobre a necessidade de uma práxis pedagó-gica emancipadora que atenda tanto ao setorsecundarista, por meio de uma análise da vio-lência (Cewa/tal/a/ue), quanto às etapas da

educação da primeira infância através de umaprevenção da violência (Cewaltpravel/tioll).Certamente o educador está se referindo ao tex-to de Adorno Educação após Auschwitz, prin-cipalmente se essa práxis pedagógica for fun-damentada na utilização de uma idéia adornianaessencial, a saber, o incentivo à liberdade de seter medo:

Em outras palavras, a educação deve-se de-dicar seriamente à idéia que não é em abso-luto desconhecida da filosofia: que não de-vemos reprimir o medo. Quando o medo nãofor reprimido. quando nos permitirmos tertanto medo real quanto essa realidade mere-cer. então possivelmente muito do efeitodestrutivo do medo inconsciente e reprimi-do desaparecerá. 1<>

Ora, é esse ímpeto que está presente noimperativo de Kant: Sapere aude!, ou seja, nadefesa da necessidade de que os homens te-nham coragem de fazer uso do próprio enten-dimento na medida em que enfrentam o pró-prio medo das conseqüências de não seremmais tutelados. Com efeito, essa aproximaçãoentre a educação e a filosofia não é fortuita.De forma análoga, essa mesma atitude devetambém ser desenvolvida na esfera da edu-cação. Há que se opor de todas as formas àchamada educação pela dureza.

Esse tipo de postura pedagógica é comu-mentemente rotulada como o tipo correto deprocedimento educacional, pois forma os fu-turos homens de decisão e de personalidadesfortes. Na verdade, observa-se uma verdadeiradeformação no caráter desses indivíduos,pois há o reforço indubitável de uma práticasadomasoquista que garante ao que sofrehoje o direito de fazer sofrer amanhã. No do-loroso processo de formação de personalida-des que se confrontam com a figura do pro-fessor deve acontecer um processo psicos-social no qual tanto a autoridade quanto oaluno precisam ceder em seus argumentosaparentemente indestrutíveis, posto que aautocrítica de ambos fornece as condiçõespara a experiência recíproca da comparação deconceitos contraditórios que se transformam

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em novos conceitos, gerando novos valores,comportamentos e identidades. Os alunos eos mestres podem assumir para si próprios oreceio de errar, já que não são seres perfeitos,por mais que sejam idealizados como tais.

Já na situação em que prepondera o au-toritarismo há uma só fala, pois os outros queescutam já se encontram conformados coma veleidade de que no futuro serão eles ossenhores. Não há espaço para autocrítica emuito menos para a confrontação de opiniõesdivergentes. O medo das suas próprias de-bilidades precisa ser afastado e sempre pro-jetado naquele que não faz parte do grupo,naquele cuja fraqueza chega a ser um insul-to para o paranóico que, por um instante, serecorda do processo de dessensibilizaçãoque lhe foi imposto. Ora, é exatamente essafalta de predisposição para a angústia queestá por detrás da defesa da denominadaeducação pela dureza. O entorpecimento dacapacidade empática deixa de ser questiona-do e passa a ser cada vez mais merecedor dosmais glamorosos elogios.

O que prevalece é esse arrefecimento dapreocupação com o outro, a ponto de, comobem disse Adorno, os que pensaram sobrequais seriam os meios de transporte mais ade-quados para conduzir os judeus aos camposde concentração nazistas não se importaramcom as conseq üências de seus eficientes cál-culos matemáticos. Se uma sociedade tecno-lógica exige esse tipo de caráter, então consa-gra-se ao mesmo tempo a fetichização das re-lações sociais e a reificação das consciênciasque, ao julgarem os outros como coisas, dis-farçam a sua própria coisificação.17 Peranteesse contexto, Hilbig menciona a obra de W.Benz, cujo título é: "A violência começa compalavras" (Gewalt beginnt mit Worter). Nes-se trabalho, publicado em dezembro de 1992,oautor assevera a existência de um sentimento

que seria sinônimo de um caloroso aconche-go perdido (ver/orene Nestwiirme). Esse tipode sentimento poderia ser hegemonicamenteobservado num mundo no qual identifica-seuma sensação de perda. de inferioridade e deinutilidade no dia-o-dia. Assim. manifesta-se

algumas vezes a defesa agressiva do nacio-nalismo cemo a Últimapossibilidade de pre-servação da identidade. IX

As identidades coletiva e individual quesão preservadas por meio da brutalidade, deacordo com Hilbig, não possuem uma auto-consciência positiva e são, na verdade, foras-teiras de si mesmas. Seguindo esse ponto devista, poder-se-ia acrescentar que o forastei-ro de si próprio é aquele que não aceita ooutro dentro de si, ou seja, ele não admite quea sua própria identidade é construída nummovimento em que interagem a conservaçãoe a negação de suas potencial idades que sãoconfrontadas com as dos outros, ou melhor,num processo em que ela se conserva pelasua própria negação, transformando-se numser diferente, porém igual. O choro de com-placência e o toque de carinho são caracte-rísticos dos fracos, das mulheres, ou das crian-ças que ainda não foram "educadas".

Destarte, quem não aceita o outro dentrode si só poderá mesmo usufruir do que é inve-jado implicitamente, mas que é negado explici-tamente, na mimesis compulsiva do "diferen-te" que muitas vezes paga com a vida o fatode mostrar à paranóia a sua verdadeira face. Senas escolas essa atitude extremista não é ob-

servada com tanta freqüência, por outro lado,a brutalidade, o narcisismo coletivo e o egodebilitado estão bem presentes tanto nas sa-Ias de aula quanto nas atividades extraclassesdentro da própria instituição. Apesar de oseducadores da escola Theodor W Adorno es-tarem conscientes da desproporcional idade deforças entre, por um lado, o poder da mídia edas famílias que incentivam práticas sado-masoquistas simpáticas à reincidência da bar-bárie e, por outro lado, a capacidade de inter-venção dos educadores que buscam promoveruma prática de prevenção da violência, há umacerta confiança de que tais atitudes possamsurtir algum efeito positivo. Para isso, umapráxis pedagógica emancipadora não pode sefurtar da responsabilidade de promover umclima cultural que favoreça o desenvolvimen-to de uma identidade autocrítica, de uma pro-posta pedagógica que permita com que os

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agentes educacionais expcrienciem verdadei-ramente tanto os vínculos entre si quanto tam-bém os fracassos amealhados no processoensino-aprendizagem, que podem se transfor-mar em sucessos, que conceda a oportunida-de de que o aluno e o mestre enfrentem seusmedos e percebam que é o trabalho coletivo,que respeita as diferenças, aquele que produzuma individualidade não-patológica. Nessesentido, há uma aproximação com as idéias deAndreas Gruschka, apontadas anteriormente.

Conclusão

Nos debates atuais, observa-se um núme-ro crescente de pesquisadores interessadosem investigar as possíveis contribuições dosteóricos da chamada escola de Frankfurt emrelação à problemática educacional. Pode-seafirmar que, na Alemanha, atualmente há umaforte tendência de se pesquisar quais seriamos subsídios teóricos de autores, tais comoHorkheimer, Marcuse, Benjamin, Habermas e,principalmente, Adorno, pertinentes à constru-ção de uma práxis pedagógica ancorada nes-ses constructos ou mesmo para uma concep-ção educacional que se fundamentasse nascategorias implícita ou explicitamente pedagó-gicas desses pensadores. No que concerne agrupos que pesquisam essa relação entre teo-ria crítica e educação, vale ressaltar o grupoformado por docentes e discentes das univer-sidades UFSCar e UNIMEP que, desde 1991,pesquisa o potencial pedagógico da teoria crí-tica.19

Durante todos esses anos, após a publi-cação de livros e artigos, exposições de pales-tras em universidades, apresentações de tra-balhos em congressos, pode-se afirmar que,mesclado ao interesse despertado, encontrou-se também uma atitude. de certa forma genera-lizada, que imprime nos chamados frankfur-tianos os rótulos de pensadores elitistas e,principalmente, pessimistas. Se é benéfico ointeresse cada vez maior na leitura das obrasdesses autores, não se pode desconsiderar quea própria teoria crítica corre o sério risco de sertotalmente banalizada. Uma prova dessa banali-

zação talvez seja o rótulo, imposto sobretudoem relação aos chamados frankfurtianos clás-sicos - Adorno, especialmente - de pensado-res niilistas, ou seja, donos de um modo depensar que conduz ao desespero e à impotên-cia perante a reincidência cada vez maior dabarbárie. Ora, se em Adorno existe o pessimis-mo teórico, por outro lado, também se faz pre-sente uma atitude otimista que procura em to-dos os momentos compreender o hiato exis-tente entre o conceito e o mundo fenomênico,entre a ideologia da igualdade de oportunida-des e a sua concreta realização. O próprioHorkheimer, ainda abalado pela morte recentedo amigo Adorno, finaliza a sua palestra intitu-lada Teoria crítica: ontem e hoje, conclamandopara a renovação do lema principal desses doispensadores, ou seja, a necessidade de ser umpessimista teórico, mas um otimista prático.20

É dentro desse espírito que uma concep-ção educacional que se julga crítica poderiacontribuir para o processo de auto-reflexão daformação que se converteu em semiformação.Talvez esse procedimento corresponda aoalento de Adorno de que a educação tenhacomo seu propósito básico a emancipação. Éverdade que essa significação nos remete apensar de que forma a proposta de Kant po-deria ser atualizada. O próprio Adorno, quemencionou essa possibilidade no início dotexto Educação e emancipação, reafirma arelevância do incentivo à formação de cadaindivíduo para as balizas da democracia.

A meu ver, a atualização dessa propostade Kant fundamenta-se também na elabora-ção de uma concepção educacional crítica quedenuncie tanto as discrepâncias entre a ve-racidade dos conteúdos ideológicos e as suasefetivas realizações quanto elabore a sua pró-pria autocrítica com o intuito de evitar a se-dução de se transformar numa prática peda-gógica redentora de todos os problemas edu-cacionais. É por isso que nas bases dessaconcepção ressoa, sobretudo, a epistcmologiada Dia/ética negativa, que se inspira na con-sideração de que, no estado atual das coisas,é uma atitude de não-identidade entre o con-

ceito e a realidade, que pode oferecer resis-

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tências ao fato de que a realidade determina aprodução do conceito ou, melhor dizendo, éesse tipo de práxis que poderá abalar aquelanociva autoconfiança do conceito que nãopermite a realização da sua própriatranscendência e, portanto, da expressão donão-conceitual que poderia, ao ser re-apropriado, cooperar para a transformaçãodo pensamento em ensinamento.

Se essa concepção educacional críticatambém assume como sua a tarefa de auxiliar

o exercício da crítica da ideologia, então ta]-vez não fosse equivocado aludir à observa-ção de Adorno de que também tem algo deprático a denúncia de que a exigência, cotidia-namente reiterada, de submissão da teoria emrelação à prática signi fica anular o conteúdoda verdade e condenar a prática à loucura. 2/Sabemos que Kant defendeu a necessidadede que os homens se esforçassem para quepudessem sair do estado da menoridade, poisestavam, naquele período, experienciando asociedade em processo de esclarecimenloYContudo, nos dias atuais, o resgate do senti-do da emancipação (MÜndlichkeit) talvezesteja também atrelado à necessidade de queuma concepção educacional crítica incentivea auto-retlexão daqueles que se julgam edu-cados. mas que colaboram decisivamente tan-to para sua própria debilidade quanto para ados outros.

Assim, algumas das principais contribui-ções dos pensadores da chamada teoria críti-ca e, particularmente, Adorno, à problemáti-ca educacional, referem-se à oposição dastendências de naturalização e persona]izaçãodos fenômenos sociais, à defesa intransigentede que a luta pela desbarbarização implicanuma práxis que não reprima o mcdo, fazendocom que se questione a atitude megalômanade auto-suficiência, que nunca deixou de sersimpática à paranóia fascista. e, sobretudo, àdefesa da prioridade do objeto.

Se a tendência atual do desenvolvimentodas forças produtivas caminha para o incenti-vo da chamada desrealização. a ponto de nos-sa ]ibido ser projetada para representações deseres cuja existência depende de uma máquina

- tal como no caso dos bichos virtuais, osTamagoshis -, então faz-se urgente a sustenta-ção do raciocínio crítico de que, na imanênciadas práticas solipsistas, encontram-se presen-tes relações sociais calcadas na dor e na explo-ração do outro. A defesa da prioridade do obje-to contesta o esquecimento de que o sofrimen-to é, antes de mais nada, físico, apesar da an-gústia ser cotidianamente mitigada por meio doconsumo dos produtos da indústria cultural. Éverdade que o resgate das potencial idadesemancipatórias da formação não é garantido,como bem disse Adorno, através da mera fre-qüência em cursos de cultura geral que primampor reforçar o divórcio entre a chamada produ-ção cultural e as condições materiais que engen-draram a própria cultura. Entretanto, uma con-cepção educacional emancipadora poderia co-laborar para a reprodução de um clima cultu-ral que favorecesse aquela disposição de esti-mular a continuidade do conteúdo apreendidocom a própria experiência (Eifahrung) do indi-víduo. O educador que faz sua autocrítica, aose preocupar com a compreensão dos motivosque incentivam a distância entre as teorias so-bre o preconceito e a práxis preconceituosa dosmesmos alunos que memorizam os conteúdosmas não deixam de fazer anedotas racistas, porexemplo, trabalha para que o hiato entre o con-ceito e a práxis emancipadora não seja tão gran-de, apesar da sociedade atual ser condizente àchamada consciência feliz. A concepção edu-cacional que se pauta na denúncia da falsa re-conciliação atual - a qual dissimula urna vidaplena de liberdade, mas que prima pela sua au-sência - fala também em nome da possível re-conciliação entre aqueles conteúdos eman-cipatóriosda formaçãoe uma vidamenos injusta.

Para terminar, seria relevante destacar no-vamente que a gênese e o conseqüente desen-vo]vimento da filosofia ancoraram-se semprena defesa da dúvida, do questionamento,mesmo diante das mais terríveis intempéries,mesmo diante dos obstáculos que incentiva-ram o desejo da atitude conformista que evi-tou qualquer sensação de angústia ou de in-cômodo, pois sempre foi amiga do raciocínioestéril. Destarte, a pnixis pedagógica que ob-

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jetiva ser emancipatória tem diante de si essebelo exemplo que se opõe ao ímpeto autoritá-rio daquele que, com o punho cerrado, batecom força no próprio peito estufado, aprego-ando para todos a sua auto-suficiência. Ora,a obediência às ordens desse ímpeto é con-descendente à tentação de se esqui var docotejo com o próprio medo de perceber queprecisamos uns dos outros não para a afirma-ção doentia da nossa pseudo-individualidade,mas sim para a negação da nossa desumani-dade.

Notas

2. Cf. Adorno. Theodor W.. "Teoria da semicul-

tura". tradução de Newton Ramos de Olivcira comcolaboração de Bruno Pucci e Cláudia dc MouraAbrcu. In Educarão e sociedade. Campinas. edi-tora Papirus. ano XVII. dezembro. 1996. pp. 388-412. Halbbildung pode ser traduzida tanto porsemicultura quanto por semiformação. dependen-do do sentido subjacente ao contexto. Os termoscultura e formação são praticamente equivalen-tes. Contudo. há uma sutil diferença quando oconceito se refere à danificação do proccsso deprodução simbólica (semicultura) ou aos prejuí-zos na dimensão subjetiva provenientes da con-versão da formação (Bildung) em semiforlllação.

3. Adorno. Theodor. W. "Educação para quê'?".tradução de Wolfgang Leo Maar. In Educaí'üo ccl1wllcipa\'üo. Rio de Janeiro. editora Paz e Ter-ra. 1995. p.143.

4. Adorno. Theodor. W. & Horkheimer. Dialélica

do esclarecimcllto. tradução de Guido Antôniode Almeida. Rio de Janciro. Jorge Zahar editor.1986. p.127.

5. Adorno. Theodor W. Ed"uf\'ão e emancipaí.'ão.op. cit.. p. 24.

6. Adorno. Theodor. W. "Desmitologização doconceito". In Dialéctica lIegatim. tradução deJosé María Ripalda. rcvisada por José Aguirre.Madrid. Taurus ediciones. 1975. p. 19.

7. Idem. p.218. Cf. Adorno. Theodor. W. "EinlcilUng zu einer

Diskussion überdie "Theorie der Halbbildung''''. InGesamme!te Schri{tl'll 8 - Soziologische Schri{tell8. Frankfurt am Main. Suhrkamp Verlag. 1972.p.575.

9. Adorno. Theodor. W. "Sobre a dialt'tica da iden-

tidade". In Dialéctica negalil'a. op. ci!.. p.I-!9.10. Cf. Gruschka. Andreas. Negati,'e Piidagogi/.::

EillfÜhnll1g in die Piidagogi/.: mit KrilischnTheorie. Band I der Schriftcnreihe de~ InstituIs

für Padagogik und Gesellschaft, Münster. Büchseder Pandora Verlags, 1988, p.38.

11. Idem, p.33.12. Idem, p.36.13. Adorno, Theodor, W. Educarão apÓs Ausclnvitz.

tradução de Aldo Onesti. In Cohn (org.), TheodorW Ado/'l1o. Coleção Grandes Cientistas Sociais.São Paulo, editora Ática, 1986. p.45.

14. Hilbig Norbert. Mit Adorno Schule machen -Beitriige zu einer Piidagogi/.: der KritischenTheorie: Theorie und Praxis der Gewaltl'rii-I'ention. Bad Heilbrunn, Verlag Julius Klinkhardt,1995, p.43.

15. Hilbig Norbert. Mit Adorno Schule machen...,op.ci!.. p.86.

16. Adorno, Theodor, W. Educarão apÓs Ausclmitz.op. cit.. p.39.

17. Idem. p.39.18. Hilbig Norbert, Mit Ado/'l1o Schule machen....

op.cit.. p.8S.19. Com coordenação de Bruno Pucci, o grupo de pes-

quisa Teoria crítica e eduCGrüo é composto porprofissionais de vários campos. tais como: filo-sofia, psicologia. letras, jornalismo. pcdagogia,etc.

20. Cr. Horkheimer. Max, "La teoria crítica, ayer yhoy". In Sociedad en transiciÓn: estudios defilos(,{ía social. tradução de Noan G. Costa, Bar-celona. editora Península. 1976. p.70.

21. CL Adorno, Theodor. W. "Anotações sobre leo-ria e prática", tradução de Newton Ramos-de-Oli-veira. In Ramos-de-Oliveira, N.. Quatro feXlOSclássicos. São Carlos, UFSCar. publicação inter-na. 1992. p.79.

22. Cf. Kant. Immanuel. "Resposta à pergunta: que éesclarecimento". In Textos selelOs, edição bilíngüe,tradução de Raimundo Vier e Floriano de SouzaFernandes. Petrópolis. editora Vozes. 1985. pp.100-116.

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