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Seminário Formação Jurídica e Povos Indígenas Desafios para uma educação superior 21, 22 e 23.03.2007 Belém-Pará-Brasil Educação superior para indígenas no Brasil – sobre cotas e algo mais Lima, 2007 1 EDUCAÇÃO SUPERIOR PARA INDÍGENAS NO BRASIL SOBRE COTAS E ALGO MAIS Antonio Carlos de Souza Lima1 O objetivo do presente texto é destacar alguns aspectos que vêm se demonstrando de significativa importância quando pensamos em políticas de ação afirmativa considerando os povos indígenas no Brasil como seus destinatários. Para tanto, procurarei em um primeiro momento recuperar, ainda que brevemente, um pouco da história da ação do Estado republicano brasileiro sobre os povos indígenas no país. Em um segundo momento destacarei como os povos indígenas passaram a demandar formação no nível superior. E, por fim, procuro indicar certos contornos de ações afirmativas que se adequem aos desafios da formação superior de indígenas. Antes dessa breve incursão histórica, porém, é preciso dizer que o perfil da população indígena brasileira é totalmente diferente da mexicana: segundo dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) os povos indígenas no Brasil totalizam 734.127 indivíduos indígenas, o equivalente a algo em torno de 0,2% da população total brasileira. Essa minoria numérica encompassa porém uma riqueza ímpar no planeta: são mais de 230 povos, 1 Antonio Carlos de Souza Lima é Antropólogo, professor de Etnologia do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ, bolsista de produtividade em pesquisa 1C do CNPq, e Bolsista Cientista do Nosso Estado/FAPERJ. É Co-coordenador do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED)/Departamento de Antropologia-Museu Nacional-UFRJ, onde desenvolve o projeto Trilhas de Conhecimentos: o ensino superior de indígenas no Brasil, com recursos da Pathways to Higher Education Initiative/Fundação Ford. A primeira versão deste texto resultou de uma entrevista realizada com o autor por Renato Ferreira do Programa Políticas da Co (PPcor)/Laboratório de Políticas Públicas-UERJ, entrevista que uma vez transcrita me foi enviada para revisão e transformou-se no que aqui está apresentado. Agradeço ao PPcor pelo convite e em especial a Renato Ferreira pelas perguntas pertinentes, pela gentileza e paciência. Agradeço ainda à Profa. Maria Barroso-Hoffman, co-coordenadora de Trilhas de conhecimentos, e à Profa. Mariana Paladino, pesquisadora do mesmo projeto, Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional que, respectivamente, da Noruega e da Argentina fizeram observações importantes sobre as questões aqui apresentadas, cuja formulaçao final são de única responsabilidade do autor.

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Seminário Formação Jurídica e Povos Indígenas

Desafios para uma educação superior 21, 22 e 23.03.2007 Belém-Pará-Brasil

Educação superior para indígenas no Brasil – sobre cotas e algo mais Lima, 2007

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EDUCAÇÃO SUPERIOR PARA INDÍGENAS NO BRASIL

SOBRE COTAS E ALGO MAIS Antonio Carlos de Souza Lima1

O objetivo do presente texto é destacar alguns aspectos que vêm se demonstrando de

significativa importância quando pensamos em políticas de ação afirmativa considerando os

povos indígenas no Brasil como seus destinatários. Para tanto, procurarei em um primeiro

momento recuperar, ainda que brevemente, um pouco da história da ação do Estado

republicano brasileiro sobre os povos indígenas no país. Em um segundo momento destacarei

como os povos indígenas passaram a demandar formação no nível superior. E, por fim, procuro

indicar certos contornos de ações afirmativas que se adequem aos desafios da formação

superior de indígenas.

Antes dessa breve incursão histórica, porém, é preciso dizer que o perfil da população

indígena brasileira é totalmente diferente da mexicana: segundo dados oficiais do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) os povos indígenas no Brasil totalizam 734.127

indivíduos indígenas, o equivalente a algo em torno de 0,2% da população total brasileira. Essa

minoria numérica encompassa porém uma riqueza ímpar no planeta: são mais de 230 povos, 1 Antonio Carlos de Souza Lima é Antropólogo, professor de Etnologia do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ, bolsista de produtividade em pesquisa 1C do CNPq, e Bolsista Cientista do Nosso Estado/FAPERJ. É Co-coordenador do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED)/Departamento de Antropologia-Museu Nacional-UFRJ, onde desenvolve o projeto Trilhas de Conhecimentos: o ensino superior de indígenas no Brasil, com recursos da Pathways to Higher Education Initiative/Fundação Ford. A primeira versão deste texto resultou de uma entrevista realizada com o autor por Renato Ferreira do Programa Políticas da Co (PPcor)/Laboratório de Políticas Públicas-UERJ, entrevista que uma vez transcrita me foi enviada para revisão e transformou-se no que aqui está apresentado. Agradeço ao PPcor pelo convite e em especial a Renato Ferreira pelas perguntas pertinentes, pela gentileza e paciência. Agradeço ainda à Profa. Maria Barroso-Hoffman, co-coordenadora de Trilhas de conhecimentos, e à Profa. Mariana Paladino, pesquisadora do mesmo projeto, Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional que, respectivamente, da Noruega e da Argentina fizeram observações importantes sobre as questões aqui apresentadas, cuja formulaçao final são de única responsabilidade do autor.

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falando 180 línguas – fora aqueles que falam apenas o português, tendo perdido suas línguas de

origem em função da violência assimilacionista do processo de colonização –, constituindo-se

no maior leque da diversidade humana contido num país. Distribuem-se por entre 582 terras

indígenas cujo direito lhes é reconhecido constitucionalmente, e que se situam em quase todos

os estados da federação brasileira. Na região da Amazônia Legal habitam 60 % dos indígenas

habitantes no Brasil, e por volta de 15% estão em cidades.

As terras indígenas, todavia, perfazem em torno de 13% de todas as terras brasileiras,

sendo das mais ricas em recursos naturais (biodiversidade e recursos minerais): raras áreas

preservadas num país cada vez mais devastado pelo extrativismo selvagem, pelo agronegócio,

pela exploração mineral. Na prática, muitas delas estão invadidas e os povos indígenas, nelas

encerrados, não têm contado com políticas governamentais de suporte a sua exploração em

moldes sustentáveis. É a partir exatamente do direito às suas terras tradicionalmente ocupadas

que veremos surgir um dos vetores da demanda indígena por formação superior, mas por uma

formação que considere seus conhecimentos tradicionais, seus saberes, e sua história

diferencial, sem folclorizá-los ou subsumi-los em uma falsa imagem de multiculturalidade em

que ocuparão sempre os estratos mais inferiores. Vejamos como a isso se chegou.

O ESTADO BRASILEIRO REPUBLICANO E SUAS POLÍTICAS INDIGENISTAS

O Brasil republicano (1899) emergiu de um recente passado colonial, trazendo consigo

os legados institucionais e simbólicos da monarquia, da escravidão, e da fusão entre a Igreja e o

Estado. Em que pese o afã modernizador do Segundo Império brasileiro, as elites mestiças

governantes da República tinham grandes desafios a enfrentar: um heteróclito e enorme

território, mitificado desde a chegada dos colonizadores portugueses como a sede de inúmeros

eldorados e quimeras, dotado de um vasto litoral; um contingente humano composto por

populações múltiplas - imigrantes vindos da Europa do Norte, negros de origem africana,

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negros crioulos, as populações indígenas dessa porção das Américas e uma massa de mestiços

que consistiria nos quadros da burocracia de um Estado nacional em expansão. Em suma, o

mapa de um país, entidade jurídica, em que a palavra “desconhecido”, tarjada sobre grandes

extensões, era dos mais freqüentes termos. Como, de tal caleidoscópio, forjar um povo, que se

sentisse pertencente a uma pátria brasileira? Como fazer este povo brasileiro ocupar, em nome

de uma soberania nacional, e tornar-se guardião de tão vastos espaços, seguindo o dístico da

bandeira republicana, ordem e progresso? Seria possível conceber que de tal emaranhado saísse

uma civilização? Seria possível conservar íntegro um território apenas juridicamente brasileiro,

mas em realidade incógnito, agora que o emblema imperial esvanecera-se enquanto signo de

uma forma de totalização, evitando-se o fantasma da fragmentação das colônias espanholas na

América, fantasma permanente dos militares brasileiros curiosamente ainda hoje? Como

defender esta vastidão da entrada de estrangeiros? Que métodos utilizar para tanto? Como fixar

as “fronteiras da nação”?

Para dar conta da implementação dessas tarefas nos quadros de um Estado em expansão

e de atividades econômicas que penetravam em regiões ocupadas por povos indígenas, foi

criado em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais

(SPILTN), depois apenas SPI, e sua direção foi entregue a Cândido Mariano da Silva Rondon,

um militar do Exército brasileiro que já teria mantido, por conta de trabalhos de extensão de

linhas telegráficas, contatos pacíficos com indígenas em guerra com as frentes de expansão .

Tendo os “selvícolas” sido incluídos entre os “relativamente incapazes”, junto a maiores

de dezesseis/menores de vinte um anos, mulheres casadas e pródigos, através do artigo 6º do

Código Civil brasileiro, em vigor desde 1917, os correligionáios de Rondon formularam e

encaminharam o texto aprovado como lei nº 5.484, em 27 de junho de 1928, que atribuiu ao

SPI a tarefa de executar a tutela de Estado sobre o status jurídico genérico de índio, sem deixar

claros os critérios que definiam a categoria sobre a qual incidia. Inaugurou-se então o regime

tutelar sobre os povos indígenas, marcado pelas mesmas idéias assimilacionistas de nosso

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arquivo colonial, em que os indígenas são categoria transitória pois uma vez expostos à

civilização, deixariam de sê-lo. Por isso a idéia era reconhecer-lhes pequenas reservas de terras,

o básico para se sustentarem, de acordo não com seus reais modos de vida, mas sim com aquilo

que se pretendia ser seu futuro – pequenos produtores rurais ocupando o território brasileiro,

isto é trabalhadores nacionais.

O SPI, órgão controvertido cuja extinção foi proposta inúmeras vezes, existiu até o ano

de 1967, quando já sob a ditadura militar foi criada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI)

que se responsabilizaria pela acentuada invasão das terras indígenas da Amazônia nos quadros

do desenvolvimentismo brasileiro.

Ao longo dos anos 1950, a experiência da ação indigenista do SPI rondoniano somou-se

à visão de jovens profissionais envolvidos com as questões de sua disciplina, a Antropologia

Social e Cultural, e o mundo do pós-guerra, com a consciência das doutrinas racialistas sob a

forma do holocausto, a crítica dos nacionalismos e dos colonialismos que transpassados do

século XIX, marcaram o século XX, revelando-se nas descolonizações, nas ex-capitais de

impérios europeus que tornariam-se, pouco a pouco, as grandes cidades multiculturais

européias e norte-americanas. Os jovens Darci Ribeiro, Eduardo Galvão e Roberto Cardoso de

Oliveira, etnólogos do SPI, viram surgir a Declaração Universal de Direitos do Homem, de

10/12/1948, da quail também redundaria a Convenção nº 107, de 26 de junho de 1957, da

Organização Internacional para o Trabalho (OIT), sobre a “Proteção de Populações Indígenas

e Tribais”, de cujo processo de discussão participou o SPI. O Brasil só a ratificaria nove anos

após, pelo Decreto nº 58.824, de 14 de julho de 1966. Assim, durante os anos 1950 esses

jovens antropólogos, indigenistas, médicos, biólogos envolvidos na exploração da região

central do Brasil, elaboraram uma nova visão, uma utopia, num país que historicamente

primou por construir sua auto-imagem de unidade homogênea.

Desse momento surgiria a idéia de que as terras ocupadas pelos indígenas deveriam lhes

assegurar uma transformação social auto-gerida e paulatina, em harmonia com o seu modo de

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relacionamento com a natureza. Disso surgiu a proposição e posterior criação de três parques

indígenas, dos quais o mais conhecido nacional e internacionalmente é o Parque Indígena do

Xingu (hoje chamado terra indígena), regulamentados após muita luta, em 1961, na região

central do país. Passamos, assim, mais ao nível da ideologia que das práticas, da imagem das

terras diminutas para uma assimilação forçada num tempo curto, para a de uma aculturação

paulatina em amplas porções do território brasileiro.

Como todos os países da América Latina, o Brasil da ditadura militar foi palco da ação

intensa do establishment desenvolvimentista internacional, notadamente do Banco Mundial,

fortemente criticado pelos movimentos de defesa dos direitos humanos e pelos primeiros

organismos internacionais de defesa dos povos indígenas, críticas que repercutiram nos

dispositivos financiadores da expansão governamental brasileira rumo à Amazônia, ameaçando

cortar os recursos financeiros ao regime ditatorial militar, moldando-se um padrão de interação

conflitiva entre Estado brasileiro, movimentos internacionais e agências multilaterais de

financiamento que marcaria a década posterior. No âmbito latino-americano, a anteceder este

momento, as críticas dos efeitos etnocidas das políticas desenvolvimentistas encontraram na

Reunião de Barbados, em 1971, e depois na “Reunião de Peritos sobre Etnodesenvolvimento e

Etnocídio na América Latina”, promovida pela articulação entre UNESCO e FLACSO, em

dezembro de 1981, em San José de Costa Rica Costa, momentos especiais na formulação de

propostas para um “desenvolvimento alternativo”, marcado pelos projetos de futuro próprios

aos povos indígenas, o etnodesenvolvimento, proposta da qual o antropólogo mexicano Rodolfo

Stavenhagen foi um dos principais formuladores.

Por outro lado, constituiu-se em 1972 no Brasil, um aparelho eclesiástico - o Conselho

Indigenista Missionário -, órgão assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

(CNBB), uma das poucas vozes que se pôde erguer contra a ditadura. O CIMI dedicou-se a

atuar em áreas indígenas consoante com as propostas do Concílio Vaticano II e seus corolários

latino-americanos (com desenvolvimentos missiológicos stricto sensu brasileiros), promovendo

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assembléias indígenas, dando campo a um tipo de associativismo pan-indígena que seria

enfatizado, no plano retórico, como via privilegiada para a autodeterminação indígena.

Esboça-se assim, aquele que é o elemento a questionar mais fortemente as tradições de

conhecimento de nosso arquivo colonial: o movimento indígena, onde o porta-voz branco, tutor

seja oficial ou não, deve ser ultrapassado, e dê curso à polifonia indígena em nosso país. No meio dessa conjuntura, um pouco para dar satisfação aos credores internacionais

do “desenvolvimento brasileiro”, o regime militar aprovou o chamado Estatuto do Índio, Lei

6001/1973, de teor assimilacionista e tutelar, mas que ainda assim, lançou as bases que

permitiram a luta por um novo direito, sobretudo às terras que ocupavam os povos indígenas,

em meio à desenfreada corrida às terras amazônicas. É sempre bom frisar que os financiadores

de hoje da “luta pela inclusão social” dos desprivilegiados, como o Banco Interamericano de

Desenvolvimento, os “financiadores”/geradores da dívida pública que ainda nos assola, são

aqueles mesmos que financiaram o “milagre econômico” dos anos 70 e inícios dos anos 80,

anos de grande afluxo dos recursos canalizados pelo Banco Mundial para ações infra-

estruturais na Amazônia: estradas, grandes projetos de desenvolvimento rural integrado.

Como em tantos outros casos, a década de 1980 em seus finais viu a chamada

“redemocratização” do Brasil e, como em outros países da América Latina, uma Assembléia

Nacional Constituinte e uma nova Constituição em 1988 .

Se podemos reconhecer sem dificuldades que o modelo tutelar instituinte do SPI e da

Funai, em que estão gravadas alguns dos piores aspectos dos estereótipos anti-indígenas que

seguem uma longa linha de continuidade desde o período colonial, encontrou seu fim

legalmente com o texto constitucional de 1988 e seus desdobramentos, não podemos nos

orgulhar de ter gerado, desde então, alternativas consistentes que o ultrapassassem. A

Constituição de 1988 reconheceu os direitos dos dos indígenas e de suas comunidades de

entrarem em juízo sem um tutor, às terras que tradicionalmente ocupam – o que ensejou uma

luta pela ação adminsitrativa de reconhecimento das terras indígenas nas bases atuais – e aos

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seus usos e costumes, dentre elas as suas línguas e formas tradicionais de transmissão de

conhecimentos.

Reconhecer o “fim jurídico” da tutela da União não basta: não acabaram de fato as

formas tutelares de poder, de moralidades e de interação; a Funai continua a existir segundo o

modelo tutelar sem um novo projeto das funções de Estado para o relacionamento entre povos

indígenas, poderes públicos e segmentos dominantes da sociedade brasileira, delineado e

pactuado por todos os envolvidos, sobre pelos povos indígenas. A crença em certas palavras de

ordem, muitas delas coincidentes com a agenda da cooperação técnica técnica internacional

para o desenvolvimento, segundo as regras neo-liberais, e uma dada destilação dos ideais de

uma “democracia participativa”, implementados sobre o solo da desigualdade social

brutalizante do país, acabaram por gerar um certo glossário de palavras de ordem significantes

mais ou menos vazias.

Estamos longe do ideal. Há toda uma “luta pelos direitos” a ser enfrentada, uma parca

regulação jurídica de inúmeros aspectos relativos às diferenças sócio-culturais, ao meio-

ambiente e ao patrimônio dessas populações que deve ser enfrentada como matéria de estudo e

intervenção, apesar do maior acúmulo existente hoje2. Há ainda, e mais importante, um imenso

trabalho a ser feito cotidianamente contra os preconceitos e pelo direito de se dizer indígena

sem se subsumir aos estereótipos mais freqüentes que a ignorância dos brasileiros em geral,

repetida a cada novela de televisão, música e imagem jornalística, fora os textos de cientistas

sociais e textos legais, insiste em ratificar. Afinal, se com a polêmica em torno da demanda de

afro-descendentes por cotas nas vagas de acesso às universidades “o Brasil se descobre

racista”, ainda falta muito para os brasileiros – sobretudo os das grandes cidades - descobrirem

que não “amam” e nem “admiram” os “nossos ancestrais indígenas”, muito menos se sentem

2 Para conhecimentos fundamentais dos direitos indígenas, inclusive na visão de advogados indígenas, ver Araujo, Ana Valéria et alii. Povos Indígenas e a lei dos “brancos”. O direito à diferença. Rio de Janeiro; Brasília: Trilhas de Conhecimentos/LACED; MEC/SECAD; UNESCO, 2006 (Coleção Educação para Todos – Série Vias dos Saberes).

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descendentes dos índios reais que hoje habitam o país, tão longe que estão do lugar a eles

reservado nessa representação mental que vem desde a colônia: a de viverem nus, enfeitados

com penas, dançando no meio de uma “floresta” que no cotidiano concreto está em progressiva

dizimação, ainda que nem todos os índios tenham jamais vivido em florestas. A desinformação

é enorme e por vezes a simpatia é tão perigosa quando a agressão aberta3.

Só para mencionar, temos a pensar pela frente o enorme desafio da migração indígena:

há muitos indígenas que estão nas cidades. A população indígena urbana no Brasil é muito

grande mesmo porque há aldeias e aldeias na Amazônia que se transformaram em vilas, estão

se urbanizando e têm problemas pelas suas dimensões de lixo e saneamento, por exemplo,

idênticos aos das cidades e vilas do interior, embora não tenham esse Estatuto. O próprio

movimento indígena, que tem tido de se conformar e lidar com a imagem do “índio aldeado”

não sabe o que fazer quando se defronta com situações em que estão mais próximos do “índio-

descendente”, para usar duas categorias que assomaram – como muitas outras – junto com as

cotas e que atrapalham, distorcem e escondem a falta de reflexão de nossa própria ciência

social (antropologia inclusive) sobre esses problemas sociais, conquanto a temática da

migração e da urbanização de povos tribais seja clássica na disciplina...mas na África! E tudo

isso continua ficando de fora da ação indigenista do Estado: para o bem e para o mal continua a

se confundir autoctonia e direitos coletivos com modo de vida camponês.

3 Para uma visão especialmente atualizada dos povos indígenas no Brasil e de seus desafios, escrita por um indígena antropólogo e pensador dos mais importantes do movimento indígena organizado, ver Baniwa, Gersem. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre o índio brasileiro de hoje. Rio de Janeiro; Brasília: Trilhas de Conhecimentos/LACED; MEC/SECAD; UNESCO, 2006 (Coleção Educação para Todos – Série Vias dos Saberes).

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ENSINO SUPERIOR E POVOS INDÍGENAS NO BRASIL – POR QUE OS ÍNDIOS

QUEREM ESTAR NAS UNIVERSIDADES?

Nesse quadro mais amplo, há dois vieses diferentes, mas historicamente entrelaçados,

que têm sido percebidos de modo separado e que, todavia, confluem na busca dos povos e

organizações indígenas por formação superior. O primeiro deles tem a ver com a educação

escolar que foi imposta aos indígenas, e que redundou na formação de professores indígenas. O

segundo viés passa pela necessidade de se ter profissionais indígenas graduados em saberes

científicos ocidentais, capazes de articular esses saberes e os conhecimentos tradicionais de

seus povos, pondo-se à frente da resolução de necessidades surgidas com o processo de

territorialização contemporâneo a que estão submetidos e que redundaram nas demarcações de

terras a coletividades, processo que se incrementou ponderavelmente após a constituição de

19884.

No que diz respeito ao primeiro viés, desde o início do SPI instalou-se uma rede de

escolas para educação de índios – ensino de “primeiras letras” e, sobretudo, de ofícios que os

situassem como futuros trabalhadores (corte e costura para mulheres, carpintaria para os

homens, por exemplo) – que se tornaria uma rede nacional de escolas indígenas sob a gestão da

Funai, teoricamente orientada para uma educação bilíngüe calcada no modelo do Summer

Institute of Linguistics, organização missionária que implantou a educação bilíngüe nas

Américas, usando um método de descrição de línguas indígenas muito eficaz para traduzir a

Bíblia pretensamente para todos os idiomas do planeta5. Outro vetor de influências foi a ação

4 O conceito de processo de territorialização como instrumento explicativo de distintos momentos em que ao longo da história da colonização do Brasil os povos indígenas foram sendo circunscritos a espaços geográficos administrativamente fixados foi desenvolvido por João Pacheco de Oliveira em “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais” (Mana, 4(1), 1998). O texto está disponível em :<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131998000100003&lng=pt&nrm=iso:> )

5 Acerca da “dimensão pedagógica” da ação tutelar do Estado Brasileiro junto aos povos indígenas, ver Souza Lima, Antonio Carlos. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação de Estado no Brasil.

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missionária, especialmente intensa no caso de certas ordens religiosas, como a dos Salesianos,

muito influentes no trabalho missionário no Alto Rio Negro, no Amazonas, e no Mato Grosso.

Também algumas outras confissões protestantes foram fundamentais na formação de indígenas

em outros pontos do país. Muitas das primeiras lideranças indígenas que assomaram à mídia

escrita e televisiva passaram por esses canais de formação.

Ao longo das décadas de 80 e 90, ONGs fundadas por antropólogos e o Conselho

Indigenista Missionário e a Operação Anchieta (hoje Operação Amazônia Nativa) passaram a

contestar a ação educativa da Funai e das missões tradicionais, propondo modelos alternativos

de escolarização6. Essas novas proposições integraram o leque mais abrangente da crítica à

tutela de Estado, em especial na área da educação escolar, e ao mesmo tempo sua ação se

potencializa com a ruína progressiva do monopólio tutelar. A partir dessas as iniciativas no

campo da educação escolar indígena passariam a estar marcadas pelas orientações em favor de

práticas diferenciadas e interculturais para os povos indígenas instituídas pela Constituição de

1988. O decreto n. 26/1991, que atribuiu ao Ministério da Educação as responsabilidades

principais na formulação e coordenação de uma política nacional de educação escolar indígena,

Petrópolis: Vozes, 1995. Ver também Leitão, Rosani M. Educação e Tradição: o significado da educação escolar para o povo Karajá de Santa Isabel do morro da Ilha do Bananal, To. (Dissertação de Mestrado) Goiânia: FE/UFG, 1998; Tsupal, Nancy Antunes. Educação Indígena bilíngüe, particularmente entre os Karajá e Xavante: alguns aspectos pedagógicos, considerações e sugestões (Dissertação de Mestrado). Brasília: FE/UnB, 1978); Barros, Maria Cándida D. M. Lingüística missionária: Summer Institute of Linguistics.”. Campinas:UNICAMP, 1993 (Tese de Doutorado).. 6 Cf. LOPES DA SILVA,Aracy (Coord.). A questão da Educação Indígena In: Cadernos da Comissão Pró- Ìndio. São Paulo. Editora Brasiliense, 1981; MELIÁ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São Paulo: Edições Loyola, 1979; OPAN. A conquista da escrita indígena. Encontros de educação. São Paulo: Editora Iluminuras, 1989; Para uma amostra no cenário global, ver Levinson, Bradley A.; Foley, Douglas & Holland, Dorothy C., eds. The cultural production of the educated person. Critical ethnographies of schooling and local practice. New York: Suny Press, 1996; Simpson, Anthony (ed.) The labours of learning. Education in the postcolony. University of Adelaide. 1999.

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ficando a sua execução na esfera municipial e estadual, não pôs fim às ações da Funai nesse

setor específico, mas foi do MEC que partiram as grandes transformações do período7.

Apesar de algumas ações terem se iniciado no período de 1991-1994, só no período de

1995-2002 a Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas (CGAEI)/Secretaria de

Educação Fundamental/MEC efetivamente deslanchou uma atividade que resultou, em

números do final da gestão de Fernando Henrique Cardoso, no atendimento de mais de 100 mil

estudantes indígenas, em uma rede de cerca de 1.392 escolas indígenas, assistidas por mais de

4.000 professores que trabalham em elevada percentagem (mais ou menos 75%) junto a seus

próprios povos. Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº.9.394 de 20 de

Dezembro de 1996), particularmente através de seus artigos 26, 32, 78 e 79, fixou as bases que

documentos como Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena (1993), do

Comitê de Educação Escolar Indígena, criado no MEC para subsidiar a formulação dessa

política, delinearam, e o posterior Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas -

RCNEI ampliaram, sobretudo através do Programa Parâmetros em Ação de Educação Escolar

Indígena, lançado em abril de 2002. Outros diplomas legais, como o Parecer 14/99 e a

Resolução n. 3/99, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação deram

continuidade à normatização da educação escolar indígena em território nacional; o item 9 do

Plano Nacional de Educação de 2001, sobre a educação escolar indígena, e particularmente sua

meta 17, que estabeleceu a formulação, em dois anos, de um plano para a implementação de

programas especiais para a formação de professores indígenas em nível superior, através da

colaboração das universidades e de instituições de nível equivalente; e a aprovação, em 2002,

pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação, do parecer do relator Carlos Roberto 7 Sobre a ação da Funai nessa política setorial, ver Fialho, Maria Helena. A Funai e o novo contexto de políticas públicas em educação Escolar Indígena: uma questão de direito à cidadania. In: Marfan, Marilda Almeida, (org.). Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação – Formação de Professores: Educação Escolar Indígena. Brasília: MEC/SEF, 2002, pp.25-28. Sobre a atuação do MEC nesse período, ver: Grupioni, Luís D. B. “De alternativo a Oficial: sobre a (im)possibilidade de Educação Escolar Indígena no Brasil”. In: Veiga, J. e D’Angelis, W. (org.) Leitura e Escrita em Escolas Indígenas. Campinas: Mercado das Letras. 1997.

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Jamil Curi sobre a formação de professores indígenas em nível universitário, atendendo à

solicitação da Organização dos Professores Indígenas de Roraima – OPIR por meio da Carta de

Canauanin8. De modo muito diferenciado da política tutelar da Funai, cujas bases da formulação até

hoje não se colocam à discussão e ao debate democrático, a forma como foi estruturada a ação

do MEC surgiu de amplo diálogo em que participaram intensamente índios e não-índios

referidos ao campo da educação, havendo ampla participação de ONGs indigenistas,

organizações de professores indígenas, universidades, que constituíram desde cedo um campo

com relativa autonomia e pouco referido, no nível federal e na escala nacional do campo

indigenista, às questões mais abrangentes enfrentadas pelos povos indígenas9. O comitê foi

posteriormente desativado (para queixas de muitos, que vêem nisso um retrocesso),

estruturando-se a Comissão Nacional de Professores Indígenas.

Para se ter uma idéia do escopo dessas ações é preciso que se saiba que a CGAEI, e o

MEC apoiaram, de 1995 a 2002, 65 projetos de escolas indígenas, atingindo em torno de 2.880

professores indígenas. A CGAEI/MEC promoveu, também, importante política editorial (51

títulos de 1995 a 2002), publicando materiais didáticos e livros que serviram, dentre outras

coisas, para ações de valorização da identidade étnica. Autores de 25 povos viram seus títulos

publicados. Foram promovidos também processos de capacitação de por volta de 820 técnicos

de secretarias estaduais e municipais de educação. Estes, por sua vez, tinham em 2002 por

clientela um total estimado de mais de 1.392 escolas em terras indígenas. 8 Cf. SILVA, Rosa H. Dias de. A autonomia como valor e articulaçao de possibilidades: o movimento dos professores indígenas do Amazonas, de Roraima e do Acre e a construção de uma política de educação escolar indígena. In: MORI, Angel Corbera e NASCIMENTO, Adir Casaro. Educação Indígena e interculturalidade. Cadernos CEDES. Nº 49. 1ª ed. Campinas: CEDES, 2000. 9 Para uma análise ampla da ação federal no tocante à educação escolar indígena, ver Matos, Kleber Gesteira. Educação escolar indígena In: BRASIL. Ministério da Educação. Políticas de qualidade da educação: um balanço institucional. Brasília: Mec/SEF, 2002, p.235-283. Para período mais recente, ver BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada. Alfabetização e Diversidade. Departamento de Educação para a Diversidade e Cidadania. Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena. Dados e indicadores a respeito da Educação Escolar Indígena no país. Brasília: CGEEI/SECAD/MEC, [ano].

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Se dos 93.037 estudantes indígenas em 1999, 80,6% estavam no ensino fundamental,

em 2002 uma margem estimada importante de alunos que concluíram o ensino médio e

reivindicam a entrada no ensino superior, na esteira dos cursos de magistério indígena

específico, surgidos em diversos pontos do país. Mas é fundamental dizer que os dados do

censo escolar são frágeis e que o acompanhamento a sério da questão (inclusive das

possibilidades de acesso e possível demanda pelo ensino superior) deveriam ser matéria de

pesquisa nacional realizada em bases mais sólidas. É sempre bom lembrar que em matéria de

povos indígenas as estatísticas brasileiras estão engatinhando.

No tocante à formação de professores indígenas, porém, nada foi feito na esfera do

MEC pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Os cursos pioneiros de licenciatura

intercultural indígena – e o termo intercultural mereceria um artigo em si - surgidos na

Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat – ver http://www.unemat.br/~indigena),

coordenado pelo Professor Elias Januário, e o Núcleo Insikiran de Formação Superior Indígena

da Universidade Federal de Roraima (http://www.insikiran.ufrr.br/), concebido pela Professora

Maria Auxiliadora de Souza Mello, já falecida, e hoje coordenado pelo Professor Fabio

Carvalho, estruturaram-se por iniciativas autônomas apoiadas, sobretudo, pela Funai por meio

de um dos seus núcleos mais consistentes de servidores e implementadores de ações, aqueles

que estão exatamente voltados para a educação escolar indígena.

No caso de Roraima, a presença das organizações indígenas no conselho do Núcleo

Insikiran torna-as co-autoras desse processo, e faz dessa experiência um caso singular que pode

apontar rumos muito inovadores nas relações entre universidade e movimentos sociais. Seja

destinando recursos, seja dando bolsas de estudo a alunos em universidades e faculdades

particulares a Funai tem fomentado a formação superior indígena, ainda que de modo pouco

transparente e assistemático.

Com a entrada do governo Lula, ainda sob a gestão de Cristovam Buarque à frente do

Ministério da Educação, na tentativa de estruturar mais amplamente as ações de governo para a

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educação escolar indígena, o imperativo da formação de professores indígenas gerou a

composição de um grupo de trabalho ao nível da Secretaria de Educação Superior, com ampla

participação de organizações indígenas, ONGs, da Funai, e de universidades. Mas foi apenas

com a entrada de Tarso Genro na gestão da pasta que de fato houve um encaminhamento mais

orgânico e preciso quanto à questão. Por um lado, o convite a Nelson Maculan para a SESU

propiciou uma maior sensibilidade às questões indígenas, com a contratação como consultora

via UNESCO de Renata Gérard Bondim, que estruturou um programa de ações para a educação

superior de indígenas, enfocando em especial, mas não só, a meta governamental de formar

professores indígenas10.

Por outro lado, a reestruturação do MEC, com a criação da Secretaria de Educação

Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), dirigida por Ricardo Henriques, retirou a

educação escolar indígena da esfera da educação fundamental, organizando-a sob a forma de

uma Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena, tendo por titular Kleber Gesteira e

Matos. A subseqüente reestruturação da Comissão Nacional de Professores Indígenas

enquanto Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, ampliando seu escopo e esfera de

ação, e uma renegociação do componente indígena no programa Diversidade na Universidade

(também realocado na SECAD) foram duas ações fundamentais levadas a cabo pela CGEEI.

Os recursos do “Diversidade” conjugaram-se a recursos orçamentários da SESU para permitir

uma ação conjunta SESU-SECAD: o lançamento do primeiro edital de apoio a iniciativas de

formação de indígenas no nível superior. O Programa de Formação Superior e Licenciaturas

Indígenas – PROLIND, fortemente marcado pela necessidade de formar e titular professores

indígenas no terceiro grau, mas com uma abertura para pensar na formação de profissionais

indígenas em outros cursos que respondam ao segundo viés mencionado antes.

Mas, apenas para se ter uma dimensão do que isso significa hoje, segundo dados do

Censo Escolar de 2005 processados pela CGEEI/SECAD eram no ano passado 2.324 escolas 10 Ver www.laced.mn.ufrj.br/trilhas/producoes/arquivos/DESAFIOS.pdf pp. 25-27.

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em terras indígenas, com 9.100 professores, dos quais 88% são indígenas, freqüentadas por

uma população de 164 mil alunos indígenas. Dessas escolas, 46,6% são estaduais, 52,5% são

municipais e 0,9% são particulares. São muitas as precariedades, pois a dedicação dos estados e

municípios à questão é muito variável. Mas é importante marcar um ponto – dos 164 mil

alunos indígenas, 11,3% cursam a educação infantil, 63,8% estão nas séries iniciais do ensino

fundamental; 14,8% estão nas quatro séries finais do ensino fundamental; 7,2% estão cursando

a educação de jovens e adultos e apenas 2,9 % cursam o ensino médio em terras indígenas. Na

sua maior parte os jovens indígenas que cursam o ensino médio o fazem com grandes

sacrifícios pessoais e de suas famílias, sofrendo grande discriminação e o que é muito próprio

das áreas próximas às terras indígenas – um tipo muito peculiar de invisibilidade que os torna

pouco perceptíveis aos olhos de professores e diretores de escolas, que sem má fé, mas

imbuídos dos preconceitos intensos nessas regiões os tomam por “caboclos” pouco letrados. A

SECAD está por divulgar um diagnóstico do ensino médio que cursam os indígenas no Brasil,

e tudo leva a crer que os resultados não têm como ser positivos.

É bom repetir, todavia, que se uma grande dinâmica se deu no nível federal, responsável

por normatizar, planejar e supervisionar a educação escolar indígena, nos níveis estadual e

municipal, responsáveis pela execução, foram freqüentes o preconceito, a ignorância, o

despreparo, o descumprimento ou a aplicação tacanha das normas mais gerais da educação,

pouco aplicáveis aos imperativos da educação escolar indígena. Do mesmo modo, o controle

social dessa política, através dos conselhos locais e estaduais, foi tosco ou limitou-se a medidas

administrativas, perdendo o seu caráter eminentemente político. Avaliar essa dimensão

demandaria um tipo de investimento e de produção de dados em corte nacional que ainda não

foi feito.

O segundo viés de demandas dos indígenas por formação superior surgiu com a

demarcação de boa parte das terras indígenas, o que se intensificou no período pós-

constitucional e, sobretudo, após a entrada, nas gestões de Fernando Collor de Mello e de

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Fernando Henrique Cardoso, da cooperação técnica internacional para o desenvolvimento,

financiando e normatizando a definição de terras indígenas no Brasil. Há muito escrito sobre

isso e alguns que integraram equipes que produziram sobre terras indígenas para permitir que

esse processo de instaurasse, ultrapassando a ação tutelar da FUNAI, hoje toma parte do

LACED, como João Pacheco de Oliveira, co-coordenador do nosso Laboratório e um dos

principais artífices da crítica à ação do Estado no tocante às terras indígenas11.

No período imediatamente pós-constituinte Ailton Krenak, importante liderança

indígena, organizou um centro de formação em Goiânia, visando enfrentar os desafios à

formação de indígenas em áreas desde a agronomia até a advocacia, pensando exatamente no

cruzamento dos conhecimentos tradicionais indígenas e dos saberes ocidentais e na necessidade

de terem quadros indígenas que construíssem novos relacionamentos com o Estado brasileiro e

com redes sociais nos contextos locais, regionais, nacional e internacional sem a mediação de

profissionais técnicos não-indígenas. Alguns dos formados estão hoje em ação, um ao menos

concluindo pós-graduação, mas a experiência foi descontinuada. O centro, em si, foi desativado

por sua pouca sustentabilidade e por se ter notado que dificilmente o intento de ter

profissionais, formados tão longe de suas aldeias de origem para atuarem entre seus povos,

dificilmente seria alcançado.

O fato é que a quebra do monopólio tutelar, a capacidade processual reconhecida às

organizações indígenas, o surgimento de políticas (não apenas a de educação, pois) como a de

saúde indígena, estruturada a partir da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) em 1999

colocaram os povos indígenas e suas organizações como protagonistas de processos para os

quais se faziam necessários conhecimentos que não lhes pertenciam nem chegavam com

11 Para uma coletânea de textos críticos ação estatal no tangente às terras indígenas, que remontam a 1983 acerca e ao Projeto Estudo sobre terras Indígenas no Brasil (PETI), ver Pacheco de Oliveira, João, org. Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998; Disponível em: http://lacemnufrj.locaweb.com.br/produtos/banco_dados/peti.htm e http://lacemnufrj.locaweb.com.br/produtos/textos/textos_online/publicacoes_peti.htm.

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facilidade. Apesar de muita coisa escrita sobre educação escolar indígena, e de uma espécie de

consenso (não majoritário e nem absoluto) sobre a “educação escolar intercultural, bilíngüe e

diferenciada” como é a proposta encampada pela política federal, sabemos muito pouco sobre

quem está fazendo o que nesse campo.

Em levantamento de 1998/1999 realizado por João Pacheco de Oliveira e Antonio

Carlos de Souza Lima, e que informaria a realização do seminário Bases para uma nova

Política Indigenista, constatava-se que uma das maiores preocupações de diversos segmentos

governamentais e não-governamentais envolvidos em todos esses processos de constituição de

“políticas da diferença”, em que a territorialização é um eixo fundamental era com a

necessidade de “capacitar” – termo caro ao jargão desenvolvimentista – os povos indígenas e

suas organizações para concorrerem a recursos de diversos mecanismos de fomento, para

coadjuvarem numerosos processos dos quais idealmente eram os destinatários e deveriam ser

os protagonistas. Para tanto deveriam proliferar (e proliferaram) os cursos de treinamento em

métodos de montagem de projetos, em técnicas de gestão de organizações, que se impuseram

pela via dos formatos em que operam as agências internacionais e nacionais de fomento.

Naquele momento, já muitos indígenas propunham que além de treinamentos tópicos

era necessário que se formassem nas universidades, que adquirissem os conhecimentos dos

“brancos” para lidar com os brancos. Muitos conseguiram, e ainda conseguem, por esforço

pessoal – e hoje por política assumida por muitas organizações indígenas, que financiam ou

apóiam estudantes indígenas para que estudem nas cidades e adquiram conhecimentos que

revertam a suas comunidades – entrar em universidades públicas, mas manter-se tem sido o

maior desafio.

As bolsas fornecidas pela FUNAI, como já mencionado, têm sido um suporte quase

único para isso. Mas não há um programa de bolsas transparente e estabelecido para isso. Boa

parte dos recursos assim recebidos vão com freqüência para o pagamento de mensalidades em

universidades particulares de qualidade muito duvidosa, mas situadas em cidades próximas às

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terras indígenas. Criado pelo Governo Lula para criar vagas gratuitas no ensino superior

privado em troca de isenções fiscais ao governo federal o Programa Universidade para Todos -

PROUNI foi praticamente inútil para isso: a maioria dos estudantes indígenas com ensino

médio não passou pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), condição de acesso ao

programa nunca flexibilizada para os estudantes indígenas. Ele realmente não é para todos.

Urge, portanto, que a mesma atenção que foi dedicada ao ensino fundamental, reverta

na estruturação do ensino médio e do superior. As políticas de ação afirmativa, instituídas ao

apagar das luzes do segundo mandato FHC, e de fato implementadas na gestão de Lula,

enfrentam hoje o desafio de conhecer esse mundo específico da educação escolar indígena,

adequando-se mais amplamente às especificidades da situação indígena, criando mecanismos

de acesso à universidade que não reproduzam pura e simplesmente as alternativas pensadas

para o contexto das populações afro-descendentes, levando em consideração a necessidade de

instituir uma política voltada para povos, isto é, capaz de beneficiar, mais do que indivíduos

embora que por meio deles, coletividades que pretendem manter-se culturalmente

diferenciadas.

SOBRE COTAS E ALGO (MUITO) MAIS

É importante marcar que as organizações indígenas pensaram pouco sobre a questão do

ensino superior, pois estiveram e estão muito preocupadas em manter as terras de seus povos e

assegurar bases para a subsistência. Em diversas regiões do país essa demanda tem surgido com

mais força nos últimos tempos e iniciativas no sentido de formar quadros profissionais da

etnogestão, como o recém-criado Centro Amazônico de Formação Indígena, uma iniciativa da

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) têm se

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estruturado12. Por outro lado, um importante conjunto de pesquisadores indígenas portadores de

títulos de mestrado e doutorado, intelectuais destacados do movimento indígena acabam de

criar o CINEP – Centro Indígena de Estudos e Pesquisas, cujas metas principais estão no

campo da pesquisa e da formação de quadros técnico-intelectuais13. Os intelectuais indígenas

têm bastante clareza de que se o acesso às universidades é importantíssimo e que as cotas

podem servir como um instrumento valioso tanto para a situação de povos territorializados –

ainda que muitos de seus integrantes estejam em trânsitos permanentes entre esses territórios e

ambientes urbanos deles próximos ou distantes, ou que nesses territórios suas aldeias muitas

vezes estejam adquirindo o perfil de cidades –, quanto para aqueles que, muitas vezes

motivados pela busca da educação, se deslocaram para os centros regionais ou mesmo para

cidades distantes, como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Afinal, salvo pelos cursos

específicos de formação de professores que vêm surgindo, foram pouquíssimos os indígenas

que acessaram universidades públicas antes de em algumas delas existirem cotas. Em geral, até

então, os indígenas acessavam (e continuam na sua maioria acessando) faculdades e

universidades particulares, de qualidade muito duvidosa14.

12 Sobre o CAFI, ver http://www.coiab.com.br/jornal.php?id=427. Em momento anterior a idéia de treinar pessoal capacitado em etnodesenvolvimento instigou-nos a estruturar propostas de cursos de de especialização (ver em http://lacemnufrj.locaweb.com.br/produtos/cursos/index.htm os sumários), dirigidos e freqüentados por indígenas e não-indígenas, em parceria com as Universidades Federal do Amazonas e de Roraima. Iniciativa próxima a essas foi pensada e executada pela Universidade Católica Dom Bosco, também com participação indígena. 13 “O Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (CINEP) é uma organização indígena criada em novembro de 2005 por 33 lideranças do movimento indígena brasileiro, por ocasião do I Encontro Nacional das Organizações Indígenas do Brasil, com objetivo de se constituir como uma entidade indígena de apoio e assessoria às organizações e comunidades indígenas, focado na pesquisa e serviços técnicos. Seu quadro de sócios está formado por lideranças de organizações indígenas regionais e por pesquisadores e acadêmicos indígenas. Sua atuação prioritária está voltada para o campo dos estudos e pesquisas de interesse do movimento social indígena e para prestação de serviços e assessorias técnicas às organizações e comunidades indígenas. Para cumprir essas tarefas, o principal desafio é formar seu próprio quadro e o das organizações indígenas.” (CINEP. Primeiro projeto institucional do CINEP – Centro Indígena de Estudos e Pesquisas – Biênio 2007/2008. Brasília: CINEP, 2006). 14 Para um levantamento da presença de indígenas em universidades desse perfil, ver Souza, Hellen Cristina de. Ensino superior para indígenas no Brasil (mapeamento provisório). Tangará da Serra: IESALC/Unemat, 2003.

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Mas cotas, no caso dos indígenas, sem mudanças muito mais amplas nas estruturas

universitárias, de modo a que estas reflitam sobre sua prática a partir da diferença étnica, de um

olhar sobre quem se desloca de um mundo sócio-cultural e, em geral, lingüístico totalmente

distinto, ainda que os estudantes indígenas pareçam e sejam – uns mais outros menos –

conhecedores de muito da vida brasileira. Não se trata stricto sensu de um único e mesmo

preconceito, nem de uma única e mesma forma de discriminação que também no meio

universitário atinge os indígenas, os afro-descendentes e os estudantes classificados como

“pobres” rurais e urbanos, negros ou não (e regionalmente muito distintos). Não se trata,

tampouco, como no caso dos afro-descendentes e da população de baixa renda, de incluir uma

minoria (em termos de poder) de excluídos no acesso e controle dos mesmos instrumentos que

historicamente têm servido à manutenção dos poderes das elites governantes no país, mas sim,

de rever as estruturas universitárias muito mais radicalmente. Ao incluir os indígenas nas

universidades há que se repensar as carreiras universitárias, as disciplinas, abrir novas (e

inovadoras) áreas de pesquisa, selecionar e repensar os conteúdos curriculares que têm sido

ministrados, e testar o quanto estruturas, que acabaram se tornando tão burocratizadas e

centralizadoras, podem suportar se colocar ao serviço de coletividades vivas, histórica e

culturalmente diferenciadas.

As universidades devem estar prontas para se indagarem sobre o quanto podem

beneficiar-se da presença indígena, vivificando-se a ampliando-se, na construção de um mundo

de tolerância e riqueza simbólica em que não bastará mais a repetição ampliada dos paradigmas

do horizonte capitalista contemporâneo. Nada disso é ou será rápido. Nada disso se resolverá

com dinâmicas exemplares e demonstrativas, com experiências piloto, ou projetos sementes,

nem com a criação de castas de “empoderados” que nos mitiguem o fato de que pertencemos a

um dos países de maiores contrastes e desigualdades sócio-econômicas, mas que singularmente

contém dentro de seus limites jurídico-políticos um dos maiores espectros da experiência

humana. Não se reverte 500 anos de colonalismo e dizimação nem a baixos custos nem da noite

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para o dia. Nestes termos, ao invés de pobres excluídos – ainda que vivam em condições

materiais que eles desejam ver melhorar – os povos indígenas deveriam ser vistos como

dotados de uma riqueza própria, de uma capacidade especial de se manter diferentes e

conservarem seus valores sob tanta pressão colonialista e tanta violência, cujas histórias

interconectadas às do Brasil, devem ser conhecidas e divulgadas por entre todos os

brasileiros15.

É preciso ter muito claro que os acadêmicos indígenas são jovens que podem ser

fenotipicamente muito parecidos com os habitantes regionais com que convivem. Chegam ao

ponto de, como dito antes, serem até mesmo invisíveis enquanto integrantes de coletividades

etnicamente diferenciadas para seus professores e para a estrutura universitária em que se

inserem. Mas o fato é que diferem dos outros estudantes regionais, pobres, negros, brancos, por

seus sistemas de valores e de pensamento, por seus conhecimentos, por sua visão de mundo em

última instância, fora de por suas redes de parentesco e relacionamento e, não esqueçamos,

saberem-se portadores de identidades diferenciadas hoje apoiadas em direitos coletivos. São,

também, portadores da consciência acerca do peso do sistema de preconceitos que incide sobre

eles indígenas – muito distinto do relativo aos afro-descendentes – ainda quando essas tramas

de estereótipos, verdadeiras narrativas historicamente construídas ao seu redor, transformando

a rica diversidade de seus modos de viver em um ente único e genérico, que todos nós

brasileiros, negros, brancos, filhos de imigrantes, supomos conhecer – “o índio”16.

Há aqui um ponto bastante delicado que as cotas trouxeram à consciência pública faz

pouco tempo, mas que os indígenas conhecem desde há muito: o da identificação de quem é ou

15 Para uma reconsideração das relações entre a história que se conta do Brasil e a presença indígena, veja Pacheco de Oliveira, João & Rocha Freire, Carlos Augusto da. A presença indígena na história do Brasil. Rio de Janeiro; Brasília: Trilhas de Conhecimentos/LACED; MEC/SECAD; UNESCO, 2006 (Coleção Educação para Todos – Série Vias dos Saberes). 16 Para saber mais acerca da complexidade da situação lingüística dos povos indígenas no Brasil, ver Maia, Marcus. 2006 – Manual de lingüística. Subsídios para a formação de professores indígenas na área da linguagem. Rio de Janeiro; Brasília: Trilhas de Conhecimentos/LACED; MEC/SECAD; UNESCO. (Coleção Educação para Todos – Série Vias dos Saberes).

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quem não é indígena, logo de quem tem ou quem não tem direitos diferenciados. Como dito

acima, o Estado brasileiro republicano, teve sempre historicamente, uma atitude etnocida frente

aos povos indígenas e aos demais grupos culturalmente diferenciados – imaginou os indígenas

como seres transitórios, que se transformariam em pequenos proprietários ou trabalhadores

rurais17. Assimilar, como resultado de integrar sempre foi o imperativo.

Juntando-se essas posturas com as imagens mentais que se tem no Brasil de quem é e

quem não é índio, e mais, com os interesses por expropriar os indígenas de suas terras e usar

seu trabalho a baixos custos, dá para entender não só o porquê, como dito, a ação do SPI no

Nordeste começou depois de em todo o país, mas porque nos anos 1980, sob a gestão na Funai

do coronel da reserva João Carlos Nobre da Veiga (1979-1981), o Coronel da Aeronáutica e

especialista em estratégia Ivan Zanoni Hausen propôs que fossem estabelecidos critérios de

indianidade que permitiriam determinar quem era e quem não era índio. A ampla reação contra

mais esse movimento de instrumentalizar a administração pública para excluir mais e mais

indígenas de seus direitos e eximir-se de suas obrigações conseguiu afastar o perigo imediato,

mas não resolveu o problema que as cotas de certa forma estão servindo para açular: iludimos

cotidianamente e estudamos pouco – embora as representações oficiais do país consagradas nos

livros didáticos, o que hoje ficou simploriamente reduzido a “bater” ou “salvar” a “ideologia da

democracia racial” – o fato de que não podemos desconhecer a realidade da mestiçagem

biológica que no caso indígena foi mesmo matéria de políticas da Coroa portuguesa, que

estimulou-a inclusive pecuniariamente.

Por muito tempo, e em muitas regiões do país, termos como caboclo, bugre e outros

ocultaram a presença indígena, e o movimento indígena, dos anos 1980 para diante, procurou

lutar para, assumindo o termo genérico índio como status jurídico e (re)afirmando auto-

17 Para intervenções sobre populações imigrantes, ver, por exemplo, Seyferth, Giralda. Os imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo. In: Pandolfi, Dulce, org. 1999 – Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. p.199-228.

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designações pouco referenciadas quer no cotidiano desses povos quer na literatura

antropológica. Em suma, seriam aqueles “índios que não são mais (os nossos) índios”.

Mas o termo caboclo, ao menos, também dá conta de outras realidades que hoje vêm

sendo recobertas por termos variados, como os de populações tradicionais, ribeirinhos (no caso

amazônico) etc. Essas coletividades, fenotipicamente e mesmo culturalmente, se distinguem

muito pouco das coletividades indígenas, mas não se percebem como tais nem outras

coletividades indígenas as vêm assim. Não são casos de “má-consciência”, nem de não terem

“assumido” sua indianidade. Há, portanto, que se ter cuidado, muito cuidado quanto a este

ponto: no cenário de grande pressão sobre terras em regiões de colonização antiga continua-se

hoje a negar o reconhecimento oficial da indianidade a diversas coletividades (também na

gestão atual da FUNAI, do antropólogo Mércio Pereira Gomes), sendo este um ponto sensível

na agenda do movimento indígena, do Ministério Público Federal e da Associação Brasileira de

Antropologia.

Afirmar ou não, e reconhecer ou não uma identidade diferenciada culturalmente

diferenciada se coloca diante de um cenário em que a administração pública continua a se

afirmar como “O Estado” brasileiro, arbitrariamente deliberando com enorme poder no

cotidiano quem tem acesso a que direito. No cenário do debate sobre cotas essa questão se

(re)coloca, e, lamentavelmente, os mais envolvidos no debate, militantes ou intelectuais, têm

demonstrado conhecer muito pouco da experiência dos indígenas e as políticas indigenistas

brasileiras, caindo muitas vezes em posições muito próximas aos interesses anti-indígenas

(esses regados ao ranço da retórica desenvolvimentista tão presente no cenário atual) ou numa

defesa de posições que passam pela falta de discussão sobre o tema. Afinal, no país da mistura

reconhecer a discriminação é sempre confuso, difícil e sutil. Mas o próprio movimento

indígena organizado tem pontos importantes de debate neste terreno, e têm sido questionadas as

interpretações simplórias da Convenção 169 da Organização Mundial do Trabalho (OIT), da

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qual só em 2003 o Brasil se tornou formalmente signatário, como, por exemplo, o uso

exclusivo da idéia de auto-identificação individual enquanto critério de acesso a direitos18.

Na prática das universidades com políticas de acesso diferenciado para indígenas, ou

que mantêm cursos de formação de professores indígenas, as soluções adotadas não parecem se

livrar do peso da administração tutelar na história da relação entre povos indígenas e o Estado

brasileiro: algumas universidades exigem para a inscrição dos indígenas em vestibulares a

“carteira da FUNAI” – um documento emitido pela Fundação para indivíduos indígenas, que

equivocadamente alguns pensam que tem o mesmo valor de uma cédula de registro geral, a

carteira de identidade - ou uma carta dela proveniente.19 Em alguns casos, pede-se também

uma carta da comunidade ou da liderança da comunidade onde se reconheça o portador como

um candidato da coletividade signatária. Este também é um ponto polêmico: para alguns alunos

indígenas (especialmente para aqueles cujas famílias acham-se afastadas das aldeias de origem

há mais tempo) a indicação vira matéria de “política” e não é “universal” ou dada a todos pelo

critério (alheio aos povos indígenas) do mérito escolar. Afinal, a importância do parentesco

18 A convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho diz, em seu artigo 1º.: [a] presente convenção aplica-se: (a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; (b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. Em artigo subseqüente dispõe que “[a] consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção. “A utilização do termo "povos" na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional”. Para download no site da OIT ver: www.oitbrasil.org.br /info/downloadfile.php?fileId=131. Sobre a questão do reconhecimento étnico, ver Santos, Ana Flávia Moreira & Pacheco de Oliveira, João. Reconhecimento étnico em exame: dois estudos sobre os Caxixó. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2003. 19 Encontra-se, no site do projeto Trilhas de conhecimentos, um levantamento (ora sendo reatualizado) das ações afirmativas desenvolvidas em universidades públicas que pode ser consultado em: http://www.laced.mn.ufrj.br/trilhas/producoes/arquivos/Levantamento%20ações%20afirmativas%20índios%20universidades%20FINAL.pdf.

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entre os povos indígenas é amplamente reconhecida – e cá entre nós na sociedade brasileira

(mutatis mutandis), também. Para alguns intelectuais defensores das ações afirmativas a crítica

também segue nessa direção, supondo-se um pendor à universalidade da fruição dos direitos

que nossa sociedade mesma não tem e nunca teve senão no discurso e na lei escrita – e dela são

esses valores como mostra do “mundo ocidental”. Demonstra-se mais uma vez o

desconhecimento dos circuitos de poder próprios às coletividades indígenas, suas tradições e

usos, o desrespeito aos modos de ser diferenciados dos “nossos”, esquecendo-se o se percebe

pela ótica dos valores democráticos para uns pode ser a quebra dos esquemas de solidariedade e

reciprocidade para outros.

Algumas dessas universidades, por vias variadas (governo estadual, Funai, fundos

próprios) concedem bolsas aos alunos indígenas. No caso da Universidade Estadual do Mato

Grosso do Sul (UEMS), a IES que abriga o maior número de alunos indígenas cotistas, eles

ficam obrigados a trabalhar em atividades administrativas, funcionando como mão-de-obra

remunerada por “bolsas de trabalho”, tendo parte de seu tempo roubado da possibilidade de

superar dificuldades de adaptação. A administração superior da universidade não tem sido

sensível aos pedidos de docentes envolvidos com o acompanhamento dos alunos indígenas de

que estes tenham a carga horária das bolsas voltadas para a sua própria formação e para

trabalhos de ação afirmativa20.

Há, pois, todo um enorme conjunto de problemas e polêmicas a ser enfrentado quando

pensamos em políticas de acesso, permanência e sucesso no ensino superior para indígenas

partindo do princípio de são diversos os indígenas e suas situações no Brasil. Tampouco os

problemas da maioria dos indígenas quanto a essa questão são os mesmos que os de afro-

descendentes e estudantes de baixa renda.

20 A UEMS e a Universidade católica Dom Bosco (UCDB) formam um consórcio em um núcleo de ações afirmativas, intitulado Programa Rede de Saberes (ver em http://www.rededesaberes.org/) financiado através de recursos da Pathways to Higher Education Initiative/Fundação Ford, sob a supervisão do LACED/Museu Nacional dentro do projeto Trilhas de Conhecimentos.

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Certas soluções podem, contudo, ser muito semelhantes em aparência às ações

afirmativas decorrentes da implantação de cotas para afro-descendentes e/ou para egressos de

camadas de baixa renda. Assim, a necessidade de bolsas de manutenção que permitam aos

alunos dedicarem-se aos cursos, deslocarem-se e alimentarem-se, terem acesso ao material

necessário aos estudos; a de terem tutores acadêmicos especialmente qualificados é uma

necessidade (e uma demanda) mais geral, embora os tutores de certo precisem de informações e

treinamento muito diferente caso trabalhem com alunos afro-descendentes, indígenas ou de

baixa renda.

Mas vejamos um exemplo da diferença impactante entre as situações mencionadas - o

deslocamento de estudantes indígenas pode significar mudanças não só dentro de perímetros

urbanos ou de periferias para zonas centrais de cidades; podem significar, por exemplo, cruzar

distâncias de suas áreas até centros urbanos onde estão unidades universitárias equivalentes a

toda extensão do estado do Rio de Janeiro. A mudança pode significar ainda, que o aluno não

se deslocará sozinho, mas irá junto com sua família, pois mesmo sendo um jovem de idade

próxima à dos que entram para universidades em grandes centros, pode estar casado, dados os

costumes de seus povos.

A moradia nas cidades vem sendo, pois, por todo o Brasil indígena um problema crucial

quanto se toca no tema ensino superior. Nesses termos, mais que criar cotas é muito importante

que exista uma política de interiorização das universidades orientada para perceber e dialogar

com a realidade dos povos indígenas, que a partir dela surjam campi universitários dotados, por

exemplo, de alojamentos, bibliotecas, acesso à internet etc; e docentes equipados com

treinamento intelectual – e formação cultural – capazes de reverter os preconceitos que em

geral avultam em regiões interioranas.

É preciso que surjam, também, outros modelos de cursos específicos em outras áreas do

saber. A Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) tem discutido, por exemplo, a criação de

um curso de agroecologia para alunos indígenas, a ser ministrado de maneira semelhante ao de

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formação de professores que está iniciando na Universidade Federal da Grande Dourados, uma

iniciativa que pode impulsionar uma reflexão muito própria e singular numa área de

importância estratégica no futuro da humanidade, e que para a qual sem dúvida os

conhecimentos tradicionais indígenas têm muito a aportar. Mas é importante destacar que uma

iniciativa dessa natureza, tem custos altos econômicos na mentalidade dos planejadores da

educação superior e que aí está um ponto que precisa ser superado e enfrentado.

Por outro lado, levar a sério a presença de alunos indígenas dentro das universidades

implicaria em criar interfaces para o diálogo, por exemplo, incorporando cursos sobre Direito

indígena nos curricula das universidades e ter profissionais capazes de ministrá-los.

Significaria oferecer cursos de línguas indígenas, mas ministrados por indígenas que não

necessariamente precisariam ser portadores de graus universitários, ou contar com xamãs

dentro de faculdades da área de saúde, reconhecendo a autoridade intelectual dos portadores de

conhecimentos tradicionais.21 Temos um longo caminho pela frente a percorrer, mas exemplos

de aproximações e possibilidades existem em outros países das Américas.

As cotas têm sido importantes, tanto quanto a demanda do movimento indígena por

espaços de formação. Mas não basta, no caso indígena, criar cotas e esperar que os estudantes

indígenas façam por si todo o trabalho que um sistema de ensino inteiro precisaria fazer, ou

jogá-los em escolas de péssima qualidade fabricantes de títulos, nem escolher 3 ou 4 indígenas

para serem objeto de um assistencialismo rançoso. Sem dúvida isso criará números mágicos em

nossas estatísticas educacionais e santificará ainda muito mais os paladinos das ações

afirmativas. Do contrário, passar no vestibular o que muitas vezes, e sem cotas, os indígenas

têm conseguido, de nada servirá. Paladinos ou detratores das cotas têm demonstrado pouco

perceber o que esse debate significa em termos das realidades indígenas: no plural mesmo –

21 Experiências pioneiras nessa interlocuação intercultural no Brasil têm sido feitas no Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane/Fiocruz/AM, sob a liderança da Dra. Luiza Garnello, trabalhando junto com especialistas nativos do povo Baniwa.

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pois essa é uma das grandes questões! É isso que precisa mudar. Trata-se de reconhecer a

pluralidade dos povos indígenas e o que agregam à pluralidade da sociedade brasileira!