educação física na europa e no brasil

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81 Em Aberto, Brasília, v. 26, n. 89, p. 81-93, jan./jun. 2013 Educação Física na Europa e no Brasil: um sentido comum que mostra uma identidade universal António Camilo Cunha Resumo Apoiando-se nas várias concepções/tendências de Educação Física em duas regiões geográficas diferentes – Europa e Brasil – o autor tenta mostrar que existem concepções idênticas e diferentes de olhar o ato pedagógico da Educação Física em contextos formais, informais e não formais. Quanto ao sentido do idêntico, far-se-á um elogio à ideia de “um comum” que estrutura uma identidade global e, por isso, universal. Esse fato parece evidenciar que existe um caminho (eixo) ontológico/ metafísico comum que trespassa e diz o que é a Educação Física. Essa constatação está acima das diversidades (e convicções) sociais, curriculares, linguísticas, políticas, ideológicas e geográficas. Palavras-chave: Educação Física; abordagem ontológica; abordagem epistemológica; Europa; Brasil; análise comparativa.

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Antonio Camilo

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 89, p. 81-93, jan./jun. 2013

    Educao Fsica na Europa e no Brasil: um sentido comum que mostra uma identidade universalAntnio Camilo Cunha

    Resumo

    Apoiando-se nas vrias concepes/tendncias de Educao Fsica em duas

    regies geogrficas diferentes Europa e Brasil o autor tenta mostrar que existem

    concepes idnticas e diferentes de olhar o ato pedaggico da Educao Fsica em

    contextos formais, informais e no formais. Quanto ao sentido do idntico, far-se-

    um elogio ideia de um comum que estrutura uma identidade global e, por isso,

    universal. Esse fato parece evidenciar que existe um caminho (eixo) ontolgico/

    metafsico comum que trespassa e diz o que a Educao Fsica. Essa constatao

    est acima das diversidades (e convices) sociais, curriculares, lingusticas, polticas,

    ideolgicas e geogrficas.

    Palavras-chave: Educao Fsica; abordagem ontolgica; abordagem

    epistemolgica; Europa; Brasil; anlise comparativa.

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 89, p. 81-93, jan./jun. 2013

    AbstractPhysical Education in Europe and Brazil: a common sense that shows a universal identity

    Relying on various concepts / tendencies of Physical Education in two different

    geographic regions Europe and Brazil the author tries to show that there are

    similar and different conceptions of looking at the act of teaching Physical Education

    in formal, informal and non-formal contexts. Through the sense of identical it will

    be done a compliment to the idea of a common, that organizes a global identity

    and therefore universal. This fact seems to evidence that there is a common

    ontological/ metaphysical way (axis) that pierces and tells what Physical Education

    is. This conception is above social, curricular, linguistic, political, ideological and

    geographical diversities (and convictions).

    Keywords: Physical Education; ontological approach; epistemological approach;

    Europe; Brazil; comparative analysis.

    Introduo

    Este ensaio terico tem como objetivo realizar uma sntese das grandes

    concepes/tendncias da Educao Fsica na Europa e no Brasil, que se desenvolvem

    em espaos e tempos formais, informais e no formais. Depois da anlise de cada

    uma das realidades e concepes, pode-se eventualmente fazer elevar um sentido

    comum que estrutura uma identidade global e, por isso, universal. Esse fato parece

    evidenciar que existe um sentido ontolgico/metafsico comum que est acima das

    diversidades (e convices) sociais, curriculares, lingusticas (linguagem), polticas,

    ideolgicas e geogrficas.

    Trata-se de uma reflexo terica (comparativa) que partiu da anlise de duas

    realidades: a da Educao Fsica da Europa e a do Brasil, tomando como fonte de

    dados alguns escritos (textos) e reflexes do autor sobre a problemtica.

    Iremos constatar ao longo do texto que vai emergir um sentido comum um

    sentido ontolgico/metafsico que se d a conhecer em trs eixos estruturantes/

    universais:

    1) o homem-todo;

    2) as propriedades as palavras intrnsecas, ntimas e estruturantes da

    Educao Fsica: brincar, jogar, competir, novos/antigos (ideia de

    histria) movimentos e novas formas de pensamento e ao;

    3) a cultura e a axiologia.

    Dessas constataes, tomamos a liberdade de dizer que a Educao Fsica

    tem uma essncia primeira (ontolgica/metafsica) que do campo do universal,

    tem uma identidade universal a ponto de podermos afirmar que, quando um homem

    se move, toda a humanidade que se move.

    Afonso AlvesRealce

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 89, p. 81-93, jan./jun. 2013

    Educao Fsica na Europa

    Ao fazermos uma anlise (macro) Educao Fsica na Europa (Cunha, [no

    prelo]), podemos dizer que existem (pelo olhar da histria) pelo menos seis grandes

    concepes, que apresentamos em seguida e de forma sinttica:

    1) Psicomotricidade concepo muito ligada corrente francesa. Neste

    envolvimento, para alm da dimenso aprendizagem e desenvolvimento

    psicomotor, existe tambm a ideia do ldico, do jogo, dos movimentos

    fundamentais, da psicologia do comportamento e desenvolvimento (a

    estruturao de fases, etapas de aprendizagem). As tcnicas desportivas

    (dimenso desportiva) tambm esto presentes alis, essa perspectiva

    transversal a todas as tendncias que iremos apresentar. Esta tendncia

    identificada com maior enfoque em pases como Frana, Portugal, Espanha,

    Blgica, Itlia, Grcia.

    2) Desportivista concepo muito ligada ao modelo alemo. Os profissionais

    apresentam uma dupla formao (por exemplo, professores de Educao

    Fsica e de Biologia). A Educao Fsica aparece como disciplina menor,

    dando maior nfase ao desporto (que, no entanto, em nosso entendimento,

    uma dimenso da ao fsica). Esse fato tem a ver com o trao cultural

    forte muito ligado ideia de atitude, disciplina, eficcia, sucesso, trabalho,

    produtividade, rendimento (dimenso quantitativa). No entanto, deve-se

    salientar algumas propostas que fazem o elogio Educao Fsica de cariz

    pedaggica nomeadamente por meio da corrente escola do movimento

    movimentar-se. Nesse contexto, o movimento aparece como algo

    intrnseco ao homem homem interior, mas tambm experiencial,

    intencional , emergindo daqui a ideia do fenomenolgico, interpretativo,

    hermenutico.

    3) Educao Desportiva esta concepo faz o elogio ao desporto como uma

    forma de entender a vida e a cultura. Quando nasce uma criana, ela

    scia de um clube, de uma cultura. Muito associada a esta perspectiva

    est tambm a defesa do conceito do Estado/Nao e da tradio

    preservao e divulgao da tradio (cultura), por exemplo, do grande

    ateno defesa e divulgao dos jogos tradicionais. Mais do que passado

    (raiz, arqutipo), esses jogos so coisa do futuro mostram, iluminam o

    futuro. Esta tendncia tpica de pases como Inglaterra, Esccia, Irlanda.

    4) Especializao Precoce concepo que faz elevar o desporto precoce,

    especializao precoce, deteco de talentos, rendimento. Aqui ainda est

    expressa a ideia de que o cidado pertena do Estado, portanto, uma

    concepo ainda influenciada pelos caminhos poltico-ideolgicos. Os

    antigos pases do leste europeu ainda preconizam esta tendncia.

    5) Voluntariado A Educao Fsica vista como uma concepo de vida

    muito ligada ao tempo livre, socializao, aos valores (o axiolgico),

    ecologia, sade e ao lazer. tambm um trao cultural que parece

    convocar a antiga metfora socrtica: tempo livre para se dedicar ao eu

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    interior. Concepo de grande representao social e familiar e se situa

    em pases como Sucia, Noruega, Holanda, Dinamarca.

    6) Novos Movimentos A Educao Fsica que convoca os novos

    movimentos na terra, no ar, na gua , resultado da evoluo tcnica e

    de um retorno do homem natureza. A este fato, no esto alheios os

    novos discursos poltico-sociais sobre a proteo e promoo da natureza/

    ecolgico.

    Educao Fsica no Brasil

    Ao fazermos igualmente uma anlise (macro) Educao Fsica no Brasil

    (Azevedo, Shigunov, 2001), podemos dizer que existem (pelo olhar da histria) pelo

    menos 11 grandes concepes que apresentamos em seguida e de forma sinttica.

    A) Concepes preditivas

    A.1) Concepo Aulas Abertas defende a vida de movimento das crianas,

    materializado nas histrias de vida e na biografia motora (desportiva)

    dos estudantes de Educao Fsica como processo formativo ( uma

    concepo formativa tambm). Esta concepo considera a possibilidade

    de co-deciso no planejamento das atividades desportivas/motoras

    (objetivos, contedos, competncias, formas pedaggicas e didticas)

    entre professores e alunos. Esse olhar defende tambm uma nova viso

    formativa e profissional pela compreenso de professores e alunos sobre

    o sentido que tem a aula jogo, movimento, desporto, entre outros

    (Hildebrandt, Laging, 1986).

    A.2) Concepo Atividade Fsica para a Promoo da Sade defende uma

    nova atitude pedaggica que tenha em considerao metas (organizao

    e desenvolvimento de experincias) em termos de promoo da sade

    e formas de tornar as crianas e os jovens mais ativos fisicamente tanto

    no presente quanto no futuro (vida adulta). Esta concepo faz elevar a

    ideia de qualidade de vida tendo como pano de fundo a conscincia da

    sade, do lazer, dos hbitos alimentares e dos estilos de vida no

    sedentrios (Guedes, Guedes, 1993; Nahas, 1998).

    A.3) Concepo Construtivista-Interacionista sua inteno a construo

    do conhecimento a partir da interao do sujeito com o mundo,

    respeitando o universo cultural do aluno. Explora, assim, as diversas

    possibilidades pedaggicas de atividades motoras espontneas, propondo

    gradualmente tarefas cada vez mais complexas e desafiadoras com vista

    construo do conhecimento mediante mtodos no diretivos , como

    acontece no modelo tradicional da prtica da Educao Fsica. O jogo

    o elemento de base para a dinmica pedaggica (modo/meio de

    ensinar), pois convoca um ambiente ldico de prazer. Corpo e mente

    que se emancipam (Freire, 1992).

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    A.4) Concepo Crtico-Emancipadora e Didtica Comunicativa enfatiza a

    possibilidade de ensinar o desporto pela transformao didtico-

    pedaggica, tornando o ensino escolar como um momento em que

    crianas e jovens fazem elevar a competncia crtica e emancipada; uma

    educao mais emancipadora que afaste as imagens negativas da tradio

    autoritria e domesticada (instrumentalizao tcnica) da Educao

    Fsica. A emancipao neste envolvimento entendida como um processo

    contnuo de libertao do aluno das condies limitadoras das suas

    capacidades racionais crticas e at mesmo do seu agir no contexto

    sociocultural desportivo. O conceito crtico , nesse caso, entendido como

    a capacidade de questionar e analisar as condies e a complexidade de

    diferentes realidades de forma fundamentada pelo agir comunicativo,

    questionador, argumentativo, autoavaliativo (Kunz, 1996).

    A.5) Concepo Crtico-Superadora tem como fundamento o discurso

    poltico-pedaggico, convocando questes como a justia social, o poder,

    interesse e contestao crtica luz da dimenso social (realidade dos

    homens). A Educao Fsica, nesse contexto, vista como uma disciplina

    que trata o jogo, a ginstica, o desporto, a capoeira e a dana como

    conhecimentos da cultura corporal do movimento. mais do que

    transferir e repetir conhecimentos, essa disciplina cria a possibilidade

    de sentido crtico (constatar, interpretar, compreender) desses

    conhecimentos luz da histria e do bem social (sua conquista); tem

    um sentido poltico de participao e transformao forte (Soares et al.,

    1992).

    A.6) Concepo Desenvolvimentista tem como meio e fim principal da

    Educao Fsica o movimento. Toma como referncia os ensinamentos

    do crescimento fsico, fisiolgico, motor, cognitivo, afetivo e social. Tem

    como olhar pedaggico-didtico a aprendizagem do movimento, a

    aprendizagem por meio do movimento e a aprendizagem sobre o

    movimento (Tani, 1998). Esta concepo defende o maior estmulo

    (diversidade e complexidade de movimentos) para que as habilidades

    motoras sejam alcanadas.

    A.7) Concepo da Educao Fsica Plural encara o movimento humano

    enquanto tcnica corporal construda culturalmente e definida pelas

    caratersticas de determinado grupo social. Considera todo gesto como

    uma tcnica corporal por ser uma tcnica cultural. A Educao Fsica

    escolar deve ter como tarefa ofertar vrios sentidos (pluralidade de aes)

    motores, abrangendo todos os alunos, seja qual for a sua condio alto,

    baixo, magro, obeso, menos hbil, menina (Daolio, 1996). A dimenso

    eficcia, rendimento, certo ou errado no tida em considerao.

    B) Concepes no preditivas

    B.1) Concepo Humanista situa-se no plano da formao integral. As

    atividades propostas (jogo, dana, desporto, ginstica, etc.) constituem-

    Afonso AlvesRealce

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    se como meios de formao integral, e no como fim. O professor um

    orientador de aprendizagem, cabendo a ele a promoo do crescimento

    pessoal e social (crtica, participao, cidadania) dos alunos. As atividades

    so selecionadas pelo professor e pelos alunos a partir dos seus interesses

    e necessidades (Oliveira, 1985).

    B.2) Concepo Psicomotricista utiliza a atividade ldica e o jogo como

    impulsionadores dos processos de desenvolvimento e aprendizagem.

    Explora as condutas motoras: lateralidade, coordenao, equilbrio,

    percepo, histria motora, bem como o jogo e seus significados.

    Aproxima a histria da psicomotricidade associada s condutas

    exploratrias e espontneas das crianas. A ideia de assimilao e a de

    acomodao esto presentes, assim como a de sujeito interno e externo

    (Le Boulch, 1986).

    B.3) Concepo Sistmica nela, a Educao Fsica concebida como um

    sistema adaptativo, complexo, hierrquico e aberto (Betti, 1991, p.

    134). O autor destaca que o carter aberto do sistema se manifesta na

    influncia recebida do nvel macrossocial por meio da poltica educacional

    e de outras foras sociais que possuem interesse pela Educao Fsica,

    com mais evidncia o sistema militar e o esportivo. A Educao Fsica

    deve proporcionar uma vivncia corporal na dimenso experincia da

    cultura do movimento. Defende a no excluso e a estimulao de

    diversidade de atividades pela partilha e transformao das formas

    culturais da atividade fsica jogo, desporto, dana, ginstica. Enfatiza

    a importncia de conduzir o aluno na descoberta dos motivos da prtica

    de sua atividade fsica como forma de cultura e cidadania (Betti, 1994).

    A Educao Fsica: um sentido comum que mostra uma identidade universal

    Perante as diversas concepes apresentadas, somos impelidos a perguntar:

    Afinal, o que a Educao Fsica?

    Pergunta to simples e ao mesmo tempo to complexa. Simples na sua

    essncia, complexa na sua interpretao (nossas interpretaes 10 concepes no

    Brasil e 6 na Europa e aquilo que h de vir). Peguemos na simples peguemos na

    essncia.

    A Educao Fsica antes e mais do campo ontolgico/metafsico, essa sua

    essncia.

    Para desconstruirmos essa constatao ontolgica/metafsica, colocamos duas

    questes, tambm ontolgicas/metafsicas:

    A Educao Fsica existe? Sim, existe. Todos ns, como profissionais e

    espritos de misso, mostramos e desenvolvemos as propriedades dela.

    Como sabemos que ela existe? Ela existe porque h um ser material (corpo)

    e espiritual o homem que vai mostrar as propriedades da Educao Fsica (por

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    exemplo, de movimento), e, por outro lado, elas vo ajudar o mesmo homem a ser

    mais a ir para diante.

    Assim, de forma simples, podemos dizer que a Educao Fsica um conjunto

    de propriedades (no sentido de propriedade/qualidade) que fazem parte do universo

    e do homem este ltimo, pelo pensamento e pelo movimento (corpo), d sentido

    e significado a essas propriedades.

    A Educao Fsica constitui-se assim como palavra ela essncia,

    propriedade(s), manifestao e possibilidade.

    Nesse enfoque, a Educao Fsica antes de ser sociolgica, antropolgica,

    poltica, ideolgica, biolgica, fsica, qumica, mecnica, cientfica/epistemolgica,

    matemtica, nmero faz parte () do campo ontolgico/metafsico que quer fazer

    histria individual e coletiva. aqui que, em nosso entender, a Educao Fsica se

    legitima e encontra a sua identidade.

    Ela universal e, por isso, seu cho se encontra na filosofia (que se preocupa

    com os universais), e no em quaisquer das concepes de Educao Fsica campos

    parcelares. Com isso, no queremos fazer crtica s vrias concepes de Educao

    Fsica, pelo contrrio, todas elas contribuem de uma forma ou de outra para dar

    visibilidade e mostrar sua essncia.

    H uma ideia generalizada de que a Educao Fsica est em crise (crise de identidade)

    Crise pela existncia de inmeras concepes de Educao Fsica, que chamam

    a si mtodos e objetos de interveno pedaggica, e de pesquisa muito particulares

    levando a uma disperso e a lutas de legitimao que parecem procurar

    exclusividades.

    Crise porque o modelo desportivo e a pesquisa predominantemente positivista,

    quer na formao quer na profisso (escola), parece continuar a ser dominante, e

    que pode tudo ou quase tudo.

    Crise porque os modelos pedaggico-didticos continuam presos a um a priori,

    materializados em currculos, modelos, programas rgidos. A to falada didtica da

    relao, da configurao, da interao e do contexto parece no existir e se existe

    talvez no numa forma desejvel.

    Crise pela discrepncia entre o mundo pensado e o mundo vivido. De um lado

    esto alguns estudiosos com argumentos tericos numa crtica crtica forte (palavra/

    tericos) perante a Educao Fsica , do outro lado, os prticos preocupados com a

    visibilidade numrica da sua ao e pesquisa, por exemplo, o excesso de nmeros

    pesquisa/artigos de cariz positivista.

    Crise pela falta de consenso sobre os caminhos epistemolgicos a seguir. De

    um lado, os positivistas lgicos (com seu excessivo rigor metodolgico e com grande

    apetite pela generalizao), do outro, o sentido mais qualitativo, fenomenolgico,

    hermenutico, linguagem que, perante uma realidade complexa, dinmica,

    multidimensional, parece defender o ousar metodologicamente. Qual o valor de cada

    um desses caminhos?

    Afonso AlvesRealce

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 89, p. 81-93, jan./jun. 2013

    Poderamos chamar outras realidades que mostram a (eventual) crise, mas a

    questo que gostaramos de colocar : Elas so as maiores responsveis pela crise?

    Em nosso entendimento, no. No cremos que a crise seja de responsabilidade

    exclusiva dessas realidades. A existir uma crise, ela est assente numa crise primeira,

    numa de origem: a crise ontolgica crise da interioridade. A crise ser o resultado

    de uma ausncia de conscincia consciente sobre os trs eixos que estruturam o

    sentido ontolgico e metafsico da Educao Fsica. So esses eixos que mostram as

    propriedades, as qualidades as palavras da Educao Fsica: Que eixos so esses?

    Os eixos que mostram as propriedades/palavras da Educao Fsica

    1 eixo A ideia de homem-todo: esse homem-todo j nos tinha sido

    transmitido pela herana helnica. Ele o sensvel, o inteligvel, o imanente e o

    transcendente, e s existe porque h corpo e movimento espera que o impulsione

    para um fim, bom fim, fim perfectvel. A Educao Fsica para ser ela ter,

    necessariamente, que convocar o homem-todo.

    2 eixo As propriedades (palavras) estruturantes da Educao Fsica: brincar,

    jogar, competir, novos/antigos (ideia de histria) movimentos e novas/antigas

    formas de pensamento e ao so as palavras, as essncias, as unidades de sentido,

    as existncias, os princpios fundadores e intemporais. Essas so as palavras que

    mostram e dizem a Educao Fsica, a qual, para ser ela, ter necessariamente que

    convocar o brincar, o jogar, o competir e os novos movimentos/novas formas de

    pensamento e ao. Os profissionais da Educao Fsica conhecem muito bem essas

    palavras/propriedades, contudo, parece que elas se confundem na teoria e na prtica

    parece existir uma dificuldade em trabalhar, em diferenciar pedagogicamente,

    conforme os contextos, as necessidades e as pessoas envolvidas. Por outro lado, a

    formao desses profissionais (graduao, formao continuada e especializada)

    parece no fazer um esclarecimento claro e preciso desses sentidos, dessas essncias.

    Apesar de essas essncias serem trabalhadas, percebidas, pesquisadas, elas no se

    expressam de acordo com o seu real valor.

    3 eixo A cultura e a axiologia: a Educao Fsica para ser ela ter,

    necessariamente, que convocar a cultura e as questes axiolgicas.

    A Educao Fsica e seus eixos (propriedades, palavras) desenvolvimento

    Analisemos com mais cuidado cada um dos eixos (propriedades, palavras).

    1 eixo A ideia de homem-todo

    Ele um ser sensvel, inteligvel, imanente e transcendente. do campo da

    metafsica realista, que na cultura ocidental tem Parmnides, Plato e Aristteles

    como grandes precursores (Morente, 1980). s perguntas da metafsica realista, vo

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    surgir respostas realistas: Quem existe? O que existe? Existem as coisas, o mundo

    das coisas e o homem entre elas. As coisas, os seres, o homem, as substncias tm

    inteligibilidade, e podemos conhecer o mundo das coisas pelo estabelecimento de

    conceitos e propriedades. A inteligibilidade das coisas mesmas o postulado essencial

    do realismo. Mas o homem tem tambm outra grande fora o seu idealismo

    (metafsica idealista), pela capacidade de convocar a utopia, o mito, o simblico e o

    metafrico.

    Nesse sentido, o homem-todo do campo realista e idealista. A Educao

    Fsica tambm o , pois as propriedades so suas e do prprio homem na realidade

    e na mente.

    2 eixo As propriedades/palavras intrnsecas/ntimas da Educao Fsica

    Analisemos cada uma das propriedades/palavras.

    A 1 propriedade/palavra O brincar

    O brincar o incio. A criana brinca, o adulto brinca, os animais brincam: o

    co, o gato, os pssaros, etc. O brincar contm a raiz, a potncia, a luz inicial. Contm

    uma dimenso pr-reflexiva, estruturando-se como fundao, arqutipo,

    recolhimento. Estamos aqui perante a ideia de anncio, de a priori, do amoroso, do

    sensvel, do sonho acordado e, se quisermos, de uma certa forma de poesia. O brincar

    da ordem do movimento quente. Esta a primeira propriedade que fenomenolgica

    e existencialista coisa da interioridade primeira e profunda. a nossa ligao com

    o divino.

    A 2 propriedade/palavra O jogar

    O jogar o meio. O jogo s existe porque h uma palavra mgica que a razo

    fez nascer: regra. Ele uma forma de organizar o que j existe (brincar). um modo

    de dar ordem, sistematizar, mas tambm criar o novo novos movimentos, novos

    pensamentos. S o homem joga pensando na racionalidade humana; mas a natureza

    tambm joga pensando numa racionalidade da natureza. O jogo coloca em marcha

    aquilo que j aconteceu, dando-lhe ordem com a regra e pela regra. O homem

    precisa de ordem.

    A 3 propriedade/palavra O competir, a competio

    A competio emerge como mola de impulso. Depois de ultrapassar (faz

    parte da nossa massa) a ideia de competir para sobreviver, ter poder, territrio,

    alimento, reproduo os animais fazem isso , a humanidade descobriu na

    competio/desporto a oportunidade de ser mais real, simblico e metafrico.

    nessa ideia de competio que encontramos palavras (relacionadas ao) como:

    trabalho, superao, treino, esforo, rendimento, ir mais alm.

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    uma Educao Fsica que mostra o desporto pluralidade desportiva (e o

    desporto escolar). Uma Educao Fsica do rendimento, da competio, do resultado,

    dos melhores que devem ser cada um e, por isso, os piores tambm esto ali.

    Um desporto com forte sentido educativo e pedaggico. Educao no, para e pelo

    desporto. Um modelo de educao desportiva no sentido de todos e para todos.

    A 4 propriedade/palavra Os novos/antigos (ideia de histria)

    movimentos e novas formas de pensamento e ao

    a Educao Fsica das atividades em espaos modernos e na natureza (ar,

    terra, gua). Traduz um certo eterno retorno do homem natureza, ao primeiro

    locus de felicidade, primeira esttica, mas tambm a Educao Fsica do homem

    na (sua) modernidade: turismo, lazer, sade, danas, artes, lutas, treino, mercado,

    mdia, trabalho, bem-estar, fitness, aventura, risco, recreao, tenso, expresso,

    cosmtico, novas interpretaes da linguagem, da comunicao, da experincia.

    uma Educao Fsica que convoca outras formas de interveno, assim como outras

    reas do ser, do saber e do fazer humano.

    Todas essas propriedades tm quadros tericos, prticos, histricos, sociais,

    de pesquisa, pedaggicos, didticos, prprios, mas tambm canais de frtil

    comunicao (fluxo) entre elas. Por outro lado, todas elas esto edificadas em dois

    pilares que funcionam como mola de impulso: a cultura e a axiologia.

    3 eixo A cultura e a axiologia

    A cultura

    Muitas reas do conhecimento abordam a ideia de cultura. Identificamo-nos

    aqui com o olhar de um grande pensador portugus, Ferreira Patrcio (2009), o qual

    destaca que a cultura aquilo que o homem acrescenta natureza (sua natureza

    ontolgica; natureza/natureza ecolgica) em virtude da sua atividade criadora e

    transformadora.

    A cultura eleva-nos acima da nossa condio animal e torna-nos mais

    completos e inovadores, mais largos, profundos, mais leves, ricos e desejavelmente

    melhores no necessariamente melhores. A cultura um caminho de excelncia

    para atingir a liberdade.

    Um homem culto tem apontado a si duas setas: uma para a razo e outra para

    o corao, que far dele um sbio. No entanto, tambm gostaramos de ressaltar

    que existe cultura que pode no ser boa, como a que no promove ideais de

    humanizao esttica/tica.

    A Educao Fsica encontra na cultura (e vice-versa) um campo frtil para ser

    mais tender para a sabedoria.

    A axiologia

    Existem vrias taxonomias sobre os valores da religio, da f, da

    racionalidade, da cultura, do ontolgico (este talvez o grande valor).

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    Identificamo-nos neste contexto com a anlise feita por Ricoeur (1990; 2000)

    sobre a ideia de moral e tica.

    A moral corresponde ao anterior. a moral pensada, a institucionalizao de

    cdigos, as normas jurdicas so os mnimos, o deve ser.

    A tica corresponde ao posterior, pela colocao em prtica das normas, dos

    cdigos, das leis da moral vivida. Quando estamos no campo da moral vivida,

    estamos no campo da tica so os mximos, o da ao.

    Refere-se tambm ideia de novas circunstncias aspecto importante para

    esta anlise. Podero existir novas circunstncias que permitem uma mudana do

    quadro moral e tico sobretudo tico (ao). No uma mudana sumria a servio

    de interesses pessoais, grupais ou ideolgicos, como parece demonstrar o

    individualismo, o niilismo ou hedonismo deste tempo ps-moderno com o slogan

    relativista, relativismo moral (coisas da exterioridade), mas uma mudana que tem

    como bssola o maior valor, o ontolgico (presente em todos os homens ditos

    normais). Santo Agostinho j nos havia dado essa pista com a ideia de chama interior

    que habita em ns, mas foi Kant ([s. d.]; 1998) que melhor a demonstrou ao referir

    que duas coisas atormentam meu esprito os cus grandiosos e infinitos sobre

    mim e a lei moral dentro de mim. essa lei moral que habita em ns, que todos

    os dias nos julga e nos recomenda a boa ao (constante apelo tico) o bem, o bom

    e o belo, trilogia que vai estruturar uma esttica.

    A Educao Fsica, tendo como distintivo mximo a ao/boa ao, tem em si

    um estilo privilegiado para desenvolver o apelo tico, o qual convoca sistematicamente:

    Estilo racional: julgar o que se faz, pensar sobre a ao.

    Ressonncia afetiva: pela partilha de emoes, afetos, poesia, etc.

    Estilo relacional: pelo sentido comum e comunitrio: comunidades

    altrustas, alteridade, pertena, valorizao, ateno, cuidado. A tica

    relacional torna as pessoas melhores.

    Estilo ontolgico: ser em si, o ser para si, ser experincia, intencionalidade,

    vivncia (imanncia, transcendncia).

    Estilo ecolgico: eu, comunidade, natureza.

    Estilo ntimo: a passagem da potncia ao, numa intimidade de cariz

    humanista, de felicidade total e, por isso, radical.

    A Educao Fsica encontra na axiologia uma bssola orientadora para ser

    mais tico, mais nobre, ter carter.

    Em jeito de uma sntese conclusiva

    Este ensaio apenas uma pequena reflexo feita com liberdade de esprito,

    razo e corao. Tenta mostrar que a Educao Fsica tem uma essncia primeira

    (ontolgica/metafsica) que do campo do universal, tem uma identidade universal

    a ponto de poder estar em todos os nveis do pensamento e da ao humana do

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 89, p. 81-93, jan./jun. 2013

    micro, passando pelo meso e terminando no macro (megaeventos). do campo

    realista.

    Mas a Educao Fsica tem tambm outra grande fora o seu idealismo, pela

    capacidade de convocar o sentido metafrico espiritualizado, por exemplo, a ideia

    de que, quando um homem se move, toda a humanidade que se move.

    O bom incio, ir para a frente, ir para diante; o bom fim, sem fim. A Educao

    Fsica isto: um bem maior coisa ontolgica, excelncia educativa, e constitui-

    se como patrimnio e oportunidade humana. palavra fundadora e fecunda, que

    tem e transporta futuro.

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    Antnio Camilo Cunha professor doutor do Instituto de Educao da

    Universidade do Minho, Centro de Investigao em Estudos da Criana (Ciec),

    Portugal.

    [email protected]

    Recebido em 22 de outubro de 2012.

    Aprovado em 18 de fevereiro de 2013.