eduardo friedrich
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Reportagem de Eduardo Friedrich para a revista Primeira Impressão.TRANSCRIPT
TRABALHO
Vida de pescador A história de Seu Nelson, um homem que há 50 anos vive da pesca
O sol brilha solitário em meio ao céu límpido de uma fria tarde de domingo.
Como paisagem, uma lagoa que reflete nas suas ondulações o imenso círculo de luz
oriundo do astro-mor. Mais ao fundo, uma rodovia e dois morros cobertos pela floresta
virgem completam a cena. À beira da lagoa, o junco verdejante. Um pouco mais a
frente, em terra firme, um barco de madeira virado. Sobre ele, encontra-se sentado um
casal, homem e mulher lado a lado. Ele, cabelos brancos arrepiados, casaco verde. Ela,
cabelos curtos e grisalhos, camisa vermelha e casaco preto. Ambos sorriem para a moça
que se prepara para tirar uma foto. Enquanto esperam pelo clique da fotógrafa, o senhor
de cabelos brancos dispara: “Quando a gente era mais novo, era ‘vem cá, meu amor’.
Hoje, é ‘vai pra lá, véia’”.
A brincadeira, feita por Seu Nelson, é uma das tantas que, ainda que pelo
conteúdo pareça contraditório, demonstram a cumplicidade do casal. Casados há 48
anos, Frida Rost Müller, 70 anos, e Elmídio Nelsion Müller, 71, se acostumaram a fazer
uso do bom humor para encarar as dificuldades que encontram vivendo da pesca. Ele,
na profissão desde 1966. Ela, aposentada como agricultora. Seu Nelson pesca desde
jovem, por influência do pai. Já Dona Frida abandonou a lavoura como forma de
negócio quando casou e, a partir de então, acompanha o marido nas pescarias.
Os dois moram nas terras que Dona Frida herdou dos pais e que pertencem a sua
família há mais de cem anos, localizadas na Ilha da Pinguela, em Osório, com acesso no
km 76 da BR-101. Tudo por ali foi feito pelo casal com as próprias mãos. A casa em
que moram, o galpão onde acontecem as festas promovidas por Seu Nelson, a “gaiola” –
veículo de madeira construído artesanalmente – com motor de fusca. Atualmente, Dona
Frida está pintando as paredes da casa. Só pediu ajuda ao genro para pintar o teto, já que
sua coluna não permite mais fazer tudo sozinha. A justificativa para tanto esforço? “A
gente faz porque é pra gente mesmo.” O casal também cria gado, porcos e galinhas e
planta para consumo próprio.
Mesmo aposentados e com tantas coisas a fazer, os dois não abandonam as
redes. Na última pescaria, ficaram acampados por 18 dias, junto com um casal de
amigos. Voltavam para casa apenas para colocar o peixe no freezer, quando acabava o
gelo. Para Seu Nelson, a pesca hoje é mais que uma profissão, é quase um hobby.
A alegria com que contam a história de suas vidas explica como superaram as
durezas que enfrentam muitos daqueles que dependem da pesca artesanal para viver.
Por exemplo, há pouco mais de dois anos, Seu Nelson teve o seu barco roubado.
Adquirido graças a um financiamento pago em cinco anos, o Frinel – mistura de Frida e
Nelson – foi levado menos de um mês depois de quitado.
Na época, Seu Nelson pensou em desistir. Estava prestes a vender o material que
lhe restara da profissão – motores para barco, redes de pesca, entre outras coisas. Mas
graças a um dos seus irmãos, foi impedido de parar. Aceitando o empréstimo que lhe foi
oferecido, Seu Nelson comprou o barco que tem até hoje. Em homenagem ao que fora
furtado, decidiu manter o mesmo nome: Frinel II.
Mas não somente o barco foi roubado. Também a casa do casal já foi arrombada
quando Dona Frida e Seu Nelson não estavam. Os assaltantes levaram uma roçadeira e
as redes de pesca. Além deles, os vizinhos também já foram vítimas de furto. Como a
ilha fica distante do centro da cidade, dificilmente alguém percebe quando está
acontecendo um assalto.
Além dos problemas que o próprio ser humano gera, o casal de pescadores tem
de superar também as dificuldades que a natureza lhes impõe. Tal dificuldade fica
evidente na irregularidade da produção nas pescarias. Em uma lagoa de propriedade
particular, onde pagam R$ 120 para passarem a noite pescando, Seu Nelson já
conseguiu o suficiente para pagar quatro noites e ainda receber troco. Em compensação,
na última vez que esteve na mesma lagoa, em duas noites pescou o equivalente a R$
230 – ou seja, R$ 10 de prejuízo, sem contar outros gastos (como gasolina para o motor
do barco).
VIDA AMEAÇADA
Não bastassem tais adversidades, a pesca ainda obriga o pescador a ser sempre o
mais prudente possível. Em duas oportunidades em que não foi cuidadoso, Seu Nelson
teve a sua vida ameaçada. A primeira delas, há mais de cinquenta anos. Seu Nelson,
então com 20 anos, acompanhado do irmão, um ano mais novo, decidiu recolher os
espinhéis – espécie de aparelho de pesca que consiste numa corda ao longo da qual são
fixadas linhas com anzóis. Sem avisar ao seu pai e ignorando as condições do tempo,
que já dava mostras do temporal que se armava com raios e trovões, os dois irmãos
subiram em um caíque – embarcação de madeira - e adentraram na lagoa da Pinguela.
Haviam tirado da água metade dos espinhéis quando a tempestade teve início. Seu
Nelson e o irmão não enxergavam mais que alguns metros além da embarcação,
tamanho o ímpeto da chuva. O pai dos rapazes, ao descobrir que ambos estavam na
água, correu até o porto. Não vendo o caíque nem os filhos, sentou-se e começou a
rezar.
Graças ao vigor da juventude, os dois tocaram o barco para terra firme. Com
uma das mãos, cada um dos rapazes segurava uma taquara, impulsionando o caíque para
frente. Já com a outra mão, tiravam a água que invadia a embarcação, utilizando-se de
canecas.
Atracaram o barco a considerável distância do local de onde haviam saído.
Deixando o caíque, voltaram ao porto onde seu pai ainda os esperava. Seu Nelson
relembra que, ao encontrar os dois filhos, o pai esbravejou: “Vocês não conhecem nada!
Vão morrer na água!”. A réplica veio no tom bem-humorado que ainda hoje caracteriza
a fala de Seu Nelson: “Mas a gente tá vivo”.
A segunda vez em que Seu Nelson se viu em apuros aconteceu há menos tempo.
O dia era 7 de setembro de 2000. Por volta das 8h, Seu Nelson acompanhou um de seus
sobrinhos e um amigo em uma pescaria na lagoa dos Patos. Estavam os três no meio da
lagoa, tirando as redes da água, quando perceberam que a popa do 0barco começou a
afundar. O sobrinho de Seu Nelson esquecera-se de fechar o tampão na parte de trás da
embarcação. Tal tampão serve para tirar a água do barco enquanto este se movimenta.
Mas, quando se encontra parado, o que era uma saída passa a servir de entrada para
água.
Agravava a situação o fato de o motor se encontrar na parte traseira da
embarcação. Não havia mais o que ser feito; o barco estava fadado a afundar. Dos três
pescadores, apenas Seu Nelson usava colete salva-vidas. Um deles, inclusive, estava de
botas, o que atrapalharia para nadar, diminuindo as chances de sobrevivência. Seu
Nelson relembra: “Aquele dia eu achei que iam morrer os três. Eles iam tentar se salvar,
e eu ia tentar salvar eles. Iam acabar morrendo os três”.
Por uma questão de sorte, no local em que se encontravam os três pescadores,
existia uma espécie de banco de areia. O barco afundou, mas a água não ultrapassou a
altura do peito dos homens. “Parece que foi Deus que levantou o chão”, acredita Seu
Nelson. Apesar do risco de afogamento não preocupar mais, havia ainda outro fator que
ameaçava suas vidas. Era setembro, final de inverno, e a água estava gelada. Seu
Nelson, portador do único colete salva-vidas, prontificou-se a nadar até a costa e chamar
ajuda. Munidos de um sinalizador, os outros dois pescadores ficaram onde o barco
afundara, movimentando-se constantemente, a fim de evitar uma possível hipotermia.
Em meio ao caminho de volta à costa, Seu Nelson encontrou o barco de um amigo.
Com a ajuda do dono do barco, voltou e salvou os outros dois náufragos.
Durante o resto do dia, os pescadores trabalharam no resgate do barco afundado.
Para arrastá-lo de volta à terra firme, foi utilizada uma corda com mais de mil metros de
comprimento para amarrar a embarcação à traseira de um carro. Puxaram-na até um
ponto em que conseguiram equilibrá-la e tiraram parte da água que tinha dentro. A
partir daí, esvaziaram completamente a embarcação e conseguiram retirá-la da lagoa.
O sol já vai se escondendo atrás dos morros, sinal que indica o fim de uma
agradável tarde de outono. Em frente à casa, dois filhotes de cachorro correm e brincam
em meios as galinhas criadas soltas pelo pátio. Antes de partir, pergunto se, apesar de
todas as dificuldades, Seu Nelson pensa em parar de pescar um dia. Ele não hesita: “Só
vou parar no dia em que não puder mais”.