educacao liberal

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EDUCAÇÃO LIBERAL NA SOCIEDADE LIVRE Padre James V. Schall, S.J. “Pompeu, tendo então ordenado todas as coisas [...] tomou o rumo de casa [...]. Quando chegou a Mitilene, deu à cidade liberdade [...] e esteve presente no concurso de poetas que periodicamente mantinham [...]. Estava extremamente satisfeito com o teatro e com o modelo que este seguiu, pretendendo erigir semelhante em Roma, maior e mais suntuoso. Quando veio a Rodes, freqüentou as classes de todos os filósofos daquela cidade [...]. Em Atenas, também demonstrou semelhante liberalidade para com os filósofos, e doou cinqüenta talentos para a restauração e embelezamento da cidade [...]. Por todos esses atos esperava retornar à Itália no maior esplendor e glória possíveis ao homem, e encontrar sua família tão desejosa de reencontrá- lo quanto ele se sentia desejoso em revê-los ao voltar para casa. Mas aquela força sobrenatural, cuja competência e tarefa é sempre misturar algum ingrediente de mal nos maiores e mais gloriosos bens da sorte, esteve por um tempo ocupada dentro de sua própria casa, preparando para ele uma triste recepção. Pois Múrcia, durante sua ausência, desonrou o leito conjugal [...].” – Plutarco, Vida de Pompeu. “Não estou absolutamente certo dos fatos, mas creio que foi Shakespeare que disse que sempre que um sujeito está se sentindo particularmente fixado às coisas em geral, o destino chega sorrateiramente por detrás com uma ponta de ‘cano de chumbo’. E o que quer insinuar é que o homem está perfeitamente certo” * . – P. G. Wodehouse, Jeeves e o hóspede não convidado. * N. do T.: “Cano de chumbo” (Lead piping) é uma gíria da língua inglesa para as personagens que não têm absolutamente nenhuma chance, mas continuam teimosamente a lutar. Na citação em questão o humor do texto está no trocadilho do sentido literal com o figurado. I Os seres humanos ficam justificadamente perplexos porque os planos mais bem elaborados normalmente não podem ser aproveitados. Talvez, quando pensam sobre o assunto, fiquem até mais confusos ao considerar um mundo, o mundo atual, no qual ao menos alguns de seus planos funcionam bem. Como isso pode acontecer? A atividade humana, afinal de contas, existe num mundo onde pode sujeitar ao menos algumas coisas não humanas aos próprios propósitos, onde ela pode persuadir alguns seres humanos a seguir suas diretrizes. Evidentemente existe alguma correspondência entre a razão humana e as coisas que existem. Por sobre rios, desfiladeiros e estreitos construímos pontes que não caem. Quando assobiamos para chamar nosso cão, ele vem correndo. Não criamos nem o cachorro, nem a habilidade de assobiar, nem o rio, mas inventamos a ponte. O pensamento brota da realidade e a realidade é modificada pelo pensamento ligado, nesse caso, às nossas mãos e à boca com que assobiamos. Mas encontramos uma ironia em nossa existência, como nos mostra as duas citações acima. A maior das glórias políticas, no caso do general romano, é penosamente moderada pela perda da virtude moral no próprio lar. Ele pôs fim à guerra, libertou a cidade, ouviu os filósofos, embelezou Atenas, planejou um teatro romano, amou sua família – todas as características reconhecidas como as de um homem livre e nobre. No entanto, desde o

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Padre Schall

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Page 1: Educacao Liberal

EDUCAÇÃO LIBERAL NA SOCIEDADE LIVRE

Padre James V. Schall, S.J. “Pompeu, tendo então ordenado todas as coisas [...] tomou o rumo de casa [...]. Quando chegou a Mitilene, deu à cidade liberdade [...] e esteve presente no concurso de poetas que periodicamente mantinham [...]. Estava extremamente satisfeito com o teatro e com o modelo que este seguiu, pretendendo erigir semelhante em Roma, maior e mais suntuoso. Quando veio a Rodes, freqüentou as classes de todos os filósofos daquela cidade [...]. Em Atenas, também demonstrou semelhante liberalidade para com os filósofos, e doou cinqüenta talentos para a restauração e embelezamento da cidade [...]. Por todos esses atos esperava retornar à Itália no maior esplendor e glória possíveis ao homem, e encontrar sua família tão desejosa de reencontrá-lo quanto ele se sentia desejoso em revê-los ao voltar para casa. Mas aquela força sobrenatural, cuja competência e tarefa é sempre misturar algum ingrediente de mal nos maiores e mais gloriosos bens da sorte, esteve por um tempo ocupada dentro de sua própria casa, preparando para ele uma triste recepção. Pois Múrcia, durante sua ausência, desonrou o leito conjugal [...].”

– Plutarco, Vida de Pompeu. “Não estou absolutamente certo dos fatos, mas creio que foi Shakespeare que disse que sempre que um sujeito está se sentindo particularmente fixado às coisas em geral, o destino chega sorrateiramente por detrás com uma ponta de ‘cano de chumbo’. E o que quer insinuar é que o homem está perfeitamente certo”*. – P. G. Wodehouse, Jeeves e o hóspede não convidado.

* N. do T.: “Cano de chumbo” (Lead piping) é uma gíria da língua inglesa para as personagens que não têm absolutamente nenhuma chance, mas continuam teimosamente a lutar. Na citação em questão o humor do texto está no trocadilho do sentido literal com o figurado.

I

Os seres humanos ficam justificadamente perplexos porque os planos mais bem elaborados normalmente não podem ser aproveitados. Talvez, quando pensam sobre o assunto, fiquem até mais confusos ao considerar um mundo, o mundo atual, no qual ao menos alguns de seus planos funcionam bem. Como isso pode acontecer? A atividade humana, afinal de contas, existe num mundo onde pode sujeitar ao menos algumas coisas não humanas aos próprios propósitos, onde ela pode persuadir alguns seres humanos a seguir suas diretrizes. Evidentemente existe alguma correspondência entre a razão humana e as coisas que existem. Por sobre rios, desfiladeiros e estreitos construímos pontes que não caem. Quando assobiamos para chamar nosso cão, ele vem correndo. Não criamos nem o cachorro, nem a habilidade de assobiar, nem o rio, mas inventamos a ponte. O pensamento brota da realidade e a realidade é modificada pelo pensamento ligado, nesse caso, às nossas mãos e à boca com que assobiamos.

Mas encontramos uma ironia em nossa existência, como nos mostra as duas citações acima. A maior das glórias políticas, no caso do general romano, é penosamente moderada pela perda da virtude moral no próprio lar. Ele pôs fim à guerra, libertou a cidade, ouviu os filósofos, embelezou Atenas, planejou um teatro romano, amou sua família – todas as características reconhecidas como as de um homem livre e nobre. No entanto, desde o

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biógrafo clássico do mundo antigo ao grande humorista inglês do século vinte, essa percepção precária da condição falível do homem simplesmente está presente, da mesma forma, tanto nos homens educados como nos homens comuns.

O que é chamado de “destino”, propriamente dito, fica sujeito à divina providência donde todas as coisas, até mesmo o mal, de certa forma, concorrem para o bem. Se nossa propensão a encontrar um toque de mal no meio das mais esperadas glórias é atribuída à “força sobrenatural” com Plutarco (45-120), ou de modo mais divertido, ao “cano de chumbo” do “destino” com P. G. Wodehouse (1881-1975), ou à Providência na Revelação, não podemos evitar o fato de que devemos levar em conta a condição humana que vê o bom sofrer e o malvado prosperar. Ainda, essa mesma condição humana reconhece que freqüentemente o bom é verdadeiramente bom e que o mal é de fato firmemente rejeitado. Assim é a nossa experiência.

II

Os termos educação “liberal” e sociedade “livre” vêm da mesma fonte, da noção clássica de que podemos e devemos primeiramente governar a nós mesmos, de que tal regra está em nosso poder pessoal. Uma sociedade “livre” quer dizer uma sociedade compostas por pessoas que de fato regem a si mesmas antes de tentar governar as demais. As regras às demais pessoas é posterior ao modo da liberdade auto-disciplinada encontrada naqueles que são regidos. A palavra “livre” numa sociedade livre não se refere à capacidade de fazer o que quer que queiramos não importando o que seja. A definição clássica e pejorativa de democracia surge da liberdade indisciplinada que sobreleva a importância do que é escolhermos. Aqueles filhos dos cidadãos atenienses que deixaram as famílias sem a capacidade de se auto-governarem, como nos conta Aristóteles (384-322 a.C.) no final da Ética a Nicômaco, requer um poder político de coerção para conter essa desordem interna de forma que não pudesse

injustamente causar mal a outrem. Portanto, liberdade é, primeiramente, uma disposição interior e um hábito adquirido com o qual governamos a nós mesmos. Não se refere a fazer o que quer que seja, mas a fazer o que é certo, valoroso e nobre.

Também precisamos governar a nós mesmos para algum propósito. Piratas, ladrões e libertinos são muitas vezes “disciplinados” no modo de permitir que alcancem, com certa habilidade, algo indigno. Portanto, é possível governarmos a nós mesmos tanto para um propósito perverso quanto para um propósito nobre, sabendo muito bem a diferença entre um e outro. Além disso, é difícil ver o que possa ser um propósito nobre se primeiramente não formos conduzidos e habituados de modo apropriado. Essa capacidade de auto-governo requer mais do que conhecimento, requer esforço, escolha, experimentação e repetição de atos.

A penalidade mais severa por não nos auto-governar consiste em nada menos do que estar presos, em sermos incapazes de ver as coisas mais elevadas porque estamos tão ocupados em nos voltar para propósitos indignos. Todas as desordens públicas e, portanto, toda a falta de liberdade e escravidão moral são originadas nas desordens pessoais, nas vontades e nas escolhas. Não conhecer as coisas que importam é na maioria das vezes uma questão de não querer o auto-governo. A primeira noção de “liberal” é a de dirigirmos a nós mesmos, de saber quais propósitos são bons e quais não são, de nos disciplinarmos em pequenos atos, de fato, para fazer boas escolhas.

III

Um segundo significado da palavra “liberal” tem relação com a noção de propriedade e de como nos portamos diante daquilo que possuímos. Aristóteles chamou a virtude pela qual governamos nossos bens materiais de “liberalidade” ou “generosidade”. Liberalidade é uma virtude surpreendentemente importante, aplicável tanto ao rico como ao pobre – no caso do rico, é chamada de munificência. Um dos motivos

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de podermos escolher como o princípio da auto-governança, uma das definições que podemos dar à nossa felicidade, é precisamente riqueza e a obtenção de riqueza. Podemos usar bem ou mal a riqueza, mas a riqueza em si é um bem. É digna de existir como fruto de nosso conhecimento, inventividade e trabalho.

O fato de precisarmos de alguns bens materiais ou de riqueza para viver é simplesmente um fato. Ademais, não devemos nos desfazer do que não é nosso. A propriedade privada é, em geral, a melhor forma de obter e cuidar de nossos bens materiais. Além disso, revelamos nossas almas aos outros pelo modo como nós encaramos nossa própria riqueza, seja grande ou pequena, pelo uso que dela fazemos. A sociedade e os relacionamentos pessoais devem, portanto, ser um complexo de trocas de justiça e liberalidade, de coisas adquiridas e de coisas livremente doadas e recebidas, onde quer que vejamos o bem de outros e que respondamos a ele com nossos bens. Ao invés de uma sociedade onde tudo é dado pela propriedade pública e pela distribuição, onde nada pode ser dado com liberalidade e somente existem “direitos”, preferimos àquela em que mais coisas possam ser cuidadas por nós mesmos, pelas nossas virtudes e pela aquisição de propriedade.

IV

Um terceiro significado para a palavra “liberal”, o significado mais profundo, tem relação com conhecimento, conhecer as coisas por si mesmas. A Sagrada Escritura diz que é a verdade que irá nos libertar (Jo 8,32). Não “fazemos” a verdade, mas a reconhecemos, afirmamos ‘o que é’ aquilo que é e o que não é aquilo que não é, como disse Platão (428-347 a.C.). Vivemos numa época que é antagônica à verdade, que pensa que a verdade é aquilo que não nos torna livres. Nossa sociedade está escravizada por uma liberdade que não reconhece a verdade que liberta. A falsa noção de liberdade é que não podemos ser limitados por nada que ‘é’, incluindo nosso próprio ser. Devemos, dizem, transcender, ser livre de toda

a ordem ou realidade que não causarmos. Desejamos ardentemente um tipo de liberdade diabólica que nos une a nada a não ser nós mesmos.

O homem livre em suas ações é o que Aristóteles chama de “a causa de si”. Mas isso não quer dizer que tal homem livre faz as coisas que existem. Ele é livre quando conhece. O propósito de sua razão é se tornar aquilo que ele não é. Sua liberdade consiste na capacidade de conhecer o que é sem ficar distraído por anseios de utilidade, prazer ou poder. Nosso poder ou faculdade mais elevado é conhecer, conhecer a verdade das coisas. Nenhuma sociedade ou indivíduo pode estar a salvo se não possuir aqueles que são livres para buscar a verdade sem coerção política ou econômica, ou sem o constrangimento da opinião pública.

As ordens política e a econômica existem para tornar possível essa liberdade. Elas não são em si mesmas os fins últimos e podem ser seus maiores impedimentos. As liberdades civis e políticas são meios e não fins. Até mesmo as instituições projetadas para propagar a liberdade podem se tornar corruptas ou mal orientadas. As universidades, os meios de comunicação, a religião ou outras associações voluntárias podem impor condições que façam com que a liberdade para conhecer a verdade se torne perigosa ou difícil.

Propriamente falando, educação “liberal” abrange três formas de liberdade:

1) a liberdade que surge quando governamos a nós mesmos, guiamos para um bem apropriado às tendências que nos são dadas pela natureza;

2) a liberdade que advêm quando usamos nossos bens e propriedades com liberalidade e de modo generoso para uma finalidade humana, onde se incluem nossa independência e dignidade, quando podemos dar e receber, quando mostramos em nossas almas o ser livre;

3) a liberdade de conhecer a verdade, de ter o tempo e o espaço no qual podemos conhecer e ver as coisas pelo que elas são, quando não somos desviados pelos nossos desejos ou por finalidades utilitárias, prazerosas ou políticas.

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V

Muitas vezes falamos como se a educação por si só nos libertasse ou como se ela fosse o principal elemento de nossa liberdade. Num famoso debate entre Aristóteles e Platão, foi Aristóteles quem ressaltou que a posse ou definição do conhecimento não garante a virtude ou o seu exercício. Por outro lado, a virtude, mesmo se a adquirimos, não é por si só a recompensa, mas está sempre direcionada a algo além de si. Em última análise, a virtude é dirigida à verdade do ser no qual existe a nossa felicidade.

A educação liberal numa sociedade livre sempre precisa inicialmente ser vista à luz da virtude, da vontade de nos auto-governarmos para uma finalidade valorosa. Não somos livres se simplesmente fizermos o que queremos fazer, seja o que for. Fazer precisamente o que quer que queiramos é, na verdade, uma forma de escravidão aos nossos desejos e paixões. Muitas vezes a idéia de liberdade nas democracias tende à noção descontrolada de liberdade, onde qualquer reivindicação de que nossos desejos ou propósitos sejam limitados ou dirigidos, até por nós mesmos, é olhada como contrária à liberdade.

Platão é famoso por ressaltar a relação entre ordem e desordem nas almas e a ordem e desordem nas sociedades. Nicolau Maquiavel (1469-1527) é um tanto infame pela idéia contrária de que devemos permitir ao príncipe tanto fazer o bem como o mal para que seja bem-sucedido, e de que devemos rebaixar nossos conceitos, pois não podemos esperar que os homens sejam virtuosos. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) nos ensinou que a virtude e o vício são produtos não de nossas vontades ou hábitos, mas da sociedade e das instituições. As virtudes resultam não dos esforços para nos auto-governar, mas de alguma instituição que extirpe a ordem do eu e a coloque na lei ou na vontade externas.

A educação liberal concorda com Platão que o auto-governo é o centro da ordem civil. Rejeita a indiferença de Maquiavel à distinção de bem e mal e teme a forma de Rousseau colocar a virtude e o vício nas mãos do Estado e de definir seus poderes coercitivos. Santo Tomás de Aquino (1225-1274) disse que, como regra prática, não devemos esperar mais virtude do que a encontrada na generalidade dos homens em qualquer sociedade. Ainda assim, pensava ele, devemos conhecer o que é a virtude, até mesmo quando não a praticamos. O papel da educação liberal numa sociedade livre é precisamente manter vivas entre nós essas três idéias de liberdade:

1) de que podemos nos auto-governar;

2) de que podemos ser generosos com nossas propriedades;

3) de que podemos conhecer a verdade que nos liberta e esse é o motivo que nos leva a buscar conhecer.

Que há algum mal misturado com a mais

gloriosa herança, de que quando nossas vidas estão particularmente “apoiadas em geral” estamos mais propensos a ser “cano de chumbo”, essas são experiências comuns à nossa espécie, o conhecimento e o sentido do que é essencial para nosso bem-estar físico e espiritual. A educação liberal que não tiver uma apreciação apropriada do mal moral e da probabilidade do acidente em nossa sorte, nos preparará mal para o mundo em que vivemos. Mas o propósito essencial da educação liberal é precisamente nos permitir ser livres para governar, dar e conhecer – governar a nós mesmos, dar a nossa abundância para os outros e conhecer qual é a verdade das coisas, a verdade das coisas do homem, e no que pudermos alcançar a verdade das coisas divinas.

Tradução de Márcia Xavier de Brito

Revisão Técnica de Alex Catharino