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EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA: circular, reinventar, estimular, transmitir, produzir, praticar...cultura Tarcísio Mauro Vago – UFMG “Se sonhar um pouco é perigoso, a solução não é sonhar menos — é sonhar mais “. (Marcel Proust) Inicio esse texto com um registro que julgo importante: atuei como professor de Educação Física em Escolas de Educação Básica (especialmente no Ensino Fundamental) durante 18 anos, incluindo, neste percurso, a experiência de dirigir uma escola pública por dois anos. Vivi de modo intenso, apaixonado e contraditório a angústia e o êxtase de ser professor de crianças. Quero com isso apenas dizer que não desconheço os inúmeros problemas que afetam a educação escolar (especialmente a educação pública). Mas, não é de impossibilidades que vou tratar aqui: ao contrário, o que anima este texto é a discussão sobre o rico universo de possibilidades que se apresenta para a Educação Física nesta complexa instituição social que é a escola. Entendo que tratar de nossas possibilidades é um bom caminho para enfrentar e superar os desafios colocados no presente. Quero também aqui realizar um afastamento crítico de duas posições extremas. 1 Na primeira, defende-se que a escola 1 Foi do Professor Marcos Aurélio Taborda de Oliveira, da UFPR, em uma palestra na Escola de Educação Física da UFMG, que ouvi essa reflexão em que agora me inspiro.

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Page 1: EDUCAÇÃO FÍSICA NA CULTURA ESCOLAR · Web viewUm esporte que não esteja submetido aos princípios do esporte de rendimento, que não pode ser tomado nem confundido como referência

EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA:circular, reinventar, estimular, transmitir, produzir, praticar...cultura

Tarcísio Mauro Vago – UFMG

“Se sonhar um pouco é perigoso, a solução não é sonhar menos — é sonhar mais “.

(Marcel Proust)

Inicio esse texto com um registro que julgo importante: atuei como professor

de Educação Física em Escolas de Educação Básica (especialmente no Ensino

Fundamental) durante 18 anos, incluindo, neste percurso, a experiência de dirigir

uma escola pública por dois anos. Vivi de modo intenso, apaixonado e

contraditório a angústia e o êxtase de ser professor de crianças. Quero com isso

apenas dizer que não desconheço os inúmeros problemas que afetam a educação

escolar (especialmente a educação pública). Mas, não é de impossibilidades que

vou tratar aqui: ao contrário, o que anima este texto é a discussão sobre o rico

universo de possibilidades que se apresenta para a Educação Física nesta

complexa instituição social que é a escola. Entendo que tratar de nossas

possibilidades é um bom caminho para enfrentar e superar os desafios colocados

no presente.

Quero também aqui realizar um afastamento crítico de duas posições

extremas.1 Na primeira, defende-se que a escola pode tudo: sua ausência é a

causa e sua presença a solução para todos os problemas sociais que nos afetam.

Vem da primeira metade do século XX esse “otimismo pedagógico”, essa crença

em poderes milagrosos da escola diante dos muitos males que nos afligem.

Em outro extremo, quero me distanciar de outra posição, a de que a escola

não pode nada. Aqui, ela aparece como uma instituição completamente impotente

diante das mazelas sociais, sendo ilusório esperar dela contribuições

significativas.

Afastar-se dessas duas posições para então perguntar: o que pode a escola

na formação de crianças, adolescentes, jovens e adultos? Sem ilusões de

1 Foi do Professor Marcos Aurélio Taborda de Oliveira, da UFPR, em uma palestra na Escola de Educação Física da UFMG, que ouvi essa reflexão em que agora me inspiro.

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encontrar respostas definitivas, é com essa pergunta que procuro discutir a

presença da Educação Física nas práticas educativas que têm lugar na escola.

1. Premissas para um projeto cultural de formação humana em Educação Física

As premissas tratadas brevemente a seguir foram elaboradas a partir de uma

produção coletiva, com a qual dialogo, tanto no âmbito da Educação Física como

no âmbito mais amplo, da educação. Elas constituem reflexões abertas e,

justamente por isso, estão em permanente (re)construção.

Reconhecer o humano como ser de cultura(s)

Edgar Morin convida a pensar que “o ser humano é ao mesmo tempo

biológico e cultural.” Aparentemente simples, esse entendimento guarda no

entanto uma compreensão apurada sobre a ‘aventura humana na terra’.

Acrescente-se o que escreveu Leopold Nosek:

“Alimentação e abrigo são necessidades de uma planta; acresça-se sexo e estaremos no reino animal; um pouco mais de afeto e estaremos no espaço dos bichos de estimação. Cultura é o recurso essencial para o viver humano. Cultura é o prosaico que nos orienta o vestir, o comer, o trajeto de amor, os ritos de nascimento, de fertilidade e de morte. Cultura é o sonho cotidiano. Sua ausência nos destrói.”2

Ora, então, se a sua ausência nos é destrutiva, é em presença de uma dada

cultura que os humanos se realizam, e realizam suas experiências, o “sonho

cotidiano” (mas também o pesadelo, acrescento). A cultura, então, como pondera

Marilena Chauí,3 “é a maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de 2 Leopold Nosek, psicanalista, no artigo “Dor, Forma, Beleza”, para o jornal Folha de São Paulo, Seção Tendências e Debates, 30/08/2005, p. A3.3 Cf. Chauí, 1995. Na mesma obra, ela também apresenta outras maneiras de compreender a cultura: "Não falamos em Cultura, no singular, mas em culturas, no plural, pois a lei, os valores, as crenças, as práticas e instituições variam de formação social para formação social. Uma mesma sociedade, por ser temporal e histórica, passa por transformações culturais amplas.” “O mundo resultante da ação humana é um mundo que não mais podemos chamar de natural, pois se

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práticas que criam a existência social, econômica, política, religiosa, intelectual e

artística.” Na sábia e bela síntese de Ailton Krenak: “Somos a nossa

experiência”.4

Aqui, então, uma referência fundante: os humanos praticam cultura(s) e, ao

fazê-lo, praticam a si mesmos. E será também importante realçar a noção de

“cidadania cultural”, tal como a propõe Marilena Chauí,

“...em que a cultura não se reduz ao supérfluo, à sobremesa, ao entretenimento, aos padrões do mercado, à oficialidade doutrinária que é a ideologia, mas se realiza como direito de todos os cidadãos, a partir do qual eles se diferenciam, entram em conflito, trocam as suas experiências, recusam formas de cultura, criam outras alternativas, movem todo o processo cultural.”

É então que pensar o humano como ser de cultura — isto é: como produto e

produtor de cultura(s) — torna-se essencial também (e ainda mais) quando o que

está em questão é a experiência que se pode organizar e viver na escola, e que

envolve crianças, adolescentes, jovens, adultos, na condição de professores e de

estudantes. Sim, porque essa experiência se traduz em uma formação cultural

vivida na escola, ou seja, trata-se de uma “forma escolar de socialização”5 que

deve ser centralmente considerada, pois recobre um tempo fundamental da vida,

podendo atingir 14 anos, apenas na Educação Básica. Ora, esse dado exige que

os professores considerarem dois movimentos fundamentais para organizar suas

práticas educativas: a) refletir sobre os limites e as possibilidades que a escola

tem, como instituição social, de potencializar esse “recurso essencial para o viver

humano” que é a cultura; e b) ter clareza de que ela própria é uma instituição

cultural, que organiza uma cultura própria, peculiar, e que, ao fazer isso, afirma-se

como lugar central de/na formação humana. Tratarei desses dois movimentos ao

longo do texto.

Antes, porém, um desdobramento importante dessa primeira referência, e

essencial para um projeto cultural de Educação Física: como pensar o corpo no

plano da cultura?

encontra cada vez mais humanizado, ou seja, transformado pelo homem.” 4 Ailton Krenak, líder indígena, em documentário na Rede Cultura de Televisão.5 VICENT, Guy; Lahire, Bernard. & Thin, Daniel, 2001.

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Reconhecer nos corpos humanos a(s) cultura(s)

“Pensar o corpo é uma outra maneira de pensar o mundo.”(David Le Breton)

Uma das conseqüências imediatas de afirmar o ser humano como produto

e produtor de cultura é reconhecer que seu corpo, por lhe pertencer, é forjado em

presença de uma cultura. Por isso, refletir sobre ele torna-se central.

“O corpo é nossa caixa se lembranças”, disse Walter Benjamin, com muita

beleza.

“Cada sociedade tem seu corpo assim como ela tem a sua língua”,

escreveu Michel de Certeau.6

Lembranças. Linguagem.

Pensar nessas duas maneiras de dizer o corpo humano nos coloca diante

de uma interrogação, que me parece central na Educação Física: ao olhar o corpo

humano, é somente um dado biológico o que vê? É possível apagar do corpo as

marcas de uma cultura? É possível compreender o corpo sem levar em

consideração as práticas culturais de crianças, adolescentes, jovens, adultos?

Compreender o corpo humano em sua constituição biológica é fundamental.

Seria no entanto suficiente? Não limitaria o olhar que, como professores,

lançamos às crianças, aos adolescentes, aos jovens que participam das aulas de

Educação Física?

Essas perguntas pedem alguma reflexão. Com efeito, problematizar a

compreensão sobre o corpo humano é de central importância para professores(as)

de Educação Física, em razão do impacto direto em sua maneira de organizar o

seu projeto de ensino na escola.

Nos corpos humanos estão guardadas histórias de cada um, histórias

partilhadas, histórias de humanidade, histórias da humanidade. O corpo não é,

assim, algo que possuímos “naturalmente”. Nem é somente uma construção

pessoal, mas também sociocultural: ele é suporte e expressão máxima de uma 6 Citado por Denise Sant’anna, 1995.

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dada cultura (e são infinitas as expressões culturais de povos e tempos distintos

marcadas nos corpos). Como escreve Jocimar Daólio, “o homem aprende a

cultura por meio de seu corpo.”7

Disso resulta que considerar o(s) corpo(s) humano(s) apenas em sua

biologia é por demais limitador. O corpo humano tem uma inegável e

imprescindível dimensão biológica. Mas, justamente por ser humano, ele revela (e

revela-se) culturalmente, pois se o ser humano se inventa ao inventar cultura(s), o

seu corpo é a condição primeira para essa invenção. Ao mesmo tempo, ele é

precisamente, resultado, tradução, expressão dela.

Se o corpo humano será assim pensado, decorre daí que as práticas

corporais criadas pelos seres humanos não podem ser reduzidas a um ato motor

abstrato, descontextualizado e desculturalizado. As práticas corporais (dentre

elas as que nos interessam diretamente: jogos, brinquedos, danças, esportes,

ginástica) só existem porque são criações humanas, porque envolvem seres

humanos em relação, partilhando experiências, expressando sentimentos,

materializando intencionalidades — por tudo isso é que estão envolvidas em

circunstâncias culturais. Não é de nenhum modo admissível reduzir tamanho

envolvimento humano a um ‘comportamento motor’. Há toda uma experiência

cultural sendo aí vivida, que merece ser centralmente considerada.

Penso que devemos qualificar nossa compreensão acerca dessas práticas

corporais que os sujeitos (crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos)

realizam em suas vidas. Elas constituem fonte fundamental de informação e

referência permanente para o ensino de Educação Física na escola.

Compreender a escola como lugar de cultura

Amplia-se e consolida-se, entre os que se envolvem com educação, o

entendimento de que a escola é um lugar de cultura, isto é: um dos lugares sociais

por excelência de garantir o acesso à cultura produzida pelos humanos,

possibilitar o direito à fruição de um patrimônio por todos produzido. 7 DAÓLIO, 1995, 41

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Compartilho do entendimento de que a escola é um espaço público de

cultura e da cultura. Compreendê-la assim é uma perspectiva muito interessante

se quisermos pensar seu lugar na sociedade.

É conhecida a afirmação contundente de Jean-Claude Fourquin (1993) de

que o que justifica a existência da escola é a sua “responsabilidade de ter que

transmitir e perpetuar a experiência humana considerada cultura”, acrescentando

que a “cultura é o conteúdo substancial da educação, sua fonte e sua justificação

última.”

O mesmo autor oferece a compreensão de que a escola é um “mundo

social”, que tem suas características de vidas próprias, seus ritmos e seus ritos,

sua linguagem, seu imaginário, seus modos próprios de regulação e de

transgressão, seu regime próprio de produção e gestão de símbolos. Ele

considera a escola como lugar de uma cultura sui generis, com potencial de

“influenciar o conjunto de práticas culturais e os modos de pensamento que têm

curso num dado país num momento dado”

Mas, além de realizar essa responsabilidade de “transmitir e perpetuar a

experiência humana”, há algo mais que a escola pode ainda fazer: ela pode ser

também lugar de produção de cultura. Por pelo menos duas condições básicas.

A primeira diz respeito direto a professores e alunos, realçando sua condição

de sujeitos de cultura, sujeitos produtores de cultura (e produzidos também

pela/na cultura). É então que eles encontram na escola um rico campo de

possibilidade para exercer essa sua condição de seres de cultura, ao

relacionarem-se entre si partilhando experiências, e ao apreender e usufruir os

diversos saberes tratados na escola, compartilhando um patrimônio que a todos

pertence (retomarei essa idéia adiante).

A segunda condição relaciona-se justamente com os saberes presentes

nos programas escolares: eles podem ser algo muito distinto de um ‘pacote

fechado’, remetido por alguma entidade de fora da escola primeiramente para ser

entregue ao professor para que este o repasse, sem discutir seu conteúdo, aos

seus alunos. Eles podem mesmo ser algo bem diverso de um conhecimento

pronto, que se oferece ao modo de um fast food.

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Bem ao contrário, os saberes tratados na escola podem constituir lugar e

tempo de ter acesso ao conhecimento produzido nas práticas sociais, mas de

modo a fazer uma fruição crítica desse conhecimento. Quer dizer: problematizá-

lo, de modo a incorporar suas contribuições à formação humana mas também

para recusar suas mazelas, para rejeitar o que empobrece a experiência humana.

Assim, entender os saberes como campos abertos à ação de professores e

alunos na organização de uma “cultura escolar”8 parece-me um caminho bastante

promissor para pensar a organização da escola (e da Educação Física em seu

interior). Os saberes tratados na escola não podem prescindir da presença de

professores e alunos.

Penso ser preciosa a idéia (a ser permanentemente aprimorada) de que é a

escola é lugar de circular, de reinventar, de estimular, de transmitir, de produzir,

enfim, de praticar cultura. Se o que nos constitui como humanos é a experiência

social que se traduz como cultura, essa experiência social também se realiza na

escola, envolvendo professores e estudantes, situados no centro deste processo.

Em suma, resulta daqui o entendimento de que a escola tem como sua

responsabilidade social realizar o direito de todos à cultura. Responsabilidade que

exige realizar um movimento em três dimensões: ao mesmo tempo, transmitir

cultura, fazer a crítica da cultura e produzir cultura. Ao realizá-lo, ela estabelece

relações com outras culturas (a religião, a política, a arte, por exemplo). Relações

que podem ser de adesão e(ou) de contestação, mas nunca de indiferença.

Penso, com André Petitat,9 que a escola produz a sociedade na mesma medida e

intensidade com que é por ela produzida. A relação entre as práticas escolares e

as outras práticas sociais assume um caráter que não parece ser nem a de

reprodução pura e simples nem tampouco a de oposição: trata-se de uma relação

de tensão permanente entre elas. 10

8 Um dos autores em que busco referências para a noção de cultura escolar é André Chervel (1990). Ele defende que a cultura escolar é uma autêntica e original cultura produzida pela escola, insistindo que o sistema escolar é detentor de um poder criativo insuficientemente valorizado até aqui e que ele desempenha na sociedade um papel o qual se percebe que é duplo: de fato ele forma não somente os indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a cultura da sociedade global”. 9 Petitat, André, 1994.10 Sobre essa “tensão permanente” entre a escola e outras culturas, já tive a oportunidade de escrever em outro texto (Vago, 1996)

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Ao finalizar este tópico, quero destacar ainda outra importante referência,

com a qual estou de acordo: a de que a escola é também um lugar de formação

de professores, um lugar em que eles, ao se envolverem com as suas

circunstâncias, com os seus estudantes (e junto com eles) produzem

conhecimentos, e com eles organizam a sua prática educativa. Isto é: o professor

não cessa a sua formação no momento em que conclui sua graduação. O

envolvimento com a escola (com sua organização, com uma “cultura escolar”

diariamente produzida), é uma rica possibilidade de permanente formação do

professor. Há que se reconhecer também que pode ser o oposto: as condições de

trabalho podem ser “deformadoras” do professor...). O que se quer realçar é que

a experiência de/no trabalho exige respostas do professor, respostas que podem

ser construídas no enfrentamento das circunstâncias vividas, nos desafios postos

pelas condições dadas, no universo de significados que estão sendo

compartilhados. Em tudo isso, o professor amplia seu percurso de formação. De

modo que o conhecimento que ele veicula na escola não é somente aquele que

vem “de fora”. É também aquele que ele produz em sua escola, com seus alunos,

nas condições em que se encontram e nas quais se relacionam. Eles aí também

estão partilhando uma formação. O próximo item aborda um pouco mais essa

questão.

Reconhecer professores e estudantes como “sujeitos praticantes”

Essa expressão que Michel De Certeau (1994) usa para dizer de todos os

sujeitos parece-me apropriada para acentuar o que já havia insinuado no item

anterior: compreender e reconhecer professores(as) e estudantes como “sujeitos

praticantes”, colocando em relevo a sua condição de centralidade na produção da

escola, de suas práticas, de sua cultura, enfim.

Reforço aqui o entendimento, que felizmente se enraiza entre nós, de que

professores produzem e mobilizam um saber elaborado em suas práticas, em

suas experiências. Esse entendimento afasta a idéia empobrecedora de que eles

não passariam de meros executores, ou aplicadores, de planos formulados sem

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sua participação, sem sua presença, sem que sejam conhecidas e consideradas

as circunstâncias que lhes envolvem, e envolvem sua escola e a comunidade de

sentidos que a rodeia.

É então fundamental perceber a significativa diferença entre duas

compreensões da condição de professor: superar a percepção do professor como

‘sujeito transmissor de um saber’ para entendê-lo como um ‘sujeito portador de

um saber’, construído em sua experiência. Ver, ler e ouvir11 o professor como um

pensador da cultura, isto é, que estuda, que pesquisa, que problematiza a cultura,

e que nessa condição é também produtor de cultura. Professor que tem uma

história, um percurso, uma experiência construída e produzida em meio às

circunstâncias que envolvem sua escola, as práticas ali realizadas, e os sujeitos

nelas envolvidos.

Pensar o professor como mediador da cultura, que organiza um projeto de

intervenção na formação cultural de seus alunos. Intervenção que começa na

cultura de cada um de seus alunos, mas que se estende e se espraia na cultura

mais ampla: sim, o professor que realiza uma intervenção na formação cultural de

uma criança, de um adolescente, de um jovem , de um adulto, está de fato

realizando uma intervenção cultural sobre toda a sociedade — sim, porque cada

um desses sujeitos é uma expressão de toda a sociedade...

Considerar os professores nesta condição é essencial, se queremos

problematizar as possibilidades educativas da escola e da Educação Física

E essa consideração estende-se também ao sujeito que é aluno, sem

deixar de ser criança, adolescente, jovem, adulto, idoso: ser aluno(a) não pode

apagar a condição de sujeito de cultura, não pode apagar identidades culturais.

Aqui também ter o cuidado de ler, ver e ouvir o ‘outro’ da intervenção

pedagógica. Conhecê-los e reconhecê-los em seus diferentes tempos da vida, nos

quais vivem suas culturas (infantil, juvenil, adulta) como momentos particulares da

história de vida, que são únicos, específicos de ser, com formas próprias de

expressão, de socialização, de interpretação, de linguagem, que se

revelam/manifestam em seu corpo, em sua corporeidade. Dialogar com essas

11 Estou aqui inspirando-me em Eliene Marta Teixeira Lopes (2001).

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culturas, tomá-las como referências para o trabalho, fazer a crítica: eis aí desafios

da condição de ser professor.

Sujeitos professores, sujeitos estudantes: seres humanos de sonhos, de

afetos, de encantos, de ação, mas também de carências, privações, exclusões.

Seres da vida, que assim devem ser cuidados.

Compreender o currículo como um projeto cultural

Incorporo para essa premissa as contribuições de estudiosos do currículo,

destacadamente Tomás Tadeu da Silva:

“O currículo tem significados que vão muito além daqueles aos quais as teorias tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade.”12

Com essa compreensão, é possível pensar o currículo como um projeto

cultural de intervenção na formação humana que se realiza no âmbito da escola

(como instituição social). Formação que se desdobra em cada uma das áreas que

integram o currículo.

Procurando problematizar um “documento de identidade” para a Educação

Física na escola, penso então ser frutífero compreender o currículo de Educação

Física na escola como um projeto cultural. Projeto cultural que envolve

necessariamente: os sujeitos praticantes (professores e estudantes), com suas

experiências marcadas em seus corpos humanos; a escola em que eles se

encontram, entendida como lugar de cultura; e um saber próprio à Educação

Física (a cultura que ela pode perpetuar/recriar) que será objeto de aprendizagens

a partir de práticas educativas intencionalmente organizadas pelo(a) professor(a).

12 SILVA, 1999, 150.

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Com essas premissas (e a partir delas) é então possível debater a presença

da Educação Física nas práticas escolares. Há lugar e tempo para ela?

Depende... Sim, depende da pergunta: que Educação Física?

2 Educação Física: construindo um projeto cultural na escola

Uma primeira condição necessária para essa construção é afirmar a

identidade da Educação Física com a escola, isto é: considerá-la, ao mesmo

tempo, como prática constitutiva da escola e como prática constituída na

escola. Trata-se de uma identidade fundante e fundamental, que se traduz em um

primado orientador para um projeto cultural de Educação Física.

É então que se produz uma marca distintiva: a do pertencimento da

Educação Física à escola. Uma distinção necessária: o lugar, os tempos, os

sujeitos envolvidos, os sentidos atribuídos às práticas corporais, as experiências

vividas, as ‘redes de sociabilidade’ construídas...tudo isso produz, de um lado,

uma identidade essencial com a escola e, de outro, uma distinção essencial em

relação a outros lugares em que práticas corporais também são realizadas de

maneiras diversas (como clubes, academias, dentre outros).

Reafirma-se então três dimensões de uma mesma prática educativa: a

Educação Física é produzida na escola, é produzida pela escola, é produtora da

escola em que se realiza. Como prática da escola, a Educação Física assume o

caráter específico desse lugar, encarnando-o. Noutras palavras, ela é uma

propriedade e um produto da escola: a ela pertence, por ela se define, nela se

constitui e se realiza.

Ora, essa identidade primordial desdobra-se: se o que justifica a existência

da escola é a “responsabilidade de perpetuar a experiência humana considerada

cultura”, e se a Educação Física é uma propriedade da escola, que nela se

constitui e se realiza, então ela deve fazer justamente o que se espera que a

escola faça: circular, reinventar, estimular, transmitir, produzir e praticar... cultura.

Mas, cultura não existe no singular: culturas, tantas são as marcas da

humana presença no mundo. E não cabe (nem possível seria) à Educação Física

tratar de toda a cultura. Então, que práticas culturais produzidas pelos humanos

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constituem interesse para a Educação Física explorar na escola? Que práticas

culturais lhe dão identidade? Que experiência humana ela poderá contribuir para

perpetuar, recriar, produzir?

Para responder, penso que convém apoiar-se na história escolar da

Educação Física. E ela indica que desde que entrou em programas escolares,

algumas práticas tornaram-se ‘clássicas’ em seu ensino: as ginásticas, os

esportes, os jogos, as danças... E a essas vêm sendo acrescentadas outras, como

as brincadeiras e os brinquedos populares e, ainda, a capoeira.

Mas, outras perguntas se impõem, aqui: essas práticas são dignas de

serem tratadas na escola? Por que a escola deve investir seu tempo para que

elas façam parte da formação cultural de seus alunos?

Argumento inspirando-me em uma frase de Franz Schiller: “A história da

humanidade não pode ser contada sem um capítulo dedicado às brincadeiras”.

Penso que devemos acrescentar outros ‘capítulos’ a essa história: dos jogos, das

ginásticas, dos esportes, das danças, dentre outras. Com isso, o que quero

assinalar é que essas práticas corporais revelam os humanos tanto quanto

qualquer outra obra sua: nós lhes atribuímos significados diversos, e também

criamos diversas maneiras de praticá-las. Justamente por isso elas guardam e

expressam todos os sentimentos humanos, sendo marcadas e atravessadas por

valores éticos e estéticos que expressam modos de se apropriar dos tempos e de

espaços do viver, modos de sentir, enfim. Como criações do pensamento e da

ação humanas são um patrimônio cultural imaterial da humanidade, constitutivas

também de sua história.

Então, a presença dessas práticas na história humana lhes confere

dignidade para entrar e estar na escola e serem tratadas pela Educação Física (e

não apenas por ela, aliás). Dignidade que também lhes é conferida pelos próprios

humanos na medida em que eles atribuem sentidos a elas e as incorporam em

suas maneiras de viver.

A propósito, sendo essas práticas corporais produções humanas, é

importante flagrar e problematizar as representações, os múltiplos usos e as

múltiplas apropriações que os sujeitos delas fizeram, e os sentidos que a elas

12

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atribuíram. Há aí todo um universo de significados éticos e estéticos que exige

atenção.

Pois bem, estas práticas corporais da cultura — expressão de uma

experiência humana —, constituem o conhecimento próprio ao ensino da

Educação Física. A intervenção pedagógica do Professor de Educação Física

comporta assim um enorme e permanente desafio: organizar o ensino como um

tempo e um lugar de conhecer, provar, usufruir, criar, recriar e reinventar, de

fazer de muitas maneiras, de brincar com essas práticas, garantindo o humano

direito dos estudantes de acesso a esse rico patrimônio cultural. Em outras

palavras: a Educação Física é uma maneira de fruir, de usufruir, de viver e de

produzir essa cultura, um modo de enriquecer a experiência humana, se

considerarmos que essas práticas são possibilidades afetivas, lúdicas e estéticas

de apreender e entender o mundo, e de agir nele.

Isso exige dos Professores de Educação Física que estejam atentos para,

ao pesquisar e ensinar tais práticas, problematizar os valores nelas impregnados,

as questões éticas envolvidas em sua prática. Elas são expressão da nossa

humana condição: revelam muito do que pensamos, do que somos, do que

queremos, de como agimos. É por isso que constituem rica possibilidade de

formação cultural, e é exatamente aí que reside a importância da intervenção

pedagógica do Professor de Educação Física, considerando duas importantes

estratégias, que se complementam: a primeira, organizando o ensino de modo que

seus alunos possam ter realizado o direito de acesso àquelas práticas, usufruindo

um patrimônio cultural que a todos pertence. E a segunda, incentivando também

que eles possam, ao participar delas, compreendê-las, fazer a crítica delas e,

quando for o caso, imprimir-lhes outros significados, baseados especialmente na

igualdade de oportunidades, no respeito mútuo, na solidariedade, na cooperação,

na afetividade, mesmo considerando que sua realização pode também envolver

tensões e conflitos, que são também momentos de aprendizagem.

Não seria esta uma experiência permanente de reinvenção desse

patrimônio cultural? E de reinvenção da própria experiência humana? Enfim,

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pensar a Educação Física como um tempo em que próprios seres humanos

(crianças, adolescentes, jovens, adultos) se reinventam...

É assim que compreendo um currículo de Educação Física traduzido como

um projeto cultural de formação humana. Projeto que é também um investimento

em uma educação da sensibilidade e da subjetividade humanas. E que deve ser

realizada com todo o cuidado:

Cuidado com as crianças, em sua condição de sujeito de um presente, e

não de um futuro hipotético, em nome do qual muitas vezes lhes roubamos a

infância...

Cuidado com adolescentes, em sua rica e perturbadora transição, marcada

por sentimentos diversos, confusos, instáveis, que também os tornam seres

humanos adoráveis...

Cuidado com jovens, vivendo suas escolhas, seus conflitos, suas

experiências, muitos deles já no mundo do trabalho, outros tantos perdendo até a

capacidade de sonhar com um futuro...

E cuidado com o(a) professor(a)! Por que não? Cuidar de sua “humana

docência”, como tão bem traduziu o Professor Miguel Arroyo.

Meninos, meninas, adolescentes, jovens, professores(as): homens,

mulheres. Sujeitos de todos os jeitos. De todas as formas, de todos os corpos, de

todas as etnias. Aprendizes e mestres uns dos outros. Vivendo e compartilhando

experiências culturais na Educação Física.

Em seus corpos, toda a humanidade que há. Com todos os “sentimentos do

mundo”, diria Drummond. E em cada um deles “todos os sonhos do mundo”, diria

Fernando Pessoa. Sujeitos de todas as maneiras que interessam à Educação

Física. Que merecem o conhecimento da Educação Física. Que merecem ser

respeitados na Educação Física.

Todo o nosso cuidado com eles e elas ainda será pouco, mesmo.

É preciso não desconhecer os graves problemas sociais de nosso País que

afetam duramente a formação humana de crianças, adolescentes e jovens, e a

própria condição de professor(a). Compreendê-los é condição para enfrentá-los. E

sua ação docente na escola é uma rica possibilidade para essa compreensão.

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Desobedecer a Lei

“É preciso saber desobedecer às leis quando elas são injustas, é preciso saber preferir a generosidade ao dinheiro e à ambição social;

e é preciso ser capaz de preferir a magia do sonho e da leitura ao regime materialista e técnico que deixa o mundo desencantado.”

Isabelle Smadja13

O artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB n.

9.394, de 20/12/1996) trata da presença da Educação Física na Escola. Sua

redação original era a seguinte:

“a Educação Física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da Educação Básica, ajustando-se às faixas etárias e às necessidades da população escolar, sendo facultativa nos cursos noturnos”.

Essa redação foi alterada com a Lei n. 10.793, de 01/12/2003 (do

Congresso Nacional), assinada pelo Presidente da República, passando a vigorar

assim:

§ 3º. A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular  obrigatório da educação básica, sendo sua prática  facultativa ao aluno : - que cumpra jornada de trabalho igual ou superior a seis horas; - maior de trinta anos de idade; - que estiver prestando serviço militar inicial ou  que, em situação similar, estiver obrigado à prática  da educação física;   - amparado pelo Decreto-Lei n. 1.044, de 21 de outubro de 1969; - que tenha prole.

Uma breve reflexão sobre esta alteração leva à conclusão de que se trata

de um retrocesso, na forma da lei, diante de toda uma produção que a área de

Educação Física conseguiu acumular, sobre sua presença na escola. Essa

alteração produziu uma atualização da noção de “aptidão física” como 13 Entrevista ao Caderno Mais!, FSP, 02/12/2001, p. 9.

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orientadora da Educação Física na escola, que remonta aos anos 60. Assim,

pelo artigo, somente os menores de 30 anos, sem filhos, que não trabalham, é

que estariam sendo convidados a participar dela. Que compreensão de

sujeitos está presente neste artigo da lei? Que entendimento de corpo humano

que ela faz circular?

E então, é possível obedecer a uma proposição como essa? Afinal, a

Educação Física na escola constitui direito de todos (justamente por estar na

escola) ou um privilégio dos considerados jovens, aptos e hábeis?

A resposta dada orienta nossa intervenção pedagógica na escola.

Da monocultura do esporte à “vontade de abrangência”

A presença ainda muito predominante do esporte nos programas escolares

de Educação Física produz um efeito perverso na formação cultural dos

estudantes: um analfabetismo em outras práticas corporais da cultura, como os

jogos populares (um riquíssimo patrimônio imaterial da cultura), as danças (cuja

ausência dos programas é um contra-senso, em um país que tanta dança produz),

a ginástica (como arte de exercitar o corpo, e não como técnica de dominá-lo e

discipliná-lo), a capoeira (e sua presença na história do Brasil), dentre outras

práticas.

Ora, então, um desafio que se põe é superar essa monocultura do esporte

na Educação Física. Construir um projeto cultural de Educação Física com

“vontade de abrangência”, aproveitando uma rica expressão do geógrafo Milton

Santos.14

Um desafio que significa, como já comentado, ampliar o diálogo da

Educação Física com as práticas culturais que os sujeitos estão permanentemente

produzindo: a cultura infantil, a cultura juvenil, a cultura adulta. E tanta coisa

poderá ser então motivo para projetos de ensino em Educação Física... Há aqui

todo um percurso interessante a ser trilhado, na investigação dos interesses, das

14 “Vontade de abrangência” foi o título de um artigo de Milton Santos, no Caderno Mais, da Folha de São Paulo de 20 de junho de 1999.

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necessidades, dos desejos, das idéias, do conhecimento e dos usos de

estudantes em relação às práticas corporais dispostas na cultura.

Esse entendimento não deve ser confundido com uma posição de não tratar

o esporte na Educação Física, o que seria também um contra-senso, pois não se

pode negligenciar e subestimar sua marcante presença e circulação nas práticas

sociais. Ademais, conhecer e praticar o esporte e problematizar sua presença na

cultura constituem direitos dos estudantes, que devem ser respeitados na

Educação Física.

Assim, penso que um projeto cultural de Educação Física que não

contemple o esporte é pobre. Mas, em sentido inverso, também considero que um

projeto de Educação Física que só contemple o esporte é igualmente

empobrecedor da formação cultural que ela pode oferecer a crianças, jovens e

adultos.

Agora, é fundamental também perguntar: qual esporte na escola?15

Um esporte que tenha a marca distintiva da escola: que seja um direito para

todos, porque todos podem dele usufruir. Um esporte que não esteja submetido

aos princípios do esporte de rendimento, que não pode ser tomado nem

confundido como referência para a organização da Educação Física na escola.

Sim, porque a referência da Educação Física na escola são os estudantes, suas

histórias, suas culturas, seus interesses, seus direitos. Com isso, pensar então na

construção de outras maneiras de organizar e praticar o esporte na escola: é

possível, acredito, organizar práticas de esporte que tenham como orientação

pedagógica a própria escola e o seu público (que são crianças, adolescentes,

jovens, adultos — e não atletas). O ensino de esporte na Educação Física não

dever ser aprisionado (nem asfixiado) a critérios como os de seleção, exclusão,

performance, rendimento, vitória, dentre outros. Critérios que não devem ter lugar

na escola, se queremos respeitar o princípio de que ela (e tudo o que nela se

pratica) é um direito. E é estimulante saber que a produção e a vivência de

15Essa pergunta tem merecido a reflexão de vários estudiosos que oferecem suas contribuições para pensar o esporte que tem lugar na escola, como Valter BRACHT, Elenor KUNZ, Francisco CAPARRÓZ, Sávio de ASSIS, dentre outros.

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práticas de esporte com essa referência já é realidade em muitos projetos de

Educação Física espalhados pelo Brasil.

Agora, isso não se restringe ao esporte, não. Critérios como esses também

podem estar presentes nas danças, na ginástica, nos jogos, nas lutas, nos

brinquedos, nas brincadeiras, na capoeira... Nenhuma delas está imune. Assim, o

desafio é ousar inventar na escola outros modos de praticar todas elas,

imprimindo um caráter lúdico e solidário a elas (especialmente quando tudo

parece nos empurra para a formalidade das práticas, a sisudez e a competição).

Ou será que as possibilidades de invenção e reinvenção dessas práticas estariam

esgotadas?

Para Encerrar

Aposto em um projeto cultural de Educação Física como um dos tempos de

realizar o humano direito a uma rica cultura de práticas corporais. Não como coisa

dada. Mas como coisa conquistada e reconstruída. Tal como a vida.

Um Projeto em que alunos e alunas possam praticar essa cultura, sem

exclusão por nenhum motivo — porque não há motivo que seja suficiente para

justificar a exclusão das aulas de Educação Física; em que tenham respeitada a

sua corporeidade, construída em sua história de vida; em que os sujeitos

envolvidos (professores, crianças, adolescentes, jovens, adultos) possam colocar-

se à disposição de si mesmos quando fruem, usufruem e recriam essas práticas

na partilha da alegria. Reinventando-se a si mesmos. Reinventando a própria cultura.

Bibliografia

ASSIS, Sávio. A reinvenção do esporte: possibilidades da prática pedagógica. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.BRACHT, Valter. Educação Física: conhecimento e especificidade. In: SOUSA, Eustáquia S. & VAGO, Tarcísio M. (Orgs.) Trilhas e partilhas: Educação Física na cultura escolar e nas práticas sociais. Belo Horizonte, 1997.

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CAPARROZ, Francisco E. Entre a Educação Física da escola e a Educação Física na escola: a Educação Física como componente curricular. Vitória: UFES, Centro de Educação Física e Desportos, 1997.CHERVEL, André. História das Disciplinas Escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria e Educação, Porto Alegre: Ed. Pannonica, n. 2, 1990.CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. São Paulo: Papirus, 1995._______. Educação Física e cultura. Revista Corpoconsciência. Faculdade de Educação Física de Santo André, n. 1, 1998.FORQUIN,. Jean-Claude. Escola e cultura; as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médica, 1993.KUNZ, Elenor. Transformação Didático-pedagógica do Esporte. Ijuí: Unijuí, 1994LOPES, Eliane Marta S. T. Ensinar História da Educação. In: História da Educação em Minas Gerais. Lopes, Ana Amélia M; Gonçalves, Irlen Antônio; Faria Filho, Luciano M. & Xavier, Maria do Carmo (Orgs.). Belo Horizonte: FCH/FUMEC, 2002.PETITAT, André. Produção da escola/produção da sociedade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.SANT’ANNA, Denise B. (Org.). Políticas do corpo. São Paulo, Estação Liberdade, 1995. SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de Identidade; uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.SOARES, Carmem Lúcia. Educação Física: raízes européias e Brasil. Campinas: Autores Associados, 1994, 167p.VAGO, Tarcísio Mauro. O “esporte na escola” e o “esporte da escola”: da negação radical para uma relação de tensão permanente — um diálogo com Valter Bracht. Revista Movimento, Escola Superior de Educação Física da UFRGS, ano III, n. 5, dezembro, 1996._____. Educação Física e cultura escolar. A Educação Física no Brasil e na Argentina: identidade, desafios e perspectivas. BRACHT, Valter & CRISÓRIO, Ricardo (ORG.). Campinas (SP): Autores Associados; Rio de Janeiro: PROSUL, 2003.VICENT, Guy; Lahire, Bernard. & Thin, Daniel. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, 33, 7-48, jun. 2001.VIÑAO-FRAGO, Antônio. Tiempos escolares, tiempos sociales. La distribuición del tiempo y del trabajo en la enseñanza primaria en España (1838-1936). Barcelona: Anil,1998a._____ & ESCOLANO, Agustín. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura escolar como programa. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.

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Dados do autor

TARCÍSIO MAURO VAGO

TÍTULAÇÃO: Licenciatura Plena em Educação Física (UFMG, 1983)

Doutor em Educação (USP, 1999)

RG: 465.742 ES

CPF: 695.949.707-82

ENDEREÇO: Rua Estanislau Fernandes, 197, bairro Ouro Preto,

31340-130 Belo Horizonte - MG

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