friedrich, hugo - estrutura da lírica moderna

Download FRIEDRICH, Hugo - Estrutura da lírica moderna

If you can't read please download the document

Upload: lanehimura2

Post on 30-Oct-2015

1.547 views

Category:

Documents


6 download

TRANSCRIPT

  • Equipederealizao:AssessoriaeditorialdeMara VaIlesRevisodeValriaC. SaIles,ElisabeteOrficeeHelaineL ViottiCapadeLuis Daz

    Traduodo texto:MariseM. CurioniTraduodaspoesias:DoraF. da Silva

    1J

    I

    I11

    ESTRUTURA DA LRICA MODERNA

    (da metade do sculo XIX a meados do sculo XX)

    Hugo Friedrich

    !!

    [fi] Livraria[fi] Duas Cidades

  • PROBLEMAS ATUAIS E SUAS FONTES - 3DireodeErnestoGrassi

    Originalmentepublicadosobo titulodeDie Struktur der ModernenLyriknasrie"Rowohtsdeutscheenzyklopadie"EditorgeralErnestoGrassi RowohltTaschenbuchVerlagGmbH, Hamburgo,1956

    (5LJSumrio

    DEDALUS - Acervo - FFLCH-GE

    I111111111111111111111111111111111111111111111111111111I111I11111

    21100028582

    2~Edio

    Direitosparaa lnguaportuguesareservadosporLivrariaDuasCidadesLtda.RuaBentoFreitas,158- SoPaulo1991

    1, Do prefcio primeiraedio .Prefcio nova edio .

    I. Perspectivae retrospecto .Perspectivada lrica contempornea:dissonnciaseanormalidade,15.Categoriasnegativas,19.Preldiostericosno sculoXVIII: Rousseaue Diderot,23.Novalis sobrea poesiafutura, 27. O Romantismofrancs,30. A teoriado grotescoe do fragment-ri, 32.

    I C--,...~I 11. 8audela1re,)................................I O poetada modernidade,35.Despersonalizao,36., Concentraoe conscinciada forma:lrica e mate-

    mtica,38.Tempofinal e modernidade,42. Estticado feio, 44. "O prazer aristocrticode desagra-dar", 45. Cristianismoem runa, 45. A idealidadevazia,47. Magia da linguagem,49. Fantasiacriati-

    I va,53.Decomposioe deformao,55.Abstraoej arabesco,57.

    111. Rimbaud .Caractersticaspreliminares,59. Desorientao,60."Lettresd'un voyant" (transcendnciavazia, anor-malidadedesejada,"msica"dissonante),61.Rupturada tradio,64.Modernidadee poesiada cidade,66.Insurreiocontraa heranacrist: "Une SaisonenEnfer",66.O euartificial;adesumanizao,69.Rup-turadoslimites,71. "Le bateauivre", 73.Realidadedestruda,75. Intensidadedo feio, 77. Irrealidadesensvel,79. Fantasiaditatorial,81. "Les Illumina-tions",83.Tcnicada fuso,84.Poesiaabstrata,87.Poesiaemformademonlogo,90, Dinmicadomo-vimentoe magiada linguagem,90. Julgamentofi-nal, 93.

    913

    15

    35

    59

  • IV. Mallarm ' . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95Caractersticapreliminar,95. Interpretaode trspoesias:"Sainte", "I!ventail(de Mme. Mallarm)"e "Surgide Ia croupe",97. Evoluodo estilo,108.Desumanizao,110.Amor e mortesodesumaniza-dos, 112.A lrica comooposio,comotrabalhoecomojogo,113.O Nadae a forma,115.Dizero quenuncafoi dito; algunsrecursosestilsticos,116.Aproximidadedo silncio,118.Obscuridade;confron-to comGngora,119.PQesiasugestiva,no compre-ensvel,121.6 esquemaontolgico,122."Sespursongles",128.A dissonnciaontolgica,130.Ocultis-mo, magiae magialingstica,134. "Posiepure",135. Fantasiaditatorial,abstraoe "olhar abso-luto", 13&1O estarscoma linguagem,138.

    V. A lrica europiano sculoXX 141Observaesmetodolgicas,141. "Festado intelec-to" e "derrocadado intelecto",143.A lrica espa-nholado sculoXX, 145. Duas reflexessobrealrica: Apollinairee GarGaLorca, 147.O estilo in-congruentee a "nova liguagem",149. Ulterioresconsideraessobre a "nova linguagem",153. Afunoindeterminadadosdeterminantes,160.ApoIoemlugardeDioniso,162.Duplarelaoparacomamodernidadee a heranaliterria,165.Isolamentoeangstia,173. Obscuridade,"Hermetismo",Unga-retti,178.Magiada linguagem-esugesto,182.PaulValry,184.Jorge Guilln,187.Poesiaalgica,190.GarGaLorca, "Romancesonmbulo",193.O absur-do; o "humorismo",194.Realidade,195.T. S. Eliot,197.Saint-JohnPerse,200. Fantasiaditatorial,202.Os efeitosda fantasiaditatorial,203. Tcnica dafusoe metforas,206. Concluso,210.

    Apndice I -Poesias do sculoXX 213

    Apndice 11- Quatrointerpretaes. . . . . . . . . . . . . . . 287

    Apndice111- Cronologiadalricamoderna.. . . . . . .. 305

    Bibliografia 311lndice de autores 143

    A ErnestoGrassiem seu65.0 aniversrio

    2 de maiode 1967

  • IL

    II)

    ,.~.

    l

    Do Prefcio Primeira Edio

    Estelivro o frutode anosde reflexessobrea lrica mo-derna.Reflexesiniciadasna pocaem que chegoua minhasmosa antologiaMenschheitsdmmerung(O crepsculoda hu-manidade),publicadapor K. Pinthus.Estvamos?m 1920e eufazia o cursocolegial.Como era de se esperar,tais reflexespermaneceram,a princpio,desordenadas.Somentemuitomaistarde,quandovima conheceroslricosfrancesesdo sculoXIXe, posteriormente,os lricos francesese espanhi$do sculoXX, delinearam-seos perfisquepassarama meorientarnestecampoto vasto.Percebique os poetasalemesanterioresa1920,bemcomoos queescreverampor voltadaqueleano,ex-trdosdo "sculoXIX agonizante"por seueditor,noeramtodissociadosentresi, comopodiaparecer, primeiravista.Tam-bmno o soos poetasposterioresquelese os atuais,tantona Alemanhaquantono restoda Europa.A crtica da lricacontemporneacometequasesempreo erro de considerarso-menteo pasqueestsendofocalizadoe nosseusltimosvinteou trintaanos.Assim, a poesiapareceassumircaractersticasdeumaextraordinria"ruptura"e,entrea lricade 1945e a de1955,nota-se,comespanto,umadistnciaque,na verdade,nocorrespondenem mesmoao intervaloexistenteentredois se-gundos.

    Os fundadorese, aindahoje,mestresda lrica modernadaEuropasodoisfrancesesdo sculoXIX, Rimbaude Mallarm.Entreelese a poesiade nossapoca,perduramelementosemcomumqL(enosepodeexplicarcomosimplesinfluxosnemseprecisaexplicarcomotal, mesmonos lugaresem queos influ-xossejamreconhecveis.Trata-sedeelementosestruturaisemco-mumou, melhor,de uma tessiturabsica,surpreendentementeconstantenosmaisvariadosfenmenosda lrica moderna.Essaestrutura,originriademuitosfilesalgunsdosquaisj existen-tesnosculoXVIII, fundiu-se- porvoltade1850nateoriapo-

    9

  • ticae por voltade 1870,naprtica- emumtodoque,cer-tamente,muitocomplexo,mastambmmuitocoerente.Isto ocor-reu na Frana.As leis estilsticasdos poetasatuaistornam-seclarasa partir de Rimbaude Mallarm,e, por outro lado, oespantosomodernismodestesltimos explicadoa partir dospoetashodiernos.E necessrio,almdisso,decidir-sea deixarde ladoas classificaescostumeiras,comas quaisa crticae acincialiterriatmsubdivididoa lrica europiados ltimoscemanos.E, almdisso, necessriodecidir-sea abandonaralimitaodo campovisuala um autor isoladoou a um tipoestilsticoisolado.S entopode-sevisualizaraquelaelucidaorecproca(entreos poetasfrancesescitadose os modernos)e,comisto,a unidadeestruturalda lrica europiamoderna.

    O qu.eo presentelivropretende(e,peloqueeusaiba,aindanofoi feito)estexpressoemseuttuloprincipal.No tencionaserumahistriada lrica moderna.Se assimfosse,muitosou-trosautoresteriamde ser analisados.O conceitode estruturatornasuprfluaa anlisede todoo materialhistrico.Principal-menteseo materials trazdigressesda estruturafundamental,como,por exemplo,no casode Lautramontque, verdade,exercehoje algumainfluncia,emborano passede merava-riantede Rimbaud- a quemno conheceu,topoucocomoestequele.Pelo mesmomotivo- almde muitosoutros-prescindetambmdetratarda lrica confessionale da lricapo-ltica do sculoXX. O valordestalrica - noscasosemqueeleexista- noseoriginada f nemdasidiaspolticas- emuitomenosaindada polticapartidria.

    E naturalque eu, comoromanista,tenhaido buscarnasliteraturasromnicasa maiorpartedos exemplosdo captuloquinto.O leitornodevevernistoumadepreciaodospoetasalemese anglo-saxes,sobretudoporquemeempenhei,na me-dida do necessrio,em incluir um representantealemoe umingls,a fim deexpora suagrandeza,mastambmparamostrara comunhode estiloestruturalcomos franceses,espanhiseitalianos.De qualquerforma,a apresentaoemmeulivro dosfundadoresda lricamodernae deseuprecursor,Baudelaire,no fruto casualde meusinteressesespecficos,masumanecessidadeobjetiva.

    O que a lrica moderna?No querome arriscara darumadefinio.A respostadevesurgirdo prpriolivro. Este li-vro devetambmresponderpor que omiti to grandeslricoscomoGeorgee Hofmannstha,l,assimcomoCarossa,R. A. Schro-der,Loerke,RicardaHuch,Th. Diiubler.Elessoosherdeiroseos novospontosaltosde umestilolrico plurissecular- justa-

    10

    ,Ir

    mentedaqueleestilodo quala Franasedesprendeuh oitentaanos.Acreditoque ningumir deduzirque eu os consideresuperados.Eu mesmono sou vanguardista.Sinto-memaisvontadecomGoethedo quecomT. S. Eliot. Mas istono oque importa.Aquilo queme interessa identificaros sintomasdo modernismorigoroso,e pensoquenossascinciasfilolgicasteriamde fazeraindamuitomaispor tal identificaodo quetemacontecidoatagora.

    O livro estarexpostoa muitosequvocos.Os poetassopessoassensveis,zelosasdesuaoriginalidadeeseusadmiradoresalentamestasensibilidade.Por isso conto j, principalmente,com um equvoco:o de ter julgadocom o mesmoparmetrotodosospoetasquecito.Pois bem,esteequvocoenderear-se-iajustamentecontrao intuitodo livro, o qual pretendedar umavisodossintomasda lrica modernaqueatingemparaalmdopessoal,do nacionale dosdecnios.

    O livro apresenta,emalgunstrechos,os princpiosmetodo-lgicosque nortearamminhaexposio.Quero apenasanteci-parqueo captuloquintonodeveriaserlido semconhecimentodosquatrooutrosanteriores,pois,do contrrio,no se distin-guiria quo ntimaa conexodos poetashodiernoscom ospoetasfrancesesdo sculoXIX. Teriasidofaslidiosocontinuar,todavez,a demonstraristoem cadacaso.Alm disso,deveselembrarque,quandodigo "moderno",refiro-mea todaa pocaa partir de Baudelaireel ao invs,digo "contemporneo"ou"atual",quandosetrataexclusivamentedepoesiasdosculoXX.

    Em atenoao leitor,apresenteiquasetodasascitaestra-duzidas,no decorrerde cadaumdoscaptulos.No ApndiceI,foramtranscritosalgunstextosoriginais,juntamentecomtenta-tivasde traduo.Com certeza,todoaquelequeestfamiliari-zadocoma lrica bemsabecomo difcil traduzi-Ia,especial-mentea lricamoderna.

    Hugo FriedrichFreiburg,in Brisgau,

    Pscoa,1956

    11

    ~ .-9: ._n __"_ .__

  • ~rara que o outro fenmeno,ou seja,damudanade relaoentrettulo e contedo.Tambmaqui hmuitasvariantes.Por exemplo,aquelaem que se toma umversoda poesia,Ornottulo, arbitrariamente,mas o mesmopoderiaigualmenteacontecercomoutroverso.Por outrolado,encontram-seento ttulosque pertencemde uma formatonecessria poesiaqueesta,semo ttulo, permaneceriaenig-mtica,no casode "Em umaestaode metr"de Pound.Ouatmesmoestanecessidadedesaparece,e o ttulodeumapoesiaobscurano a elucida:assim,"Nifo" de Guilln. O mesmoacontececomo ttuloe o contedosubseqentede umapoesiade Apollinaire, "Arbre", de todo estranho rvore(249,p.178).Tais incongruncias,nasquaiso contedode umapoesiano se "ajusta" a seu ttulo, acrescentamao respectivotextouma ulteriorcamadade ambigidade.Jimnezd a suaspoe-siasmuitosttulosemformainterrogativae, em duasocasies,consistem,atmesmo,s num pontode interrogao.Trs es-trofesdeum poemadeBenncomeamcom"Se um rosto... ",semumacorrespondnciaseguintea estecondicional"se"; doponto de vista sinttico,como tambmsob outros aspectosestasestrofesestode tododesarticuladase levamcomottulojustamentea palavraquefalta no interiordo poema,ou seja,Ento; a conclusoque resultada condio,mas,tambmapenasum fragmentoantepostos estrofes- umatcnicadainversoque nos poetasmodernosse encontraem muitasva-riantes,e no meramenterelacionadoao ttulo. O comumatodasestasintitulaesanormaispoderiaresidirno enfraqueci-mentoda coerncialingsticae semnticae, ainda,emsentidomaisamplo-, na necessidadede encontrartambmaqui efei-tos fora do comum.

    A funo indetermlnada dos determinantes

    Dever-se-mencionaraqui um fenmenoestilsticomuitofreqentena lrica modernaque se relacionacomo traofun-damentaldo tornar inslitoaquiloque familiar.Ns o cha-mamosde funoindeterminadadosdeterminantese queremosdizer, com estaexpresso,o seguinte:uma poesiade Benn,"Welleder Nacht" terminacomo verso:"rola a brancaproladevolvidaao mar". Uma sensibilidadelingsticanormal per-

    160

    II

    1,1

    )1

    !I

    I,11

    guntar:que prola? Os versosprecedentesno falavamdenenhuma.O que antecediaeraum soprar,um vir rolando,le-vementetrazidopor essnciase coisas,ou, maispropriamente,por seusnomesmgicos.Tambma prola um destesporta-dores.Ocorrecomela algo maissignificativoqueela mesma:uma sonoridadelingsticae o movimentoabsolutodo rolarpara trs.O artigodefinidono expressaaqui uma determi-naorealdo substantivoao qualpertence.Apenaso introduz,para wnvert-loem sinal sonorode um movimentoabsolutoque, por sua vez, faz voltaratrsos movimentosgiratrioseaproximativosdos versosanteriorese os conclui.Aquilo que indicadopelo substantivo,a prola,no foi preparadopornadae atuade maneiraindefinidae misteriosa,justamentepor-queo artigodefinidocoincidecomestaincgnita."Umaprolabranca... " teriaconferidoao versoum climadistinto.

    Na linguagemusual e corrente,o artigodefinidotem afunode designaruma coisaque conhecidaou j tenhasidoapresentadanumtexto. o meiolingsticoparaa verifi-caodo conhecidoou deumacoisaacabadadecomunicaroutambmde umapessoae, atesteponto,lhe prprio aindaum restodo adjetivodemonstrativo.Mas, na poesiamoderna empregadode tal maneiraque,comomeiodeterminante,des-pertaa ateno, verdade,mas,logo emseguida,a desorientadenovopormeioda absolutanovidadequeintroduz.Estepro-cedimentoj seapresentavanoslricosdo sculoXIX, demodoparticularem Rimbaud,e, tambmde tal forma que eramincludosoutrosdeterminantescomopronomespessoais,advr-bios de lugaretc.No sculoXX, se propagadesmesuradamen-te,e setornaumdosindciosestilsticosprincipaisdalrica con-tempornea.Um poemade J. Supervielle,"L'Appel", contmumexemplolegendrio:"As damasdenegro... , o espelho... ,o violino de mrmore... " Todos os elementosda ao quese desenvolvesoexpressoslingisticamentede maneiradeter-minada,comosefossemconhecidosde h muito.Mas no serelacionamcomnadaconhecidocomo a normano contodefada autntico.As provasmaisnumerosasdesteprocedimentoseencontramem Eliot, em Saint-JohnPersee em Guilln.Ve-rifica-sesempreque a colocaodosdeterminantescomsimul-tneaindeterminaodaquiloque estexpresso,provocaumatensolingsticaanormale comestase encontrao meio deimprimiro inslitoao quesoafamiliar.A lrica modernaque,alis,gostade contedosincoerentes,introduzo novocomsur-preendenteimprevisto.Quandoo determinantelhed a aparn-cia de conhecido,surgea desorientaoe faz queo novo, iso-ladoe semprocedncia,sejamaisenigmtico.

    161

  • Apoio em lugar de Dloniso

    A lrica modernatornou-seum assuntofrio. A reflexoso-bre ela tornou-setambmfria. E julgadacom competnciatcnica.Apesarde tudo,estejulgamentoestsempreassociado conscinciade que a lrica um mistrio,uma zona fron-teiriaconquistadaao apenasexprimvel,um prodgioe umapotncia.E estuda-sesuapotnciacomoumaexplosode for-as, por assim dizer, atomizadasda palavra,desencadeadaexperimentalmente,e se considerasualinguagemmisteriosaco-moo resultadosurpreendentedecombinaesqumicastentadaspelaprimeiravez.O poetase transformanaquelequeseaven-tura em camposlingsticosat entono trilhados.Todaviaestprovidocomos aparelhosdemediodeseusconceitosquepermitema ele, a qualquerhora,o controlesobresi mesmoe o resguardamda foraavassaladorado sentimentobanal.Oencantamentoquepodeemanardepoesiasmodernas refreadopelo homem.Acima de suasdissonnciase obscuridadesdo-minaApoIo, a clara conscinciaartstica.J desdeincios dosculoXIX, a emooinspiradoratinha perdidoprestgio,co-mo nica legitimaoda qualidadepotica.No entanto,surgi-ram frutostardios.A opiniopblicaficou muitotempopresaa eles.Seu modeloadmiradoera um poetaalemodo sculXX que tem grandezaartstica,mas semcaracteressexuaisdefinidos.A poesialhe foi "imposta"em meioa "tormentasnoturnas",saltou-lhe"emsentimentofranco"de tal modoque"a mo tremiae os tecidosestalavam";em seguida,relatoucom minciaseste"xtase"a princesas,condessas,damas,a"muitodignose carossenhores",commuitos"de qualquermo-do" e "em algumlugar" e comos maisnobresgenitivos.Istoteveconseqnciasfataise conduziua uma sombriaconfusoentreestecasoparticulare a poesiaemgeral.

    Quase sempreos principaislricos europeusencaramainspiraocomdesconfiana,e sabemdistinguircom preciso,umada outra,a excitaoda fora,o turbamentopessoaldavalidadeespiritual."A poesia umaarteprofundamentecpti-ca." Pressupeuma liberdadeextraordinriafrente a nossosprpriossentimentos.Os deusesnos concedema graade umverso;masentocabea ns comporo segundoque deveserdignode seuirmomaisvelho,sobrenatural,do que s muitoprecariamentesocapazestodasas forasda experinciae doesprito.AssimescreviaValryem seuensaiosobreAdonis deLa Fontaine.Em outrapassagem,diz: "Suspiroe gemidoele-mentar"nadatma vercoma poesia,enquantonosetenham

    162

    I~

    ;j

    il

    ,r

    transformadoem"figurasespirituais"(211,lI, p. 20). Em seudiscursosobreGngora,GarcaLorcaelogiao poetafrancsporestespensamentose os acentuaaindamais.Desdea reaocon-tra a lrica pattico-oratriade D'Annunzio,tambmos poetasitalianosseguemcaminhossemelhantes,colocandoa "palavranua" (Ungaretti),meditadah muito tempo,acimado falarcomovido.No fundo, se trata de idiasantigas.O fato deque apareamto amideprecisamenteem pasesde lnguaromnica,estrelacionadocom o terrenolatino comum.Po-rm,a insistnciade sua apariodesdeBaudelaireato pre-sente,indicaque a lrica modernaaindaest atravessandooprocessode "desromantizao".

    Tais idias encontramsua expressotambmem outrospases.J se podiamperceberos preldiosem Novalis.T. S.Eliot fala da despersonalizaodo sujeitopotico,graasaqualsuaatuaosetornaparecida dacincia,realaa "inten-sidadedo processoartstico"e exigeque se olhe no apenasno corao,mas, "mais fundo", ou seja, "na meningee nosistemanervoso".Na Alemanha,Bennretomoutodosesteste-mas, com formulaesconvincentes,que renovarama atmos-fera. Sua conferncia"Problemasda lrica" (1951),tornou-seumaars poeticada metadedo sculo.Bennconferiu,de novo,honrasao conceitode "artstico",designandocom estetermoa vontadeestilsticae formalpossuidorade verdadeprpria,superiorsverdadesdos contedos."Pois s na esferada for-ma se reconhceo homem"- um princpiomuito latino. Ainspiraonoguia,masdesorienta.E ela que "faz surgirumpar de versos",masentoo homem,com suaforacriadora,"tomasbitoem mosestesversos,coloca-osnum microsc-pio, examina-os,tinge-os,procuraos pontospatolgicos... "

    Os lricos contemporneosgostamde falar de seu "labo-ratrio", de "operar",da "lgebra",do "clculo" do verso.Valry,em seulivro sobreDegas,descreveo pintormoderno:nomaisa aconchegantedesordemdo atelierdo artistade ou-trora,masum "iaboratriode pintura",ondeum homemves-tido todode branco,com luvasde borracha,trabalhasegundoum horriopreciso,rodeadode instrumentosdepreciso.Val-ry tevea ironiadeafirmarqueestaseriaumaimagemdo futu-ro. Mas j.era h muito realizada.Quando se l o livro deHaftmannMalereiim 20. Jahrhundert,tem-sea impressoqueestapinturasejacomoum laboratriogigantesco,ocupadoporpessoasde cunhoextremamenteintelectual,quedescobrem"fr-mulas", "definem"o espao,experimentam"tessiturassono-ras". Na lrica, ocorrealgo parecido.Aquele que se tornourepresentativo o "lrico pensador"(E. Langgsser),para o

    163

  • qual laranjase limesse transformamem "lgebrados frutosmaduros"(Krolow), e que podedizerde si mesmoo quedizBenn: "Sou prismtico,trabalhocom vidros". : significativoque Valry, utilizandoo significadogregooriginrioda pala-vra, identifiquea poesiacom fabrication,pensandomenosnaobraqueno atodafabricao,por meiodo qualo prprioesp-rito seelevae se aperfeioa.

    Deve-seevitaro equvocode consideraresta atitudedoslricos modernoscomoumafria substituioa forascriativascarentes.Antes,se deveobservarque as ponderaesintelec-tuaisconduzema linguagem vitria lrica justamentequandoela devedominarum materialcomplicadoenvoltoem sonho.: congruenteque a extraordinriasensibilidadeda almamo-dernase tenhaconfiado clararazoartsticaapolnea.Estacuidadequeaquela,emsuaaspiraoa um poetarplurivalen-te, mgico,demonstre,em longaexperimentao,sua necessi-dadeantesdepoderfalar.

    Ao expostoacima,correspondeo papelquea conscinciada formadesempenhana lrica moderna.Nos poetasdo tipode Mallarm,aquelase exprime,na prtica,comoprecisom-trica; tambma teoriaquea acompanhaprossegueos rumostomadospor Mallarm,semtodavia,assumirsua motivaoontolgica.Valry o testemunhomaisfecundodesterigor for-mal, tantoprticocomoterico.Suasmanifestaesconstituemum dospicesda culturaformalromnica.Valry reconheceua combinaosecretade ceticismoe rigor formal: "A dvidaconduz forma".A dvidareconhecequoproblemticossoos simplesrepentesdo contedo;masa poesiarecorrea estasformasmtricascomoa um sistemade regrasde jogo quesedeveobservarrigorosamente,elevando-aacimada espontanei-dadebrutale do caosdosrepentes.De resto,a singularidadedaprecisomtricana lrica modernaresideno fato de que for-ma um contrastecomo contedonebuloso- anlogoqueleoutro contrastede tensoentreuma sintaxesimplese umaafirmaocomplicada.

    Poetasdemenorou nenhumrigor formal- e constituema maioria-, assumema mesmaatitudereflexivaem relaoa seusmeiosformais.Claudelexaminoucom rigor o entrosa-mentodo versolivrecomosperodosrespiratrios.Aragonana-lisou minuciosamenteas inovaesde seu sistemade rimas.Tudo isto demonstraa conscinciado poetarmoderno;cons-cinciaesta,no entanto,de seralgodiversodos conhecimentostradicionaisde tcnicapotica,por meio dos quais o poetaenc0J;ltravaoutrora sua linguagemespecficana variadobjetodado.GarcaLlilrcaque esgot(i)utoclasaspQssibilidades

    164

    jI

    I~

    ..

    formais at chegarao completodesmembramentodo verso,confessounumaconversap:"Se verdadequesoupoetaporgraade Deus- ou do diabo-, o soutambmgraas tc-nica e ao esforo,e porqueme dou perfeitacontado que uma poesia".T. S. Eliot v na atuaoartsticaum trabalhode precisoque.temtarefas.anlogas fabricaode umam-quina ou ao torneamentode uma perna de mesa.Suaspr-prias formasmt:icassolivres, verdade.Mas o trabalhodeprecisose revelano tratamentorefinadode versosque serepetem,na construode suaslongaspoesias maneiradecomposiesmusicaisem vriostempos.Nos bonslricos, asliberdadesformaisno so anarquia,mas uma bemrefletidapluralidadede sinaissignificativos.

    Lembremos,enfim,um paralelocom a msicacontempo-rneae, comisto,chamamosde novoa atenoparaa amplaunidadeestruturalde todasas artesmodernas.Na PotiqueMusicalede Strawinsky(emparalelismocoma !ntroductionIa Potiquede Valry),seencontramestasidiasdiretrizes:to-do trabalhoartsticodeveacontecerna "luz semsombras"dapotica,ou seja, da conscinciado fazer ("des WissensvomMachen");o artista o tipomaiselevadodo homofaber; seuDeus ApoIo, noDioniso; a inspirao assuntode catego-ria secundria:em primeirolugar,esto descobrimentoope-ranteque substituia improvisaopela construo,e a liber-dadecaticapelo "reinoda limitaoartstica",ondeapenasamelodiaencontrade novoseusorriso;a potica, emsualti-ma essncia,uma "ontologia".

    Dupla relao para com a modernidadee a heranaliterria

    A partirde Baudelairea lrica sevoltouparaa moderni-dadeentendidacomocivilizaotcnica.O peculiardestamu-danacontinuousendoO de poderadotaruma atitudetantopositivacomonegativa.Apollinaireamalgamao mundoextre-mamenterealda mquinacomas imagensde sonhodo absur-do. A mquinatorna-semgica.As vezes,deve,receberumaconsagraoreligiosa;masa tentativaconduz dissonncia.Em"Zone",deApollinaire,a grandepoesiaintrodutriade AlcooIs(1913),hangaresde aviese igrejasestocolocadosno mesmoplano, Cristo "o primeiroaviador"que bateo recordedealtura.Uma variantede "Zone" a poesiade J. Prvert,"Le

    165

  • combat avec l'ange" (Paroles, 1949): o combate com o anjo um encontro de box no ringue, luz das lmpadas de mag-nsio e o homem, vencido, deixa-secair na serragem.Pareceque, nas grandescidades,a tcnicae o contedovital das mas-sas atraemna mesmamedidaem que atormentam,como se fos-sem novos estmulos,e trazem,por outro lado, novas experin-cias de desolao.Pois destesdois modos que a lrica reagea eles. um fenmenodifcil de desenredar.Atravs da lrica,o sofrimento passa falta de liberdade de uma poca, domi-nada por planificaes,relgios, coaescoletivas, e que, coma "segundarevoluo industrial", reduziu o homem a um m-nimo. Seus prprios aparelhos, produtos de sua potncia, odestronam.A teoria da exploso csmica e o clculo de mi-lhes de anos-luz o constringem,convertendo-oem um acasoinsignificante. Estas coisas tm sido descritasamide. Mas pa-rece existir uma relaoentre estasexperinciase certas carac-tersticas da poesia moderna. A evaso ao irreal, a fantasiaque comeamuito alm do normal, o sentido de mistrio deli-berado, o hermetismoda linguagem: tudo pode ser talvez con-cebido como uma tentativada alma moderna,em meio a umapoca tecnizada, imperializada, comercializada, de conservarpara si a liberdade e para o mundo o maravilhoso, que nadatem a ver com as "maravilhasda cincia".

    Todavia estalrica tambmestmarcadapela poca qualope sua liberdadeextrema.A frieza de seuofcio, sua tendncia experimentao,sua dureza de corao: estase outras carac-tersticasso o "esprito da poca" atuando de modo imediato.A lrica intenta a "poesia sinttica", onde as imagenspoticasprimordiais - estrelas,mares, ventos - se mesclamaos pro-dutos da tcnica e s palavras da cincia especializada."Vejouma densa mancha de leo de mquina e penso demorada,demoradamenteno sangue de minha me", dizem alguns ver-sos de Jouve. Para o italiano Cardarelli a pocaque precede amorte se parece com a espera sob o relgio da estao, doqual se contam os minutos. Nas poesias de Eliot e Saint-JohnPerse, estes prosasmosse elevam ao canto, sem vir a perdersua dissonncia.Mas h tambmoutro fato que se deve obser-var. Como em Rimbaud e Mallarm, tambm a lrica contem-pornea chegoumuitas vezes ao ponto em que se suicida. Tal-vez seja o mais violento esmagamentoimposto pela modernida-de, sendoanlogo ao fato de que o homemtrabalha para fazerir pelos ares o globo terrestre.

    ,Idntica viso dupla se revela tambmna atitudepara coma heranaliterria e a histria em geral. A regra a ruptura

    166

    t

    1li

    ~

    voluntria com a tradio. Com as cinciashistricas,com a fa-cilidade de acesso a todas as literaturas, com as instituiesdos museuse o grande desenvolvimentodos mtodosde repro-duo e de interpretao,aumentou tanto a pressoexcessivado patrimnio histrico que no sculo XIX j se comeavaasentir, crescendotambma pressono sentido oposto, ou seja,a aversoa toda coisa passada que, alm do mais, desde hmuito estava preparada pelo despedaamentoda mentalidadehumanstica.Esta aversopode assumir todas as formas, desdeo cansao injria. "Todo escritor digno destenome deve es-crever contra tudo o que foi escrito at agora." (Fr. Ponge)At mesmo nos espritos mais modernos,a lembrana da lite-ratura anterior se transformouna exigncia de compor versos,a todo o custo, de modo diferentedos predecessores.Com suamaneira nobre e irnica, Valry escreve: "Para mim, a leitura um peso.s vezes,me felicito de ser to pobre e to incapazpara os tesourosda cincia acumulada.Sou pobre, mas sou orei de meus macacose papagaiosinteriores" (211, I, p. 961).

    Na medidaem que a lrica procedesimbolicamente,se re-pete o fato, observado desde Mallarm, de se empregaremossmbolosde um modo autrquico,no tomadosde um patrim-nio tradicional. Valry e Guilln parecemconstituir uma exce-o. Porm seus smbolos no remontammais alm de Mallar-m - e atestam,portanto, um tipo estilstico, j por si s mo-derno, e no uma vontade de nutrir-se da tradio. QuandoSaint-John Perse transforma coisas como cal, areia, escolhos,cinzas, em sinais simblicos, no h formao literria algumaque ajude a compreend-Ios,sobretudoporque tampoucoo poe-ta pretendeinfundir nestessinais algum sentido preciso. Bastaque sugiramefmeraspossibilidadesde sentido. Os significadosdos smbolosvariam de autor para autor, devemser descerradosapenaspelo autor, amide com o resultado de que no h fun-damentopara interpretaoalguma.At que ponto estesimbo-lismo autrquico se estendeu,por exemplo, tambm msica,pode deduzir-sedo prlogo que Hindemith escreveu para suaMarienleben (1948).

    De toda forma, a esta manifestaruptura com a tradiose ope uma sensibilidadea todasas literaturas e religies,mastambma vontadede mergulharno profundo do mundo psqui-co do homem,onde Europa e sia, imagensprimordiais mgicase mticas, se tocam.J se pde observarestadisposioem Rim-baud, muito antesde C. G. Jung desenvolversua influente psi-cologia do inconscientecoletivo e dos arqutipos.A lrica mo-

    167

  • dernaestrica de versosplenos de ressonncias,de um patrim-nio universal potico, mtico e arcaico. Nela comparecemtra-dies do folclore. Ecoam assuntose lendas hericas da IdadeMdia, podendo surgir uma obra to encantadoracomo a reela-borao feita por Cl. e Y. Go11dos Fiorettide So Franciscode Assis (Nouvelles petites fleurs, 1943). As poesias deSaint-John Perse estoplenas de aluses pintura mais antiga,a mitos antigos, a lugaresde culto exticos. Ezra Pound entre-teceem seus textospassagensde poesiaprovenal, italiana anti-ga, grega, chinesa. The WasteLand de Eliot recolhe de umaobra erudita smbolos da lenda do Graal, mas se serve tambmde vrios motivos do Upanishad e da Bblia, traz trechosde ci-taesou citaesveladas,transpostasnum ambientediverso, deWagner, Baudelaire, Shakespeare,Ovdio, Dante, Agostinho. Oprprio autor cuida de fornecernum autocomentrio- em que difcil de avaliar a parcela de seriedadeou de ironia - asexplicaesnecessrias.Este procedimentocriou escola, comono italiano Montale e no espanhol Diego.

    Tais fenmenos,porm, j no provm de um vnculo au-tntico com a tradio o qual pressupeque se sinta von-tade numa poca histrica unitria e conclusa em si. Esta reto-mada de motivos, alusese citaes,colhidos ao acaso,so res-tos espectraisde um passadofeito em pedaos. Podem ser en-tendidos como sntese.Mas seu efeito o de montageme decaos. Pertencem,assim como a acolhida ilimitada de mundosconcretos nivelados em sua hierarquia, ao estilo da arbitrarie-dade, da incoerncia,do entrelaar-sede tudo com tudo. Comose pode observar, sobretudo em Ezra Pound, so meios paraconvertero sujeito poticonuma espciede sujeito coletivo quese apraz numa troca desconcertantede mscaras.Ou ento,como em Saint-John Perse ou em Benn, derivam da intenode produzir, por meio de palavras buscadaso mais longe pos-svel, uma magia de sons e imagens de encanto lrico sempreelevado.Tais textosprocedementrecruzando os fragmentoshis-tricos e sinais lingsticos com outros que, segundo a ordemcronolgica,nada tma ver com eles, ou colocando-os,de formabrusca, ao lado de palavras-chavedo mundo moderno. "Os ci-clos irrompem: esfingesantiqssimas,violinos e um porto deBabilnia, um jazz do Rio Grande, um swing e uma orao... "(Benn) Tais versos so o direito da lrica que pode divagarpor tudo, com a condio de faz-Ia cantando.Mas, ao supri-mir os limites e a confuso,morre a histria. A lrica modernatorna sem ptria tanto o espao histrico como o das coisas.Esta afirmao pretendeservir sua caracterizao;no umacondenao.

    168

    Desumanizao

    Em 1925, apareceuo ensaio de Ortega y Gasset sobre adesumanizaoda arte (La DeshumanizacindeI Arte).Este t-tulo converteu-se,desde ento, numa frmula usada amide.Constitui um exemplo de como um observador da arte e dapoesia modernas deve servir-se de um conceito negativo,empregando-o,porm, no para condenar,mas para descrever.Detrs das exposiesde Ortega se acha, embora no mencio-nada, boa parte da estticade Kant e de Schiller, em particulara doutrina do belo independentede uma finalidade. A importn-cia do ensaio reside na idia de que a sensibilidadehumana,provocada por uma obra de arte, desvia da qualidade estticadesta. Ortega relaciona primeiro este pensamentoa cada pocaartsticae se declarapela superioridadede cada estilo que trans-forme e altere os objetos. "Estilizar significa: deformar o real.A estilizao implica a desumanizao."Assim, aqui, reencon-tramos tambm o conceito de deformar. Embora queira serum princpio estticogeral (no que tem razo at certo ponto),esta uma frase especificamentemoderna2,ao incluir os con-ceitos de deformao e desumanizao.S diante dos fatosocorridos a partir da metadedo sculo XIX, tornou-sepossvelsemelhantedefinio do estilo baseadoem caractersticasnega-tivas. E, de forma imperceptvel,tambmas afirmaesde Or-tega se transferiram arte moderna. Para Ortega, os traosessenciais desta consistemna desvalorizao das formas org-nicas e tambmna concepode que a obra de arte no temoutro significado salvo o implcito em suas prprias foras estiolsticas deformadorase, ainda, na auto-ironia que uma reao atitude pattica da arte mais antiga. Mas o trao essencial,mais importante, a desumanizao.Esta se manifestano aban-dono de estadossentimentaisnaturais, na inverso da ordemhierrquica, antes vlida entre objeto e homem, deslocandoagora o homem para o degrau mais baixo e na representaodo homem partindo de um prisma que o faz parecer o menospossvel com um homem. "O prazer estticodo artistamodernonasce justamentedeste triunfo sobre o humano." A concordn-cia desteensaiocom os programase as prticas poticasdesdeBaudelaire concludente.

    2. "Desumanizar"no significaporm"tomarinumano".Se estativessesidoa intenode Ortega,entoteriarazode sera crticaquelhe fez Guillnemsuaautodescrio(411,p. 395).

    169

  • 'I,j

    :1

    Sob a palavra-chavedesumanizao,podem-sedescrevermuitassingularidadesda lrica contempornea.Seu sujeitouma entoaoannima,sematributos,na qual os elementosfortese abertosdo sentircederamlugar a um vibrar ocultoe que, quandoameaaabrandar-sedemais,se enrijecee sedistanciagraasao empregode acrscimoscomoque limita-dores.Pode-seperceberbema diferenaentreestaatitudee umtemamaishumanona evoluode RamnJimnez.Antesdaprimeiraguerramundial,Jimnezescreveuma poesia,muitopessoal,melanclica,que entretecesonho, lgrimase jardinsesmerados.A partirdos anosvinte,se tornamaisduro.Numapoesiachamaa almade "colunade prata".A metfora bela.Mas - comoa poesiatoda-, aludea umaalmada qual fu-giu aquelamelancoliatranqilae a almase converteunumatensoentreo alto e o baixo,tensoestaqueno sepodede-finir mais profundamente.A lrica de Ungaretti,sobretudoapartir de Sentlmentodei Tempo(1935),fala de uma situaoque no conhecenema alegrianem a dor, mas oscilanumacontemplaoneutra.Assim,numapoesiasobrea aurora(videp. 265),evitaqualquerexpressodejbiloquetradicionalmentese costumavaassociara estetema.Os movimentosda poesiasoapenasos da linguageme da sucessoirreal das imagens,semquaisquermatizes~'anmicos".A suspeitadequena poesiase poderiaesperarqualquersentimentofamiliar, tornou sus-peito prprio nomede poesia.Assim, surgemttulos comoApoemes(literalmente:No-poesias),de H. Pichette(1947), co-mo La Hainede Ia Posiede G. Bataille(1947)e Proi,'nres,deFr. Ponge(1948).At mesmoo aristocrataValryobservaqueo trabalhoartstico,de modoanlogoao cientfico,tem "algode inumano".A suafrmulada poesiacomo"festado intelec-to" acrescentaquea poesiacontma imagemdaquilo"que decostumeno se ", pois na poesiase calamas "trivialidades"humanas.Lembremo-nosde quantoestastrivialidadesse expri-miramna lrica de Verlaine.

    Um exemplode lrica desumanizada,semeu, "E! grito"de GarcaLorca (emCanteJondo, 1921),(videp. 237)poesiaqueconstaapenasde poucosversos."A elipsede um gritovaide montea monte... " Em primeiroplano,no esto espao,nemmesmoo grito,masa elipse,umafigurageomtrica.Esta o sujeitoinicial do acontecimento.Destesujeito,vo-secon-cretizandoem segundolugaro espao,as montanhas,asolivei-ras, a noite. A elipseconverte-semeio real, meio metafori-camente,em um arco-risnegro, em seguida,num arco deviolino,"sobo qualvibramaslongascordasdo vento".No sesabe'dequemvemo grito.Ele existee basta.Umamanifestao

    170

    ~-

    humanaseparadado homem- porm,procedemesmode umhomem? verdadeque,no final, sefala dehomensquedevemter ouvidoo grito: "A gentedasgrutasassomamseuscandeei-ros". Mas a frasej noconseguehumanizaro texto.Ademais,estaspalavrasestoentreparntesis.A poesia,comoj de umadistnciamaiore, comperplexidade,olha paratrs,olhaaque-las pessoasperplexas."El grito" o anonimatoquese tornoulinguagem,seuacontecimento a linha sonoraquehoje, ama-nh,ontemalcanaos montes,as oliveiras,o vento,masnotem sua origemno homem.Garca Lorca um mestrenograndedomnioda poesiamoderna,no domniodo annimo.

    Uma poesiaanedticade Krolow, "Der AugenblickdesFensters"(videp. 283), tempor sujeitointrodutrioum "al-gum".Estenoestindicadocommaiorexatido,nemsequerdepoisde sua ao("despejaluz pela janela")ou depoisdasconseqnciasdelicadase suavesdesteato, quandovolta aser nomeado.No se sabenemmesmoseo "algum"do pri-meiroe do penltimoversossoidnticos.A ambos comum- casosejamdois- o anonimato.Emboraapareampalavrasfamiliaresno corpoda poesia,o anonimatono se desfaz.mais forteque todoo resto,atmesmomaisforteque a per-guntapela dualidadeou unidadedo "algum".Mas o anoni-matoinquietae elevaos acontecimentospequenos,familiares,que aparecemno corpo da poesia,ao fantasmagrico,numadesumanizaoonricae vaporosa.

    Por certo,temasmais correntese maishumanosaparecemtambm,comoo do luto por amor.Uma poesiade R. Albertimostracomoestetemafoi modernizado,"Miss X, enterradaenel vientodeI oeste"(1926).Quemchorano o poeta,mas"cabeleireiroschoramsem teu cabelo".Um bar estde luto,poisMiss X j noexiste,"o cuj notransmiteo teuradio-grama".Rpidasevocaesde navios,hidroavies,de bancosfechados,cassinos,consulados.Prximodo final, a linguagemse sufoca: "Sol mortopelo raio. Lua carbonizada".Dor pes-soal,nempor sombra,h dor apenasnosobjetos.Estessoummisto de grotesco,banal, civilizadoe csmico.Neles, a dorse endureceem fato no sentimental.No ManifestoFuturistade Marinetti(1909),constavaa fraseprovocadora:"O sofri-mentode um homemno parans maisinteressantequeosofrimentode uma lmpadaatingidapelo curto-circuito".

    H lricos queprotestamcontrao luto. Mas nemmesmoassimreconquistarama alegriahumanadapoesiaanterior."Noabrasteuleitoaoluto", l-seemSaint-JohnPerse.Todaviaseustextosmovem-seem zonas interioresmarginaisque se pode

    171

  • sentira custo,sobretudoporquetambmsesubtraramao tem-po e ao espaodo mundoexterior,pelosquaisseriapossvelumaorientao.Seuapelo alegriadeviver desmedidoe vio-lento.Suapoesiaconduzo leitor a estranhaspaisagensda al-ma, s quaisno podereagircom "alegria",pois se tratadeartificialismosgrandiosos.Voltemosaindaa Alberti. Em suacoleode poesias,A ia Pintura (1948),figura um hino aobrancocomocor simblicada serenidade.Imagensconfusasre-lacionam-seforosamentecom estebranco.Porm,o brancotoenaltecidotemcartersinttico,vema serinsistentechamarda linguagem,produtode umafantasiabria de luz, masde-formada.Elogiou-sena poesiade Guilln a ausnciade trag-dia e de amargura."Padecer,sumo escndalo",ela mesmadiz (411,p. 72).Mas nempor isto estmenosdesumanizada.Transformaobjetose homensem categoriasabstratas.Olhade formaimpessoalas figuraspurasdo espaoe da luz. Suafelicidadeintelectualnoconsegueaplacarumadissonnciaas-sentadabemfundo.No temsentidoperguntar lrica modernaondemanifestador e onde,alegria.Estescontedosque, semdvida,existemmuitasvezesoscilam,elevando-seou retroce-dendo,numazonaondea almafica maislonge,maisfria, mastambmmaisousadaqueo homemsensvel.

    s muitasvariantesda desumanizaopertencetambmumalrica que s temobjetoscomocontedo.Aqui signifi-cativano apenasa escolhadas coisasmais fteis possveis,mas tambma rennciaa qualquerqualificao.Tal lrica comoa continuaodo queFlauberthaviafeitooutroracomoromance.E tem-seaquidemencionaro francsFr. Ponge.Delesedissequepermitereconhecero queaindapossasera poesia,quandose deixoude acreditarnela (Picon). Os assuntosdesuapoesialivre deformaschamam-sepo,porta,concha,seixos,vela, cigarros.Podemser acolhidoscom tal objetividadequese pde falar de "fenomenologialrica" (Sartre).O eu queos acolhe fictcio, mero suporteda linguagem.Esta, semdvida,estmuitolongede serrealstica.A rigor,nodeformaos objetos,masos faz enriquecertantoou infundeaosobjetos,rgidospor natureza,umavidatosingular,quecria umairrea-lidadesobrenatural.Mas o homemestexcluso.

    Porm,precisamenteestapoesiapseudo-objetivachamaaatenopara o fato de que o homem,na totalidadeda lricamoderna,subsistede um mododistinto,ou seja,comolingua-gemcriativae fantasia.A desumanizaodos contedose dasreaesanmicasseverificapartindodo poderabsolutoe ilimi-tado queo espritopoticoconcedea si mesmo.Tambmna

    172

    'I

    li

    poesia,o homemtornou-seditadorde si mesmo.Aniquila suanaturalidadeprpria, se exila do mundo,exila tambmeste,para satisfazersua liberdadeprpria.Este o paradoxosin-gularda desumanizao.

    Isolamento e angstia

    Musil, numtextopstumo,defineo poeta"comoo homemque temmaisconscinciado quequalqueroutroda irremedi-vel solidodo eu no mundoe entreos homens".Estepensa-mentoj existeno Romantismo,sobreviveu,porm,a estemo-vimentoe permaneceucomopensamentomoderno,assimcomoo dos "poetascondenados".Assumiusua formacontrafeitanocontoemprosa,Le PoeteAssassin(1916),de Apollinaire;aaoalegrico-absurdadesembocano assassnioque todos ospasescometemcontratodosos poetas;um escultorerigeaoheri assassinado"uma esttuade nada".Das poesiastardiasde Trakl se pdedizer,comrazo,queaquicadaum s sere-laciona consigomesmo.Saint-JohnPersed o ttulo de Bxil(1942),a umaextensapoesia,nelachamandosuaprprialin-guagemde "a linguagempura do exlio" queconvidaaides-conhecido.Tem-sefaladobastantequevivemosnuma"pocadaangstia".O inglsW. H. Auden intitulouuma poesiacomestaspalavras(1946).Nas proclamaesde angstiaque sefazememtodaa parte,a modatemum papelconsidervel.Aangstiaconstituielementoobrigatrioda poesiados jovens"modernos",comoo foramoutroraa lua e a nostalgia.Mas ostextosmelhorese maisviris demonstrama autenticidadedestaexperinciafundamental.

    Goetheescreveuuma pesia "Meeresstille"que fala doencantoparalisantedo "horrvel",da amplidoenormee im-vel. Mas emoutrapoesia,"GlcklicheFahrt": o horrveldesa-parece,o "vnculoangustioso"se dissolve,o marinheiroreco-bra coragem,a terrasalvadoraj aparece distncia.Esteg-nerodepoesiasuportavao pavorosoe a angstiascomopas-sagem claridadee esperana.Serdifcil encontrarna lricamodernaum textoque,comeandocom a angstia,se liberedela.Umabrevepoesiade RamnJimnez,"Mares",conservacertaafinidadedemotivoscoma deGoethe:viagemnumabar-ca,a barcaembate-seemalgo- masnadasesegue,s existem

    173

  • silncioe ondase algo "novo", parao qual no h palavraalguma disposio.O caminhoseguido o inverso do deGoethe,da esperana paralisao.Garca Lorca, depoisdapoesiasobreo grito que citamosacima,escreveuoutra, "EIsilencio"(vide p. 237).Porm,estanodissolvea atmosferasinistradaquelegrito inumano,mascria umanova atmosfera,destavez a do silncio,onde"valese ecosescorregame queinclinaasfrontesparao cho".Muitasvezesconverteo silncioem presenasilenciosada angstia.Assim, por exemplo,na"Elega deI silencio",onde chamada"duendeda harmonia,fumo de lamentao",porquantotraz consigo"sofrimentosan-tiqussimose o eco dos gritosextintospara sempre".DepoisGarca Lorca compe,de novo,versossobreuma espciedeexcessode angstia.Entre suas poesiastardias, encontra-se"Panoramaciego de Nueva York", em ritmos livres e comcontedosquebempoucotma ver como ttulo. Onde esta grandedor,a dor absoluta?No nascidadesgigantescas,comseu sanguee sua misria,no sobrea "terra com as portassempreiguaisque conduzemao rubor dos frutos"; tampoucona voz h dor, apenasdentes,"mas dentesque precisamsecalarsolitriosno pavornegro".Esta angstiaque se afligepor no receberseualimentode dor, do qual tem fome.Demododiverso,a angstianosfala numapoesiade luard,"Lemal" (publicadoem La Vie Immdiate,1932).O poetanoanomeia.Pormum efeitohipnticoemanado texto,do "il yeut",repetidovriasvezes(tcnicaconhecidadesdeRimbaud),da frasenica,anlogaa umalitaniaqueregeo texto,daspr-prias afirmaes."Havia a porta comouma serra... , a soli-do semobjetivo,haviaos vidros modos,a carnedramticado ventonelesse rasgava... , havia os limites dos pnta-nos... , numquartoabandonado,numquartofracassado,numquartovazio."Os objetosincoerentes,mencionadosde maneirarpida,nodevemservistospor si mesmos.Sosinaisda ne-gao,da recusa,da destruio,do fracionamentoe, portanto- emboraa linguagema omita-, daangstiaqueos percebe,ou melhor,os cria.

    Pode-sedizer,na linguagemcorrente,queum quartomise-rveltempoesia.JakobBurckhardtchamoude "poesia"q "es-petculomaravilhoso"da histria.Em ambosos casos,lPoesiasignificaahabitabilidadeespiritualdaquiloqueaparecedeformasensvel,sejaestemiservelou tambmmaravilhoso,pressupon-do contatoentrehomeme mundo.Na poesiamoderna,poesiatem.outraface.De propsito,transformao familiarem estra-nho,removeo prximo distncia.Parece,submissaa umacoa-

    174

    t,

    ~

    oque rompeo contatoentrehomeme mundo,mastambmo contatodoshomensentresf.Nos ltimosromancesde Flau-bert,estarupturade contatohaviaseconvertidoem lei do es-tilo, tantointeriorcomoexterior;os objetosse comportamdeformacontrriaao homem:seestesofre,aquelesresplandeceme florescem- sealgumvai vera amada,passamao longo.deseucaminhocasasdesconsoladasdaperiferia;jmasituaofun-damentaldestesromances que as pessoas'se desencontremumasdasoutras,no espaoe na alma,e que nenhumadelasalcancesuameta;as frasessubordinadas,pobresdeconjunes,refletemestilisticamentea decomposioda aonumagregado,cujosprocessosisoladosquasen.oesto.lllais emrelaocau"slentresi. O romanceacentuouaindamaisestarupturadecontato;pense-seem Camus,Hemingway,Butor e em outros.Pelosanosvinte,BertoltBrechttransformoua palavraVer/rem-dung (distanciamento)empalavra-chavede suateoriapoticaeaconselhavacri-Iamediantea supressode toda motivaoorientadoradeum processo.Poucoantesde suamorte,Apolli-naire falou dos "estranhosdomnios",para onde caminhaapoesia.NumapoesiadeMax Jacob,"Jardin mystrieux"(1928),noh nadaalmdeesperae escuta,maso quesepercebe_sonsinterrompidosdeummundoexternoconfuso- noaplacaa espera;estacontinua,por assimdizer, alm da poesia,naeternaesperade algoquejamaisvir.

    Musil, depoisda frasesobreo poetacitadaacima,continuacomo seguintepensamento(tambminvoluntariamentemoder-no): "O poetasenteaindana amizadee no amoro hlito deantipatiaquemantmtodoserafastadodos outros".Constituium temafreqenteda lrica contemporneao de quea proxi-midadehumana de fatoumadistncia.A poesia"Canto" deUngaretti,desembocana tristezanosentimentalquea amadaesteja"distantecomonumespelho"e o amordescubrao "t-mulo infinito" da solidointerior(videp. 267). GarcaLorcaescreve:"Comoestoudistante,quandoestoucontigo,e quoprximo,quandoestslonge!"NumapoesiadeamordeKrolow(1955),encontram-seos versos:"Me escutarsatrsdo rostoamargode ervasda lua quesedissolve?... E a noitesedes-pedaacomosoda,negrae azul". Na durezadas imagens,nodissolver-see despedaer-seatuadeummodosimblicoo fracas-so da proximidadeintimamenteprocurada,mastambma sal-vaomediantea linguagemcriativa- a nicasalvao.

    A prpriaausncianaturaldos mortosse transformaemdistnciaabsoluta.So famosasaspoesiasde GarcaLorcaso-

    175

  • bre o toureiro morto SnchezMejas (1935). A ltima delas sechama "Alma Ausente" (vide p. 243). Quase no se fala domorto, mas sim de que ningum mais o conhece,nem o touro,nem os cavalos, nem as formigas de sua casa, nem "a criananem a tarde", nem a pedra, sob a qual jaz. Est to distantequenem sequera lembranao alcanamais. "Mas eu te canto" -porm nem isto sucedido; o prprio cantor, isolado anteo morto inacessvel,s pode cantar a brisa triste que sopra en-tre as oliveiras.

    Em 1929, R. Alberti publicou sua coletnea de poesiasSobreIas Angeles.Como outrora, em Rimbaud, tampoucoaquios anjos tm uma significao crist. So restos simblicos dealgo sobrenatural,seresinventados por um solitrio e "mudoscomo os rios e os mares". Entre eles e o homem se desenvolveum drama que pode terminar na ausnciacompletade contato.O homem sabe que existe o anjo, porm no o v, a luz noo v, "nem o vento, nem os cristais". Tampouco o anjo v ohomem,no conheceas cidadespor onde passa,no tem olhos,no tem sombra, em seus cabelos tece o silncio, "um poosolitrio, mido, uma fonte seca"; no meio de ns est morto,perdeu a cidade e esta o perdeu. O simbolismo fundamentaldestaspoesias (chamadasde forma suprflua de surrealistas)inequvoco,por mais difceis de interpretar que sejam seusver-sos isolados. Em outro tempo, os anjos eram mensageirosdeluz e de graa para o homem, inclusive enviados ao homem,quando como vingadoresde Deus geravamterror. Aqui, ao con-trrio, no mais conhecemo homem, tornaram-seto enfastia-dos dele que o homem s pode v-Ias como imagensdo feio edo morto.

    H uma parbola de Kafka, "Das nachsteDorf", na qualdiz um ancio: " difcil para mim entendercomo um jovempossa se decidir a cavalgar at o povoado mais prximo semtemer que o tempo da vida normal, que se escorre de formafeliz, nem de longe seja suficientepara tal viagem". Esta par-bola expressauma situaobsica da poesia moderna, ou seja,o no.chegarnem mesmo meta prxima. Como exemplo lri-co, citemosa "Cancin de Jinete" (vide p. 241). O cavaleirobemsabe os caminhos que o conduzem sua meta, a cidade deCrdoba. Mas tambmsabe que jamais chegara ela; a mortefita-o das torres de Crdoba: no chegarem casa, mas sim morte, na ampla plancie varrida pelo vento. Uma vez mais,uma olhada na poesiamais antiga pode evidenciar a atitude dapo~siamoderna.Antes de tudo, o "Heureux qui commeUlysse",de Du Bellay, do sculo XVI. O que fala, que se encontraem

    176

    Roma, sentesaudadesde seu povoadolongnquo junto ao Loire.Imagensntimas vo aparecendo mentedo homemnostlgico:a sebe ao redor de sua casinha,o fumo da chamin, a ardsiado teto. A distnciaestntida em sua alma, difunde uma quie-tude familiar, emborao nostlgicono estejaali. Tambm a ra-zo de que ele no esteja ali pertences experinciasntimashumanas: vive no exterior por necessidadeprofissional. Passe-mos, ento, a uma poesia de Goethe que comeacom as pala-vras "Lasst mich weinen" ("Deixai-me chorar") e pertence obra pstumaWest-OstlichenDivan. Tambm aqui o que falase encontramuito longe de sua meta.Passa a noite num desertoimenso, pensa nas milhas que o separamde Zuleika e chora.As duas poesias tm em comum o fato de um homem pensarnuma metadistanteque o atrai. Porm, estealgo espacialmenteremoto no est longe dele; em vedade,o possui como objetode uma nostalgia, permanece-lhefamiliar, ser de novo acess-vel. Du Bellay sentesaudades,Goethe chora pelas "tortuosida-des fastidiosasque alongam o caminho" e, em ambos os casos,do sofrimentoderiva o consolo.Nos dois poetas,o consolovemtambmda lembranade figuras antigas;um pensa em Ulissese Jaso - por certo, invejoso de seu retorno de outrora, mas,no final, tambm a lembrana invejosa permanecedentro daesfera da fraternidadehumana; o outro pensa em Aquiles, Xer-xes, Alexandre e no se envergonhade suas lgrimas, porquetambmestesgrandeshomenschoraram.

    Voltemos agora a Garca Lorca. J no incio da poesia,Crdoba chamada "longnqua"; no se deve entender estaafirmao apenasno sentido espacial. O cavaleiro j v a ci-dade diante de si. Embora ela esteja espacialmentemais pr-xima que distante, est afastadapara uma distncia absoluta.Um mistrio, representadopela morte, tornou-a inalcanveletransformou o curto caminho que conduz a ela num caminhoinfinito e mortal. No h saudadesnem lgrimas, no h, por-tanto, sensaesclaras e distintas que respondamao mistrio.A alma insiste numa entoao sem contornos. Algumas invo-caes,em brusca sucesso,ao cavalo, ao caminho, morte -eis tudo. Alm disso, as frases elpticas com sua ausnciadeverbos criam o quadro lingstico para a aceitaoimvel doestranho. As diferenas so evidentes: l, nos poetas antigos,tambma meta espacialmentelongnqua, permaneceespiritual-mente prxima; aqui, nos modernos, a proximidade espacialtransforma-seem distncia interior. A "Cano do cavaleiro",de Garca Lorca, a poesia dO::,retornoque no mais poss-vel, pois,um fascnio desconhecidotornou inalcanvel a casaprxima.

    1T!

  • Obscuridade, "Hermetismo", Ungaretti

    ,A lrica modernaimpe linguagema tarefaparadoxaldeexprssare, ao mesmotempo,encobrirum significado.A obs-curidadeconverteu-seem princpio estticodominante,afas-tando demaisa poesiada funo normal de comunicaodalinguagem,paramant-Iaflutuandonumaesferadaqualpodemais afastar-seque se aproximarde ns. Lricos como,porexemplo,Ungarettiou Aleixandre,costumam,emmanifestaessobresi prprios, verdade,falar do aspectoelementar,huma-no ou naturalde suapoesia,enquantoestaprpriaparecetersurgidode um nicoprocessode obscurecimento,ou, pelome-nos,produzindoesteefeito.A lrica obscurafala de aconteci-mentos,deseresouobjetos,dosquaiso leitordesconhececausa,lugarou tempoe nemvir a ser informadodos mesmos.Asafirmaesno socompletadasmas,ao contrrio,interrompi-das.Muitasvezes,o contedoconsistes de movimentosva-riveisda linguagemque deslizam,brusca- apressada- ousuavemente,paraos quaisos acontecimentos,concretosou afe-tivos,soapenasmateriais,semsentidodecifrvel. bastanteelucidativoquealgunsdos lricoscontemporneosvalham-sedomaisenigmticodosantigostrovadoresprovenais,Arnaut Da-niel; Poundo traduziue Aragon o admira.Vez por outraapoesiamodernapareceser apenasuma anotaode intuiese experimentoscegos,anotaoestareservadaa algumfuturoemquepoderiamacender-seintuiesmaisclarase experimen-tosmaisafortunados.H, por toda a parte,um colocar dis-posioalgumacoisa,daqual,de momento,nosepodedisporainda.A partir de Rimbaude Mallarm,o possveldestinat-rio da criaopotica o futuro incerto.Na verdade,sempreexistirampoetasqueseatriburamobjetivosprofticos,falandodestescom obscuridadesublime.Mas a profeciamodernano sublime.Nela,o futuronosetransformaemimagemntida.Suapoesiaobscura'gira inquetaao redorde possibilidadesnofixveis.

    Sonumerosasas manifestaesdos lricos,determinandoprogramaticamenteo poetarobscuro,s vezes,tambmjustifi-cando-o.Algumasdelasj forammencionadasno primeiroca-ptulo.Com o af de obscuridadese apresentao problemadacompreenso.A respostaa esteproblemaseencaminhana mes-ma direoda formuladapor Mallarm,emborasemsuapon-derao.Yeatsdesejaquea poesiaassumatantassignificaesqual?-tosleitoresencontre.ParaT. S. Eliot, a poesia umobjetoindependente,situadoentreautore leitor,onde,porm,areIa-

    178

    IJ,;'

    ,"

    oentreautore poesia diversada relaoentreleitore poe-sia;graasaoleitor,a poesiaentranumnovojogodesignificadosquetemseudireitoprprio,mesmoquandosedesviadainteno- alisno fixada- do autor.O espanholP. Salinasescre-veu: "A poesiacontacomaquelaforma superiorde interpre-taoque resideno malentendido.Quandoumapoesiaestes-crita,estconcluda, certo,masrio encerrada;buscaoutrapoesiaemsi mesma,no autor,no leitor, no silncio".O con-ceitoda compreensocedeuao conceitode continuarapoetar- continuara poetarpor obrae graado leitor,mastambmdas foraspoticasannimasdas quaiso prprioautornadasabiae que dormeminditasem sua prprialinguagem,mastambmno silncio.Este pensamento densoe obscuro,toobscurocomoa poesiaque acompanha.Salinasdivergiumaistardedestepensamento;todaviaa opinio revalidadano re-vogaa precedenteemsuaatuao."A obscuridadequese cen-surano poetanascejustamenteda noiteque ela explora:daobscuridadeda almae do mistrioem queestimersoo serhumano."(Saint-JohnPerse)Em outrosautores,pode-seler: aprecisopotica justamentea que exigenovo empregodaspalavras,novosvocbulos,metforasanormaise, por conseguin-te,setornanecessariamenteobscura.No CnticodeGuilln,huma poesia,"Cierro los ojos"; umajustificaopoticadaobscuridadepotica,com reminiscnciasde Mallarm,do qualantepe,comoepgrafe,umversodapoesia"SurgideIa croupe".O contedo,meioreferido,meiotraduzido,diz: "Fechoosolhos,e o negroacendecentelhas- elas so a sortefeliz; a noiterompeseusigiloe vai buscarno abismoluzessuperiores mor-te; fechoos olhose um mundograndeaflota,medeslumbraeestvaziode tumulto;baseiominhacertezano escuro;quantomaissombrioo raio,tantomaisele meu;na escurido,surgeumarosa".O sentidoda composio claro:a obscuridadede-riva do fato de resguardar-sedo mundoexterior;o mundoin-terior se abre;livre do tumultoe do cartermortalda vida,transformaa escurido- a ausnciado real - em luz, e seconverteno nascimentoda rosaque s desabrochana luz daescurido("rosa",comoem Mallarm, o smboloda palavrapotica,aindaqueaqui no apareao temado fracasso).Ape-nasna irrealidadequeobrigaa poesiaa serobscura,temxitoa perfeioda criaopotica.Nestepensamento,se encerrauma decisofundamentalda lrica moderna.

    H cercade trinta anossurgiuna Itlia uma designaoda poesiaobscura:hermetismo.Empregadoa princpioem sen-tido depreciativoe comressonnciasdo reinoconfusodo ocul-to, foi usadologoemsentidopositivo.A histriade seusigni-

    179

  • ficado, portanto,ascendente,comosi acontecercoma maiorpartedasdefiniesdegruposliterrios.Essencialmente,os ita-lianosincluementreseuspoetashermticosUngaretti,Quasimo-do e Montale(conhecidotambmcomotradutordeT. S. Eliot). umaconvenodacrtica.Poder-se-iaacrescentara estegrupomuitosoutroslricos.No caso, interessantequeo hermetismotenhase convertidonum conceitoconstanteda crtica,a qualaceitou,assim,um traoessencialda poesiamoderna.A poesiadesignadacom o nomede hermetismo a forma italianadaposiepure e a reaomaisviolenta literaturadeclamatria(D'Annunzio)quea Itlia conheceuno sculoXX.

    Ungaretti,queescolhemosparaestudarembrevespalavras,recebeuinspiraesdeMallarm,Apollinaire,Valry,Saint-JohnPerse,mastambmdeGngora.Desdeos anosvinte,sualrica umalrica de extremaconcentraoda linguagem.A palavradeveser,comoelemesmodiz, umabreverupturado silncio- comoemMallarm. umfragmento,vibrandoentreo mun-do levementeroado,mas muito misteriosoe o silncioquevoltaa sefechara seuredor.Estecarterfragmentrio pr-prio de todasas poesiasde Ungaretti.Atua mais agudamentenaspoesiascurtas,nasquais mestre,comoGarcaLorca.Nodevemser lidasvisandoaoscontedos;estesso,s vezes,deumatenuidadedesconcertante- ou ento,detodoinsondveis.Tem-sedeacolhersuaspalavras(o quenenhumatraduopodetransmitir)comofrmulaslricas sonorasquedeixamatrsdesi um ecofascinante.Tambmas poesiasmaislongasno tra-zemcontedode seqnciaobjetivamentecoerentes.Os movi-mentos(como,por exemplo:abrir, iluminar-se,afundar-se,es-vair-seestremecendo)somais fceisde captarqueos objetosemmovimentoe, todavia,soplurivalentesemsi, podendotam-bmdesenvolver-seemsucessodiversa.

    Vejamoscomo a obscuridadede Ungarettina poesiadeversolivre"L'isola" (publicadaemSentimentodeZTempo)(videp. 265).Ela expressa,emperodososcilantes,emformadesons,mas construdoscom extremasimplicidade,um acontecimentosemeu.O sujeito "ele".Mas,quem?No seobtmresposta:funoindeterminadadosdeterminantes,nestecaso,do prono-me pessoalque,alis,conformeo uso da lnguaitaliana,nemsequerestexpresso,masapenascontidonas formasverbais;portanto,atuade formaaindamaisindeterminadado quepodeacontecernumatraduo.A indeterminaoaindaaumentame-dianteo alinhamentodesconexodasexpresses.Representaesdo mundobuclicoconstituemo materialdo acontecimento:ilha,.florestas,ninfa,pastore ovelhas."Num~orla des-ceu/ E se adentr0tl/ E s,1,bioouviu rumorde plumas/ Que

    180

    ..

    ,-

    ..

    se soltarado estrdulo/ Pulsardasguastrridas,/ E um es-pectro... viu, uma ninfa... / Em si de simulacroa chamaverdadeira/ Errandochegoua umprado,onde/ A sombranosvalesseadensavadasvirgens... " (Quevirgens?).Aqui o acon-tecimentoseinterrompe.Permaneceum fragmento,semmotivoe semmeta.O final umaimobilidade.A conexodaspalavrastorna-secadavezmaisanormal:"Destilavamos ramos/ Umapreguiosachuvade dardos,/ ... ovelhas... / ... desfolha-vam/ A alfombraluminosa;/ Eramasmosdopastorvidros/Polidosdeumadbilfebre".Ondeesto quechegou?A imagemplcidado final esqueceuo acontecimentoinicial,comoseestee seusujeitonuncativessemexistido.Tambmo sujeitoerasemdvidamenossignificativoqueo acontecimentoem si. O con-tedoda poesiaresidenaslinhasde seumovimento:umache-gada,um encontro,umaquietude.Os movimentossoabstra-tos, referem-sea si prprios,e estosaturadosdo mistriodoacontecimentonointerpretve1emqueaparecem.O final tam-poucoresolveo mistrio,ao contrrio,acrescentaum mistrionovo. verdadeque suaquietudepe termoao movimento.Todaviaa dissonnciadesuasimagens(moscomovidro)indicaum planosuperiorqueleda linguagemautnoma,conduzindooutravez escurido.3

    A poesiahermticade muitoslricos provocaa impressode que suaobra terminano "baterde umaporta",comoG.Piconobservouumavez.Masonde apenasumcomportamentoque seguea moda,floresceumacharlatanariaque podedizero quequiser- ser,de qualquerforma,admirada."Vanguar-distas"que se do muita importncia,brilham em frasesdamais pura estupidez.De vez em quando,tambmescaparamalgumasa Rimbaud.A conseqnciade um hermetismotrans-formadoemmoda a desorientaoda crtica. Na Austrlia,

    3. L. Spitzer, ao contrrio, gostaria de ver na poesia "L'isola"uma poesiade amor inteiramentelmpida, no sentido da lrica pastoral(Recenso primeira edio de meu livro no Modern LanguageNotes,novo1957,assimcomo as palavrasexpressasno apndice,a 510,p. 120).Equipara o indeterminado"ele" em sua funo ao "eu" ou "tu" queaparecemem toda a lrica e, alm disso, o identifica com "pastore"do penltimoverso que seria, assim,o sujeito da poesia.Mesmo se estaltima interpretaocorrespondesse verdade,ter-se-iade admitir comoinslito, at mesmodesorientador,contar um acontecimentocujo sujeitopermaneceoculto at o final. E o que diz respeitoquele"ele", h umadiferena considervelentre sua indeterminaoe o "eu" e "tu", comefeito correntesna lrica, os quais, tambmsem mais pormenores,trans-formam uma poesia num monlogo ou dilogo. Para poder definir apoesia de Ungaretticomo um texto lmpido, de fcil compreenso,ter-se-ia de colocarpontos de refernciaaos quais este,por si s, no remete.Alis, seu hermetismosuave no diminui a beleza da poesia.

    181

  • h algunsanos,algumaspessoasdivertiram-sepublicandover-soso maispossvelsemsentido,impingindo-ascomoobraps-tumadeum supostomineiro;a crticacomoveu-seantea "pro-fundidade"daquelesversos.UmaedioamericanadeYeatscon-tinhaum trechoquediziasoIdierAristotIe.Tratava-sede umaerratapor soliderAristotIe(o valorosoAristteles).Um jovempoeta,no percebendoquese tratavade umaerrata,admirouo mistriodo soIdierAristotle (soldadoAristteles).Chegaaatingiro limite do suportvela observaoafetadade Rilkea seudcimosextosonetoa Orfeu: "O soneto,tem-sede saberou adivinhar, dirigidoa um cachorro;eu nogostariade terde comentarestejato". Mallarm,em tais casos,se defendiacoma auto-ironia.

    Magia da linguageme sugesto

    A lrica moderna,desdeRimbaude MalIarm,converteu-se,cadavez mais,em magiada linguagem.J mostramosnos ca-ptulosanteriores,o que se deveentendercomesteconceito.Nas teoriaspoticasdo sculoXX, sempreaparecetambmoconceitode sugesto,assimque se fala na questodo efeitolrico. Bergson,emLes DonnesImmdiatesde Ia Conscience(1889),fez deleum elementobsicode suadoutrinada arte.Estemesmoconceitoseencontraempintorese msicos.A su-gestocomeano momentoem quea poesia,guiadapela inte-ligncia,desencadeiaforasanmicasmgicase emiteradiaessquaiso leitornopodeescapar,mesmoqueno"compreen-da" nada.Tais radiaessugestivasderivamsobretudodasfor-as sensveisda linguagem,de ritmo, som,tonalidade.Estasatuamde acordocomo quesepoderiachamarde tonssemn-ticossuperiores,querdizer,significaesque s se encontramnaszonaslimitesdeumapalavraou seproduzempor umaas-sociaoanormaldepalavras.A poesiafundamentadana magiada linguageme na sugestoconfere palavrao poder de sero primeiroautordo atopotico.Paraestapoesia,(realno omundo,mas apenasa palavra:'\Portanto,os lricos modernosinsistemsempreemquea poesi'nosignifica,mas.As muitasdiscussessobrea posiepure giram em torno destepensa-mento.

    O princpio,provenientede Poe,de esboara poesiapar-tindodo podersonoroda linguagem,anteriorao sentido,para

    182

    ',I

    .~

    s entoatribuir-lheum significado- significadoestequeper-manecersempresecundrio-, manteve-sevlido.Bennescre-ve: "A poesiaj estprontaantesde comear;s queo autorno sabeaindaseutexto".Evocando,de formasurpreendente,umafrasede Novalis(d. p. 28), assimse exprimenumoutrotrecho:"S existemtranscendnciasverbais:os teoremasmate-mticose a palavracomoarte".A prprialrica deBenndeixareconheceresseprincpiocriadorda palavra,sobretudona pri-mazia do som,que pode tornarlricos mesmoos contedosmaisprosaicos.Suapoesia"Chopin" (614,11I, p. 188) umabiografiasonora.Os contedossofragmentosalusivosa acon-tecimentos,reflexes,monlogosinteriores,expressosemfrasesfragmentrias.O decursonocorresponde sucessocronolgi-ca vida-morte,massegueo caminhoinverso.Interpolam-seno-mesde pianosde cauda,ouve-sefalar de honorrios,ouve-seum endereoe indicaesprecisassobrea tcnicade Chopin,formula-setambmum diagnsticomdico("comhemorragiase formaodecicatrizes").Mas atmesmoa expressoobjetivamais fria estatravessadapor uma vibrao,tantojoga comos fragmentose com as interrupescomo vive deles,e fazcomquenosepossamaisesquecerestapoesia.Demonstraatondea rennciaa motivoslricos tradicionaispodechegarsemdestruira substncialrica. Esta se torna,ao contrrio,umasonoridadenova,meditativa,emborapareaestarmuitoprximada prosa.

    Mencionaremos,outravez,RamnJimnez.De seupero-do tardioh poesiasde efeitohipntico.Estesurgedevidoaofato que algunsversosisoladossorepetidosem formade es-tribilho,enquantooutrossoexpressosem formainterrogativa,semseremdestinadosa ter resposta.A repetioe a perguntano contestadaconferemumasutilezaextremaao que se diz,transformando-onum encantomusicalondulante,que o ver-dadeirosenhordestesversos.Escreverpoesiapartindodo im-pulsodaspalavrasou entodos simplessonsconduza inme-ros fenmenosdo tipo descritono final do captulosobreRim-baud.Em H. Michaux,encontra-se:"dansIa toux,dansl'atroce,dansIa transe";a linguagem,obedecendoa seuprprioimpulsocombinatrio,produzum sentidonointerpretvel,maspenetraagudamenteno ouvido;um grupode slabaspersistentes(dansIa) despertaumgrupode sonsvariados,masafins.No final doTheWasteLanddeEliot soaderepentea slabasemsentidoDa,que se repetevriasvezes,fazendosurgir de si mesmafrag-mentosde umafrasebudista,entreos quaisse inserealgo detododiversoe que,s no final, serenemnumgrupode pala-vrassnscritas- procedimentoafimcomo da msica,s pos-

    183

  • svel numa lrica que maneja a linguagemsobretudocomo po-tncia sonora.

    Paul Valry

    Valry quem talvez tenha refletido mais profundamentesobre as relaesda poesia com a autonomiada linguagem,de-senvolvendoe explicando as idias de Mallarm. Escrever poe-sia, conforme diz um pensamentoseu, expressoamide, signi-fica penetrar nos estratosprimordiais da linguagem,onde pro-duziu uma vez, e poder semprecontinuar a produzir, frmulasmgicas,encantadas.Escrever poesia, alm do mais, significatentar as combinaes entre zonas de significados mut-veis e de efeitos sonoros igualmentemutveis, at conseguiraquelanicacombinaoque possuaa necessidadede uma fr-mula matemtica.Valry sabe que o que vem a sofrer nesteato criador o "sentido". Pode-se dizer de cada poesia queno tem "sentido verdadeiro algum", ou seja, nenhum sentidoque possaexauri-Iasozinho. A poesiado prprio Valry se com-porta de modo a permitir vrias interpretaes.Uma poesiacomo "Les Pas" parecesignificar uma terna cena de amor; maseste sentido apareceapenasna traduo de Rilke. Valry usaexpressesque deixam vislumbrar algo diverso, ou seja, umacena espiritual da prpria arte potica,para a qual a esperadaMusa mais benfazeja que sua vinda. As duas interpretaesestopresentesno poema;nenhumadelaspode ser isolada, por-que, do contrrio, a poesiaviria a perder aquela penumbra naqual foi imersa artisticamente.

    O pensamentode Valry baseia-senum resoluto niilismoda gnosiologia,fato que, aqui, s pode ser mencionadoem pou-cas palavras.Porque nenhumconhecimento possvel, a lingua-gem potica conseguea liberdade completa de projetar suascriaesno Nada. Valry chama tais criaes de "mitos" e asdefine assim: "Mito o nome para tudo o que no existe e sest presentegraas palavra". (PetiteLettresur les Mythes,in 211, I, p. 961 e ss.) Mas a palavra " o meio do espritopara multiplicar-seno Nada". Frente realidade, que, alis, sexiste sob a forma do casual e arbitrrio, a poesia opera umatransformaocontnua at aquela irrealidade qual agora tam-bm.aplica o conceitode "sonho". No poetar, o esprito avistasuas prprias foras e as aperfeioa, dominando a resistncia,

    184

    I~

    ..

    fixada por si prpria, da forma rigorosa. S seus prprios atosso necessriose so, portanto, superiores realidade, sempres casual.Note-sequo prximasestoestasidias das de Mal-larm e quanto tambmo maior lrico francs do sculo XXjustifica a poesia a partir do subjetivismo puro (no pessoa!),cuja ptria no o mundo, mas a linguageme o "sonho". Talpoesia tem a clarividnciacpticade reconhecer,na mesquinhezdo real como no Nada da transcendncia,a condio de suanica perfeio possvel, ou seja, a artstica. "A poesia umfragmento perfeitamenteformado de um edifcio inexistente",diz uma das frases mais esclarecedorasde Valry (211, I, p.1490). "Inexistente" quer dizer que o contedotem existnciaapenas como linguagem; "fragmento" significa que a poesia,frente meta,permanecesmpreinsuficiente. Observe-secomotambmaqui foram necessriasduas definies negativasparaapoiar o nico que se pode expressarde forma positiva, o atopoticoem si. Outra frase de Valry diz: "Nada to belo comoo que no existe".A semelhanadestafrase com a de Rousseau,citada antes (a p. 24), salta vista. O fundamento de tododiverso,no sentimentalque serveagorade suportea estaidia,mostrao duro caminhoque percorreu,desdeento,o pensamen-to acerca da poesia.

    Valry definiu, certa vez, o verso como "equilbrio mara-vilhoso e sensibilssimoentre a fora sensvele a intelectualdalinguagem". Pode-se dizer que sua prpria lrica possui esteequilbrio. Vrias vezes, relata como algumas de suas poesiasnasceramde um jogo de ritmos ainda isentos de sentido e desons,ao qual s entose acrescentarampalavras,imagens,idias.Na poesia terminada, esta gradao gentica continua a sermantida como gradaode valor: canto e s em segundopla-no, contedo.Assim surgemversosde um encantotocante,comopor exemplo: "Dormeuse,amasdor d'ombreset d'abandons..."Ou: " ... puis s'tendre,se fondre, et perdre sa vendangeI Ets'teindreen un songeen qui le soir se change".

    H, nestesversos,um levantar-see abaixar-sede vogais enasaisentrealturas e profundezasque, por fim, retoma alturamdia do incio. Mas a iniciativa das palavras pode tambmpartir de suas significaes.A poesia "Intrieur" - cujo pro-cesso decorre ao mesmotempo num espao interior e exterior-. comeacom os versos: "Uma escrava de longos olhos, car-regados de macias correntes, Muda a gua de minhas flores,mergulha nos espelhosvizinhos". A metforadas correntes.temsua origem na escrava,e da gua provm o imergir-senos es-pelhos. Tais versos no so descritivos; querem ser sentidoscomo criao lingstica. Uma das primeiras poesias, "La fi-

    185

  • leuse",lembrao temadeMallarmdaausnciadecontatoentreo homeme o mundonum simbolismopuro de imagens.Umajovem,sentada janela, tardinha,mergulhouem sonoe so-nho; em vo, uma rosa do jardim sadaa dormente;assim,enquantoentrea joveme a flor noh maiscontatoalgum,alinguagemcria entreos dois seresseparadosuma fuso irrealcomostermosquesedesprendem,comoespritos,do verboquetraduzo leitmotiv"fiar": "A adormecidafia numatramasoli-tria,misteriosaa lnguidasombrase envolveao tecidodosseusdedosquetramamumatrama";mastambmo mundoves-pertinode fora se converteem "fiandeiro".

    Por certo,nosepodedefinir a lrica de Valrypartindos destesefeitoslingsticos.H nelaumalei de estilointeriorqueno residetantonos termosmas,muitomais,no fato deque estalrica faz perceptveis,no materialdas imagens,atosespirituaisquesosempreatosda conscinciaartstica.Valryfala,emcertaocasio,da "comdiaintelectual"queconstituioeventocentralde umapoesia.Um dosexemplosmaispalpveisdisto "Au Platane".Quaseno se precisadizerquea rvoreno tratadacomoparteda natureza.B, por sua aparncia,pura dinmica,tensaentrea atraopelo alto e o acorrenta-mentoaoprofundo.Percebeo chamadodos "ventos"queque-remnelaconverter-seemlinguagem,mas,ao mesmotempo,anecessidadedeprecisarrenunciar linguagem- tudoemcon-cordnciacomasexperinciasartsticasqueseconhecemdesdeMallarm.E, comoemMallarm,tambmaqui,a tensoperma-neceno resolvida.Uma dissonnciaemanada tensoabstratade forasda poesia.Mas tambmse manifestano fato de queseucontedono solvidoseopea seucantoresolvido.

    Surpreendeobservarquena lrica deValrynemos temasnemas soluesdadasa elesso uniformes.Precisamenteestefatodenotaqueo que lhe importa a dramticaespiritu,lemsi, a comdieintellectuelle.Os prpriosprocessosintelectuaispodemmudar amide.Umasvezes,trata-sede despertardasobscuridadescaticasdo sonho claridadeda conscincia;ou-tras,ao contrrio,do mergulharno sonho.Por muitoprximoque Valry estejade Mallarm,a fidelidaderigorosa,emboraoculta,de Mallarma seustemascedeuaqui a umavariabili-dadetemtica."CantiquedesColonnes" um cantos linhaspurasde corposarquitetnicos,cantosilenciosopara os olhosquepercebemo Ser ordenadopor meio de nmeros,que des-cansaemseurepousodepedra;o espritoharmonizacomesteSer.Mas passemosagoraa "Le CimetiereMarin". Estafamosapoesiatem um soprolucreciano,no s nos temascomonasimagenstomadasde Lucrcio.Trata-seda poesiade umacrise

    186

    J..

    espiritual.A conscinciatentaidentificar-secomo Ser em re-pouso,como "teto" do mar, como diademada luz alta,ouento,como no-ser-maisdosmortos.Porma vida movimen-tadaa atraimaispoderosamentee ela se abandona,por fim, aesta,mesmosabendode seucarterilusrio.As metforaspre-cedentesparao mar,primeiroestticas,depoisdinmicas,retro-cedem:o martornaa recebersuasdenominaesnaturais(onda,gua),sinal de quea conscinciase abriu realidadenatural.B comoumaretrataoda desconcretizaoextremada lricade Mallarm,e comoumacontraposioao poema"Cantiquedes Colonnes".Todavia,em outraspoesiasse encontramtam-bm soluesde todo diversas.No interessamtantoas solu-es;massimqueo ato espiritualsetransformeemcanto,noqualcansoemintelectualidadee sensibilidade,clarezaemistrio.

    Jorge Gullln

    As consideraesacimaproporcionamumatransioparao estudodo espanholJorgeGuilln.Suapoesiasesituana es-fera de influnciasde Mallarme de Valry. Guilln traduziuValrye tambmmanteverelaesdeamizadecomele.Em seusanosjuvenis,foi partidriodeclaradoda posiepure("manontroppo"),comoacrescentou(349,p. 328); maistarde,distan-ciou-sedela(420, p. 244).Estasduasatitudesnodenotamcon-tradiese nemevoluo;apenasmostramos limitesoscilantesde tal conceito.Guilln, entreos viventes,o poetamaisma-duroe maisconseqenteda lrica intelectual.A maiorpartedesuaspoesiassoarticulaesde umaobra unitria,o Cntico,publicadopelaprimeiravezem 1928,desdeentovriasvezesampliado,e apresentadoem redaodefinitivaem 1950.Estaobra temumaconstruoarquitetnicageral,comoLes Fleursdu Mal de Baudelaire,comumaordemcompositivanumricade um rigor quasedantesco.A poesiade Guilln , em seusentidomaisamplo,umaontologialrica e umapoticafunda-mentadaontologicamente.Flutuaentreos fenmenosmaissim-plese as abstraesmaisintensas.Suaobscuridade,cuidadosa-mentecultivada(d. acima,p. 178),a transformano queh demaisdifcil quesepossaler na lrica contempornea.Nenhumeupessoalfalanela.Seusujeitosoos "olhosdo esprito",ex-pressoquelembrao "olharabsoluto"deMallarm.Os "olhosdo esprito"sedesprendemdamatriaviva paraconverterem-se

    187

  • emespelhodaplenitudedo universoe da tessiturapurado Serquetranspareceatravsdestaplenitude.Um jbilo tranqiloe,todavia,estranhoao homem.atravessaestaobra. :a o jbilo in-telectualde umafora de contemplaoque percebenos obje-tos a quietudede suasformasprimordiaise se sabecapazdedar, pelapalavra,a tudoque existe,umaessnciaintelectualpermanente.(Vide "Los Nombres",p. 257)

    Guilln foi chamado"o maiseleticodospoetas",queren-do-seindicar, assim,suarelaoparacoma existnciatrans-cendente.Sua lrica, porm,no tantomanifestaodo Seremsi - o quea tornariaimpossvelcomolrica. :a muitomaismovimento:movimentoemdireoao Ser,movimentodo con-fuso claridade,da inquietao paz. A luz, comoaparioimaculadado Ser, seuvalor supremo;as poesiasmaislumi-nosassotambmas formalmentemaisrigorosas."H sempreluz", diz um verso.Mas o verdadeiroacontecimentodestapoe-sia o tornar-seluz, o "prazerintensoda passagem".Suaener-gia lrica nasceda tensoa um pontoquea transcende.Elevauma coisa perfeiode suaessncia,perfeio,a princpio,aindanatural,faz o jardim"maisjardim",a ponte"maispon-te", desprendendoda (comoem Mallarm)uma;:ssencialidadecategrica,por cimada qualflui, afinal,a luz da perfeiodoSer.Esteprocessoabarcatodoo reinodo viventee do sensvel,ondea "matriaexperimentoua graade converter-seemfen-meno".Mas transformae tornaalheioestereino.As coisasseinclinam"chorando" irrealidadepura. A linguagemno asembeleza,massimdespojasuaessncianua,introduzida emre-laesdetodoirreais.Umadesuaspoesias intitulada"CiudaddeIasestos"(411,p. 146)."Cidadeacidental" comoa chamao primeiroverso.Sobreestacidadese estendea luz sercea,alisandoe aclarandosuaslinhas;torna-se"briade geometria";"delciasda exatido"seapoderamdelae seconverteuem"ci-dadeessencial"("Ciudadesencial").Paisagenstransformam-seementrelaamentosimateriaisde tenso.Nevee frio soaspa-lavrassimblicasparaexprimiro absoluto,ondea certezamor-tal da vida suprimida,atmesmoa prpriavida suprimida- emboraGuilln pareas vezesexalt-Ianumaespciedepan-vitalismo.O visvelperde suasqualidadessensveisantenossosolhos.Nasce,assim,um vazio do espaofigurativo,ca-ractersticode Guilln,no qualdominamalgunsfenmenospri-mordiaisestticos(crculo,linha,volume)ou smbolostornadosincorretosparaindicaremtaisfenmenos(rosa,corrente,neve).Ou umasimpleslinhaprecedeo movimento:o mar,a princpio,nqtemondas,mascurvas.A obraseapresentacomoo modelodo Ser,construdode formaestereomtricae banhadode luz.

    188

    No deixaaohomemnenhumahumanidadenatural.Tambmapoesiade amorse torna,comoem Mallarm,uma poesiadecrescenteconhecimentodo Ser. No corpoda amada,no emsuaalma,o amante,quea contemplapensativo,v emergiroSer e avanarrumo plenitudedo fenmeno;masa amadano sabe,de modoalgum,que uma "transparnciana clari-dade"(411,p. 103).O esplendorda primaverano estdesti-nadoao coraodos homens;"pelo rumorconfusopassaumgrito,j longnquoe dissolvendo-se,gritosuavedeningumparaningum"(p. 119). Crianasbrincamna praia; mas no soelasasprotagonistas,massimo sole as conchase, talvez,tam-bmas mosdascrianas,transformadas,porm,emseresin-dependentes;e a poesiaconcluicom umaltimapassagemmsicados conceitos:"correntesvermelhas,conchas,conchas.Acordo,fim, crculo" ("Playa").Pois no crculo,"invisvelden-tro do blocodear", fala o mistriodo Ser superior vida,quese mostraemesplendore seesconde- comoa poesia("Per-feccindeICrculo").

    Quandosefalasobreestalricaapenasa ttuloinformativo,mal se poderfazercompreenderque canto,cantometlicono som,almdo mais,impetuosoe durodo espanhol.Tambmsuasabstraessocanto.De acordocomsuatemtica,estal-rica temde trabalharcom um vocabulriorico de elementosabstratose geomtricos:curva,plenitude,atualidade,infinito,substncia,Nada,centro.Entreestaspalavrase as queservemparadesignarcoisassimples,nogeomtricas,subsistetopoucoumafronteiralingstica,quantosubsisteumarealentreos con-tedosconceituaise os sensveisdestemundolrico. H umversoque,referindo-seao cisne,diz: "Toda a plumagemdese-nha um sistema/ de silnciofatal" (p. 147).Em poesiasquecontmumacena,asprotagonistasda aosoabstraes.Masa linguagemtambmse adaptacom outrosmeiosa suatem-tica.Serve-sede prefernciade expressesnominais,pobresdeverbos,comasquaisisolafenmenose conceitos,os subtraiaotempoou os invocacomoemum hino. A linguagemno flui,mashesitae se interrompe,vai dispondoem formade blocose logovem,denovo,umaperguntacurta,deixadasemrespostaou um tatearcauteloso.Guilln um virtuoseda artede des-pertarecosnaspalavrasmaisconcisas,fazendo-asressoarlonga-mentenumespaoplenode mistrio.Tambmaqui, comoemtantosmodernos,existeum contrastefundamentalentreumasintaxemuitosimplese a obscuridadedoscontedos.Pois estesaparecem,querse tratede imagemou de conceito,comofrag-mentosjustapostos,nenhumdos quais derivandodo anterior.Mesmoas maistnuespontesde associaesforamsuprimidas.

    189

  • Nestaspoesiassempreocorrealgo.Mas asfasesdo acontecimen-to, enquantopermanecemno emprico,notmem si qualquernecessidadevisvel,parecemsemcausae semefeito.A necessi-dadeatuas no decursoou na variaodas tensesabstratas.S umacoisa inequvoca:a ausnciada humanidadenatural.(Estareaparececom nova intensidadee com mais vigor nascomposiespoticaspublicadasdepoisde 1957.)

    Na poesia"Nochede Luna",v-secomoestalrica secom-portadiantede ummotivotradicional,mostrando-acomo sub-ttulo:"Semdesfecho".Trata-sedeumapaisagemdeconceitos:altura,branco,expectativa,vontade,delicadeza.Estesconceitosassinalamumaespciedereticuladode essnciassupraconcretasqueencerraum eventosetnhomensno frio claroda noite.Aspoucascoisasvisveisdeslizamcomofantasmasatravsdo acon-tecimentoirrealcujaordem umaordemde movimentos:umadescida- enquanto"asplumagensdo frio pairam";umacurtaparadanumaplancie- enquanto"calada,sedifundea expec-taoda espuma";umaprimeiraascensodo fundo,"ascensoao branco",enquanto"adorveisareias/ Impemao ventoagraa",e umasegundaques se realizanumapergunta;mas,interrogando,elevao mundoa uma"ausnciabranca,total,pe-rene".A poesia umacriaoresultantede campospurosdetenso,e estes,mediantea perguntasemrespostado final, per-manecemsemdesenlace.Nenhumeu fala. Fala apenasa lin-guagemque, identificandoo visto como pensado,os confinaaofrio deumafrmulaquasematemtica.Masa frmulacanta:

    Poesia algica

    No extremoopostodestapoesiaqueprovmdo legadodeMallarm,h a poesiado algico,doscontedossonamblicose alucinantes,quenascem~ ou queremnascer- dasemi-cons-cinciae do inconsciente.Esta poesiagostade reportar-seaRimbaude Lautramont,mas tambmao ocultismo, alqui-miae cabala.A poesiaalgicapretendeserpoesiado sonho.E sonhoquerdizeragora,em sentidopsicolgico,o sonhoes-tandodormindo,ou o sonhoestandoacordadoe provocadoartificialmente(mediantedrogasetc.). Este tipo de sonho,diferenado potico,sobretudosegundoa acepolingsticamodernados pasesromnicos,indica a fantasiacriativa.Olimitedivisrioentreasduascapacidadesde sonho flutuante,

    190

    "

    I

    sobretudoem sua manifestaoartstica.-e o limiteque existeentreum princpiopsicolgicoe um esttico.Todaviaos doisprincpiosse encontramna justificaoda subjetividadedes-vinculadada realidadee na explicaode queo homem osenhordo mundo,graasa suacapacidadede sonhar.

    a poetaralgico,comoo intelectual,desfrutada fantasiacriadorade imagensirreais.Acolhe,porm,seuscontedospas-sivamentedosestratosprofundosdo sonho,estandodormindoou desperto,semorden-Ios.Estapoesia,dirigida contrao ho-mem enquanto"monstro cerebral" (A. Breton),equipara-ocoma foraquedominaemseusfundamentosannimos,pr-pessoais.a homemno despojadode suafora.Esta ape-nasfundamentadade formadiversa.-e significativoqueum te-rico da poesiaalgicafale de formaelogiosa da "ditaduradoesprito"(Tr. Tzara).O pesodestafrmularecaisobrea pala-vra "ditadura";maso fato de queo "esprito"queiraidenti-ficar-secomo prevalecere o deixarprevalecerdosestratosal-gicosdas profundezas,toma a ditaduraaindamaisviolenta.J se viu estefato em Rimbaud.Entrementes,haviamatuadoas teoriasde Freud e de C. G. Jung. O segundointerpretaapoesiaa partir do impulsode obscuras"visesprimordiais",para as quais o poeta apenaso "mdium"que deixafluiratravsde si os materiaisdo inconscientecoletivo;a forma questosecundria.Esta teoriatevesuasconseqnciasentreos surrealistas.

    Seuprecursorimediato Apollinaire,o criadordo termo"surrealismo".Em 1908,escreveuumapoesiaemprosa,"ani-rocritique".Estettuloconcretizao conceitodesonho(emfran-cs,alisplurivalente)e o transformaemumaexpressotcnicacientfica,parecequese apoiandono Oneirokritikde Artemi-doro (11.sc.d. C.), livro sobresonhosda antigidadetardia.Discutiremosalgumaspassagensdo texto; de acordocom ocarterdeste,a seleopodesertoarbitrriacomoa dostre-chosque omitimos."Os carvesdo cuestavamtoprximosque tive medode seuodor. Dois animaisdiversosse acasala-ram,e as estacasdasroseirastomaram-separreiras,carregadasdos feixes de luas. Da goelado macacosaltavamchamaseadornavamo mundocomlrios.Os monarcassealegravam.Vie-ram vinte costureiroscegos.Perto do anoiteceras rvoresseforam voandoe eu me centupliquei.a rebanhoque eu fui,sentou~sejuntoao mar.A espadamatouminhasede.Cemma-rinheirosmataram-menoventae novevezes.Todo um povo,comprimidono lagar,sagravacantando.Sombrasdiversasobs-cureciam,amorosas,o escarlatedasvelas,enquantomeusolhos

    191

  • semultiplicavamnosrios,nascidadese sobrea nevedasmon-tanhas".

    O conhecedorpercebera voz de Rimbaudatravsdestesversos,reconhecerseuprocedimento.O trechoatuacomoumacrescimoapcrifos Illuminations.No tom de relatosucessi-vo, vo-sealinhandoimagensirreaise fragmentosde fatos,semcontatoentresi, que poderiam,da mesmaforma,estarnumaseqnciadiferente.Se houverum mnimode relaoentreoseventosisolados,serumauniode metamorfosesabsurdas-comono sonho(umacabeatorna-seumaprola,sonstornam-seserpentes).Nemmesmoumnicohomem,sempres massas.Tantoas imagenscomoa formade expressopodemserapro-ximadasao sonho.Mas o mundoonricodo louco, da feal-dade,dos trejeitose dos assassnios.Nesteselementos,e nos no experimentode um estiloinspiradono sonho,resideocartersintomticomodernodo texto.

    Em comparaocomo queos prpriossurrealistasprodu-ziramdesdeos anosvinte,seuprecursor,Apollinaire,continuaa sero poetamaisoriginaldetodoseles.Os surrealistass po-deminteressar-sepor seusprogramasque,cominstrumentaosemicientfica,confirmamum procedimentocientficoinicia-doa partirdeRimbaud.Convicodequeo homemno caosdoinconsciente,possaestendersuaexperinciaao infinito; convic-odequeo doentementalno menos"genial"queo poetanacriaodeuma"supra-realidade";concepodapoesiacomoditadosem forma, oriundodo inconsciente:estesso algunspontosdesteprograma.Este confundevmito- e almdomais,artificial - com a criao.Uma poesiade alto nvelno resultoudele.Lricos de alta qualidadeque se costumamincluir entreos surrealistas,como Bluard ou Aragon,quasenodevemsua poesiapropriamentequeleprograma,e sim necessidadeestilsticageralque, a partir de Rimbaud,conver-teua lrica emlinguagemdo algico.O surrealismo umacon-seqncia,no umacausa; uma das muitasformasdo mo-derno"anseiodo mistrio"(J. Gracq).

    Assim, deve-setambmpoder compreendero futurismoitalianoe o expressionismoalemocomomanifestaes,cadauma delasautctone,sema procurade influnciaspossveis.Suasexplosesde palavras,sua "desintegraoda realidade",seussonambulismos,suascidadesque desabam,seusgracejosgrotescos:tudo confirmaaquelaestruturaestilsticaque haviasurgidodcadasantesna Franae sehaviafeito sentirtambmemoutrospases.

    192

    Esta penetraoda lrica em crepsculossonmbulosemformade sonho,manifesta-sepor toda a partena Europa.diferenadapoesiaromnticado sonhodeoutrora,estaseaden-tra maisfundo,no outrolado do umbral,almdo qual aindaalgunsresduosdo mundovgil poderiampermitirum ltimopontodeapoio.A poesiadeBenn"DerTraum"puramelodiadesonho;porelaoscilamnomesestranhos,imagensemunioirrealbrotam, dissolvem-se,roam-se;"sopro complacenteconsigomesmo,de floresmencionadas";"mulheresajoelhadas,apenasquantosformas,ascabeassuspensasmuitoaltasno crepscu-lo"; a poesia aquilo mesmoquediz do sonho:"seusnomesno sereferema nadanestemundo... Contemporneossoosmundosdestesonho,e da mesmaforma,comseuespao,elessoprame caem... "

    Garca Lorca, "Romance sonmbu,lo"

    Temosde mencionaragorao famoso"Romancesonm-bulo" de GarcaLorca (anteriora 1927).Seu "contedo" oseguinte,casoqueiramosorientar-nospor ele: uma jovemest luz da lua junto gradede um balco;noutrolugar- nose sabeonde- doishomensfalamentresi; maistarde,tam-bm elesvmao balco;maistardeainda,a moajaz mortanumacisterna.Mas tal resumoqueterminanumcrimede amor,destria poesia.Porqueo que ocorre algo completamentediferente:um entrelaar-sesonmbulode resduosde aconte-cimentosapenasesboadoscomum encantoirrealde imagense palavras.A poesiacomeacomumacor: verde.A cor nadatema ver como acontecimento,nemcomas coisas.No deri-va destas,mas se acrescea elas: "verdevento,verdecarne,verdescabelos". umafora mgicaque lanaseusreflexosatravsda poesia,um vu sonoro.(Encontramosum estgiopreliminardesteverdena poesia"La verdecilla",de RamnJimnez,naqualtambmestacorseestendedeummodoirreal;porm, vista ainda numa relaocausal:o verdetem suaorigemnosolhosverdesde uma jovem; tal causalidadefalta,porm,por completoem Lorca).De formaconfusae no rela-cionadosentresi, evidenciam-separtesde paisagens,e entreestas,partesde acontecimentose perfisde homens.Umabarcasobreo mare um cavalona montanhaajuntam-seemdoisver-sose tambmestesversosse convertememum podersonoro

    193

  • que se repete.A seqnciada poesiano pica,maslrica,prescindede qualquerdeterminaoespacial,temporale cau-saldoque expresso.O tema,isto, amore morte,no no-meadocompalavraalguma.Mas emergecomoforainexpressa,dosesboosde acontecimentose de coisas.E nascemgrandesmetforas:a figueiraroa o ventomatutinocom a escamadeseusramos;a montanha,gatoladro,eriasuasagavessperas;um floco de nevelunarsustentaa jovemmortasobrea gua.Em lugarde umaaoclara,s estclaroo quese desenvolveno reinosoberanodaspalavrase dascores:no verde,antesqueressoepelaltimavez, inseriu-seum negro- sinal da morte.Tudo se evocae tudo se deixaem aberto.Quaseno maisestamossobre a terra.Assim como entreos lugaresno hespao(sas metforasirreaisformamespao),tambmo tem-po estparado.No incio noite,depoissefaz manh,"feridapor mil pandeirosde cristal",e no final, de novonoite.To-davia,estasnosogradaestemporaispicas.Soperspecti-vas lricasdo tempoimutvel(comotambmem "La Fileuse"de Valry,ondeda luz do anoitecerse passa noitee desta,outravezao anoitecer).O final querepeteos versosdo incio,parecefechar um crculo. "Talvez nada se moveu absolu-tamente,mas,no espaodeum instante,coma rapidezda luz,abriu-seum leque,- imagensquese desdobramentreos mui-tosverdesqueassustmcomoestacas"(G. Zeltner-Neukromm).Esta poesia,grandee ousada,no precisaser justificadapormeiodas teoriasda psicologiado sonho.

    o absurdo; o "humorismo"

    A poesiamodernado sonhotendetambmao absurdocomtodasas suas dissonncias.Baudelairej havia exaltadonosonhoa capacidadede inventaro absurdoporquetambmesterepresentaum triunfo do subjetivismoliberado. Em 1939,muard, como outroraRimbaud,exigia da poesia"destruioda lgicaatao absurdo".Bretonj tinhaido maisalm,de-clarandoques o absurdo capazde poesia.Da Espanhares-pondiaa lrica de V. Aleixandreque- pelomenosato fimdos anosquarenta- se encontravaprximado surrealismo.As poesiasde Aleixandre,metricamentelivres na forma, atmesmodesprovidasde forma,e, comfreqncia,de uma am-bigidadesintticaquaseinsondvel,oferecemumaaproxima-

    194

    I1/I

    r

    o intencionalmentedesorientadoradaquiloque nema partirda natureza,nemda lgicase teria encontradoem