nietzsche, friedrich - humano, demasiado humano

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7/21/2019 NIETZSCHE, Friedrich - Humano, Demasiado Humano http://slidepdf.com/reader/full/nietzsche-friedrich-humano-demasiado-humano 1/189 Capítulo segundo CONTRIBUIÇÃO À HISTÓRIA DOS SENTIMENTOS MORAIS 35.  Vantagens da observação psicológica . — Que a reflexão sobre o humano, demasiado humano — ou, segundo a expressão mais erudita: a observação psicológica — seja um dos meios que nos permitem aliviar o fardo da vida, que o exercício dessa arte  proporcione presença de espírito em situações difíceis e distração num ambiente enfadonho, que mesmo das passagens mais espinhosas e desagradáveis de nossa vida possamos colher sentenças, e assim nos sentir um pouco melhor: nisto se acreditava, isto se sabia — em séculos passados. Por que foi esquecido neste século, quando, ao menos na Alemanha, e mesmo na Europa, a  pobreza da observação psicológica se mostra em tantos signos?  Não particularmente em romances, novelas e considerações filosóficas — estas são obras de homens de exceção; um pouco mais no julgamento dos eventos e personalidades públicos; mas sobretudo falta a arte da dissecação e composição psicológica na ida social de todas as classes, onde talvez se fale muito das  pessoas, mas não do ser humano. Por que se deixa de lado o mais rico e inofensivo tema de conversa? Por que não se lêem mais os grandes mestres da sentença psicológica? — pois, sem qualquer exagero: o homem culto que tenha lido La Rochefoucauld e seus  pares em espírito e arte é coisa rara na Europa; e ainda mais raro aquele que os conheça e não os insulte. Mas é provável que mesmo esse leitor incomum tenha com eles menos satisfação do que deveria lhe dar a forma desses artistas; pois nem o espírito mais refinado é capaz de apreciar devidamente a arte de polir sentenças, se não foi educado para ela, se nela não competiu. Sem tal instrução prática, consideramos esse criar e formar algo mais fácil do que é na verdade, não sentimos com suficiente agudeza o que nele é bem realizado e atraente. Por isso os atuais leitores de sentenças têm com elas um prazer relativamente insignificante, mal chegam a saboreá-las; de modo que lhes sucede o mesmo que às  pessoas que examinam camafeus: as quais elogiam porque não sabem amar, e prontamente se dispõem a admirar, e ainda mais  prontamente a se esquivar. 36.  Objeção. — Ou haveria um contrapeso à tese de que a observação psicológica se inclui entre os atrativos e meios de salvação e alívio da existência? Não deveríamos estar bastante convencidos das desagradáveis conseqüências dessa arte, para dela afastar intencionalmente o olhar dos que se educam? De fato, uma fé cega na bondade da natureza humana, uma arraigada aversão à análise das ações humanas, uma espécie de pudor frente à nudez da alma podem realmente ser mais desejáveis para a felicidade geral de um homem do que o atributo da penetração psicológica, vantajoso em casos particulares; e talvez a crença no bem, em homens e ações virtuosas, numa abundância de boa vontade impessoal no mundo, tenha tornado os homens melhores, na medida em que os

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Capítulo segundoCONTRIBUIÇÃO À HISTÓRIADOS SENTIMENTOS MORAIS

35.  Vantagens da observação psicológica . — Que a reflexãosobre o humano, demasiado humano — ou, segundo a expressãomais erudita: a observação psicológica — seja um dos meios quenos permitem aliviar o fardo da vida, que o exercício dessa arte

 proporcione presença de espírito em situações difíceis e distraçãonum ambiente enfadonho, que mesmo das passagens maisespinhosas e desagradáveis de nossa vida possamos colher sentenças, e assim nos sentir um pouco melhor: nisto se acreditava,isto se sabia — em séculos passados. Por que foi esquecido nesteséculo, quando, ao menos na Alemanha, e mesmo na Europa, a pobreza da observação psicológica se mostra em tantos signos?

 Não particularmente em romances, novelas e consideraçõesfilosóficas — estas são obras de homens de exceção; um poucomais no julgamento dos eventos e personalidades públicos; massobretudo falta a arte da dissecação e composição psicológica naida social de todas as classes, onde talvez se fale muito das

 pessoas, mas não do ser humano. Por que se deixa de lado o maisrico e inofensivo tema de conversa? Por que não se lêem mais os

grandes mestres da sentença psicológica? — pois, sem qualquer exagero: o homem culto que tenha lido La Rochefoucauld e seus pares em espírito e arte é coisa rara na Europa; e ainda mais raroaquele que os conheça e não os insulte. Mas é provável que mesmoesse leitor incomum tenha com eles menos satisfação do quedeveria lhe dar a forma desses artistas; pois nem o espírito maisrefinado é capaz de apreciar devidamente a arte de polir sentenças,

se não foi educado para ela, se nela não competiu. Sem talinstrução prática, consideramos esse criar e formar algo mais fácildo que é na verdade, não sentimos com suficiente agudeza o quenele é bem realizado e atraente. Por isso os atuais leitores desentenças têm com elas um prazer relativamente insignificante, malchegam a saboreá-las; de modo que lhes sucede o mesmo que às pessoas que examinam camafeus: as quais elogiam porque nãosabem amar, e prontamente se dispõem a admirar, e ainda mais prontamente a se esquivar.

36.  Objeção. — Ou haveria um contrapeso à tese de que aobservação psicológica se inclui entre os atrativos e meios desalvação e alívio da existência? Não deveríamos estar bastante

convencidos das desagradáveis conseqüências dessa arte, para delaafastar intencionalmente o olhar dos que se educam? De fato, umafé cega na bondade da natureza humana, uma arraigada aversão àanálise das ações humanas, uma espécie de pudor frente à nudez daalma podem realmente ser mais desejáveis para a felicidade geral deum homem do que o atributo da penetração psicológica, vantajosoem casos particulares; e talvez a crença no bem, em homens e

ações virtuosas, numa abundância de boa vontade impessoal nomundo, tenha tornado os homens melhores, na medida em que os

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tornou menos desconfiados. Quando imitamos com entusiasmo osheróis de Plutarco e relutamos em indagar suspeitosamente sobreas motivações de seu agir, não é a verdade, mas o bem-estar dasociedade humana que lucra com isso: o erro psicológico e ainsensibilidade nesse campo ajudam a humanidade a avançar,enquanto o conhecimento da verdade talvez ganhe mais com aforça estimulante de uma hipótese como a que La Rochefoucauldantepôs à primeira edição das suas Sentences et maximes morales:Ce que le monde nomme vertu n'est d'ordinaire qu'un fantômeormé par nos passions, à qui on donne un nom honnête pour faire

impunément ce qu'on veut   [Aquilo que o mundo chama de virtude

não é, via de regra, senão um fantasma formado por nossas paixões, ao qual damos um nome honesto para impunemente fazer o que quisermos]. La Rochefoucauld e outros mestres franceses doestudo da alma (aos quais recentemente se juntou um alemão, oautor das Observações psicológicas)27  parecem atiradores de boamira que acertam sempre no ponto escuro — mas no escuro danatureza humana. Sua destreza provoca admiração, mas afinal um

espectador que seja conduzido não pelo espírito da ciência, mas pelo espírito humanitário, amaldiçoará uma arte que parece plantar na alma humana o gosto pela diminuição e pela suspeita.

37.  Não obstante. — Seja qual for o resultado dos prós e doscontras: no presente estado de uma determinada ciência, oressurgimento da observação moral se tornou necessário, e não

 pode ser poupada à humanidade a visão cruel da mesa dedissecação psicológica e de suas pinças e bisturis. Pois aí comandaa ciência que indaga a origem e a história dos chamadossentimentos morais, e que, ao progredir, tem de expor e resolver osemaranhados problemas sociológicos: — a velha filosofia nãoconhece em absoluto estes últimos, e com precárias evasivassempre escapou à investigação sobre a origem e a história dossentimentos morais. As conseqüências podem hoje ser vistasclaramente, depois que muitos exemplos provaram que em geral oserros dos maiores filósofos têm seu ponto de partida numa falsaexplicação de determinados atos e sentimentos humanos; que, com base numa análise errônea, por exemplo, das ações ditas altruístas,constrói-se uma ética falsa; que depois, em favor desta, recorre-se

de novo à religião e à barafunda mitológica e que, por fim, assombras desses turvos espíritos se projetam até mesmo na física eem toda a nossa consideração do mundo. Mas se é certo que asuperficialidade da observação psicológica estendeu e continua aestender ao julgamento e ao raciocínio humanos as mais perigosasarmadilhas, então é necessária agora a persistência que não cansade amontoar pedra sobre pedra, pedrinha sobre pedrinha, é

necessária uma austera valentia, para não nos envergonharmos detrabalho tão modesto e afrontarmos todo desdém de que for objeto.É verdade: numerosas observações particulares sobre o humano e odemasiado humano foram primeiramente descobertas e enunciadasem círculos sociais habituados a oferecer toda espécie de sacrifícionão ao conhecimento científico, mas a uma espirituosa coqueteria;e o aroma deste velho berço da sentença moral — um aroma muito

sedutor — aderiu quase que inseparavelmente a todo o gênero: demodo que por causa dele o homem de ciência manifesta

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involuntariamente alguma desconfiança face ao gênero e a suaseriedade. Mas basta apontar as conseqüências: pois já se começa aer que produtos da mais séria natureza crescem no solo da

observação psicológica. Qual a principal tese a que chegou um dosmais frios e ousados pensadores, o autor do livro Sobre a origemdos sentimentos morais,28  graças às suas cortantes e penetrantesanálises da conduta humana? "O homem moral" — diz ele — "nãoestá mais próximo do mundo inteligível (metafísico) que o homemfísico." Esta proposição, temperada e afiada sob os golpes demartelo do conhecimento histórico, talvez possa um dia, em algumfuturo, servir como o machado que cortará pela raiz a "necessidade

metafísica" do homem — se para a bênção ou para a maldição do bem-estar geral, quem saberia dizê-lo? — mas, em todo o caso,como uma tese das mais graves conseqüências, simultaneamentefecunda e horrenda, e olhando para o mundo com aquela dupla faceque possuem todos os grandes conhecimentos.

38.  Em que medida é útil . — Portanto: se a observação

 psicológica traz mais utilidade ou desvantagem aos homens permanece ainda sem resposta; mas certamente é necessária, pois aciência não pode passar sem ela. Mas a ciência não temconsideração pelos fins últimos, e tampouco a natureza; e comoesta ocasionalmente produz coisas da mais elevada pertinência, semtê-las querido, também a verdadeira ciência, sendo a imitação danatureza em conceitos, promoverá ocasionalmente, e mesmo com

freqüência, vantagem e bem-estar para os homens, e alcançará oque é pertinente — mas igualmente sem tê-lo querido. Quem, naatmosfera de tal modo de ver, sentir o ânimo demasiado frio, talveztenha muito pouco fogo em si: se olhar à sua volta, no entanto, perceberá doenças que requerem compressas de gelo, e homens detal maneira "moldados" com ardor e espírito que mal encontramlugar em que o ar lhes seja suficientemente frio e cortante. Alémdisso, verá como indivíduos e povos muito sérios necessitam defrivolidades, como outros muito excitáveis e inconstantes precisamtemporariamente, para sua saúde, de fardos pesados e opressores:não deveremos nós, os homens mais espirituais de uma época queisivelmente se inflama cada vez mais, recorrer a todos os meios de

extinção e refrigeração existentes, de modo a continuar ao menos

tão firmes, inofensivos e moderados como hoje ainda somos, etalvez um dia servir a esta época como espelho e autoconsciência?

39.  A fábula da liberdade inteligível .29  — A história dossentimentos em virtude dos quais tornamos alguém responsável por seus atos, ou seja, a história dos chamados sentimentos morais,tem as seguintes fases principais. Primeiro chamamos as ações

isoladas de boas ou más, sem qualquer consideração por seusmotivos, apenas devido às conseqüências úteis ou prejudiciais quetenham. Mas logo esquecemos a origem dessas designações eachamos que a qualidade de "bom" ou "mau" é inerente às ações,sem consideração por suas conseqüências: o mesmo erro que faz alíngua designar a pedra como dura, a árvore como verde — isto é,apreendendo o que é efeito como causa. Em seguida, introduzimos

a qualidade de ser bom ou mau nos motivos e olhamos os atos emsi como moralmente ambíguos. Indo mais longe, damos o

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 predicado bom ou mau não mais ao motivo isolado, mas a todo oser de um homem, do qual o motivo brota como a planta doterreno. De maneira que sucessivamente tornamos o homemresponsável por seus efeitos, depois por suas ações, depois por seus motivos e finalmente por seu próprio ser. E afinaldescobrimos que tampouco este ser pode ser responsável, namedida em que é inteiramente uma conseqüência necessária e seforma30  a partir dos elementos e influxos de coisas passadas e presentes: portanto, que não se pode tornar o homem responsável por nada, seja por seu ser, por seus motivos, por suas ações ou por seus efeitos. Com isso chegamos ao conhecimento31  de que a

história dos sentimentos morais é a história de um erro, o erro daresponsabilidade, que se baseia no erro do livre-arbítrio. — Schopenhauer, por outro lado, raciocinou assim: desde que certasações acarretam mal-estar ("consciência de culpa"), deve existir responsabilidade, pois não haveria razão para esse mal-estar se nãoapenas todo o agir do homem ocorresse por necessidade — comode fato ocorre, e também segundo a visão desse filósofo —, mas

se o próprio homem adquirisse o seu inteiro ser 32  pela mesmanecessidade — o que Schopenhauer nega. Partindo do fato dessemal-estar, Schopenhauer acredita poder demonstrar uma liberdadeque o homem deve ter tido de algum modo, não no que toca àsações, é certo, mas no que toca ao ser: liberdade, portanto, de sedesse ou daquele modo, não de agir  dessa ou daquela maneira. Doesse  [ser], da esfera da liberdade e da responsabilidade decorre,

segundo ele, o operari  [operar], a esfera da estrita causalidade,necessidade e irresponsabilidade. É certo que aparentemente o mal-estar diz respeito ao operari  — na medida em que assim faz éerrôneo —, mas na verdade se refere ao esse, que é o ato de umaontade livre, a causa fundamental da existência de um indivíduo; o

homem se torna o que ele quer   ser, seu querer precede suaexistência. — Aí o erro de raciocínio está em, partindo do fato do

mal-estar, inferir a justificação, a admissibilidade racional   dessemal-estar; com essa dedução falha, Schopenhauer chega àfantástica conclusão da chamada liberdade inteligível. Mas o mal-estar após o ato não precisa absolutamente ser racional: e não o é,de fato, pois se baseia no errôneo pressuposto de que o ato nãotinha que se produzir necessariamente. Logo: porque o homem seconsidera livre, não porque é livre, ele sofre arrependimento eremorso. — Além disso, esse mal-estar é coisa que podemos deixar  para trás; em muitas pessoas ele não existe em absoluto, comrespeito a ações pelas quais muitas outras o sentem. É algo bastanteariável, ligado à evolução dos costumes e da cultura, só existente

num período relativamente breve da história do mundo, talvez. —  Ninguém é responsável por suas ações, ninguém responde por seuser; julgar significa ser injusto. Isso também vale para quando oindivíduo julga a si mesmo. Essa tese é clara como a luz do sol; noentanto, todos preferem retornar à sombra e à inverdade: por medodas conseqüências.

40.  O superanimal . — A besta que existe em nós quer ser enganada; a moral é mentira necessária, para não sermos por ela

dilacerados. Sem os erros que se acham nas suposições da moral, ohomem teria permanecido animal. Mas assim ele se tomou por algo

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mais elevado, impondo-se leis mais severas. Por isso ele tem ódioaos estágios que ficaram mais próximos da animalidade: de onde se pode explicar o antigo desprezo pelo escravo, como sendo um não-humano, uma coisa.

41. O caráter imutável . — Que o caráter seja imutável não éuma verdade no sentido estrito; esta frase estimada significa apenasque, durante a breve duração da vida de um homem, os motivosque sobre ele atuam não arranham com profundidade suficiente para destruir os traços impressos por milhares de anos. Mas, seimaginássemos um homem de oitenta mil anos, nele teríamos um

caráter absolutamente mutável: de modo que dele se desenvolveriaum grande número de indivíduos diversos, um após o outro. A brevidade da vida humana leva a muitas afirmações erradas sobreas características do homem.

42.  A ordem dos bens e a moral . — A hierarquia dos bensaceita, baseada em como um egoísmo pequeno, elevado ou

supremo deseja uma ou outra coisa, decide atualmente acerca damoralidade ou imoralidade. Preferir um bem pequeno (por exemplo,o prazer dos sentidos) a um altamente valorizado (por exemplo, asaúde) é tido como imoral, tanto quanto preferir a boa vida àliberdade. Mas a hierarquia dos bens não é fixa e igual em todos ostempos; quando alguém prefere a vingança à justiça, ele é moralsegundo a medida de uma cultura passada, imoral segundo a atual."Imoral" designa, portanto, que um indivíduo ainda não sente, ounão sente ainda com força bastante, os motivos mais elevados,mais sutis e mais espirituais trazidos pela nova cultura: designa umser atrasado, mas apenas numa diferença de grau. — A própriahierarquia dos bens não é estabelecida ou alterada segundo pontosde vista morais; mas com base na sua determinação vigente é

decidido se uma ação é moral ou imoral.

43.  Homens cruéis, homens atrasados. — Devemos pensar noshomens que hoje são cruéis como estágios remanescentes deculturas  passadas: a cordilheira da humanidade mostra abertamenteas formações mais profundas, que em geral permanecem ocultas.São homens atrasados, cujo cérebro, devido a tantos acasos

 possíveis na hereditariedade, não se desenvolveu de forma vária edelicada. Eles mostram o que todos nós fomos, e nos infundem pavor: mas eles próprios são tão responsáveis como um pedaço degranito é responsável pelo fato de ser granito. Em nosso cérebrotambém devem se achar sulcos e sinuosidades que correspondemàquela mentalidade, assim como na forma de alguns órgãoshumanos podem se achar lembranças do estado de peixe. Mas

esses sulcos e sinuosidades já não são o leito por onde rolaatualmente o curso de nosso sentimento.

44.  Gratidão e vingança. — A razão por que o homem poderoso é grato é esta. Mediante seu benefício, o benfeitor comoque violou a esfera do poderoso e nela se introduziu: em represália,

este viola a esfera do benfeitor com seu ato de gratidão. É umaforma suave de vingança. Se não tivesse a compensação da

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gratidão, o poderoso teria se mostrado sem poder e depois seriaisto como tal. Por isso toda sociedade de bons, ou seja,

originariamente de poderosos, situa a gratidão entre os primeirosdeveres. — Swift afirmou que os homens são gratos na mesma proporção em que nutrem a vingança.33

45.  A dupla pré-história do bem e do mal . — O conceito de bem e mal tem uma dupla pré-história: primeiro, na alma das tribose castas dominantes. Quem tem o poder de retribuir o bem com o bem, o mal com o mal, e realmente o faz, ou seja, quem é grato e

ingativo, é chamado de bom; quem não tem poder e não pode

retribuir é tido por mau. Sendo bom, o homem pertence aos"bons", a uma comunidade que tem sentimento comunal, pois osindivíduos se acham entrelaçados mediante o sentido da retribuição.Sendo mau, o homem pertence aos "maus", a um bando de homenssubmissos e impotentes que não têm sentimento comunitário. Os bons são uma casta; os maus, uma massa como o pó. Durantealgum tempo, bom e mau equivalem a nobre e baixo, senhor e

escravo. Mas o inimigo não é considerado mau: ele pode retribuir.Em Homero, tanto os troianos como os gregos são bons. Nãoaquele que nos causa dano, mas aquele desprezível, é tido por mau. Na comunidade dos bons o bem é herdado: é impossível que ummau cresça em terreno tão bom. Apesar disso, se um dos bons fazalgo que seja indigno dos bons, recorre-se a expedientes; por exemplo, atribui-se a culpa a um deus: diz-se que ele golpeou o

 bom com a cegueira e a loucura. — Depois, na alma dosoprimidos, dos impotentes. Qualquer outro  homem é consideradohostil, inescrupuloso, explorador, cruel, astuto, seja ele nobre ou baixo. "Mau" é a palavra que caracteriza o homem e mesmo todoser vivo que se suponha existir, um deus, por exemplo; humano,divino significam o mesmo que diabólico, mau. Os signos da bondade, da solicitude, da compaixão são vistos medrosamentecomo perfídia, prelúdio de um desfecho terrível, entorpecimento eembuste, como maldade refinada, em suma. Com tal mentalidadeno indivíduo, dificilmente pode surgir uma comunidade, no máximoa sua forma mais rude: de modo que em toda a parte onde predomina essa concepção de bem e mal o declínio dos indivíduos,de suas tribos e raças está próximo. — Nossa moralidade atual

cresceu no solo das tribos e castas dominantes.

46. Compadecer, mais forte que padecer .34  — Existem casosem que o compadecer é mais forte do que o próprio padecer.Quando um de nossos amigos é culpado de algo vergonhoso, por exemplo, sentimos uma dor maior do que quando nós mesmos osomos. Pois acreditamos mais do que ele na pureza de seu caráter:

então o amor que temos a ele, provavelmente devido a essa crença,é mais forte do que seu amor a si mesmo. Embora seu egoísmorealmente sofra com isso mais do que o nosso, na medida em queele deve suportar mais as conseqüências ruins de sua falta, o quehá em nós de altruísta — palavra que nunca deve ser entendidarigorosamente, mas apenas como facilitadora da expressão — émais afetado por sua culpa do que o que há nele de altruísta.

47.   Hipocondria. — Existem homens que se tornam

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hipocondríacos por empatia e preocupação com outra pessoa; aespécie de compaixão que daí nasce não é outra coisa que umadoença. De modo que há também uma hipocondria cristã, que atacaas pessoas solitárias e movidas pela religião, que continuamente têmdiante dos olhos a paixão e a morte de Cristo.

48.  Economia da bondade. — A bondade e o amor, as ervas eforças mais salutares no trato com seres humanos, são achados tão preciosos que bem desejaríamos que se procedesse o maiseconomicamente possível, na aplicação desses meios balsâmicos:mas isto é impossível. A economia da bondade é o sonho dos mais

arrojados utopistas.

49.  Benevolência. — Entre as coisas pequenas, mas bastantefreqüentes, e por isso muito eficazes, às quais a ciência deveatentar mais do que às coisas grandes e raras, deve-se incluir também a benevolência; refiro-me às expressões de ânimo amigávelnas relações, ao sorriso dos olhos, aos apertos de mão, à satisfação

que habitualmente envolve quase toda ação humana. Não há professor, não há funcionário que não junte esse ingrediente àquiloque é seu dever; é a atividade contínua da humanidade, como queas ondas de sua luz, nas quais tudo cresce; sobretudo no círculomais estreito, no interior da família, a vida só verdeja e florescemediante essa benevolência. A boa índole, a amabilidade, a cortesiado coração são permanentes emanações do impulso altruísta, econtribuíram mais poderosamente para a cultura do que asexpressões mais famosas do mesmo impulso, chamadas decompaixão, misericórdia e sacrifício. Mas costumamosmenosprezá-las, e realmente: nelas não há muito de altruísta. A soma dessas doses mínimas é no entanto formidável, sua força totalé das mais potentes. — De modo semelhante, no mundo se acha

muito mais felicidade do que vêem os olhos turvos: isto é, secalculamos direito e não esquecemos todos os momentos desatisfação de que todo dia humano, mesmo na vida maisatormentada, é rico.

50.  O desejo de suscitar compaixão. — La Rochefoucauldacerta no alvo quando, na passagem mais notável de seu auto-

retrato (impresso pela primeira vez em 1658), previne contra acompaixão todos os que possuem razão, quando aconselha a deixá-la para as pessoas do povo, que necessitam das paixões (não sendoguiadas pela razão) para chegarem ao ponto de ajudar os quesofrem e de intervir energicamente em caso de infortúnio; enquantoa compaixão, no seu julgamento (e no de Platão), enfraquece aalma. Deveríamos, sem dúvida, manifestar   compaixão, mas

guardarmo-nos de tê-la: pois, sendo os infelizes tão tolos,demonstrar compaixão é para eles o maior bem do mundo. — Talvez possamos alertar mais ainda contra a compaixão, seentendermos tal necessidade dos infelizes não exatamente comotolice e deficiência intelectual, como uma espécie de perturbaçãomental que a infelicidade ocasiona (assim parece entendê-la LaRochefoucauld), mas como algo totalmente diverso e mais digno dereflexão. Observemos as crianças que choram e gritam a fim  deinspirar compaixão, e por isso aguardam o momento em que seu

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estado pode ser visto; tenhamos contato com doentes e pessoasmentalmente afligidas, e perguntemos a nós mesmos se oseloqüentes gemidos e queixumes, se a ostentação da infelicidadenão tem o objetivo, no fundo, de causar dor   nos espectadores: acompaixão que eles então expressam é um consolo para os fracos esofredores, na medida em que estes percebem ter ao menos umoder ainda, apesar de toda a sua fraqueza: o poder de causar dor .

O infeliz obtém uma espécie de prazer com o sentimento desuperioridade que a demonstração de compaixão lhe traz àconsciência; sua imaginação se exalta, ele é ainda importante osuficiente para causar dores ao mundo. De modo que a sede de

compaixão é uma sede de gozo de si mesmo, e isso à custa do próximo; ela mostra o homem na total desconsideração de seuquerido Eu, não exatamente em sua "tolice", como quer LaRochefoucauld. — Na conversa em sociedade, a maioria das perguntas é feita e a maioria das respostas é dada com o objetivo decausar um pequeno mal ao interlocutor; por isso tantos têm sede desociedade: ela lhes dá o sentimento de sua força. Nessas doses

incontáveis, mas muito pequenas, em que a maldade se faz valer,ela é um poderoso estimulante da vida: assim como a benevolência,que, de igual forma disseminada no mundo dos homens, é umremédio sempre disponível. — Mas haverá muitos indivíduoshonestos que admitam ser prazeroso causar dor? que não raro nosdistraímos — nos distraímos bem — criando desgosto para outroshomens, ao menos em pensamento, e disparando contra eles os

grãozinhos de chumbo da pequena maldade? A maioria é desonestademais, e alguns são bons demais, para saber algo sobre esseudendum  [parte vergonhosa]; portanto, eles sempre negarão que

Prosper Mérimée esteja certo ao dizer: Sachez aussi qu'il n'y a riende plus commun que de faire le mal pour le plaisir de le faire[Saibam também que não há nada mais comum do que fazer o mal pelo prazer de fazê-lo].35

51. Como o parecer vira ser . — Mesmo na dor mais profundao ator não pode deixar de pensar na impressão produzida por sua pessoa e por todo o efeito cênico, até no enterro de seu filho, por exemplo: ele chorará por sua própria dor e as manifestações dela,como sua própria platéia. O hipócrita que representa sempre o

mesmo papel deixa enfim de ser hipócrita; por exemplo, padres quequando jovens costumam ser hipócritas, consciente ouinconscientemente, tornam-se enfim naturais e são, sem nenhumaafetação, padres realmente; ou, se o pai não vai tão longe, talvezentão o filho, aproveitando os passos do pai, venha a lhe herdar ocostume. Se alguém quer parecer   algo, por muito tempo eobstinadamente, afinal lhe será difícil ser   outra coisa. A profissão

de quase todas as pessoas, mesmo a do artista, começa comhipocrisia, com uma imitação do exterior, com uma cópia daquiloque produz efeito. Aquele que sempre usa a máscara do rostoamável terá enfim poder sobre os ânimos benévolos, sem os quaisnão pode ser obtida a expressão da amabilidade — e estes por fimadquirem poder sobre ele, ele é benévolo.

52.  A marca da honestidade no embuste. — Em todos osgrandes embusteiros é digno de nota um fato a que devem seu

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dúvida, eles erguem continuamente mais um pilar para seu poder;mesmo os que pensam livremente não ousam contrariar um ser assim abnegado, dizendo-lhe, com duro sentido de verdade: "Óenganado, não engane!". — Apenas a diferença das concepções ossepara dele, de modo algum uma diferença de bondade ou maldade;mas aquilo de que não gostamos, costumamos tratar com injustiça.Fala-se da astúcia e da arte infame dos jesuítas, mas não se vê aauto-superação a que todo jesuíta se obriga, e como o regimefacilitado de vida, pregado nos manuais jesuíticos, deve beneficiar não a eles, mas aos leigos. E podemos indagar se, com tática eorganização semelhante, nós, esclarecidos, seríamos instrumentos

tão bons, tão dignos de admiração pela vitória sobre si mesmo, pelainfatigabilidade, pela dedicação.

56.  Vitória do conhecimento sobre o mal radical . — Paraquem deseja se tornar sábio é bastante proveitoso haver concebidoo ser humano, durante algum tempo, como basicamente mau edegenerado: esta concepção é falsa, tal como aquela oposta; mas

ela predominou por épocas inteiras, e suas raízes se ramificaramem nós e em nosso mundo. Para nos compreendermos, temos decompreendê-la; mas para depois irmos mais alto, teremos que ir além dela. Então reconheceremos que não existem pecados nosentido metafísico; mas que também, no mesmo sentido, nãoexistem virtudes; que todo esse âmbito das concepções morais estácontinuamente oscilando, que existem noções mais elevadas e mais

 profundas de bem e mal, moral e imoral. Quem não deseja dascoisas senão conhecê-las, facilmente atinge a paz com sua alma eerra (ou peca, como diz o mundo) no máximo por ignorância,dificilmente por avidez. Esse alguém já não quer excomungar eextirpar os desejos; o único objetivo que o domina por completo, ode sempre conhecer   tanto quanto for possível, o tornará frio eabrandará toda a selvageria de sua natureza. Além disso, terá selibertado de muitas concepções tormentosas, nada mais sentirá, aoouvir palavras como castigo do inferno, pecaminosidade,incapacidade para o bem: nelas reconhecerá apenas as sombrasevanescentes de considerações erradas sobre o mundo e a vida.

57.  A moral como autodivisão do homem. — Um bom autor,

que realmente põe o coração no seu tema, desejará que alguémapareça e o anule, que exponha o mesmo tema de modo mais claroe responda inteiramente as questões nele contidas. A jovemapaixonada pretende que a devota fidelidade de seu amor sejatestada pela infidelidade do amado. O soldado deseja cair no campode batalha por sua pátria vitoriosa: pois na vitória de sua pátriatambém triunfa seu maior desejo. A mãe dá ao filho aquilo de que

ela mesma se priva, o sono, a melhor comida, às vezes sua saúde,sua fortuna. — Mas serão todos esses estados altruístas? Serãomilagres  esses atos da moral, já que, na expressão deSchopenhauer, são "impossíveis e contudo reais"? Não está claroque em todos esses casos o homem tem mais amor a algo de si,um pensamento, um anseio, um produto, do que a algo diferentede si, e que ele então divide  seu ser, sacrificando uma parte à

outra? Será algo essencialmente  distinto, quando um homemcabeça-dura diz: "Prefiro ser morto com um tiro a me afastar um

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 passo do caminho desse homem"? — A inclinação por algo(desejo, impulso, anseio) está presente em todos os casosmencionados; ceder a ela, com todas as conseqüências, não é, emtodo caso, "altruísta". Na moral o homem não trata a si mesmocomo individuum, mas como dividuum.36

58.  O que se pode prometer . — Pode-se prometer atos, masnão sentimentos; pois estes são involuntários. Quem promete aalguém amá-lo sempre, ou sempre odiá-lo ou ser-lhe sempre fiel, promete algo que não está em seu poder; mas ele pode prometer aqueles atos que normalmente são conseqüência do amor, do ódio,

da fidelidade, mas também podem nascer de outros motivos: poiscaminhos e motivos diversos conduzem a um ato. A promessa desempre amar alguém significa, portanto: enquanto eu te amar,demonstrarei com atos o meu amor; se eu não mais te amar,continuarei praticando esses mesmos atos, ainda que por outrosmotivos: de modo que na cabeça de nossos semelhantes permanecea ilusão de que o amor é imutável e sempre o mesmo. — Portanto,

 prometemos a continuidade da aparência do amor quando, semcegar a nós mesmos, juramos a alguém amor eterno.

59.  Intelecto e moral . — É preciso ter boa memória, para poder cumprir as promessas feitas. É preciso ter grande força deimaginação, para poder sentir compaixão. De tal modo a moral estáunida à qualidade do intelecto.

60.  Querer se vingar e se vingar . — Pensar em se vingar efazê-lo significa ter um violento acesso febril, que no entanto passa;mas pensar em se vingar e não ter força nem coragem para fazê-loé carregar consigo um sofrimento crônico, um envenenamento docorpo e da alma. A moral, que vê apenas as intenções, avalia

igualmente os dois casos; habitualmente o primeiro é visto como o pior (pelas más conseqüências que o ato de vingança pode trazer).Ambas as avaliações têm vista curta.

61. Saber esperar . — Saber esperar é algo tão difícil, que osmaiores escritores não desdenharam fazer disso um tema de suascriações. Assim fizeram Shakespeare em Otelo e Sófocles em Ajax;se este tivesse deixado o sentimento esfriar por um dia apenas, seusuicídio já não lhe teria parecido necessário, como indica a fala dooráculo; provavelmente teria zombado das terríveis insinuações daaidade ferida e teria dito a si mesmo: quem, no meu lugar, já não

tomou uma ovelha por um herói? será uma coisa tão monstruosa?Pelo contrário, é algo humano e comum; dessa forma Ajax poderiase consolar. A paixão não quer esperar; o trágico na vida degrandes homens está, freqüentemente, não no seu conflito com aépoca e a baixeza de seus semelhantes, mas na sua incapacidade deadiar por um ou dois anos a sua obra; eles não sabem esperar. — Em todos os duelos, os amigos que dão conselhos devem verificar apenas uma coisa: se as pessoas envolvidas podem esperar; se estenão for o caso, um duelo é razoável, pois cada um diz a si mesmo:

"Ou eu continuo a viver, e então ele deve morrer imediatamente, ouo contrário". Em tal caso, esperar significaria sofrer por muito

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tempo ainda o horrendo martírio da honra ferida, diante de quem aferiu; o que pode constituir mais sofrimento do que o que vale a própria vida.

62.  Regalando-se na vingança. — Homens grosseiros que sesentem ofendidos costumam ver o grau da ofensa como o mais alto

 possível, e relatam a sua causa em termos bastante exagerados,apenas para poder se regalar no sentimento de ódio e vingançadespertado.

63. Valor da diminuição . — Não poucos, talvez a maioria dos

homens, têm necessidade de rebaixar e diminuir na sua imaginaçãotodos os homens que conhecem, para manter sua auto-estima euma certa competência no agir. E, como as naturezas mesquinhassão em número superior, e é muito importante elas terem essacompetência...

64.  O enfurecido. — Diante de um homem que se enfurececonosco devemos tomar cuidado, como diante de alguém que játenha atentado contra a nossa vida; pois o fato de ainda vivermosse deve à ausência do poder de matar; se os olhares bastassem, hámuito estaríamos liquidados. É traço de uma cultura grosseira fazer calar alguém tornando visível a brutalidade, suscitando o medo. — Do mesmo modo, o olhar frio que os nobres têm para seus criados

é resíduo daquela separação dos homens em castas, um traço deantigüidade grosseira; as mulheres, essas conservadoras do antigo,também conservaram mais fielmente essa survival  [sobrevivência].

65.  Aonde pode levar a franqueza. — Alguém tinha o mauhábito de se expressar com total franqueza sobre os motivos pelosquais agia, que eram tão bons ou ruins como os de todas as

 pessoas. Primeiro causou estranheza, depois suspeita, foi entãoafastado e proscrito, até que a justiça se lembrou de um ser tãoabjeto, em ocasião em que normalmente não tinha olhos ou osfechava. A falta de discrição quanto ao segredo de todos e oirresponsável pendor de ver o que ninguém quer ver — a si mesmo — levaram-no à prisão e à morte prematura.

66.  Punível, jamais punido. — Nosso crime em relação aoscriminosos consiste em tratá-los como patifes.

67.  "Sancta simplicitas" 37  da virtude. — Toda virtude tem privilégios: por exemplo, o de levar seu próprio feixezinho de lenha para a fogueira do condenado.

68.  Moralidade e sucesso. — Não são apenas os espectadoresde um ato que com freqüência medem o que nele é moral ou imoralconforme o seu êxito: não, o seu próprio autor faz isso. Pois osmotivos e intenções raramente são bastante claros e simples, e àsezes a própria memória parece turvada pelo sucesso do ato, de

modo que a pessoa atribui ao próprio ato motivos falsos ou tratamotivos secundários como essenciais. É freqüente o sucesso dar aum ato o brilho honesto da boa consciência, e o fracasso lançar a

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sombra do remorso sobre uma ação digna de respeito. Daí resulta aconhecida prática do político que pensa: "Dêem-me apenas osucesso: com ele terei a meu lado todas as almas honestas — e metornarei honesto diante de mim mesmo". — De modo semelhante, osucesso pode tomar o lugar do melhor argumento. Muitos homenscultos acham, ainda hoje, que a vitória do cristianismo sobre afilosofia grega seria uma prova da maior verdade do primeiro — embora nesse caso o mais grosseiro e violento tenha triunfadosobre o mais espiritual e delicado. Para ver onde se acha a verdademaior, basta notar que as ciências que nasciam retomaram ponto a ponto a filosofia de Epicuro, mas rejeitaram ponto a ponto o

cristianismo.

69.  Amor e justiça. — Por que superestimamos o amor emdetrimento da justiça e dizemos dele as coisas mais belas, como sefosse algo muito superior a ela? Não será ele visivelmente maisestúpido? — Sem dúvida, mas justamente por isso mais agradável para todos. O amor é estúpido e possui uma abundante cornucópia;

dela retira os dons que distribui a cada pessoa, ainda que ela não osmereça, nem sequer os agradeça. Ele é imparcial como a chuva,que, segundo a Bíblia e a experiência, molha até os ossos nãoapenas o injusto, mas ocasionalmente também o justo.

70.  Execuções. — O que faz com que toda execução nosofenda mais que um assassinato? É a frieza dos juízes, a penosa preparação, a percepção de que um homem é ali utilizado como ummeio para amedrontar outros. Pois a culpa não é punida, mesmoque houvesse uma; esta se acha nos educadores, nos pais, noambiente, em nós, não no assassino — refiro-me às circunstânciasdeterminantes.

71.  A esperança. — Pandora trouxe o vaso38  que continha osmales e o abriu. Era o presente dos deuses aos homens,exteriormente um presente belo e sedutor, denominado "vaso dafelicidade". E todos os males, seres vivos alados, escaparamoando: desde então vagueiam e prejudicam os homens dia e noite.

Um único mal ainda não saíra do recipiente; então, seguindo aontade de Zeus, Pandora repôs a tampa, e ele permaneceu dentro.

O homem tem agora para sempre o vaso da felicidade, e pensamaravilhas do tesouro que nele possui; este se acha à suadisposição: ele o abre quando quer; pois não sabe que Pandora lhetrouxe o recipiente dos males, e para ele o mal que restou é o maior dos bens — é a esperança. — Zeus quis que os homens, por maistorturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida,mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a

esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga osuplício dos homens.

72.  O grau de inflamabilidade moral é desconhecido. — Dofato de termos tido ou não certas visões ou impressões abaladoras, por exemplo, um pai injustamente condenado, morto ou

martirizado, uma mulher infiel, um cruel ataque inimigo, dependeque as nossas paixões atinjam a incandescência e dirijam ou não a

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nossa vida inteira. Ninguém sabe a que podem levar osacontecimentos, a compaixão, a indignação, ninguém conhece oseu grau de inflamabilidade. Pequenas circunstâncias miseráveistornam miserável; geralmente não é a qualidade, mas a quantidadedas vivências que determina o homem baixo ou elevado, no bem eno mal.

73. O mártir contra a vontade. — Em certo partido havia umhomem que era covarde e medroso demais para contradizer seuscamaradas: usavam-no para todo serviço, dele alcançavam tudo, porque temia a má opinião de seus companheiros mais do que a

morte; era uma alma fraca e miserável. Eles perceberam isso e,devido às características mencionadas, dele fizeram um herói e atémesmo um mártir, por fim. Embora esse homem covarde sempredissesse intimamente não, com os lábios falava sempre sim, mesmono patíbulo, quando morreu pelas idéias de seu partido: pois a seulado estava um de seus velhos companheiros, que o tiranizou de talmodo, com a palavra e o olhar, que ele sofreu a morte da maneira

mais decorosa e desde então é festejado como mártir e grandecaráter.

74.  Medida para todos os dias. — Raramente se erra, quandose liga as ações extremas à vaidade, as medíocres ao costume e asmesquinhas ao medo.

75.  Mal-entendido acerca da virtude. — Quem conheceu oício sempre ligado ao prazer, como a pessoa que teve uma

uventude ávida de prazeres, imagina que a virtude deve estar ligadaao desprazer. Mas quem foi muito atormentado por paixões eícios anseia encontrar na virtude o sossego e a felicidade da alma.

Daí ser possível que dois virtuosos não se entendam

absolutamente.

76. O asceta. — O asceta faz da virtude uma necessidade.39

77.  A honra transferida da pessoa para a causa. — Geralmentereverenciamos os atos de amor e de sacrifício em favor do

 próximo, onde quer que eles se mostrem. Com isso aumentamos aa preciação das coisas  que dessa maneira são amadas, ou pelasquais se faz um sacrifício: embora elas talvez não tenham muitoalor em si. Um exército bravo nos convence da causa pela qual

luta.

78.  A ambição como substituta do sentimento moral . — O

sentimento moral não pode faltar nas naturezas que não têmambição. Os ambiciosos se arrumam sem ele, quase com o mesmosucesso. Por isso os filhos de famílias modestas, alheias à ambição,costumam transformar-se rapidamente em consumados cafajestes,quando perdem o sentimento moral.

79.  A vaidade enriquece. — Como seria pobre o espíritohumano sem a vaidade! Com ela, no entanto, ele semelha umempório repleto e sempre reabastecido, que atrai compradores de

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toda espécie: quase tudo eles podem achar e adquirir, desde quetragam a moeda válida (a admiração).

80. O ancião e a morte. — Deixando à parte as exigências da

religião, é lícito perguntar: por que seria mais louvável para umhomem envelhecido, que sente a diminuição de suas forças, esperar seu lento esgotamento e dissolução, em vez de, em claraconsciência, fixar um termo para si? Neste caso o suicídio é umaação perfeitamente natural e próxima, que, sendo uma vitória darazão, deveria suscitar respeito: e realmente o suscitava, naquelestempos em que os grandes da filosofia grega e os mais valentes

 patriotas romanos costumavam recorrer ao suicídio. Já o anseio de prolongar dia a dia a existência, com angustiante assistência médicae as mais penosas condições de vida, sem força para se aproximar do verdadeiro fim, é algo muito menos respeitável. — As religiõessão ricas em expedientes contra a necessidade do suicídio: com istoelas se insinuam junto aos que são enamorados da vida.

81.  Enganos do sofredor e do perpetrador . — Quando umhomem rico toma um bem ao pobre (por exemplo, um prínciperouba a amada ao plebeu), produz-se um engano no pobre; ele achaque o outro deve ser um infame, para tomar-lhe o pouco que tem.Mas o outro não percebe tão profundamente o valor de umdeterminado bem, pois está acostumado a ter muitos; por isso nãoé capaz de se pôr no lugar do pobre, e de modo algum lhe faz tantainjustiça como ele crê. Cada um tem do outro uma idéia falsa. Ainjustiça do poderoso, o que mais causa revolta na história, demodo algum é tão grande como parece. Já o sentimento hereditáriode ser alguém superior, com pretensões superiores, torna a pessoafria e deixa a consciência tranqüila: nada percebemos de injusto,quando a diferença entre nós e outro ser é muito grande, e

matamos um mosquito, por exemplo, sem qualquer remorso. Demaneira que não há sinal de maldade em Xerxes (que mesmo osgregos descrevem como extraordinariamente nobre), quando eletoma a um pai seu filho e o faz esquartejar, porque haviamanifestado desconfiança medrosa e agourenta quanto à expediçãomilitar:40  nesse caso o indivíduo é eliminado como um insetoirritante, ele se encontra baixo demais para que lhe seja permitido

 provocar, num conquistador do mundo, sentimentos que o aflijam por muito tempo. Sim, nenhum homem cruel é cruel como  acreditao homem maltratado; a idéia da dor não é a mesma coisa que osofrimento dela. O mesmo se dá com o juiz injusto, ou com oornalista que engana a opinião pública mediante pequenasdesonestidades. Em todos esses casos, causa e efeito estãoenvoltos em grupos de idéias e sentimentos muito distintos;

enquanto inadvertidamente se pressupõe que o perpetrador e osofredor pensam e sentem do mesmo modo, e conforme esse pressuposto se mede a culpa de um pela dor do outro.

82.  A pele da alma. — Assim como os ossos, a carne, asentranhas e os vasos sangüíneos são envolvidos por uma pele quetorna a visão do homem suportável, também as emoções e paixõesda alma são revestidas de vaidade: ela é a pele da alma.

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83. O sono da virtude. — Depois de dormir, a virtude acordarevigorada.

84.   A sutileza da vergonha. — Os homens não se

envergonham de pensar coisas sujas, mas ao imaginar que lhes sãoatribuídos esses pensamentos sujos.

85.  A maldade é rara. — Os homens, em sua maioria, estãoocupados demais consigo mesmos para serem malvados.

86.  O fiel da balança. — Elogiamos ou censuramos, adepender de qual nos dá mais oportunidade de fazer brilhar nossoulgamento.

87.  Lucas 18,14 corrigido. — Quem se rebaixa quer ser exaltado.

88.  Impedimento do suicídio. — Há um direito segundo o qual podemos tirar a vida de um homem, mas nenhum direito que nos permita lhe tirar a morte: isso é pura crueldade.

89.  Vaidade. — Cuidamos da boa opinião das pessoas, primeiro porque ela nos é útil, depois porque queremos lhes dar contentamento (os filhos aos pais, os alunos aos mestres e as pessoas benévolas a todas as demais). Apenas quando alguém achaimportante a boa opinião alheia sem considerar o proveito ou odesejo de contentar é que falamos de vaidade. Nesse caso oindivíduo quer contentar a si mesmo, mas à custa de seussemelhantes, induzindo-os a uma falsa opinião a seu respeito ouisando um grau de "boa opinião" em que esta vem a ser penosa

 para todos os demais (ao suscitar inveja). Normalmente a pessoadeseja, com a opinião alheia, atestar e reforçar para si a opinião quetem de si mesma; mas o poderoso hábito de autoridade — hábitotão velho quanto o ser humano — leva muitos a basear também naautoridade a fé em si mesmos, isto é, a recebê-la tão-só das mãosde outros: confiam mais no julgamento alheio do que no próprio. — O interesse em si mesmo, o desejo de dar satisfação a si mesmo

atinge no vaidoso um tal nível, que ele induz os outros a umaavaliação falsa e muito elevada de si e depois se atém à autoridadedos outros: ou seja, introduz o erro e acredita nele. — Devemosentão admitir que os vaidosos querem agradar não tanto aos demaisquanto a si mesmos, e nisso chegam a negligenciar o proveito próprio; pois freqüentemente cuidam em despertar nos seussemelhantes um ânimo desfavorável, hostil, invejoso, e portanto

 prejudicial, apenas para ter satisfação consigo, fruição de simesmos.

90.  Limites do amor ao próximo. — Todo homem que declarouser outro um estúpido, um mau companheiro, irrita-se quandoafinal ele demonstra não sê-lo.

91.  Moralité larmoyante  [Moralidade lacrimosa].41  — Quanto

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 prazer causa a moralidade! Pensemos apenas no mar de lágrimasagradáveis que já fluiu nos relatos de ações nobres e generosas!Esse encanto da vida desapareceria, se predominasse a crença nairresponsabilidade total.

92. Origem da justiça. — A justiça (eqüidade) tem origem entrehomens de aproximadamente o mesmo poder , como Tucídides (noterrível diálogo entre os enviados atenienses e mélios)42

corretamente percebeu: quando não existe preponderânciaclaramente reconhecível, e um combate resultaria em prejuízoinconseqüente para os dois lados, surge a idéia de se entender e de

negociar as pretensões de cada lado: a troca  é o caráter inicial daustiça. Cada um satisfaz o outro, ao receber aquilo que estima maisque o outro. Um dá ao outro o que ele quer, para tê-lo como seu a partir de então, e por sua vez recebe o desejado. A justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio sob o pressuposto de um poderio mais ou menos igual: originalmente a vingança pertence aodomínio da justiça, ela é um intercâmbio. Do mesmo modo a

gratidão. — A justiça remonta naturalmente ao ponto de vista deuma perspicaz autoconservação, isto é, ao egoísmo da reflexão quediz: "por que deveria eu prejudicar-me inutilmente e talvez nãoalcançar a minha meta?". — Isso quanto à origem da justiça. Dadoque os homens, conforme o seu hábito intelectual, esqueceram  afinalidade original das ações denominadas justas e eqüitativas, eespecialmente porque durante milênios as crianças foram ensinadas

a admirar e imitar essas ações, aos poucos formou-se a aparênciade que uma ação justa é uma ação altruísta; mas nesta aparência se baseia a alta valorização que ela tem, a qual, como todas as

alorizações, está sempre em desenvolvimento: pois algo altamentealorizado é buscado, imitado, multiplicado com sacrifício, e se

desenvolve porque o valor do esforço e do zelo de cada indivíduo étambém acrescido ao valor da coisa estimada. — Quão poucomoral pareceria o mundo sem o esquecimento! Um poeta poderiadizer que Deus instalou o esquecimento como guardião na soleirado templo da dignidade humana.

93.  Do direito do mais fraco. — Quando alguém se sujeita sobcondições a um outro mais poderoso, o caso de uma cidade sitiada,

 por exemplo, a condição que opõe a isso é poder destruir a simesmo, incendiar a cidade, causando assim ao poderoso umagrande perda. Por isso ocorre uma espécie de paridade, com basena qual se podem estabelecer direitos. O inimigo enxerga vantagemna conservação. — Nesse sentido há também direitos entreescravos e senhores, isto é, exatamente na medida em que a possedo escravo é útil e importante para o seu senhor. O direito  vai

originalmente até onde  um parece  ao outro valioso, essencial,indispensável, invencível e assim por diante. Nisso o mais fracotambém tem direitos, mas menores. Daí o famoso unusquisquetantum juris habet, quantum potentia vale  [cada um tem tantaustiça quanto vale seu poder] (ou, mais precisamente: quantumotentia valere creditur  [quanto se acredita valer seu poder]).43

94.  As três fases da moralidade até agora. — O primeiro sinalde que o animal se tornou homem ocorre quando seus atos já não

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dizem respeito ao bem-estar momentâneo, mas àquele duradouro,ou seja, quando o homem busca a utilidade, a adequação a um fim:então surge pela primeira vez o livre domínio da razão. Um grauainda mais elevado se alcança quando ele age conforme o princípioda honra, em virtude do qual ele se enquadra socialmente, sujeita-sea sentimentos comuns, o que o eleva bem acima da fase em queapenas a utilidade entendida pessoalmente o guiava: ele respeita equer ser respeitado, ou seja: ele concebe o útil como dependentedaquilo que pensa dos outros e daquilo que os outros pensam dele.Por fim, no mais alto grau da moralidade até agora, ele ageconforme a sua medida das coisas e dos homens, ele próprio define

 para si e para outros o que é honroso e o que é útil; torna-se olegislador das opiniões, segundo a noção cada vez maisdesenvolvida do útil e do honroso. O conhecimento o capacita a preferir o mais útil, isto é, a utilidade geral duradoura, à utilidade pessoal, o honroso reconhecimento de valor geral e duradouroàquele momentâneo: ele vive e age como indivíduo coletivo.

95.  Moral do indivíduo maduro. — Até agora a impessoalidadefoi vista como a verdadeira característica da ação moral; edemonstrou-se que no início foi a consideração pela utilidade geralque fez todas as ações impessoais serem louvadas e distinguidas.Mas não estaria iminente uma significativa transformação dessamaneira de ver, agora que cada vez mais se percebe que justamentena consideração mais pessoal   possível se acha também a maior 

utilidade para o conjunto; de modo que precisamente o agir estritamente pessoal corresponde ao conceito atual de moralidade(entendida como utilidade geral)? Fazer de si uma pessoa inteira, eem tudo quanto se faz ter em vista o seu bem supremo — isso levamais longe do que as agitações e ações compassivas em favor deoutros. Sem dúvida, todos nós sofremos ainda com a pouquíssimaatenção dada ao que é pessoal em nós; ele está mal desenvolvido — confessemos que dele subtraímos violentamente nosso interesse,sacrificando-o ao Estado, à ciência, ao carente de ajuda, como sefosse a parte ruim, que tivesse de ser sacrificada. E agoraqueremos trabalhar para o próximo, mas apenas enquanto vemosnesse trabalho nossa vantagem suprema, nem mais, nem menos.Trata-se apenas de saber o que se entende por vantagem própria;

ustamente o indivíduo imaturo, não desenvolvido e grosseiroentenderá isso no sentido mais grosseiro.

96.  Costumes e moral . — Ser moral, morigerado, ético44

significa prestar obediência a uma lei ou tradição há muitoestabelecida. Se alguém se sujeita a ela com dificuldade ou com prazer é indiferente, bastando que o faça. "Bom" é chamado aquele

que, após longa hereditariedade e quase por natureza, praticafacilmente e de bom grado o que é moral, conforme seja (por exemplo, exerce a vingança quando exercê-la faz parte do bomcostume, como entre os antigos gregos). Ele é denominado bom porque é bom "para algo"; mas como, na mudança dos costumes, a benevolência, a compaixão e similares sempre foram sentidos como"bons para algo", como úteis, agora sobretudo o benevolente, o

 prestativo, é chamado de "bom". Mau é ser "não moral" (imoral), praticar o mau costume, ofender a tradição, seja ela racional ou

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talvez tenha herdado muita coisa dos animais, que visivelmentesentem prazer ao brincar uns com os outros, sobretudo uma mãecom seus filhotes. E lembremos as relações sexuais, que fazemquase toda fêmea parecer interessante a todo macho e vice-versa,tendo em vista o prazer. Em geral, a sensação de prazer com basenas relações humanas torna o homem melhor; a alegria comum, o prazer desfrutado em conjunto a aumenta, dá segurança aoindivíduo, torna-o mais afável, dissolve a desconfiança e a inveja: pois ele se sente bem e vê que o mesmo sucede ao outro. Asmanifestações de prazer semelhantes  despertam a fantasia daempatia, o sentimento de ser igual: o mesmo fazem os sofrimentos

comuns, as mesmas tormentas, os mesmos perigos e inimigos.Com base nisso se constrói depois a mais antiga aliança: cujosentido é defender-se e eliminar conjuntamente um desprazer ameaçador, em proveito de cada indivíduo. E assim o instinto socialnasce do prazer.

99. O que há de inocente nas chamadas más ações. — Todas

as "más" ações são motivadas pelo impulso de conservação ou,mais exatamente, pelo propósito individual de buscar o prazer eevitar o desprazer; são, assim, motivadas, mas não são más."Causar dor em si" não existe, salvo no cérebro dos filósofos, etampouco "causar prazer em si" (compaixão no sentidoschopenhaueriano). Na condição anterior   ao Estado, matamos oser, homem ou macaco, que queira antes de nós apanhar uma fruta

da árvore, quando temos fome e corremos para a árvore: comoainda hoje faríamos com um animal, ao andar por regiões inóspitas. — As más ações que atualmente mais nos indignam baseiam-se noerro de [imaginar] que o homem que as comete tem livre-arbítrio,ou seja, de que dependeria do seu bel-prazer   não nos fazer essemal. Esta crença no bel-prazer suscita o ódio, o desejo de vingança,a perfídia, toda a deterioração da fantasia, ao passo que nosirritamos muito menos com um animal, por considerá-loirresponsável. Causar sofrimento não pelo impulso de conservação,mas por represália — é conseqüência de um juízo errado, e por isso também inocente. O indivíduo pode, na condição que precedeo Estado, tratar outros seres de maneira dura e cruel, visandointimidá-los: para garantir sua existência, através de provas

intimidantes de seu poder. Assim age o homem violento, o poderoso, o fundador original do Estado, que subjuga os maisfracos. Tem o direito de fazê-lo, como ainda hoje o Estado o possui; ou melhor: não há direito que possa impedir que o faça. Sóentão pode ser preparado o terreno para toda moralidade, quandoum indivíduo maior ou um indivíduo coletivo, como a sociedade, oEstado, submete os indivíduos, retirando-os de seu isolamento e os

reunindo em associação. A moralidade é antecedida pela coerção, eela mesma é ainda por algum tempo coerção, à qual a pessoa seacomoda para evitar o desprazer. Depois ela se torna costume,mais tarde obediência livre, e finalmente quase instinto: então, comotudo o que há muito tempo é habitual e natural, acha-se ligada ao prazer — e se chama virtude.

100.  Pudor . — O pudor existe em toda parte onde há um"mistério"; e este é um conceito religioso, que tinha grande alcance

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na época mais antiga da cultura humana. Em toda parte havia áreascircunscritas, às quais o direito divino negava o acesso, a não ser em determinadas condições: puramente espaciais, antes de tudo, namedida em que certos lugares não podiam ser pisados pelos pésdos não-iniciados, que também sentiam horror e medo na suaizinhança. De maneiras diversas este sentimento foi transferido

 para outras relações, por exemplo, para as relações sexuais, que,sendo privilégio e ádito45 da idade madura, deviam ser subtraídas àisão da juventude, para seu próprio bem: acreditava-se que muitos

deuses cuidavam de proteger e manter sagradas essas relações, postados como sentinelas na câmara nupcial. (Em turco essa

câmara se chama harém, "santuário", é designada pela mesma palavra que se usa para os átrios das mesquitas.) Assim também arealeza, como um centro que irradia poder e esplendor, é para osúdito um mistério cheio de pudor e de sigilo: ainda hoje podemossentir muitos efeitos disso, em povos que não se incluemabsolutamente entre os pudicos. De modo semelhante, todo omundo dos estados interiores, isto que se chama "alma", é ainda

hoje um mistério para os não-filósofos, depois de por um tempoinfinito a considerarem digna de procedência divina e de relaçõesdivinas: ela é um ádito, portanto, e suscita pudor.

101.  Não julgueis.46 — Devemos ter o cuidado de não incorrer na censura injusta, ao refletir sobre épocas passadas. A injustiça daescravidão, a crueldade na sujeição de pessoas e povos não deve

ser medida pelos nossos critérios. Pois naquele tempo o instinto deustiça não estava ainda desenvolvido. Quem pode censurar ogenebrês Calvino por fazer queimar o doutor Serveto? Foi um atocoerente, que decorreu de suas convicções, e do mesmo modo aInquisição tinha suas razões; sucede que as idéias dominantes eramerradas e tiveram uma conseqüência que nos parece dura, porquese tornaram estranhas para nós. E o que é o suplício de umhomem, comparado aos eternos castigos do inferno para quasetodos? Entretanto esta concepção dominou o mundo inteiro daépoca, sem que o seu horror muito maior prejudicasseessencialmente a concepção de um deus. Em nosso meio, tambémos sectários políticos são tratados de maneira dura e cruel, mas,tendo aprendido a crer na necessidade do Estado, não sentimos a

crueldade tanto como no caso em que reprovamos as idéias. Acrueldade com os animais, entre as crianças e os italianos, temorigem na incompreensão; devido aos interesses doutrinários daIgreja, os animais foram colocados bem abaixo dos homens. — Muitas coisas terríveis e desumanas na história, nas quaisdificilmente se crê, são amenizadas pela consideração de que osujeito que ordena e o que executa são pessoas diferentes: o

 primeiro não vê o fato, logo não tem a imaginação impressionada; osegundo obedece a um superior, não se sente responsável. Por faltade imaginação, os príncipes e chefes militares parecem cruéis eduros em sua maioria, e não o são. — O egoísmo não é mau, porque a idéia de "próximo" — a palavra é de origem cristã e nãocorresponde à verdade — é muito fraca em nós; e nos sentimos,em relação a ele, quase tão livres e irresponsáveis quanto em

relação a pedras e plantas. Saber que o outro sofre é algo que seaprende, e que nunca pode ser aprendido inteiramente.

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102.  "O homem sempre age bem" . — Não acusamos anatureza de imoral quando ela nos envia uma tempestade e nosmolha; por que chamamos de imoral o homem nocivo? Porqueneste caso supomos uma vontade livre, operando arbitrariamente, enaquele uma necessidade. Mas tal diferenciação é um erro. Alémdisso, nem a ação propositadamente nociva é considerada sempreimoral; por exemplo, matamos um mosquito intencionalmente esem hesitação, porque o seu zumbido nos desagrada; condenamoso criminoso intencionalmente e o fazemos sofrer, para proteger anós e à sociedade. No primeiro caso é o indivíduo que, paraconservar a si mesmo ou apenas evitar um desprazer, faz sofrer 

intencionalmente; no segundo é o Estado. Toda moral admite açõesintencionalmente prejudiciais em caso de legítima defesa: isto é,quando se trata da autoconservação! Mas esses dois pontos deista são suficientes  para explicar todas as más ações que os

homens praticam uns contra os outros: o indivíduo quer para si o prazer ou quer afastar o desprazer; a questão é sempre, emqualquer sentido, a autoconservação. Sócrates e Platão estão

certos: o que quer que o homem faça, ele sempre faz o bem, isto é:o que lhe parece bom (útil) segundo o grau de seu intelecto,segundo a eventual medida de sua racionalidade.

103. O que há de inocente na maldade. — A maldade não tem por objetivo o sofrimento do outro em si, mas nosso próprio prazer, em forma de sentimento de vingança ou de uma mais forte

excitação nervosa, por exemplo. Já um simples gracejo demonstracomo é prazeroso exercitar nosso poder sobre o outro e chegar aoagradável sentimento da superioridade. Então o imoral  consiste emter prazer a partir do desprazer alheio? É diabólica a satisfaçãocom o mal alheio,47  como quer Schopenhauer? Na naturezaobtemos prazer quebrando galhos, removendo pedras, lutando comanimais selvagens, para nos tornarmos conscientes de nossa força.Saber   que outro sofre por nosso intermédio tornaria imoral amesma coisa pela qual normalmente não nos sentimosresponsáveis? Se não o soubéssemos, contudo, também nãoteríamos prazer em nossa própria superioridade, que justamente sóse pode dar a conhecer   no sofrimento alheio, no gracejo, por exemplo. Em si mesmo o prazer não é bom nem mau; de onde viria

a determinação de que, para ter prazer consigo, não se deveriasuscitar o desprazer alheio? Unicamente do ponto de vista dautilidade, ou seja, considerando as conseqüências, o desprazer eventual, quando o prejudicado ou o Estado que o representa leva aesperar punição e vingança: apenas isso, originalmente, pode ter fornecido o fundamento para negar a si mesmo tais ações. — Assim como a maldade não visa ao sofrimento alheio em si, como

á disse, também a compaixão não tem por objetivo o prazer dooutro. Pois ela abriga no mínimo dois (talvez muitos mais)elementos de prazer pessoal, e é, desta forma, fruição de si mesma: primeiro como prazer da emoção, a espécie de compaixão que hána tragédia, e depois, quando impele à ação, como prazer dasatisfação no exercício do poder. Além disso, se uma pessoa quesofre nos é bastante próxima, livramos a nós mesmos de um

sofrimento, ao realizar atos compassivos. — À parte algunsfilósofos, os homens sempre situaram a compaixão num nível

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 baixo, na hierarquia dos sentimentos morais; e com razão.

104.  Legítima defesa. — Se admitimos a legítima defesa comomoral, devemos também admitir todas as expressões do chamado

egoísmo imoral: causamos a dor, roubamos ou matamos a fim denos conservar ou nos proteger, a fim de prevenir uma desgraça pessoal; mentimos, quando a astúcia e o fingimento são meioscorretos para a autoconservação. Causar dano intencionalmente,quando está em jogo nossa existência ou segurança (conservaçãode nosso bem-estar), é admitido como sendo moral; desse ponto deista o próprio Estado causa danos, ao decretar penas. Na causação

involuntária de danos não pode, naturalmente, haver o imoral; nelagoverna o acaso. Há então uma espécie de dano intencional em quenão  esteja em jogo a nossa existência, a conservação de nosso bem-estar? Existe um comportamento danoso por pura maldade,na crueldade, por exemplo? Quando não sabemos o mal que fazuma ação, ela não é uma ação maldosa; a criança não é malignanem perversa com os animais: ela os investiga e os destrói como

um brinquedo. Mas alguma vez se sabe inteiramente quanto mal fazuma ação a um outro ser? Até onde se estende o nosso sistemanervoso, nós nos protegemos contra a dor: se o seu alcance fossemaior, isto é, se incluísse nossos semelhantes, não faríamos mal aninguém (a não ser nos casos em que o fazemos a nós mesmos,isto é, quando nos cortamos para nos curar, nos esforçamos e nosfatigamos em prol da saúde). Nós inferimos  por analogia que uma

coisa faz mal a alguém, e por meio da lembrança e da força daimaginação podemos nós mesmos passar mal com aquilo. Mas quediferença persiste entre uma dor de dente e a dor (compaixão) provocada pela visão de uma dor de dente? Ou seja: nocomportamento danoso por aquilo que se chama maldade, o grauda dor produzida é para nós desconhecido, em todo caso; mas namedida em que há um prazer  na ação (sentimento do próprio poder,da intensidade da própria excitação), a ação ocorre para conservar o bem-estar do indivíduo, sob um ponto de vista similar ao dalegítima defesa, ao da mentira por necessidade. Sem prazer não háida; a luta pelo prazer é a luta pela vida. Se o indivíduo trava essa

luta de maneira que o chamem de bom  ou de maneira que ochamem de mau, é algo determinado pela medida e a natureza de

seu intelecto.

105.  A justiça premiadora. — Quem compreendeu plenamentea teoria da completa irresponsabilidade já não pode incluir achamada justiça punitiva e premiadora no conceito de justiça; seesta consiste em dar a cada um o que é seu. Pois aquele que é punido não merece a punição: é apenas usado como meio para

desencorajar futuramente certas ações; também aquele que é premiado não merece o prêmio: ele não podia agir de outro modo.O prêmio tem apenas o sentido, portanto, de um encorajamento para ele e para outros, a fim de proporcionar um motivo para açõesfuturas; o louvor é dirigido àquele que corre na pista, não àqueleque atingiu a meta. Nem o castigo nem o prêmio são algo devido auma pessoa como seu; são-lhe dados por razões de utilidade, sem

que ela possa reivindicá-los justamente. Deve-se dizer que "o sábionão premia porque se agiu bem", tal como já se disse que "o sábio

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não castiga porque se agiu mal, mas para que não se aja mal". Sedesaparecessem o castigo e o prêmio, acabariam os motivos maisfortes que nos afastam de certas ações e nos impelem a outras; ointeresse dos homens requer a permanência dos dois; e, na medidaem que o castigo e o prêmio, a censura e o louvor afetamsensivelmente a vaidade, o mesmo interesse requer também a permanência da vaidade.

106.   Junto à cachoeira. — À vista de uma cachoeira,acreditamos ver nas inúmeras curvas, serpenteios, quebras deondas, o arbítrio da vontade e do gosto; mas tudo é necessário,

cada movimento é matematicamente calculável. Assim tambémcom as ações humanas; deveríamos poder calcular previamentecada ação isolada, se fôssemos oniscientes, e do mesmo modocada avanço do conhecimento, cada erro, cada maldade. É certoque mesmo aquele que age se prende à ilusão do livre-arbítrio; senum instante a roda do mundo parasse, e existisse uma inteligênciaonisciente, calculadora, a fim de aproveitar essa pausa, ela poderia

relatar o futuro de cada ser até as mais remotas eras vindouras,indicando cada trilha por onde essa roda passará. A ilusão acercade si mesmo daquele que age, a suposição do livre-arbítrio, é partedesse mecanismo que seria calculado.

107.   Irresponsabilidade e inocência . — A totalirresponsabilidade do homem por seus atos e seu ser é a gota maisamarga que o homem do conhecimento tem de engolir, se estavahabituado a ver na responsabilidade e no dever a carta de nobrezade sua humanidade. Todas as suas avaliações, distinções, aversões,são assim desvalorizadas e se tornam falsas: seu sentimento mais profundo, que ele dispensava ao sofredor, ao herói, baseava-senum erro; ele já não pode louvar nem censurar, pois é absurdo

louvar e censurar a natureza e a necessidade. Tal como ele ama a boa obra de arte, mas não a elogia, pois ela não pode senão ser elamesma, tal como ele se coloca diante das plantas, deve se colocar diante dos atos humanos e de seus próprios atos. Neles podeadmirar a força, a beleza, a plenitude, mas não lhes pode achar nenhum mérito: o processo químico e a luta dos elementos, a dor do doente que anseia pela cura, possuem tanto mérito quanto os

embates psíquicos e as crises em que somos arrastados para lá e para cá por motivos diversos, até enfim nos decidirmos pelo maisforte — como se diz (na verdade, até o motivo mais forte decidir acerca de nós). Mas todos esses motivos, por mais elevados quesejam os nomes que lhes damos, brotaram das mesmas raízes queacreditamos conter os maus venenos; entre as boas e as más açõesnão há uma diferença de espécie, mas de grau, quando muito. Boas

ações são más ações sublimadas; más ações são boas açõesembrutecidas, bestificadas. O desejo único de autofruição doindivíduo (junto com o medo de perdê-la) satisfaz-se em todas ascircunstâncias, aja o ser humano como possa, isto é, como tenhade agir: em atos de vaidade, de vingança, prazer, utilidade, maldade,astúcia, ou em atos de sacrifício, de compaixão, de conhecimento.Os graus da capacidade de julgamento decidem o rumo em que

alguém é levado por esse desejo; toda sociedade, todo indivíduoguarda continuamente uma hierarquia de bens, segundo a qual

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determina suas ações e julga as dos outros. Mas ela mudacontinuamente, muitas ações são chamadas de más e são apenasestúpidas, porque o grau de inteligência que se decidiu por elas era bastante baixo. E em determinado sentido todas  as ações são aindaestúpidas, pois o mais elevado grau de inteligência humana que pode hoje ser atingido será certamente ultrapassado: então todos osnossos atos e juízos parecerão, em retrospecto, tão limitados e precipitados como nos parecem hoje os atos e juízos de povosselvagens e atrasados. — Compreender tudo isso pode causar dores profundas, mas depois há um consolo: elas são as dores do parto. A borboleta quer romper seu casulo, ela o golpeia, ela o

despedaça: então é cegada e confundida pela luz desconhecida, peloreino da liberdade. Nos homens que são capazes  dessa tristeza —  poucos o serão! — será feita a primeira experiência para saber se ahumanidade pode se transformar, de moral em sábia . O sol de umnovo evangelho lança seu primeiro raio sobre o mais alto cume, naalma desses indivíduos: aí se acumulam as névoas, mais densas doque nunca, e lado a lado se encontram o brilho mais claro e a

 penumbra mais turva. Tudo é necessidade — assim diz o novoconhecimento: e ele próprio é necessidade. Tudo é inocência: e oconhecimento é a via para compreender essa inocência. Se o prazer, o egoísmo, a vaidade são necessários  para a geração dosfenômenos morais e do seu rebento mais elevado, o sentido para aerdade e justiça no conhecimento; se o erro e o descaminho da

imaginação foram o único meio pelo qual a humanidade pôde

gradualmente se erguer até esse grau de auto-iluminação elibertação — quem poderia desprezar esses meios? Quem poderiaficar triste, percebendo a meta a que levam esses caminhos? Tudono âmbito da moral veio a ser, é mutável, oscilante, tudo está emfluxo, é verdade: — mas tudo se acha também numa corrente: emdireção a uma meta. Pode continuar a nos reger o hábito queherdamos de avaliar, amar, odiar erradamente, mas sob o influxo

do conhecimento crescente ele se tornará mais fraco: um novohábito, o de compreender, não amar, não odiar, abranger com oolhar, pouco a pouco se implanta em nós no mesmo chão, e daquia milhares de anos talvez seja poderoso o bastante para dar àhumanidade a força de criar o homem sábio e inocente (conscienteda inocência), da mesma forma regular como hoje produz ohomem tolo, injusto, consciente da culpa48 — que é, não o oposto,mas o precursor necessário daquele.

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Capítulo terceiroA VIDA RELIGIOSA

108.   A dupla luta contra o infortúnio. — Quando uminfortúnio nos atinge, podemos superá-lo de dois modos:eliminando a sua causa ou modificando o efeito que produz emnossa sensibilidade; ou seja, reinterpretando o infortúnio como um bem, cuja utilidade talvez se torne visível depois. A religião e a arte(e também a filosofia metafísica) se esforçam em produzir amudança da sensibilidade, em parte alterando nosso juízo sobre osacontecimentos (por exemplo, com ajuda da frase: "Deus castiga aquem ama"), em parte despertando prazer na dor, na emoçãomesma (ponto de partida da arte trágica). Quanto mais alguém seinclina a reinterpretar e ajustar, tanto menos pode perceber esuprimir as causas do infortúnio; o alívio e a anestesia

momentâneos, tal como se faz na dor de dente, por exemplo, bastam-lhe mesmo nos sofrimentos mais graves. Quanto maisdiminuir o império das religiões e de todas as artes da narcose,tanto mais os homens se preocuparão em realmente eliminar osmales: o que, sem dúvida, é mau para os poetas trágicos — pois hácada vez menos matéria para a tragédia, já que o reino do destinoinexorável e invencível cada vez mais se estreita, — mas é ainda

 pior para os sacerdotes: pois até hoje eles viveram da anestesia dosmales humanos.

109.  Sofrimento é conhecimento. — Como gostaríamos detrocar essas falsas afirmações dos sacerdotes, segundo as quaisexiste um Deus que de nós exige o bem, que é guardião etestemunha de toda ação, todo momento, todo pensamento, que

nos ama, que em toda desgraça deseja o melhor para nós — comogostaríamos de trocá-las por verdades que fossem tão salutares,calmantes e benfazejas como esses erros! Mas tais verdades nãoexistem; a filosofia pode lhes opor, no máximo, aparênciasmetafísicas (também inverdades, no fundo). A tragédia é que não podemos acreditar nesses dogmas da religião e da metafísica,quando trazemos no coração e na cabeça o rigoroso método daerdade, e que por outro lado, graças à evolução da humanidade,

tornamo-nos tão delicados, suscetíveis e sofredores a ponto de precisar de meios de cura e de consolo da mais alta espécie; daísurge o perigo de o homem se esvair em sangue ao conhecer aerdade. Byron exprimiu isso em versos imortais:

Sorrow is knowledge: they who know the most  Must mourn the deepest o'er the fatal truth,The tree of knowledge is not that of life.[Sofrimento é conhecimento: aqueles que mais sabemDevem prantear mais profundamente a verdade fatal,A árvore do conhecimento não é a da vida.]49

Para tais preocupações não há melhor remédio que evocar asolene frivolidade de Horácio, ao menos para os piores instantes e

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eclipses da alma, e juntamente com ele dizer para si:

quid aeternis minoremconsiliis animum fatigas?cur non sub alta platano vel hac pinu jacentes — [por que afadigas a alma pequenacom desígnios eternos? por que não deitar sob o alto plátanoou sob este pinheiro...]50

Mas certamente a frivolidade ou a melancolia, em qualquer grau, é melhor do que uma meia-volta ou deserção romântica, doque uma aproximação ao cristianismo sob qualquer forma: pois no presente estado do conhecimento já não é possível nosrelacionarmos com ele sem manchar irremediavelmente nossaconsciência intelectual   e abandoná-la diante de nós mesmos e dosoutros. Essas dores podem ser bastante penosas: mas sem dores

não é possível tornar-se guia e educador da humanidade; e coitadodaquele que quisesse sê-lo e não mais tivesse essa puraconsciência!

110.  A verdade na religião . — Durante o Iluminismo não sefez justiça à importância da religião, não há como duvidar disso:mas igualmente é certo que na reação subseqüente ao Iluminismose foi além da justiça, ao tratar as religiões com amor e até com paixão, e ao lhes atribuir uma profunda, mesmo a mais profunda,compreensão do mundo; compreensão que a ciência teria apenasque despir do hábito dogmático, para de forma mística possuir a"verdade". As religiões devem, portanto — esta era a afirmação detodos os adversários do Iluminismo —, expressar sensu allegorico

[em sentido alegórico], em consideração à inteligência da massa,aquela antiqüíssima sabedoria que é a sabedoria em si, na medidaem que toda verdadeira ciência dos tempos modernos nos teriasempre levado em direção a ela, em vez de para longe dela: demodo que entre os sábios mais antigos e todos os que ossucederam reinaria harmonia e mesmo identidade de opiniões, e o progresso dos conhecimentos — querendo-se falar de um

 progresso — não diria respeito à essência, mas à comunicaçãodela. Tal concepção da religião e da ciência é inteiramente errada; eninguém ousaria ser partidário dela hoje em dia, se a eloqüência deSchopenhauer não a tivesse tomado sob sua guarda: essaeloqüência altissonante, mas que somente após uma geraçãoalcançou seus ouvintes. Do mesmo modo que da interpretaçãomoral-religiosa que Schopenhauer fez dos homens e do mundo

 podemos tirar muitíssimo para a compreensão do cristianismo e deoutras religiões, é certo também que ele se enganou quanto aovalor da religião para o conhecimento . Nisso foi apenas umdiscípulo extremamente dócil dos mestres da ciência de seu tempo,que estimavam o Romantismo e haviam abjurado o espírito dasLuzes; se tivesse nascido em nosso tempo, não poderia falar do sensus allegoricus  da religião; prestaria antes homenagens à

erdade, como costumava fazer, com estas palavras: até hojenenhuma religião, seja direta ou indiretamente, como dogma ou

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como alegoria, conteve uma só verdade. Pois foi do medo e danecessidade que cada uma delas nasceu, e por desvios da razãoinsinuou-se na existência; um dia, talvez, estando em perigo por causa da ciência, introduziu mentirosamente em seu sistema umadoutrina filosófica qualquer, de modo que mais tarde ela fosse aliencontrada: mas esse é um truque teológico, do tempo em que umareligião já duvida de si mesma. Esses artifícios da teologia, que defato foram praticados muito cedo no cristianismo, religião de umaépoca erudita e impregnada de filosofia, conduziram à superstiçãodo sensus allegoricus; mais ainda, porém, o hábito de os filósofos(especialmente os mistos, os filósofos poetizantes e os artistas

filosofantes) tratarem todos os sentimentos que encontravam em simesmos como essência fundamental do homem, permitindo a seussentimentos religiosos terem uma influência significativa naestrutura intelectual de seus sistemas. Como os filósofos muitasezes filosofaram sob a influência da tradição religiosa ou, no

mínimo, sob o poder antigo e hereditário daquela "necessidademetafísica", chegaram a teorias que de fato eram bem semelhantes

às teorias religiosas judaicas, cristãs ou indianas — semelhantes talcomo os filhos costumam semelhar as mães, exceto que nessecaso os pais não tinham ciência da maternidade, como às vezesacontece —, mas, na inocência de sua admiração, inventaramfábulas a respeito da semelhança de família entre as religiões e aciência. Na realidade, entre a religião e a verdadeira ciência nãoexiste parentesco, nem amizade ou inimizade: elas habitam planetas

diversos. Toda filosofia que deixa brilhar, na escuridão de suasúltimas perspectivas, uma cauda de cometa religiosa, torna suspeitoaquilo que apresenta como ciência: tudo é, presumivelmente,também religião, ainda que sob os enfeites da ciência. De resto, setodos os povos concordassem acerca de determinadas coisasreligiosas, por exemplo, acerca da existência de um deus (o quenão sucede neste ponto particular, diga-se de passagem), isso seria

apenas um argumento contrário  às coisas afirmadas, por exemplo,a existência de um deus: o consensus gentium  [consenso entre os povos] e mesmo hominum  [entre os homens] só pode justamenteser tido como uma tolice. Não existe absolutamente um consensusomnium sapientium  [consenso de todos os sábios] em relação auma coisa sequer, exceto aquilo de que falam os versos de Goethe:

 Alle die Weisesten aller der Zeiten Lächeln und winken und stimmen mit ein:Töricht, auf Bessrung der Toren zu harren! Kinder der Klugheit, o habet die Narren Eben zum Narren auch, wie sichs gehört![Os mais sábios de todos os tempos

Sorriem, acenam e estão de acordo:É tolice esperar a melhora dos tolos!Filhos da sabedoria, façam tolosDos tolos, como deve ser!]51

Dito sem verso nem rima, e aplicado a nosso caso: o consensus sapientium consiste em que o consensus gentium é uma tolice.

111.  Origem do culto religioso.   — Se remontarmos aos

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tempos em que a vida religiosa florescia com toda a força,acharemos uma convicção fundamental que já não partilhamos, edevido à qual vemos fechadas definitivamente para nós as portas daida religiosa: tal convicção diz respeito à natureza e à relação com

ela. Naqueles tempos nada se sabia sobre as leis da natureza; sejana terra, seja no céu, nada tinha que suceder; uma estação, o sol, achuva podiam vir ou faltar. Não havia qualquer noção decausalidade natural . Quando se remava, não era o remo que moviao barco; remar era apenas uma cerimônia mágica, pela qual seforçava um demônio a mover o barco. Todas as enfermidades, a própria morte eram resultado de influências mágicas. O adoecer e o

morrer não sobrevinham naturalmente; não existia a idéia de"ocorrência natural" — que surgiu apenas com os antigos gregos,ou seja, numa fase bem tardia da humanidade, na concepção daMoira que reina acima dos deuses. Quando alguém atirava com oarco, havia sempre uma mão e uma força irracionais; se as fontessecavam de repente, pensava-se primeiro em demôniossubterrâneos e suas maldades; se um homem caía, era certamente

o efeito invisível da flecha de um deus. Na Índia (segundoLubbock)52  o carpinteiro costuma oferecer sacrifícios a seumartelo, a sua machadinha e às ferramentas; o brâmane trata domesmo modo o lápis com que escreve, o soldado as armas que usaem campanha, o pedreiro sua trolha, o lavrador seu arado. Naimaginação dos homens religiosos, toda a natureza é uma soma deatos de seres conscientes e querentes, um enorme complexo de

arbitrariedades. Em relação a tudo o que nos é exterior não é permitida a conclusão de que algo será  deste ou daquele modo, deque deverá  acontecer dessa ou daquela maneira; o que existe deaproximadamente seguro, calculável, somos nós: o homem é aregra, a natureza, a ausência de regras — este princípio contém aconvicção fundamental que domina as grosseiras culturas primitivas, criadoras de religião. Nós, homens modernos, sentimos

 precisamente o inverso: quanto mais interiormente rico o homem sesente hoje, quanto mais polifônica a sua subjetividade,53  tanto mais poderosamente age sobre ele o equilíbrio da natureza; juntamentecom Goethe, todos nós reconhecemos na natureza o grande meiode tranqüilização da alma moderna, ouvimos a batida do pêndulodesse grande relógio com nostalgia de sossego, de recolhimento esilêncio, como se pudéssemos absorver esse equilíbrio e somente por meio dele chegar à fruição de nós mesmos. Antigamente era oinverso: se recordamos as rudes condições primitivas dos povos ouemos de perto os selvagens atuais, achamo-los determinados da

maneira mais rigorosa pela lei, pela tradição: o indivíduo está quaseque automaticamente ligado a ela e se move com a uniformidade deum pêndulo. Para ele a natureza — a incompreendida, terrível,misteriosa natureza — deve parecer o reino da liberdade , doarbítrio, do poder superior, como que um estágio sobre-humano daexistência, Deus mesmo. Mas então cada indivíduo, em tais épocase condições, sente como sua vida, sua felicidade, a de sua família, ado Estado, o sucesso de todos os empreendimentos, dependemdessas arbitrariedades da natureza: alguns fenômenos naturaisdevem sobrevir no tempo certo, e outros deixar de ocorrer no

tempo certo. Como ter influência sobre essas temíveis incógnitas,como subjugar o reino da liberdade? Eis o que ele se pergunta, eis o

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que busca ansiosamente: não há como tornar essas potênciasregulares mediante uma lei ou tradição, assim como você próprio éregular? — As reflexões daqueles que acreditam em magia emilagres levam a impor uma lei à natureza   —: e, em poucas palavras, o culto religioso é produto dessas reflexões. O problemaque esses homens se colocam é intimamente aparentado aoseguinte: como pode a tribo mais fraca  ditar leis para a mais forte,decidir a respeito dela, dirigir suas ações (na relação com a maisfraca)? Recordemos primeiro a espécie mais inócua de coação,aquela que exercitamos ao conquistar a afeição  de alguém. Logo, por meio de súplicas e orações, por meio da submissão, do

compromisso de tributos e presentes regulares, de exaltaçõeslisonjeiras, é possível também exercer uma coação sobre os poderes da natureza, na medida em que os tornamos afeiçoados anós: o amor vincula e é vinculado. Em seguida podemos fechar acordos  em que nos obrigamos mutuamente a determinadaconduta, estabelecemos penhores e trocamos juramentos. Muitomais importante, porém, é uma espécie de coação mais violenta,

mediante a magia e a feitiçaria. Assim como o homem, com a ajudade um feiticeiro, pode prejudicar um inimigo mais forte e mantê-loamedrontado, assim como o feitiço do amor age à distância, assimtambém o homem fraco acredita poder guiar até mesmo osespíritos poderosos da natureza. O meio principal de toda magia étermos em nosso poder algo que seja próprio de alguém: cabelos,unhas, um pouco da comida de sua mesa e mesmo sua imagem,

seu nome. Com tal aparato se pode então praticar a magia, pois o pressuposto fundamental é de que a todo ser espiritual pertencealgum elemento corporal; com o auxílio deste se pode vincular oespírito, prejudicá-lo, destruí-lo; o elemento corporal fornece a alçacom que podemos apreender o espiritual. Do mesmo modo que umhomem influencia outro homem, também influencia qualquer espírito da natureza; pois este também tem seu elemento corporal,

 pelo qual pode ser apreendido. A árvore e, comparado a ela, o brotodo qual surgiu — essa enigmática coexistência parece provar quenas duas formas se corporificou um único espírito, ora pequeno,ora grande. Uma pedra que rola subitamente é o corpo em que ageum espírito; se numa charneca solitária se encontra uma rocha, parece impossível imaginar uma força humana que a tenha trazidoaté ali; então ela deve ter se movido por si própria, ou seja: devehospedar um espírito. Tudo o que possui um corpo é acessível aoencantamento, também os espíritos da natureza. Se um deus estáinculado à sua imagem, pode-se também exercer sobre ele uma

coação direta (ao lhe negar o alimento sacrificial, açoitá-lo,acorrentá-lo e assim por diante). A fim de obter as graças de umdeus que as abandonou, as pessoas pobres, na China, amarramcom cordas a sua imagem, arrastam-na pelas ruas através demontes de lama e estrume, e dizem: "Ó tu, cão de espírito, nós tefizemos habitar um magnífico templo, te douramosesplendidamente, te alimentamos bem, te oferecemos sacrifícios, econtudo és tão ingrato". Semelhantes medidas de violência contraimagens dos santos e da mãe de Deus, quando eles não quiseramcumprir sua obrigação em casos de peste ou de seca, por exemplo,

ocorreram ainda neste século em países católicos. — Todas essasrelações mágicas com a natureza deram origem a inúmeras

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cerimônias; por fim, quando sua confusão se tornou muito grandehouve esforços para ordená-las, sistematizá-las, de modo que seacreditou garantir o desenrolar favorável de todo o curso danatureza, isto é, do grande ciclo anual das estações, mediante ocorrespondente desenrolar de um sistema de procedimentos. Osentido do culto religioso é influenciar e esconjurar a natureza em benefício do homem, ou seja, imprimir-lhe uma regularidade54 quea princípio ela não tem; enquanto na época atual queremosconhecer   as regras da natureza para nos adaptarmos a elas. Emsuma, o culto religioso baseia-se nas idéias de feitiço entre umhomem e outro; e o feiticeiro é mais antigo que o sacerdote. Mas

igualmente  se baseia em concepções outras, mais nobres; pressupõe um laço de simpatia entre os homens, a existência de boaontade, gratidão, atendimento aos suplicantes, acordos entre

inimigos, concessão de garantias, direito à proteção da propriedade.Mesmo em baixos níveis de cultura o homem não se acha frente ànatureza como um escravo impotente, não é necessariamente o seuservo desprovido de vontade: no nível religioso dos gregos,

sobretudo na relação com os deuses olímpicos, deve-se mesmo pensar na convivência de duas castas, uma mais nobre, mais poderosa, e outra menos nobre; mas por sua origem elas de algummodo estão ligadas e são de uma única espécie; não precisam seenvergonhar uma da outra. Eis o que há de nobre na religiosidadegrega.

112.  À vista de certos instrumentos de sacrifício antigos. — Naunião da farsa ou mesmo da obscenidade com o senso religioso, por exemplo, podemos ver como alguns sentimentos se perderam para nós: desaparece o sentimento da possibilidade dessa mistura,não apreendemos senão historicamente que ela tenha existido nasfestas de Deméter e Dionísio, nos mistérios e peças pascais doscristãos; mas ainda conhecemos a união do sublime ao burlesco ecoisas afins, o comovente associado ao ridículo: o que talvez umaépoca futura não mais compreenda.

113.  O cristianismo como antigüidade. — Quando, numamanhã de domingo, ouvimos repicarem os velhos sinos, perguntamos a nós mesmos: mas será possível? isto se faz por um

udeu crucificado há dois mil anos, que se dizia filho de Deus. Nãoexiste prova para tal afirmação. — Em nossos tempos, a religiãocristã é certamente uma antigüidade que irrompe de um passadoremoto, e o fato de crermos nessa afirmação — quandonormalmente somos tão rigorosos no exame de qualquer pretensão — é talvez a parte mais antiga dessa herança. Um deus que gerafilhos com uma mortal; um sábio que exorta a que não se trabalhe,

que não mais se julgue, mas que se atente aos sinais do iminentefim do mundo; uma justiça que aceita o inocente como vítimasubstituta; alguém que manda seus discípulos beberem seu sangue; preces por intervenções miraculosas; pecados cometidos contra umdeus expiados por um deus; medo de um Além cuja porta deentrada é a morte; a forma da cruz como símbolo, num tempo queá não conhece a destinação e a ignomínia da cruz — que

estremecimento nos causa tudo isso, como o odor vindo de umsepulcro antiqüíssimo! Deveríamos crer que ainda se crê nessas

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coisas?

114. O elemento não grego do cristianismo. — Os gregos nãoiam os deuses homéricos como senhores acima deles, nem a si

mesmos como servos abaixo dos deuses, como faziam os judeus.Eles viam apenas o reflexo, por assim dizer, dos exemplares mais bem-sucedidos de sua própria casta, um ideal, portanto, e não umoposto de seu próprio ser. Sentiam-se aparentados uns aos outros,havia um interesse mútuo, uma espécie de simaquia.55  O homemfaz uma idéia nobre de si, quando dá a si mesmo deuses assim, e secoloca numa relação como aquela entre a baixa e a alta nobreza;

enquanto os povos itálicos têm uma verdadeira religião decamponeses, com um medo permanente de poderosos malvados ecaprichosos. Onde os deuses olímpicos não estavam presentes, aida grega era também mais sombria e medrosa. — Já o

cristianismo esmagou e despedaçou o homem por completo, e omergulhou como num lodaçal profundo: então, nesse sentimento detotal abjeção, de repente fez brilhar o esplendor de uma misericórdia

divina, de modo que o homem surpreendido, aturdido pela graça,soltou um grito de êxtase e por um momento acreditou carregar océu dentro de si. Sobre este excesso doentio do sentimento, sobre a profunda corrupção de mente e coração que lhe é necessária, agemtodas as invenções56  psicológicas do cristianismo: ele quer negar,despedaçar, aturdir, embriagar, e só uma coisa não quer: a medida; por isso é, no sentido mais profundo, bárbaro, asiático, pouco

nobre e nada helênico.

115. Vantagem de ter religião . — Existem pessoas sóbrias eeficientes, às quais a religião está pregada como uma orla dehumanidade superior: estas fazem muito bem em permanecer religiosas, pois isso as embeleza. — Todos os homens que não

entendem de um ofício qualquer das armas — a boca e a penacontam como armas — se tornam servis: para eles a religião cristãé útil, pois nela o servilismo toma o aspecto de uma virtude cristã efica espantosamente embelezado. — Pessoas para quem a vidacotidiana é muito vazia e monótona se tornam facilmente religiosas:isto é compreensível e perdoável, mas elas não têm o direito deexigir religiosidade daquelas para quem a vida não transcorre

cotidianamente vazia e monótona.

116. O cristão comum. — Se o cristianismo tivesse razão emsuas teses acerca de um Deus vingador, da pecaminosidadeuniversal, da predestinação e do perigo de uma danação eterna,seria um indício de imbecilidade e falta de caráter não  se tornar  padre, apóstolo ou eremita e trabalhar, com temor e tremor,

unicamente pela própria salvação; pois seria absurdo perder assim o benefício eterno, em troca da comodidade temporal. Supondo ques e creia  realmente nessas coisas, o cristão comum é uma figuradeplorável, um ser que não sabe contar até três, e que, justamente por sua incapacidade mental, não mereceria ser punido tãoduramente quanto promete o cristianismo.

117.   Da inteligência do cristianismo. — É artimanha do

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cristianismo ensinar a total indignidade, pecaminosidade e abjeçãodo homem, em voz tão alta que o desprezo ao semelhante já não é possível. "Ele pode pecar quanto queira, contudo não se diferenciaessencialmente de mim: eu é que sou, em todos os graus, indigno eabjeto", assim diz o cristão. Mas mesmo esse sentimento perdeuseu aguilhão mais agudo, pois o cristão não crê em sua abjeçãoindividual: ele é mau por ser homem simplesmente, e se tranqüilizaum pouco dizendo: "Somos todos da mesma espécie".

118.  Mudança de pessoal . — Quando uma religião começa adominar, tem como adversários os que foram seus primeiros

adeptos.

119.  Destino do cristianismo. — O cristianismo nasceu paraaliviar o coração; mas agora deve primeiro oprimi-lo, para maisadiante poder aliviá-lo. Em conseqüência, perecerá.

120.  A prova do prazer . — A opinião agradável é aceita comoerdadeira: esta é a prova do prazer (ou, como diz a Igreja, a prova

da força), da qual todas as religiões se orgulham, quando deveriamdela se envergonhar. Se a fé não trouxesse felicidade, nela não seacreditaria: portanto, quão pouco valor ela deve ter!

121.  Jogo perigoso. — Hoje em dia, quem dentro de si dá

novamente lugar ao sentimento religioso deve também deixá-locrescer, não pode fazer de outro modo. Então o seu ser pouco a pouco se transforma, favorece o que é dependente ou vizinho doelemento religioso, todo o âmbito do julgar e sentir fica nublado,atravessado por sombras religiosas. O sentimento não pode ficar  parado; portanto, tome-se cuidado.

122. Os discípulos cegos. — Enquanto alguém conhece muito bem a força e a fraqueza de sua doutrina, de sua arte, de suareligião, a força delas ainda é pequena. O discípulo e apóstolo que,cegado pelo prestígio do mestre e pelo respeito a ele devido, nãoenxerga a fraqueza da doutrina, da religião e assim por diante,geralmente tem, graças a isso, mais poder do que o mestre. Sem os

discípulos cegos, a influência de um homem e de sua obra nuncase tornou grande. Ajudar no triunfo de um conhecimento significamuitas vezes apenas isto: irmaná-lo à estupidez de modo tal que o peso desta consiga também a vitória daquele.

123.  Demolição das igrejas. — No mundo não existe religião bastante nem mesmo para destruir as religiões.

124.   Ausência de pecado no homem. — Quando secompreende como "o pecado chegou ao mundo", ou seja, atravésde erros da razão, em virtude dos quais os homens entre si, emesmo o indivíduo, se consideram muito mais negros e maus doque são de fato, então todo este sentimento é muito aliviado, e oshomens e o mundo aparecem por vezes numa aura de inocência, deforma que o indivíduo se sente profundamente bem. Em meio ànatureza, o homem é sempre a criança. Esta criança tem às vezes

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um sonho pesado e angustiante, mas ao abrir os olhos está semprede volta ao Paraíso.

125.  Irreligiosidade dos artistas. — Homero está tão à vontade

entre seus deuses, e tem, como poeta, tamanha satisfação comeles, que deve ter sido profundamente irreligioso; com o que acrença popular lhe oferecia — uma superstição mesquinha,grosseira e às vezes terrível —, ele lidava tão livremente quanto oescultor com sua argila, ou seja, com a mesma desenvoltura que possuíam Ésquilo e Aristófanes, e mediante a qual, nos temposmodernos, distinguiram-se os grandes artistas do Renascimento,

assim como Shakespeare e Goethe.

126.  Arte e força da falsa interpretação. — Todas as visões,terrores, esgotamentos e êxtases do santo são estados patológicosconhecidos, que ele, a partir de arraigados erros religiosos e psicológicos, apenas interpreta de modo totalmente diverso, isto é,não como doença. — Assim o demônio de Sócrates talvez seja

também uma doença do ouvido, que ele apenas explica  conformeseu pensamento moral dominante, de maneira diversa de como sefaria hoje. Não acontece de outro modo com as loucuras e osdelírios dos profetas e sacerdotes oraculares; foi sempre o grau desaber, fantasia, empenho, moralidade na cabeça e no coração dosintérpretes  que tanto fez  a partir dessas coisas. Entre as maioresrealizações daqueles que chamamos de gênios e santos se inclui ade conquistar intérpretes que os compreendem mal   para o bem dahumanidade.

127.  Veneração da loucura . — Tendo-se notado quefreqüentemente uma emoção tornava a mente mais clara e provocava idéias felizes, pensou-se que através das emoções mais

intensas participaríamos das mais felizes idéias e inspirações: eassim se veneraram os loucos como sábios e oráculos. Na basedisso está um raciocínio errado.

128.  Promessas da ciência. — A ciência moderna tem por metao mínimo de dor possível e a vida mais longa possível — ou seja,uma espécie de eterna beatitude, sem dúvida bastante modesta, secomparada às promessas religiosas.

129.  Liberalidade proibida. — Não há no mundo amor e bondade bastantes, para que ainda possamos dá-los a seresimaginários.

130. Sobrevivência do culto religioso no coração . — A Igrejacatólica, e antes dela todos os cultos antigos, dominava todos osmeios pelos quais o homem é colocado em inusitados estados deespírito e subtraído ao frio cálculo do interesse ou ao puro pensamento racional. Uma igreja que treme com profundos sons;apelos surdos, regulares, contidos, de uma hoste de padres queinvoluntariamente transmite à comunidade sua própria tensão e a

mantém numa escuta quase angustiante, como se um milagreestivesse a ponto de ocorrer; a atmosfera de uma arquitetura que,

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sendo a habitação de uma divindade, se estende até o indefinido, eem todos os espaços escuros faz temer a presença dessa divindade — quem desejaria devolver aos homens coisas semelhantes, se jánão existe crença nos seus pressupostos? Os resultados de tudoisso não estão perdidos, todavia: o mundo interior dos estados deespírito sublimes, comovidos, plenos de pressentimentos, profundamente contritos, ditosos de esperança, tornou-se inato aoshomens através do culto, especialmente; o que dele existe agora naalma foi largamente cultivado quando o culto brotava, crescia eflorescia.

131. Seqüelas religiosas. — Por mais que alguém creia ter sedesabituado da religião, isso não sucedeu a ponto de não ter alegriaem experimentar sentimentos e disposições religiosas sem conteúdointelectual, como na música, por exemplo; e quando uma filosofia procura justificar as esperanças metafísicas e a profunda paz deespírito que delas se pode obter, e quando nos fala, por exemplo,de "todo o Evangelho seguro que há no olhar das Madonas de

Rafael",57  acolhemos tais sentenças e explicações com umadisposição particularmente efusiva: aqui é mais fácil para o filósofodemonstrar; o que ele quer dar encontra um coração que tem prazer em aceitar. Nisto se percebe que os espíritos livres menos ponderados se chocam apenas com os dogmas, na realidade, econhecem bem o encanto do sentimento religioso; é doloroso paraeles perder este por causa daqueles. — A filosofia científica deve

estar alerta para não introduzir erros com base em tal necessidade — uma necessidade adquirida e, portanto, também passageira —:mesmo os lógicos falam de "intuições"58 da verdade na moral e naarte (por exemplo, da intuição de que "a essência das coisas éuma"): o que lhes deveria ser proibido. Entre as verdadesdiligentemente deduzidas59  e semelhantes coisas "intuídas" permanece o abismo intransponível de que devemos aquelas aointelecto e estas à necessidade. A fome não demonstra que existeum alimento para saciá-la; ela deseja esse alimento. "Intuir" nãosignifica reconhecer num grau qualquer a existência de uma coisa,mas sim tê-la como possível, na medida em que por ela ansiamosou a ela tememos; a "intuição" não faz avançar um passo na terra dacerteza. — Acreditamos naturalmente que as partes de uma

filosofia tingidas pela religião estão mais bem demonstradas que asoutras; mas no fundo é o contrário, temos apenas o desejo íntimode que possa  ser assim — isto é, de que o que torna feliz sejatambém verdadeiro. Esse desejo nos faz ver como bons motivosruins.

132.   Da necessidade cristã de redenção. — Refletindo

cuidadosamente, deve ser possível obter uma explicação isenta demitologia para esse fenômeno da alma do cristão que é denominadonecessidade de redenção: ou seja, uma explicação puramente psicológica. É verdade que até hoje as explicações psicológicas deestados e processos religiosos foram alvo de algum descrédito, namedida em que uma teologia pretensamente livre atuava inutilmentenesse campo: pois com ela visava-se desde o princípio, como

 permite supor o espírito de seu fundador, Schleiermacher, a preservação da religião cristã e a permanência dos teólogos

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cristãos; os quais deveriam ganhar, na análise psicológica dos"fatos" religiosos, um novo ancoradouro e sobretudo uma novaocupação. Sem nos deixar perturbar por tais antecessores,ousamos a seguinte interpretação do fenômeno. O ser humano estáconsciente de certas ações que, na hierarquia corrente das ações,acham-se num nível bastante baixo, e descobre em si mesmo um pendor para essas ações, que lhe parece quase tão imutável quantoo seu ser. Como gostaria de experimentar aquela outra espécie deações que no conceito geral são reconhecidas como as maiselevadas e sublimes, como gostaria de se sentir pleno da boaconsciência que deve acompanhar um modo de pensar 

desinteressado! Mas infelizmente permanece no desejo: odescontentamento por não satisfazê-lo se soma a todos os outrostipos de descontentamento que nele despertaram a sua sina ou asconseqüências daquelas ações chamadas más; de forma que nasceum profundo mal-estar, juntamente com a busca por um médicoque possa suprimir este e suas causas. — Esse estado não seriasentido com tanta amargura se o homem apenas se comparasse a

outros com imparcialidade; pois então não teria razão de ficar especialmente descontente consigo mesmo, carregaria apenas uma parte do fardo geral da insatisfação e imperfeição humana. Mas elese compara com um ser que sozinho é capaz de todas as açõeschamadas altruístas, e que vive na contínua consciência de ummodo de pensar desinteressado: Deus; é porque olha nesse espelhoclaro que o seu ser lhe parece tão turvo, tão incomumente

deformado. Depois o angustia o pensamento do mesmo ser, namedida em que este paira ante sua imaginação como a justiça punidora: em todas as vivências possíveis, grandes ou pequenas,acredita reconhecer a cólera e as ameaças dele, e mesmo pressentir os golpes de açoite de seu juiz e carrasco. Quem o ajudará nesse perigo, que, em vista de uma duração imensurável da pena, superaem atrocidade todos os outros terrores da imaginação?

133. Antes de expormos as outras conseqüências desse estado,confessemos a nós mesmos que o homem não caiu nele por sua"culpa" ou "pecado", mas por uma série de erros da razão; que foiuma falha do espelho, se sua natureza lhe pareceu obscura e odiávela esse ponto, e que esse espelho foi obra sua, a obra muito

imperfeita da imaginação e do juízo humanos. Em primeiro lugar,um ser que fosse capaz apenas de ações altruístas é mais fabulosodo que o pássaro Fênix; não seria sequer imaginável, porque numexame rigoroso o conceito de "ação altruísta" se pulveriza no ar.Jamais um homem fez algo apenas para outros e sem qualquer motivo pessoal; e como poderia  mesmo fazer algo que fosse semreferência a ele, ou seja, sem uma necessidade interna (que sempre

teria seu fundamento numa necessidade pessoal)? Como poderia oego agir sem ego?60 — Por outro lado, um Deus que é todo amor,como às vezes se supõe, não seria capaz de uma única açãoaltruísta; nisso devemos lembrar um pensamento de Lichtenberg, oqual certamente foi tomado de uma esfera um pouco mais modesta:"É impossível sentir  pelos outros, como se costuma dizer; sentimosapenas por nós mesmos. A frase soa dura, mas não o é, se for 

corretamente entendida. Não amamos pai, mãe, esposa ou filho,mas os sentimentos agradáveis que nos causam", ou, como diz La

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Rochefoucauld: Si on croit aimer sa maîtresse pour l'amour d'elle,on est bien trompé  [Se cremos amar nossa amante por amor a ela,estamos bem iludidos].61 Quanto à razão por que atos de amor sãomais estimados que os outros, não devido à sua essência, mas à suautilidade, lembremos as investigações "sobre a origem dossentimentos morais", já mencionadas. Se um homem desejasse ser todo amor como aquele Deus, fazer e querer tudo para os outros enada para si, tal já seria impossível porque ele teria de fazer muitíssimo para si mesmo, a fim de poder fazer algo pelos outros.Depois isto pressupõe que o outro seja egoísta o bastante parasempre aceitar esse sacrifício, esse viver para ele: de modo que os

homens do amor e do sacrifício têm interesse em que continuemexistindo os egoístas sem amor e incapazes de sacrifício, e asuprema moralidade, para poder subsistir, teria de requerer   aexistência da imoralidade (com o que, então, suprimiria a simesma). — Mais ainda: a idéia de um Deus inquieta e humilha,enquanto nela se crê, mas no estágio atual da ciência etnológica nãohá mais dúvida quanto à sua gênese; e, quando a percebemos,

aquela crença se desfaz. Ao cristão que compara a sua naturezacom a de Deus sucede o mesmo que ao Dom Quixote, quesubestima sua valentia porque tem na cabeça os feitos maravilhososdos heróis de romances de cavalaria: o metro com que em ambosos casos se mede pertence ao reino das fábulas. Acabando a idéiade Deus, acaba também o sentimento do "pecado", da violação de preceitos divinos, da mácula numa criatura consagrada a Deus. E

 provavelmente restará ainda aquele pesar que é aparentado e seacha misturado ao medo das punições da justiça profana ou dodesprezo dos homens; ao menos o pesar dos remorsos, o aguilhãomais agudo do sentimento de culpa, é atenuado, quando percebemos que com nossos atos violamos a tradição humana, asleis e ordenações humanas, mas ainda não colocamos em perigo "aeterna salvação da alma" e sua relação com a divindade. Se, por 

fim, a pessoa conquistar e incorporar totalmente a convicçãofilosófica da necessidade incondicional de todas as ações e de suacompleta irresponsabilidade, desaparecerá também esse resíduo deremorso.

134.  Se o cristão, como disse, foi levado ao sentimento de

autodesprezo por alguns erros, isto é, por uma interpretação falsa,não científica, de suas ações e sentimentos, deverá perceber comassombro que esse estado de desprezo, de remorso, de desprazer,não persiste, e que ocasionalmente tudo isso é afastado de sua almae ele se sente livre e corajoso novamente. O prazer consigo mesmo,o bem-estar com a própria força, aliados ao enfraquecimentonecessário de toda emoção profunda, levaram a melhor; o homem

sente que de novo ama a si mesmo — mas justamente esse amor,essa nova auto-estima lhe parecem inacreditáveis, neles só pode ver o totalmente imerecido descenso de um raio de graça. Se antes eleacreditava distinguir em todos os acontecimentos avisos, ameaças,castigos e toda espécie de sinais da ira divina, agora interpreta suasexperiências de modo a lhes introduzir a bondade divina: tal eventolhe parece pleno de amor; aquele outro, uma indicação benfazeja;

um terceiro, e a sua própria disposição alegre, demonstração de queDeus é piedoso. Se antes, no estado de pesar, interpretava

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falsamente suas ações, agora faz isso com suas vivências; apreendeo seu consolo como o efeito de uma força externa; o amor, comque no fundo ama a si mesmo, aparece como amor divino; aquiloque chama de graça e prelúdio da redenção é, na verdade, graça para consigo e redenção de si mesmo.

135.  Portanto: determinada psicologia falsa, certa espécie defantasia na interpretação dos motivos e vivências são o pressupostonecessário para que alguém se torne cristão e sinta necessidade deredenção. Percebendo a aberração do raciocínio e da imaginação,deixa-se de ser cristão.

136.  Ascetismo e santidade cristãos. — Quanto mais certos pensadores se empenharam em ver nesses raros fenômenos damoralidade que se costuma chamar de ascetismo e santidade umacoisa milagrosa, ante a qual seria quase sacrilégio e profanaçãomanter o lume de uma explicação racional, tanto mais forte é atentação desse sacrilégio. Em todos os tempos, um poderoso

impulso da natureza levou a protestar contra esses fenômenos; aciência, na medida em que é, como foi dito, imitação da natureza, permite-se ao menos levantar objeção à pretendida inexplicabilidadee mesmo inacessibilidade desses fenômenos. Sem dúvida, até agoraela não teve sucesso: eles permanecem inexplicados, para grande prazer dos mencionados adoradores do moralmente milagroso.Pois, expresso em termos gerais: o inexplicado deve ser totalmenteinexplicável; o inexplicável, totalmente antinatural, sobrenatural,miraculoso — assim reza a exigência da alma de todos os religiosose metafísicos (dos artistas também, quando são ao mesmo tempo pensadores); enquanto o homem científico vê nessa exigência o"mau princípio". — A primeira probabilidade geral a que se chega,ao examinar a santidade e a ascese, é a de que sua natureza é

complexa: pois em quase toda parte, tanto no mundo físico comono moral, houve sucesso em reduzir o pretensamente miraculosoao complexo e multiplamente condicionado. Ousemos, portanto,isolar inicialmente alguns impulsos da alma dos santos e ascetas, e por fim imaginá-los intimamente entrelaçados.

137.  Existe um desafio de si mesmo, cujas expressões mais

sublimadas incluem várias formas de ascese. Alguns homens têmuma necessidade tão grande de exercer seu poder e sua ânsia dedomínio que, na falta de outros objetos, ou porque de outro modosempre falharam, recorrem afinal à tiranização de partes de seu próprio ser, como que segmentos ou estágios de si mesmos.Assim, alguns pensadores defendem pontos de vista que claramentenão servem para aumentar ou melhorar sua reputação; alguns

chamam expressamente para si o desprezo alheio, quando lhes seriamais fácil, guardando o silêncio, permanecerem respeitados; outrosrenegam suas antigas opiniões e não temem ser chamados deinconseqüentes; ao contrário, empenham-se nisso e comportam-secomo animosos cavaleiros, que amam o cavalo sobretudo quandoele se torna bravo, arisco e está coberto de suor. É assim que ohomem escala por vias perigosas as mais altas cordilheiras, para rir de seu próprio medo e de seus joelhos trêmulos; é assim que ofilósofo defende idéias de ascese, humildade e santidade, cujo brilho

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faz sua própria imagem parecer terrivelmente feia. Esse despedaçar de si mesmo, esse escárnio de sua própria natureza, esse spernere si sperni  [responder ao desprezo com o desprezo],62  a que asreligiões deram tamanha importância, é na verdade um grau bastante elevado da vaidade. Toda a moral do Sermão da Montanhaestá relacionada a isto: o homem tem autêntica volúpia em seiolentar por meio de exigências excessivas, e depois endeusar em

sua alma esse algo tirânico. Em toda moral ascética o homemenera uma parte de si como Deus, e para isso necessita demonizar 

a parte restante.

138. O homem não é igualmente moral em todas as horas, issoé sabido: julgando sua moralidade segundo a capacidade de grandesdecisões de sacrifício e abnegação (que, tornando-se duradoura ehabitual, é santidade), então é no afeto  que ele é mais moral; aexcitação forte lhe oferece motivos inteiramente novos, dos quaisele, estando frio e sóbrio como de costume, talvez não acreditasseser capaz. Como ocorre isso? Provavelmente devido à vizinhança

de tudo o que é grande e que excita fortemente; levado a umatensão extraordinária, o homem pode se decidir tanto por umaingança terrível quanto por uma terrível refração63  de sua

necessidade de vingança. Sob a influência da emoção violenta, elequer de todo modo o que é grande, poderoso, monstruoso, e se por acaso ele nota que o sacrifício de si mesmo o satisfaz tanto ouainda mais que o sacrifício do outro, escolhe aquele. O que

realmente lhe importa, portanto, é a descarga de sua emoção; paraaliviar sua tensão, pode juntar as lanças dos inimigos e enterrá-lasno próprio peito. Que haja grandeza na negação de si mesmo, e nãoapenas na vingança, é algo que deve ter sido inculcado nahumanidade por um longo período; uma divindade que sacrifica a simesma foi o símbolo mais forte e mais eficaz dessa espécie degrandeza. Como a vitória sobre o inimigo mais difícil de vencer, adominação repentina de um afeto — é assim que aparece  essanegação; e nisso é tida como o ápice da moral. O que sucede, naerdade, é a substituição de uma idéia pela outra, enquanto o ânimo

mantém sua mesma altura, seu mesmo nível. Estando novamentesóbrios, recuperados do afeto, os homens não mais compreendema moralidade daqueles momentos, mas a admiração de todos

aqueles que também os viveram os sustenta; o orgulho é seuconsolo, quando o afeto e a compreensão de seu ato se debilitam.Ou seja: no fundo, tampouco são morais aqueles atos deabnegação, na medida em que não são feitos estritamente pelosoutros; ocorre, isto sim, que o outro dá ao ânimo em alta tensãoapenas uma oportunidade de se aliviar através da abnegação.

139. Em muitos aspectos, também o asceta procura tornar levea sua vida, geralmente por meio da completa subordinação a umaontade alheia, ou a uma lei e um ritual abrangentes; mais ou menos

como um brâmane não deixa nada à sua própria determinação e acada minuto é guiado por um preceito sagrado. Esta subordinação éum meio poderoso para se tornar senhor de si mesmo; o indivíduoestá ocupado, portanto não se entedia, e não experimenta qualquer 

estímulo da vontade e da paixão; após a ação realizada, não hásentimento de responsabilidade, nem a tortura do arrependimento.

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De uma vez por todas se renunciou à própria vontade, e isso é maisfácil do que renunciar ocasionalmente; assim como é mais fácilrenunciar de todo a um desejo do que mantê-lo moderado. Se noslembrarmos da posição atual do homem em relação ao Estado,achamos aí também que a obediência incondicional é mais cômodaque a condicionada. Logo, o santo facilita a própria vida pelocompleto abandono da personalidade, e é um engano admirar nessefenômeno o supremo heroísmo da moralidade. Em todo caso, émais difícil afirmar a personalidade sem hesitação e semobscuridade do que dela se libertar de tal modo; além disso, requer muito mais espírito e reflexão.

140.  Depois que encontrei, em muitas das ações mais difíceisde explicar, expressões daquele prazer na emoção em si, gostaria dereconhecer também no autodesprezo, que se inclui entre ascaracterísticas da santidade, e igualmente nos atos de tortura de simesmo (jejum e açoitamento, deslocação dos membros, simulaçãoda loucura), um meio pelo qual essas naturezas lutam contra a

fadiga geral de sua vontade de viver (de seus nervos): elas seservem dos estímulos e crueldades mais dolorosos, para ao menostemporariamente emergir do torpor e do tédio em que sua grandeindolência espiritual e a mencionada subordinação a uma vontadealheia as fazem cair com tanta freqüência.

141. O meio mais comumente empregado pelo santo e asceta, para tornar a própria vida ainda suportável e interessante, consistena guerra ocasional e na alternância de vitória e derrota. Para isso precisa de um adversário, e o encontra no chamado "inimigointerior". Pois ele utiliza sua própria tendência à vaidade, a sede deglória e domínio, e também seus apetites sensuais, para poder considerar sua vida uma contínua batalha e a si mesmo um campo

de batalha, no qual lutam, com êxito variado, bons e mausespíritos. Sabe-se que a fantasia sensual é moderada ou quasesuprimida pela regularidade das relações sexuais, e inversamente setorna desenfreada e dissoluta com a abstinência ou a desordemnessas relações. A fantasia de muitos santos cristãos foiincomumente obscena; graças à teoria de que esses apetites eramerdadeiros demônios que lhes assolavam o íntimo, não se sentiam

muito responsáveis por eles; a este sentimento devemos afranqueza tão instrutiva de suas confissões. Era de seu interesseque tal luta sempre fosse entretida em algum nível, pois era ela,como disse, que entretinha suas vidas desoladas. Mas, a fim de quea luta parecesse importante o bastante para suscitar nos não-santosuma simpatia e uma admiração permanentes, a sensualidade teve deser cada vez mais difamada e estigmatizada, e mesmo o perigo de

uma danação eterna foi ligado tão estreitamente a essas coisas, queé bem provável que durante épocas inteiras os cristãos tenhamgerado filhos de má consciência; o que certamente fez um grandemal à humanidade. E, no entanto, aqui a verdade está de cabeça para baixo: o que para ela é especialmente indecoroso. Sem dúvidao cristianismo afirmou que todo homem é concebido e gerado em pecado, e no insuportável cristianismo superlativo de Calderón essa

idéia foi mais uma vez atada e entrançada, de modo que ele ousou omais estapafúrdio paradoxo nestes versos conhecidos:

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a maior culpa do homemé a de ter nascido64

Em todas as religiões pessimistas, o ato da procriação é

experimentado como ruim em si, mas esse não é de modo algumum sentimento universal humano, e nem o juízo de todos os pessimistas é igual neste ponto. Empédocles, por exemplo, nadaconhece de vergonhoso, diabólico ou pecaminoso nas coisaseróticas; ele vê, no grande prado do infortúnio, uma única apariçãoque traz salvação e esperança: Afrodite; esta é, para ele, a garantiade que a discórdia não dominará eternamente, mas um dia entregará

o cetro a um demônio mais suave. Os pessimistas cristãos praticantes tinham, como afirmei, interesse em que outra opinião predominasse; para a solidão e o deserto espiritual de suas vidas precisavam de um inimigo sempre vivo; e também reconhecido por todos, de modo que, combatendo e vencendo-o, elescontinuamente se apresentassem aos não-santos como seres umtanto incompreensíveis, sobrenaturais. Quando afinal, em

conseqüência de seu modo de vida e de sua saúde destruída, esseinimigo fugiu para sempre, eles imediatamente souberam ver seuíntimo povoado por novos demônios. A subida e a descida dos pratos da balança, Orgulho e Humildade, entretinha suas cabeçasruminadoras tanto quanto a alternância de desejo e serenidade. Naquele tempo a psicologia servia não só para tornar suspeito tudoo que é humano, mas também para difamá-lo, açoitá-lo, crucificá-

lo; as pessoas queriam  se achar tão más e perversas quanto possível, procuravam o temor pela salvação da alma, o desesperoem relação à própria força. Toda coisa natural a que o homemassocia a idéia de mau, de pecaminoso (como até hoje costumafazer em relação ao erótico, por exemplo), incomoda, obscurece aimaginação, dá um olhar medroso, faz o homem brigar consigomesmo e o torna inseguro e desconfiado; até os seus sonhosadquirem um ressaibo de consciência atormentada. No entanto,esse sofrimento pelo que é natural é, na realidade das coisas,totalmente infundado: é apenas conseqüência de opiniões acercadas coisas. É fácil ver como os homens se tornam piores por qualificarem de mau o que é inevitavelmente natural e depois osentirem sempre como tal. É artifício da religião, e dos metafísicosque querem o homem mau e pecador por natureza, suspeitar-lhe anatureza e assim torná-lo ele mesmo ruim: pois assim ele aprende ase perceber como ruim, já que não pode se despir do hábito danatureza. Aos poucos, no curso de uma longa vida no interior donatural, ele se sente tão oprimido por esse fardo de pecados, quesão necessários poderes sobrenaturais para lhe tirar esse fardo; ecom isto surge em cena a já referida necessidade de redenção, que

não corresponde em absoluto a uma pecaminosidade real, e sim auma imaginária. Examinando uma a uma as teses morais dosdocumentos do cristianismo, veremos que os requisitos sãoexagerados, de modo que o homem não possa  satisfazê-los; aintenção não é que ele se torne mais moral, mas que se sinta o maisossível pecador . Se este sentimento não tivesse sido agradável   ao

homem — para que teria produzido ele tal noção e aderido a ela por 

tanto tempo? Assim como no mundo antigo foi empregada umaincomensurável força de espírito e engenho para aumentar a alegria

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de viver mediante cultos festivos, no tempo do cristianismo umincomensurável montante de espírito foi sacrificado em outraaspiração: de toda maneira o homem deveria se sentir pecador ecom isso ser estimulado, vivificado, animado. Estimular, vivificar,animar a qualquer preço — não é esta a divisa de uma épocaamolecida, demasiado madura e cultivada? O ciclo de todas assensações naturais fora percorrido uma centena de vezes, a alma sefatigara com isso; então o santo e o asceta inventaram um novogênero de estímulos para a vida. Expunham-se ao olhar de todos,não propriamente para que muitos os imitassem, mas como umespetáculo terrível e ao mesmo tempo encantador, representado

nos limites entre o mundo e o supramundo, onde cada pessoaacreditava vislumbrar ora raios de luz celestiais ora sinistras línguasde fogo a brotar da profundeza. O olhar do santo, dirigido aosignificado, terrível em todo aspecto, da breve existência terrena, à proximidade da decisão final sobre infinitos espaços de novas vidas,esse olhar em brasa, num corpo semi-aniquilado, fazia tremer oshomens antigos em todas as profundezas; olhar, desviar o olhar 

com horror, de novo sentir o encanto do espetáculo, abandonar-sea ele, saciar-se com ele até a alma estremecer em ardor e calafrio — este foi o último prazer que a Antigüidade inventou, após ter setornado insensível até mesmo à visão das lutas entre homens eanimais.

142. Para resumir o que foi dito: aquele estado de alma de que

goza o santo ou o aspirante à santidade compõe-se de elementosque nós todos conhecemos muito bem, mas que sob a influência deidéias não religiosas se mostram em cores diversas e costumamexperimentar a censura dos homens, tanto quanto podem contar,adornados de religião e de sentido último da existência, comadmiração e mesmo adoração — ao menos podiam contar com issoem tempos passados. Num momento o santo pratica o desafio de simesmo, que é um parente próximo da ânsia de domínio e quemesmo ao homem mais solitário dá a sensação do poder; noutro,seu sentimento inflado salta do desejo de dar rédea livre a suas paixões para o desejo de fazê-las sucumbir como cavalosselvagens, sob a pressão potente de uma alma orgulhosa; ora desejauma cessação completa de todos os sentimentos que o perturbam,

torturam e excitam, um sono desperto, um descansar duradouro noseio de uma pesada indolência de animal e planta; ora procura a lutae a desperta em si mesmo, porque o tédio lhe mostra o seu rosto bocejante: ele flagela seu auto-endeusamento com autodesprezo ecrueldade, se alegra com o selvagem tumulto de seus apetites, coma dor aguda do pecado e mesmo com a idéia da perdição, sabearmar ciladas para o seu afeto, para o extremo anseio de domínio,

 por exemplo, de modo que ele passe a extrema humilhação, e suaalma atiçada é subvertida por esse contraste; por fim, quandoanseia por visões, diálogos com os mortos ou seres divinos, o queno fundo deseja é uma espécie rara de volúpia, talvez aquela volúpiana qual todas as outras se acham atadas como num feixe. Novalis,uma autoridade em questões de santidade, por experiência e por instinto, expressou todo o segredo com ingênua alegria: "É

espantoso que a associação de volúpia, religião e crueldade já nãotenha há muito chamado a atenção dos homens para seu íntimo

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 parentesco e tendência comum".65

143.  O que dá ao santo valor histórico-universal não é aquiloque ele é, mas o que significa  aos olhos dos não-santos. Porque

nos enganamos a seu respeito, porque interpretamos erradamenteseus estados de alma e o separamos o máximo possível de nós,como algo inteiramente incomparável, de natureza estranha e sobre-humana: por isso é que ele alcançou a força extraordinária com que pôde dominar a imaginação de povos e épocas inteiras. Ele mesmonão se conhecia; ele mesmo entendia a escrita de suas disposições,tendências e ações conforme uma arte de interpretações que era tão

exagerada e artificial quanto a interpretação pneumática da Bíblia. Oexcêntrico e doentio de sua natureza, com sua junção de pobrezaespiritual, saber precário, saúde arruinada, nervos superexcitados, permanecia oculto tanto a seu olhar como ao de seu espectador. Não era um homem particularmente bom, menos ainda um homem particularmente sábio: mas significava  algo que ultrapassava amedida humana em bondade e sabedoria. A crença nele sustentava

a crença no divino e miraculoso, num sentido religioso de toda aexistência, num iminente Juízo Final. No esplendor vespertino dosol de fim de mundo que iluminava os povos cristãos, a sombra dosanto cresceu monstruosamente; e atingiu altura tal que mesmo emnosso tempo, que não mais crê em Deus, ainda existem pensadoresque crêem nos santos.

144.  Claro que a esse retrato do santo, esboçado segundo amédia de toda a espécie, pode-se contrapor vários outros retratos,que despertariam sentimentos mais agradáveis. Há exceções que sedestacam na espécie, seja por uma imensa brandura e simpatia comos homens, seja pelo encanto de uma energia incomum; outras sãoatraentes em altíssimo grau, porque certos delírios lançam torrentes

de luz sobre todo o seu ser: é o caso do célebre fundador docristianismo, que acreditava ser o filho de Deus, e portanto isentode pecado; de modo que através de uma ilusão — que não devemosulgar duramente, pois em toda a Antigüidade pululam filhos deDeus — ele alcançou o mesmo objetivo, o sentimento da completaisenção de pecado, da plena irresponsabilidade, que hoje qualquer homem pode adquirir através da ciência. — Igualmente não

considerei os santos hindus, que se acham num nível intermediárioentre o santo cristão e o filósofo grego, e portanto não representamum tipo puro: o conhecimento, a ciência — na medida em queexistia —, a elevação acima dos demais homens pela disciplina eeducação lógica do pensamento, eram exigidos como sinal desantidade entre os budistas, enquanto os mesmos atributos, nomundo cristão, são rejeitados e denegridos como sinal de

impiedade.

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Capítulo quartoDA ALMA DOS ARTISTAS E ESCRITORES

145.  O que é perfeito não teria vindo a ser .66  — Diante detudo o que é perfeito, estamos acostumados a omitir a questão doir a ser e desfrutar sua presença como se aquilo tivesse brotado

magicamente do chão. É provável que nisso ainda estejamos sob oefeito de um sentimento mitológico arcaico. Quase  sentimos ainda(num templo grego como o de Paestum, por exemplo) que certamanhã um deus, por brincadeira, construiu sua morada comaqueles blocos imensos; ou que subitamente uma alma entrou por encanto numa pedra, e agora deseja falar por meio dela. O artistasabe que a sua obra só tem efeito pleno quando suscita a crençanuma improvisação, numa miraculosa instantaneidade da gênese; eassim ele ajuda essa ilusão e introduz na arte, no começo da

criação, os elementos de inquietação entusiástica, de desordem quetateia às cegas, de sonho atento, como artifícios enganosos paradispor a alma do espectador ou ouvinte de forma que ela creia no brotar repentino do perfeito. — Está fora de dúvida que a ciênciada arte deve se opor firmemente a essa ilusão e apontar as falsasconclusões e maus costumes do intelecto, que o fazem cair nasmalhas do artista.

146.  O senso da verdade no artista . — No que toca aoconhecimento das verdades, o artista tem uma moralidade maisfraca do que o pensador; ele não quer absolutamente ser privadodas brilhantes e significativas interpretações da vida, e se guardacontra métodos e resultados sóbrios e simples. Aparentemente luta pela superior dignidade e importância do ser humano; na verdade,

não deseja abrir mão dos pressupostos mais eficazes  para a suaarte, ou seja, o fantástico, mítico, incerto, extremo, o sentido parao simbólico, a superestimação da pessoa, a crença em algomiraculoso no gênio: considera o prosseguimento de seu modo decriar mais importante que a devoção científica à verdade emqualquer forma, por mais simplesmente que ela se manifeste.

147.   A arte conjurando os mortos. — A arte exercesecundariamente a função de conservar, e mesmo recolorir um pouco, representações apagadas, empalidecidas; ao cumprir essatarefa, tece um vínculo entre épocas diversas e faz os seusespíritos retornarem. Sem dúvida é apenas uma vida aparente quesurge desse modo, como aquela sobre os túmulos, ou como o

retorno de mortos queridos no sonho; mas ao menos por instanteso antigo sentimento é de novo animado, e o coração bate num ritmoque fora esquecido. Por causa desse benefício geral da artedevemos perdoar o próprio artista, se ele não figura nas primeirasfilas da ilustração67  e da progressiva virilização  da humanidade:toda a sua vida ele permaneceu um menino ou um adolescente, e parou no ponto em que foi tomado por seu impulso artístico; mas

sentimentos dos primeiros estágios da vida estão reconhecidamentemais próximos dos de épocas passadas que daqueles do século

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 presente. Sem que ele queira, torna-se sua tarefa infantilizar ahumanidade; eis a sua glória e o seu limite.

148. Os poetas tornando a vida mais leve. — Na medida em

que também querem aliviar a vida dos homens, os poetas desviam oolhar do árduo presente ou, com uma luz que fazem irradiar do passado, proporcionam novas cores ao presente. Para poderemfazer isso, eles próprios devem ser, em alguns aspectos, seresoltados para trás: de modo que possamos usá-los como pontes

 para tempos e representações longínquas, para religiões e culturasagonizantes ou extintas. Na realidade, são sempre e

necessariamente epígonos. Certamente há coisas desfavoráveis adizer sobre os seus meios de aliviar a vida: eles acalmam e curamapenas provisoriamente, apenas no instante; e até mesmo impedemque os homens trabalhem por uma real melhoria de suas condições,ao suprimir e purgar paliativamente a paixão dos insatisfeitos, dosque impelem à ação.

149.  A lenta flecha da beleza. — A mais nobre espécie de beleza é aquela que não arrebata de vez, que não se vale de assaltostempestuosos e embriagantes (uma beleza assim despertafacilmente o nojo), mas que lentamente se infiltra, que levamosconosco quase sem perceber e deparamos novamente num sonho,e que afinal, após ter longamente ocupado um lugar modesto emnosso coração, se apodera completamente de nós, enchendo-nos osolhos de lágrimas e o coração de ânsias. — O que ansiamos, ao ver a beleza? Ser belos: imaginamos que haveria muita felicidade ligadaa isso. — Mas isto é um erro.

150. Vivificação da arte. — A arte ergue a cabeça quando asreligiões perdem terreno. Ela acolhe muitos sentimentos e estados

de espírito gerados pela religião, toma-os ao peito e com isso torna-se mais profunda, mais plena de alma, de modo que chega atransmitir elevação e entusiasmo, algo que antes não podia fazer. Ariqueza do sentimento religioso, que cresceu e se tornou torrente,continuamente transborda e deseja conquistar novos domínios: maso crescente Iluminismo abalou os dogmas da religião e instilou umaradical desconfiança: assim, expulso da esfera religiosa pelo

Iluminismo, o sentimento se lança na arte; em certos casos tambémna vida política, ou mesmo diretamente na ciência. Sempre que senota, nos empenhos humanos, uma coloração mais intensa e maissombria, pode-se presumir que o temor de espíritos, aroma deincenso e sombras da Igreja ali permaneceram.

151.  De que modo a métrica embeleza. — A métrica põe uméu sobre a realidade; ocasiona alguma artificialidade no falar e

impureza no pensar; por meio das sombras que joga sobre o pensamento, às vezes encobre, às vezes realça. Tal como a sombraé necessária para embelezar, também o "vago" é necessário paratornar distinto. — A arte torna suportável a visão da vida,colocando sobre ela o véu do pensamento impuro.

152.  A arte da alma feia. — Estabelecem-se limites demasiado

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estreitos para a arte, ao exigir que apenas as almas regradas,moralmente equilibradas, possam nela se exprimir. Assim como nasartes plásticas, também na música e na literatura existe uma arte daalma feia, juntamente com a arte da alma bela; e os efeitos mais poderosos da arte — dobrar almas, mover pedras, humanizar animais — talvez tenha sido justamente aquela que os obtevemelhor.

153.  A arte torna pesado o coração do pensador . — Podemoser como é forte a necessidade metafísica, e como é difícil para a

natureza livrar-se dela enfim, pelo fato de mesmo no livre-

 pensador, após ele ter se despojado de toda metafísica, os maisaltos efeitos da arte produzirem facilmente uma ressonância nacorda metafísica, por muito tempo emudecida ou mesmo partida;quando, em certa passagem da Nona sinfonia de Beethoven, por exemplo, ele se sente pairando acima da Terra numa cúpula deestrelas, tendo o sonho da imortalidade  no coração: as estrelastodas parecem cintilar em torno dele, e a Terra se afastar cada vez

mais. — Tornando-se consciente desse estado, ele talvez sinta umafunda pontada no coração e suspire pela pessoa que lhe trará deolta a amada perdida, chame-se ela religião ou metafísica. Em tais

momentos será posto à prova o seu caráter intelectual.

154.  Brincando com a vida. — A facilidade e frivolidade daimaginação homérica era necessária, para suavizar etemporariamente suprimir o ânimo desmedidamente apaixonado e ointelecto extremamente agudo dos gregos. Como a vida pareceamarga e cruel, quando fala esse intelecto! Eles não se iludem, masdeliberadamente cercam e embelezam a vida com mentiras.Simônides aconselhava seus patrícios a tomarem a vida como umogo; a seriedade lhes era bem conhecida na forma de dor (pois a

miséria humana é o tema que os deuses mais gostam de ver cantado) e sabiam que apenas através da arte a própria miséria podese tornar deleite. Mas, como castigo por tal percepção,68 foram tãoatormentados pelo prazer de fabular, que na vida cotidiana tornou-se difícil para eles livrar-se da mentira e da ilusão, como todos os povos poetas, que têm igual prazer na mentira e não experimentamnisso nenhuma culpa. Provavelmente isso levava ao desespero os

 povos vizinhos.

155.  A crença na inspiração. — Os artistas têm interesse emque se creia nas intuições repentinas,69  nas chamadas inspirações;como se a idéia da obra de arte, do poema, o pensamentofundamental de uma filosofia, caísse do céu como um raio degraça. Na verdade, a fantasia do bom artista ou pensador produz

continuamente, sejam coisas boas, medíocres ou ruins, mas o seuulgamento, altamente aguçado e exercitado, rejeita, seleciona,

combina; como vemos hoje nas anotações de Beethoven, que aos poucos juntou as mais esplêndidas melodias e de certo modo asretirou de múltiplos esboços.70 Quem separa menos rigorosamentee confia de bom grado na memória imitativa pode se tornar, emcertas condições, um grande improvisador; mas a improvisaçãoartística se encontra muito abaixo do pensamento artísticoselecionado com seriedade e empenho. Todos os grandes foram

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grandes trabalhadores, incansáveis não apenas no inventar, mastambém no rejeitar, eleger, remodelar e ordenar.

156.  Ainda a inspiração. — Quando a energia produtiva foi

represada durante um certo tempo e impedida de fluir por algumobstáculo, ocorre enfim uma súbita efusão, como se houvesse umainspiração imediata sem trabalho interior precedente, ou seja, ummilagre. Isso constitui a notória ilusão que todos os artistas, comodisse, têm interesse um pouco excessivo em manter. O capitalapenas se acumulou, não caiu do céu. Aliás, há uma inspiraçãoaparente desse tipo também em outros domínios, como, por 

exemplo, no da bondade, da virtude, do vício.

157.  Os sofrimentos do gênio71  e seu valor . — O gênioartístico quer proporcionar alegria, mas, se estiver num nível muitoalto, provavelmente lhe faltarão os que a desfrutem; ele oferecemanjares, mas não há quem os queira. Isso lhe dá um pathos  queàs vezes é ridículo e tocante; pois no fundo ele não tem o direito de

obrigar os homens ao prazer. Seu pífaro soa, mas ninguém quer dançar: pode isto ser trágico? — Talvez. Enfim, para compensar essa privação ele tem mais prazer em criar do que o restante doshomens em todas as outras espécies de atividade. Seu sofrimento ésentido como exagerado, porque o tom de seu lamento é maisforte, e sua boca, mais eloqüente; em algumas ocasiões  o seusofrimento é de fato muito grande, mas apenas porque é grande suaambição, sua inveja. O gênio do saber, como Kepler e Spinoza, emgeral não é tão ávido, e não faz tamanho caso de seus sofrimentose privações, na realidade maiores. Ele pode mais seguramentecontar com a posteridade e se despojar do presente; enquanto umartista que faz o mesmo está jogando um jogo desesperado, em queo seu coração padecerá. Em casos muito raros — quando no

mesmo indivíduo se fundem o gênio de criar e de conhecer e ogênio moral — junta-se às dores mencionadas a espécie de doresque devemos considerar as mais extravagantes exceções do mundo:os sentimentos extra- e suprapessoais, dirigidos a um povo, àhumanidade, a toda a civilização, à inteira existência sofredora: osquais adquirem seu valor graças à ligação com conhecimentos particularmente difíceis e abstrusos (a compaixão em si tem pouco

alor). — Mas que critério, que pedra de toque existe para verificar sua autenticidade? Não seria quase imperioso desconfiar de todosos que dizem ter sentimentos dessa natureza?

158.  Fatalidade da grandeza. — Todo grande aparecimento72

é seguido pela degeneração, sobretudo no campo da arte. Oexemplo do grande homem estimula as naturezas mais vaidosas à

imitação exterior ou ao excesso; e os grandes talentos carregam emsi a fatalidade de esmagar muitas forças e germens mais fracos,como que transformando em deserto a natureza à sua volta. O casomais feliz no desenvolvimento de uma arte é aquele em que váriosgênios se mantêm reciprocamente em certos limites; uma lutaassim permite que as naturezas mais fracas e delicadas tambémrecebam ar e luz.

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159.  A arte sendo perigosa para o artista. — Quando a artearrebata fortemente um indivíduo, leva-o de volta a concepções deépocas em que a arte florescia do modo mais vigoroso, e tem entãouma influência regressiva. Cada vez mais o artista venera emoçõesrepentinas, acredita em deuses e demônios, põe alma na natureza,odeia a ciência, adquire um ânimo instável como os indivíduos daAntigüidade e requer uma subversão de todas as relações que nãosejam favoráveis à arte, e isso com a veemência e insensatez deuma criança. Ora, em si o artista já é um ser retardado,73  pois permanece no jogo que é próprio da juventude e da infância: a istose junta o fato de ele aos poucos ser "regredido" a outros tempos.74

Desse modo acontece, afinal, um violento antagonismo entre ele eos homens de mesma idade do seu tempo, e um triste fim; assim,segundo os relatos dos antigos, Homero e Ésquilo acabaramivendo e morrendo na melancolia.

160.  Pessoas criadas. — Quando se diz que o dramaturgo (e oartista em geral) cria  realmente caracteres, trata-se de um belo

engano e exagero, cuja existência e propagação é um dos triunfosnão intencionais e como que supérfluos da arte. Na verdade,compreendemos pouco de um homem real e vivo, e generalizamosmuito superficialmente, ao lhe atribuir este ou aquele caráter; e o poeta corresponde a esta nossa atitude muito imperfeita para com ohomem, na medida em que faz (e neste sentido "cria") esboços degente tão superficiais quanto o nosso conhecimento das pessoas.

Há muita prestidigitação nesses caracteres criados pelos artistas;não são absolutamente produtos da natureza encarnados, mas talcomo homens pintados são algo tênues, não resistem a um exame próximo. Mesmo quando se diz que o caráter do homem vivocomum se contradiz freqüentemente, e que o criado pelodramaturgo seria o protótipo que a natureza imaginou,75  isso éinteiramente errado. Um homem real é algo necessário  de ponta a ponta (mesmo nas chamadas contradições), mas nem semprereconhecemos tal necessidade. O homem inventado, o fantasma, pretende significar algo necessário, mas somente para aqueles quecompreendem um homem apenas numa simplificação crua e pouconatural: de modo que alguns traços fortes e freqüentementerepetidos, tendo muita luz em cima e muita sombra e penumbra ao

redor, satisfazem totalmente suas exigências. Essas pessoas sedispõem a tratar o fantasma como homem real e necessário, porqueestão acostumadas a, no homem real, tomar um fantasma, umasilhueta, uma abreviação arbitrária pelo todo. — Que o pintor e oescultor exprimam a "idéia" do homem é vã fantasia e ilusão dossentidos: somos tiranizados pelos olhos, ao dizer algo assim, poiseles vêem do corpo humano apenas a superfície, a pele; mas o

corpo interior faz igualmente parte da idéia. As artes plásticasquerem tornar visíveis os caracteres na pele; as artes da linguagemtomam a palavra com o mesmo objetivo, retratam o caráter emsom articulado. A arte procede da natural ignorância  do homemsobre o seu interior (corpo e caráter): ela não existe para físicos oufilósofos.

161.  Superestimação de si mesmo na crença em artistas eilósofos. — Todos nós achamos que a boa qualidade de uma obra

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de arte, de um artista, está demonstrada quando nos comove, nosabala. Mas primeiramente a nossa qualidade  em matéria deulgamento e sentimento deveria estar provada: o que não acontece.Quem, no domínio das artes plásticas, comoveu e encantou maisque Bernini, quem influiu mais que aquele orador posterior aDemóstenes, que introduziu o estilo asiático e o fez predominar por dois séculos?76 Esse domínio sobre séculos inteiros nada prova emfavor da qualidade e duradoura validade de um estilo; por isso nãodevemos estar muito seguros de nossa crença na qualidade dequalquer artista que seja; ela não é apenas a crença na veracidade denosso sentimento, mas também na infalibilidade de nosso

ulgamento, quando julgamento ou sentimento, ou mesmo ambos, podem ser de natureza demasiado grosseira ou delicada,extremados ou crus. Mesmo os benefícios e bênçãos de umafilosofia, de uma religião, nada provam quanto à sua verdade: assimcomo a felicidade que um louco desfruta com sua idéia fixa nada prova quanto à racionalidade dessa idéia.

162. Culto ao gênio por vaidade. — Porque pensamos bem denós mesmos, mas não esperamos ser capazes de algum dia fazer um esboço de um quadro de Rafael ou a cena de um drama deShakespeare, persuadimo-nos de que a capacidade para isso é algosobremaneira maravilhoso, um acaso muito raro ou, se temos aindasentimento religioso, uma graça dos céus. É assim que nossaaidade, nosso amor-próprio, favorece o culto ao gênio: pois só

quando é pensado como algo distante de nós, como um miraculum,o gênio não fere (mesmo Goethe, o homem sem inveja, chamavaShakespeare de sua estrela mais longínqua; o que nos faz lembrar aquele verso: "as estrelas, não as desejamos").77  Mas, nãoconsiderando estes sussurros de nossa vaidade, a atividade dogênio não parece de modo algum essencialmente distinta daatividade do inventor mecânico, do sábio em astronomia ouhistória, do mestre na tática militar. Todas essas atividades seesclarecem quando imaginamos indivíduos cujo pensamento atuanuma só direção, que tudo utilizam como matéria-prima, queobservam com zelo a sua vida interior e a dos outros, que em toda parte enxergam modelos e estímulos, que jamais se cansam decombinar os meios de que dispõem. Também o gênio não faz outra

coisa senão aprender antes a assentar pedras e depois construir,sempre buscando matéria-prima e sempre a trabalhando. Todaatividade humana é assombrosamente complexa, não só a do gênio:mas nenhuma é um "milagre". — De onde vem então a crença deque só no artista, no orador e no filósofo existe gênio? de que sóeles têm "intuição"? (com o que lhes atribuímos uma espécie delente maravilhosa, com a qual vêem diretamente a "essência"!).

Claramente, as pessoas falam de gênio apenas quando os efeitos dogrande intelecto lhes agradam muito e também não desejam sentir inveja. Chamar alguém de "divino" significa dizer: "aqui não precisamos competir". E além disso: tudo o que está completo econsumado é admirado, tudo o que está vindo a ser ésubestimado.78 Mas na obra do artista não se pode notar como elaveio a ser ; essa é a vantagem dele, pois quando podemos

 presenciar o devir ficamos algo frios. A arte consumada daexpressão79  rejeita todo pensamento sobre o devir; ela se impõe

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tiranicamente como perfeição atual. Por isso os artistas daexpressão são vistos eminentemente como geniais, mas não oshomens de ciência. Na verdade, aquela apreciação e estasubestimação não passam de uma infantilidade da razão.

163.  A seriedade no ofício. — Só não falem de dons e talentosinatos! Podemos nomear grandes homens de toda espécie queforam pouco dotados. Mas adquiriram  grandeza, tornaram-se"gênios" (como se diz) por qualidades de cuja ausência ninguémque dela esteja cônscio gosta de falar: todos tiveram a diligenteseriedade do artesão, que primeiro aprende a construir 

 perfeitamente as partes, antes de ousar fazer um grande todo; permitiram-se tempo para isso, porque tinham mais prazer em fazer  bem o pequeno e secundário do que no efeito de um tododeslumbrante. É fácil dar a receita, por exemplo, de como se tornar um bom novelista, mas a realização pressupõe qualidades quegeralmente se ignora, ao dizer "eu não tenho talento bastante". Quealguém faça dezenas de esboços de novelas, nenhum com mais de

duas páginas, mas de tal clareza que todas as palavras sejamnecessárias; que registre diariamente anedotas, até aprender a lhesdar a forma mais precisa e eficaz; que seja infatigável em juntar eretratar tipos e caracteres humanos; que sobretudo conte históriascom a maior freqüência possível e escute histórias, com olhos eouvidos atentos ao efeito provocado nos demais ouvintes; que viajecomo um paisagista e pintor de costumes; que extraia de cada

ciência tudo aquilo que, sendo bem exposto, produz efeitosartísticos; que reflita, afinal, sobre os motivos das ações humanas,sem desdenhar nenhuma indicação que instrua nesse campo, ereunindo tais coisas dia e noite. Nesse variado exercício deixe-se passar uns dez anos: então o que for criado na oficina poderátambém aparecer em público. — Mas como faz a maioria? Nãocomeça com as partes, mas com o todo. Um dia podem acertar um bom lance e despertar a atenção, mas depois fazem lances cada vez piores, por boas razões, por razões naturais. — Às vezes, quandofaltam o caráter e a inteligência para dar forma a um tal plano deida artística, o destino e a necessidade lhes tomam o lugar e

conduzem o futuro mestre, passo a passo, através de todas asexigências de seu ofício.

164.  Perigo e benefício do culto ao gênio. — A crença emespíritos grandes, superiores, fecundos, ainda está — nãonecessariamente, mas com muita freqüência — ligada àsuperstição, total ou parcialmente religiosa, de que esses espíritossão de origem sobre-humana e têm certas faculdades maravilhosas,mediante as quais chegariam a seus conhecimentos, de maneira

completamente distinta da dos outros homens. Atribui-se a elesuma visão imediata da essência do mundo, como que através de um buraco no manto da aparência, e acredita-se que, graças a essemaravilhoso olhar vidente, sem a fadiga e o rigor da ciência, eles possam comunicar algo definitivo e decisivo acerca do homem e domundo. Enquanto o milagre no campo do conhecimento ainda tiver crentes, talvez se possa admitir que daí resulta alguma vantagem

 para os crentes, na medida em que estes, por sua subordinaçãoincondicional aos grandes espíritos, proporcionam a seu próprio

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espírito, durante o desenvolvimento, a melhor escola e disciplina.Por outro lado, é no mínimo questionável que a superstição relativaao gênio, a suas prerrogativas e poderes especiais, seja proveitosa para o próprio gênio, quando nele se enraíza. Em todo caso, é umindício perigoso que o temor de si mesmo assalte o homem, seja océlebre temor dos césares ou o temor do gênio que aquiconsideramos; que o aroma do sacrifício, justamente oferecidoapenas a um deus, penetre o cérebro do gênio e ele comece ahesitar e se ver como sobre-humano. As conseqüências a longo prazo são: o sentimento de irresponsabilidade, de direitosexcepcionais, a crença de estar nos agraciando com seu trato, uma

raiva insana frente à tentativa de compará-lo a outros, ou de estimá-lo inferior e trazer à luz as falhas de sua obra. Como deixa decriticar a si mesmo, caem uma após outra as rêmiges de sua plumagem: tal superstição mina as raízes de sua força e talvez otorne mesmo um hipócrita, quando sua força o tiver abandonado.Portanto, para os grandes espíritos é provavelmente mais útil queeles se dêem conta de sua força e da origem desta, que apreendam

as qualidades puramente humanas que neles confluíram, as felizescircunstâncias que ali se juntaram: energia incessante, dedicaçãoresoluta a certos fins, grande coragem pessoal; e também a fortunade uma educação que logo ofereceu os melhores mestres, modelose métodos. É claro que, se têm por objetivo provocar o maior efeito  possível, a falta de clareza sobre si mesmos e aquelasemiloucura extra sempre ajudaram muito; pois em todos os

tempos o que se admirou e se invejou neles foi justamente a forçamediante a qual anulam a vontade dos homens e os arrastam àilusão de que à sua frente estão líderes sobrenaturais. Sim, acreditar que alguém possui poderes sobrenaturais é algo que eleva eentusiasma os homens: neste sentido a loucura, como diz Platão,trouxe as maiores bênçãos para os homens. — Em alguns casosraros, essa porção de loucura pode também ter sido o meio pelo

qual se conservou inteira uma natureza excessiva em todos osaspectos: também na vida dos indivíduos as alucinações têm comfreqüência o valor de remédios que em si são venenos; mas emtodo "gênio" que acredita na própria divindade o veneno se mostraafinal, à medida que o "gênio" envelhece: recordemos Napoleão, por exemplo, cujo ser cresceu e se tornou a unidade poderosa que odistingue entre os homens modernos, sem dúvida graças à fé em simesmo e em sua estrela e ao desprezo pelos homens deladecorrente, até que enfim essa mesma fé se transformou numfatalismo quase louco, despojando-o da rapidez e agudeza de visãoe vindo a ser causa de sua ruína.

165. O gênio e o nada. — São justamente os cérebros originais

entre os artistas, os que criam a partir de si mesmos, que em certascircunstâncias podem produzir o totalmente vazio e insípido,enquanto as naturezas mais dependentes, os assim chamadostalentos, estão cheias de lembranças de todas as coisas boas possíveis, e mesmo em estado de fraqueza produzem algo tolerável.Se os originais abandonam a si mesmos, porém, a memória nãolhes dá nenhuma ajuda: eles se tornam vazios.

166. O público. — Tudo o que o povo exige da tragédia é ficar 

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 bem comovido, para poder derramar boas lágrimas; já o artista, aoer uma nova tragédia, tem prazer nas invenções técnicas e

artifícios engenhosos, no manejo e distribuição da matéria, no novoemprego de velhos motivos, velhas idéias. Sua atitude é a atitudeestética frente à obra de arte, a daquele que cria; a primeiradescrita, que considera apenas o conteúdo,80  é a do povo. Dohomem que está no meio não há o que dizer, ele não é povo nemartista e não sabe o que quer: também o seu prazer é confuso e pequeno.

167.  Educação artística do público. — Quando o mesmo

motivo não é tratado de cem maneiras distintas por mestresdiversos, o público não aprende a ultrapassar o interesse peloconteúdo; mas por fim ele mesmo capta e desfruta as nuances, asnovas e delicadas invenções no tratamento desse motivo, ou seja,quando há muito conhece o motivo, através de numerosaselaborações, e não mais experimenta o fascínio da novidade, dacuriosidade.

168.  O artista e seu séquito devem manter o passo. — Oavanço de um nível de estilo a outro deve ser lento o bastante paraque não só os artistas, mas também os ouvintes e espectadoresfaçam o mesmo avanço e saibam exatamente o que sucede. Casocontrário, surge aquele enorme abismo entre o artista que cria suasobras numa altura distante e o público que já não alcança aquelaaltura e por fim, desalentado, desce ainda mais. Pois quando oartista não mais eleva o seu público, este decai rapidamente, e demaneira tanto mais profunda e perigosa quanto mais alto o tiver conduzido um gênio, semelhante à águia de cujas garras atartaruga, levada até as nuvens, tem a desgraça de cair.

169.  Origem do cômico. — Quando se considera que por centenas de milhares de anos o homem foi um animalextremamente sujeito ao temor, e que qualquer coisa repentina ouinesperada o fazia preparar-se para a luta, e talvez para a morte, eque mesmo depois, nas relações sociais, toda a segurançarepousava sobre o esperado, sobre o tradicional no pensar e noagir, então não deve nos surpreender que, diante de tudo o que seja

repentino e inesperado em palavras e ação, quando sobrevém sem perigo ou dano, o homem se desafogue e passe ao oposto dotemor: o ser encolhido e trêmulo de medo se ergue e se expande — o homem ri. A isso, a essa passagem da angústia momentânea àalegria efêmera, chamamos de cômico. No fenômeno do trágico, por outro lado, o homem passa rapidamente de uma grande eduradoura alegria para um grande medo; mas, como entre os

mortais essa grande e duradoura alegria é muito mais rara que asocasiões de angústia, há no mundo muito mais comicidade do quetragédia; rimos com muito mais freqüência do que ficamosabalados.

170.  Ambição de artista. — Os artistas gregos, os trágicos,

 por exemplo, criavam para vencer; toda a sua arte é impensávelsem a competição: a boa Éris de Hesíodo, a Ambição, dava asas ao

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seu gênio. Esta ambição exigia, antes de tudo, que sua obramantivesse a excelência máxima aos seus próprios olhos, tal comoeles  compreendiam a excelência, sem consideração por um gostoreinante e pela opinião geral sobre o que é excelente numa obra dearte; e assim Ésquilo e Eurípides permaneceram muito tempo semsucesso, até que, enfim, educaram-se  juízes de arte que avaliaramsuas obras conforme critérios por eles mesmos estabelecidos.Desse modo procuram a vitória sobre os rivais segundo sua própriaavaliação, ante o seu próprio tribunal, querem de fato ser   maisexcelentes; depois exigem a concordância externa à sua avaliação, aconfirmação do seu julgamento. Lutar pela glória81 significa "fazer-

se superior e desejar que isso também apareça publicamente". Sefalta a primeira coisa, e a segunda é mesmo assim desejada, fala-sede vaidade. Quando falta a segunda, e esta ausência não é sentida,fala-se de orgulho.

171. O necessário na obra de arte. — Aqueles que tanto falamdo necessário numa obra de arte exageram, se são artistas, in

majorem artis gloriam [para maior glória da arte], ou, se são leigos, por ignorância. As formas de uma obra de arte, que exprimem suasidéias, que são sua maneira de falar, têm sempre algo defacultativo,82  como toda espécie de linguagem. O escultor podeacrescentar ou omitir muitos pequenos traços: assim também ointérprete, seja ele um ator ou, em música, um virtuose ou maestro.Esses muitos pequenos traços e retoques lhe satisfazem num

momento, e no outro, não; estão ali mais pelo artista do que pelaarte, pois também ele precisa, no rigor e na autodisciplinarequeridos pela apresentação da idéia básica, de doces e brinquedos para não se aborrecer.

172.  Fazendo esquecer o mestre. — O pianista que executa a

obra de um mestre terá tocado da melhor maneira possível se fizer esquecer o mestre e se der a impressão de que conta uma históriasua ou de que justamente então vivencia algo. Claro que, se ele nãotiver importância, todo o mundo amaldiçoará a loquacidade comque nos fala de sua vida. Ele tem de saber conquistar a imaginaçãodo ouvinte, portanto. Assim se explicam todas as fraquezas e foliasdo "virtuosismo".

173.  Corriger la fortune. — Há acasos ruins na vida dosgrandes artistas, que obrigam um pintor, por exemplo, a apenasesboçar como uma idéia ligeira o seu quadro mais importante, ouque obrigaram Beethoven a nos deixar em algumas grandes sonatas(como a em Si maior)83 apenas a insuficiente versão para piano deuma sinfonia. Nisso o artista que vem depois deve procurar corrigir 

a vida dos grandes homens: o que faria, por exemplo, aquele que,sendo um mestre dos efeitos orquestrais, despertasse para a vidaesta sinfonia que se acha em morte aparente no piano.

174.  Diminuição. — Há coisas, acontecimentos e pessoas quenão suportam ser tratados em pequena escala. Não se pode reduzir 

o grupo de Laocoonte84

 às dimensões de um bibelô; a grandeza lheé necessária. Muito mais raro, porém, é algo pequeno por natureza

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suportar o engrandecimento; de maneira que os biógrafos sempreconseguirão mais facilmente apresentar como pequeno um grandehomem do que um pequeno como grande.

175.  A sensualidade na arte contemporânea. — Hoje em dia osartistas freqüentemente se enganam, quando se esforçam por obter 

um efeito sensual com suas obras; porque seus espectadores ououvintes já não têm os sentidos plenos, e a obra, totalmente contraa intenção do artista, leva-os a uma "santidade" da percepção que é parenta próxima do tédio. — Sua sensualidade talvez comece ondea do artista acaba; elas se encontrariam num ponto, quando muito.

176.  Shakespeare como moralista . — Shakespeare refletiumuito sobre as paixões e, provavelmente por seu temperamento,teve acesso íntimo a muitas delas (os dramaturgos são, em geral, pessoas um tanto más). Porém não conseguiu, como Montaigne,falar a respeito delas, e colocou suas observações sobre as paixõesna boca de figuras apaixonadas: o que sem dúvida é contrário à

natureza, mas torna seus dramas tão ricos de pensamentos, queeles fazem os demais parecerem vazios e facilmente despertamaversão geral a eles. — As sentenças de Schiller (quase sempre baseadas em idéias falsas ou insignificantes) são sentenças para oteatro, e como tais causam grande efeito: enquanto as sentenças deShakespeare fazem honra ao seu modelo Montaigne, e contêm sobforma polida pensamentos muito sérios, mas por isso demasiadoremotos e sutis para os olhos do público teatral, e portantoineficazes.

177.  Fazer-se ouvir bem. — Devemos não apenas saber tocar  bem, mas igualmente fazer com que nos ouçam bem. O violino, nasmãos do maior dos mestres, emite apenas um chiado, quando a sala

é grande demais; pode-se então confundir o mestre com umarranhador qualquer.

178.  A eficácia do incompleto. — Assim como as figuras emrelevo fazem muito efeito sobre a imaginação por estarem comoque a ponto de sair da parede e subitamente se deterem, inibidas por algo: assim também a apresentação incompleta, como umrelevo, de um pensamento, de toda uma filosofia, é às vezes maiseficaz que a apresentação exaustiva: deixa-se mais a fazer paraquem observa, ele é incitado a continuar elaborando o que lheaparece tão fortemente lavrado em luz e sombra, a pensá-lo até ofim e superar ele mesmo o obstáculo que até então impedia odesprendimento completo.

179. Contra os originais. — Quando a arte se veste do tecidomais gasto é que melhor a reconhecemos como arte.

180.  Espírito coletivo. — Um bom escritor não tem apenas oseu próprio espírito, mas também o espírito de seus amigos.

181.  Duas espécies de desconhecimento. — O infortúnio dosescritores agudos e claros é que os consideramos rasos, e por isso

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não lhes dispensamos maior esforço; e a sorte dos escritoresobscuros é que o leitor se ocupa bastante deles e lhes credita o prazer que tem com sua própria diligência.

182.  Relação com a ciência. — Não têm real interesse por umaciência aqueles que começam a se entusiasmar por ela somente

depois que nela fazem descobertas.

183.  A chave. — Aquele pensamento ao qual, sob o riso e oescárnio dos medíocres, um homem eminente dá grande valor, é para ele uma chave de tesouros secretos, e para aqueles apenas um

 pedaço de ferro velho.

184.  Intraduzível . — Não é o melhor nem o pior num livro,aquilo que nele é intraduzível.

185.  Paradoxos do autor . — Os chamados paradoxos do

autor, aos quais o leitor faz objeção, freqüentemente não estão nolivro do autor, mas na cabeça do leitor.

186.   Espirituosidade. — Os autores mais espirituosos provocam o sorriso mais imperceptível.

187.  A antítese. — A antítese é a porta estreita que o erro maisgosta de usar para se introduzir na verdade.

188.  Pensadores como estilistas. — A maioria dos pensadoresescreve mal, porque nos comunica não apenas seus pensamentos,mas também o pensar dos pensamentos.

189.  Idéias na poesia. — O poeta conduz solenemente suasidéias na carruagem do ritmo: porque habitualmente elas nãoconseguem andar sozinhas.

190. O pecado contra o espírito do leitor . — Quando o autor nega seu talento para se equiparar ao leitor, comete o único pecado

mortal que este jamais lhe perdoa; caso o perceba, naturalmente.Pode-se dizer tudo quanto é ruim de um homem; mas na maneirade dizê-lo devemos saber restaurar sua vaidade.

191.  O limite da honestidade. — Também o escritor maishonesto deixa escapar uma palavra a mais, quando quer arredondar um período.

192. O melhor autor . — O melhor autor será aquele que temergonha de se tornar escritor.

193.   Lei draconiana para os escritores. — Deveríamosconsiderar o escritor como um malfeitor que apenas em raríssimos

casos merece a absolvição ou a graça: isto seria um remédio contraa proliferação dos livros.

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194. Os bufões da cultura moderna. — Os bufões das cortesmedievais correspondem aos nossos folhetinistas; é o mesmo tipode homens, semi-racionais, espirituosos, exagerados, tolos, àsezes presentes tão-só para amenizar o pathos  de um estado de

espírito através de repentes85 e de tagarelice, e para abafar com seualarido o toque de sino pesado e solene dos grandes eventos;outrora a serviço de príncipes e nobres, agora a serviço dos partidos (tanto que no espírito e na disciplina do partido sobrevivehoje uma boa parte da antiga submissão do povo no relacionamentocom o príncipe). Mas toda a classe dos literatos modernos estámuito próxima dos folhetinistas, são os "bufões da cultura

moderna", que julgamos mais suavemente, ao não tomá-los comointeiramente responsáveis. Tomar a atividade de escrever comouma profissão da vida inteira deveria razoavelmente ser consideradouma espécie de loucura.

195.  Tal como os gregos . — Nos dias de hoje é um grandeobstáculo para o conhecimento o fato de, graças a uma

exacerbação do sentimento que já dura um século, as palavrasterem se tornado vaporosas e infladas. O grau superior da cultura,que se coloca sob o domínio (se não sob a tirania) doconhecimento, tem necessidade de uma grande sobriedade dosentimento e forte concentração das palavras; nisso os gregos daépoca de Demóstenes nos precederam. O exagero caracteriza ostextos modernos; e mesmo quando são escritos de maneira

simples, as palavras que contêm são sentidas  muitoexcentricamente. Reflexão severa, concisão, frieza, simplicidadedeliberadamente levada ao extremo; em suma, restrição dosentimento e laconismo — só isso pode ajudar. — Aliás, esse modofrio de escrever e sentir é agora, por contraste, muito sedutor: e aíestá um novo perigo, certamente. Pois o frio agudo é umestimulante tão bom quanto o calor elevado.

196.   Bons narradores, maus explicadores . — Nos bonsnarradores há freqüentemente uma segurança e coerência psicológica admirável, na medida em que ela se mostra nos atos deseus personagens, num contraste francamente ridículo com aineptidão do seu pensamento psicológico: de modo que sua cultura

 parece, num dado instante, excelente e elevada, e lamentavelmente baixa no instante seguinte. Acontece com muita freqüência que elesexpliquem seus heróis e as ações destes de maneira visivelmenteerrada — quanto a isso não há dúvida, embora pareça improvável.Talvez o maior dos pianistas tenha refletido pouco sobre ascondições técnicas e a especial virtude, falha, utilidade eeducabilidade de cada dedo (ética dactílica), cometendo erros

grosseiros ao falar dessas coisas.

197. Os escritos de nossos conhecidos e seus leitores. — Lemosde maneira dupla o que escrevem os conhecidos (amigos einimigos), na medida em que nosso conhecimento nos sussurra permanentemente: "Isso é dele, é uma marca de sua naturezainterior, de suas vivências, de seu talento", enquanto uma outraespécie de conhecimento busca verificar que proveito tem essaobra, que estima ela merece independentemente do autor, que

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enriquecimento traz para o saber. Essas duas espécies de leitura ede consideração se chocam, está claro. Mesmo a conversa com umamigo só produzirá bons frutos de conhecimento quando ambos pensarem apenas na questão e esquecerem que são amigos.

198. Sacrifício do ritmo. — Bons escritores mudam o ritmo dealguns períodos, apenas por não reconhecerem no leitor comum acapacidade de apreender a cadência do período na sua primeiraersão: por isso facilitam as coisas para ele, dando preferência a

ritmos mais conhecidos. — Essa consideração pela incapacidaderítmica dos leitores atuais já arrancou alguns suspiros, pois muito já

lhe foi sacrificado. Não acontece algo semelhante com os bonsmúsicos?

199.  O incompleto como estimulante artístico. — O que éincompleto produz, com freqüência, mais efeito que o completo,sobretudo no panegírico: este requer precisamente a instiganteincompletude, como um elemento irracional que mostra à

imaginação do ouvinte um mar e, semelhante a uma névoa, escondea margem oposta, isto é, os limites do objeto a ser louvado. Quandomencionamos os méritos conhecidos de uma pessoa, e o fazemosde maneira larga e minuciosa, pode ocorrer a suspeita de queseriam os únicos méritos. Quem louva de maneira completa se põeacima do elogiado, parece perdê-lo de vista.86  Por isso o que écompleto tem um efeito debilitante.

200. Cautela no escrever e no ensinar . — Quem já escreveu, esente em si a paixão de escrever, quase que só aprende, de tudo oque faz e vive, aquilo que é literariamente comunicável. Já não pensa em si, mas no escritor e seu público; ele quer compreender,87  mas não para uso próprio. Quem é professor,

geralmente é incapaz de ainda fazer algo para o próprio bem, estásempre pensando no bem de seus alunos, e cada conhecimento sóo alegra na medida em que pode ensiná-lo. Acaba por considerar-seuma via de passagem para o saber, um simples meio, de modo que perde a seriedade para consigo.

201.  Necessidade de maus escritores. — Sempre deverão existir maus escritores, pois eles atendem ao gosto das faixas de idade nãodesenvolvidas, imaturas; estas têm suas necessidades, tanto comoas maduras. Se a vida humana fosse mais longa, o número deindivíduos amadurecidos seria maior ou, no mínimo, tão grandequanto o de imaturos; ocorre que a imensa maioria morre cedodemais, isto é, há sempre bem mais intelectos não desenvolvidos ecom mau gosto. Além disso eles desejam, com a enormeeemência da juventude, a satisfação daquilo de que necessitam, eorçam o surgimento de maus autores.

202.  Perto demais e longe demais. — É freqüente o leitor e oautor não se entenderem porque o autor conhece bem demais o seutema e o acha quase enfadonho, dispensando os exemplos que

conhece às dúzias; mas o leitor é estranho à matéria, e a consideramal fundamentada se os exemplos lhe são negados.

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203. Uma preparação para a arte que desapareceu. — De tudoo que se fazia no ginásio,88  o mais valioso era a prática do estilolatino: pois ela era um exercício de arte, enquanto as demaisocupações tinham apenas o saber por objetivo. Dar primazia àcomposição alemã é barbarismo, pois não temos estilo alemãoexemplar, que se tenha nutrido da eloqüência pública; mas, sequisermos promover o exercício do pensamento através dacomposição alemã, será sem dúvida melhor ignorar momentaneamente o estilo, ou seja, distinguir entre o exercício do pensamento e o da exposição. Este último deveria se aplicar às

árias formulações de um dado conteúdo, e não à invenção

independente de um conteúdo. A simples exposição de um dadoconteúdo era a tarefa do estilo latino, para o qual os velhos mestres possuíam uma finura de ouvido que há muito se perdeu. Quemantes aprendia a escrever bem numa língua moderna, devia talhabilidade a esse exercício (hoje temos que obrigatoriamentefreqüentar os antigos franceses); mais ainda: esse alguém obtinhanoção da majestade e dificuldade da forma, e preparava-se para a

arte pela única via correta — a prática.

204. O escuro e o muito claro bem próximos . — Escritores queem geral não sabem dar clareza a suas idéias preferirão, em casos particulares, os termos e superlativos mais fortes, mais exagerados:o que produz um efeito semelhante à luz de archotes ememaranhados caminhos da floresta.

205.   Pintura literária. — Um objeto significativo serárepresentado melhor quando se toma as cores para o quadro do próprio objeto, como um químico, usando-as depois como umartista: de modo que o desenho resulte das fronteiras e gradaçõesdas cores. Assim a pintura adquire algo do elemento natural

arrebatador, que torna significativo o próprio objeto.

206.  Livros que ensinam a dançar . — Há escritores que, por apresentarem o impossível como possível e falarem do moral e dogenial como se ambos fossem apenas um capricho, um gosto, provocam um sentimento de liberdade exuberante, como se ohomem se colocasse na ponta dos pés e tivesse absolutamente que

dançar por prazer interior.

207.  Pensamentos inacabados. — Assim como não apenas aidade adulta, mas também a juventude e a infância têm valor em si,não devendo ser estimadas tão-só como pontes e passagens, domesmo modo têm seu valor os pensamentos inacabados. Por isso

não devemos atormentar um poeta com uma sutil exegese, masalegrarmo-nos com a incerteza de seu horizonte, como se ocaminho para vários pensamentos ainda estivesse aberto. Estamosno limiar; esperamos, como a desenterrar um tesouro: como seestivesse para ocorrer um profundo achado. O poeta antecipa algodo prazer do pensador, quando este encontra um pensamentocapital, e assim nos faz tão ávidos que procuramos apanhá-lo; mas

ele passa volteando por nossa cabeça, mostrando suas belíssimasasas de borboleta — e contudo nos escapa.

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208.  O livro quase tornado gente. — Para todo escritor ésempre uma surpresa o fato de que o livro tenha uma vida própria,quando se desprende dele; é como se parte de um inseto sedestacasse e tomasse um caminho próprio. Talvez ele se esqueçado livro quase totalmente, talvez se eleve acima das opiniões quenele registrou, talvez até não o compreenda mais, e tenha perdidoas asas em que voava ao concebê-lo: enquanto isso o livro buscaseus leitores, inflama vidas, alegra, assusta, engendra novas obras,torna-se a alma de projetos e ações — em suma: vive como um ser dotado de espírito e alma, e contudo não é humano. — A sortemaior será a do autor que, na velhice, puder dizer que tudo o que

nele eram pensamentos e sentimentos fecundantes, animadores,edificantes, esclarecedores, continua a viver em seus escritos, eque ele próprio já não representa senão a cinza, enquanto o fogo sesalvou e em toda parte é levado adiante. — Se considerarmos quetoda ação de um homem, não apenas um livro, de alguma maneiraai ocasionar outras ações, decisões e pensamentos, que tudo o que

ocorre se liga indissoluvelmente ao que vai ocorrer, perceberemos a

erdadeira imortalidade, que é a do movimento: o que uma vez semoveu está encerrado e eternizado na cadeia total do que existe,como um inseto no âmbar.

209.  Alegria na velhice. — O pensador ou artista que guardouo melhor de si em suas obras sente uma alegria quase maldosa, aoolhar seu corpo e seu espírito sendo alquebrados e destruídos pelo

tempo, como se de um canto observasse um ladrão a arrombar seucofre, sabendo que ele está vazio e que os tesouros estão salvos.

210. Serena fecundidade. — Os aristocratas natos do espíritonão são muito zelosos; suas criações aparecem e caem da árvorenuma tranqüila tarde de outono, sem que sejam impacientemente

desejadas, encorajadas, pressionadas pelo novo. O desejoincessante de criar é vulgar, demonstra fervor, inveja, ambição.Quando se é alguma coisa, não é preciso fazer nada — e contudose faz muito. Acima do homem "produtivo" há uma espécie maiselevada.

211.  Aquiles e Homero. — É sempre como foi com Aquiles e

Homero: um tem a vivência, a sensação, o outro as descreve. Umerdadeiro escritor dá somente palavras aos afetos e à experiência

dos outros, ele é artista o suficiente para, a partir do pouco quesentiu, adivinhar bastante. Os artistas não são de modo algumhomens de grandes paixões, mas freqüentemente fingem  sê-lo,com a percepção inconsciente de que as paixões por eles pintadasreceberão maior crédito, se suas próprias vidas indicaremexperiência nesse campo. Basta apenas se deixar levar, não sedominar, conceder livre jogo a sua ira e seu desejo, e logo o mundointeiro gritará: como ele é apaixonado! Mas a paixão que revolve,que consome e freqüentemente devora o indivíduo, tem seu peso:quem a vivencia não a descreve em peças teatrais, sons ouromances. Com freqüência os artistas são indivíduos desenfreados,ustamente na medida em que não são artistas: mas isso é outracoisa.

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212.  Dúvidas antigas sobre o efeito da arte. — Seriam acompaixão e o medo, como quer Aristóteles, realmente purgados pela tragédia, de modo que o espectador volta para casa mais frio emais calmo? Deveriam as histórias de fantasmas tornar as pessoasmenos medrosas e supersticiosas? No caso de alguns processosfísicos, no ato do amor, por exemplo, é verdade que, com asatisfação de uma necessidade, há uma mitigação e uma temporáriadiminuição do instinto. Mas o medo e a compaixão não são, nestesentido, necessidades de determinados órgãos que querem ser aliviadas. E com o tempo o próprio instinto é, mediante o exercícioda satisfação, reforçado, apesar das mitigações periódicas. É

 possível que em todo caso individual a compaixão e o medo sejamatenuados e purgados pela tragédia: no entanto, pelo efeito trágico poderiam ser ampliados no conjunto, e Platão talvez tivesse razãoem pensar que a tragédia nos torna mais medrosos e sentimentais,afinal. Então o próprio autor trágico adquiriria necessariamente umaisão do mundo sombria e medrosa, e uma alma tenra, suscetível e

lacrimosa; também estaria de acordo com Platão, se os autores

trágicos, e as comunidades inteiras que com eles se deleitamespecialmente, degeneram numa crescente falta de medida e defreio. — Mas que direito tem nossa época de responder a enormequestão de Platão acerca da influência moral da arte? Mesmo quetivéssemos a arte — onde está a influência, uma influênciaqualquer  da arte?

213. O prazer no absurdo . — Como pode o homem ter prazer no absurdo? Onde quer que haja risos no mundo, isto acontece; pode-se mesmo dizer que, em quase toda parte onde existefelicidade, existe o prazer no absurdo. A inversão da experiência emseu contrário, do que tem finalidade no que não tem, do necessáriono arbitrário, mas de modo que este processo não cause nenhummal e seja concebido apenas por exuberância — isso deleita, poisnos liberta momentaneamente da coerção do necessário, doapropriado e experimentado, que costumamos ver como nossossenhores implacáveis; brincamos e rimos quando o inesperado (quegeralmente amedronta e inquieta) se desencadeia sem prejudicar. Éo prazer dos escravos nas Saturnais.

214.  Enobrecimento da realidade. — O fato de que os homensiam no impulso afrodisíaco uma divindade, e com reverentegratidão o sentiam atuar dentro de si, levou a que no curso dotempo esse afeto fosse permeado com séries de concepções maiselevadas,89  assim ficando realmente muito enobrecido. Em virtudedessa arte da idealização, alguns povos transformaram doenças em poderosos auxiliares da cultura: os gregos, por exemplo, que nos

 primeiros séculos sofreram grandes epidemias nervosas (na formada epilepsia e da dança de São Guido) e disso formaram o tipomagnífico da bacante. Pois algo que os gregos não possuíam erauma saúde robusta — seu segredo era venerar também a doençacomo uma divindade, desde que tivesse poder .

215.  A música. — A música, em si, não é tão significativa parao nosso mundo interior, tão profundamente tocante, que possaaler como linguagem imediata  do sentimento; mas sua ligação

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ancestral com a poesia pôs tanto simbolismo no movimentorítmico, na intensidade ou fraqueza do tom, que hoje imaginamosque ela fale diretamente ao nosso íntimo e que dele parta. A músicadramática é possível apenas quando a arte sonora conquistou umimenso domínio de meios simbólicos, com o lied , a ópera ecentenas de tentativas de pintura tonal. A "música absoluta" é, ouforma em si, no estado cru da música, em que o ressoar medido eariamente acentuado já causa prazer, ou o simbolismo das formas,

que sem poesia já fala à compreensão, depois que as duas artesestiveram unidas numa longa evolução, e por fim a forma musicalse entreteceu totalmente com fios de conceitos e sentimentos. Os

homens que permaneceram atrasados no desenvolvimento damúsica podem sentir de maneira puramente formal a peça que osavançados entendem de modo inteiramente simbólico. Em si,música alguma é profunda ou significativa, ela não fala da"vontade" ou da "coisa em si"; isso o intelecto só pôde imaginar numa época que havia conquistado toda a esfera da vida interior  para o simbolismo musical. Foi o próprio intelecto que introduziu

tal significação no som: assim como pôs nas relações de linhas emassas da arquitetura um significado que é, em si, completamenteestranho às leis mecânicas.

216. Gesto  e  linguagem. — Mais antiga que a linguagem é aimitação dos gestos, que acontece involuntariamente e que aindahoje, com toda a supressão da linguagem gestual e a educação para

controlar os músculos, é tão forte que não podemos ver um rostoque se altera sem que haja excitação do nosso próprio rosto(podemos observar que um bocejo simulado provoca, em quem oê, um bocejo natural). O gesto imitado reconduzia o imitador ao

sentimento que expressava no rosto ou no corpo do imitado. Assimaprendemos a nos compreender; assim a criança aprende acompreender a mãe. Em geral, sensações dolorosas eram provavelmente expressas também por gestos que causavam dor (por exemplo, arrancar os cabelos, bater no peito, distorcer eretesar violentamente os músculos do rosto). Inversamente, gestosde prazer eram eles próprios prazerosos, e com isso se prestavam acomunicar o entendimento (o riso como expressão da cócega, queé prazerosa, serviu também para exprimir outras sensações

 prazerosas). — Tão logo as pessoas se entenderam pelos gestos, pôde nascer um simbolismo dos gestos: isto é, pudemos nos pôr deacordo acerca de uma linguagem de signos sonoros, de modo a produzir primeiro som e  gesto (ao qual o primeiro se juntavasimbolicamente) e mais tarde só o som. — Nos primeiros temposdeve ter ocorrido freqüentemente o que agora sucede ante nossosolhos e ouvidos no desenvolvimento da música, notadamente a

música dramática: enquanto num primeiro momento, sem dança emímica (linguagem de gestos) explicativas, música é ruído vazio,graças a uma longa habituação a essa convivência de música emovimento o ouvido é educado para interpretar imediatamente asfiguras sonoras, e por fim chega a um nível de rápidacompreensão, em que já não tem necessidade do movimento visívele sem o qual entende  o compositor. Fala-se então de música

absoluta, isto é, de música em que tudo é logo compreendidosimbolicamente, sem qualquer ajuda.

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217.   A dessensualização da grande arte. — Graças aoextraordinário exercício imposto ao intelecto pela evolução artísticada nova música, nossos ouvidos se tornaram cada vez maisintelectuais. Por isso hoje suportamos um volume de som bemmaior, muito mais "barulho", porque estamos bem mais treinadosdo que nossos predecessores para escutar a razão que existe nele.Pois pelo fato de agora buscarem imediatamente a razão, ou seja, "oque significa", e não mais "o que é", nossos sentidos ficaram algoembotados: embotamento que se revela, por exemplo, no domínioincondicional do sistema temperado; pois constituem exceção osouvidos que ainda fazem distinções sutis, como entre dó sustenido

e ré bemol. Neste ponto nosso ouvido ficou mais grosseiro. Edepois o lado feio do mundo, originalmente hostil aos sentidos, foiconquistado para a música; sua esfera de poder, sobretudo para aexpressão do sublime, do terrível, do misterioso, aumentouespantosamente com isso; agora nossa música dá a palavra a coisasque antes não tinham linguagem. De modo semelhante, alguns pintores tornaram o olho mais intelectual e ultrapassaram em muito

aquilo que antes se chamava prazer das cores e das formas.Também aqui o lado do mundo que era tido como feio foiconquistado pela inteligência artística. — Qual a conseqüência detudo isso? Quanto mais capazes de pensar se tornam o olho e oouvido, tanto mais se aproximam da fronteira em que se tornaminsensíveis:90  o prazer é transferido para o cérebro, os própriosórgãos dos sentidos se tornam embotados e débeis, o simbólico

toma cada vez mais o lugar daquilo que é91 — e assim chegamos à barbárie por esse caminho, tão seguramente como por qualquer outro. No momento ainda se diz: o mundo é mais feio do quenunca, mas significa  um mundo mais belo do que jamais foi. Masquanto mais se dispersa e volatiliza a fragrância do significado,tanto mais raros se tornam aqueles que ainda a percebem: osrestantes se detêm enfim no que é feio e tentam fruí-lo diretamente,

o que jamais conseguem. De modo que há na Alemanha uma duplacorrente de evolução musical: de um lado um grupo de dez mil pessoas, com exigências cada vez mais elevadas e delicadas, e cada

ez mais atentas para o "isso significa", e de outro lado a imensamaioria, que a cada ano se torna mais incapaz de entender osignificativo também na forma da feiúra sensorial, e por issoaprende a buscar na música o feio e repugnante em si, isto é, o baixamente sensual, com satisfação cada vez maior.

218.  A pedra é mais pedra do que antes. — Em geral já nãoentendemos a arquitetura, pelo menos não do modo comoentendemos a música. Distanciamo-nos do simbolismo das linhas efiguras, assim como nos desabituamos dos efeitos sonoros da

retórica, e não mais nos nutrimos dessa espécie de leite culturalmaterno já no primeiro instante de nossa vida. Numa construçãogrega ou cristã, originalmente tudo significava algo, em relação auma ordem superior das coisas: essa atmosfera de inesgotávelsignificação envolvia o edifício como um véu encantado. A belezase incluía apenas de modo secundário no sistema, não prejudicandoessencialmente o sentimento básico do sublime-inquietante, do

consagrado pela vizinhança divina e pela magia; no máximo, a beleza amenizava o horror  — mas esse horror era em toda parte o

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 pressuposto. — O que é para nós, hoje em dia, a beleza de umaconstrução? O mesmo que o belo rosto de uma mulher semespírito: algo como uma máscara.

219. Origem religiosa da música moderna . — A música cheiade alma surge no catolicismo restaurado após o Concílio de Trento,

com Palestrina, que providenciou sonoridades para o espíritorecém-desperto e profundamente movido; depois com Bach, no protestantismo, na medida em que este foi aprofundado e despojadode seu dogmatismo original pelos pietistas.92  Um pré-requisito eestágio preliminar necessário, nas duas origens, foi ocupar-se da

música tal como se fazia na época do Renascimento e Pré-Renascimento, isto é, de maneira douta, com aquele prazer, nofundo científico, pelos artifícios da harmonia e do contraponto. Etambém foi necessário o precedente da ópera: na qual o leigomanifestava seu protesto contra uma música que se tornara fria,excessivamente douta, e pretendia devolver a Polímnia93 sua alma. — Sem essa mudança profundamente religiosa, sem o ressoar de

um ânimo intimamente tocado, a música teria permanecido doutaou operística; o espírito da Contra-Reforma é o espírito da músicamoderna (pois o pietismo da música de Bach é também umaespécie de Contra-Reforma). Tão profunda é a nossa dívida paracom a vida religiosa. — A música foi a Contra-Renascença  nodomínio da arte; a ela se relaciona a pintura da última fase deMurillo, e talvez também o estilo barroco; em todo o caso, mais

que a arquitetura da Renascença ou da Antigüidade. E agora podemos perguntar: se nossa música moderna pudesse mover as pedras, chegaria a juntá-las numa arquitetura antiga? Duvido bastante. Pois aquilo que reina nessa música, o afeto, o prazer emdisposições elevadas e exaltadas, o querer a vitalidade a todo preço,a brusca mudança de sentimento, o intenso relevo em luz e sombra,a justaposição do extático e do ingênuo — tudo isso já reinou nasartes plásticas e criou novas leis de estilo: — mas não naAntigüidade, nem na época da Renascença.

220.  O Além na arte. — Não é sem profundo pesar queadmitiremos que os artistas de todos os tempos, em seus mais altosôos, levaram a uma transfiguração celestial exatamente as

concepções que hoje reconhecemos como falsas: eles glorificam oserros religiosos e filosóficos da humanidade, e não poderiam fazê-losem acreditar na verdade absoluta desses erros. Se a crença em talerdade diminui, empalidecem as cores do arco-íris nos extremos

do conhecer e do imaginar humanos: então nunca mais poderáflorescer o gênero de arte que, como a Divina comédia, os quadrosde Rafael, os afrescos de Michelangelo, as catedrais góticas,

 pressupõe um significado não apenas cósmico, mas tambémmetafísico nos objetos da arte. Um dia, uma lenda comoventecontará que existiu certa vez uma tal arte, uma tal crença de artista.

221.  A revolução na poesia . — A severa coerção que seimpuseram os dramaturgos franceses, com respeito à unidade deação, de tempo e lugar, ao estilo, à construção do verso e da frase,à escolha de palavras e pensamentos, foi uma escola tão importantecomo a do contraponto e da fuga na evolução da música moderna,

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ou como as figuras de Górgias na eloqüência grega. Restringir-sedesse modo pode parecer absurdo; mas não há outro meio deescapar ao naturalismo, senão limitando-se, no início, o maisseveramente (talvez o mais arbitrariamente) possível. Assim seaprende aos poucos a caminhar com graça, mesmo nas estreitas pontes que ligam abismos vertiginosos, e se retorna com o lucro damais alta flexibilidade do movimento: como a história da músicatem demonstrado a todos os que vivem. Aí se vê comogradualmente as cadeias se tornam mais frouxas, até pareceremabandonadas: tal aparência  é o resultado maior de uma evoluçãonecessária da arte. Na moderna arte poética não houve essa

afortunada liberação gradual das cadeias impostas a si mesma.Lessing fez da forma francesa, isto é, a única forma artísticamoderna, objeto de escárnio na Alemanha, e indicou Shakespeare;assim perdemos a continuidade dessa liberação e demos um salto para o naturalismo — ou seja, de volta ao começo da arte. Goethe procurou salvar-se dele, limitando-se renovadamente de váriasmaneiras; mas mesmo o mais talentoso artista consegue apenas um

experimentar contínuo, se estiver rompido o fio da evolução.Schiller deve a relativa segurança de sua forma ao modelo datragédia francesa, que involuntariamente respeitou, ainda quenegasse, e se manteve independente de Lessing (cujas tentativasdramáticas ele rejeitou, como se sabe). Aos próprios francesesfaltaram, depois de Voltaire, os grandes talentos que teriam prosseguido com a evolução da tragédia, da coerção à aparência de

liberdade; mais tarde, conforme o exemplo alemão, também deramum salto para uma espécie de estado natural da arte, à maneira deRousseau, e fizeram experiências. Leia-se de quando em quando o

aomé de Voltaire, para imaginar com clareza o que, devido a essaruptura da tradição, se perdeu em definitivo para a cultura européia.Voltaire foi o último dos grandes dramaturgos, o último a sujeitar com moderação grega sua alma multiforme, que estava à altura

também das maiores tempestades trágicas — ele foi capaz daquilode que nenhum alemão foi capaz, porque a natureza dos francesesé muito mais aparentada à dos gregos que a natureza dos alemães —; assim como foi o último grande escritor que no tratamento da prosa oratória teve ouvido grego, consciência artística grega esimplicidade e graça gregas; e foi também um dos últimos homensa reunir em si a suprema liberdade do espírito e uma mentalidadedecididamente não revolucionária, sem ser covarde ouinconseqüente. Desde então o espírito moderno, com suainquietude, com seu ódio à medida e ao limite, passou a dominar em todos os campos, primeiro desencadeado pela febre darevolução e depois novamente impondo-se rédeas, quando assaltado por medo e horror de si mesmo — mas as rédeas da lógica, nãomais da medida artística. É certo que devido a essa liberaçãodesfrutamos por algum tempo a poesia de todos os povos, tudo oque cresceu em lugares recônditos, o primitivo, o selvagem, o belo-estranho e o gigantesco-irregular, desde o canto popular até o"grande bárbaro" Shakespeare; saboreamos as alegrias da cor locale do costume da época, até então desconhecidas de todos os povosartísticos; aproveitamos sobejamente as "vantagens bárbaras" de

nosso tempo, que Goethe fez valer contra Schiller, para pôr em luzfavorável a ausência de forma de seu Fausto. Mas por quanto

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tempo ainda? A maré transbordante de poesias de todos os estilos ede todos os povos deverá, pouco a pouco, atingir as partes doglobo onde ainda seria possível um crescimento calmo e recolhido;todos os poetas deverão  se tornar imitadores experimentais,copistas ousados, por maior que seja a sua força no início; e o público, enfim, que desaprendeu de ver no sujeitamento da força deexpressão, no domínio e organização dos meios artísticos, o ato propriamente artístico, deverá cada vez mais apreciar a energia pelaenergia, e mesmo a cor pela cor, a idéia pela idéia, mesmo ainspiração pela inspiração, e por conseguinte não desfrutará oselementos e as condições da obra de arte senão isoladamente, e no

fim das contas fará a exigência natural de que o artista devetambém representá-los isoladamente. Sim, libertamo-nos dascadeias "insensatas" da arte greco-francesa, mas inadvertidamentenos habituamos a achar insensatas todas as cadeias, todas aslimitações; — e assim a arte se move rumo à dissolução, nissotocando — o que é altamente instrutivo, sem dúvida — todas asfases de seus primórdios, de sua infância, de sua imperfeição, das

ousadias e extravagâncias de antanho: ela interpreta, ao sucumbir,sua gênese e seu devir. Um dos grandes, em cujo instinto bem podemos nos fiar e a cuja teoria nada faltou senão trinta anos maisde prática, lorde Byron, disse uma vez: "No que diz respeito à poesia em geral, quanto mais reflito, mais me convenço de quetodos nós estamos no caminho errado, sem exceção. Seguimostodos um sistema revolucionário intimamente errado — a nossa

geração, ou a próxima, chegará à mesma convicção". E foi omesmo Byron quem disse: "Considero Shakespeare o pior modelo,embora o mais extraordinário dos poetas". E no fundo não diz amesma coisa a percepção artística madura de Goethe, na segundametade de sua vida? — essa percepção com a qual conquistoutamanha dianteira sobre várias gerações, de modo que se podeafirmar que Goethe ainda não exerceu sua influência e que seu

tempo ainda está por chegar? Justamente porque sua natureza omanteve durante muito tempo na via da revolução poética,ustamente porque saboreou o mais radicalmente possível tudoquanto, através dessa ruptura com a tradição, foi indiretamentedescoberto e como que desenterrado de sob as ruínas da arte, emtermos de achados, perspectivas, recursos, é que sua posterior transformação e conversão tem tanto peso: significa que eleexperimentou o mais profundo anseio de recuperar a tradição daarte, e dotar da antiga perfeição e inteireza os escombros e arcadasremanescentes dos templos, com a fantasia do olhar, pelo menos,quando a força do braço revelar-se pequena demais para construir,onde a destruição já requereu esforços imensos. Assim viveu ele naarte, como na recordação da verdadeira arte: seu poetar tornou-seum meio de recordar, de compreender épocas artísticas antigas, hámuito passadas. Suas pretensões eram sem dúvida irrealizáveis,tendo em vista a força da idade moderna; mas a dor que sentiu por isso foi largamente compensada pela alegria de saber que elasoram  realizadas um dia, e que também nós ainda podemos

 participar dessa realização. Nada de indivíduos, mas sim máscarasmais ou menos ideais; nada de realidade, mas sim uma generalidade

alegórica; cores locais, caracteres históricos atenuados até ficaremquase invisíveis e tornados míticos; a sensibilidade atual e os

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 problemas da sociedade atual reduzidos às formas mais simples,despojados de suas qualidades excitantes, palpitantes, patológicas,tornados ineficazes  em qualquer outro sentido que não o artístico;nada de temas e caracteres novos, mas sim os velhos e há muitohabituais, numa sempre contínua reanimação e reformulação: isso éa arte, tal como depois Goethe a compreendeu, tal como os gregose também os franceses a praticaram.

222. O que resta da arte. — É verdade que, existindo certos pressupostos metafísicos, a arte tem valor muito maior; por exemplo, quando vigora a crença de que o caráter é imutável e de

que a essência do mundo se exprime continuamente em todos oscaracteres e ações: a obra do artista se torna então a imagem doque subsiste  eternamente, enquanto em nossa concepção o artista pode conferir validade à sua imagem somente por um período, porque o ser humano, como um todo, mudou e é mutável, etampouco o indivíduo é algo fixo e constante. — O mesmo sucedecom outra pressuposição metafísica: supondo que nosso mundo

isível fosse apenas aparência, como pensam os metafísicos, a arteestaria situada bem próxima do mundo real: pois entre o mundo dasaparências e o mundo de sonho do artista haveria muitasemelhança; e a diferença que restasse colocaria até mesmo aimportância94  da arte acima daquela da natureza, porque a arterepresentaria o uniforme, os tipos e modelos da natureza. — Masesses pressupostos são errados: que lugar ainda tem a arte, após

esse conhecimento? Antes de tudo, durante milênios ela nosensinou a olhar a vida, em todas as formas, com interesse e prazer,e a levar nosso sentimento ao ponto de enfim exclamarmos: "Sejacomo for, é boa a vida". 95  Esta lição da arte, de ter prazer naexistência e de considerar a vida humana um pedaço da natureza,sem excessivo envolvimento, como objeto de uma evolução regida por leis — esta lição se arraigou em nós, ela agora vem novamenteà luz como necessidade todo-poderosa de conhecimento.Poderíamos renunciar à arte, mas não perderíamos a capacidadeque com ela aprendemos: assim como pudemos renunciar àreligião, mas não às intensidades e elevações do ânimo adquiridas por meio dela. Tal como as artes plásticas e a música são a medidada riqueza de sentimentos realmente adquirida e aumentada através

da religião, depois que a arte desaparecesse a intensidade emultiplicidade da alegria de vida que ela semeou continuaria a exigir satisfação. O homem científico é a continuação do homemartístico.

223.  Crepúsculo da arte. — Assim como na velhicerecordamos a juventude e celebramos festas comemorativas,

também a humanidade logo se relacionará com a arte como umalembrança comovente das alegrias da juventude. Talvez nunca setenha visto a arte com tanta alma e profundidade como agora,quando o sortilégio da morte parece brincar à sua volta. Pensemosnaquela cidade grega da Itália meridional, que num dia do ano aindacelebrava sua festa helênica, com lágrimas de tristeza pelo fato decada vez mais a barbárie estrangeira triunfar sobre os seus

costumes; jamais se fruiu tanto a coisa helênica,96  em nenhumlugar se sorveu com tal volúpia esse néctar dourado, como entre

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esses gregos moribundos. Logo veremos o artista como umestígio magnífico e lhe prestaremos honras, como a um

estrangeiro maravilhoso, de cuja força e beleza dependia a felicidadedos tempos passados, honras que não costumamos conceder aosnossos iguais. O que há de melhor em nós é talvez legado desentimentos de outros tempos, os quais já não alcançamos por viadireta; o sol já se pôs, mas o céu de nossa vida ainda arde e seilumina com ele, embora não mais o vejamos.

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Capítulo quintoSINAIS DE CULTURASUPERIOR E INFERIOR 

224.  Enobrecimento pela degeneração. — A história ensina quea estirpe que num povo se conserva melhor é aquela em que amaioria dos homens tem um vivo senso da comunidade, emconseqüência da identidade de seus princípios habituais e

indiscutíveis, ou seja, devido a sua crença comum. Ali se reforçamos costumes bons e valorosos, ali se aprende a subordinação doindivíduo, e a firmeza de caráter é primeiro dada e depois cultivada.O perigo dessas comunidades fortes, baseadas em indivíduossemelhantes e cheios de caráter, é o embotamento intensificado aos poucos pela hereditariedade, que segue toda estabilidade como umasombra. Em tais comunidades, é dos indivíduos mais

independentes, mais inseguros e moralmente fracos que depende orogresso  espiritual : são aqueles que experimentam o novo esobretudo o diverso. Inúmeros seres desse tipo sucumbem à própria fraqueza, sem produzir efeito visível, mas em geral,sobretudo se têm descendência, afrouxam e de quando em quandogolpeiam o elemento estável de uma comunidade. Justamente nesse ponto ferido e enfraquecido é como que inoculado  algo novo no

organismo inteiro; mas a sua força tem de ser, no conjunto, grandeo suficiente para acolher no sangue esse algo novo e assimilá-lo. Asnaturezas degenerativas97  são sempre de elevada importância,quando deve ocorrer um progresso. Em geral, todo progresso temque ser precedido de um debilitamento parcial. As naturezas maisfortes conservam o tipo, as mais fracas ajudam a desenvolvê-lo. — Algo semelhante acontece no indivíduo; raramente uma

degeneração, uma mutilação ou mesmo um vício, em suma, uma perda física ou moral, não tem por outro lado uma vantagem. Ohomem doentio, por exemplo, numa estirpe guerreira e inquieta, poderá ter mais ocasião de estar só e assim se tornar mais tranqüiloe sábio, o caolho enxergará mais agudamente, o cego olhará para ointerior mais profundamente, e em todo caso ouvirá com maisapuro. Neste sentido me parece que a famosa luta pelasobrevivência não é o único ponto de vista a partir do qual se podeexplicar o progresso ou o fortalecimento de um homem, uma raça.Para isso devem antes concorrer duas coisas: primeiro, o aumentoda força estável, pela união dos espíritos na crença e no sentimentocomunitário; depois a possibilidade de alcançar objetivos maiselevados, por surgirem naturezas degenerativas e, devido a elas,enfraquecimentos e lesões parciais da força estável; justamente anatureza mais fraca, sendo a mais delicada e mais livre,98  torna possível todo progresso. Um povo que em algum ponto se tornaquebrantado e enfraquecido, mas que no todo é ainda forte esaudável, pode receber a infecção do novo e incorporá-la como benefício. No caso do indivíduo, a tarefa da educação é a seguinte:torná-lo tão firme e seguro que, como um todo, ele já não possa ser 

desviado de sua rota. Mas então o educador deve causar-lheferimentos, ou utilizar os que lhe produz o destino, e, quando a dor 

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e a necessidade tiverem assim aparecido, então algo de novo enobre poderá ser inoculado nos pontos feridos. Toda a sua naturezao acolherá em si mesma e depois, nos seus frutos, fará ver oenobrecimento. — Quanto ao Estado, diz Maquiavel que "a formade governo é de importância bem pequena, embora gente semi-educada pense o contrário. O grande objetivo da política deveria ser a duração, que sobreleva todo o resto, por ser bem mais valiosaque a liberdade".99  Apenas com a máxima duração, firmementeassentada e garantida, é possível desenvolvimento constante einoculação enobrecedora. Sem dúvida isso encontrará normalmentea oposição da perigosa companheira de toda duração, a autoridade.

225. O espírito livre, um conceito relativo . — É chamado deespírito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperariacom base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, oucom base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é aexceção, os espíritos cativos100  são a regra; estes lhe objetam queseus princípios livres têm origem na ânsia de ser notado ou até

mesmo levam à inferência de atos livres,101  isto é, inconciliáveiscom a moral cativa. Ocasionalmente se diz também que tais ouquais princípios livres derivariam da excentricidade e da excitaçãomental; mas assim fala apenas a maldade que não acredita elamesma no que diz e só quer prejudicar: pois geralmente otestemunho da maior qualidade e agudeza intelectual do espíritolivre está escrito em seu próprio rosto, de modo tão claro que os

espíritos cativos compreendem muito bem. Mas as duas outrasexplicações para o livre-pensar são honestas; de fato, muitosespíritos livres se originam de um ou de outro modo. Por issomesmo, no entanto, as teses a que chegaram por esses caminhos podem ser mais verdadeiras e mais confiáveis que as dos espíritosatados. No conhecimento da verdade o que importa é possuí-la, enão o impulso que nos fez buscá-la nem o caminho pelo qual foiachada. Se os espíritos livres estão certos, então aqueles cativosestão errados, pouco interessando se os primeiros chegaram àerdade pela imoralidade e os outros se apegaram à inverdade por 

moralidade. — De resto, não é próprio da essência do espírito livreter opiniões mais corretas, mas sim ter se libertado da tradição,com felicidade ou com um fracasso. Normalmente, porém, ele terá

ao seu lado a verdade, ou pelo menos o espírito da busca daerdade: ele exige razões; os outros, fé.

226.  Origem da fé. — O espírito cativo não assume uma posição por esta ou aquela razão, mas por hábito; ele é cristão, por exemplo, não por ter conhecido as diversas religiões e ter escolhidoentre elas; ele é inglês, não por haver se decidido pela Inglaterra,

mas deparou com o cristianismo e o modo de ser inglês e osadotou sem razões, como alguém que, nascendo numa regiãoinícola, torna-se bebedor de vinho. Mais tarde, já cristão e inglês,

talvez tenha encontrado algumas razões em prol de seu hábito; podemos desbancar essas razões, não o desbancaremos na sua posição. Se obrigarmos um espírito cativo a apresentar suas razõescontra a bigamia, por exemplo, veremos se o seu santo zelo pela

monogamia é baseado em razões ou no hábito. Habituar-se a princípios intelectuais sem razões é algo que chamamos de fé.

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227.  Deduzindo razões e não-razões das conseqüências. — Todos os Estados e ordens da sociedade: as classes, o matrimônio,a educação, o direito, adquirem força e duração apenas da fé queneles têm os espíritos cativos — ou seja, da ausência de razões, pelo menos da recusa de inquirir por razões. Isso os espíritoscativos não gostam de admitir e sentem que é um  pudendum  [algode que se envergonhar]. O cristianismo, que era muito ingênuo nasconcepções intelectuais,102  nada percebeu desse pudendum, exigiufé e nada mais que fé e rejeitou apaixonadamente a busca de razões;apontou para o êxito da fé: vocês logo sentirão a vantagem da fé,insinuou, graças a ela se tornarão bem-aventurados. O Estado

 procede da mesma forma, na realidade, e todo pai educa o filhotambém assim: apenas tome isso por verdade, diz ele, e sentirá o bem que faz. Mas isso significa que a verdade de uma opinião seriademonstrada pela utilidade pessoal que encerra; que a vantagem deuma teoria garantiria sua certeza e seu fundamento intelectual. Écomo se um réu falasse no tribunal: meu defensor diz a verdade, pois vejam a conseqüência do seu discurso: serei absolvido. — 

Como os espíritos cativos têm princípios por causa de suautilidade, presumem que o espírito livre busque também a própriaantagem com suas opiniões, e só tome por verdadeiro o que lhe

convém. Mas, parecendo-lhe útil o oposto daquilo que é útil a seus patrícios e seus pares, estes supõem que os seus princípios são perigosos para eles; então dizem, ou sentem: ele não pode ter razão, pois nos prejudica.

228.  O caráter bom e forte. — A estreiteza de opiniões,transformada em instinto pelo hábito, leva ao que chamamos deforça de caráter. Quando alguém age por poucos, mas sempre osmesmos motivos, seus atos adquirem grande energia; se esses atosharmonizarem com os princípios dos espíritos cativos, eles serãoreconhecidos e também produzirão, naquele que os perfaz, osentimento da boa consciência. Poucos motivos, ação enérgica e boa consciência constituem o que se chama força de caráter. Aoindivíduo de caráter forte falta o conhecimento das muitas possibilidades e direções da ação; seu intelecto é estreito, cativo, pois em certo caso talvez lhe mostre apenas duas possibilidades;entre essas duas ele tem de escolher necessariamente, conforme

sua natureza, e o faz de maneira rápida e fácil, pois não temcinqüenta possibilidades para escolher. O ambiente em que éeducada tende a tornar cada pessoa cativa, ao lhe pôr diante dosolhos um número mínimo de possibilidades. O indivíduo é tratado por seus educadores como sendo algo novo, mas que deve setornar uma repetição. Se o homem aparece inicialmente como algodesconhecido, que nunca existiu, deve ser transformado em algo

conhecido, já existente. O que se chama de bom caráter, numacriança, é a evidência de seu vínculo ao já existente; pondo-se aolado dos espíritos cativos, a criança manifesta seu senso decomunidade que desperta; é com base neste senso de comunidadeque ela depois se tornará útil a seu Estado ou classe.

229.  Medida das coisas nos espíritos cativos. — Há quatro

espécies de coisas que, dizem os espíritos cativos, são justificadas.Primeiro: todas as coisas que duram são justificadas; segundo:

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todas as coisas que não nos importunam são justificadas; terceiro:todas as coisas que nos trazem vantagem são justificadas; quarto:todas as coisas que nos custaram sacrifícios são justificadas. Estaúltima explica, por exemplo, por que uma guerra que se inicioucontra a vontade do povo é prosseguida com entusiasmo, tão logose tenham feito sacrifícios. — Os espíritos livres que sustentamsua causa perante o fórum dos espíritos cativos têm quedemonstrar que sempre houve espíritos livres, ou seja, que o livre- pensar já tem duração; depois, que eles não querem importunar; e, por fim, que em geral trazem vantagens para os espíritos cativos.Mas, como não podem convencê-los deste último ponto, de nada

lhes vale ter demonstrado o primeiro e o segundo.

230.  Esprit fort  [espírito forte]. — Comparado àquele que tema tradição a seu lado e não precisa de razões para seus atos, oespírito livre é sempre débil, sobretudo na ação; pois ele conhecedemasiados motivos e pontos de vista, e por isso tem a mãoinsegura, não exercitada. Que meios existem para torná-lo

relativamente  forte, de modo que ao menos se afirme e não pereçainutilmente? Como se forma o espírito forte (esprit   fort )? Este é,num caso particular, o problema da produção do gênio. De ondeem a energia, a força inflexível, a perseverança com que alguém,

opondo-se à tradição, procura um conhecimento inteiramenteindividual do mundo?

231.  A origem do gênio. — A engenhosidade com que o prisioneiro busca meios para a sua libertação, utilizando fria e pacientemente cada ínfima vantagem, pode mostrar de que procedimento a natureza às vezes se serve para produzir o gênio —  palavra que, espero, será entendida sem nenhum ressaibomitológico ou religioso —: ela o prende num cárcere e estimula ao

máximo o seu desejo de se libertar. — Ou, para recorrer a outraimagem: alguém que se perdeu completamente ao caminhar pelafloresta, mas que, com energia invulgar, se esforça por achar umasaída, descobre às vezes um caminho que ninguém conhece: assimse formam os gênios, dos quais se louva a originalidade. — Já foimencionado que uma mutilação, um aleijamento, a falta relevante deum órgão, com freqüência dá ocasião a que outro órgão se

desenvolva anormalmente bem, porque tem de exercer sua própriafunção e ainda uma outra. Com base nisso pode-se imaginar aorigem de muitos talentos brilhantes. — Dessas indicações geraisquanto ao surgimento do gênio faça-se a aplicação ao casoespecífico, o da gênese do consumado espírito livre.

232.  Conjectura sobre a origem do livre-pensar . — Assim

como aumentam as geleiras, quando nas regiões equatoriais o solatinge os mares com mais ardor do que antes, também um livre- pensar muito forte e abrangente pode ser testemunho de que emalgum ponto o ardor do sentimento cresceu extraordinariamente.

233.  A voz da história. — A história  parece, em geral, dar o

seguinte ensinamento sobre a produção do gênio: "Maltratem eatormentem os homens", assim grita ela às paixões da inveja, do

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ódio e da competição, "incitem-nos ao limite, um contra o outro, povo contra povo, ao longo de séculos; então, como que de umacentelha solta no ar pela terrível energia assim criada, talvez seinflame subitamente a luz do gênio; e então a vontade, como corcelenfurecido pela espora do cavaleiro, irrompe e salta para um outrocampo". — Quem tivesse consciência de como o gênio é produzido, e quisesse também pôr em prática esse modo habitualda natureza, teria de ser mau e inconsiderado como a natureza. Mastalvez tenhamos ouvido mal.

234.  Valor da metade do caminho . — Talvez a produção do

gênio esteja reservada apenas a um certo período da humanidade.Pois não podemos esperar, do futuro da humanidade, tudo o quecondições bem definidas de alguma época passada puderam produzir sozinhas; não podemos esperar, por exemplo, osespantosos efeitos do sentimento religioso. Mesmo este já teve oseu tempo, e muita coisa boa não mais poderá surgir, pois só podiafazê-lo a partir dele. De modo que jamais haverá novamente um

horizonte da vida e da cultura delimitado pela religião. Talvez o tipomesmo do santo seja possível apenas num certo acanhamento dointelecto, algo que, parece, acabou para sempre. E assim o ápice dainteligência talvez tenha sido guardado para uma única era dahumanidade: ele apareceu — aparece, pois ainda vivemos este período — quando uma extraordinária, longamente acumuladaenergia da vontade se transferiu excepcionalmente para fins

intelectuais, mediante a hereditariedade. Esse apogeu terá seu fimquando esse furor e essa energia não mais forem cultivados. Talvezno meio de seu caminho, na metade do tempo de sua existência,mais do que no fim, a humanidade chegue mais perto de seuerdadeiro objetivo. Forças como as que determinam a arte, por 

exemplo, poderiam simplesmente se esgotar; o prazer na mentira,na imprecisão, no simbólico, na embriaguez, no êxtase poderia cair no desprezo. Sim, estando a vida organizada num Estado perfeito, o presente já não forneceria motivo algum para a poesia, e somentehomens atrasados quereriam a irrealidade poética. Em todo caso,eles olhariam saudosamente para trás, para os tempos do Estadoimperfeito, da sociedade semibárbara, para os nossos tempos.

235.  O gênio e o Estado ideal em contradição. — Ossocialistas querem o bem-estar para o maior número possível de pessoas. Se a pátria permanente desse bem-estar, o Estado perfeito,fosse realmente alcançada, esse próprio bem-estar destruiria oterreno em que brota o grande intelecto, e mesmo o indivíduo poderoso: quero dizer, a grande energia. A humanidade se tornariafraca demais para produzir o gênio, se esse Estado fosse alcançado.

 Não deveríamos desejar que a vida conserve seu caráter violento, eque forças e energias selvagens sejam continuamente despertadas?Mas o coração cálido e compassivo quer justamente a eliminaçãodesse caráter violento e selvagem, e o coração mais cálido que podemos imaginar o desejaria da maneira mais apaixonada:enquanto precisamente sua paixão tomou desse caráter selvagem eiolento da vida o seu próprio fogo, seu calor, sua existência

mesma; o coração mais cálido quer, portanto, a eliminação de seufundamento, a aniquilação de si mesmo, ou seja: ele quer algo

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ilógico, ele não é inteligente. A mais alta inteligência e o maiscaloroso coração não podem coexistir numa pessoa, e o sábio queemite julgamento sobre a vida se coloca também acima da bondadee a vê apenas como algo a ser avaliado no cômputo geral da vida. Osábio tem de resistir aos desejos extravagantes da bondade nãointeligente, porque lhe interessa a continuação de seu tipo e osurgimento final do supremo intelecto: no mínimo ele será favorávelà fundação do "Estado perfeito", se neste há lugar apenas paraindivíduos debilitados. Por outro lado, Cristo, que vemos como ocoração mais cálido, favoreceu o embotamento do ser humano, pôs-se ao lado dos pobres de espírito e impediu a produção do

intelecto maior: algo que foi coerente. Sua contrapartida, o sábio perfeito — talvez seja lícito predizer — será também,necessariamente, um obstáculo à produção de um Cristo. — OEstado é uma prudente organização que visa proteger os indivíduosuns dos outros: se exagerarmos no seu enobrecimento, o indivíduoserá enfim debilitado e mesmo dissolvido por ele — e então oobjetivo original do Estado será radicalmente frustrado.

236.  As zonas da cultura. — Podemos dizer, utilizando umsímile, que as eras da cultura correspondem aos diversos cinturõesclimáticos, com a ressalva de que estão uma atrás da outra, e nãoao lado da outra, como as zonas geográficas. Em comparação coma zona temperada da cultura, para a qual é nossa tarefa passar, aera transcorrida dá a impressão, no conjunto, de um clima tropical .

Violentos contrastes, brusca alternância de dia e noite, calor emagnificência de cores, a veneração do que é repentino, misterioso,terrível, a rapidez dos temporais, em todo lugar o pródigoextravasamento das cornucópias da natureza: já em nossa cultura,um céu claro, embora não luminoso, um ar puro, quase invariável,agudeza, ocasionalmente frio: assim as duas zonas se distinguemuma da outra. Ao vermos como lá as paixões mais furiosas sãoabatidas e destroçadas com força estranha por concepçõesmetafísicas, é como se à nossa frente, nos trópicos, tigresselvagens fossem esmagados sob os anéis de monstruosasserpentes; em nosso clima espiritual não há eventos assim, nossaimaginação é temperada; mesmo em sonhos não nos acontece oque povos anteriores viam de olhos abertos. Mas não podemos

estar felizes com essa mudança, mesmo admitindo que os artistasforam seriamente prejudicados pelo desaparecimento da culturatropical, e a nós, não-artistas, nos consideram um pouco sóbriosdemais? Neste sentido, os artistas talvez tenham o direito de negar o "progresso", pois pode-se no mínimo duvidar que os últimos trêsmilênios evidenciem uma marcha de progresso nas artes; domesmo modo, um filósofo metafísico como Schopenhauer não terá

motivo para reconhecer um progresso, se olhar para os quatroúltimos milênios de filosofia metafísica e de religião. — Para nós,no entanto, a própria existência da zona temperada da cultura contacomo progresso.

237.  Renascimento e Reforma. — O Renascimento italianoabrigava em si todas as forças positivas a que devemos a cultura

moderna: emancipação do pensamento, desprezo das autoridades,triunfo da educação sobre a arrogância da linhagem, entusiasmo

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 pela ciência e pelo passado científico da humanidade,desgrilhoamento do indivíduo, flama da veracidade e aversão àaparência e ao puro efeito (flama que ardeu numa legião denaturezas artísticas que exigiam de si, com elevada pureza moral, a perfeição de suas obras e tão-somente a perfeição); sim, oRenascimento teve forças positivas que até hoje não voltaram a ser tão poderosas em nossa cultura moderna. Foi a Idade de Ourodeste milênio, apesar de todas as manchas e vícios. Contrastandocom ele se acha a Reforma alemã, como um enérgico protesto deespíritos atrasados, que não se haviam cansado da visão medievaldo mundo e percebiam os sinais de sua dissolução, a extraordinária

superficialização e exteriorização da vida religiosa, com profundomal-estar e não com júbilo, como seria apropriado. Levaram oshomens a recuar, com sua energia e obstinação de nórdicos, e coma violência de um estado de sítio forçaram a Contra-Reforma, istoé, um cristianismo católico defensivo, e, assim como retardaram dedois a três séculos o despertar e o domínio da ciência, tornaramimpossível a plena junção do espírito antigo com o moderno, talvez

 para sempre. A grande tarefa da Renascença não pôde ser levada acabo, impedida que foi pelo protesto do ser alemão103  que entãohavia ficado para trás (e que na Idade Média tivera sensatez bastante para renovadamente atravessar os Alpes para a suasalvação). Foi o acaso de uma constelação política excepcional que preservou Lutero e fez o protesto ganhar força: o imperador o protegeu, a fim de usar sua inovação como instrumento de pressão

sobre o papa, e do mesmo modo o papa o favoreceu em sigilo, parausar os príncipes protestantes como contrapeso ao imperador. Semesse estranho concerto de objetivos, Lutero teria sido queimadocomo Hus — e a aurora do Iluminismo teria surgido talvez um pouco antes, e com brilho mais belo do que agora podemosimaginar.

238.  Justiça para com o deus em evolução. — Quando toda ahistória da cultura se abre aos nossos olhos como um emaranhadode idéias nobres e más, falsas e verdadeiras, e quando, à vista dessarebentação de ondas, a pessoa é quase tomada de enjôo,entendemos o consolo que há na idéia de um deus em evolução:104

ele se revela cada vez mais nas transformações e vicissitudes da

humanidade, nem tudo é mecanismo cego, interação de forças semsentido e objetivo. A divinização do vir a ser é uma perspectivametafísica — como de um farol à beira do mar da História —, naqual uma geração muito historicizante de eruditos achou consolo;não podemos nos irritar com isso, por mais errada que talvez sejaesta concepção. Apenas quem, como Schopenhauer, nega odesenvolvimento, nada sente da miséria dessa rebentação de ondas

da história, e, por nada saber e nada sentir quanto a esse deus emevolução e a necessidade de admiti-lo, pode justamente dar vazão aseu escárnio.

239. Os frutos conforme a estação. — Todo futuro melhor quese deseja para a humanidade é, necessariamente, também um futuro pior em vários aspectos: pois é simples exaltação acreditar que um

novo e superior estágio da humanidade reuniria todos os méritosdos estágios anteriores e, por exemplo, engendraria também a

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forma suprema de arte. Cada estação do ano tem os seus méritos eatrativos, e exclui aqueles das outras. O que cresceu a partir dareligião e em sua vizinhança não pode crescer novamente, se elaestiver destruída; no máximo, alguns rebentos extraviados e tardios podem levar à ilusão acerca disso, tal como a lembrança da arteantiga que surge temporariamente: um estado que talvez revele osentimento de perda e de privação, mas não é prova da força de que poderia nascer uma nova arte.

240.  A crescente severidade do mundo. — Quanto mais seeleva a cultura de um homem, tanto mais domínios se furtam ao

gracejo e ao escárnio. Voltaire era grato aos céus pela invenção domatrimônio e da Igreja: assim cuidaram muito bem da nossadiversão. Mas ele e sua época, e antes dele o século XVI, zombaramdesses temas até o fim; toda graça que ainda hoje se faz nesseâmbito é tardia, e principalmente barata demais para atrair compradores. Atualmente perguntamos pelas causas; é o tempo daseriedade. Quem se interessa, hoje, por ver à luz do humor as

diferenças entre realidade e pretensiosa aparência, entre o que o ser humano é e o que quer representar? Sentimos esses contrastes demodo inteiramente diverso quando lhes buscamos as causas.Quanto mais profunda a compreensão que alguém tiver da vida,tanto menos zombará, mas afinal talvez ainda zombe da"profundidade de sua compreensão".

241.  Gênio da cultura. — Se alguém imaginar um gênio dacultura, qual a sua natureza? Ele utiliza tão seguramente, como seusinstrumentos, a mentira, o poder, o mais implacável egoísmo, quesó poderia ser chamado de mau e demoníaco; mas os seusobjetivos, que transparecem aqui e ali, são grandiosos e bons. Ele éum centauro, meio bicho, meio homem, e além disso tem asas de

anjo na cabeça.

242.  Educação milagrosa. — O interesse pela educação sóganhará força a partir do momento em que se abandone a crençanum deus e em sua providência: exatamente como a arte médica só pôde florescer quando acabou a crença em curas milagrosas. Masaté agora todos crêem ainda na educação milagrosa: viram que os

homens mais fecundos, mais poderosos se originaram em meio agrande desordem, objetivos confusos, condições desfavoráveis;como poderia isto suceder normalmente?

Hoje se começa a olhar mais de perto, a examinar maiscuidadosamente também esses casos: ninguém descobrirá milagreneles. Em condições iguais, inúmeras pessoas perecemcontinuamente, mas o indivíduo que se salva torna-se habitualmentemais forte, porque suportou tais condições ruins mediante umaindestrutível força inata, e ainda exercitou e aumentou essa força:eis como se explica o milagre. Uma educação que já não crê emmilagres deve prestar atenção a três coisas: primeiro, quanta energiaé herdada?; segundo, de que modo uma nova energia pode ainda

ser inflamada?; terceiro, como adaptar o indivíduo às exigênciasextremamente variadas da cultura, sem que elas o incomodem edestruam sua singularidade? — em suma, como integrar o

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indivíduo ao contraponto de cultura privada e pública, como podeele ser simultaneamente a melodia e seu acompanhamento?

243.  O futuro do médico . — Não há, hoje, profissão que

admita um tal avanço como a do médico; sobretudo depois que osmédicos do espírito, os chamados "pastores de alma",105  não podem mais exercer com aprovação pública suas artes deconjuração, e que são evitados pelos homens cultos. Um médiconão alcançou ainda a alta formação intelectual, quando conhece e pratica os melhores métodos atuais e sabe fazer essas rápidasdeduções das causas pelos efeitos, que tornam famosos os

diagnosticadores: ele deve, além disso, ter uma eloqüência que seadapte a cada indivíduo e que lhe atinja o coração; uma virilidadecuja simples visão afugente a pusilanimidade (a carcoma de todosos doentes); uma flexibilidade diplomática ao mediar entre os quenecessitam de alegria para a cura e os que, por razões de saúde,devem (e podem) dar alegria; a sutileza de um agente policial ouadvogado, que entende os segredos de uma alma sem delatá-los — 

em suma, um bom médico requer atualmente os artifícios e privilégios de todas as outras classes profissionais: assimaparelhado, estará em condição de tornar-se um benfeitor de toda asociedade, fomentando as boas obras, a alegria e fecundidade doespírito, desestimulando maus pensamentos, más intenções eelhacarias (cuja fonte asquerosa é com freqüência o baixo-ventre),

instaurando uma aristocracia de corpo e de espírito (ao promover 

ou impedir matrimônios), eliminando com benevolência todos ostormentos espirituais e remorsos de consciência: apenas assim o"curandeiro" se transforma em salvador, sem precisar fazer milagres nem se deixar crucificar.

244.  Na vizinhança da loucura. — A soma dos sentimentos,

conhecimentos, experiências, ou seja, todo o fardo da cultura,tornou-se tão grande que há o perigo geral de uma superexcitaçãodas forças nervosas e intelectuais; as classes cultas dos paíseseuropeus estão mesmo cabalmente neuróticas, e em quase todas assuas grandes famílias há alguém próximo da loucura. Sem dúvida,há muitos meios de encontrar a saúde atualmente; mas énecessário, antes de tudo, reduzir essa tensão do sentir, esse fardo

opressor da cultura, algo que, mesmo sendo obtido com grandes perdas, nos permitirá ter a grande esperança de um novoenascimento. Ao cristianismo, aos filósofos, escritores e músicos

devemos uma abundância de sentimentos profundamente excitados: para que eles não nos sufoquem devemos invocar o espírito daciência, que em geral nos faz um tanto mais frios e céticos, earrefece a torrente inflamada da fé em verdades finais e definitivas;

ela se tornou tão impetuosa graças ao cristianismo, sobretudo.

245.  Fundição da cultura. — A cultura se originou como umsino, no interior de uma camisa de material grosseiro e vulgar:falsidade, violência, expansão ilimitada de todos os Eus singulares,de todos os diferentes povos, formavam essa camisa. Será omomento de retirá-la? Solidificou-se o que era líquido, os impulsos bons e úteis, os hábitos do coração nobre tornaram-se tão segurose universais que já não é preciso apoiar-se na metafísica e nos erros

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das religiões, já não se requer dureza e violência, como o mais poderoso laço entre homem e homem, povo e povo? — Pararesponder essa questão não temos mais um Deus que nos ajuda: énossa inteligência que deve decidir. Em suma, o próprio homemdeve tomar nas mãos o governo terreno da humanidade, sua"onisciência" tem que velar com olho atento o destino da cultura.

246. Os ciclopes da cultura. — Quem vê essas bacias cheiasde sulcos, em que se formaram geleiras, dificilmente acredita queirá um tempo em que no mesmo sítio se estenderá um vale de

campos, bosques e riachos. Assim também é na história da

humanidade; as forças mais selvagens abrem caminho, primeiramente destrutivas, e no entanto sua ação é necessária, paraque depois uma civilização mais suave tenha ali sua morada. Essasterríveis energias — o que se chama de mal — são os arquitetos e pioneiros ciclópicos da humanidade.

247.  Movimento circular da raça humana. — Talvez toda a

raça humana seja apenas uma fase evolutiva de determinada espécieanimal de duração limitada: de modo que o homem viria do macacoe tornaria a ser macaco, não existindo ninguém que tivesseinteresse em presenciar tal estranho desfecho de comédia. Domesmo modo que, com o fim da cultura romana e sua maisimportante causa, a expansão do cristianismo, prevaleceu noImpério romano um enfeamento geral do ser humano, com o fimeventual de toda a cultura terrena poderia haver um enfeamentoainda maior e, afinal, uma animalização do ser humano, a ponto detornar-se simiesco. — Justamente porque podemos vislumbrar essa perspectiva, estamos talvez em condição de evitar semelhante final para o futuro.

248.  Consolo de um progresso desesperado . — Nosso tempodá a impressão de um estado interino; as antigas concepções domundo, as antigas culturas ainda existem parcialmente, as novasnão são ainda seguras e habituais, e portanto não possuem coesão ecoerência. É como se tudo se tornasse caótico, o antigo se perdesse, o novo nada valesse e ficasse cada vez mais frágil. Masassim ocorre com o soldado que aprende a marchar: por algum

tempo ele é mais inseguro e mais desajeitado do que antes, porqueseus músculos são movidos ora pelo velho sistema ora pelo novo, enenhum deles pode declarar vitória. Nós vacilamos, mas é precisonão se inquietar por causa disso, e não abandonar as novasaquisições. Além disso não  podemos  mais voltar ao antigo, jáqueimamos  o barco; só nos resta ser corajosos, aconteça o queacontecer. — Apenas andemos, apenas saiamos do lugar! Talvez

nossos gestos apareçam um dia como progresso;106  se não, quenos digam as palavras de Frederico, o Grande, a título de consolo:

h, mon cher Sulzer, vous ne connaissez pas assez cette racemaudite, à laquelle nous appartenons  [Ah, meu caro Sulzer, vocênão conhece o bastante essa raça maldita à qual pertencemos].107

249. Sofrendo com o passado da cultura . — Quem percebe demodo claro o problema da cultura, sofre de um sentimento

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semelhante ao de quem herdou uma riqueza adquirida ilegalmente,ou ao do príncipe que governa graças às violências de seusantepassados. Pensa com tristeza em sua origem, e com freqüênciatem vergonha e fica irritado. Todo o montante de energia, vontadede viver e alegria que dedica ao que possui é muitas vezescontrabalançado por uma enorme fadiga: ele não consegue esquecer sua origem. Olha o futuro com melancolia; os seus descendentes,ele já sabe, sofrerão do passado assim como ele.

250.  Maneiras. — As boas maneiras desaparecem à medidaque se reduz a influência da corte e de uma aristocracia fechada;

 pode-se observar nitidamente essa diminuição a cada década, desdeque se tenha olhos para os atos públicos: eles se tornam cada vezmais plebeus. Já não se sabe homenagear ou lisonjear com espírito;disso resulta o fato ridículo de que, nos casos em que se tem  derender homenagem (a um grande estadista ou artista, por exemplo),toma-se emprestada a linguagem do profundo sentimento, dasincera e digna decência — por embaraço e falta de espírito e

graça. De modo que os encontros públicos e solenes parecem cadaez mais desajeitados, porém mais sensíveis e corretos, sem sê-lo,

afinal. — Mas as maneiras decairão sempre? Parece-me, narealidade, que elas fazem uma profunda curva e que nosaproximamos de seu nadir. Quando a sociedade se tornar maissegura de seus propósitos e princípios, de modo que eles tenhamuma ação formadora (enquanto hoje as maneiras adquiridas de

condições formadoras do passado são cada vez mais debilmentetransmitidas e adquiridas), haverá maneiras nas relações, gestos eexpressões no convívio, que parecerão tão necessárias, simples enaturais como esses propósitos e princípios. Melhor divisão detempo e trabalho, os exercícios de ginástica transformados emacompanhamento de todo agradável ócio, a reflexão incrementada etornada mais rigorosa, dando inteligência e elasticidade também aocorpo, acarretarão tudo isso. — Aqui certamente podemos, nãosem alguma zombaria, lembrar de nossos eruditos, perguntando seeles, que se querem precursores dessa nova cultura, realmente sedistinguem por melhores maneiras. Não parece ser o caso, emboraseu espírito esteja bastante disposto a isso: mas sua carne éfraca.108  O passado é ainda muito poderoso em seus músculos:

eles se encontram ainda em situação cativa, são em parte religiososseculares e em parte educadores dependentes das pessoas e classesnobres, e além do mais o pedantismo da ciência, métodosenvelhecidos e insípidos os atrofiaram e desvitalizaram. De maneiraque ainda são, certamente no corpo, e muitas vezes em três quartosdo espírito, cortesãos de uma velha, senil cultura, e como taistambém senis; o novo espírito que ocasionalmente se agita nesses

elhos invólucros pode servir apenas, por ora, para torná-los maisinseguros e medrosos. Neles circulam tanto os fantasmas do passado como os do futuro: como admirar se não fazem uma caramelhor, se não têm atitude mais amável?

251. O futuro da ciência . — A ciência dá muita satisfação aquem nela trabalha e pesquisa, e muito pouca a quem aprende  seus

resultados. Mas, como aos poucos todas as verdades importantesda ciência têm de se tornar cotidianas e comuns, mesmo essa

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 pouca satisfação desaparece: assim como há tempos deixamos denos divertir ao aprender a formidável tabuada. Ora, se a ciência proporciona cada vez menos alegria e, lançando suspeita sobre ametafísica, a religião e a arte consoladoras, subtrai cada vez maisalegria, então se empobrece a maior fonte de prazer, a que ohomem deve quase toda a sua humanidade. Por isso uma culturasuperior deve dar ao homem um cérebro duplo, como que duascâmaras cerebrais, uma para perceber a ciência, outra para o quenão é ciência; uma ao lado da outra, sem se confundirem,separáveis, estanques; isto é uma exigência da saúde. Num domínioa fonte de energia, no outro o regulador: as ilusões, parcialidades,

 paixões devem ser usadas para aquecer, e mediante oconhecimento científico deve-se evitar as conseqüências malignas e perigosas de um superaquecimento. — Se esta exigência de umacultura superior não for atendida, o curso posterior dodesenvolvimento humano pode ser previsto quase com certeza: ointeresse pela verdade vai acabar, à medida que garanta menos prazer; a ilusão, o erro, a fantasia conquistarão passo a passo,

estando associados ao prazer, o território que antes ocupavam: aruína das ciências, a recaída na barbárie, é a conseqüênciaseguinte; novamente a humanidade voltará a tecer sua tela, apóshavê-la desfeito durante a noite, como Penélope. Mas quem garanteque ela sempre terá forças para isso?

252.  Prazer no conhecimento. — Por que o conhecimento, o

elemento do pesquisador e do filósofo, está associado ao prazer?Primeiro, e sobretudo, porque com ele nos tornamos conscientesda nossa força, isto é, pela mesma razão por que os exercícios deginástica são prazerosos mesmo sem espectadores. Em segundolugar, porque adquirindo conhecimento ultrapassamos antigasconcepções e seus representantes, tornamo-nos vitoriosos, ou pelomenos acreditamos sê-lo. Em terceiro lugar, porque um novoconhecimento, por menor que seja, faz com que nos sintamosacima de todos e os únicos a saber corretamente a questão. Essestrês motivos para o prazer são os mais importantes; mas existemmuitas razões secundárias, conforme a natureza da pessoacognoscente. — Um catálogo não desprezível dessas razões seacha num lugar onde não seria procurado, no meu escrito

 parenético sobre Schopenhauer:109

  aquela enumeração podecontentar todo experiente servidor do conhecimento, ainda quedesejasse expungir o laivo de ironia que parece haver naquelas páginas. Pois se é verdade que, para que surja o erudito, "deve ser reunida uma porção de instintos e instintozinhos muito humanos",que ele é um metal muito nobre, mas pouco puro, que "consistenum complexo emaranhado de impulsos e estímulos bem diversos",

o mesmo vale para a gênese e a natureza do artista, do filósofo, dogênio moral — ou qualquer dos grandes nomes glorificados naqueletexto. Tudo o que é humano merece, no que toca à sua gênese, ser considerado ironicamente: por isso há tal excesso  de ironia nomundo.

253.  Fidelidade como prova de solidez. — Um perfeito sinal da

 boa qualidade de uma teoria é o seu autor não abrigar, durantequarenta anos, desconfiança alguma em relação a ela; mas eu

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afirmo que ainda não houve filósofo que afinal não tenha olhadocom desdém — ou no mínimo com suspeita — para a filosofia quecriou em sua juventude. — Mas talvez ele não tenha falado publicamente dessa mudança, por ambição ou — como é provávelnos seres nobres — por delicada atenção aos seus adeptos.

254. Crescimento do interesse . — No curso de uma formaçãosuperior tudo se torna interessante para o homem, ele sabe ver rapidamente o lado instrutivo de uma coisa e indicar o ponto emque, utilizando-a, pode completar uma lacuna de seu pensamentoou confirmar uma idéia. Assim é afastado cada vez mais o tédio, e

também a excessiva sensibilidade emocional. Por fim ele anda entreos homens como um naturalista entre as plantas, e percebe a simesmo como um fenômeno que estimula fortemente o seu impulsode conhecer.

255.  Superstição da simultaneidade. — Coisas que ocorremsimultaneamente têm ligação, acredita-se. Um parente morre longe

de nós, e ao mesmo tempo sonhamos com ele — portanto... Masmorrem inúmeros parentes e não sonhamos com eles. O mesmoacontece com os náufragos que fazem votos: não se vê depois, naigreja, os ex-votos dos que pereceram. — Uma pessoa morre, umacoruja pia, um relógio pára, tudo na mesma hora da noite: nãohaveria uma relação entre essas coisas? Tal pressentimento supõeuma intimidade com a natureza que lisonjeia o ser humano. — Reencontramos esse tipo de superstição numa forma refinada, emhistoriadores e em pintores da civilização, que costumamexperimentar uma espécie de hidrofobia ante todas as justaposiçõessem sentido, nas quais é pródiga a existência dos indivíduos e dos povos.

256.  A ciência exercita a capacidade, não o saber . — O valor de praticar com rigor, por algum tempo, uma ciência rigorosa nãoestá propriamente em seus resultados: pois eles sempre serão umagota ínfima, ante o mar das coisas dignas de saber. Mas isso produz um aumento de energia, de capacidade dedutiva, detenacidade; aprende-se a alcançar um fim de modo pertinente.110

 Neste sentido é valioso, em vista de tudo o que se fará depois, ter 

sido homem de ciência.

257. O charme juvenil da ciência. — Ainda hoje a investigaçãoda verdade possui o charme de contrastar fortemente com o erro,agora cinzento e tedioso; mas esse charme está se perdendo. Semdúvida ainda vivemos a juventude da ciência, e costumamos ir atrásda verdade como de uma bela jovem; e quando ela tiver se tornadouma velha carrancuda? Em quase todas as ciências a concepção básica foi encontrada há bem pouco tempo, ou ainda é buscada;isso atrai de maneira bem diversa de quando todo o essencial foiencontrado e só resta ao pesquisador um escasso resíduo outonal(sensação que podemos ter em algumas disciplinas históricas).

258.  A estátua da humanidade. — O gênio da cultura procedecomo Cellini, quando ele fundia sua estátua de Perseu: a massa

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liqüefeita ameaçava não bastar, mas tinha  que; então ele jogou pratos e travessas ali dentro, e mais tudo o que lhe caiu em mãos.De igual modo aquele gênio lança dentro erros, vícios, esperanças,ilusões e outras coisas, tanto de metal nobre como de metal vil, porque a estátua da humanidade tem que ser produzida ecompletada; que importa se aqui e ali foi empregado materialinferior?

259.  Uma cultura masculina. — A cultura grega do períodoclássico é uma cultura masculina. No que toca às mulheres,Péricles disse tudo na oração fúnebre:111 elas são melhores quando

os homens falam o mínimo possível delas entre si. — A relaçãoerótica dos homens com os rapazes era, num grau inacessível aonosso entendimento, o pressuposto único e necessário de todaeducação masculina (mais ou menos como entre nós, durantemuito tempo, toda educação elevada da mulher se realizou apenasmediante o namoro e o casamento); todo o idealismo da força danatureza grega se lançou em tal relação, e é provável que nunca se

tenha tratado pessoas jovens tão atenciosamente, tão amavelmentee visando o que teriam de melhor (virtus) como nos séculos VI  e V

 — conforme, portanto, a bela sentença de Hölderlin: "pois éamando que o mortal dá o melhor de si".112 Quanto mais altamentese estimava essa relação, mais declinava o comércio com a mulher:a perspectiva da procriação e da volúpia — apenas isso entrava emconsideração; não havia troca intelectual, nem namoro de fato. Se

lembramos também que eram excluídas das competições e dosespetáculos de toda espécie, então restam apenas os cultosreligiosos como elevado entretenimento para as mulheres. — Écerto que Electra e Antígona apareciam na tragédia, mas justamente porque se tolerava  isso na arte, mesmo não o querendo na vidareal: tal como hoje não suportamos o patético na  vida, masgostamos de vê-lo na arte. — As mulheres não tinham outra tarefasenão produzir corpos belos e fortes, em que prosseguisse vivendoincólume o caráter do pai, a fim de combater a superexcitaçãonervosa que crescia rapidamente numa cultura tão desenvolvida.Isso manteve a civilização grega jovem por um períodorelativamente longo; pois nas mães gregas o gênio grego retornavasempre à natureza.

260. O preconceito a favor da grandeza. — Evidentemente as pessoas superestimam tudo o que é grande e eminente. Isso vem da percepção, consciente ou inconsciente, de que acham bastante útilalguém lançar toda a energia numa só área e fazer de si como queum órgão monstruoso. Sem dúvida um desenvolvimento uniformede suas energias é mais útil e mais auspicioso para o indivíduo; pois

cada talento é um vampiro que suga o sangue e o vigor das outrasenergias, e uma produção exagerada pode levar à beira da loucura omais dotado dos homens. Também nas artes as naturezas extremasdespertam demasiada atenção; mas é preciso uma cultura muitoinferior para ser cativado por elas. Por hábito, as pessoas sesubmetem a tudo o que deseja o poder.

261.  Os tiranos do espírito. — A vida dos gregos brilhasomente onde cai o raio do mito; fora disso ela é sombria. E

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 precisamente do mito os filósofos gregos se privam: não é como sequisessem deslocar-se da luz do sol para a penumbra, a escuridão?Mas nenhuma planta se desvia da luz; no fundo esses filósofos procuravam apenas um sol mais  claro, para eles o mito não era puro nem luminoso o bastante. Encontravam essa luz em seuconhecimento, naquilo que cada um denominava sua "verdade".Mas o conhecimento tinha então um esplendor maior; era aindaovem e conhecia pouco as dificuldades e os perigos de seuscaminhos; ainda podia, naquele tempo, ter a esperança de chegar aocentro de todo o Ser com um salto e dali resolver o enigma domundo. Esses filósofos tinham uma sólida fé em si mesmos e em

suas "verdades", e com ela derrubavam todos os seus vizinhos e precursores; cada um deles era um belicoso e violento tirano.Talvez jamais tenha sido maior, no mundo, a felicidade de se crer  possuidor da verdade, mas também a dureza, a arrogância, a tiraniae maldade de uma tal crença. Eles eram tiranos, ou seja, aquilo quetodo grego queria ser e que todo grego era, se podia sê-lo. Talvezapenas Sólon fosse uma exceção; em seus poemas ele diz como

desprezava a tirania pessoal. Mas o fazia por amor à sua obra, à sualegislação; e ser legislador é uma forma sublimada de tirania.Parmênides também fazia leis, assim como Pitágoras eEmpédocles, provavelmente; quanto a Anaximandro, fundou umacidade. Platão foi o desejo encarnado de se tornar o supremofilósofo-legislador e fundador de Estados; parece ter sofridoterrivelmente pela não-realização de sua natureza, e perto do fim

sua alma se encheu da mais negra bile. Quanto mais os filósofosgregos deixavam de ter poder, tanto mais sofriam interiormentecom a biliosidade e ânsia de ofender; quando as diversas seitassaíram a lutar por suas verdades nas ruas, as almas desses pretendentes da verdade estavam inteiramente enlameadas de invejae cólera;113 o elemento tirânico grassava como um veneno em seuscorpos. Todos esses pequenos tiranos teriam gostado de se comer 

ivos; neles não restava centelha de amor, e muito pouca alegria por seu próprio conhecimento. — A afirmação de que em geral ostiranos são assassinados e sua descendência tem vida brevetambém é válida para os tiranos do espírito. Sua história é curta,iolenta, sua influência é bruscamente interrompida. De quase

todos os grandes helenos pode-se dizer que parecem ter chegadomuito tarde, ou seja, de Ésquilo, de Píndaro, de Demóstenes, deTucídides; uma geração depois — e tudo termina. É o que há deturbulento e inquietante na história grega. Sem dúvida, hoje seadmira o evangelho da tartaruga. Pensar historicamente, nos dias dehoje, equivale a crer que a história sempre se fez conforme o princípio de "o menos possível no tempo mais longo possível". Ah,a história grega passa tão rápida! Nunca mais se viveu tão prodigamente, tão imoderadamente. Não me convenço de que ahistória dos gregos tenha tido o curso natural  que nela é decantado.Eles tinham talentos muito grandes e muito diversos para seremraduais, à maneira da tartaruga que anda passo a passo na

competição com Aquiles: o que é chamado de desenvolvimentonatural. Com os gregos tudo avança rapidamente, mas tambémdeclina rapidamente; o movimento da máquina é tão intensificado,

que uma única pedra jogada nas engrenagens a faz explodir. Umatal pedra foi Sócrates, por exemplo; numa só noite a evolução da

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ciência filosófica, até então maravilhosamente regular, mas semdúvida acelerada demais, foi destruída. Não é uma questão ociosaimaginar se Platão, permanecendo livre do encanto socrático, nãoteria encontrado um tipo ainda superior de homem filosófico, paranós perdido para sempre. Contemplar os tempos anteriores a ele écomo examinar a oficina onde se esculpem tais tipos. No entanto,os séculos VI  e V  parecem prometer alguma coisa mais, maior esuperior ao que foi produzido; mas ficaram na promessa e noanúncio. E dificilmente haverá perda mais grave que a de um tipo,de uma nova e suprema possibilidade de vida filosófica, nãodescoberta até então. Mesmo os velhos tipos, em sua maioria,

chegaram precariamente até nós; os filósofos de Tales a Demócritome parecem dificilmente reconhecíveis; quem é capaz de recriar essas figuras, no entanto, caminha entre imagens do mais puro e poderoso dos tipos. Esta capacidade é certamente rara, não se achasequer nos gregos posteriores que estudaram a filosofia antiga;Aristóteles, sobretudo, parece não ter olhos no rosto, ao deparar com os filósofos mencionados. É como se esses esplêndidos

filósofos tivessem existido em vão, ou devessem apenas preparar ochão para as hostes polêmicas e loquazes das escolas socráticas.Há aqui, como disse, uma lacuna, uma ruptura na evolução; umagrande desgraça deve ter sucedido, e a única estátua em queteríamos notado o sentido e a finalidade desse grande exercício emescultura se quebrou ou não deu certo: o que realmente aconteceu permanecerá um segredo de oficina. — Aquilo que sucedeu entre

os gregos — que todo grande pensador, na crença de possuir aerdade absoluta, tornou-se um tirano, de modo que também ahistória do espírito adquiriu o caráter violento, precipitado e perigoso que nos é mostrado em sua história política —, esse tipode acontecimento não se esgotou então: coisas semelhantesocorreram até a época mais recente, embora cada vez mais raras, ehoje dificilmente com a consciência pura e ingênua dos pensadores

gregos. Pois em geral a doutrina oposta e o ceticismo falam agoracom muita força, e com voz bastante alta. O período dos tiranos doespírito passou. Nas esferas da cultura superior sempre haverá um predomínio, sem dúvida — mas esse predomínio está, de ora emdiante, nas mãos dos oligarcas do espírito . Apesar da separaçãoespacial e política, eles formam uma sociedade coesa, cujosmembros se conhecem  e se reconhecem, seja qual for a avaliaçãofavorável ou desfavorável disseminada pela opinião pública e pelosulgamentos de jornalistas e folhetinistas influentes na massa. Asuperioridade espiritual, que antes separava e hostilizava, agoracostuma unir : como poderiam os indivíduos se afirmar e prosseguir em seu trajeto, contra todas as correntes, se, ao ver aqui e ali seusiguais, vivendo nas mesmas condições, não lhes agarrassem asmãos, na luta contra o caráter oclocrático114 da semi-inteligência eda semicultura e as eventuais tentativas de erguer uma tirania com amanipulação das massas? Os oligarcas são necessários uns aosoutros, têm um no outro sua maior alegria, conhecem seusemblemas — mas apesar disso cada um deles é livre, combate eence no seu posto, e prefere sucumbir a sujeitar-se.

262.  Homero. — O fato de Homero ter se tornado pan-helênicotão cedo continua a ser o mais importante na formação grega. Toda

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a liberdade espiritual e humana alcançada pelos gregos remonta aesse fato. Mas isso foi, ao mesmo tempo, a verdadeira fatalidade daformação grega, pois Homero aplainou à medida que centralizou, edissolveu os mais sérios instintos de independência. De quando emquando se erguia, da profundeza do sentimento grego, o protestocontra Homero; mas ele sempre foi vencedor. As grandes potênciasespirituais exercem uma influência opressora, além daquelalibertadora: mas sem dúvida há diferença se é Homero, a Bíblia ou aCiência que tiraniza os homens.

263.  Dons. — Numa humanidade altamente desenvolvida como

a de hoje, cada um tem da natureza a possibilidade de alcançar ários talentos. Cada qual possui talento  nato, mas em poucos éinato ou inculcado o grau de tenacidade, perseverança, energia, para que alguém se torne de fato um talento, isto é, se torne aquiloque é, ou seja, o descarregue em obras e ações.

264. O homem de espírito, superestimado ou subestimado . — 

Pessoas não científicas, mas talentosas, apreciam todo indício deespírito, esteja ele numa trilha certa ou numa falsa; elas querem,sobretudo, que a pessoa com que lidam as entretenha com seuespírito, as estimule, inflame, conduza à seriedade e ao gracejo, ede todo modo as proteja do tédio, como um poderoso amuleto. Asnaturezas científicas, porém, sabem que o dom de ter muitas idéiasdeve ser refreado severamente pelo espírito da ciência; não aquiloque brilha, aparece e excita, mas a verdade muitas vezes semlustre, é o fruto que ele deseja sacudir da árvore do conhecimento.Ele pode, como Aristóteles, não fazer distinção entre "tediosos" e"espirituosos"; seu demônio o conduz tanto pelo deserto como pelaegetação tropical, para que em toda parte ele se alegre apenas com

o real, sólido, genuíno. — Disso resulta, em insignificantes

eruditos, desprezo e desconfiança da espirituosidade, enquantofreqüentemente as pessoas espirituosas têm aversão pela ciência:como, por exemplo, quase todos os artistas.

265.  A razão na escola. — A escola não tem tarefa maisimportante do que ensinar o pensamento rigoroso, o julgamento prudente, o raciocínio coerente; por isso ela deve prescindir de

todas as coisas que não são úteis a essas operações, por exemplo,da religião. Ela pode esperar que depois a falta de clareza humana, ohábito e a necessidade afrouxarão de novo o arco demasiado tensodo pensar. Mas enquanto durar sua influência, deve promover àforça o que é essencial e distintivo no homem: "Razão e Ciência,suprema força do homem" — como pelo menos Goethe é deopinião. — O grande naturalista Von Baer vê a superioridade dos

europeus em relação aos asiáticos na capacidade, adquirida naescola, de oferecer razões para tudo aquilo em que crêem, algo deque os asiáticos não são absolutamente capazes. A Europafreqüentou a escola do pensar coerente e crítico, enquanto a Ásiaainda não sabe distinguir entre poesia e realidade e não estáconsciente de onde vêm suas convicções, se da sua própriaobservação e pensamento correto ou de fantasias. — A razão naescola fez da Europa a Europa: na Idade Média ela estava acaminho de se tornar novamente um pedaço e apêndice da Ásia — 

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isto é, de perder o senso científico que devia aos gregos.

266.  Efeito subestimado do ensino ginasial . — Geralmente nãoenxergamos o valor do ginásio nas coisas que nele aprendemos de

fato e que dele sempre conservamos, mas naquelas que sãoensinadas e que o aluno assimila a contragosto, para delas se livrar o mais rapidamente que possa. A leitura dos clássicos — toda pessoa educada há de convir — é, do modo como se realiza emtoda parte, um procedimento monstruoso: feita para jovens que demaneira alguma estão maduros para ela, e por professores que comtoda palavra, às vezes com a própria figura, já cobrem de mofo

qualquer bom autor. Mas nisso está o valor que normalmente não éreconhecido — esses professores falam a língua abstrata dacultura superior , pesada e difícil de compreender, mas uma elevadaginástica da mente; em sua linguagem aparecem continuamenteconceitos, termos especiais, métodos, alusões que os jovens quasenunca ouvem na conversa com familiares ou na rua. Se os alunosapenas ouvirem, seu intelecto será involuntariamente preparado

 para um modo de ver científico. Não é possível que alguém saiadessa disciplina totalmente intocado pela abstração, como puro filhoda natureza.

267.  Aprender muitas línguas. — Aprender muitas línguasenche a memória de palavras, em vez de fatos e idéias, quando amemória é um recipiente que em cada indivíduo só pode acolher uma medida certa e limitada de conteúdo. Além disso, oaprendizado de muitas línguas prejudica por fazer acreditar que setem habilidades, e realmente confere algum prestígio sedutor notrato social; também prejudica indiretamente, ao obstar a aquisiçãode conhecimentos sólidos e a intenção de ganhar de maneira séria orespeito das pessoas. Por fim, é como um golpe de machado na

raiz do refinado sentimento da língua que se tenha do idiomamaterno: ele é incuravelmente ferido e arruinado. Os dois povosque produziram os maiores estilistas, os gregos e os franceses, nãoaprenderam línguas estrangeiras. — Porém, como as relações entreos homens devem se tornar cada vez mais cosmopolitas e comoagora um comerciante estabelecido em Londres, por exemplo, játem de se comunicar por escrito e oralmente em oito idiomas,

aprender muitas línguas é sem dúvida um mal necessário; que,chegando ao extremo, forçará a humanidade a encontrar umremédio: e num futuro distante haverá para todos uma nova língua, primeiro como língua comercial e depois como língua das relaçõesintelectuais, tão certo como um dia existirá navegação aérea. Poiscom que finalidade a ciência lingüística teria estudado por umséculo as leis do idioma e aquilatado o que é necessário, valioso e

 bem-sucedido em cada língua?

268.  Sobre a história bélica do indivíduo . — Numa vidahumana que passa por várias culturas, achamos concentrada a lutaque normalmente se desenrola entre duas gerações, entre pai e filho:o parentesco próximo exacerba  esta luta, porque cada uma das partes nela envolve, de maneira implacável, o íntimo da outra, queconhece tão bem; então a luta será particularmente dura noindivíduo; nele cada nova fase passa por cima das anteriores, com

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cruel injustiça e desconhecimento de seus meios e fins.

269. Quinze minutos antes. — Às vezes encontramos alguémcujas opiniões estão à frente de seu tempo, mas apenas o bastante

 para antecipar as idéias vulgares da década seguinte. Ele possui aopinião pública antes que ela seja pública; isto é: quinze minutosantes dos demais, ele caiu nos braços de uma opinião que merecetornar-se trivial. Mas sua fama costuma ser mais rumorosa que ados verdadeiramente grandes e superiores.

270.  A arte de ler . — Toda orientação forte é unilateral;

assemelha-se à direção da linha reta e é exclusiva como esta, ouseja, não toca em muitas outras direções, como fazem os partidos enaturezas fracas em seu ir-e-vir ondulatório: portanto, também aosfilólogos devemos perdoar que sejam unilaterais. O estabelecimentoe a preservação dos textos, ao lado de sua exegese, realizados numacorporação durante séculos, fizeram com que agora se chegasseenfim aos métodos corretos: toda a Idade Média foi incapaz de uma

exegese estritamente filológica, isto é, de simplesmente querer entender o que diz o autor — não foi pouco encontrar essesmétodos, não subestimemos esse fato! A ciência inteira ganhoucontinuidade e estabilidade apenas quando a arte da boa leitura, istoé, a filologia, atingiu seu apogeu.

271.  A arte de raciocinar . — O maior progresso feito pelohomem foi aprender a raciocinar corretamente. Isso não é coisa tão

natural como supõe Schopenhauer, ao dizer que "capazes deraciocinar são todos, de julgar, poucos";115 mas foi algo aprendidotardiamente, e que até hoje não predomina. Nos tempos antigos aregra era o falso raciocínio: e as mitologias de todos os povos, suamagia e superstição, seus cultos religiosos, seu direito, são as

inesgotáveis jazidas de provas de tal afirmação.

272. Os anéis de crescimento da cultura individual . — A forçaou fraqueza da produtividade espiritual não se acha ligada tanto aotalento herdado quanto à medida de vigor 116  que veio junto comele. A maioria dos jovens cultos de trinta anos retrocede nesse primeiro solstício de sua vida e a partir de então perde o gosto paramudanças espirituais. Por isso a salvação de uma cultura que não pára de crescer requer imediatamente uma nova geração, queentretanto não vai muito longe também: pois para recobrar  a culturado pai o filho tem de gastar quase toda a energia herdada, que o próprio pai possuía na fase da vida em que gerou o filho; com o pouco excedente ele vai adiante (pois, ao se fazer o caminho pelasegunda vez, avança-se um pouco mais rápido; para aprender omesmo que o pai sabia, o filho não despende tanta energia).Homens bastante vigorosos, como Goethe, por exemplo, percorrem tanto caminho quanto quatro gerações; mas por issoavançam depressa demais, de modo que os outros os alcançamapenas no século seguinte, e talvez nem o façam inteiramente, poisa coesão da cultura, a coerência de seu desenvolvimento, foi

enfraquecida pelas interrupções freqüentes. — As fases habituaisda cultura espiritual que se atingiu ao longo da história são

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recobradas pelos indivíduos de modo cada vez mais rápido.Atualmente eles começam a entrar na cultura como criançasmovidas pela religião, e aos dez anos de idade atingem talvez aivacidade maior desse sentimento, depois passando a formas mais

atenuadas (panteísmo), enquanto se aproximam da ciência; deixam para trás a noção de Deus, de imortalidade e coisas assim, massucumbem ao encanto de uma filosofia metafísica. Esta lhes parecetambém pouco digna de crédito, afinal; e a arte parece prometer cada vez mais, de modo que por algum tempo a metafísica só persiste e sobrevive transformada em arte, ou como disposiçãoartisticamente transfiguradora. Mas o sentido científico torna-se

cada vez mais imperioso e leva o homem adulto à ciência natural eà história, sobretudo aos métodos mais rigorosos do conhecimento,enquanto a arte vai assumindo uma significação mais branda e maismodesta. Nos dias de hoje, tudo isso costuma suceder nos primeiros trinta anos da vida de um homem. É a recapitulação deum trabalho que ocupou a humanidade por talvez trinta mil anos.

273.  Retrocedendo, mas não ficando para trás. — Quem hojeainda começa o seu desenvolvimento com sentimentos religiosos edepois continua, talvez por muito tempo, a viver na metafísica e naarte, recuou certamente um bom pedaço e inicia a disputa comoutros homens modernos em condições desfavoráveis:aparentemente ele perde tempo e terreno. Mas, por haver se detidoem regiões onde o calor e a energia são desencadeados, e onde

continuamente o poder flui de fonte inesgotável, como uma torrenteulcânica, ao deixar no momento certo essas regiões ele avança

mais rapidamente, seu pé adquire asas, seu peito aprende a respirar de maneira mais calma, mais profunda e constante. — Ele apenasrecuou, para ter terreno bastante para seu salto: então pode atéhaver algo de terrível, de ameaçador, nesse recuo.

274. Um segmento de nosso Eu como objeto artístico. — É umindício de cultura superior reter conscientemente certas fases dodesenvolvimento, que os homens menores vivenciam quase sem pensar e depois apagam da lousa de sua alma, e fazer delas umdesenho fiel: este é o gênero mais elevado da arte pictórica, que poucos entendem. Para isto é necessário isolar essas fases

artificialmente. Os estudos históricos cultivam a qualificação paraessa pintura, pois sempre nos desafiam, ante um trecho da história,a vida de um povo — ou de um homem —, a imaginar umhorizonte bem definido de pensamentos, uma força definida desentimentos, o predomínio de uns, a retirada de outros. O sensohistórico consiste em poder reconstruir rapidamente, nas ocasiõesque se oferecem, tais sistemas de pensamento e sentimento, assim

como obtemos a visão de um templo a partir de colunas e restos de paredes que ficaram de pé. Seu primeiro resultado écompreendermos nossos semelhantes como tais sistemas erepresentantes bem definidos de culturas diversas, isto é, comonecessários, mas alteráveis. E, inversamente, que podemosdestacar trechos de nosso próprio desenvolvimento e estabelecê-loscomo autônomos.

275. Cínicos e epicúrios. — O cínico percebe o nexo entre as

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dores mais numerosas e mais fortes do homem superiormentecultivado e a profusão de suas necessidades; ele compreende, portanto, que a pletora de opiniões sobre o belo, o conveniente,decoroso, prazeroso, deveria fazer brotarem ricas fontes de gozo,mas também de desprazer. Em conformidade com tal percepção eleregride no desenvolvimento, ao renunciar a muitas dessas opiniõese furtar-se a determinadas exigências da cultura; com isso ganhaum sentimento de liberdade e de fortalecimento; e aos poucos,quando o hábito lhe torna suportável o modo de vida, passarealmente a ter sensações de desprazer mais raras e mais fracas queos homens cultivados, e se aproxima da condição do animal

doméstico; além do mais, sente tudo com o fascínio do contraste — e pode igualmente xingar a seu bel-prazer: de modo a novamentese erguer muito acima do mundo de sensações do animal. — Oepicúrio tem o mesmo ponto de vista do cínico; entre os doisexiste, em geral, apenas uma diferença de temperamento. Oepicúrio utiliza sua cultura superior para se tornar independente dasopiniões dominantes; eleva-se acima destas, enquanto o cínico fica

apenas na negação. Aquele anda, digamos assim, por caminhos semento, bem protegidos, penumbrosos, enquanto acima dele ascopas das árvores bramem ao vento, denunciando-lhe a veemênciacom que o mundo lá fora se move. O cínico, por outro lado,agueia nu na ventania, por assim dizer, e se endurece até perder a

sensibilidade.

276.  Microcosmo e macrocosmo da cultura . — As melhoresdescobertas acerca da cultura o homem faz em si mesmo, aoencontrar em si dois poderes heterogêneos que governam. Supondoque alguém viva no amor das artes plásticas ou da música etambém seja tomado pelo espírito da ciência, e que considereimpossível eliminar essa contradição pela destruição de um e a totalliberação do outro poder: então só lhe resta fazer de si mesmo umedifício da cultura tão grande que esses dois poderes, ainda que emextremos opostos, possam nele habitar, enquanto entre eles seabrigam poderes intermediários conciliadores com força bastante para, se necessário, aplainar um conflito que surja. Mas esseedifício da cultura num indivíduo terá enorme semelhança com aconstrução da cultura em épocas inteiras e, por analogia, instruirá

continuamente a respeito dela. Pois em toda parte onde sedesenvolveu a arquitetura da cultura, foi sua tarefa obrigar àharmonia os poderes conflitantes, através da possante união dosoutros poderes menos incompatíveis, sem no entanto oprimi-los ouacorrentá-los.

277.  Felicidade e cultura. — A visão do ambiente de nossa

infância nos comove: a casa com jardim, a igreja com túmulos, olago e o bosque — essas coisas sempre revemos como sofredores.A compaixão para conosco nos assalta, pois o quanto sofremosdesde então! E ali tudo permanece tão sereno, tão eterno: apenasnós somos tão diferentes, tão agitados; e reencontramos algumas pessoas em que o tempo não cravou seus dentes mais do que numcarvalho: camponeses, pescadores, moradores da floresta — são

os mesmos. — Comoção, autocompaixão face à cultura inferior é amarca da cultura superior; o que mostra que a felicidade, em todo o

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caso, não foi aumentada por ela. Quem quiser colher felicidade esatisfação na vida, que evite sempre a cultura superior.

278.  Analogia da dança. — Hoje devemos considerar como

sinal decisivo de grande cultura alguém possuir força e flexibilidadetanto para ser puro e rigoroso no conhecer como para, em outrosmomentos, deixar que a poesia, a religião e a metafísica vão cem passos à sua frente, por assim dizer, apreciando-lhes o poderio e a beleza. Tal posição entre duas exigências tão diversas é muitodifícil, pois a ciência requer o domínio absoluto de seus métodos,e, não sendo este requisito satisfeito, surge o outro perigo, o de

oscilar debilmente para cima e para baixo, entre impulsos diversos. No entanto, a fim de mostrar uma via para a solução dessadificuldade, ao menos com uma analogia, lembremos que a dançanão é o mesmo que um vago balanceio entre impulsos diversos. Aalta cultura semelhará uma dança ousada: por isso, como foi dito, énecessária muita força e flexibilidade.

279.  Aliviando a vida. — Um dos principais meios de aliviar aida é idealizar todos os seus eventos; mas é preciso obtermos da

 pintura uma noção clara do que é idealizar. O pintor solicita que oespectador não olhe de maneira demasiado aguda e precisa, ele oobriga a recuar uma certa distância para olhar; ele tem de pressupor um afastamento bem determinado do observador em relação aoquadro; deve até mesmo presumir, em seu espectador, um grauigualmente determinado de agudeza do olhar;117  em tais coisas elenão pode absolutamente hesitar. Portanto, quem quiser idealizar suaida não deve querer vê-la com demasiada precisão, deve sempre

remeter o olhar para uma certa distância. Desse artifício entendiaGoethe, por exemplo.

280.  Quando o que agrava alivia, e inversamente. — Muitacoisa que em certos níveis da vida humana é agravamento, serve aum nível superior como aliviamento, porque tais homensconheceram mais fortes agravamentos da vida. Ocorre também oinverso: a religião, por exemplo, tem uma dupla face, conforme umhomem erga o olhar para ela, para que lhe diminua o fardo e amiséria, conforme desça os olhos até ela, como um grilhão que lhe

 puseram para que não se eleve muito pelo ar.

281.  A cultura superior é necessariamente incompreendida. — Quem dotou seu instrumento apenas de duas cordas, como oseruditos, que além do impulso de saber   têm somente um impulsoreligioso  adquirido, não compreende os homens que sabem tocar mais cordas. É da natureza da cultura superior, de muitas cordasmais,118 que ela sempre seja interpretada erradamente pela inferior;o que sucede, por exemplo, quando a arte é tida como uma formadisfarçada de religiosidade. De fato, pessoas apenas religiosascompreendem até a ciência como busca do sentimento religioso, talcomo os surdos-mudos não sabem o que é música, se não for movimento visível.

282.  Lamentação. — São talvez as vantagens de nosso tempo

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que trazem consigo um retrocesso e uma ocasional subestimaçãoda vita contemplativa. Mas é preciso reconhecer que nosso tempoé pobre em grandes moralistas; que Pascal, Epiteto, Sêneca,Plutarco são bem pouco lidos; que o trabalho e a diligência — queantes estavam no cortejo da deusa Saúde — às vezes parecemgrassar como uma doença. Como falta tempo para pensar etranqüilidade no pensar, as pessoas não mais ponderam as opiniõesdivergentes: contentam-se em odiá-las. Com o enormeaceleramento da vida, o espírito e o olhar se acostumam a ver eulgar parcial ou erradamente, e cada qual semelha o viajante queconhece terras e povos pela janela do trem. Uma atitude

independente e cautelosa no conhecimento é vista quase como umaespécie de loucura, o espírito livre é difamado, particularmente pelos eruditos, que na arte com que ele observa as coisas sentemfalta de sua própria minúcia e diligência de formiga, e que de bomgrado o baniriam para um solitário canto da ciência: enquanto eletem a tarefa bem distinta e superior de comandar, de um pontoafastado, todas as hostes de cientistas e eruditos, mostrando-lhes

os caminhos e objetivos da cultura. — Uma lamentação como a queacaba de ser entoada provavelmente terá seu tempo e se calará por si mesma, ante um intenso retorno do gênio da meditação.

283.  Defeito principal dos homens ativos. — Aos homensativos falta habitualmente a atividade superior, quero dizer, aindividual. Eles são ativos como funcionários, comerciantes,

eruditos, isto é, como representantes de uma espécie, mas nãocomo seres individuais e únicos; neste aspecto são indolentes. — Ainfelicidade dos homens ativos é que sua atividade é quase sempreum pouco irracional. Não se pode perguntar ao banqueiroacumulador de dinheiro, por exemplo, pelo objetivo de sua atividadeincessante: ela é irracional. Os homens ativos rolam tal como pedra,conforme a estupidez da mecânica. — Todos os homens sedividem, em todos os tempos e também hoje, em escravos e livres; pois aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, nãoimporta o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito.

284.  Em favor dos ociosos. — Como sinal de que decaiu aalorização da vida contemplativa, os eruditos de agora competem

com os homens ativos numa espécie de fruição precipitada, demodo que parecem valorizar mais esse modo de fruir do que aqueleque realmente lhes convém e que de fato é um prazer bem maior.Os eruditos se envergonham do otium [ócio]. Mas há algo de nobreno ócio e no lazer. — Se o ócio é realmente o começo de todos osícios,119 então ao menos está bem próximo de todas as virtudes;

o ocioso é sempre um homem melhor do que o ativo. — Mas não

 pensem que, ao falar de ócio e lazer, estou me referindo a vocês, preguiçosos.

285.  A intranqüilidade moderna. — À medida que andamos para o Ocidente se torna cada vez maior a agitação moderna, demodo que no conjunto os habitantes da Europa se apresentam aosamericanos como amantes da tranqüilidade e do prazer, embora semovimentem como abelhas ou vespas em vôo. Essa agitação setorna tão grande que a cultura superior já não pode amadurecer 

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seus frutos; é como se as estações do ano se seguissem comdemasiada rapidez. Por falta de tranqüilidade, nossa civilização setransforma numa nova barbárie. Em nenhum outro tempo osativos, isto é, os intranqüilos, valeram tanto. Logo, entre ascorreções que necessitamos fazer no caráter da humanidade estáfortalecer em grande medida o elemento contemplativo. Mas desdeá o indivíduo que é tranqüilo e constante de cabeça e de coraçãotem o direito de acreditar que possui não apenas um bomtemperamento, mas uma virtude de utilidade geral, e que, ao preservar essa virtude, está mesmo realizando uma tarefa superior.

286.  Em que medida o homem ativo é preguiçoso. — Acho quecada pessoa deve ter uma opinião própria sobre cada coisa arespeito da qual é possível ter opinião, porque ela mesma é umacoisa particular e única, que ocupa em relação a todas as outrascoisas uma posição nova, sem precedentes. Mas a indolência quehá no fundo da alma do homem ativo impede o ser humano de tirar água de sua própria fonte. — Com a liberdade de opiniões sucede o

mesmo que à saúde: ambas são individuais, não se pode criar umconceito de validade geral para nenhuma delas. O que um indivíduonecessita para a sua saúde é, para um outro, motivo de doença, eários caminhos e meios para a liberdade do espírito seriam, para

naturezas superiormente desenvolvidas, caminhos e meios deservidão.

287.  Censor   vitae  [Censor da vida]. — Por muito tempo, aalternância de amor e ódio caracteriza o estado interior de umhomem que quer ser livre em seu julgamento da vida; ele nãoesquece, e tudo ressente das coisas, tudo de bom e de mau. Enfim,quando a tábua de sua alma estiver totalmente coberta deexperiências, ele não desprezará nem odiará a existência, e

tampouco a amará, mas estará acima dela, ora com o olhar daalegria, ora com o da tristeza, e tal como a natureza terá umadisposição ora estival ora outonal.

288.  Exito  secundário. — Quem deseja seriamente se tornar livre perderá a inclinação para erros e vícios, sem que nada oobrigue a isso; também a raiva e o desgosto o assaltarão cada vez

menos. Pois sua vontade não deseja nada mais instantemente doque o conhecimento e o meio de alcançá-lo, ou seja: a condiçãoduradoura em que ele está mais apto para o conhecer.

289. Valor da doença . — O homem que jaz doente na camatalvez perceba que em geral está doente de seu ofício, de seusnegócios ou de sua sociedade, e que por causa dessas coisas perdeu a capacidade de reflexão sobre si mesmo: ele obtém estasabedoria a partir do ócio a que sua doença o obriga.

290.  Sensibilidade no campo. — Quando não se tem linhasfirmes e calmas no horizonte da vida, como as linhas dasmontanhas e dos bosques, a própria vontade íntima do homem vem

a ser intranqüila, dispersa e sequiosa como a natureza do citadino:ele não tem felicidade nem dá felicidade.

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291. Cautela dos espíritos livres. — Os homens de senso livre,que vivem apenas para o conhecimento, alcançarão logo o objetivoexterior de sua vida, sua posição definitiva ante a sociedade e oEstado, e se darão por satisfeitos, por exemplo, com um pequenoemprego ou fortuna que baste justamente para viver; pois seorganizarão de modo tal que uma grande reviravolta nas condiçõesexternas, ou mesmo subversão da ordem política, não transtornetambém a sua vida. Em todas essas coisas empregam o mínimo deenergia, para, com toda a força acumulada e com grande fôlego, por assim dizer, mergulhar no conhecer. Assim podem ter aesperança de descer profundamente e talvez enxergar o fundo. — 

Um tal espírito gosta de tomar apenas a borda de uma experiência,não ama as coisas em toda a largueza e abundância de suas dobras: pois não quer se emaranhar nelas. — Ele também conhece os diasde semana de cativeiro, de dependência, de serviço. Mas de quandoem quando deverá ter um domingo de liberdade, de outro modo nãoterá como suportar a vida. — É provável que mesmo o seu amor aos homens seja cauteloso e de fôlego curto, pois ele não quer se

envolver com o mundo das propensões e da cegueira mais do que onecessário para os fins do conhecimento. Precisa confiar em que ogênio da justiça terá algo a dizer em favor do seu discípulo e protegido, se vozes acusadoras o qualificarem de pobre em amor. — Em seu modo de viver e pensar há um heroísmo refinado, quedesdenha se oferecer à adoração das massas, como faz seu irmãomais rude, e anda em silêncio através do mundo e para fora dele.

 Não importa por quais labirintos vagueie, sob que rochas tenha seespremido sua torrente — chegando à luz ele segue o seu caminho,claro, leve, quase sem ruído, e deixa que o brilho do sol brinque noseu fundo.

292.  Avante. — Assim, avante no caminho da sabedoria, comum bom passo, com firme confiança! Seja você como for, seja sua própria fonte de experiência! Livre-se do desgosto com seu ser, perdoe a seu próprio Eu, pois de toda forma você tem em si umaescada com cem degraus, pelos quais pode ascender aoconhecimento. A época na qual, com tristeza, você se sentelançado, considera-o feliz por essa fortuna; ela lhe diz queatualmente você partilha experiências de que homens de uma época

futura talvez tenham de se privar. Não menospreze ter sidoreligioso; investigue plenamente como teve um genuíno acesso àarte. Não é possível, exatamente com ajuda de tais experiências,explorar 120  com maior compreensão enormes trechos do passadohumano? Não foi precisamente neste  chão que às vezes tanto lhedesagrada, no chão do pensamento impuro, que medraram muitosdos esplêndidos frutos da cultura antiga? É preciso ter amado a

religião e a arte como a mãe e a nutriz — de outro modo não é possível se tornar sábio. Mas é preciso poder olhar além delas,crescer além delas; permanecendo sob o seu encanto não ascompreendemos. Igualmente você deve familiarizar-se com ahistória e o cauteloso jogo dos pratos da balança: "de um lado — deoutro lado". Faça o caminho de volta, pisando nos rastros que ahumanidade fez em sua longa e penosa marcha pelo deserto do

 passado: assim aprenderá, da maneira mais segura, aonde ahumanidade futura não pode ou não deve retornar. E, ao desejar ver 

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antecipadamente, com todas as forças, como será atado o nó dofuturo, sua própria vida adquirirá o valor de instrumento e meio para o crescimento. Está em suas mãos fazer com que tudo o que

iveu — tentativas, falsos começos, equívocos, ilusões, paixões,seu amor e sua esperança — reduza-se inteiramente a seu objetivo.Este objetivo é tornar-se você mesmo uma cadeia necessária deanéis da cultura, e desta necessidade inferir a necessidade namarcha da cultura em geral. Quando o seu olhar tiver se tornadoforte o bastante para ver o fundo, na escura fonte de seu ser e deseus conhecimentos, talvez também se tornem visíveis para você,no espelho dele, as distantes constelações das culturas vindouras.

Você acha que uma vida como essa, com tal objetivo, seria árduademais, despida de coisas agradáveis? Então não aprendeu aindaque não há mel mais doce que o do conhecimento, e que as nuvensde aflição que pairam acima lhe servirão de úberes, dos quais vocêhá de extrair o leite para seu bálsamo. Apenas ao chegar à velhiceocê nota como deu ouvidos à voz da natureza, dessa natureza que

governa o mundo inteiro mediante o prazer: a mesma vida que tem

seu auge na velhice tem seu auge na sabedoria, no suave fulgor solar de uma constante alegria de espírito; ambas, a velhice e asabedoria, você as encontra na mesma encosta da vida, assim quisa natureza. Então é chegado o momento, e não há por que seenraivecer de que a névoa da morte se aproxime. Em direção à luz — o seu último movimento; um grito jubiloso de conhecimento — o seu último som.

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Capítulo sextoO HOMEM EM SOCIEDADE

293.  Dissimulação benévola. — Freqüentemente é necessáriauma dissimulação benévola na relação com as pessoas, como senão penetrássemos os motivos de sua conduta.

294.  Cópias. — Não é raro encontrarmos cópias de homens

importantes; e, como no caso das pinturas, a maioria das pessoas prefere as cópias aos originais.

295.  O orador . — Pode-se falar muito adequadamente e, noentanto, de maneira que todo o mundo grite o contrário: isso ocorrequando não se fala para todo o mundo.

296.  Falta de confidência. — A falta de confidência entreamigos é uma falha que não pode ser repreendida sem se tornar incurável.

297.  Arte de presentear . — Ter de recusar um presente apenas porque não é oferecido da maneira correta nos desgosta com quem

o dá.

298. O partidário mais perigoso. — Em todo partido há alguémque, ao enunciar com demasiada fé os princípios do partido,estimula os demais à apostasia.

299.  Conselheiros do doente. — Quem dá conselhos a umhomem doente adquire uma sensação de superioridade sobre ele,não importando se eles são acolhidos ou rejeitados. Por isso hádoentes suscetíveis e orgulhosos que odeiam os conselheiros maisainda que a doença.

300.  Dois tipos de igualdade. — A ânsia de igualdade pode se

expressar tanto pelo desejo de rebaixar os outros até seu próprionível (diminuindo, segregando, derrubando) como pelo desejo desubir juntamente com os outros (reconhecendo, ajudando,alegrando-se com seu êxito).

301. Combatendo o embaraço. — A melhor maneira de ajudar  pessoas muito embaraçadas, de tranqüilizá-las, consiste em elogiá-las firmemente.

302.  A preferência por certas virtudes. — Não atribuímos valor especial à posse de uma determinada virtude, até que percebemos asua ausência total em nosso adversário.

303.  Por que contradizemos. — É freqüente contradizermosuma opinião quando, na realidade, apenas o tom com que foi

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exposta nos é antipático.

304.  Confiança e confidência.121  — Quem busca propositadamente a confidência com outra pessoa, em geral não

está seguro de ter sua confiança. Quem está seguro da confiança dá pouco valor à confidência.

305.  O equilíbrio da amizade. — Às vezes, em nossorelacionamento com outra pessoa, o justo equilíbrio da amizade érestaurado se pomos em nosso prato da balança uma pitada de faltade razão.

306.  Os médicos mais perigosos. — Os médicos mais perigosos são os que, atores natos, imitam o médico nato com o perfeito dom de iludir.

307.  Quando cabem os paradoxos. — A fim de conquistar 

 pessoas inteligentes para uma determinada tese, às vezes bastaapresentá-la na forma de um tremendo paradoxo.

308.  Como conquistar pessoas corajosas. — Persuadimos pessoas corajosas a determinada ação apresentando-a como mais perigosa do que é de fato.

309.  Cortesias. — Consideramos ofensas as cortesias de pessoas que não amamos.

310.  Fazer esperar . — Um meio seguro de irritar as pessoas elhes pôr maus pensamentos na cabeça é fazê-las esperar muitotempo. Isso torna imoral.122

311. Contra os confiantes. — Pessoas que nos dão toda a suaconfiança acreditam, com isso, ter direito à nossa. É um erro deraciocínio; dádivas não conferem direitos.

312.  Meios de compensação. — Muitas vezes basta dar a

alguém que prejudicamos a oportunidade de fazer um gracejo anosso respeito, para proporcionar-lhe satisfação e mesmo dispô-lafavoravelmente.

313. Vaidade da língua . — Uma pessoa escondendo suas máscaracterísticas e vícios, ou os revelando abertamente, nos doiscasos sua vaidade quer lucrar: basta ver a sutileza com que ela

distingue entre aquele diante do qual esconde essas características eaquele diante do qual é cândida e sincera.

314.   Respeitosamente. — Não querer magoar, não querer  prejudicar ninguém pode ser sinal tanto de um caráter justo comode um caráter medroso.

315.  Requisito para a discussão. — Quem não sabe pôr no

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gelo seus pensamentos não deve se entregar ao calor da discussão.

316. Companhia e presunção. — Desaprendemos a presunçãoquando sabemos andar sempre com pessoas de mérito; estar só

estimula a soberba. Os jovens são presunçosos porque serelacionam com seus iguais, que nada são, mas gostam de parecer muito.

317.  Motivo do ataque. — Não se ataca apenas para fazer mala alguém, para derrotá-lo, mas talvez simplesmente para tomar consciência da própria força.

318.  Adulação. — As pessoas que, ao relacionar-se conosco,desejam embotar nossa prudência com adulações, empregam ummeio perigoso, como um sonífero que, quando não faz adormecer,torna ainda mais desperto.

319.  O bom autor de cartas. — Quem não escreve livros, pensa muito e vive em companhia inadequada, será normalmenteum bom autor de cartas.

320. O mais feio. — É duvidoso que um homem muito viajadotenha encontrado em alguma parte do mundo regiões mais feias doque no rosto humano.

321.  Os compassivos. — As naturezas compassivas, sempredispostas a auxiliar na desgraça, raramente são as mesmas que sealegram juntamente com as demais: na felicidade alheia elas não têmo que fazer, são supérfluas, não se sentem na posse de suasuperioridade, e por isso facilmente se desgostam.

322.  A família do suicida. — Os familiares de um suicida nãolhe perdoam não ter ficado vivo em consideração ao nome dafamília.

323.  Prevendo a ingratidão. — Quem dá um grande presentenão acha gratidão, pois para o presenteado já é um fardo aceitar.

324.  Na companhia de pessoas sem espírito. — Ninguémagradece ao homem de espírito sua cortesia, quando ele se adapta aum grupo de pessoas no qual não é cortês mostrar espírito.

325.  A presença de testemunhas. — Atrás de um homem que

cai na água nos lançamos de muito bom grado, se estiverem presentes pessoas que não ousam fazê-lo.

326.  Silêncio. — Para ambos os lados, o modo maisdesagradável de responder a um ataque polêmico é se aborrecer ecalar, pois geralmente o atacante interpreta o silêncio como umsinal de desdém.

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327. O segredo do amigo . — Poucos são aqueles que, estandoembaraçados por falta de temas para a conversa, não revelam osassuntos secretos dos amigos.

328.   Humanidade. — A humanidade das celebridades doespírito, ao lidar com pessoas não célebres, consiste em

amavelmente não ter razão.

329.  O desconcertado. — Pessoas que em sociedade não sesentem seguras aproveitam toda ocasião em que há alguém que lhesé próximo, e a quem são superiores, para demonstrar publicamente

essa superioridade — mediante gracejos, por exemplo.

330.  Agradecimento. — Incomoda a uma alma delicada saber que alguém lhe deve agradecimento; a uma alma grosseira, saber que o deve a alguém.

331.  Indício de estranhamento. — O indício mais forte doestranhamento de opiniões entre duas pessoas se dá quando dizemuma à outra algo irônico, mas nenhuma delas percebe a ironia.

332.  Presunção com mérito . — A presunção aliada ao méritoofende ainda mais que a presunção de pessoas sem mérito: pois o próprio mérito já ofende.

333.  Perigo na voz. — Pode acontecer de, numa conversa, osom de nossa própria voz nos embaraçar e nos levar a afirmaçõesque não correspondem absolutamente a nossa opinião.

334.  Numa conversa. — Dar razão ou não ao outro, numa

conversa, é puramente questão de hábito: as duas coisas fazemsentido.

335.  Medo do próximo. — Tememos a disposição hostil do próximo, porque receamos que, graças a esta disposição, elechegue aos nossos segredos.

336.  Distinguindo ao repreender . — Pessoas muito respeitadasdistribuem mesmo a sua repreensão como se nos distinguissemcom ela. Esperam que atentemos para a solicitude com que seocupam de nós. Nós as compreendemos de modo totalmenteerrado, ao tomar sua repreensão objetivamente e nos defendermosdela; assim as irritamos e as afastamos de nós.

337.  Dissabor com a benevolência alheia. — Enganamo-nosquanto à intensidade em que nos cremos odiados ou temidos: porque nós mesmos conhecemos bem o grau de nossa divergênciaem relação a uma pessoa, uma tendência, um partido, mas eles nosconhecem superficialmente, e portanto nos odeiamsuperficialmente. É freqüente depararmos com uma benevolência

que para nós é inexplicável; mas se a compreendemos, então elanos ofende, porque mostra que não nos levam bastante a sério, não

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nos dão suficiente importância.

338.  Vaidades que se cruzam . — Duas pessoas que seencontram, e cuja vaidade é igualmente grande, conservam má

impressão uma da outra, pois cada uma delas estava tão ocupadacom a impressão que queria produzir, que a outra não lhe causanenhuma impressão; enfim, as duas percebem que seus esforçosforam vãos, e atribuem a culpa à outra.

339.  Maus modos como bons sinais. — O espírito superior tem prazer nas incivilidades, arrogâncias, e mesmo hostilidades de

ovens ambiciosos contra ele; são os maus modos de cavalosfogosos que ainda não levaram cavaleiro, e que logo sentirãoorgulho de levá-lo.

340.  Quando é aconselhável não ter razão. — Convémrecebermos acusações sem refutá-las, mesmo quando são injustas,se o acusador vir como uma injustiça maior de nossa parte o fatode o contradizermos e até o refutarmos. Sem dúvida, desse modoum homem pode sempre estar errado e conservar a razão,transformando-se enfim, com tranqüila consciência, numinsuportável tirano e atormentador; e o que vale para o indivíduo pode suceder com classes inteiras da sociedade.

341.   Muito pouco reverenciadas . — Pessoas muitoconvencidas, às quais se mostra uma consideração menor do que aque esperavam, tentam durante muito tempo enganar a si mesmas eaos outros a esse respeito e se tornam psicólogos muito sutis, a fimde estabelecer que afinal os outros as reverenciaram o bastante; senão atingem seu objetivo, se o véu da ilusão se rasga, entregam-sea uma raiva tanto maior.

342.  Estados primitivos ecoando na fala. — Na maneira comoos homens fazem afirmações em sociedade, reconhece-sefreqüentemente um eco dos tempos em que eles entendiam mais dearmas que de alguma outra coisa: num instante manejam suasfrases como atiradores que apontam sua besta, no outro pensamos

ouvir o sibilar e o tilintar das lâminas; e no caso de certos homensuma afirmação cai como um sólido porrete. — Já as mulheresfalam como seres que durante milênios sentaram-se junto ao tear,manusearam a agulha ou foram crianças com as crianças.

343.  O narrador . — Quem narra alguma coisa, logo deixa perceber se narra porque o fato lhe interessa ou por querer 

despertar o interesse mediante a narrativa. Neste caso ele exagera,usa superlativos e faz outras coisas assim. Então ele geralmente nãonarra tão bem, porque pensa mais em si do que no assunto.

344.  Lendo em voz alta. — Quem lê criações dramáticas emoz alta faz descobertas sobre o seu próprio caráter: para certos

momentos e estados de espírito, para o que for patético ou burlesco, digamos, acha sua voz mais natural do que para outros,enquanto na vida cotidiana talvez só não tenha tido oportunidade de

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mostrar pathos ou comicidade.

345.  Uma cena de comédia que sucede na vida. — Alguémconcebe uma opinião espirituosa sobre um tema, a fim de expressá-

la num grupo. Numa comédia, veríamos e ouviríamos como ele seesforça em chegar ao ponto e conduzir o grupo até onde possafazer a sua observação: como sempre empurra a conversa para umúnico objetivo, às vezes perde a direção, recupera-a, e afinal chegao instante: quase lhe falta o fôlego — então alguém do grupo lhetira a observação da boca. Que fará ele? Será contra a sua própriaopinião?

346.  Indelicado sem querer . — Quando alguém, sem o querer,trata indelicadamente outra pessoa, por exemplo, não acumprimenta por não tê-la reconhecido, isto o aborrece, ainda quenão possa repreender sua consciência; incomoda-o a má impressãoque produziu no outro, ou teme as conseqüências de um mal-entendido, ou o entristece ter ferido o outro — portanto, vaidade,

medo ou compaixão podem ser despertados, ou talvez tudo isso aomesmo tempo.

347. Obra de mestre da traição. — Expressar a um cúmplice asuspeita mortificante de estar sendo traído por ele, e issoustamente quando se está praticando uma traição, é um golpe de

mestre da maldade, pois ocupa o outro com a própria pessoa e oobriga a se comportar de forma aberta e insuspeita por algumtempo, permitindo que o verdadeiro traidor tenha as mãos livres.

348.  Ofender e ser ofendido. — É muito mais agradávelofender e mais tarde pedir perdão do que ser ofendido e conceder  perdão. Quem faz a primeira coisa dá mostra de poder, e em

seguida de bom caráter. O outro, se não quiser passar por desumano, tem que perdoar. Por causa dessa obrigação, é mínimoo prazer na humilhação do outro.

349.  Na disputa. — Quando se contradiz a opinião de outra pessoa e ao mesmo tempo se desenvolve a própria, a persistente

consideração da outra opinião costuma atrapalhar a postura naturalda própria: ela parece mais intencional, mais aguda, talvez um tantoexagerada.

350.  Artif ício. — Quem quer obter algo difícil de outra pessoanão deve enxergar a coisa como um problema, mas simplesmenteapresentar seu plano como a única possibilidade; se no olhar do

interlocutor despontar a objeção, a contradição, ele deve saber rapidamente interromper e não lhe deixar tempo.

351.   Remorsos após reuniões sociais. — Por que temosremorsos após as reuniões sociais de costume? Porque tratamoslevianamente coisas importantes, porque ao conversar sobre pessoas não falamos com inteira lealdade ou porque nos calamosquando deveríamos falar, porque oportunamente não noslevantamos e saímos, em suma, porque nos comportamos em

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sociedade como se pertencêssemos a ela.

352.  Somos julgados erroneamente. — Quem quer sempreescutar os julgamentos que fazem de sua pessoa, terá sempre

desgosto. Pois mesmo por aqueles que nos são mais próximos("que nos conhecem melhor"), somos julgados erroneamente.Mesmo bons amigos podem dar vazão ao aborrecimento numa palavra desfavorável; e seriam eles nossos amigos se nosconhecessem precisamente? — Os juízos dos indiferentes causammuita dor, porque soam tão imparciais, quase objetivos. Mas senotamos que alguém que nos é hostil nos conhece num ponto

sigiloso, tão bem quanto nós mesmos, como é enorme então nossacontrariedade!

353. Tirania do retrato . — Artistas e homens de Estado que a partir de alguns traços isolados compõem rapidamente a imagem deuma pessoa ou um evento costumam ser injustos, ao exigir depoisque o evento ou a pessoa seja realmente como eles o pintaram;

exigem mesmo que alguém seja tão talentoso, tão ladino, tão injustocomo vive na sua representação.

354.  O parente como o melhor amigo . — Os gregos, quesabiam tão bem o que é um amigo — de todos os povos, só elestiveram uma discussão filosófica profunda e variada sobre a

amizade; de modo que foram os primeiros e até hoje os últimos aer o amigo como um problema digno de solução —, essesmesmos gregos designavam os parentes com uma expressão que éo superlativo da palavra "amigo". Isto permanece inexplicável paramim.

355.   Honestidade não compreendida. — Quando numa

conversa alguém cita a si mesmo ("eu disse então", "costumodizer"), isto dá impressão de arrogância, mas com freqüência vemda fonte contrária, pelo menos da honestidade, que não quer adornar e embelezar o instante com idéias de um momento anterior.

356.  O parasita. — É indício de completa falta de nobreza

alguém preferir viver na dependência, à custa de outros, apenas para não ter que trabalhar, e geralmente com secreta amargura emrelação àqueles de que depende. — Tal mentalidade é muito maisfreqüente nas mulheres que nos homens, e também muito mais perdoável (por razões históricas).

357.  No altar da reconciliação. — Há circunstâncias em que

só obtemos algo de um homem se o ofendemos e criamosinimizade com ele: este sentimento de ter um inimigo o aborrecetanto, que ele aproveita o primeiro sinal de uma disposição mais branda para se reconciliar, e no altar dessa reconciliação sacrifica acoisa a que dava tanta importância, que não pretendia ceder por nenhum preço.

358.  Solicitar compaixão como sinal de presunção . — Há pessoas que, ao se encolerizar e ferir os outros, exigem

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 primeiramente que não as levem a mal e, em segundo lugar, quetenham compaixão delas, por estarem sujeitas a paroxismos tãoiolentos. A tal ponto chega a presunção humana.

359.  Isca. — "Todo homem tem o seu preço" — isso não éerdadeiro. Mas para cada um pode haver uma isca que tem de

morder. É assim que, para ganhar muitas pessoas para uma causa, basta que se dê a ela o brilho da filantropia, da nobreza, dacaridade, da abnegação — e a que causa não se poderia dá-lo? — São os doces e guloseimas de sua alma; outras pessoas têm outros.

360. Comportamento diante do elogio. — Quando bons amigoselogiam um homem talentoso, ele com freqüência ficará alegre por cortesia e benevolência, mas na verdade isso lhe é indiferente. Suaautêntica natureza fica inerte diante disso, e não é possível movê-loum passo para fora do sol ou da sombra em que está; mas as pessoas querem causar alegria mediante o elogio, e significariamagoá-las não se alegrar com ele.

361.  A experiência de Sócrates. — Quando alguém se tornamestre numa coisa, em geral continua a ser, por isso mesmo, um perfeito inepto na maioria das outras coisas; mas pensa-seexatamente o contrário, algo de que Sócrates já teve experiência.Este é o inconveniente que torna desagradável a relação com os

mestres.

362.  Meios de embrutecimento. — Na luta contra a estupidez,os homens mais justos e afáveis tornam-se enfim brutais. Com isso podem estar no caminho certo para a sua defesa; pois a fronteobtusa pede, como argumento de direito, o punho cerrado. Mas,tendo o caráter justo e afável, como disse, eles sofrem com tal

meio de defesa, mais do que fazem sofrer.

363. Curiosidade. — Se não existisse a curiosidade, pouco sefaria pelo bem do próximo. Mas, sob o nome de dever oucompaixão, ela se insinua na casa do infeliz e necessitado. — Talvez até mesmo no decantado amor materno haja uma boa

 parcela de curiosidade.

364.   Erro de cálculo na sociedade. — Este deseja ser interessante com seus juízos, aquele com suas afeições e aversões,um terceiro com suas relações, um quarto com seu isolamento — etodos calculam mal. Pois aquele diante do qual se representa oespetáculo pensa ser ele mesmo o único espetáculo que interessa.

365. O duelo. — A favor das questões de honra e dos duelos pode-se dizer que, se alguém é suscetível a ponto de não querer 

iver se fulano ou sicrano diz ou pensa isto e aquilo sobre ele, temo direito de deixar a coisa ser resolvida pela morte de um ou dooutro. Sobre o fato de ele ser tão suscetível, não há o que discutir;nisto somos herdeiros do passado, de sua grandeza como de seusexcessos, sem os quais nunca houve grandeza. Havendo um códigode honra que admite o sangue no lugar da morte, de maneira que

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após um duelo segundo as regras o coração é aliviado, isto é umgrande benefício, pois de outro modo muitas vidas humanasestariam ameaçadas. — Uma instituição assim, aliás, educa oshomens na cautela com as palavras e torna possível o trato comeles.

366.  Nobreza e gratidão . — Uma alma nobre gostará de sesentir obrigada à gratidão, e não evitará medrosamente as ocasiõesde se obrigar a algo ou alguém; também se mostrará serena depois,ao expressar sua gratidão; enquanto as almas baixas resistem a tudoo que pode obrigá-las, ou depois exageram e são muito ávidas em

expressar a gratidão. Isso ocorre igualmente com pessoas deorigem baixa ou de situação humilhante: um favor que tenhamrecebido lhes parece uma graça miraculosa.

367.  As horas da eloqüência. — Para falar bem, certa pessoatem necessidade de alguém que lhe seja clara e reconhecidamentesuperior; uma outra só acha inteira liberdade de discurso e os

felizes fraseados da eloqüência diante de alguém a quem sobrepuja:nos dois casos a razão é a mesma; cada uma delas só fala bemquando fala sans gêne  [sem constrangimento], uma porque, frenteao superior, não sente o impulso da concorrência, da competição; aoutra também por isso, diante do inferior. — Mas há uma espéciemuito diferente de pessoas, que só falam bem ao falar competindo,com a intenção de ganhar. Qual das duas espécies é a maisambiciosa: aquela que fala bem ao ter a ambição estimulada ouaquela que, justamente por esse motivo, fala mal ou absolutamentenão fala?

368. O talento para a amizade. — Entre as pessoas que têmum dom especial para a amizade, dois tipos sobressaem. Um está

em contínua ascensão, e para cada etapa de seu desenvolvimentoencontra um amigo adequado. Desse modo conquista uma série deamigos que raramente se relacionam entre si, e que às vezesdivergem e se contradizem: algo que tem correspondência no fatode as etapas posteriores de seu desenvolvimento anularem ou prejudicarem as fases do início. A alguém assim podemos chamar, brincando, de escada. — O outro tipo é representado por aquele

que exerce atração sobre caracteres e talentos muito diversos, demodo que granjeia todo um círculo de amigos; e eles própriosestabelecem relações amigáveis entre si, apesar de toda a suaariedade. Uma tal pessoa pode ser chamada de círculo: pois é

 preciso que nela esteja prefigurado, de algum modo, esse nexo denaturezas e disposições tão diversas. — Em várias pessoas, aliás, odom de ter bons amigos é muito maior que o dom de ser um bom

amigo.

369.  Tática no conversar . — Depois de conversar comalguém, estamos na melhor das relações com o interlocutor setivemos oportunidade de lhe mostrar nosso espírito e nossaamabilidade em todo o seu brilho. Homens espertos, que querem

dispor alguém a seu favor, recorrem a isso na conversa, dando à pessoa ótimas oportunidades para um bom gracejo e coisas assim.

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Pode-se imaginar uma divertida conversa entre dois espertalhõesque querem dispor favoravelmente um ao outro, e por isso lançamas melhores oportunidades para lá e para cá, sem que nenhum delesas aproveite: de modo que a conversa transcorre geralmente semespírito e sem amabilidade, pois cada um deixou para o outro aoportunidade de ser espirituoso e amável.

370.  Descarga do mau humor . — O homem que não conseguealgo prefere atribuir este insucesso à má vontade de outro homem,em vez de ao acaso. Sua irritação é aliviada se ele pensa numa pessoa, e não numa coisa, como razão para o seu insucesso; pois

de uma pessoa podemos nos vingar, mas as intempéries do acasotêm de ser engolidas. Quando um príncipe fracassa em algo, os queo rodeiam costumam indicar-lhe um homem como suposta causadaquilo, sacrificando-o no interesse de todos os cortesãos; pois docontrário o mau humor do príncipe se descarregaria sobre todoseles, não podendo ele vingar-se contra a deusa da Fortuna.

371.   Assumindo a cor do ambiente. — Por que são tãocontagiosas a simpatia e a aversão, de maneira que não podemosiver próximos a alguém de sentimentos fortes sem sermos

 preenchidos, como um receptáculo, por seus prós e seus contras?Em primeiro lugar, a total abstenção do julgamento é muito difícil,às vezes francamente intolerável para a nossa vaidade; ela possui asmesmas cores da pobreza de idéias e de sentimentos, ou do receioe da pouca virilidade: e assim somos levados a pelo menos tomar  partido, talvez em oposição aos que nos rodeiam, se essa posturadá mais prazer ao nosso orgulho. Mas em geral — este é o segundo ponto — não nos tornamos de fato conscientes da passagem daindiferença à simpatia ou aversão, e sim nos habituamos pouco a pouco à maneira de sentir de nosso ambiente; e, sendo a

concordância simpática e o entendimento recíproco tão agradáveis,logo adotamos os seus signos e cores partidárias.

372.  Ironia. — A ironia só é adequada como instrumento pedagógico, usada por um mestre na relação com alunos dequalquer espécie: seu objetivo é a humilhação, a vergonha, mas dotipo saudável que faz despertar bons propósitos, e que inspira

respeito e gratidão a quem assim nos tratou, como a um médico. Oirônico se faz de ignorante, e tão bem que os discípulos que comele dialogam são enganados e ficam arrojados ao crer que têm umconhecimento melhor, expondo-se de todas as maneiras; eles perdem o cuidado e se mostram como são, — até que, num dadomomento, a luz que sustentavam ante o rosto do mestre manda deolta os raios sobre eles, de modo bem humilhante. — Quando não

há uma relação como essa entre o mestre e os discípulos, a ironia éum mau comportamento, um afeto vulgar. Todos os escritoresirônicos contam com a espécie tola de homens que gostam de sesentir superiores a todos os demais, ao lado do autor, queconsideram o porta-voz de sua presunção. — O hábito da ironia,assim como o do sarcasmo, corrompe também o caráter; confereaos poucos a característica de uma superioridade alegrementemaldosa: por fim nos tornamos iguais a um cão mordaz queaprendeu a rir, além de morder.

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373.   Presunção. — O que mais devemos prevenir é ocrescimento dessa erva daninha que se chama presunção, quearruína toda boa colheita dentro de nós; pois há presunção nacordialidade, na demonstração de respeito, na intimidade benévola,no carinho, no conselho amigo, na confissão de erros, nacompaixão por outros, e todas essas belas coisas provocamrepugnância, quando tal erva cresce entre elas. O presunçoso, ouseja, aquele que quer significar mais do que é ou aquilo por que étido, faz sempre um cálculo errado. É certo que ele tem um êxitomomentâneo, na medida em que as pessoas diante das quais é presunçoso normalmente lhe tributam, por medo ou comodidade, a

medida de respeito que ele solicita; mas elas se vingamasperamente, subtraindo, do valor que até então lhe deram, tantoquanto ele solicitou além da medida. Não há nada que os homensfaçam pagar mais caro que a humilhação. O presunçoso podetornar o seu mérito real tão suspeito e pequenino aos olhos dosoutros, que é pisoteado por eles com pés sujos. — Mesmo umaatitude orgulhosa devemos nos permitir somente quando podemos

estar seguros de não ser incompreendidos e vistos como presunçosos, diante de amigos e esposas, por exemplo. Pois nasrelações humanas não há tolice maior do que granjear a fama de presunção; é ainda pior do que não ter aprendido a mentir por delicadeza.

374.  Diálogo. — O diálogo é a conversa perfeita, porque tudo

o que uma pessoa diz recebe sua cor definida, seu tom, seu gestode acompanhamento, em estrita referência  àquele com quem fala,ou seja, tal como sucede na troca epistolar, em que a mesma pessoa tem dez maneiras de exprimir sua alma, conforme escreva aeste ou àquele indivíduo. No diálogo há uma única refração do pensamento: ela é produzida pelo interlocutor, como o espelho noqual desejamos ver nossos pensamentos refletidos do modo mais belo possível. Mas como se dá com dois, três ou maisinterlocutores? Então a conversa perde necessariamente em finuraindividualizadora, as várias referências se cruzam e se anulam; alocução que agrada a um não satisfaz a índole de outro. Por isso oindivíduo é forçado, lidando com muitos, a se recolher em simesmo, a apresentar os fatos como são, mas tira dos assuntos o

lúdico ar de humanidade que faz da conversa uma das coisas maisagradáveis do mundo. Ouça-se o tom em que homens que lidamcom grupos inteiros de homens costumam falar, é como se o baixo-contínuo de todo o discurso fosse: "este sou eu, isto sou euque digo, pensem disso o que quiserem!". Esta é a razão por queem geral as mulheres de espírito deixam uma estranha, penosa,desanimadora impressão naqueles que as conhecem em sociedade:

falar com muitos, diante de muitos, priva-as de toda amabilidade deespírito, e apenas mostra, numa luz crua, a consciente preocupaçãode si mesma, a tática e a intenção de uma vitória pública: enquantono diálogo essas mesmas mulheres tornam a ser femininas erecuperam a graça de seu espírito.

375.   Fama póstuma. — Só faz sentido esperar o

reconhecimento de um futuro distante se supomos que ahumanidade permanecerá essencialmente a mesma, e que toda

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grandeza será tida como grande não apenas numa época, mas emtodas. Isso é um erro, porém; em todas as percepções eulgamentos do que é belo e bom a humanidade se transformaintensamente; é fantasia acreditar que estamos algumas léguas àfrente e que toda a humanidade segue o nosso  caminho. Alémdisso, um sábio não reconhecido pode hoje dar como certo que asua descoberta será feita igualmente por outros, e que no melhor dos casos um historiador futuro reconhecerá que ele já sabia istoou aquilo, mas não pôde obter crédito para a sua tese. Não ser reconhecido é interpretado pela posteridade como falta de vigor. — Em suma, não se deve falar tão facilmente a favor do isolamento

altivo. Há exceções, sem dúvida; mas geralmente são nossos erros,nossas fraquezas e tolices que impedem o reconhecimento denossas grandes qualidades.

376.  Amigos. — Apenas pondere consigo mesmo como sãodiversos os sentimentos, como são divididas as opiniões, mesmoentre os conhecidos mais próximos; e como até mesmo opiniões

iguais têm, nas cabeças de seus amigos, posição ou força muitodiferente da que têm na sua; como são múltiplas as ocasiões para omal-entendido e para a ruptura hostil. Depois disso, você dirá a simesmo: como é inseguro o terreno em que repousam as nossasalianças e amizades, como estão próximos os frios temporais e otempo feio, como é isolado cada ser humano! Se alguém percebeisso, e também que todas as opiniões, sejam de que espécie e

intensidade, são para o seu próximo tão necessárias eirresponsáveis como os atos, se descortina essa necessidadeinterior das opiniões, devida ao indissolúvel entrelaçamento decaráter, ocupação, talento e ambiente — talvez se livre da amargurae aspereza de sentimento que levou aquele sábio a gritar: "Amigos,não há amigos!".123  Esta pessoa dirá antes a si mesma: Sim, háamigos, mas foi o erro, a ilusão acerca de você que os conduziu atéocê; e eles devem ter aprendido a calar, a fim de continuar seus

amigos; pois quase sempre tais laços humanos se baseiam em quecertas coisas jamais serão ditas nem tocadas: se essas pedrinhascomeçam a rolar, porém, a amizade segue atrás e se rompe. Haveráhomens que não seriam fatalmente feridos, se soubessem o queseus mais íntimos amigos sabem no fundo a seu respeito? — 

Conhecendo a nós mesmos e vendo o nosso ser como uma esferacambiante de opiniões e humores, aprendendo assim a menosprezá-lo um pouco, colocamo-nos novamente em equilíbrio com osoutros. É verdade, temos bons motivos para não prezar muito osnossos conhecidos, mesmo os grandes entre eles; mas igualmente bons motivos para dirigir esse sentimento para nós mesmos. — Então suportemos uns aos outros, assim como suportamos a nós

mesmos; e talvez chegue um dia, para cada um, a hora feliz em quedirá:

"Amigos, não há amigos!" — disse o sábio moribundo;

"Inimigos, não há inimigos!" — digo eu, o tolo vivente.

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Capítulo sétimoA MULHER E A CRIANÇA

377.  A mulher perfeita. — A mulher perfeita é um tipo de ser humano mais elevado que o homem perfeito; e também algo muitomais raro. — A ciência que estuda os animais oferece um meio dese tornar provável esta afirmação.

378.   Amizade e casamento. — O melhor amigo terá provavelmente a melhor esposa, porque o bom casamento tem por 

 base o talento para a amizade.

379. Sobrevida dos pais. — As dissonâncias não resolvidas narelação entre o caráter e a atitude dos pais124  ressoam na naturezada criança e constituem a história íntima de seus sofrimentos.

380. Vindo da mãe. — Todo indivíduo traz em si uma imagemde mulher que provém da mãe: é isso que o leva a respeitar asmulheres, a menosprezá-las ou a ser indiferente a elas em geral.

381.  Corrigindo a natureza . — Quando não se tem um bom

 pai, convém providenciar um.

382.  Pai e filho. — Os pais  têm muito o que fazer, paracompensar o fato de terem filhos.

383.  Erro das mulheres nobres. — As mulheres nobres pensamque algo não existe absolutamente, quando não é possível falar deleem sociedade.

384. Uma doença masculina. — Para a doença masculina doautodesprezo o remédio mais seguro é ser amado por uma mulher inteligente.

385. Uma espécie de ciúme. — É fácil as mães sentirem ciúmedos amigos de seus filhos, quando eles têm sucesso extraordinário.Habitualmente a mãe ama, em seu filho, mais a si mesma do que ao próprio filho.

386.  Sensata insensatez.125  — Na maturidade da vida e da

razão, sobrevém ao indivíduo o sentimento de que seu pai errou aogerá-lo.

387.  Bondade materna. — Algumas mães necessitam de filhosfelizes e respeitados; outras, de filhos infelizes: senão, sua bondadede mãe não pode se mostrar.

388.  Suspiros diversos. — Alguns homens suspiraram pelorapto de suas mulheres; a maioria, porque ninguém as quis raptar.

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389.  Casamentos por amor . — Os matrimônios que sãocontraídos por amor (os chamados casamentos de amor [ Liebesheiraten]) têm o erro como pai e a penúria (necessidade)como mãe.126

390.  Amizade com mulheres. — Uma mulher pode muito bemtornar-se amiga de um homem; mas para manter essa amizade —  para isso é necessário talvez uma pequena antipatia física.

391.  Tédio. — Muitas pessoas, mulheres sobretudo, nãosentem tédio, porque nunca aprenderam realmente a trabalhar.

392.  Um elemento do amor . — Em toda espécie de amor feminino também aparece algo do amor materno.

393.  A unidade de lugar e o drama. — Se os cônjuges nãomorassem juntos, os bons casamentos seriam mais comuns.

394.  Conseqüências habituais do casamento. — Todaassociação que não eleva rebaixa, e vice-versa; por isso os homenshabitualmente decaem um pouco, ao tomar esposa, enquanto asmulheres são elevadas um pouco. Homens demasiado intelectuaisnecessitam do casamento tanto quanto resistem a ele, como umamargo remédio.

395.  Ensinando a mandar . — Por meio da educação deve-seensinar as crianças de famílias modestas a mandar, e as outrascrianças a obedecer.

396. Querer se apaixonar . — Noivos que foram juntados pela

conveniência se esforçam freqüentemente por apaixonar-se, parafugir à censura da utilidade fria e calculista. Assim também, as pessoas que adotam o cristianismo por vantagem própria seempenham em tornar-se verdadeiramente devotas; dessa maneira a pantomima religiosa é mais fácil para elas.

397.  Não há repouso no amor . — Um músico que ama  otempo lento tocará as mesmas peças cada vez mais lentamente. Emnenhum amor existe repouso.

398.  Pudor . — Geralmente o pudor da mulher aumenta comsua beleza.

399.  Casamento estável . — Um casamento no qual cada umquer alcançar um objetivo individual através do outro se conserva bem; por exemplo, quando a mulher quer se tornar famosa atravésdo homem, e o homem quer se tornar amado através da mulher.

400.  Natureza de Proteu .127  — Por amor, as mulheres setransformam naquilo que são na mente dos homens por quem sãoamadas.

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401.  Amar e ter . — Em geral as mulheres amam um homem dealor como se o quisessem ter apenas para si. Bem gostariam de

trancá-lo a sete chaves, se isto não contrariasse a sua vaidade: poisesta requer que a importância dele seja evidente também para osoutros.

402. Teste de um bom casamento. — Um casamento prova ser  bom pelo fato de tolerar uma "exceção".

403.   Meios de levar todos a fazer tudo. — Através deinquietações, medos, sobrecarga de trabalho e de pensamentos é

 possível fatigar e enfraquecer qualquer homem, de modo que elenão mais se opõe a algo que tem aparência de complicado, cedendoa isso — como bem sabem os diplomatas e as mulheres.

404.  Respeitabilidade e honestidade. — Essas jovens quequerem confiar apenas em seus encantos juvenis para o sustento de

toda a vida, e cuja esperteza é ainda insuflada por mães astutas,querem o mesmo que as hetairas,128  apenas são mais sagazes emenos honestas do que estas.

405.   Máscaras. — Há mulheres que, por mais que as pesquisemos, não têm interior, são puras máscaras. É digno de pena o homem que se envolve com estes seres quase espectrais,

inevitavelmente insatisfatórios, mas precisamente elas são capazesde despertar da maneira mais intensa o desejo do homem: ele procura a sua alma — e continua procurando para sempre.

406. O casamento como uma longa conversa. — Ao iniciar umcasamento, o homem deve se colocar a seguinte pergunta: vocêacredita que gostará de conversar com esta mulher até na velhice?Tudo o mais no casamento é transitório, mas a maior parte detempo é dedicada à conversa.

407. Sonhos de garotas. — Garotas inexperientes se lisonjeiamcom a idéia de que está em seu poder tornar um homem feliz; maistarde elas aprendem que significa menosprezar um homem supor 

que basta uma garota para fazê-lo feliz. — A vaidade da mulher exige que um homem seja mais que um marido feliz.

408.  Desaparecimento de Fausto e Margarida . — Conforme aaguda observação de um erudito, os homens cultos da Alemanha dehoje se assemelham a uma mistura de Mefistófeles e Wagner, 129

mas de modo algum a Fausto: que os avôs deles (ao menos nauventude) sentiam se agitar dentro de si. Por dois motivos, então

 — para dar prosseguimento à frase — não lhes convêm asMargaridas. E, por já não serem desejadas, parece que se estãoextinguindo.

409. Garotas no ginásio. — Por nada no mundo se transmita a

nossa educação ginasial às garotas! Essa educação quefreqüentemente faz de jovens ardentes, cheios de espírito, ávidos

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de saber — cópias de seus mestres!

410. Sem rivais. — As mulheres percebem facilmente quando aalma de um homem já foi tomada; elas desejam ser amadas sem

rivais, e censuram nele os objetos de sua ambição, suas atividades políticas, suas ciências e artes, se ele tiver paixão por tais coisas. Amenos que ele brilhe por essas coisas — então elas esperam queuma união amorosa com ele realce também seu próprio  brilho;neste caso elas incentivam aquele que amam.

411.  O intelecto feminino. — O intelecto das mulheres se

manifesta como perfeito domínio, presença de espírito,aproveitamento de toda vantagem. Elas o transmitem aos filhos,como sua característica fundamental, e a isso o pai acrescenta ofundo mais obscuro da vontade. A influência dele determina, por assim dizer, o ritmo e a harmonia com que a nova vida deve ser tocada; mas a melodia vem da mulher. — Ou, expresso paraaqueles que sabem perceber algo:130 as mulheres têm a inteligência,

os homens o sentimento e a paixão.131  Isso não está emcontradição com o fato de os homens realizarem muito mais coisascom a sua inteligência: eles têm impulsos mais profundos, mais poderosos; são estes que levam tão longe a sua inteligência, que emsi é algo passivo. Não é raro as mulheres secretamente seadmirarem da veneração que os homens tributam ao seusentimento. Se os homens, na escolha do cônjuge, buscam antes detudo um ser profundo e sensível, enquanto as mulheres buscamalguém sagaz, brilhante e com presença de espírito, vê-seclaramente que no fundo o homem busca um homem idealizado, ea mulher, uma mulher idealizada, ou seja, não um complemento,mas sim um aperfeiçoamento das próprias qualidades.

412. Um julgamento de Hesíodo confirmado.132 — Um indícioda sagacidade das mulheres é que em quase toda parte elassouberam como se fazer sustentar, como zangões na colméia.Pensemos no que isto significa originalmente e por que os homensnão se fazem sustentar pelas mulheres. Certamente porque aaidade e a ambição masculinas são maiores que a sagacidade

feminina; pois as mulheres souberam assegurar para si, através da

submissão, uma forte vantagem e mesmo a dominação. Até aguarda das crianças pode originalmente ter sido usada, pelainteligência das mulheres, como pretexto para se furtar o quanto pudessem ao trabalho. Ainda hoje, quando realmente trabalham,como donas-de-casa, por exemplo, elas sabem fazer disso umdesconcertante alarde: de modo que o mérito do seu trabalhocostuma ser enormemente superestimado pelos homens.

413. Os míopes se apaixonam. — Às vezes bastam óculos maisfortes para curar um apaixonado; e quem tivesse força deimaginação para conceber um rosto, uma silhueta vinte anos maiselha, talvez passasse pela vida imperturbado.

414.  Mulheres com ódio. — Tomadas pelo ódio as mulheressão mais perigosas que os homens; antes de mais nada porque,

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uma vez despertado o seu sentimento hostil, não são freadas por nenhuma consideração de justiça, deixando o seu ódio crescer atéas últimas conseqüências; depois, porque são exercitadas emdescobrir feridas (que todo homem, todo partido tem) e espicaçá-las: no que sua inteligência, aguda como um punhal, presta-lhes umótimo serviço (ao passo que os homens, vendo feridas, tornam-secontidos, são com freqüência generosos e conciliadores).

415.  Amor . — A idolatria que as mulheres têm pelo amor é, nofundo e originalmente, uma invenção da inteligência, na medida emque, através das idealizações do amor, elas aumentam seu poder e

se apresentam mais desejáveis aos olhos dos homens. Mas, tendose habituado a essa superestimação do amor durante séculos,aconteceu que elas caíram na própria rede e esqueceram tal origem.Hoje elas são mais iludidas que os homens, e por isso sofrem maiscom a desilusão que quase inevitavelmente ocorre na vida de todamulher — desde que ela tenha imaginação e intelecto bastantes paraser iludida e desiludida.

416.  Sobre a emancipação das mulheres . — Podem asmulheres ser justas, se estão tão acostumadas a amar, aimediatamente simpatizar ou antipatizar? Em virtude disso não têmtanto interesse por causas como têm por pessoas: mas, sendo afavor de uma causa, tornam-se de imediato suas partidárias, eassim corrompem sua pura, inocente influência. Há então um perigo nada pequeno, quando lhes são confiados a política e certosramos da ciência (a História, por exemplo). Pois o que seria maisraro do que uma mulher que realmente soubesse o que é ciência?As melhores nutrem inclusive um secreto desprezo a ela, como sede algum modo lhe fossem superiores. Talvez tudo isso possamudar; no momento é assim.

417.  A inspiração no julgamento das mulheres. — As súbitasdecisões a favor ou contra, que as mulheres costumam tomar, oslampejos de simpatias e aversões que iluminam suas relações pessoais, em suma, as provas da injustiça feminina foramenvolvidas de uma aura pelos homens apaixonados, como se todasas mulheres tivessem inspirações de sabedoria, mesmo sem a

trípode délfica e a coroa de louros:133  e muito tempo depois suassentenças são interpretadas e explicadas como oráculos sibilinos. No entanto, se refletirmos que se pode dizer algo em favor de cada pessoa, de cada causa, mas também contra elas, que todas ascoisas têm não apenas dois, mas três ou quatro lados, é difícil seequivocar totalmente nessas decisões súbitas; e poderíamos atédizer que a natureza das coisas é tal que as mulheres têm sempre

razão.

418.  Fazer-se amar . — Como, num par amoroso, geralmenteuma pessoa ama e a outra é amada, surgiu a crença de que em todocomércio amoroso há uma medida constante de amor: quanto maisuma delas toma para si, tanto menos resta para a outra. Pode

ocorrer, excepcionalmente, que a vaidade convença cada uma dasduas pessoas de que é ela quem deve ser amada; de modo que

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ambas querem se fazer amar: do que resultam, em especial nocasamento, cenas algo cômicas, algo absurdas.

419.  Contradições nas cabeças femininas. — Sendo as

mulheres tão mais pessoais do que objetivas, tendências que secontradizem logicamente toleram uma à outra no seu círculo deidéias: elas costumam se entusiasmar precisamente pelosrepresentantes dessas tendências, um após o outro, e adotamredondamente os seus sistemas; mas de modo tal que sempre surgeum ponto morto, onde mais tarde uma nova personalidade vem a preponderar. Pode acontecer que toda a filosofia, na cabeça de uma

mulher de idade, consista em pontos mortos desse tipo.

420.  Quem sofre mais?  — Após uma desavença e disputa pessoal entre uma mulher e um homem, uma parte sofre mais coma idéia de ter magoado a outra; enquanto esta sofre mais com aidéia de não ter magoado o outro o bastante, e por isso se empenhadepois, com lágrimas, soluços e caras feias, em lhe amargurar o

coração.

421.  Ocasião para a generosidade feminina . — Se por ummomento puséssemos de lado as exigências dos costumes, bem poderíamos considerar se a natureza e a razão não destinam ohomem a vários matrimônios sucessivos, talvez de forma que

inicialmente, na idade de vinte e dois anos, ele se case com umaovem mais velha, que lhe seja superior intelectual e moralmente ese torne sua guia em meio aos perigos dos vinte anos (ambição,ódio, autodesprezo, paixões de todo tipo). Mais tarde o amor dessamulher se converteria em maternal, e ela não apenas suportariacomo estimularia, da maneira mais salutar, que aos trinta o homemestabelecesse uma relação com uma moça bastante jovem, cuja

educação ele tomaria nas próprias mãos. — Para o homem de vinteanos, o casamento é uma instituição necessária, para o de trinta,útil, mas não necessária: para a vida posterior ele é freqüentemente prejudicial e favorece a regressão intelectual do homem.

422. Tragédia da infância. — Não é raro que homens nobres ede altas aspirações tenham tido que empreender seu combate maisduro na infância: talvez por terem que impor seu modo de pensar contra um pai de pensamento baixo, afeito à aparência e à mentira,ou, como lorde Byron, por viverem perpetuamente em luta comuma mãe infantil e colérica. Se vivenciamos algo assim, por toda aida não superaremos a dor de saber quem foi realmente nosso

maior e mais perigoso inimigo.

423. Tolice dos pais. — Os erros mais crassos, no julgamentode uma pessoa, são cometidos por seus pais: isto é um fato; mascomo explicá-lo? Terão os pais demasiada experiência de seu filho,á não podendo reuni-la numa unidade? Observou-se que umiajante só capta corretamente os traços distintivos gerais de um

 povo na primeira fase de sua estadia; quanto mais conhece o povo,

mais deixa de ver o que nele é típico e diferente. Atendo-se ao queestá perto, seus olhos não mais percebem o que está longe. Então

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os pais julgam erradamente o filho por nunca terem estadosuficientemente longe dele? — Uma explicação bem outra seria: as pessoas costumam não refletir sobre aquilo que as cerca,aceitando-o simplesmente. Talvez a habitual falta de reflexão dos pais seja a razão por que, tendo de julgar seus filhos, julguem tãoequivocadamente.

424.  Do futuro do casamento. — Essas mulheres nobres elivres, que assumem como tarefa a educação e elevação do sexofeminino, não devem ignorar uma consideração: o casamentoconcebido em sua mais alta forma, enquanto amizade espiritual

entre duas pessoas de sexo diferente, isto é, realizado como ofuturo espera que seja, com o fim de gerar e educar uma novageração — um tal casamento, que usa o elemento sensual apenas,digamos, como um meio raro e ocasional para um fim maior, provavelmente requer, devemos desconfiar, 134  um auxílio natural,o do concubinato. Pois, se por razões de saúde do homem a esposadeverá também se prestar sozinha à satisfação da necessidade

sexual, então na escolha de uma esposa será determinante umaconsideração errada, oposta aos fins indicados: a obtenção da proleserá casual, e a educação bem-sucedida, bastante improvável. Uma boa esposa, que deve ser amiga, ajudante, genitora, mãe, cabeça defamília, administradora, e talvez tenha de, separadamente domarido, cuidar até do seu próprio negócio ou ofício, não pode ser ao mesmo tempo concubina: em geral, significaria exigir demais

dela. Assim poderia ocorrer, no futuro, o oposto do que se deu emAtenas na época de Péricles: os homens, que em suas esposastinham pouco mais que concubinas, recorriam também àsAspásias,135  porque ansiavam pelos encantos de uma convivêncialiberadora da mente e do coração, que somente a graça e adocilidade espiritual das mulheres podem criar. Todas asinstituições humanas, como o casamento, permitem apenas umgrau moderado de idealização prática, de outro modo remédiosgrosseiros se fazem necessários.

425.  Período de Tempestade e Ímpeto das mulheres .136 — Nostrês ou quatro países civilizados da Europa pode-se fazer dasmulheres, com alguns séculos de educação, tudo o que se queira,

até mesmo homens; não no sentido sexual, está claro, mas emqualquer outro sentido. Após tal influência, elas terão adquiridotodas as virtudes e forças masculinas, e deverão adotar igualmenteas fraquezas e os vícios dos homens: tudo isso pode-se obter,como disse. Mas como suportaremos o estado intermediário então produzido, que pode ele mesmo durar alguns séculos, durante osquais as loucuras e injustiças femininas, seus dotes ancestrais,

ainda predominarão sobre tudo o que foi ganho e aprendido? Será otempo em que a ira constituirá o afeto propriamente masculino, ira pelo fato de que todas as artes e ciências estarão inundadas eenlameadas por um diletantismo inaudito, a filosofia será silenciada por um atordoante palavrório, a política será mais fantástica e partidária do que nunca, a sociedade estará em total dissolução, porque as guardiãs dos velhos costumes137  terão se tornado

ridículas para si mesmas e se empenharão em ficar fora doscostumes em todo sentido. Pois, tendo as mulheres seu maior 

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 poder nos  costumes, a que recorrerão elas para reconquistar semelhante plenitude de poder, após terem renunciado aoscostumes?

426. O espírito livre e o casamento . — Viverão com mulheresos espíritos livres? Creio que em geral, como as aves proféticas da

Antigüidade, sendo aqueles que hoje pensam verdadeiramente edizem a verdade,138 eles preferirão voar sozinhos.

427.  Felicidade do casamento. — Tudo o que é habitual tece ànossa volta uma rede de teias de aranha cada vez mais firme; e logo

 percebemos que os fios se tornaram cordas e que nós nos achamosno meio, como uma aranha que ali ficou presa e tem de sealimentar do próprio sangue. Eis por que o espírito livre odeia todosos hábitos e regras, tudo o que é duradouro e definitivo, eis por quesempre torna a romper, dolorosamente, a rede em torno de si;embora sofra, em conseqüência disso, feridas inúmeras, pequenase grandes — pois esses fios ele tem que arrancar de si mesmo, de

seu corpo, de sua alma. Ele tem que aprender a amar, ali onde atéentão odiava, e inversamente. Nada deve ser impossível para ele,nem mesmo semear dentes de dragão no campo139  em que fizeratransbordar as cornucópias de sua bondade. — A partir disso podemos julgar se ele é feito para a felicidade do casamento.

428.  Próximo demais. — Se vivemos próximos demais a uma pessoa, é como se repetidamente tocássemos uma boa gravura

com os dedos nus: um dia teremos nas mãos um sujo pedaço de papel, e nada além disso. Também a alma de uma pessoa, ao ser continuamente tocada, acaba se desgastando; ao menos assim elanos  parece  afinal — nós nunca mais vemos seu desenho e sua beleza originais. — Sempre se perde no relacionamento íntimo

demais com mulheres e amigos; às vezes se perde a pérola de sua própria vida.

429.  O berço dourado. — O espírito livre respira aliviado,quando afinal decide se desvencilhar dos cuidados e da proteçãomaternais com que governam as mulheres à sua volta. Pois que mallhe pode fazer uma corrente de ar mais fria de que o abrigam tãoansiosamente, o que significa desvantagem, perda, acidente,doença, dívida, ilusão a mais ou a menos em sua vida, comparadosao cativeiro do berço dourado, do abanador de cauda de pavão e dasensação oprimente de, além disso, ter de ser grato por ser tratadoe mimado como um bebê? Por isso, o leite que lhe é dado pelosentimento maternal das mulheres ao seu redor pode facilmente setransformar em fel.

430. Sacrifício voluntário. — Mulheres notáveis aliviam a vidade seus maridos, no caso de eles serem grandes e famosos, ao setornarem como que o recipiente do desfavor geral e do ocasionalmau humor das demais pessoas. Os contemporâneos costumamrelevar muitos erros, tolices e mesmo atos de grossa injustiça dos

seus grandes homens, se encontram alguém que, como verdadeiroanimal de sacrifício, possam maltratar e abater para aliviar seus

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sentimentos. Não é raro que uma mulher tenha a ambição de seoferecer para tal sacrifício, e então o homem ficará satisfeito — caso seja egoísta o bastante para tolerar em seu convívio esseoluntário pára-raios, guarda-chuva e abrigo contra tempestades.

431.  Amáveis adversárias. — O pendor natural das mulheres para a existência e as relações calmas, regulares, feliz-harmoniosas,a espécie de brilho apaziguador que suas ações deixam no mar daida, contraria involuntariamente o íntimo impulso heróico do

espírito livre. Sem que o percebam, as mulheres agem como quemtira as pedras do caminho de um mineralogista, para que seus pés

não tropecem nelas — quando ele saiu precisamente para nelastropeçar.

432.   Dissonância de duas consonâncias. — As mulheresquerem servir, e nisso está sua felicidade; o espírito livre não quer ser servido, e nisso está sua felicidade.

433.  Xantipa. — Sócrates encontrou uma mulher tal como precisava — mas não a teria buscado, se a tivesse conhecidosuficientemente bem: mesmo o heroísmo desse espírito livre nãoteria ido tão longe. Pois Xantipa o impeliu cada vez mais para a sua peculiar profissão, ao tornar sua casa e seu lar inabitáveis einóspitos:140 ela o ensinou a viver nas ruas e em todo lugar onde se

 pudesse prosear e exercer o ócio, e com isso o transformou nomaior dos dialéticos de rua de Atenas: que afinal se comparou a ummoscardo impertinente, colocado por um deus no pescoço do belocavalo Atenas, para impedi-lo de repousar.141

434. Cegas para o que está longe. — Assim como as mães sótêm mesmo olhos e sentido para as dores sensíveis e visíveis dos

filhos, também as esposas de homens altamente ambiciosos nãosuportam ver seus maridos padecendo, sofrendo privações emenosprezo — quando tudo isso talvez seja não apenas sinal deuma correta escolha de seu modo de vida, mas até a garantia deque suas grandes metas terão  de ser alcançadas um dia. Asmulheres sempre conspiram sigilosamente contra a alma superior de seus maridos; elas querem fraudar-lhes o futuro, em favor deum presente indolor e confortável.

435.  Poder e liberdade. — Por mais que as mulheres respeitemseus maridos, elas respeitam ainda mais as autoridades e noçõesreconhecidas pela sociedade: há milênios estão acostumadas ainclinar-se, com as mãos sobre o peito, diante daqueles que

dominam, e desaprovam toda rebeldia contra o poder público. É por isso que, sem a intenção de fazê-lo, mas como que por instinto, prendem-se como um freio às rodas de um esforço independente ede pensamento livre, e em certas ocasiões tornam seus maridosmuito impacientes, sobretudo quando estes persuadem a si mesmosque no fundo é o amor que as leva a isso. Desaprovar os meios dasmulheres e magnanimamente respeitar os motivos desses meios — 

esta é a maneira masculina, e freqüentemente o desesperomasculino.

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436.  Ceterum censeo  [Além disso, sou de opinião].142  — Éridículo que uma sociedade de homens sem vintém decrete aabolição do direito de herança, e não menos ridículo que aquelessem filhos elaborem a legislação prática de um país: — eles não possuem lastro bastante em seu barco, para poder navegar seguramente no oceano do futuro. Mas parece igualmentedescabido que um homem que escolheu por missão oconhecimento mais universal e a avaliação da existência como umtodo assuma o fardo de preocupações pessoais com família,segurança, alimentação, amparo de mulher e filhos, e estenda ante oseu telescópio um véu opaco, que alguns raios do firmamento

distante mal conseguem atravessar. De modo que também euchego à afirmação de que, em questões filosóficas mais elevadas,todos os homens casados são suspeitos.

437.  Enf im. — Há várias espécies de cicuta, e geralmente odestino encontra oportunidade de pôr nos lábios do espírito livreum cálice desse veneno — para "puni-lo", como diz depois o

mundo inteiro. O que fazem então as mulheres à sua volta? Elasgritam e se lamentam, perturbando talvez o descanso crepuscular do pensador: tal como fizeram na prisão de Atenas: "Ó Críton,manda alguém levar para fora essas mulheres!" — falou Sócratesenfim.143

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Capítulo oitavoUM OLHAR SOBRE O ESTADO

438.  Pedindo a palavra. — O caráter demagógico e a intençãode influir sobre as massas são comuns a todos os partidos políticosatuais: por causa dessa intenção, todos são obrigados a transformar seus princípios em grandes afrescos de estupidez, pintando-os nas paredes. Nisso já não há o que fazer, é inútil erguer um só dedocontra isso; pois nesse âmbito vale o que afirmou Voltaire: quand laopulace se mêle de raisonner, tout est perdu  [quando o populacho

se mete a raciocinar, tudo está perdido].144  Desde que issoaconteceu, é preciso adaptar-se às novas condições, assim comonos adaptamos quando um terremoto muda as velhas fronteiras eos contornos do solo e altera o valor da propriedade. Além do mais,se em toda política a questão é tornar suportável a vida para o

maior número de pessoas, que esse maior número defina o queentende por uma vida suportável; se confiam que o seu intelectoachará também os meios certos para alcançar esse fim, de queserve duvidar disso? Eles querem  ser os forjadores da própriafelicidade ou infelicidade; e, se este sentimento deautodeterminação, o orgulho pelas cinco ou seis noções que a suamente abriga e manifesta, realmente lhes torna a vida agradável a

 ponto de suportarem com gosto as fatais conseqüências de suaestreiteza: então não há muito a objetar, desde que a estreiteza nãoá ao cúmulo de exigir que tudo  deve se tornar política nesse

sentido, que todos devem viver e agir conforme esse critério. Poisantes de mais nada é preciso permitir a alguns, mais do que nunca,que se abstenham da política e se coloquem um pouco à parte: aisso também os impele o prazer da autodeterminação, e também

algum orgulho que talvez derive do fato de calar, quando falammuitos ou mesmo apenas muitos. Depois é preciso perdoar esses poucos, se eles não levarem muito a sério a felicidade dos muitos,sejam povos ou camadas da população, e vez por outra incorreremnuma atitude irônica; pois sua seriedade reside em outro canto, suafelicidade é um outro conceito, seu objetivo não pode ser abarcado por uma mão canhestra que dispõe de apenas cinco dedos. Por fim,

de quando em quando chega — o que sem dúvida é o mais difícilde lhes conceder, mas tem de lhes ser concedido — um instanteem que eles saem de seu taciturno isolamento e de novoexperimentam a força de seus pulmões: então gritam uns para osoutros, como gente perdida numa floresta, para se dar a conhecer ese encorajar mutuamente; e é certo que então se ouvem coisas quesoam mal aos ouvidos para os quais não foram dirigidas. — Logodepois faz-se novo silêncio na floresta, tanto silêncio que de novose escuta claramente o zumbido, o sussurro e o bater de asas dosincontáveis insetos que vivem no seu interior e também acima eabaixo dela.

439.  Cultura e casta. — Uma cultura superior pode surgir 

apenas onde houver duas diferentes castas na sociedade: a dos quetrabalham e a dos ociosos, os que são capazes de verdadeiro ócio;

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ou, expresso de maneira mais forte: a casta do trabalho forçado e acasta do trabalho livre. A consideração da partilha da felicidade nãoé essencial, quando se trata de produzir uma cultura superior; masde todo modo a casta dos ociosos é mais capacitada para o sofrer,sofre mais, seu gosto em existir é menor, e sua tarefa, maior. Seacontece uma troca entre as duas castas, de modo que as famílias eos indivíduos mais obtusos e menos intelectuais da casta superior são rebaixados para a inferior e os homens mais livres desta têmacesso à superior, atinge-se um estado além do qual se vê apenas omar aberto dos desejos indefinidos. — Assim nos fala a voz, cadaez mais distante, dos tempos antigos; mas onde ainda há ouvidos

 para escutá-la?

440.  De sangue. — O que homens e mulheres de boa linhagemtêm como vantagem diante dos outros, e que lhes dá o direitoindubitável a uma maior estima, são duas artes crescentementeaumentadas pela hereditariedade: a arte de saber comandar e a arteda obediência orgulhosa. — Em todo lugar onde comandar é parte

da vida diária (como no mundo da indústria e do comércio), forma-se algo semelhante às linhagens "de sangue", mas em que falta aatitude nobre na obediência, que naquelas é uma herança decondições feudais e que no clima de nossa cultura já não cresce.

441. Subordinação. — A subordinação, que é tão valorizada noEstado militar e burocrático, logo se tornará tão desacreditadacomo já se tornou a tática serrada145  dos jesuítas; e quando essasubordinação não for mais possível, já não haverá como obter muitos dos efeitos mais assombrosos, e o mundo se tornará mais pobre. Ela tem que desaparecer, pois desaparece o seu fundamento:a crença na autoridade absoluta, na verdade definitiva; mesmo nosEstados militares não basta a coerção física para produzi-la, mas se

requer a hereditária adoração do principesco como algo sobre-humano. — Em circunstâncias mais livres, as pessoas sesubordinam apenas sob condições, em conseqüência de acordorecíproco, isto é, com todas as reservas do interesse pessoal.

442.   Exércitos nacionais. — A maior desvantagem dosexércitos nacionais, agora tão enaltecidos, está no desperdício de

homens superiormente civilizados, que existem apenas graças aofavor de muitas circunstâncias — deveríamos ser parcimoniosos etemerosos com eles, pois são necessários enormes lapsos detempo, a fim de criar as condições fortuitas para a geração decérebros tão delicadamente organizados! Mas assim como osgregos se banharam no sangue grego, também os europeus de hojederramam sangue europeu: e os superiormente educados são

aqueles sacrificados em proporção maior, aqueles que garantiriamuma posteridade boa e abundante; pois na batalha eles ficam àfrente, como comandantes, e também se expõem mais aos perigos,devido à sua elevada ambição. — Agora, quando se apresentamtarefas muito diferentes e mais elevadas do que patria  e hono[pátria e honra], o grosseiro patriotismo romano é algo desonestoou indício de atraso.

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443.  A esperança como presunção. — Nossa ordem sociallentamente se dissolverá, como sucedeu a todas as ordensanteriores, quando os sóis de novas opiniões brilharam sobre oshomens com novo ardor. Pode-se desejar  esta dissolução apenas namedida em que se tenha esperança: e ter razoável esperança é possível apenas quando se atribui, a si mesmo e a seus iguais, maisforça na mente e no coração do que aos representantes da ordemigente. Logo, normalmente esta esperança será uma presunção,

uma superestimação.

444. Guerra. — Em detrimento da guerra pode-se dizer que ela

faz estúpido o vencedor e maldoso o derrotado. A favor da guerra,que com esses dois efeitos ela barbariza, e com isso torna maisnatural; ela é o sono ou o inverno da cultura, dela o homem saimais forte, para o bem e para o mal.

445.  A serviço do príncipe. — Para poder agir com totalausência de considerações, o melhor que faz um estadista é

executar sua obra não para si mesmo, mas para um príncipe. Oolho do espectador é ofuscado pelo brilho desse altruísmo geral, demodo que não vê as perfídias e durezas que a obra do estadistacomporta.

446.  Uma questão de poder, não de direito . — Para aqueles

que sempre consideram a utilidade superior de algo, não há nosocialismo, caso ele seja realmente  a sublevação, contra osopressores, dos que por milênios foram oprimidos e subjugados,nenhum problema de direito  (com a ridícula e débil questão: "atéque ponto devemos  ceder a suas exigências?"), mas sim um problema de poder   ("até que ponto podemos  utilizar suasexigências?"); o mesmo sucede com um poder da natureza, o

apor, por exemplo, que é forçado pelo homem a servi-lo, como aum deus das máquinas, ou, havendo erros da máquina, isto é, errosde cálculo humano em sua construção, despedaça-a juntamentecom o homem. Para solucionar essa questão de poder, é necessáriosaber que força tem o socialismo, em que forma modificada ele pode ainda ser usado como uma alavanca poderosa no atual jogo deforças político; em determinadas circunstâncias, deveríamos fazer 

tudo para fortalecê-lo. Deparando com uma grande força — por mais perigosa que seja — a humanidade tem de pensar em comotorná-la um instrumento de suas intenções. — O socialismo sóadquirirá direitos quando parecer iminente a guerra entre os dois poderes, entre os representantes do velho e do novo, e o cálculo prudente das chances de conservação e de vantagem, em ambos oslados, fizer nascer o desejo de um pacto. Sem pacto não há direito.Mas até agora não há guerra nem pactos, no território mencionado,e portanto nenhum direito, nenhum "dever".

447.  Utilização da pequena desonestidade. — O poder daimprensa consiste em que todo indivíduo que para ela trabalhasente-se muito pouco comprometido e vinculado. Em geral ele diz

 sua  opinião, mas ocasionalmente não  a diz, para ser útil a seu partido, à política de seu país ou a si mesmo. Esses pequenos

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delitos da desonestidade, ou apenas da reticência desonesta, nãosão difíceis de suportar para o indivíduo, mas as suasconseqüências são extraordinárias, porque tais pequenos delitos sãocometidos por muitos ao mesmo tempo. Cada um deles diz para si:"Com serviços tão diminutos vivo melhor, posso ganhar a vida; serecuso essas pequenas considerações, eu me torno impossível".Como moralmente parece não importar escrever ou deixar deescrever uma linha a mais — talvez sem assinar, além disso —,alguém que possua dinheiro e influência pode transformar qualquer opinião em opinião pública. Quem sabe que a maioria das pessoas éfraca nas pequenas coisas, e deseja alcançar seus objetivos através

delas, é sempre um indivíduo perigoso.

448. Um tom alto demais na reclamação. — Se uma situaçãocrítica (como os vícios de uma administração, ou corrupção efavoritismo em entidades políticas ou culturais) é descrita de forma bastante exagerada, a descrição certamente perde efeito junto aos perspicazes,146  mas age com tanto mais força sobre os não-

 perspicazes (que teriam permanecido indiferentes, no caso de umaexposição cuidadosa e moderada). Mas, existindo estes em númeroconsideravelmente maior, e abrigando em si forças de vontade maisintensas e mais impetuoso desejo de ação, o exagero favoreceinvestigações, castigos, promessas, reorganizações. — Nessesentido, é útil exagerar na descrição das crises.

449.  Aqueles que aparentemente fazem o tempo na política . — Assim como o povo, no caso daquele que entende do tempo e o prevê com um dia de antecedência, supõe secretamente que ele fazo tempo, mesmo pessoas cultas e sabedoras atribuem a grandesestadistas, fazendo uso da crença supersticiosa, todas asimportantes mudanças e conjunturas que sobrevieram durante seu

governo, como sendo obra particularmente sua, se está claro queeles sabiam algo sobre elas antes dos outros e que então fizeramseus cálculos: eles são igualmente vistos como "fazedores dotempo" — e essa crença não é o instrumento menor do seu poder.

450.  Novo e velho conceito de governo. — Diferenciar entregoverno e povo, como se duas distintas esferas de poder, uma mais

forte, mais elevada, e outra mais fraca, mais baixa, negociassem eentrassem em acordo, é um traço da sensibilidade política herdada,que ainda hoje corresponde exatamente ao dado histórico dasrelações de poder na maioria  dos Estados. Quando, por exemplo,Bismarck define a forma constitucional como um compromissoentre governo e povo, ele fala segundo um princípio que tem suarazão na história (e, precisamente por isso, também seu grão de

irracionalidade, sem o qual nada humano pode existir). Mas agoradevemos aprender — conforme um princípio que brotou puramente da cabeça  e que ainda deve fazer   história — que ogoverno nada é senão um órgão do povo, e não um providente eenerável "acima" que se relaciona a um "abaixo" habituado à

modéstia. Antes de aceitarmos tal formulação do conceito degoverno, que até o momento é a-histórica e arbitrária, ainda quemais lógica, vamos considerar as conseqüências: pois a relaçãoentre governo e povo é a mais forte relação exemplar, o modelo

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segundo o qual se forma involuntariamente o comércio entre professor e aluno, pai e família, patrão e empregado, comandante esoldado, mestre e aprendiz. Todas essas relações se reorganizamagora um pouco, sob influência da forma constitucional de governoque domina: elas se tornam compromissos. Mas como deverão elasse transformar e se deslocar, mudar de nome e de natureza, quandoesse novíssimo conceito tiver se apoderado de todas as cabeças! —  para o que, no entanto, talvez necessite de mais um século. Nissonada é mais desejável  do que cautela e uma lenta evolução.

451.  A justiça como chamariz dos partidos. — Representantes

nobres (embora não muito perspicazes) da classe dominante podemmuito bem jurar a si mesmos: "Vamos tratar os homens comoiguais, dar-lhes direitos iguais". Em tal medida, um modo de pensar socialista baseado na justiça é possível; mas, como foi dito, apenasno interior da classe dominante, que neste caso exerce a justiça comsacrifícios e renúncias. Por outro lado, exigir  igualdade de direitos,como fazem os socialistas da casta subjugada, não é jamais produto

da justiça, mas da cobiça. — Se alguém mostra pedaços de carnesangrenta a uma fera e depois os retira, até que afinal ela ruge:ocês acham que esse rugido significa justiça?

452.   Propriedade e justiça. — Quando os socialistasdemonstram que a divisão da propriedade, na humanidade de hoje,é conseqüência de inúmeras injustiças e violências, e in summarejeitam a obrigação para com algo de fundamento tão injusto, elesêem apenas um aspecto da questão. O passado inteiro da cultura

antiga foi construído sobre a violência, a escravidão, o embuste, oerro; mas nós, herdeiros de todas essas situações, e mesmoconcreções de todo esse passado, não podemos abolir a nósmesmos, nem nos é permitido querer extrair algum pedaço dele. A

disposição injusta se acha também na alma dos que não possuem,eles não são melhores do que os possuidores e não têm prerrogativa moral, pois em algum momento seus antepassadosforam possuidores. O que é necessário não são novas distribuições pela força, mas graduais transformações do pensamento;147  emcada indivíduo a justiça deve se tornar maior e o instinto deiolência mais fraco.

453. O timoneiro das paixões. — O estadista provoca paixões públicas, a fim de tirar proveito da paixão contrária que assim édespertada. Vejamos um exemplo. Um estadista alemão sabe muito bem que a Igreja católica nunca terá os mesmos planos que aRússia, e que se aliaria antes aos turcos do que a ela; sabe tambémque uma aliança entre a Rússia e a França ameaçaria a Alemanha.

Se ele puder tornar a França o lar e bastião da Igreja católica, teráafastado esse perigo por um longo tempo. Assim, terá interesse emdemonstrar ódio aos católicos e, mediante hostilidades de todaespécie, transformar os partidários da autoridade do papa numaapaixonada força política que será hostil à política alemã e quedeverá naturalmente se fundir com a França, rival da Alemanha: seuobjetivo será necessariamente a catolização da França, da mesmaforma como Mirabeau via na descatolização a salvação de sua pátria. — Portanto, um Estado quer o obscurecimento de milhões

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de cabeças de outro Estado, para tirar desse obscurecimento sua própria vantagem. É a mesma disposição de espírito que apóia oregime republicano no Estado vizinho — le désordre organisé   [adesordem organizada], como diz Mérimée148  — pela razão únicade supor que ele torna o povo mais fraco, mais dividido e menosapto para a guerra.

454. Os perigosos entre os subversivos. — Podemos dividir osque pretendem uma subversão da sociedade entre aqueles quedesejam alcançar algo para si e aqueles que o desejam para seusfilhos e netos. Esses últimos são os mais perigosos; porque têm a

fé e a boa consciência do desinteresse. Os demais podem ser contentados com um osso: a sociedade dominante é rica einteligente o bastante para isso. O perigo começa quando osobjetivos se tornam impessoais; os revolucionários movidos por interesse impessoal podem considerar todos os defensores daordem vigente como pessoalmente interessados, sentindo-se entãosuperiores a eles.

455. Valor político da paternidade. — Quando um homem nãotem filhos, não tem pleno direito de intervir na discussão sobre asnecessidades de um Estado. É preciso ter arriscado, juntamentecom os outros, aquilo que mais se ama: apenas isso vinculafortemente ao Estado; é preciso ter em vista a felicidade de seus pósteros, e por isso, antes de tudo, ter pósteros, a fim de participar usta e naturalmente nas instituições e em suas mudanças. Odesenvolvimento de uma moral superior depende de que a pessoatenha filhos; isso desfaz o seu egoísmo, ou, mais corretamente:isso amplia o seu egoísmo no tempo, e a faz perseguir seriamenteobjetivos que vão além da duração de sua vida individual.

456. Orgulho dos antepassados. — Com razão podemos sentir orgulho de uma linha ininterrupta de bons antepassados  que chegaaté o pai — mas não da linha mesma, pois cada um de nós todos atem. A descendência de bons antepassados constitui a genuínanobreza de nascimento; uma única interrupção na corrente, isto é,um mau ancestral, anula essa nobreza. Devemos perguntar aqualquer um que fale da própria nobreza: entre os seus ancestrais

não há nenhum violento, cobiçoso, dissoluto, maldoso, cruel? Se,com boa ciência e consciência, ele puder responder "não" a essa pergunta, então procuremos a sua amizade.

457.  Escravos e trabalhadores. — O fato de que damos maisalor à satisfação da vaidade do que a todas as outras comodidades

(segurança, moradia, prazeres de toda espécie) se mostra, numgrau ridículo, em que todo mundo (excetuando razões políticas)deseja a abolição da escravatura e tem completo horror à reduçãodos homens a esse estado: ao mesmo tempo, cada qual deveadmitir que em todo aspecto os escravos vivem de maneira maissegura e feliz do que o trabalhador moderno, e que o trabalhoescravo é pouco trabalho em relação àquele do "trabalhador".

Protesta-se em nome da "dignidade humana": mas isso, em termosmais simples, é a velha vaidade que experimenta como a sina mais

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dura não ser colocado no mesmo nível, ser considerado inferior  publicamente. — O cínico pensa de modo diferente sobre essaquestão, porque despreza as honras: — é assim que Diógenes foi,durante um certo tempo, escravo e preceptor.

458. Os espíritos que lideram e seus instrumentos. — Vemosque os grandes estadistas, e em geral todos os que precisam utilizar muitos homens para a realização de seus planos, agem de uma oude outra forma: ou escolhem com muito cuidado e sutileza oshomens adequados aos seus planos e lhes deixam uma liberdaderelativamente grande, porque sabem que a natureza das pessoas

escolhidas as conduz exatamente até onde eles as querem ter; ouentão escolhem mal, tomam aquilo que lhes cai nas mãos, masformam a partir desse barro algo valioso para seus fins. Essa últimaespécie é a mais violenta, e também deseja instrumentos maissubmissos; seu conhecimento dos homens é normalmente muitomenor, e seu desprezo pelos homens maior que o dos espíritosmencionados antes, mas a máquina que constroem trabalha

geralmente melhor do que a máquina da oficina daqueles.

459.  Necessidade de um direito arbitrário . — Os juristasdisputam se num povo deveria prevalecer o direito maisextensamente examinado ou o mais facilmente compreensível. O primeiro, cujo modelo maior é o romano, parece incompreensível para o leigo, não exprimindo então o seu sentimento do direito. Osdireitos populares, como o germânico, por exemplo, eram toscos,supersticiosos, ilógicos, às vezes tolos, mas correspondiam acostumes e sentimentos bem determinados, herdados, nativos. — Mas onde o direito não é mais tradição, como entre nós, ele só pode ser comando, coerção; nenhum de nós possui mais umsentimento tradicional do direito, por isso temos de nos contentar 

com direitos  arbitrários, que são a expressão da necessidade dehaver  um direito. O mais lógico é então o mais aceitável, porque omais imparcial : mesmo admitindo que em todo caso a menor unidade de medida, na relação entre delito e punição, éarbitrariamente fixada.

460. O grande homem da massa. — É fácil dar a receita para o

que a massa denomina grande homem. Em qualquer circunstância,arranjem-lhe algo que lhe seja agradável, ou lhe ponham na cabeçaque isto ou aquilo seria muito agradável e lhe dêem tal coisa. Masde modo algum imediatamente: deve-se lutar por isso com grandeesforço, ou parecer lutar. A massa deve ter a impressão de que háuma força de vontade poderosa e mesmo invencível; ao menos eladeve parecer que está presente. Todos admiram a vontade forte,

 pois ninguém a tem, e cada um diz a si mesmo que, se a tivesse,não haveria mais limite para si e seu egoísmo. Vendo-se que umatal vontade forte produz algo bastante agradável à massa, em vez deescutar os apelos de sua própria cobiça, as pessoas ficamnovamente admiradas e felicitam a si mesmas. Quanto ao resto, eledeve ter todas as qualidades da massa: quanto menos seenvergonhar ela diante dele, tanto mais popular ele será. Logo, eledeve ser violento, invejoso, explorador, intrigante, adulador, servil,arrogante, tudo conforme as circunstâncias.

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461.   Príncipe e deus. — Freqüentemente os homens serelacionam com seus príncipes como fazem com seu deus, o príncipe tendo sido muitas vezes o representante do deus, seusumo sacerdote, pelo menos. Tal sentimento, quase inquietante, dereverência, medo e vergonha, já se tornou e continua se tornandomais fraco, mas ocasionalmente se inflama e se liga a pessoas poderosas. O culto ao gênio é um eco dessa veneração a príncipese deuses. Em todo lugar onde se busca elevar indivíduos a um plano sobre-humano, surge também a tendência a imaginar camadas inteiras do povo como sendo mais baixas e grosseiras doque são na realidade.

462.  Minha utopia. — Numa ordenação melhor da sociedade,as fainas e penas da vida serão destinadas àquele que menos sofrecom elas, ou seja, ao mais embotado, e assim gradualmente atéaquele que é mais sensível às espécies mais elevadas e sublimadasdo sofrimento, e que portanto sofre mesmo quando a vida é aliviadaao extremo.

463. Uma ilusão na doutrina da subversão. — Há visionários políticos e sociais que com eloqüência e fogosidade pedem asubversão de toda ordem, na crença de que logo em seguida o maisaltivo templo da bela humanidade se erguerá por si só. Nestessonhos perigosos ainda ecoa a superstição de Rousseau, queacredita numa miraculosa, primordial, mas, digamos, soterrada bondade da natureza humana, e que culpa por esse soterramento asinstituições da cultura, na forma de sociedade, Estado, educação.Infelizmente aprendemos, com a história, que toda subversão dessetipo traz a ressurreição das mais selvagens energias, dos terrores eexcessos das mais remotas épocas, há muito tempo sepultados: eque, portanto, uma subversão pode ser fonte de energia numa

humanidade cansada, mas nunca é organizadora, arquiteta, artista,aperfeiçoadora da natureza humana. — Não foi a naturezamoderada de Voltaire, com seu pendor a ordenar, purificar emodificar, mas sim as apaixonadas tolices e meias verdades de

ousseau que despertaram o espírito otimista da Revolução, contrao qual eu grito: " Ecrasez l'infâme  [Esmaguem o infame]!".149

Graças a ele o espírito do Iluminismo e da progressiva evolução   foi

 por muito tempo afugentado: vejamos — cada qual dentro de si — se é possível chamá-lo de volta!

464.  Comedimento. — A completa firmeza de pensamento einvestigação, ou seja, a liberdade de espírito, quando se tornouqualidade do caráter, traz comedimento na ação: pois enfraquece aavidez, atrai muito da energia existente, para promover objetivosespirituais, e mostra a utilidade parcial ou a inutilidade e o perigo detodas as mudanças repentinas.

465.  Ressurreição do espírito. — No leito de enfermo da política, geralmente um povo rejuvenesce e redescobre seu espírito,que ele havia gradualmente perdido ao buscar e assegurar o poder.

A cultura deve suas mais altas conquistas aos tempos politicamentedebilitados.

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466.  Opiniões novas na casa velha. — À derrubada dasopiniões não segue imediatamente a derrubada das instituições; asnovas opiniões habitam por muito tempo a casa de suasantecessoras, agora desolada e sinistra, e até mesmo a preservam, por falta de moradia.

467.  Instrução pública. — Nos grandes Estados a instrução pública será sempre, no melhor dos casos, medíocre, pelo mesmomotivo por que nas grandes cozinhas cozinha-se mediocremente.

468.  Inocente corrupção. — Em todas as instituições em que

não sopra o ar cortante da crítica pública, uma inocente corrupção brota como um fungo (por exemplo, nas associações eruditas esenados).

469.  Os eruditos enquanto políticos. — Aos eruditos que setornam políticos se atribui habitualmente o cômico papel de ter que

ser a boa consciência de uma política.

470.  O lobo por trás da ovelha. — Em determinadascircunstâncias, quase todo político tem tal necessidade de umhomem honesto, que como um lobo faminto irrompe num redil: não para devorar o cordeiro que rapta, porém, mas para se esconder atrás de seu dorso lanoso.

471.  Tempos felizes. — Uma época feliz é completamenteimpossível, porque as pessoas querem desejá-la, mas não tê-la, etodo indivíduo, em seus dias felizes, chega quase a implorar por inquietude e miséria. O destino dos homens se acha disposto paramomentos felizes — cada vida humana tem deles —, mas não paratempos felizes. No entanto, estes perduram na fantasia humanacomo "o que está além dos montes", como uma herança dosantepassados;150 pois a noção de uma era feliz talvez151 provenha,desde tempos imemoriais, daquele estado em que o homem, apósiolentos esforços na caça e na guerra, entrega-se ao repouso,

distende os membros e ouve o rumor das asas do sono. Há umaconclusão errada em imaginar, conforme aquele antigo hábito, que

após  períodos inteiros  de carência e fadiga se pode partilhar também aquele estado de felicidade, com intensidade e duraçãocorrespondentes.

472.  Religião e governo. — Enquanto o Estado ou, mais precisamente, o governo se souber investido da tutela de umamultidão menor de idade, e por causa dela considerar se a religião

deve ser mantida ou eliminada, muito provavelmente se decidirá pela conservação da religião. Pois esta satisfaz o ânimo doindivíduo em tempos de perda, de privação, de terror, dedesconfiança, ou seja, quando o governo se sente incapaz dediretamente fazer algo para atenuar o sofrimento psíquico da pessoa: mesmo em se tratando de males universais, inevitáveis,inicialmente irremediáveis (fomes coletivas, crises monetárias,

guerras), a religião confere à massa uma atitude calma, paciente econfiante. Onde as deficiências necessárias ou casuais do governo

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estatal, ou as perigosas conseqüências de interesses dinásticos,fazem-se notórias para o homem perspicaz e o dispõem à rebeldia,os não perspicazes pensam enxergar o dedo de Deus e pacientemente se submetem às determinações do alto (conceito emque habitualmente se fundem os modos humano e divino degovernar): assim se preserva a paz civil interna e a continuidade dodesenvolvimento. O poder que reside na unidade do sentimento popular, em opiniões e fins comuns a todos, é protegido e selado pela religião, excetuando os raros casos em que o clero e o poder estatal não chegam a um acordo quanto ao preço e entram emconflito. Normalmente o Estado sabe conquistar os sacerdotes,

 porque tem necessidade de sua privatíssima, oculta educação dasalmas, e estima servidores que aparentemente, exteriormente,representam um interesse bastante diverso. Sem a ajuda dossacerdotes nenhum poder é capaz, ainda hoje, de tornar-se"legítimo": como bem entendeu Napoleão. — Assim, governotutelar absoluto e cuidadosa preservação da religião caminhamnecessariamente juntos. Nisto se pressupõe que as pessoas e

classes governantes sejam esclarecidas a respeito das vantagensque a religião lhes oferece, e que até certo ponto se sintamsuperiores a ela, na medida em que a usam como instrumento: eisaqui a origem do livre-pensar. — Mas o que ocorre, quandocomeça a prevalecer a concepção totalmente diversa de governoque é ensinada nos Estados democráticos? Quando nele se enxergaapenas o instrumento da vontade popular, não um "alto" em

comparação a um "baixo", mas meramente uma função do únicosoberano, do povo? Também nesse caso o governo só poderá ter amesma atitude do povo ante a religião; toda propagação das Luzesterá de encontrar eco em seus representantes, uma utilização eexploração das forças motrizes e consolações religiosas para finsestatais não será tão fácil (a não ser que poderosos líderes partidários exerçam temporariamente uma influência semelhante à

do despotismo esclarecido). Mas se o Estado já não pode tirar  proveito da religião, ou se o povo pensa muito variadamente sobrecoisas religiosas para permitir ao governo um procedimentohomogêneo e uniforme nas medidas religiosas — entãonecessariamente aparecerá o recurso de tratar a religião comoassunto privado e remetê-la à consciência e ao costume de cadaindivíduo. A primeira conseqüência é que a sensibilidade religiosaaparece fortalecida, na medida em que movimentos seusescondidos e oprimidos, aos quais o Estado, involuntária ouintencionalmente, não concedia nenhum sopro vital, agorairrompem e se exaltam ao extremo; mais tarde se vê que a religião ésobrepujada por seitas, e que uma profusão de dentes de dragão foisemeada, no momento em que a religião se transformou em coisa privada. A visão dessa luta, o hostil desnudamento de todas asfraquezas dos credos religiosos, afinal já não admite outra saídasenão a de que todo indivíduo melhor e mais dotado faça dairreligiosidade seu assunto privado: mentalidade que então prevalecetambém no espírito dos governantes e que, quase contra a vontadedeles, dá às medidas que tomam um caráter hostil à religião. Tãologo isto sucede, a disposição dos homens ainda motivados

religiosamente, que antes adoravam o Estado como algo semi- ouinteiramente sagrado, torna-se decididamente hostil ao Estado; eles

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ficam à espreita das medidas do governo, procuram obstruir,atravessar, inquietar o máximo que puderem, e com o ardor de suaoposição impelem o partido contrário, o anti-religioso, a umentusiasmo quase fanático pelo  Estado; no que ainda concorresecretamente o fato de nesses círculos os ânimos, desde aseparação da religião, sentirem um vazio e buscarem provisoriamente criar, com a dedicação ao Estado, um substituto,uma espécie de preenchimento. Após essas lutas de transição, quetalvez durem bastante, finalmente se decidirá se os partidosreligiosos ainda são fortes o bastante para restabelecer o antigoestado de coisas e fazer girar a roda para trás: caso em que o

despotismo esclarecido (talvez menos esclarecido e mais temerosodo que antes) inevitavelmente receberá nas mãos o Estado, — ouse os partidos não religiosos predominam, e por algumas geraçõesdificultam e afinal tornam impossível a multiplicação dosadversários, talvez mediante a educação e o sistema escolar. Masentão diminui também neles o entusiasmo pelo Estado; torna-secada vez mais evidente que com a adoração religiosa, para a qual o

Estado é um mistério, uma instituição acima do mundo, também foiabalada a relação piedosa e reverente para com ele. Daí em dianteos indivíduos só vêem nele o aspecto em que lhes pode ser útil ou prejudicial, e disputam entre si, usando de todos os meios paraobter influência sobre ele. Mas essa concorrência logo se tornagrande demais, os homens e os partidos mudam rápido demais,derrubam uns aos outros montanha abaixo, de maneira selvagem

demais, quando mal alcançaram o topo. A todas as medidasexecutadas por um governo falta a garantia da duração; as pessoasrecuam ante empreendimentos que necessitariam décadas, séculosde crescimento tranqüilo, para produzir frutos maduros. Ninguémsente mais obrigação ante uma lei, senão curvar-semomentaneamente ao poder que introduziu a lei: mas logocomeçam a miná-la com um novo poder, uma nova maioria a ser 

formada. Enfim — pode-se dizer com segurança — a suspeita emrelação a todos os que governam, a percepção do que há de inútil edesgastante nessas lutas de pouco fôlego tem de levar os homens auma decisão totalmente nova: a abolição do conceito de Estado, asupressão da oposição "privado e público". As sociedades privadasincorporam passo a passo os negócios do Estado: mesmo o resíduomais tenaz do velho trabalho de governar (por exemplo, asatividades que se destinam a proteger as pessoas privadas umas dasoutras) termina a cargo de empreendedores privados. O desprezo,o declínio e a morte do Estado, a liberação da pessoa privada(guardo-me de dizer: do indivíduo), são conseqüência da noçãodemocrática de Estado; nisso está sua missão. Se ele cumpriu a suatarefa — que, como tudo humano, traz em si muita razão e muitadesrazão —, se todas as recaídas da velha doença foram superadas,então se abrirá uma nova página no livro de fábulas da humanidade,em que serão lidas todas as espécies de histórias estranhas e talvezalguma coisa boa. — Repetindo brevemente o que foi dito: osinteresses do governo tutelar e os interesses da religião caminhamde mãos dadas, de modo que, quando esta última começa adefinhar, também o fundamento do Estado é abalado. A crença

numa ordenação divina das coisas políticas, no mistério que seria aexistência do Estado, é de procedência religiosa: se desaparecer a

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religião, o Estado inevitavelmente perderá seu antigo véu de Ísis152

e não mais despertará reverência. Observada de perto, a soberaniado povo serve para afugentar também o último encanto esuperstição no âmbito destes sentimentos; a democracia moderna éa forma histórica do declínio do Estado. — Mas a perspectiva queresulta desse forte declínio não é infeliz em todos os aspectos: entreas características dos seres humanos, a sagacidade e o interesse pessoal153  são as mais bem desenvolvidas; se o Estado não maiscorresponder às exigências dessas forças, não ocorrerá de maneiraalguma o caos: uma invenção ainda mais pertinente que aquilo queera o Estado, isto sim, triunfará sobre o Estado. Quantas forças

organizadoras a humanidade já não viu se extinguirem — por exemplo, a do clã hereditário, que por milênios foi bem mais poderosa que a da família, e que muito antes desta já reinava eordenava. Nós mesmos vemos a significativa noção legal e políticada família, que um dia predominou em toda a extensão do mundoromano, tornar-se cada vez mais pálida e impotente. Assim, umageração posterior também verá o Estado se tornar insignificante em

ários trechos da Terra — algo que muitos homens da atualidadenão podem conceber sem medo e horror. Trabalhar   pela difusão erealização dessa idéia é certamente outra coisa: é preciso pensar muito presunçosamente de sua própria razão e mal compreender ahistória pela metade, para já agora pôr as mãos no arado — já queainda ninguém pode mostrar as sementes que depois serão lançadasno terreno rasgado. Confiemos, portanto, na "sagacidade e

interesse pessoal dos homens", para que o Estado subsista por  bastante tempo ainda, e sejam rechaçadas as tentativas destruidorasde supostos sábios zelosos e precipitados!

473. O socialismo em vista de seus meios. — O socialismo é oisionário irmão mais novo do quase extinto despotismo, do qual

quer ser herdeiro; seus esforços, portanto, são reacionários nosentido mais profundo. Pois ele deseja uma plenitude de poder estatal como até hoje somente o despotismo teve, e até mesmosupera o que houve no passado, por aspirar ao aniquilamentoformal do indivíduo: o qual ele vê como um luxo injustificado danatureza, que deve aprimorar e transformar num pertinente órgãoda comunidade. Devido à afinidade, o socialismo sempre aparece

na vizinhança de toda excessiva manifestação de poder, como oelho, típico socialista Platão na corte do tirano da Sicília;154  eledeseja (e em algumas circunstâncias promove) o cesáreo Estadodespótico neste século, porque, como disse, gostaria de vir a ser seu herdeiro. Mas mesmo essa herança não bastaria para os seusobjetivos, ele precisa da mais servil submissão de todos os cidadãosao Estado absoluto, como nunca houve igual; e, já não podendo

contar nem mesmo com a antiga piedade religiosa ante o Estado,tendo, queira ou não, que trabalhar incessantemente para aeliminação deste — pois trabalha para a eliminação de todos os stados  existentes —, não pode ter esperança de existir a não ser 

 por curtos períodos, aqui e ali, mediante o terrorismo extremo. Por isso ele se prepara secretamente para governos de terror, e empurraa palavra "justiça" como um prego na cabeça das massas

semicultas, para despojá-las totalmente de sua compreensão (depoisque esta já sofreu muito com a semi-educação) e criar nelas uma

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 boa consciência para o jogo perverso que deverão jogar. — Osocialismo pode servir para ensinar, de modo brutal e enérgico, o perigo que há em todo acúmulo de poder estatal, e assim instilar desconfiança do próprio Estado. Quando sua voz áspera se junta aogrito de guerra que diz o máximo de Estado possível , este soa,inicialmente, mais ruidoso do que nunca: mas logo também seouve, com força tanto maior, o grito contrário que diz: O mínimode Estado possível .

474.  A evolução do espírito, temida pelo Estado. — A pólisgrega era excludente, como todo poder político organizador, e

desconfiava do crescimento da cultura entre seus cidadãos; emrelação a esta, seu poderoso instinto básico se mostrou quase queestritamente paralisante e inibidor. Não queria admitir história oudevir na cultura; a educação fixada na lei do Estado deveria ser imposta a todas as gerações e mantê-las num só nível. Mais tarde,Platão quis a mesma coisa para o seu Estado ideal. Portanto, acultura se desenvolveu apesar   da pólis: é certo que ela ajudou

indiretamente e contra a vontade, porque a ambição do indivíduoera estimulada ao máximo na pólis, de maneira que, tendo tomado aia da formação do espírito, ele continuava nela até o fim. Não se

deve invocar, argumentando contra isso, o panegírico de Péricles: pois este é apenas uma fantasia grande e otimista acerca do nexosupostamente necessário entre a pólis e a cultura ateniense;Tucídides faz com que, logo antes de a noite cair sobre Atenas (a

 peste e a ruptura da tradição), ela brilhe ainda uma vez, como umcrepúsculo transfigurador que nos leva a esquecer o dia ruim que o precedeu.155

475.  O homem europeu e a destruição das nações. — Ocomércio e a indústria, a circulação de livros e cartas, a posse

comum de toda a cultura superior, a rápida mudança de lar e deregião, a atual vida nômade dos que não possuem terra — essascircunstâncias trazem necessariamente um enfraquecimento e por fim uma destruição das nações, ao menos das européias: de modoque a partir delas, em conseqüência de contínuos cruzamentos,deve surgir uma raça mista, a do homem europeu. Hoje em dia oisolamento das nações trabalha contra esse objetivo, de modo

consciente ou inconsciente, através da geração de hostilidadesnacionais, mas a mistura avança lentamente, apesar dessasmomentâneas correntes contrárias: esse nacionalismo artificial é,aliás, tão perigoso como era o catolicismo artificial, pois é naessência um estado de emergência e de sítio que alguns poucosimpõem a muitos, e que requer astúcia, mentira e força paramanter-se respeitável. Não é o interesse de muitos (dos povos),

como se diz, mas sobretudo o interesse de algumas dinastiasreinantes, e depois de determinadas classes do comércio e dasociedade, o que impele a esse nacionalismo; uma vez que se tenhareconhecido isto, não é preciso ter medo de proclamar-se um bomeuropeu  e trabalhar ativamente pela fusão das nações: no que osalemães, graças à sua antiga e comprovada qualidade de intérpretese mediadores dos povos, serão capazes de colaborar. — Diga-se de

 passagem que o problema dos judeus existe apenas no interior dosEstados nacionais, na medida em que neles a sua energia e superior 

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inteligência, o seu capital de espírito e de vontade, acumulado degeração em geração em prolongada escola de sofrimento, devem preponderar numa escala que desperta inveja e ódio, de modo queem quase todas as nações de hoje — e tanto mais quanto maisnacionalista é a pose que adotam — aumenta a grosseria literária156

de conduzir os judeus ao matadouro, como bodes expiatórios detodos os males públicos e particulares. Quando a questão não for mais conservar as nações, mas criar uma raça européia mista queseja a mais vigorosa possível, o judeu será um ingrediente tão útil edesejável quanto qualquer outro vestígio nacional. Característicasdesagradáveis, e mesmo perigosas, toda nação, todo indivíduo tem:

é cruel exigir que o judeu constitua exceção. Nele essascaracterísticas podem até ser particularmente perigosas eassustadoras; e talvez o jovem especulador da Bolsa judeu seja ainvenção mais repugnante da espécie humana. Apesar disso gostariade saber o quanto, num balanço geral, devemos relevar num povoque, não sem a culpa de todos nós, teve a mais sofrida históriaentre todos os povos, e ao qual devemos o mais nobre dos homens

(Cristo), o mais puro dos sábios (Spinoza), o mais poderoso doslivros e a lei moral mais eficaz do mundo. E além disso: nos temposmais sombrios da Idade Média, quando as nuvens asiáticas pesavam sobre a Europa, foram os livres-pensadores, eruditos emédicos judeus que, nas mais duras condições pessoais,mantiveram firme a bandeira das Luzes e da independênciaintelectual, defendendo a Europa contra a Ásia; tampouco se deve

menos aos seus esforços o fato de finalmente vir a triunfar umaexplicação do mundo mais natural, mais conforme à razão ecertamente não mítica, e de o anel da cultura que hoje nos liga àsluzes da Antigüidade greco-romana não ter se rompido. Se ocristianismo tudo fez para orientalizar o Ocidente, o judaísmocontribuiu de modo essencial para ocidentalizá-lo de novo: o que,num determinado sentido, significa fazer da missão e da história da

Europa uma continuação da grega.

476.  Aparente superioridade da Idade Média . — A IdadeMédia nos mostra, na Igreja, uma instituição com um objetivointeiramente universal, objetivo este que abrangia toda ahumanidade e que dizia respeito aos — supostamente — mais

elevados interesses dessa humanidade; em contraste, os objetivosdos Estados e nações, tais como a história recente os mostra,causam uma impressão desalentadora; parecem mesquinhos, vis,materiais, geograficamente limitados. Mas essas impressõesdistintas sobre a imaginação não devem determinar nossoulgamento, pois aquela instituição universal refletia necessidadesartificiais, baseadas em ficções que ela primeiramente teve de criar,

quando não existiam (necessidade da Redenção); as novasinstituições atendem a calamidades reais; e não está longe o tempoem que haverá instituições para servir as verdadeiras necessidadescomuns de todos os homens e pôr nas sombras e no esquecimentoesse fantástico protótipo, a Igreja católica.

477.  É indispensável a guerra. — É um sonho vão de belas

almas ainda esperar muito (ou só então realmente muito) dahumanidade, uma vez que ela tenha desaprendido de fazer a guerra.

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Por enquanto não conhecemos outro meio que pudesse transmitir a povos extenuados a rude energia do acampamento militar, o ódio profundo e impessoal, o sangue-frio de quem mata com boaconsciência, o ardor comum em organizar a destruição do inimigo,a orgulhosa indiferença ante as grandes perdas, ante a própriaexistência e a dos amigos, o surdo abalo sísmico das almas, demaneira tão forte e segura como faz toda grande guerra: os regatose torrentes que nela irrompem, embora arrastem pedras eimundícies de toda espécie e arrasem campos de tenras culturas,em circunstâncias favoráveis farão depois girar, com nova energia,as engrenagens das oficinas do espírito. A cultura não pode

absolutamente dispensar as paixões, os vícios e as maldades. — Quando os romanos imperiais se cansaram um tanto da guerra, procuraram obter nova energia da caça aos animais, dos combatesde gladiadores e da perseguição aos cristãos. Os ingleses de hoje,que no conjunto também parecem ter renunciado à guerra, adotamum outro meio para regenerar essas forças que desaparecem: as perigosas viagens de descobrimentos, circunavegações e escaladas

de montanhas, realizadas com objetivos científicos, segundo dizem,mas na verdade a fim de levar para casa energias extras, oriundasde perigos e aventuras de toda espécie. Ainda se descobrirãomuitos desses substitutos da guerra, mas talvez se compreendacada vez mais, graças a eles, que uma humanidade altamentecultivada e por isso necessariamente exausta, como a dos europeusatuais, não apenas precisa de guerras, mas das maiores e mais

terríveis guerras — ou seja, de temporárias recaídas na barbárie —, para não perder, devido aos meios da cultura, sua própria cultura eexistência.

478.  A laboriosidade no Sul e no Norte. — A laboriosidadenasce de dois modos bem distintos. Os trabalhadores do Sul setornam laboriosos não pelo impulso de ganhar, mas pela constantenecessidade alheia. Porque sempre há alguém a desejar que lheferrem o cavalo, que lhe reparem a carroça, o ferreiro está sempreem atividade. Se ninguém aparecesse, ele iria vadiar na praça domercado. Não é preciso muito para se alimentar num país fértil, elenão necessitaria mais que uma pequena quantidade de trabalho, enenhuma laboriosidade, certamente; em último caso ele mendigaria

e ficaria satisfeito. — Mas a laboriosidade dos trabalhadoresingleses tem por trás de si o sentido do ganho: ele é cônscio de simesmo e de suas metas e com a posse quer o poder, e com o poder o máximo de liberdade e nobreza individual possível.

479.  A riqueza como origem de uma nobreza de sangue. — Ariqueza produz necessariamente uma aristocracia da raça, pois

 permite escolher as mulheres mais belas, pagar os melhores professores, confere ao homem asseio, tempo para exercíciosfísicos e, acima de tudo, afastamento do trabalho físicoembrutecedor. Assim ela cria todas as condições para, no períodode algumas gerações, fazer as pessoas andarem e até mesmoagirem de maneira nobre e bonita: a maior liberdade de sentimento,a ausência do que é mísero e mesquinho, da humilhação ante os

empregadores, da economia de centavos. — Precisamente essasqualidades negativas são o mais rico dom da felicidade para um

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ovem; um homem totalmente pobre em geral se arruína com anobreza de temperamento, não vai adiante e nada adquire, sua raçanão é viável. — Mas deve-se considerar que a riqueza tem quase osmesmos efeitos, quer a pessoa disponha de trezentos ou de trintamil táleres por ano: não há progressão substancial dascircunstâncias favoráveis. Mas ter menos, mendigar e se humilhar quando criança é terrível: embora talvez seja, para os que buscam afortuna no brilho das cortes, na subordinação aos poderosos einfluentes, ou querem se tornar cabeças da Igreja, o ponto de partida correto. (Ensina a penetrar curvado nos subterrâneoscorredores do favor.)

480.  Inveja e indolência em direções diversas. — Os dois partidos opostos, o socialista e o nacionalista — ou como quer quese denominem nos diversos países da Europa —, são dignos um dooutro: inveja e preguiça são as forças que movem ambos. Noacampamento do primeiro quer-se trabalhar o mínimo possível comas mãos, no do segundo o mínimo possível com a cabeça; neste se

odeia e se inveja os indivíduos eminentes, que crescem por simesmos e não se deixam enquadrar e alinhar para os fins de umaação em massa; no primeiro, a melhor casta da sociedade,exteriormente bem colocada, cuja efetiva tarefa, a produção de bens culturais superiores, torna a vida bem mais difícil e dolorosainteriormente. Sem dúvida, se conseguirem fazer do espírito daação em massa o espírito das classes superiores da sociedade, as

hostes socialistas terão todo o direito de buscar nivelar-se tambémexteriormente com aquelas, uma vez que interiormente, na cabeça eno coração, já estarão niveladas. — Vivam como homenssuperiores e realizem continuamente os atos da cultura superior — e tudo o que nela está vivo reconhecerá o seu direito, e a ordemsocial de que vocês são o topo estará imune a todo golpe e todoolhar perverso!

481.  A grande política e suas perdas. — Assim como um povonão sofre as perdas maiores, trazidas pela guerra e pelo estado de prontidão, com as despesas bélicas, a obstrução dos transportes edo comércio ou a manutenção de um exército regular — emboratais perdas sejam grandes também agora, quando oito Estados da

Europa gastam com isso a soma de dois a três bilhões anuais —,mas sim com o fato de que ano a ano os homens mais capazes,mais vigorosos, mais trabalhadores são removidos em númeroextraordinário de suas ocupações e profissões, para se tornaremsoldados: de igual modo, um povo que se dispõe a praticar a grande política e a garantir uma voz decisiva entre os Estados mais poderosos não experimenta suas maiores perdas onde geralmente

as encontramos. É verdade que a partir desse momento elesacrifica muitos dos talentos mais eminentes no "altar da pátria" ouda ambição nacional, quando previamente, antes de seremdevorados pela política, esses talentos tinham outras esferas deação diante de si. Mas além dessas hecatombes públicas, e bemmais horrendo que elas, no fundo, há um espetáculo quecontinuamente se desenrola em milhares de atos simultâneos: todo

homem capaz, trabalhador, engenhoso e empreendedor, pertencente a um povo ávido das glórias políticas, é dominado por 

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essa avidez e não mais se dedica inteiramente ao seu próprionegócio: as questões e os cuidados relativos ao bem público,diariamente renovados, consomem um tributo diário do capital decoração e mente de todo cidadão: a soma de todos esses sacrifíciose perdas de energia e trabalho individual é tão monstruosa que oflorescimento político de um povo quase necessariamente acarretaum empobrecimento e debilitação espiritual, uma menor capacidade para obras que exigem grande concentração e exclusividade. Eenfim é lícito perguntar: vale a pena esse florescimento e fausto dotodo (que, afinal, manifesta-se apenas no medo dos outros Estadosao novo colosso e no favorecimento obtido para o comércio e o

tráfego nacionais), se têm de ser sacrificados a esta flor grosseira eespalhafatosa as plantas e os rebentos mais nobres, delicados eespirituais, de que o solo da nação era até agora tão rico?

482.   Dizendo mais uma vez. — Opiniões públicas — indolências privadas.157

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Capítulo nonoO HOMEM A SÓS CONSIGO

483.  Inimigos da verdade. — Convicções são inimigos daerdade mais perigosos que as mentiras.

484.  Mundo às avessas. — Criticamos mais duramente um pensador quando ele oferece uma proposição que nos é

desagradável; no entanto, seria mais razoável fazê-lo quando sua proposição nos é agradável.

485. Ter caráter . — Um homem parece ter caráter muito maisfreqüentemente por seguir sempre o seu temperamento do que por seguir sempre os seus princípios.

486.  A coisa necessária. — Uma coisa é necessário ter: ou umespírito leve por natureza ou um espírito aliviado  pela arte e pelosaber.

487.  A paixão pelas causas. — Quem dirige suas paixões paraas causas (ciência, bem-estar público, interesses culturais, artes)

retira muito fogo de sua paixão pelas pessoas (mesmo que elassejam representantes daquelas causas, como estadistas, filósofos eartistas são representantes de suas criações).

488.  A calma na ação. — Assim como uma cascata se tornamais lenta e mais rarefeita na queda, também o grande homem deação costuma agir com mais  calma do que faria esperar seu

impetuoso desejo antes da ação.

489.   Indo profundamente demais. — Pessoas quecompreendem algo em toda a sua profundeza raramente lhe permanecem fiéis para sempre. Elas justamente levaram luz à profundeza: então há muita coisa ruim para ver.

490.  Ilusão dos idealistas. — Os idealistas estão convencidosde que as causas a que servem são essencialmente melhores que asoutras causas do mundo, e não querem acreditar que a sua causanecessita, para prosperar, exatamente do mesmo estercomalcheiroso que requerem todos os demais empreendimentoshumanos.

491.  Observação de si mesmo. — O homem está muito bemdefendido de si mesmo, da espionagem e do assédio que faz a simesmo, e geralmente não enxerga mais que o seu antemuro. Afortaleza mesma lhe é inacessível e até invisível, a não ser queamigos e inimigos façam de traidores e o conduzam para dentro por uma via secreta.

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492.  A profissão certa . — Os homens raramente suportamuma profissão, se não crêem ou não se convencem de que nofundo ela é mais importante que todas as outras. O mesmo ocorrecom as mulheres em relação aos amantes.

493.  Nobreza de caráter . — A nobreza de caráter consiste, em boa parte, na bondade e ausência de desconfiança, ou seja,exatamente aquilo sobre o qual as pessoas gananciosas e bem-sucedidas gostam de falar com superioridade e ironia.

494.  Meta e caminho. — Muitos são obstinados em relação ao

caminho tomado, poucos em relação à meta.

495. O que há de revoltante num estilo de vida individual . — As pessoas se irritam com aqueles que adotam padrões de vidamuito individuais; elas se sentem humilhadas, reduzidas a seresordinários, com o tratamento extraordinário que eles dispensam a si

mesmos.

496.  Prerrogativa da grandeza . — É prerrogativa da grandeza proporcionar enorme felicidade com pequeninos dons.

497.  Involuntariamente nobre. — O homem se comporta demaneira involuntariamente nobre, quando se habituou a nada querer 

dos homens e a sempre lhes dar.

498. Condição de heroísmo. — Quando alguém quer se tornar herói, é preciso que antes a serpente se tenha transformado emdragão, senão lhe faltará o inimigo adequado.

499.  Amigo. — É a partilha da alegria, não do sofrimento, oque faz o amigo.

500.  Saber usar a maré. — Para os fins do conhecimento é preciso saber usar a corrente interna que nos leva a uma coisa, edepois aquela que, após algum tempo, nos afasta da coisa.

501.  Prazer em si. — "Prazer com uma coisa" é o que se diz:mas na verdade é o prazer consigo mesmo mediante uma coisa.

502.  O homem modesto. — Quem é modesto em relação às pessoas mostra tanto mais em relação às coisas (cidade, Estado,sociedade, época, humanidade) a sua pretensão. É a sua vingança.

503.  Inveja e ciúme. — Inveja e ciúme são as partes pudendasda alma humana. A comparação talvez possa ser estendida.

504. O mais nobre dos hipócritas. — Não falar absolutamentede si mesmo é uma bem nobre hipocrisia.

505.  Aborrecimento. — O aborrecimento é uma doença física

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517.   Percepção fundamental . — Não há harmonia preestabelecida entre o progresso da verdade e o bem dahumanidade.

518.  Humana sina. — Quem pensa mais profundamente sabeque está sempre errado, não importa como proceda e julgue.

519.  A verdade como Circe .158  — O erro fez dos animaishomens; a verdade seria capaz de tornar a fazer do homem umanimal?

520.  O perigo de nossa civilização. — Pertencemos a umaépoca cuja civilização corre o perigo de ser destruída pelos meiosda civilização.

521. Grandeza significa: dar direção. — Nenhum rio é por simesmo grande e abundante; é o fato de receber e levar adiante

muitos afluentes que o torna assim. O mesmo sucede com todas asgrandezas do espírito. Interessa apenas que um homem dê adireção que os muitos afluentes devem seguir; e não que eleinicialmente seja pobre ou rico em dons.

522.   Débil consciência. — Homens que falam de suaimportância para a humanidade têm uma débil consciência quanto à

integridade burguesa comum, na manutenção de pactos e promessas.

523. Querer ser amado. — A exigência de ser amado é a maior das pretensões.

524.  Desprezo dos homens. — O mais inequívoco indício demenosprezo pelas pessoas é levá-las em consideração apenas comomeio para nossos fins, ou não considerá-las absolutamente.

525.   Partidários por contradição. — Quem enfureceu as pessoas contra si mesmo, sempre ganhou também um partido a seufavor.

526.  Esquecendo as vivências. — Quem pensa muito e pensaobjetivamente, esquece com facilidade as próprias vivências, masnão os pensamentos por elas suscitados.

527.  Apego à opinião. — Uma pessoa se atém a uma opinião

 porque julga haver chegado a ela por si só; outra, porque a adquiriucom esforço e está orgulhosa de tê-la compreendido: ambas, portanto, por vaidade.

528.   Fugindo da luz. — A boa ação foge da luz tãoansiosamente quanto a má ação: esta por temer que, ao se tornar conhecida, sobrevenha a dor (na forma de punição); aquela temeque, ao se tornar conhecida, desapareça o prazer (o puro prazer consigo mesmo, que cessa quando a ele se junta a satisfação da

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aidade).

529.  A duração do dia. — Quando temos muitas coisas para pôr dentro dele, o dia tem centenas de bolsos.

530. Gênio tirânico. — Quando está vivo na alma um desejoinvencível de se impor tiranicamente, e o fogo é constantementeanimado, mesmo um pequeno talento (em políticos, artistas) torna-se aos poucos uma quase irresistível força natural.

531.  A vida do inimigo. — Aquele que vive de combater um

inimigo tem interesse em que ele continue vivo.

532.  Mais importante. — A coisa obscura e inexplicada é vistacomo mais importante do que a clara e explicada.

533.   Avaliação de serviços prestados . — Avaliamos os

serviços que uma pessoa nos presta segundo o valor que ela lhesatribui, e não segundo o valor que têm para nós.

534.  Infortúnio. — A distinção que há no infortúnio (como sefosse indício de superficialidade, despretensão e banalidade sentir-se feliz) é tão grande, que normalmente protestamos quandoalguém diz: "Mas como você é feliz!".

535.  Fantasia do medo. — A fantasia do medo é aquele perverso, simiesco duende que pula sobre as costas do homemquando ele carrega justamente o fardo mais pesado.

536.  Valor de adversários insípidos . — Às vezes só

 permanecemos fiéis a uma causa porque os seus adversários nãodeixam de ser insípidos.

537.  Valor de uma profissão . — Uma profissão nos tornairrefletidos; nisso está sua maior bênção. Pois ela é um baluarte,atrás do qual podemos licitamente nos retirar, quando nos assaltam

dúvidas e preocupações comuns.

538. Talento. — Em algumas pessoas o talento parece menor do que é, pois elas sempre se impõem tarefas grandes demais.

539.  Juventude. — A juventude é desagradável, porque nelanão é possível ou não é razoável ser produtivo em qualquer sentido.

540.  Objetivos grandes demais. — Quem publicamente se propõe grandes metas e depois percebe, privadamente, que é fracodemais para elas, em geral também não possui força bastante pararenegar em público aqueles objetivos, e inevitavelmente se torna umhipócrita.

541.  Na corrente. — Correntes fortes arrastam consigo muitas

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 pedras e arbustos; espíritos fortes, muitas cabeças tolas econfusas.

542.  Perigos da liberação do espírito. — Quando um homem

 busca seriamente a liberação do espírito, também os seus desejos e paixões esperam secretamente obter vantagem disso.

543.  Encarnação do espírito. — Quando alguém pensa muito einteligentemente, não apenas seu rosto, mas também seu corpoassume um aspecto inteligente.

544.  Ver mal e ouvir mal . — Quem vê pouco, vê sempremenos; quem ouve mal, ouve sempre algo mais.

545.  O deleite consigo na vaidade. — O vaidoso não quer tanto se distinguir quanto se sentir distinto; por isso não desdenhanenhum meio de iludir e lograr a si mesmo. Não é a opinião dos

outros, mas a sua opinião sobre a opinião dos outros que lheinteressa.

546.  Excepcionalmente vaidoso. — Quando está fisicamentedoente, o homem que normalmente basta a si mesmo é, de modoexcepcional, vaidoso e sensível à fama e ao louvor. Na medida emque perde a si mesmo, busca se recuperar a partir de fora, pela

opinião alheia.

547. Os "ricos de espírito" . — Quem procura o espírito nãotem espírito.

548. Sugestão para chefes de partido. — Se conseguimos levar 

as pessoas a se declarar publicamente por algo, em geral aslevamos também a se declarar intimamente a favor daquilo; elasquerem ser vistas como conseqüentes.

549.  Desprezo. — O homem é mais sensível ao desprezo queem dos outros do que ao que vem de si mesmo.

550. O laço da gratidão. — Existem almas servis, que levam atal ponto o reconhecimento por benefícios, que estrangulam a simesmas com o laço da gratidão.

551.  Artif ício de profeta. — Para antecipar o modo de agir das pessoas ordinárias, devemos supor que elas sempre fazem o menor 

dispêndio de espírito para se libertar de uma situação desagradável.

552.  O único direito do homem . — Aquele que se desvia dotradicional é vítima do extraordinário; aquele que permanece notradicional é seu escravo. Em ambos os casos ele é arruinado.

553.  Abaixo do animal . — Quando o homem relincha aogargalhar, supera todos os animais com sua vulgaridade.

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554.   Meio-saber . — Aquele que fala pouco uma línguaestrangeira tem mais prazer nisso do que aquele que a fala bem. O prazer está com os meio-sabedores.

555.  Perigosa solicitude. — Há pessoas que querem tornar aida mais difícil para os outros, pela razão única de depois lhes

oferecer sua própria receita para aliviar a vida, seu cristianismo, por exemplo.

556.  Diligência e consciência. — A diligência e a consciênciasão freqüentemente antagonistas, porque a diligência quer colher os

frutos ainda verdes na árvore, enquanto a consciência os deixa pender muito longamente, até caírem e se destroçarem.

557.  Suspeitos. — As pessoas que não podemos suportar  procuramos tornar suspeitas.

558.  Faltam as circunstâncias. — Muitas pessoas esperam aida inteira pela oportunidade de serem boas à sua maneira.

559.  Falta de amigos. — A falta de amigos faz pensar eminveja ou presunção. Há pessoas que devem seus amigos à felizcircunstância de não ter motivo para a inveja.

560.  O perigo na multiplicidade. — Com um talento a maisestamos às vezes menos seguros do que com um talento a menos:assim como a mesa se sustenta melhor sobre três pés do que sobrequatro.

561.  Modelo para os outros. — Quem quer dar um bom

exemplo deve acrescentar à sua virtude um grão de tolice; então osoutros imitam e também se elevam acima daquele imitado — algoque as pessoas adoram.

562. Ser um alvo. — É freqüente que as maledicências a nossorespeito não se dirijam de fato a nós, mas sejam expressão de umacontrariedade, um mau humor de causas bem diversas.

563.  Facilmente resignados. — Não sofremos muito comdesejos frustrados se ensinamos nossa fantasia a enfear o passado.

564.   Em perigo. — Corremos o perigo maior de ser atropelados quando acabamos de nos desviar de um carro.

565. O papel conforme a voz. — Quem é obrigado a falar maisalto do que é seu costume (a uma pessoa semi-surda, digamos, ou para um grande auditório), habitualmente exagera o que tem acomunicar. — Alguns se tornam conspiradores, difamadoresmalévolos, intrigantes, somente porque suas vozes se prestammelhor ao cochicho.

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566.  Amor e ódio. — O amor e o ódio não são cegos, masofuscados pelo fogo que trazem consigo.

567.  Vantajosamente hostilizado . — Pessoas incapazes de

fazer o mundo ver claramente os seus méritos procuram despertar uma forte hostilidade contra si. Têm então o consolo de pensar queela se interpõe entre seus méritos e o reconhecimento deles — eque outros supõem o mesmo: o que é vantajoso para a suareputação.

568.  Confissão. — Esquecemos nossa culpa quando a

confessamos a outro alguém; mas geralmente o outro não aesquece.

569.  Auto-suficiência. — O velo de ouro159 da auto-suficiência protege das bordoadas, mas não das alfinetadas.

570. Sombras na chama. — A chama não é tão clara para simesma quanto para aqueles que ilumina: assim também o sábio.

571. Opiniões próprias. — A primeira opinião que nos ocorre,quando repentinamente somos indagados acerca de algo, não égeralmente a nossa própria opinião, mas sim aquela corrente, denossa casta, posição ou origem: é raro as opiniões próprias ficarem

 perto da superfície.

572. Origem da coragem. — O homem comum é corajoso einvulnerável como um herói quando não vê o perigo, quando nãotem olhos para ele. E, inversamente, o único ponto vulnerável doherói está nas costas, ou seja, onde não tem olhos.

573. O perigo do médico. — É preciso termos nascido para onosso médico, senão perecemos por causa dele.

574.  Vaidade miraculosa . — Quem ousadamente previu otempo três vezes e acertou, acredita um pouco, no fundo da alma,em seu dom profético. Admitimos o miraculoso, o irracional,quando ele lisonjeia nossa auto-estima.

575.  Profissão. — Uma profissão é a espinha dorsal da vida.

576.  Perigo da influência pessoal . — Quem sente que exercegrande influência interior sobre alguém deve lhe dar rédea solta, e

mesmo gostar de ver e até induzir uma eventual resistência: deoutro modo, criará inevitavelmente um inimigo.

577.  Admitindo herdeiros. — Quem desinteressadamente fundauma coisa grande procura formar herdeiros. É indício de umanatureza ignóbil e tirânica ver adversários em todos os possíveisherdeiros de sua obra e viver em permanente defesa contra eles.

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578.  O meio-saber . — O meio-saber é mais vitorioso que osaber inteiro: ele conhece as coisas de modo mais simples do quesão, o que torna sua opinião mais compreensível e maisconvincente.

579.  Inaptidão para o partido. — Quem pensa muito não éapto para ser homem de partido: seu pensamento atravessa eultrapassa o partido rapidamente.

580.  Memória ruim. — A vantagem de uma memória ruim é poder fruir as mesmas coisas boas várias vezes pela primeira vez.

581. Causando dor a si mesmo. — A intransigência no pensar éfreqüentemente sinal de uma disposição interior inquieta, que anseia pelo embotamento.

582.  Mártires. — O discípulo de um mártir sofre mais do que

o mártir.

583. Vaidade residual . — A vaidade de algumas pessoas quenão necessitariam ser vaidosas é o hábito, conservado edesenvolvido, de um tempo em que elas não tinham o direito deacreditar em si, e mendigavam dos outros a pequena moeda dessacrença.

584.  Punctum saliens [ ponto saliente] da paixão. — Quem estána iminência de sucumbir à raiva ou a um violento amor atinge um ponto em que a alma está cheia como um vaso: mas é preciso aindaque se lhe acrescente uma gota d'água, a boa vontade para a paixão(que geralmente chamamos de má). Basta apenas esse pequenino

 ponto, e o vaso transborda.

585.  Pensamento mal-humorado. — Aos homens sucede omesmo que aos montes de carvão na floresta. Apenas depois deterem queimado e se carbonizado, como estes, os homens jovensse tornam úteis. Enquanto ardem e fumegam, são talvez maisinteressantes, mas inúteis e freqüentemente incômodos. — De

modo implacável, a humanidade emprega todo indivíduo comomaterial para aquecer suas grandes máquinas: mas para que entãoas máquinas, se todos os indivíduos (ou seja, a humanidade)servem apenas para mantê-las? Máquinas que são um fim em simesmas — será esta a umana commedia [comédia humana]?

586. O ponteiro de horas da vida . — A vida consiste em rarosmomentos da mais alta significação e de incontáveis intervalos, em

que, quando muito, as sombras de tais momentos nos rondam. Oamor, a primavera, toda bela melodia, a Lua, as montanhas, o mar  — apenas uma vez tudo fala plenamente ao coração: se é que atingea plena expressão. Pois muitos homens não têm de modo algumesses momentos, e são eles próprios intervalos e pausas na sinfonia

da vida real.

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587.  Atacar ou intervir . — Não é raro cometermos o erro deivamente hostilizar uma tendência, um partido ou um período,

 porque nos aconteceu enxergar apenas seu lado exteriorizado, seuestiolamento ou "os defeitos de suas virtudes",160  que lhe sãoinescapáveis — talvez porque nós mesmos tivemos notável participação neles. Então lhes viramos as costas e buscamos umadireção contrária; mas o melhor seria procurar os aspectos bons efortes, ou desenvolvê-los em nós mesmos. Isto requer, semdúvida, um olhar mais vigoroso e uma vontade maior de promover o que é imperfeito e está em evolução, em vez de perscrutá-lo enegá-lo na sua imperfeição.

588.   Modéstia. — Existe modéstia verdadeira (isto é, oreconhecimento de que não somos nossas obras); e ela convém aosgrandes espíritos, porque justamente eles são capazes de apreender a idéia da completa irresponsabilidade (também para com aquilo quecriam de bom). As pessoas não odeiam a imodéstia dos grandesenquanto eles sentem a própria força, mas quando querem

experimentá-la ferindo os demais, tratando-os imperiosamente eendo até onde suportam. Isso habitualmente demonstra a falta de

um seguro sentimento da força, e faz com que se ponha em dúvidaa sua grandeza. Nesse sentido a imodéstia, do ponto de vista da prudência, é bastante desaconselhável.

589. O primeiro pensamento do dia . — A melhor maneira decomeçar o dia é, ao acordar, imaginar se nesse dia não podemosdar alegria a pelo menos uma pessoa. Se isso pudesse valer comosubstituto do hábito religioso da oração, nossos semelhanteslucrariam com tal mudança.

590.  A presunção como o último meio de consolo. — Quando

alguém interpreta um infortúnio, sua carência intelectual, suadoença, de modo a ver nele um destino predeterminado, uma provação ou a misteriosa punição por algo cometido no passado,torna o próprio ser interessante para si mesmo e se eleva, naimaginação, acima dos semelhantes. O pecador orgulhoso é umafigura conhecida em todas as seitas das igrejas.

591. Vegetação da felicidade. — Bem junto à dor do mundo, ecom freqüência no solo vulcânico dela, o ser humano fez seu pequeno jardim de felicidade; se consideramos a vida com o olhar daquele que da existência deseja tão-só conhecimento, ou daqueleque se abandona e se resigna, ou daquele que se alegra peladificuldade vencida, — em toda parte encontramos alguma

felicidade que brota ao lado da desgraça — e tanto mais felicidadequanto mais vulcânico é o solo; apenas seria ridículo dizer que comessa felicidade o próprio sofrimento estaria justificado.

592. O caminho dos antepassados. — É razoável que alguémcontinue a desenvolver o talento  a serviço do qual seu pai ou seuavô despendeu esforços, e não se volte para algo totalmente novo;

de outro modo, afasta a possibilidade de atingir a perfeição emqualquer ofício. É por isso que o provérbio diz: "Que caminho

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deves percorrer? — o de teus antepassados".

593.  Vaidade e ambição como educadoras . — Enquanto umhomem não se torna instrumento do interesse humano geral, pode

atormentá-lo a ambição; mas sendo esse objetivo alcançado,trabalhando ele necessariamente como uma máquina para o bem detodos, pode então surgir a vaidade; ela o humanizará nas pequenascoisas, o tornará mais sociável, mais indulgente, mais suportável,quando a ambição tiver completado nele o trabalho mais grosseiro(torná-lo útil).

594.   Principiantes filosóficos. — Se alguém começou a partilhar a sabedoria de um filósofo, anda pelas ruas com osentimento de haver mudado e se tornado um grande homem; poisdepara com muitos que não conhecem tal sabedoria, e então tem deapresentar um julgamento novo e desconhecido acerca de tudo: porque reconhece um código de leis, acha que é obrigado a secomportar como um juiz.

595.  Agradando pelo desagrado. — As pessoas que buscamdar o que falar, e assim desagradar, desejam o mesmo que as que procuram agradar e não dar o que falar, apenas num grau muito bem elevado e de maneira indireta, através de um estágio queaparentemente as afasta do seu objetivo. Querem influência e

 poder, e por isso mostram sua superioridade, embora de umamaneira tal que é sentida como desagradável; pois sabem que quemalcança o poder agrada em quase tudo o que diz e faz, e mesmoquando desagrada parece ainda agradar. — Também o espíritolivre, e igualmente o indivíduo crente, querem ter poder, para comele agradar; quando, por causa de sua doutrina, são ameaçados deum mau destino, de perseguição, cárcere, execução, eles se

comprazem no pensamento de que desse modo sua doutrina serágravada e marcada a fogo na humanidade; tomam isso como ummeio doloroso, mas potente, embora de ação retardada, para afinalalcançar o poder.

596. Casus belli e outros casos. — O príncipe que inventa umcasus belli [motivo de guerra], uma vez tomada a decisão de fazer guerra ao vizinho, é como o pai que atribui ao filho uma outra mãe,que deverá ser tida como a verdadeira. Os motivos declarados denossas ações não seriam quase todos como essas mães supostas?

597.  Paixão e direito. — Ninguém fala com mais paixão deseus direitos do que aquele que no fundo da alma tem dúvida em

relação a esses direitos. Levando a paixão para o seu lado, ele quer entorpecer a razão e suas dúvidas: assim adquire uma boaconsciência, e com ela o sucesso entre os homens.

598.   Artif ício do abstinente. — Quem protesta contra ocasamento, à maneira dos padres católicos, procurará entendê-lo nasua concepção mais baixa, mais vulgar. De modo igual, quem

recusa as honras dos contemporâneos apreenderá o conceito dehonra de uma forma baixa; assim torna mais fáceis, para si mesmo,

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a privação e a luta contra ela. Além disso, aquele que em geralrenuncia a muita coisa será mais indulgente consigo em coisasmenores. É possível que aquele que se eleva acima do aplauso doscontemporâneos não queira renunciar à satisfação de pequenasaidades.

599.  Idade da presunção. — O autêntico período de presunção,nos homens de talento, está entre os vinte e seis e os trinta anos deidade; é o tempo da primeira maturação, com um forte resto deacidez. Com base no que sentem dentro de si, exigem respeito ehumildade de pessoas que pouco ou nada percebem deles, e,

faltando isso num primeiro momento, vingam-se com aquele olhar,aquele gesto presunçoso, aquele tom de voz que um ouvido e umolho sutis reconhecem em todas as produções dessa idade, sejam poemas ou filosofias, pinturas ou composições. Homens mais

elhos e mais experientes sorriem diante disso, e comovidos serecordam dessa bela idade da vida, na qual nos irritamos com aicissitude de ser   tanto e parecer   tão pouco. Depois parecemos

mais, é verdade — mas perdemos a boa crença de sermos  muitacoisa: que continuemos então a ser, por toda a vida, incorrigíveistolos vaidosos.

600.  Ilusório, porém firme. — Assim como, para passar juntoa um precipício ou cruzar uma frágil ponte sobre um rio profundo,necessitamos de um corrimão, não para nos agarrar a ele — poislogo se romperia conosco —, mas para despertar na visão a idéiada segurança, assim também precisamos, quando jovens, de pessoas que inconscientemente nos prestem o serviço daquelecorrimão. É verdade que elas não nos ajudariam, se realmente nosapoiássemos nelas em caso de perigo, mas dão a impressãotranqüilizadora de que há uma proteção ao lado (os pais,

 professores e amigos, por exemplo, tais como são normalmente ostrês).

601.  Aprender a amar . — É preciso aprender a amar, aprender a ser bom, e isso desde a juventude; se a educação e o acaso nãonos derem oportunidade para a prática desses sentimentos, nossaalma se tornará seca e até mesmo inapta para um entendimento das

delicadas invenções dos seres amorosos. Da mesma maneira deve oódio ser aprendido e alimentado, caso se queira odiar adequadamente: do contrário, também o seu germe se extinguirá pouco a pouco.

602.  As ruínas como adorno. — Aqueles que passam por freqüentes mudanças espirituais conservam algumas idéias ehábitos dos estados anteriores, que então, como fragmentos deinexplicável antigüidade, como cinzentas muralhas, afloram em seunovo modo de pensar e agir: muitas vezes adornando toda a região.

603.  Amor e reverência. — O amor deseja, o medo evita. Por causa disso não podemos ser amados e reverenciados pela mesma

 pessoa, não no mesmo período de tempo, pelo menos. Pois quemreverencia reconhece o poder, isto é, o teme: seu estado é de

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medo-respeito.161 Mas o amor não reconhece nenhum poder, nadaque separe, distinga, sobreponha ou submeta. E, como ele nãoreverencia, pessoas ávidas de reverência resistem aberta ousecretamente a serem amadas.

604.  Preconceito a favor das pessoas frias. — Pessoas querapidamente pegam fogo se esfriam depressa, sendo então de pouca confiança. Por isso as que são sempre frias, ou assim secomportam, têm a seu favor o preconceito de que são particularmente seguras e dignas de confiança: são confundidascom aquelas que pegam fogo lentamente e o conservam por muito

tempo.

605. O que há de perigoso nas opiniões livres. — O contatoligeiro com opiniões livres é algo que estimula, uma espécie decomichão; cedendo a ela, começamos a coçar o ponto; até queenfim aparece uma dolorosa ferida aberta, ou seja: até que a opiniãolivre começa a nos perturbar, a nos atormentar na posição que

temos na vida, em nossas relações humanas.

606.  O desejo de uma dor profunda . — A paixão deixa, ao passar, um obscuro anseio por ela, e ao desaparecer ainda lança umolhar sedutor. Deve ter havido uma espécie de prazer em ser golpeado por seu açoite. Os sentimentos mais moderados parecem

insípidos, em comparação; ao que parece, preferimos ainda ummais intenso desprazer a um prazer mortiço.

607.  Mau humor com os outros e com o mundo. — Quando,como é tão freqüente, desafogamos nosso mau humor nos outros,e na realidade o sentimos em relação a nós mesmos, o que nofundo procuramos é anuviar e enganar o nosso julgamento:

queremos motivar esse mau humor a posteriori, mediante os erros,as deficiências dos outros, e assim não ter olhos para nós mesmos. — Os homens religiosamente severos, juízes implacáveis consigomesmos, foram também os que mais denegriram a humanidade:nunca houve um santo que reservasse para si os pecados e para osoutros as virtudes; e tampouco alguém que, conforme o preceitodo Buda, ocultasse às pessoas o que tem de bom e lhes deixasseer apenas o que tem de mau.

608.  Confusão entre causa e efeito . — Inconscientemente buscamos os princípios e as teorias adequados ao nossotemperamento, de modo que afinal parece que esses princípios eteorias criaram o nosso caráter, deram-lhe firmeza e segurança:

quando aconteceu justamente o contrário. O nosso pensamento eulgamento, assim parece, é transformado posteriormente em causade nosso ser: mas na realidade é nosso ser a causa de pensarmos eulgarmos desse ou daquele modo. — E o que nos induz a essacomédia quase inconsciente? A indolência e a comodidade, etambém o desejo vaidoso de ser considerado inteiramenteconsistente, uniforme no ser e no pensar: pois isso conquista

respeito, empresta confiança e poder.

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609.  Idade e verdade. — Os jovens amam o que é interessantee peculiar, não importa até onde seja verdadeiro ou falso. Espíritosmais maduros amam na verdade aquilo que nela é interessante e peculiar. Por fim, cabeças totalmente amadurecidas amam a

erdade também onde ela parece ingênua e simples e é enfadonha para o homem comum, porque notaram que a verdade costumadizer com ar de simplicidade o que tem de mais alto em espírito.

610. Os seres humanos como maus poetas. — Assim como, nasegunda metade do verso, os maus poetas buscam o pensamentoque se ajuste à rima, na segunda metade da vida, tendo se tornado

mais receosas, as pessoas buscam as ações, atitudes e situaçõesque combinem com as de sua vida anterior, de modo queexteriormente tudo seja harmonioso: mas sua vida já não édominada e repetidamente orientada por um pensamento forte; nolugar deste surge a intenção de encontrar uma rima.

611. O tédio e o jogo. — A necessidade nos obriga ao trabalho,

e com o produto deste a necessidade é satisfeita; o contínuoredespertar das necessidades nos acostuma ao trabalho. Mas nosintervalos em que as necessidades estão satisfeitas e dormem, por assim dizer, somos assaltados pelo tédio. O que é o tédio? É ohábito do trabalho mesmo, que se faz valer como uma necessidadenova e adicional; será tanto mais forte quanto mais estivermoshabituados a trabalhar, e talvez quanto mais tivermos sofridonecessidades. Para escapar ao tédio, ou o homem trabalha além damedida de suas necessidades normais ou inventa o jogo, isto é, otrabalho que não deve satisfazer nenhuma outra necessidade a nãoser a de trabalho. Quem se fartou do jogo, e não tem novasnecessidades que lhe dêem motivo para trabalhar, é às vezestomado pelo desejo de uma terceira condição, que está para o jogo

assim como o pairar para o dançar, e o dançar para o caminhar,uma movimentação jubilosa e serena: é a visão da felicidade quetêm os artistas e filósofos.

612.  A lição dos retratos. — Observando uma série de retratosde nós mesmos, do final da infância à idade adulta, somosagradavelmente surpreendidos pela descoberta de que o homem se

 parece mais com a criança do que com o jovem: e que, provavelmente em consonância com esse fato, sobreveio nesseínterim uma temporária alienação do caráter básico, à qualnovamente se impôs a força acumulada e concentrada do homemadulto. A esta percepção corresponde outra, a de que todas asfortes influências das paixões, dos mestres, dos acontecimentos políticos, que nos arrastam na juventude, aparecem depoisnovamente reduzidas a uma medida fixa: sem dúvida, continuam aiver e a atuar em nós, mas a sensibilidade e as opiniões básicas

 predominam e as usam como fontes de energia, não mais comoreguladores, porém, como ocorre aos vinte anos. De modo quetambém o pensar e sentir do homem adulto parece novamente maisconforme ao de sua infância — e esse fato interior se expressanaquele exterior, mencionado acima.

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613. Tom de voz das idades. — O tom no qual os jovens falam,elogiam, censuram, escrevem, desagrada aos mais velhos por ser alto demais, e ao mesmo tempo surdo e indistinto como o somdentro de uma abóbada, que adquire ressonância por causa doazio; pois a maior parte do que os jovens pensam não brota da

 plenitude de sua natureza, mas ressoa e ecoa o que foi pensado,falado, elogiado e censurado ao seu redor. Mas como ossentimentos (de atração e de aversão) ecoam nos jovens muito maisfortemente do que os motivos por trás deles, forma-se, quandomais uma vez dão voz ao sentimento, aquele tom surdo eretumbante que caracteriza a ausência ou escassez de motivos. O

tom da idade madura é rigoroso, abrupto, moderadamente elevado,mas, como tudo o que é claramente articulado, de alcance vasto.Por fim, a idade freqüentemente confere à voz uma certa brandurae indulgência, e como que a edulcora: em alguns casos também aazeda, sem dúvida.

614.  Homens atrasados e homens antecipadores. — O caráter 

desagradável, que é pleno de desconfiança, que recebe com invejatodos os êxitos de competidores e vizinhos, que é violento e raivosocom opiniões divergentes, mostra que pertence a um estágioanterior da cultura, que é então um resíduo: pois o seu modo delidar com as pessoas era certo e apropriado para as condições deuma época em que vigorava o "direito dos punhos"; ele é umhomem atrasado. Um outro caráter, que prontamente partilha da

alegria alheia, que conquista amizades em toda parte, que temafeição pelo que cresce e vem a ser, que tem prazer com as honrase sucessos de outros e não reivindica o privilégio de sozinhoconhecer a verdade, mas é pleno de uma modesta desconfiança — este é um homem antecipador, que se move rumo a uma superior cultura humana. O caráter desagradável procede de um tempo emque os toscos fundamentos das relações humanas estavam por ser construídos; o outro vive nos andares superiores destas relações, omais afastado possível do animal selvagem que encerrado nos porões, sob os fundamentos da cultura, uiva e esbraveja.

615.  Consolo para hipocondríacos. — Quando um grande pensador se acha momentaneamente sujeito à tortura da

hipocondria, pode consolar a si mesmo com estas palavras: "É desua grande força que este parasita se alimenta e cresce; se ela fossemenor, você teria menos com que sofrer". Assim também pode oestadista falar, quando os ciúmes e o sentimento de vingança, emsuma, o ânimo do bellum omnum contra omnes  [guerra de todoscontra todos], do qual ele, como representante de uma nação, devenecessariamente ser bastante capaz, ocasionalmente se introduz

também nas relações pessoais e lhe torna a vida difícil.

616.   Alienado do presente. — Há grandes vantagens emalguma vez alienar-se muito de seu tempo e ser como que arrastadode suas margens, de volta para o oceano das antigas concepções domundo. Olhando para a costa a partir de lá, abarcamos pela primeira vez sua configuração total, e ao nos reaproximarmos delateremos a vantagem de, no seu conjunto, entendê-la melhor do queaqueles que nunca a deixaram.

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617.  Semear e colher nas deficiências pessoais. — Homenscomo Rousseau sabem utilizar suas fraquezas, lacunas e vícioscomo adubo para seu talento, por assim dizer. Quando ele lamentaa corrupção e degeneração da sociedade como triste conseqüênciada cultura, isso tem por base a experiência pessoal; a amarguradesta proporciona agudeza à sua condenação geral e envenena asflechas que ele dispara; ele se desoprime inicialmente comoindivíduo, e pensa em buscar um remédio que seja útil diretamenteà sociedade, mas também indiretamente, por meio dela, a ele próprio.

618. Ter espírito filosófico. — Habitualmente nos empenhamosem alcançar, ante todas as situações e acontecimentos da vida, umaatitude mental, uma maneira de ver as coisas — sobretudo a isto sechama ter espírito filosófico. Para enriquecer o conhecimento, noentanto, pode ser de mais valor não se uniformizar desse modo,mas escutar a voz suave das diferentes situações da vida; elastrazem consigo suas próprias maneiras de ver. Assim participamos

atentamente162 da vida e da natureza de muitos, não tratando a nósmesmos como um indivíduo fixo, constante, único.

619.  No fogo do desprezo. — É um novo passo rumo àindependência, ousar expressar opiniões que são tidas comoergonhosas para quem as possui; também os amigos e conhecidos

costumam então ficar receosos. A pessoa dotada deve passar também através desse fogo; depois disso pertencerá muito mais a simesma.

620.  Sacrifício. — Havendo a escolha, deve-se preferir umgrande sacrifício a um pequeno: pois compensamos o grandesacrifício com a auto-admiração, o que não é possível no caso do

 pequeno.

621.  O amor como artifício. — Quem realmente quiser conhecer  algo novo (seja uma pessoa, um evento ou um livro), fará bem em receber esta novidade com todo o amor possível, erapidamente desviar os olhos e mesmo esquecer tudo o que nela pareça hostil, desagradável, falso: de modo a dar ao autor de umlivro, por exemplo, uma boa vantagem inicial, e, como se estivessenuma corrida, desejar ardentemente que ele atinja sua meta. Poisassim penetramos até o coração, até o centro motor da coisa nova:o que significa justamente conhecê-la. Se alcançamos este ponto, arazão pode fazer suas restrições; a superestimação, a desativaçãotemporária do pêndulo crítico, foi somente um artifício para fazer 

aparecer a alma de uma coisa.

622.  Pensando bem demais e mal demais do mundo. — Se pensamos bem demais ou mal demais das coisas, sempre temos a

antagem de colher uma satisfação superior: com uma opinião preconcebida que é boa demais, geralmente introduzimos nascoisas (nas vivências) mais doçura do que elas realmente contêm.

Uma opinião preconcebida que é ruim demais produz uma decepçãoagradável: o que havia de agradável nas coisas é aumentado pelo

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agradável da surpresa. — Mas um temperamento sombrio terá aexperiência inversa em ambos os casos.

623.   Homens profundos. — Aqueles cuja força está na

 profundidade das impressões — geralmente chamados de homens profundos — são relativamente controlados e decididos ante o quesurge de repente: pois no primeiro momento a impressão era aindasuperficial, só depois se torna profunda. Coisas e pessoas há muitoesperadas e previstas, porém, são as que mais agitam essasnaturezas, tornando-as, ao chegar finalmente, quase incapazes demanter a presença de espírito.

624.  Relações com o eu superior . — Cada pessoa tem o seu dia bom, em que descobre o seu eu superior; e a verdadeirahumanidade exige que alguém seja avaliado conforme esse estado, enão conforme seus "dias de semana" de cativeiro e sujeição. Deve-se, por exemplo, julgar e reverenciar um pintor segundo a visãomais elevada que ele pôde ver e representar. Mas os próprios

indivíduos se relacionam de modo muito variado com este eusuperior, e com freqüência são atores de si mesmos, na medida emque depois repetem continuamente o que são nesses momentos.Muitos vivem no temor e na humildade frente a seu ideal, e bemgostariam de negá-lo: temem o seu eu superior, porque este,quando fala, fala de modo exigente. Além disso, ele possui umaespectral liberdade de aparecer ou de permanecer ausente; por issoé freqüentemente chamado de dom dos deuses, quando tudo omais, na realidade, é dom dos deuses (do acaso): ele, porém, é a própria pessoa.

625.  Pessoas solitárias. — Existem pessoas tão habituadas aestar só consigo mesmas, que não se comparam absolutamente

com outras, mas, com disposição alegre e serena, em boasconversas consigo e até mesmo sorrisos, continuam tecendo suaida-monólogo. Se as levamos a se comparar com outras, tendem a

uma cismadora subestimação de si mesmas: de modo que devemser obrigadas a reaprender  com os outros uma opinião boa e justasobre si: e também dessa opinião aprendida quererão deduzir erebaixar alguma coisa. — Portanto, devemos conceder a certos

indivíduos a sua solidão e não ser tolos a ponto de lastimá-los,como freqüentemente sucede.

626.  Sem melodia. — Há pessoas nas quais um constanterepousar em si mesmas e uma harmoniosa disposição dasfaculdades são tão próprios, que lhes repugna qualquer atividadedirigida para um fim. Elas semelham uma música que consisteapenas em acordes harmônicos sustentados por longo tempo, semmostrar sequer o início de um movimento melódico articulado.Toda movimentação vinda de fora serve apenas para dar imediatamente a seu barco um novo equilíbrio, no lago daconsonância harmônica. Em geral as pessoas modernas ficammuito impacientes, ao se defrontar com essas naturezas que nada

s e tornam, sem que delas se possa dizer que nada são. Mas háestados de espírito em que a sua visão desperta a pergunta

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inusitada: para que melodia, afinal? Por que não nos basta que aida se espelhe quietamente num lago profundo? — A Idade Média

era mais rica em tais naturezas do que o nosso tempo. Como é raroainda encontrarmos alguém capaz de seguir vivendo de maneira pacífica e alegre consigo também no torvelinho, dizendo a simesmo as palavras de Goethe: "O melhor é a calma profunda emque diante do mundo eu vivo e cresço, e adquiro o que não me podem tirar com o fogo e com a espada".163

627.  Vida e vivência . — Se observamos como algunsindivíduos sabem lidar com suas vivências — suas insignificantes

ivências diárias —, de modo a elas se tornarem uma terra arávelque produz três vezes por ano; enquanto outros — muitos outros! — são impelidos através das ondas dos destinos mais agitados, dasmultifárias correntes de tempos e povos, e no entanto continuamleves, sempre em cima, como cortiça: então ficamos tentados adividir a humanidade numa minoria ("minimaria")164  que sabetransformar o pouco em muito e numa maioria que sabe

transformar muito em pouco; sim, deparamos com esses bruxos aoavesso, que, em vez de criar o mundo a partir do nada, criam onada a partir do mundo.

628.   A seriedade no jogo. — Em Gênova, à hora docrepúsculo, ouvi o prolongado repicar dos sinos de uma torre: algoque não queria parar e, como que insaciável de si mesmo, ressoava por sobre o ruído das ruas, pelo céu vespertino e o ar marinho, tãosinistro e ao mesmo tempo tão pueril, tão melancólico. Então merecordei das palavras de Platão, e de imediato as senti no coração:

ada humano é digno de grande seriedade; no entanto...165

629.  Da convicção e da justiça. — Aquilo que um homem diz,

 promete e decide na paixão deve depois sustentar na frieza e nasobriedade — tal exigência é um dos fardos que mais pesam sobrea humanidade. Ter de reconhecer, por todo o tempo futuro, asconseqüências da ira, da vingança inflamada, da devoçãoentusiasmada — isto pode suscitar, contra esses sentimentos, umairritação tanto maior por eles serem objeto de idolatria, em toda parte e sobretudo pelos artistas. Estes cultivam largamente a estima

das paixões, e sempre o fizeram; é certo que também exaltam asterríveis reparações pela paixão que o indivíduo obtém de simesmo, as erupções de vingança acompanhadas de morte,mutilação, exílio voluntário, e a resignação do coração partido. Emtodo caso, mantêm desperta a curiosidade pelas paixões; é como sequisessem dizer: "Sem paixões, vocês nada viveram". — Por termos jurado fidelidade, talvez até a um ser apenas fictício como

um deus, por termos entregado o coração a um príncipe, a um partido, a uma mulher, a uma ordem sacerdotal, a um artista, a um pensador, num estado de cega ilusão que nos pôs encantados e osfez parecerem dignos de toda veneração, todo sacrifício — estamos agora inescapavelmente comprometidos? Não teríamosenganado a nós mesmos naquela época? Não teria sido uma promessa hipotética, feita sob o pressuposto (tácito, sem dúvida)de que os seres aos quais nos consagramos eram realmente osmesmos que apareciam em nossa imaginação? Estamos obrigados a

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ser fiéis aos nossos erros, ainda percebendo que com essafidelidade causamos prejuízo ao nosso eu superior? — Não, nãoexiste nenhuma lei, nenhuma obrigação dessa espécie; temos de nostornar traidores, praticar a infidelidade, sempre abandonar nossosideais. Não passamos de um período a outro da vida sem causar essas dores da traição e sem sofrê-las também. Não serianecessário, para evitar essas dores, nos guardarmos dos fervoresde nossos sentimentos? O mundo não se tornaria ermo demais,espectral demais para nós? Perguntemo-nos antes se tais dores por uma mudança de convicção são necessárias, e se não dependem deuma opinião e avaliação errada. Por que admiramos aquele que

 permanece fiel às suas convicções e desprezamos aquele que asmuda? Receio que a resposta tenha de ser: porque todos pressupõem que apenas motivos de baixo interesse ou de medo pessoal provocam tal mudança. Ou seja: no fundo acreditamos queninguém muda sua opinião enquanto ela lhe traz vantagem ou, pelomenos, enquanto não lhe causa prejuízo. Se for assim, porém, eisaí um péssimo atestado da significação intelectual  das convicções.

Examinemos como se formam as convicções, e observemos se nãosão grandemente superestimadas: com isto se verificará quetambém a mudança  de convicção é sempre medida conforme umcritério errado, e que até hoje tivemos o costume de sofrer demaiscom tais mudanças.

630.  Convicção é a crença de estar, em algum ponto do

conhecimento, de posse da verdade absoluta. Esta crença pressupõe, então, que existam verdades absolutas; e, igualmente,que tenham sido achados os métodos perfeitos para alcançá-las; por fim, que todo aquele que tem convicções se utilize dessesmétodos perfeitos. Todas as três asserções demonstram deimediato que o homem das convicções não é o do pensamentocientífico; ele se encontra na idade da inocência teórica e é umacriança, por mais adulto que seja em outros aspectos. Milêniosinteiros, no entanto, viveram com essas pressuposições pueris, edelas brotaram as mais poderosas fontes de energia da humanidade.Os homens inumeráveis que se sacrificaram por suas convicçõesacreditavam fazê-lo pela verdade absoluta. Nisso estavam todoserrados: provavelmente nenhum homem se sacrificou jamais pela

erdade; ao menos a expressão dogmática de sua crença terá sidonão científica ou semicientífica. Mas realmente queriam ter razão, porque achavam que deviam  ter razão. Permitir que lhes fossearrancada a sua crença talvez significasse pôr em dúvida a sua própria beatitude eterna. Num assunto de tal extrema importância, a"vontade" era perceptivelmente a instigadora do intelecto.166  A pressuposição de todo crente de qualquer tendência era não pode

ser refutado; se os contra-argumentos se mostrassem muito fortes,sempre lhe restava ainda a possibilidade de difamar a razão e atémesmo levantar o credo quia absurdum est   [creio porque éabsurdo] como bandeira do extremado fanatismo. Não foi oconflito de opiniões que tornou a história tão violenta, mas oconflito da fé nas opiniões, ou seja, das convicções. Se todosaqueles que tiveram em tão alta conta a sua convicção, que lhe

fizeram sacrifícios de toda espécie e não pouparam honra, corpo eida para servi-la, tivessem dedicado apenas metade de sua energia

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a investigar com que direito se apegavam a esta ou àquelaconvicção, por que caminho tinham a ela chegado: como semostraria pacífica a história da humanidade! Quanto maisconhecimento não haveria! Todas as cruéis cenas, na perseguiçãoaos hereges de toda espécie, nos teriam sido poupadas por duasrazões: primeiro, porque os inquisidores teriam inquirido antes detudo dentro de si mesmos, superando a pretensão de defender aerdade absoluta; segundo, porque os próprios hereges não teriam

demonstrado maior interesse por teses tão mal fundamentadascomo as dos sectários e "ortodoxos" religiosos, após tê-lasexaminado.

631. Dos tempos em que os homens estavam habituados a crer na posse da verdade absoluta deriva um profundo mal-estar   comtodas as posições céticas e relativistas ante alguma questão doconhecimento; em geral preferimos nos entregar incondicionalmente a uma convicção tida por pessoas de autoridade(pais, amigos, professores, príncipes), e sentimos uma espécie de

remorso quando não o fazemos. Tal inclinação é perfeitamentecompreensível, e suas conseqüências não nos dão direito acensuras violentas ao desenvolvimento da razão humana. Aos poucos, no entanto, o espírito científico deve amadurecer nohomem a virtude da cautelosa abstenção, o sábio comedimento queé mais conhecido no âmbito da vida prática que no da vida teórica,e que Goethe, por exemplo, apresentou em Antonio como alvo de

irritação para todos os Tassos, ou seja, para as naturezas nãocientíficas e também passivas.167  O homem de convicção tem odireito de não entender o homem do pensamento cauteloso, oteórico Antonio; o homem científico, por sua vez, não tem o direitode criticá-lo por isso, é indulgente para com o outro e sabe que emdeterminado caso este ainda se apegará a ele, como Tasso fez afinalcom Antonio.

632.  Quem não passou por diversas convicções, mas ficou preso à fé em cuja rede se emaranhou primeiro, é em todas ascircunstâncias, justamente por causa dessa imutabilidade, umrepresentante de culturas atrasadas;168 em conformidade com estaausência de educação (que sempre pressupõe educabilidade), ele é

duro, irrazoável, incorrigível, sem brandura, um eternodesconfiado, um inescrupuloso, que emprega todos os meios paraimpor sua opinião, por ser incapaz de compreender que têm deexistir outras opiniões; assim considerado, ele é talvez uma fonte deforça, e em culturas que se tornaram demasiado livres e frouxas éaté mesmo salutar, mas apenas porque incita fortemente àoposição; pois a delicada estrutura da nova cultura que é obrigada a

lutar contra ele se tornará forte ela mesma.

633. Ainda somos, no essencial, os mesmos homens da épocada Reforma: como poderia ser diferente? Mas o fato de já não nos permitirmos certos meios de contribuir para a vitória de nossasopiniões nos diferencia daquele tempo, e prova que pertencemos auma cultura superior. Quem ainda hoje combate e derruba opiniõescom suspeitas, com acessos de raiva, como se fazia durante aReforma, revela claramente que teria queimado os seus rivais, se

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sobretudo no âmbito da política. — Por isso cada um, atualmente,deveria chegar a conhecer no mínimo uma  ciência a fundo: entãosaberia o que é método e como é necessária uma extremacircunspecção. Sobretudo às mulheres deve-se dar esse conselho;sendo elas hoje, irremediavelmente, vítimas de todas as hipóteses,em especial quando estas dão a impressão de algo inteligente,arrebatador, animador, revigorante. De fato, uma observação mais precisa revela que a grande maioria das pessoas educadas ainda pede ao pensador convicções e nada além disso, e que somenteuma pequena minoria quer certeza. As primeiras querem ser fortemente arrebatadas, para desse modo alcançarem maior força

elas mesmas; as outras, poucas, têm o interesse objetivo que nãoconsidera as vantagens pessoais, nem mesmo a referida maior força. Em toda parte onde o pensador se comporta e se designacomo gênio, isto é, quando olha os demais como um ser superior ao qual compete a autoridade, ele conta com aquela classe de pessoas, de longe a predominante. Na medida em que o gênio dessaespécie mantém o fervor das convicções e provoca desconfiança

frente ao espírito modesto e cauteloso da ciência, ele é um inimigoda verdade, por mais que acredite ser seu enamorado pretendente.

636.  É certo que há uma espécie bastante diversa degenialidade, a da justiça; e de modo algum posso me resolver aconsiderá-la inferior a uma outra genialidade, seja filosófica, políticaou artística. É de sua natureza evitar, com sentida indignação, tudo

aquilo que ofusca e confunde o julgamento acerca das coisas; ela é, portanto, uma adversária das convicções, pois quer dar a cadacoisa, viva ou morta, real ou imaginada, o que é seu — e para issodeve conhecê-la exatamente; por isso põe cada coisa na melhor dasluzes e anda à sua volta com olhar cuidadoso. Enfim, dá até mesmoà sua adversária, a cega ou míope "convicção" (como é chamada pelos homens; as mulheres a chamam de "fé"), aquilo que é daconvicção — em nome da verdade.

637.  É das paixões  que brotam as opiniões; a inércia doespírito  as faz enrijecerem na forma de convicções. Mas quemsente o seu próprio espírito livre e infatigavelmente vivo pode evitar esse enrijecimento mediante uma contínua mudança; e se no

conjunto ele for mesmo uma bola de neve pensante, não terá nacabeça opiniões, mas apenas certezas e probabilidades medidascom precisão. Mas nós, que somos seres mistos, ora inflamados pelo fogo, ora resfriados pelo espírito, queremos nos ajoelhar ante aJustiça, como a única deusa que reconhecemos acima de nós. Oogo em nós nos faz habitualmente injustos, e também impuros no

sentido dessa deusa; nesse estado nunca nos é permitido tomar de

sua mão, e jamais pousa sobre nós o grave sorriso de suacomplacência. Nós a adoramos como a velada Ísis de nossa vida;envergonhados lhe oferecemos nossa dor como penitência esacrifício, quando o fogo nos queima e nos quer consumir. Oespírito é que nos salva, de modo a não ardermos e virarmos cinzastotalmente; de vez em quando ele nos arranca do altar sacrificial daJustiça, ou nos envolve num tecido de amianto. Salvos do fogo,

avançamos instigados pelo espírito, de opinião em opinião, atravésda mudança de partidos, como nobres traidores  de todas as coisas

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que podem ser traídas — e no entanto sem sentimento de culpa.

638.  O  andarilho. — Quem alcançou em alguma medida aliberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre

a Terra — e não um viajante que se dirige a uma meta final: poisesta não existe. Mas ele observará e terá olhos abertos para tudoquanto realmente sucede no mundo; por isso não pode atrelar ocoração com muita firmeza a nada em particular; nele deve existir algo de errante, que tenha alegria na mudança e na passagem. Semdúvida esse homem conhecerá noites ruins, em que estará cansadoe encontrará fechado o portão da cidade que lhe deveria oferecer 

repouso; além disso, talvez o deserto, como no Oriente, chegue atéo portão, animais de rapina uivem ao longe e também perto, umento forte se levante, bandidos lhe roubem os animais de carga.

Sentirá então cair a noite terrível, como um segundo deserto sobreo deserto, e o seu coração se cansará de andar. Quando surgir então para ele o sol matinal, ardente como uma divindade da ira,quando para ele se abrir a cidade, verá talvez, nos rostos que nela

ivem, ainda mais deserto, sujeira, ilusão, insegurança do que nooutro lado do portão — e o dia será quase pior do que a noite. Isso bem pode acontecer ao andarilho; mas depois virão, comorecompensa, as venturosas manhãs de outras paragens e outrosdias, quando já no alvorecer verá, na neblina dos montes, os bandos de musas passarem dançando ao seu lado, quando maistarde, no equilíbrio de sua alma matutina, em quieto passeio entre

as árvores, das copas e das folhagens lhe cairão somente coisas boas e claras, presentes daqueles espíritos livres que estão em casana montanha, na floresta, na solidão, e que, como ele, em suamaneira ora feliz ora meditativa, são andarilhos e filósofos. Nascidos dos mistérios da alvorada, eles ponderam como é possível que o dia, entre o décimo e o décimo segundo toque dosino, tenha um semblante assim puro, assim tão luminoso, tãosereno-transfigurado: — eles buscam a filosofia da manhã.

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ENTRE AMIGOS:UM EPÍLOGO

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UNTER FREUNDEN Ein Nachspiel 

1.Schön ist’s, mit einander schweigen,Schöner, mit einander lachen, — Unter seidenem Himmels-Tuche Hingelehnt zu Moos und Buche Lieblich laut mit Freunden lachen

Und sich weiße Zähne zeigen.

 Macht’ ich’s gut, so woll’n wir schweigen; Macht’ ich’s schlimm —, so woll’n wir lachenUnd es immer schlimmer machen,Schlimmer machen, schlimmer lachen,

 Bis wir in die Grube steigen. Freunde! Ja! So soll’s geschehen? —  Amen! Und auf Wiedersehn!

2. Kein Entschuld’gen! Kein Verzeihen!Gönnt ihr Frohen, Herzens-Freien

 Diesem unvernünft’gen BucheOhr und Herz und Unterkunft!Glaubt mir, Freunde, nicht zum FlucheWard mir meine Unvernunft!

Was ich f inde, was ich suche —,Stand das je in einem Buche? Ehrt in mir die Narren-Zunft!

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ENTRE AMIGOSUm epílogo169

1.É belo guardar silêncio juntosAinda mais belo sorrir juntos — Sob a tenda do céu de sedaEncostado ao musgo da faiaDar boas risadas com os amigos

Os dentes brancos mostrando.

Se fiz bem, vamos manter silêncio;Se fiz mal — vamos rir entãoE fazer sempre pior,Fazendo pior, rindo mais alto

Até descermos à cova.

Amigos! Assim deve ser? — Amém! E até mais ver!

2.Sem desculpas! Sem perdão!

Vocês contentes, de coração livre,Queiram dar, a este livro irrazoável,Ouvido, coração e abrigo!Creiam, amigos, a minha desrazão Não foi para mim uma maldição!

O que eu acho, o que eu busco —,Já se encontrou em algum livro?Queiram honrar em mim os tolos! Lernt aus diesem Narrenbuche,Wie Vernunft kommt — "zur Vernunft"!

 Also, Freunde, soll's geschehen? — 

 Amen! Und au f Wiedersehn!E aprender, com este livro insano,Como a razão chegou — "à razão"!Então, amigos, assim deve ser?Amém! e até mais ver!

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 NOTAS

Como nos outros volumes desta Coleção das Obras de Nietzsche, estas notas não pretendem ser comentários ao texto,mas apenas elucidações de referências e explicações para asescolhas do tradutor. Para esclarecer as referências foramutilizadas obras gerais de consulta (dicionários, enciclopédias),algumas versões estrangeiras deste livro e o volume de notas daedição crítica de Colli e Montinari (vol. 14). A tradução foi feita

com base na edição de Karl Schlechta (Werke, vol. I, Frankfurt,Ullstein, 1979), sempre cotejada com a referida edição de Colli eMontinari ( Kritische Studienausgabe, vol. 2, 2a ed. rev., Munique,DTV/ de Gruyter, 1988).

Uma tradução deste livro foi feita anteriormente por José CarlosMartins Barbosa, por solicitação do coordenador da coleção. Aintenção original era publicar Humano, demasiado humano

untamente com Além do bem e do mal   (lançado em 1992), paracom os dois volumes dar início à coleção de Nietzsche. Por váriosmotivos não foi publicada a primeira versão. Foi feita uma nova,que aqui se oferece ao público. Ao lado das traduções estrangeirasconsultadas, a tradução anterior foi (com autorização do tradutor)aproveitada nas notas, onde são reproduzidas as diferentes opções para determinados termos ou frases do original. Cada tradução, oleitor notará, constitui um ponto de vista em relação ao texto de Nietzsche. Portanto, a transcrição de outras soluções contribui paraenriquecer a presente edição.

As versões estrangeiras consultadas foram: uma espanhola,feita por Carlos Vergara (Madri, EDAF, 1998 [1984]); uma italiana, por Sossio Giametta e Mazzino Montinari (Milão, Oscar 

Mondadori, 1970); duas francesas, uma antiga, por A.-M.Desrousseaux (Paris, Denoël/Gonthier, 1982 [1910]), e outra maisrecente, por Robert Rovini (Paris, Gallimard, 1968); uma inglesa, por R. J. Hollingdale (Cambridge University Press, 1986); e duasamericanas: uma feita por Marion Faber, com a assistência deStephen Lehmann (University of Nebraska Press, 1984), a outra por Gary Handwerk (vol. 3 da edição dos Complete works o

riedrich Nietzsche, em andamento, Stanford University Press,1997). Elas serão citadas nesta ordem, normalmente. Não será feitaindicação de páginas, pois os números das seções bastam paralocalizá-las. O fato de termos utilizado essas versões, entre asárias que existem em cada língua, não significa que sejam as

melhores: foram aquelas a que tivemos acesso. Cabe agradecer aUbirajara Rebouças, João Henrique de Man e Maria Angélica

Almeida, que ajudaram a obtê-las. Maria Angélica também fez umaleitura atenta do texto traduzido e sugeriu mudanças em algunstrechos que não estavam claros.

Pouco antes de enviar esta tradução para a editora, soubemosque há uma edição portuguesa de Humano, demasiado humano, publicada pela Relógio d'Água, de Lisboa. Fica então registrada aexistência dessa outra versão, que não chegamos a utilizar.

Por fim, observemos que uma tradução mais rigorosa do títuloseria "Coisas (ou temas, ou questões) humanas, demasiado

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humanas", pois o adjetivo menschlich  ("humano") vemsubstantivado; o substantivo, "coisas" (ou "temas", ou "questões"),está implícito. Mas, naturalmente, Humano, demasiado humano  éuma versão mais satisfatória, sendo já uma expressão consagradaem português.

PRÓLOGO

(1) O prólogo atual foi acrescentado por Nietzsche em 1886. A primeira edição de Humano, demasiado humano, impressa em abril

de 1878, trazia também, na página de rosto, a seguinte frase:"Dedicado à memória de Voltaire, em comemoração do aniversáriode sua morte, [ocorrida] em 30 de maio de 1778". E no verso da página lia-se ainda: "Este livro monológico, que surgiu durante umaestadia de inverno em Sorrento (1876-7), não seria dado a públicoagora, se a proximidade do dia 30 de maio de 1878 não houvesseestimulado vivamente o desejo de prestar uma homenagem pessoal

a um dos grandes libertadores do espírito".O texto seguinte foi igualmente omitido pelo autor na segunda

edição:"No lugar de um prólogo"Durante um certo tempo, examinei as diferentes ocupações a

que os homens se entregam nesta vida, e procurei escolher amelhor entre elas. Mas não é preciso relatar aqui os pensamentosque então me vieram: basta dizer que, de minha parte, nada pareciamelhor do que me ater firmemente ao meu propósito, isto é,empregar todo o meu prazo de vida em cultivar minha razão e buscar a trilha da verdade, tal como me havia proposto. Pois osfrutos que já tinha provado nesse caminho eram tais que nesta vida,segundo meu julgamento, nada se poderia encontrar de maisagradável e inocente; e depois que me socorri dessa maneira dereflexão, cada dia me fez descobrir algo novo, que tinha algumaimportância e não era em absoluto de conhecimento geral. Entãominha alma se encheu de tamanha alegria, que nada mais poderiaincomodá-la.

"Traduzido do latim de  Descartes" [extraído do Discurso dométodo, 3a parte; traduzido do alemão de Nietzsche].

1. DAS COISAS PRIMEIRAS E ÚLTIMAS

(2) "representações e sentimentos": Vorstellungen und mpfindungen; traduzido da mesma forma na versão de José

Carlos Martins Barbosa; idem na edição espanhola e nas duas

edições francesas consultadas; na italiana, idee e sentimenti; nainglesa, conceptions and sensations; nas duas americanas, ideasand feelings  e representations and sensations . Cf. o título da obrade Paul Rée — então amigo de Nietzsche — publicada pouco antesd e Humano, demasiado humano: Ursprung der moralischen

mpfindungen  ["Origem dos sentimentos (ou sensações, ouimpressões) morais"]. Ver nota sobre "sensação" e "sentimento" emoutro volume desta coleção, Além do bem e do mal   (trad., notas e posfácio Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia das Letras,

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1992, pp. 228-9; 2005, pp. 215-6). Na mesma frase, "emoções"traduz  Regungen, substantivo do verbo regen, "mover, agitar"(também pode ser reflexivo). Os tradutores de línguas neolatinasusaram também "emoções"; os americanos usaram impulses  e stimuli, o inglês preferiu agitations. Na frase anterior,"sublimações" é a versão natural para Sublimierungen; ver, a propósito, nota na mencionada edição de Além do bem e do mal (doravante apenas ABM ), pp. 237-8; bolso, 215-6.

(3) "instintos": Instinkte; a palavra Trieb, "equivalente"germânico do termo latino Instinkt   (na grafia alemã), seránormalmente traduzida por "impulso" na presente edição (cf. nota

sobre Trieb em ABM , pp. 220 ss.; bolso 195 ss.).(4) "cultura superior": tradução dada a höhere   Kultur ;literalmente, "cultura mais elevada". De modo correspondente,empregamos "inferior" para niederer , "mais baixo" — como notítulo do capítulo quinto. Com exceção dos de língua inglesa, queusam higher and lower culture, os tradutores consultados adotamuma ou outra solução: cultura superiore e inferiore  e haute et basse

civilisation, por exemplo.(5) "o olhar inteligente": der geistreiche Blick   — nas outrastraduções: "a visão espiritual", la visión espiritual , lo sguardointelligente, la vision espirituelle, un simple regard où brillel'esprit , the eye of insight , a glance full of intelligence, a spiritelance.

(6) "a suposição de um simulacro corporal da alma": die

nnahme eines Seelenscheinleibes. A primeira palavra (do verboannehmen, "aceitar, supor") é geralmente traduzida por "suposição"ou "hipótese"; mas a segunda, cunhada por Nietzsche, oferecealguma dificuldade, como atestam as diferentes soluções dostradutores: "a hipótese de um exterior corpóreo para a alma", lacreencia en una envoltura aparente del alma , l'ammissione di unaorma corporea dell'anima, la croyance à une enveloppe apparente

de l'âme, l'hypothèse d'un simulacre corporel de l'âme , theostulation of a life of the soul , the assumption of a spiritual 

apparition, the assumption that the soul can appear in bodily form.(7) "explicação pneumática" — "A expressão alude a uma

forma de exegese na qual se supõe que o santo espírito [ pneuma:"sopro, espírito", em grego], e não a análise filológica, revela osentido das palavras" (nota do tradutor americano Gary Handwerk). Na primeira frase desta seção, "eruditos" é uma versão um tanto precária para Gelehrten; os outros tradutores usam, no caso:"eruditos", sabios, dottori,  savants, docteurs,  scholars, idem, idem;cf. nota em ABM , p. 223; bolso 202 (nota 37).

(8) "fenômeno": Erscheinung   — nas demais traduções:"aparência", apariencia, apparenza, apparence,  phénomène,appearance, idem, idem. O substantivo português procede — através do francês — do grego phainomenon  ("que nos chega aossentidos", ligado ao verbo phaino, "tornar visível"); o substantivoalemão é aparentado a scheinen, "brilhar" ( shine, em inglês), eSchein, "brilho, aparência". Sem mencionar o nome de Kant, Nietzsche está claramente se referindo à distinção kantiana entre

rscheinung  e Ding an sich ("coisa em si", que já aparece na seção

1). Cf. nota sobre "aparência" em ABM  (p. 232; bolso pp. 210-1) eerbetes sobre essa palavra e sobre "fenômeno" em A. Lalande,

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Vocabulário técnico e crítico da filosofia , São Paulo, MartinsFontes, 1993. Erscheinung   aparece vertido, nos dicionários bilíngües, por "aparição, manifestação, aparência, aspecto,fenômeno" etc. Em outras passagens deste livro se verá como Nietzsche tira partido da polissemia desse termo.

 Na frase seguinte desta seção, "representação" traduzVorstellung . Há quem prefira a versão por "idéia" (a aparição maiscélebre do termo se dá no título de Schopenhauer, O mundo comovontade e Vorstellung , não explicitado, mas certamenteconsiderado por Nietzsche, aqui e em outros lugares). Na mesmafrase, "intuição" traduz Ahnung .

(9) "a essência inferida do mundo": das erschlossene Wesen der Welt . A palavra Wesen  pode ser vertida por "ser", "essência" ou"natureza"; a forma verbal erschlossen  é particípio passado deerschließen, que os dicionários bilíngües alemão-português — o daPorto Editora, assinado por Udo Schau, e o Michaelis, publicadoem Nova Iorque há oitenta anos e ainda hoje o mais completo (!) — traduzem por "abrir, tornar acessível", mas que também

significa "alcançar mediante o raciocínio, inferir". Por causa dessasduas variáveis, não surpreende que as traduções variem: "a essênciado mundo inferida racionalmente", la naturaleza del mundoinferido  [sic] por razonamiento, l'essenza del mondo conosciutarazionalmente, la nature du monde conclue par raisonnement ,l'essence du monde que l'on a inférée, the disclosed nature of theworld , the disclosed essence of the world , idem.

(10) "quase todos os órgãos liberam substâncias e estãoativos": fast alle Organe sezernieren und sind in Tätigkeit . O verbo sezernieren  (do latim secernere) significa "liberar uma secreção",conforme o Duden — Deutsches Universalwörterbuch  (2a ed.,Mannheim, Dudenverlag, 1989). Ele não consta nos seis dicionários bilíngües consultados (três alemão-português e mais inglês, francêse italiano). Alguns dos tradutores o entendem de outra forma nesse

contexto: "segregam e estão em atividade", se separam y siguen enactividad ,  secernono e sono in attività,  se séparent et sont enactivité,  sont séparement en activité, are active  (é omitido naersão britânica), secrete and are active, are secreting and active.

(11) A oração precedente é citada por Freud no capítulo VII danterpretação dos sonhos  (final da seção B), mas vem seguida de

outra que não se encontra nesta passagem. Pouco antes, e tambémmais acima no texto, a palavra "causa", grifada por Nietzsche, estáem latim no original, tendo a mesma grafia que em português.

(12) "evento": Vorgang  — a polissemia do termo se mostra naariedade das demais traduções: "evento", escena,  processo,  scène,

déroulement , scene, event , incidents.(13) "o intelecto humano fez aparecer o fenômeno": de

menschliche Intellekt hat die Erscheinung erscheinen lassen — "fezsurgir a aparência", ha hecho aparecer esta "apariencia" , ha fattocomparire il fenomeno, a fait apparaître cette "apparence" , a fait apparaître le phénomène, has made appearance appear , alloweappearance to appear , has made appearance appear . O mesmoogo com o substantivo e o verbo foi feito algumas linhas acima:"de modo que no fenômeno precisamente a coisa em si não

aparece" ( so daß in der Erscheinung eben durchaus nicht das Ding an sich erscheine).

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(14) Citação de Afrikan Spir,  Denken und Wirklichkeit (Pensamento e realidade) (Leipzig, 1877).

(15) "sensação": Gefühl ; em ocasiões anteriores, traduziu-setambém Empfindung  por "sensação". Os dois substantivos derivamdos verbos fühlen  e empfinden, que são praticamente sinônimos.Ver nota do tradutor em ABM  (nota 51, p. 228; bolso, pp. 206-7).

(16) "agitações iniciais da lógica": die Regungen des Logischen.A tradução de  Regung  sempre oferece dificuldade (ver nota 1); dasoutras versões, a mais fiel, no caso, parece-me ser a(s)americana(s): "as emoções lógicas", idem na espanhola e na primeira versão francesa, moti di logicità, les tendences logiques,

the impulse to the logical, the stirrings of logic, idem.(17) Nietzsche cita a última frase da seção 36 dosrolegômenos: der Verstand schöpft seine Gesetze   (a priori) nicht 

aus der Natur ,  sondern schreibt sie dieser vor ; a expressão entre parênteses foi omitida na citação (o texto dos Prolegômenos a todametafísica futura  se acha nos volumes de Kant da coleção OsPensadores, numa tradução ruim, porém).

(18) É pertinente registrar, talvez, que no original o pronome"ela" diz respeito a "a prova científica" (respectivamente ihn  e dewissenschafliche Beweis, tanto na edição de Schlechta como na deColli e Montinari), não à metafísica, como seria de esperar nocontexto do parágrafo (e que pediria o pronome sie, no lugar deihn). Nas versões isto não é lembrado, já que em português,espanhol, italiano e francês, diferentemente do alemão, "prova" é do

mesmo gênero de "metafísica", e em inglês usa-se it .(19)  Exegi monumentum aere perennius , "Executei ummonumento mais duradouro que o bronze". Verso de Horácio(Odes, Livro III, 30, 1), expressão de justo orgulho ao dar o poeta alume os três primeiros livros de suas Odes (Paulo Rónai, Não percao seu latim, 5a ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980).

(20) "convicções": tradução que aqui demos a Ansichten,

geralmente vertido como nas outras edições consultadas:"opiniões", opiniones, credenze, vues,  perspectives, outlook , views,idem. O dicionário Duden  dá "convicção" (Überzeugung ) como possível sinônimo.

(21) "o ânimo sobrecarregado de sentimentos": das mit mpfindungen überladene Gemüt . Como os dois substantivos têm,

se não significados diferentes, várias nuances de significado, asersões variam: "a índole sobrecarregada de sensações", la

conciencia sobrecargada de sensaciones , l'animo sovraccarico di sentimenti, la conscience surchargée de sensations , l'âme surchargée de sentiments , the heart overladen with feeling , a heart overburdened with feelings, idem.

(22) "a manifestação de uma perversa vontade de vida": dierscheinung eines bösen Willens zum Leben . A palavra

"manifestação" é talvez a melhor versão para Erscheinung , nestecaso; cf. nota 7.

(23) "Aí se deduz a pertinência a partir da capacidade de viver,e a legitimidade a partir da pertinência": Hier wird aus der 

ebensfähigkeit auf die Zweckmäßigkeit, aus der Zweckmäßigkeit auf die Rechtmäßigkeit geschlossen. O verbo schließen  (particípio

 pas sado: geschlossen) tem o significado de "deduzir, concluir,raciocinar"; achamos necessário usar as três alternativas no texto.

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Quanto ao substantivo Zweckmäßigkeit , preferimos vertê-lo por "pertinência"; Zweck   significa "fim, finalidade"; o adjetivo mäßig em de Maß, "medida"; logo, zweckmäßig   designa o que é

adequado aos fins, apropriado, conveniente. Como era de esperar, afrase adquiriu formas diversas nas traduções: "Aqui concluímos dacapacidade de viver à apropriabilidade, da apropriabilidade àlegitimidade"; En este caso se infiere de la capacidad de existir, dela adaptación a un fin, su legitimidad   [sic; erro de tradução (ouedição) da frase francesa adiante]; Qui si conclude dall'attitudinealla vita all' opportunità e dall' opportunità alla legittimità;  En cecas l'on infère de la capacité de vivre à l'adaptation à une fin, de

l'adaptation à une fin à sa légitimité; On conclut ici de la capacitéd'existence à la finalité, de la finalité à la legitimité;  Here theconclusion is from the capacity to live to the fitness to live, fromthe fitness to live to the right to live;  Here one is concluding unctionality from viability, and legitimacy from functionality ; Theurposiveness of a thing is here deduced from its viability, its

legitimacy from its purposiveness.

(24) Sobre a tradução de Trieb  por "impulso" no texto de Nietzsche, ver nota em ABM , pp. 216-20; bolso, pp. 195-9, ecapítulo sobre o termo em Paulo César de Souza, As palavras de

reud — O vocabulário freudiano e suas versões   (São Paulo,Ática, 1998 [o ano de 1999 aparece equivocadamente no livro]). Nos textos de Freud preferimos traduzi-lo geralmente por "instinto"; em Nietzsche temos dado preferência a "impulso",

 porque é freqüente ele usar, além de Trieb, o termo Instinkt , emsentidos vários, às vezes figurados, pelo que reservamos "instinto" para esses casos.

(25) Dichter , em alemão; a palavra designa o autor de obras dearte literárias em geral, não apenas o autor de poemas.

(26) Emphasis, no original. É digno de nota que uma tradutora,a professora americana Marion Faber, preferiu usar o termo

appearance, diferentemente dos outros tradutores, que também sesatisfizeram com a versão literal. Assim fazendo, e reproduzindo no pé da página o termo alemão, ela destacou o sentido primordial da palavra grega emphasis: "aparência, exterior" (do verbo emphaino,"fazer ver, fazer-se visível").

2. CONTRIBUIÇÃO À HISTÓRIA DOS SENTIMENTOSMORAIS

(27) O autor de Observações psicológicas  é Paul Rée (1845-1901).

(28) Nietzsche se refere novamente a Paul Rée; Sobre a origem

dos sentimentos morais  foi escrito na mesma época em que eleredigia as anotações que viriam a ser parte de Humano, demasiadohumano, em meados da década de 1870.

(29) "liberdade inteligível": intelligibele Freiheit .Transcrevemos a nota do tradutor Gary Handwerk: "Essaexpressão era usada na Antigüidade, por Platão e outros autores,em referência a um mundo de idéias que podia ser apreendido

apenas pela mente, e que servia de modelo [ pattern] para as coisasdo mundo da aparência. Em sua reformulação desse conceito, Kant

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enfatizou que esses noumena, embora independentes da experiênciae dos sentidos, e portanto não acessíveis [knowable] aoentendimento humano, tinham função reguladora para a razão prática, ao fornecer os objetivos últimos e o impulso em direção àconduta moral".

(30) "se forma": konkresciert ; nas demais traduções:"concresce",  formada, concresce,  formée, résultat d'unenchevêtrement , assembled , an outgrowth, a concretion. Nietzscheutiliza o verbo latino concrescere, "crescer juntamente". Em português, à diferença do italiano e assim como em francês, não seconservou o verbo, mas apenas alguns derivados dele, como

"concreto" (originalmente o particípio passado) e "concreção". Por isso recorremos ao prosaico "formar-se".(31) "conhecimento": Erkenntnis  — "reconhecimento",

descubrimos, riconoscere, reconnaître, découvrir , knowledge, tounderstand , knowledge.

(32) A palavra Wesen, aqui traduzida por "ser", pode significar igualmente "natureza" e "essência". Já o verbo "ser", utilizado na

frase seguinte, corresponde ao alemão sein. Algumas linhas antes,"mal-estar" foi a tradução que aqui demos a Unmut ; as outrasersões recorreram a: "pesar", pesar , disagio, regret , idem,

displeasure, idem, uneasiness.(33) Foi, na realidade, uma observação do poeta Alexander 

Pope.(34) "compadecer/ padecer": Mitleiden/ Leiden; outras versões

 possíveis são: "compaixão/ sofrimento", "compaixão/ paixão".(35) Citação de Lettres à une inconnue  (Cartas a umadesconhecida), de Prosper Mérimée.

(36) Segundo R. J. Hollingdale, o tradutor inglês de Nietzsche,são termos tomados à escolástica: individuum é o que não pode ser dividido sem perder sua essência; dividuum, o que é composto enão possui uma essência individual.

(37) "sancta simplicitas" : "santa simplicidade" — expressãoatribuída a Johann Hus, o sacerdote checo condenado por seureformismo, ao ver uma velha senhora jogar um pouco de lenha nafogueira onde estava sendo queimado, em 1415.

(38) "vaso": Faß, no original. Habitualmente se fala em "caixade Pandora", mas a consulta a uma edição bilíngüe de Os trabalhose os dias, de Hesíodo (trad. Mary de Camargo Neves Lafer, SãoPaulo, Iluminuras, Biblioteca Pólen, 1990, p. 28), revela que otermo grego original é pithos, que corresponde a "vaso, recipiente,arro" (esta a opção da tradutora), em português, e a Faß, emalemão. O comentário de Nietzsche sobre o mito de Pandora, nestaseção, tem afinidade com um belo poema de Manuel Bandeira,intitulado "A vida assim nos afeiçoa".

(39) Nietzsche inverte a expressão "fazer da necessidade umairtude", mas em alemão isso adquire um significado maior do que

em português, pois a palavra Not , além de "necessidade", podesignificar "miséria", "urgência", "dificuldade", "perigo".

(40) Cf. Heródoto, História, VII, 38-39. Xerxes foi rei da Pérsiaentre 486 e 465 antes de nossa era. Durante os preparativos para aexpedição contra a Grécia, Pítios, um súdito abastado e pai de

cinco filhos, rogou a Xerxes permissão para que apenas um filhoseu não fosse à guerra. O soberano, então, ordenou que esse filho

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fosse cortado ao meio e que as duas metades do corpo fossem postas à direita e à esquerda da estrada por onde passaria o exército persa.

(41) "moralidade lacrimosa": Nietzsche is playing with thehrase  comédie larmoyante, a popular theatrical genre of the

eighteenth century, introduced by the plays of Destouches   (1680-1754) and later developed by Diderot   (Le Fils naturel , 1757;  LePère de famille , 1758)" — nota de Marion Faber.

(42) Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, V, 85-113.(43) Spinoza, Tractatus theologico-politicus, II, 4 e 8; citado

 por Schopenhauer em Parerga e paralipomena, II, 124.

(44) "costumes e moral . — Ser moral, morigerado, ético": nooriginal: Sitte und sittlich. — Moralisch, sittlich, ethisch sein. Noléxico alemão é evidente a relação entre ética ou moral e "costume"(ethos, em grego; mos, em latim); e, ao lado do termo germânicoSitte  ("costume, moral") e seu adjetivo, sittlich, usa-se também

thik  e Moral  e os adjetivos ethisch e moralisch, tomados do gregoe do latim, como em português.

(45) "ádito": Adyton, no original — a parte mais sagrada dostemplos gregos e romanos (do grego dyo, "entrar", precedido de a, partícula de negação).

(46) "Não julgueis": cf. Mateus 7,1.(47) "satisfação com o mal alheio": Schadenfreude  (Schaden,

"dano, prejuízo", mais Freude, "alegria").(48) "consciente da culpa": schuldbewußt ; "consciente da

inocência": unschuld-bewußt ; pois "inocência", em alemão, éUnschuld , a "não-culpa".

3. A VIDA RELIGIOSA

(49) Byron, Manfred , ato I, cena 1.(50) Horácio, Odes 2. II, 11-14.(51) Goethe, "Kophtisches Lied".(52) John Lubbock é autor de A origem da civilização e o

estado primitivo da raça humana, cuja edição alemã foi adquirida por Nietzsche em 1875, ano em que foi publicada.

(53) No original, je polyphoner sein Subjekt ist   — nas

traduções consultadas: "quanto mais polifônico é o seu sujeito", másolifónica se vuelve la música y el ruido de su alma, quanto piùolifonico è il suo soggetto, plus polyphone se fait la musique et le

bruit de son âme,  plus son moi est polyphonique, the moreolyphonic his subjectivity is, the more polyphonic he is as a

 subject , the more polyphonic his subjectivity. Nota-se que a primeira versão francesa "poetiza" desnecessariamente o trecho

original, e que nisso é acompanhada pela espanhola, a qualdemonstra, nesta passagem como em tantas outras, ter sidotraduzida daquela, e não do texto alemão.

(54) "uma regularidade": eine Gesetzlichkeit   — nas demaistraduções consultadas: "uma legalidade", un carácter de legalidad ,delle leggi  (leis), un caractère de légalité, un déterminisme, aregularity and rule of law, a lawfulness, idem. Na oração seguinte,

a mesma palavra alemã (desta vez com artigo definido) foitraduzida por "as regras da natureza".

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(55) "Simaquia, s.  f . aliança de guerra entre dois Estados naGrécia Antiga" (Caldas Aulete,  Dicionário contemporâneo dalíngua portuguesa, 5a ed., Rio de Janeiro, Delta, 1964).

(56) "invenções": Erfindungen. Em algumas edições (a deSchlechta entre elas) se acha Empfindungen, "sensações,sentimentos"; por isso as versões consultadas divergem, conformea edição que utilizaram: "sensações", invenciones,  sentimenti,inventions, idem, sensations, inventions, discoveries.

(57) Schopenhauer, O mundo como vontade e representação ,ol. I, Livro 4, seção 71.

(58) "intuições": Ahnungen, no original. Algumas edições

estrangeiras usam "pressentimentos".(59) "deduzidas": versão aqui dada ao particípio do verboerschließen; nas demais traduções: "exploradas", descubiertas,ricavate  (extraídas), découvertes, établies, that are the outcome ocautious reasoning , deduced , inferred .

(60) Nietzsche usa o termo latino.(61) Lichtenberg, Vermischte Schriften   (Miscelânea),

Göttingen, 1867, 1, 83; La Rochefoucauld, Réflexions, sentences et maximes morales, Paris, s. d., máxima 374 (obra já citada por  Nietzsche nas seções 36 e 50). Esses dois livros faziam parte doespólio de Nietzsche.

(62) Hildelberto de Lavardius (1056-1133), Carminamiscellanea, 124 (a elucidação desta referência se acha apenas nanova edição americana dos Complete works of Friedrich Nietzsche,

iniciada pela Stanford University Press; nem mesmo no volume denotas de Colli e Montinari ela foi encontrada).(63) "refração": Brechung  — "quebra", aniquilamiento, rottura,

anéantissement , écrasement , to break himseelf of , to make  [...] abreak , to break . Devido ao significado mais comum de brechen("quebrar") as traduções geralmente deixam escapar o sentidoespecial pretendido por Nietzsche, a metáfora retirada da física. Cf.

o verbete "refratar", no Dicionário Melhoramentos da línguaortuguesa  (4a ed., São Paulo, 1980): "Causar refração a, desviar 

ou quebrar a direção de (raios luminosos, caloríficos ou sonoros)".(64) Traduzido da citação de Nietzsche em alemão: die größte

Schuld des Menschen/   ist, daß er geboren ward . No originalespanhol se lê: Pues el delito mayor/ del hombre es haber nacido(Calderón de la Barca, La vida es sueño, ato I, cena 3).

(65) Novalis, Schriften (Escritos), citado pela edição de Tieck eSchlegel, 1815, vol. 2, p. 250.

4. DA ALMA DOS ARTISTAS E ESCRITORES

(66) No original, Das Vollkommene soll nicht geworden sein — onde se usa geworden, particípio passado de werden, "vir a ser,tornar-se, devir". Nas demais traduções consultadas: "A coisa perfeita não conheceria o devir", Lo considerado como perfecto no

uede hacerse,  Il perfetto non sarebbe divenuto,  Le parfait est censé ne s'être pas fait , Que la perfection échapperait au devenir ,What is perfect is supposed not to have become, Perfection said not 

to have evolved , What is perfect cannot have come to be.Quanto ao título original deste capítulo, Aus der Seele de

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ünstler und Schriftsteller , devemos registrar que a preposição aussignifica "de dentro de, extraído de, a partir de", enquanto a preposição "de", em português e nas outras línguas românicas, temmaior riqueza ou ambigüidade de sentidos, podendo ser entendida,no caso, como "a respeito de". As versões em língua inglesa sãomais precisas, pois recorrem a from.

(67) "ilustração": Aufklärung . O termo alemão pode designar tanto o fenômeno histórico do Iluminismo como o processo deesclarecimento em geral; por isso foi vertido, em outras passagens, por "Iluminismo" ou "Luzes".

(68) "percepção": Einsicht   — "conhecimento profundo",

manera de ver , modo de vedere,  façon de voir ,  profond savoir ,insight , idem, idem; cf. nota 67 em ABM , p. 232; bolso, p. 210.(69) "as intuições repentinas": die plötzlichen Eingebungen; cf.

nota em ABM , pp. 214-5; bolso, pp. 193-4.(70) "esboços": Ansätze, palavra que admite mais de um

sentido, como se nota pelas opções dos demais tradutores:"formulações", bocetos,  spunti, ébauches, esquisses, beginnings,

idem, idem.(71) Segundo observa Marion Faber, Nietzsche usaalternadamente a forma der Genius, mais antiga, e das Genie, maismoderna e tomada do francês. No entanto, "der Genius, no sentidoestrito, refere-se antes ao espírito criativo incorpóreo, enquanto dasGenie se refere a uma pessoa, um grande homem de gênio".

(72) "aparecimento": tradução mais literal de Erscheinung ,

normalmente vertido por "fenômeno" — nas outras versões:"aparição", aparición, apparizione, apparition, [...] apparaît larandeur , phenomenon, idem, manifestation of greatness.

(73) "um ser retardado": ein zurückbleibendes Wesen   — "umser que ficou para trás", un ser retrasado , un essere rimastoindietro, un être arriéré, idem, a retarded being , a laggard creature, a backward being . Em português (no português do Brasil,

 pelo menos), "retardado" também designa a pessoa cujodesenvolvimento mental está aquém da sua idade. Achamos queesta versão seria aprovada por Nietzsche, que, sendo ele mesmoartista, era amigo do humor e da ambigüidade.

(74) "regredido" a outros tempos: in andere Zeiten zurückgebildet   — "ele [...] regredir a uma forma de outrostempos", sufre una deformación que le hace retroceder a otrostiempos, assume  [...] una forma di altri tempi, il subit unedéformation que le fait rétrograder en d'autres temps , cette  [...]évolution rétrograde qui le restitue à d'autres temps , his  [...]retrogression to earlier times , he is  [...] being formed byretrogression into former times, he [...] retrogresses into past eras.

(75) "o protótipo que a natureza imaginou": das Urbild , welchesder Natur vorgeschwebt habe  — "o protótipo idealizado pelanatureza", el modelo que ha flotado ante los ojos de la naturaleza,il modello che la natura ha tenuto presente, le modèle qui a flottédevant les yeux de la nature, l'archetype même que la nature avait en vue, the ideal which hovered dimly before the eye of nature , theoriginal model which nature had in mind , the ideal image whichnature conceived .

(76) Nietzsche se refere a Hegésias de Magnésia, que viveu noséculo III antes de nossa era.

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(77) Citação de um poema de Goethe, "Trost in Tränen"("Consolo em lágrimas"), que diz: Die Sterne, die begehrt mannicht/ Man freut sich ihrer Pracht  ("As estrelas, não as desejamos/Alegramo-nos do seu esplendor").

(78) No original, alles Fertige, Vollkommene wird angestaunt,alles Werdende unterschätzt . Nietzsche substantivou os adjetivosertig   ("pronto") e vollkommen  ("acabado", "perfeito") e o

 particípio presente de werden  ("tornar-se, devir, vir a ser").Lembremos que em nossa língua o adjetivo "perfeito" éoriginalmente particípio passado de "perfazer", e designa tanto algocompleto, cabal, como algo sem defeito. Os outros tradutores

usaram: "tudo o que está pronto [...] tudo o que está por vir a ser";todo lo que es acabado, perfecto  [...] todo lo que está en vías dehacerse; ogni cosa finita, perfetta  [...] ogni cosa in divenire; tout ce qui est fini, parfait   [...] tout ce qui est en train de se faire; tout ce qui est achevé, parfait   [...] toute chose en train de se faire;everything finished and complete  [...] everything still becoming ;everything that is complete and perfect   [...] everything evolving ;

everything finished, perfected  [...] everything in process.(79) "expressão": versão meio heterodoxa que aqui demos aarstellung , acompanhando as traduções francesas; as outrasersões usam: "exibição", expresión, rappresentazione, expression,

idem, representation, idem, idem. O verbo darstellen  se acha nosubtítulo de Mímese, famoso livro de Erich Auerbach:  DargestellteWirklichkeit in der abendländischen Literatur   ( A representação da

realidade na literatura ocidental , na tradução da editoraPerspectiva, 2a ed., São Paulo, 1987).(80) O termo usado por Nietzsche é Stoff , que pouco antes foi

ertido por "matéria"; ele reaparece na seção seguinte. Os demaistradutores também optaram por duas palavras diversas nesse ponto, excetuando R. J. Hollingdale, que usa material   nos doiscasos.

(81) "lutar pela glória": Ehre erstreben — nas demais traduções:"aspirar à honra", buscar el honor , ambire onori, recherchel'honneur , aspirer à la gloire , to aspire to honor , to strive fohonor , idem. No período anterior, a mudança de tempo verbal, do passado para o presente ("procuram"), consta no texto original.

(82) "facultativo": läßlich  — "dispensável", facultativo,acoltativo, facultatif , idem, easy-going , inessential , careless.

(83) "a grande sonata em Si maior": denominadaammerklavier , opus 106.

(84) "o grupo de Laocoonte": escultura helenística do século I

a.C., representando um episódio da Guerra de Tróia: o sacerdoteLaocoonte sendo devorado, juntamente com seus dois filhos, por duas enormes serpentes que saíram do mar.

(85) "repentes": Einfälle  — "engenhos", salidas ingeniosas,trovate, des saillies, quelque saillie  (omitido na versão inglesa),whimsy, witticisms.

(86) O verbo aqui traduzido por "perder de vista", übersehen, pode significar "ver, dar com os olhos, deixar de ver, negligenciar,dominar com a vista" — por isso as traduções consultadas variam:"[parece que] o perde de vista", verle desde arriba, sovrastare, voi

de haut ,  perdre de vue d'en haut ,  survey, take him at a glance, survey him from above.

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(87) "ele quer compreender": er will die Einsicht ; ver nota 68.(88) Gymnasium: escola secundária onde se aprendia letras

clássicas; as traduções francesas usam lycée ("liceu").(89) "permeado com séries de concepções mais elevadas": mit 

höheren Vorstellungsreihen durchzogen — "se envolveu com sériesde concepções mais elevadas", se complicó  [...] com una serie deconcepciones más elevadas, è andata congiungendosi conassociazioni di idee più elevate, compliquée de séries deconceptions plus élevées, impregnée d'associations d'idées plusélevées, has  [...] saturated   [that affect ] with a series of exaltenotions, has [...] been permeated with higher kinds of ideas, drawn

into more elevated conceptual spheres.(90) "insensíveis": unsinnlich. Em alemão, o adjetivo sinnlich pode ser entendido como "sensual", "sensível" ou "sensorial" (notítulo original desta seção consta Entsinnlichung , aqui vertido por "dessensualização"). Por isso os tradutores oscilam nas versões:"insensíveis", inmateriales, insensibili, immatériels  (!), cesse leu sensualité, unsensual , asensual , unsensuous.

(91) "daquilo que é": des Seienden, gerúndio substantivado doerbo sein, "ser, estar" — nas demais traduções: "do real", de loreal , di ciò che è, du réel , de la chose, the simple being , that whichexists, of what exists.

(92) Pietistas: movimento luterano iniciado por Phillip JakobSpener no século XVII, enfatizando a experiência religiosa direta por  parte do indivíduo.

(93) Polímnia: a musa do canto, entre os gregos.(94) A palavra  Bedeutung   pode ter os sentidos de"importância", "significação", "significado". No caso, o primeironos parece o mais pertinente; mas os tradutores preferemgeralmente os outros dois, como se nota pelas versões consultadas:"significado", importancia,  significato, importance,  signification, significance, meaning , significance.

(95) Citação do último verso de "Der Bräutigam" ("O noivo"), poema de Goethe: Wie es auch sei, das Leben, es ist gut .

(96) "a coisa helênica": versão insatisfatória para dasellenische, adjetivo substantivado; a substantivação de um adjetivo

é recurso freqüente no alemão, mas de pouco uso nas outraslínguas de que nos ocupamos. Por isso soa artificial, quando nãoinduz a equívoco, dizer se ha gozado de lo griego, l'ellenico, the

ellenic. Na tradução anterior deste livro, José Carlos MartinsBarbosa também utilizou "a coisa helênica", enquanto as versõesfrancesas preferiram, a primeira, ce qui est grec, e a segunda,l'heritage hellénique.

5. SINAIS DE CULTURA SUPERIOR E INFERIOR 

(97) "naturezas degenerativas": abartende Naturen. De modosignificativo, o verbo abarten  significa tanto "degenerar" como"desviar"; por isso uma versão em inglês, diferentemente de todasas outras, usou deviating  natures (M. Faber).

(98) "sendo a mais delicada e mais livre": als die zartere und 

reiere. Aqui se acha uma divergência entre as edições de Schlechtae de Colli e Montinari: a primeira dá feinere ("mais fina") em vez de

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reiere. Isso porque Colli e Montinari, fazendo uma edição crítica,não apenas recorreram à primeira edição publicada, mas acotejaram com as provas e os manuscritos.

(99) Maquiavel, O príncipe.(100) "espíritos cativos": tradução dada a gebundene Geister . O

adjetivo alemão é o particípio do verbo binden, "atar, ligar"; ele foiertido das seguintes formas pelos outros tradutores: "submissos",

 siervos, vincolati,  serfs, asservis,  fettered , bound , constrained . Cf. BM , seção 21, onde "cativo arbítrio" foi a versão dada a unfreie

Wille ("vontade não livre"), e a nota correspondente.(101) "que seus princípios livres têm origem na ânsia de ser 

notado ou até mesmo levam à inferência de atos livres": daß seinereien Grundsätze ihren Ursprung entweder in der Sucht,aufzufallen, haben oder gar auf freie Handlungen   [...] schließenlassen. O fato de pelo menos duas palavras desse trecho serem umtanto "problemáticas" levou a diferenças dignas de nota entre asersões consultadas (das quais a antiga francesa — e, portanto, a

espanhola que nela se baseou — está claramente equivocada): "que

seus princípios livres ou têm origem na busca de chamar atençãoou bem fazem pensar em atos livres"; que sus libres principiosdeben ocultar un mal de origen, o bien conducir a acciones libres ;che i suoi liberi principi trovino origine nella sua smania di farsinotare, oppure addirittura che facciano pensare ad azione libere ;que ses libres principes doivent comuniquer un mal à leur origine,ou bien aboutir à des actions libres; que ses libres principes ou bien

ont leur source dans le désir de surprendre ou bien permettent même de conclure à des actes libres ; that his free principles either originate in a desire to shock and offend or eventuate in freeactions; that his free principles have their origin either in a need tobe noticed, or else may even lead one to suspect him of freeactions; that his free principles either have their origin in the desireto attract attention or logically lead to free actions.

(102) "concepções intelectuais": intelektuelle Einfälle  — ocorrespondente que os dicionários costumam oferecer para osubstantivo Einfall   é "idéia, pensamento"; ver nota 85, acima, euma mais detalhada em ABM , pp. 214-5; bolso, pp. 193-4. Nasdemais traduções lemos, nesse contexto: "inspirações", fantasías,ispirazioni, fantaisies, fantaisies, notions, ideas, notions.

(103) "o ser alemão": das deutsche Wesen  — "o espíritogermânico", el alemán  (sic), la germanicità, l'être allemand ,German nature, German character ; cf. nota 33.

(104) "a idéia de um deus em evolução": die Vorstellung eineswerdenden Gottes; cf. notas 66 e 78.

(105) "pastores de alma": Seelsorger   — "curadores da alma",curanderos de almas, curatori di anime,  guérisseur d'âmes, lesdirecteurs dits de conscience, curers of soul ,  spiritual advisers,ministering to the soul  (nesta versão foi transformado em verbo).

(106) "progresso": Fortschritt   — literalmente, "passo (Schritt )adiante ( fort )".

(107) A frase de Frederico II  é citada por Kant emnthropologie in pragmatischer Hinsicht  (1798), 2a parte, seção E,

última nota.

(108) Cf. Mateus, 26, 41.(109) Nietzsche se refere a "Schopenhauer como educador"

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(1874), a terceira das Considerações extemporâneas; "parenético" éo adjetivo de "parênese", que os dicionários definem como"discurso moral, exortação" (da palavra grega que significa"advertência").

(110) "alcançar um fim de modo pertinente": einen Zweck  zweckmäßig zu erreichen; ver nota 23.

(111) "oração fúnebre": referência ao discurso de Péricles emlouvor dos atenienses que morreram na Guerra do Peloponeso (431a.C.); cf. Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, II, 45.

(112) Citação de Hölderlin, A morte de Empédocles, primeiraersão, ato II, cena 4.

(113) "inveja e cólera": Eif er- und Geifersucht   — jogo de palavras de difícil recriação: Eif ersucht   vem de Eif er   ("zelo,fervor") e Sucht   ("mania, vício") e em geral significa "ciúme,inveja"; Geifer   é literalmente "baba", e figuradamente "cólera,raiva". Os outros tradutores usaram: "ciúme e rancor", de celos yde baba, nella gelosia e nell'astio, de jalousie et de bave, idem,ealousy and spleen, jealousy and venom, idem.

(114) "Oclocracia, s.  f . governo em que o poder reside nasmultidões ou na população [...] F. gr. Okhlokratia, okhlos  (plebe)+ kratein  (governar)" (Caudas Aulete,  Dicionário contemporâneoda língua portuguesa, 5a ed., Rio de Janeiro, Delta, 1964).

(115) Schopenhauer, Ética, 114.(116) "vigor": Spannkraft   — "energia potencial", energía,

elasticità, énergie, idem, power of expansion, resilience, vigor .

(117) Há aqui uma pequena discrepância entre a edição deSchlechta e a de Colli e Montinari: aquela traz um ponto deexclamação, em vez de ponto-e-vírgula.

(118) "de muitas cordas mais": vielsaitiger   — trocadilho comvielseitiger , que significa "mais multifacetado" e tem a mesma pronúncia (o ditongo ei soa como "ai").

(119) Referência ao provérbio alemão que diz: Müssiggang ist 

aller Last Anfang   (literalmente, "O ócio é o começo de todoício").

(120) "explorar": tradução aqui dada a nachgehen, que significa primariamente "ir atrás de, seguir", mas também "entregar-se a,ocupar-se de; pesquisar"; as demais traduções preferiram:"percorrer",  seguir , ripercorrere,  suivre, refaire,  follow,  pursue,retrace.

6. O HOMEM EM SOCIEDADE

(121) "confiança e confidência": Vertrauen und Vertraulichkeit .(122) "Isso torna imoral": Dies macht unmoralisch  — "Isso

desmoraliza", Esto desmoraliza, Ciò rende immorali , Cela rend immoral , C'est chose qui rend immoral , To have this happen makesone immoral , This gives rise to immorality, This makes peopleimmoral .

(123) "Amigos, não há amigos!": frase atribuída a Aristóteles.

7. A MULHER E A CRIANÇA

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(124) "na relação entre o caráter e a atitude dos pais": imVerhältnis von Charakter und Gesinnung der Eltern  — "na relaçãode caráter e disposição dos pais", en las relaciones de carácter y deconformación espiritual de los padres, nel rapporto tra carattere e sentimenti dei genitori, dans les rapports de caractère et de tour d'esprit des parents, entre le caractère et les idées des parents ,between the characters and dispositions of the parents, in therelation of the character and disposition of the parents , ocharacter and disposition in the parents' relationship.

(125) "sensata insensatez": Vernünftige Unvernunft   — "irracionalidade racional", sin razón razonable, ragionevole

irragionevolezza, déraison raisonnable, idem, rational irrationality,reasonable unreason, idem.(126) "penúria (necessidade)": Not   ( Bedürfnis). Cf. Platão,

Simpósio, 203b-d, em que Afrodite é caracterizada como fruto doexpediente ( póros) e da penúria ( penía).

(127) Em Homero (Odisséia, IV, 365 ss.), Proteu é umadivindade marinha que tem o dom da metamorfose.

(128) "hetairas" (ou "heteras"): cortesãs da Grécia antiga.(129) "Wagner": assistente de Fausto no drama de Goethe;Margarida e Mefistófeles são os outros personagens principais. Oerudito a que Nietzsche se refere é o alemão Paul de Lagarde(1827-91).

(130) "que sabem perceber algo": welche Etwas sich zurecht zulegen wissen  — nas demais traduções: "que sabem interpretar as

coisas", que son capaces de darse cuenta de ello, che sanno trarrerofitto da qualcosa , qui sont capables de se rendre compte , desesprits avisés, who know how to interpret , who know how toexplain a thing , who know how to construe such things.

(131) Os termos Verstand   e Gemüt , aqui vertidos por "inteligência" e "sentimento", aparecem, nas outras traduções,como: "razão", "espírito"; entendimiento,  sensibilidad ; intelletto,

 sentimento; entendement ,  sensibilité, idem; reason, temperament ;the intelligence, the heart ; intelligence, spirit .

(132) Cf. Hesíodo, Teogonia, versos 590-602 (p. 139 datradução de Jaa Torrano: São Paulo, Iluminuras, Biblioteca Pólen,1995).

(133) Símbolos do templo de Apolo em Delfos, onde asacerdotisa proferia oráculos.

(134) "devemos desconfiar": wie man besorgen muß; o verbobesorgen significa, mais comumente, "providenciar, tratar de", mastambém "recear", e este sentido nos parece o mais provável, nocontexto. Os demais tradutores, compreensivelmente, se dividiramnesse ponto: "como podemos recear", hay que reconocerlo, come sideve temere, il faut l'apréhender , c'est à craindre, it is to beanticipated , and must be provided , [will probably require us ] torovide.

(135) "Aspásias": Aspásia foi a célebre amante de Péricles, noséculo V a.C.

(136) "Tempestade e Ímpeto": Sturm und Drang   — alusão aomovimento literário conhecido por esse nome (título de uma peçateatral da época), que teve seu auge na década de 1770; um

movimento rebelde, pré-romântico, que enfatizou a inspiração emdetrimento da razão.

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(137) "costumes": Sitten; também pode ser vertida por "moral",como fizeram outros: "moral", moral , costume, morale,convenances, morality and custom  (o tradutor inglês decidiu ficar com as duas), custom, morality. Na seção 23, "moralidade" foi aersão dada a Sittlichkeit  (mas pouco antes, quando Nietzsche fala

em "todos os graus e gêneros de moralidade, de costumes", ooriginal diz alle Stufen und Arten der Moralität, der Sitten). Cf.nota 44.

(138) Nietzsche faz aqui um jogo de palavras com wahrsagen("profético"), Wahrdenkenden  ("os que pensam verdadeiramente",true-thinking , em inglês) e Wahrheit-Redenden  ("os que falam

erdade", truth-speaking , em inglês). Esse jogo é possível emalemão — e irreproduzível em outras línguas — porque o verbowahrsagen  (composto de wahr , "verdadeiro", e sagen, "dizer")significa "adivinhar, profetizar".

(139) Alusão a um episódio do mito grego de Cadmo, no qualele semeia os dentes de um dragão que havia matado e deles seoriginam terríveis guerreiros.

(140) "ao tornar sua casa e seu lar inabitáveis e inóspitos":indem sie ihm Haus und Heim unhäuslich und unheimlich machte. Nietzsche faz um belo jogo de palavras, ao empregar dois adjetivosque derivam justamente dos substantivos que eles vêm a negar (sendo que unheimlich  também significa "inquietante, estranho").Cf. nota em outro volume de Nietzsche desta coleção: O casoWagner/ Nietzsche contra Wagner , trad. Paulo César de Souza, São

Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 89.(141) Cf. Platão, Apologia, 30e.(142) Diz-se que Catão, o Velho, terminava todos os seus

discursos no senado romano com a frase: "Além disso, sou deopinião de que Cartago deve ser destruída" (Cf. Plutarco, Vidas).

(143) Cf. Platão, Fédon, 116b, 117c-e.

8. UM OLHAR SOBRE O ESTADO

(144) Carta de Voltaire a Danilaville, 1o de abril de 1766.(145) "tática serrada": geschlossene Taktik ; eis as outras

ersões para o adjetivo empregado por Nietzsche: "particular",

compatta, particulière, serrée, closed , secret , resolute.(146) "os perspicazes": die Einsichtigen  — "os instruídos", losclarividentes,  gli intelligenti, les clairvoyants, les espritsclairvoyants, the knowledgeable, insightful   people, those who know something about the situation. Cf. nota 69 sobre Einsicht .

(147) "pensamento": Sinn — "mentalidades", ideas, idee, idées,esprit , mind , attitude, sensibility.

(148) Cf. Mérimée, Lettres à une inconnue 2, 272.(149) Ecrasez l'infâme: expressão que Voltaire usou numa cartaa D'Alembert, em 28 de novembro de 1762, referindo-se àsuperstição no catolicismo.

(150) "antepassados": Urväter   — e não "tempos passados"(Vorzeiten), como se acha em várias edições (entre elas a deSchlechta). Pelo que se depreende de uma nota de Colli e Montinari

(no volume 14 da sua edição crítica, p. 148), essa variante teria seoriginado de um erro de leitura da caligrafia de Nietzsche, por parte

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de Heinrich Köselitz ("Peter Gast"), ao preparar a cópia que seriaenviada ao editor. Trata-se, portanto, de um erro — pouco grave,no caso — já presente na primeira edição do livro, e que seriareproduzido em várias edições posteriores. As outras versõesconsultadas divergem, naturalmente: "tempos passados",antepasados, tempi remoti , ancêtres, temps passés, ages past ,  past ages, our forefathers. Seria de esperar que, entre essas versões, asmais antigas apresentassem a leitura tradicional, e as mais recentes,a correção moderna. Mas não é exatamente o que acontece, pois anova edição francesa, embora declaradamente baseada em Colli eMontinari, traz temps  passés, enquanto a velha tradução (de A.-M.

Desrousseaux, 1910) traz ancêtres; e, das duas versões americanasrecentes, uma (a de Marion Faber) emprega past ages,acrescentando, em nota: "Vorzeiten. In some editions Urväte(ancestors)".

(151) "talvez": wohl . Essa partícula denota freqüentementeincerteza ou possibilidade, mas às vezes pode realçar umaafirmação — como neste exemplo, extraído de um dicionário da

língua alemã: ich habe wohl bemerkt, daß... ("eu bem notei que...").Há tradutores que a tomam neste sentido de reforço da afirmação,quando não a omitem (o que pode ser válido, eventualmente); é ocaso das versões consultadas: (omissão), indudablemente,  sansdoute, idem, no doubt , (omissão), doubtless. Mas não é raroencontrar divergências, como na seguinte frase: Die beidenCellosonaten von J. Brahms sind wohl die bedeutendsten Werke

dieser Gattung seit Beethovens fünf klassischen Sonaten  ("As duassonatas para violoncelo de J. Brahms são talvez as obras maisnotáveis desse gênero, após as cinco sonatas clássicas deBeethoven"). Os textos costumam vir em várias línguas, noslançamentos internacionais de música "erudita". Assim, as versõesem inglês, francês e espanhol dessa frase, na contracapa do LP   (daDeutsche Grammophon, 1958), oferecem, respectivamente,

robably, certainement   e seguramente, como equivalência parawohl .

(152) "véu de Ísis": Isisschleier , no original. Em nenhumaedição foi encontrada uma explicação para esta referência. Ísis,como se sabe, foi uma deusa egípcia que teve seu culto difundidotambém no mundo greco-romano, onde foi associada a Deméter,deusa da fertilidade. Considerando que as imagens de Ísis amostram com longos cabelos e uma coroa que simbolizava o seudomínio sobre o Alto e o Baixo Egito, Nietzsche talvez tenha issoem mente, ao falar de um Isisschleier   que indicaria a procedênciadivina do Estado. Também na seção 637, adiante, ele menciona a"velada Ísis" (die verhüllte Isis).

(153) "a sagacidade e o interesse pessoal": die Klugheit und deigennutz  — segundo os demais tradutores, "a inteligência e o

interesse pessoal", la habilidad y el interés, l'avvedutezza el'egoismo, l'habileté et l'intérêt , le bon sens et l'égoïsme, therudence and self-interest , cleverness and selfishness, cleverness

and self-interest .(154) Em mais de uma ocasião Platão foi hóspede de Dionísio

II, tirano da cidade-estado de Siracusa, na Sicília, onde ele

imaginava pôr em prática seus ideais políticos.(155) "Tucídides faz com que [...] ela brilhe": o pronome

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 parece se referir a "cultura" ( Kultur ); mas o texto original permitealguma ambigüidade, pois na frase anterior se usa o mesmo pronome ( sie) para designar o panegírico (Verherrlichunsgrede, queé também feminino em alemão). Quanto a esse discurso dePéricles, já citado por Nietzsche na seção 259, ver Tucídides,

istória da Guerra do Peloponeso, II, 35-46.(156) "grosseria literária": litterarische Unart . Nietzsche está se

referindo às manifestações de anti-semitismo na imprensa e naliteratura da época. Eis como a expressão foi traduzida nas outrasersões consultadas: "vício literário", impertinencia de la prensa ,

malcostume letterario, impertinence de la presse, odieuse

littérature, literary indecency, literary misconduct , literaryincivility.(157) Nietzsche está aludindo a uma passagem da terceira de

s u a s Considerações extemporâneas  ("Schopenhauer comoeducador", seção I). As duas expressões seriam paródia dosubtítulo de uma obra de Bernard de Mandeville, A fábula dasabelhas, ou Vícios privados, benefícios públicos (1714).

9. O HOMEM A SÓS CONSIGO

(158) Circe: personagem de Homero; é a feiticeira quetransforma os companheiros de Ulisses em porcos, no canto X  daOdisséia.

(159) Alusão ao mágico velo (pele de carneiro) de ouro damitologia grega, procurado por Jasão e os Argonautas.

(160) Referência a uma frase da romancista George Sand:Chacun a les défauts de ses vertus  ("Cada qual tem os defeitos desuas virtudes").

(161) "medo-respeito": Ehr-furcht . Nietzsche separa com hífeno termo alemão Ehrfurcht   (que os dicionários bilíngües traduzem por "respeito, veneração, deferência, reverência"), para realçar oselementos que o constituem: Ehre  ("honra, respeito") e Furcht ("medo, temor"). No título desta seção, "reverência" foi a tradução para Ehre.

(162) "[assim] participamos atentamente": [ so] nimmt manerkennenden Anteil   — "se participa inteligentemente", se toma una

arte agradecida,  si partecipa in modo conoscitivo, on prend uneart reconnaissante, on participe alors par la connaissance, onetakes an intelligent interest , we acknowledge and share, we take anattentive interest . Esta seção tem outros termos que admitem maisde um sentido, ou que não têm a equivalência desejada em outralíngua. As expressões "uma  atitude mental, uma maneira de ver ascoisas" (eine Haltung des Gemütes, eine Gattung von Ansichten, no

original) foram vertidas da seguinte forma pelos outros tradutores:"uma única  disposição de espírito, uma espécie única  de modo deer as coisas"; una sola dirección de conciencia, una sola especie

de puntos de vista; un solo attegiamento dell'animo e  un soloenere di vedute; une seule direction de conscience, une seule

espèce de points de vues; une disposition  unique de l'âme, desmanières de voir d' un seul genre; a  single deportment of feeling , a

single attitude of mind ; one emotional stance, one viewpoint ; asingle mental posture, a  single class of opinions. Quanto ao título

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da seção ( Philosophisch gesinnt sein), os tradutores neolatinoscoincidiram em usar "Ter espírito filosófico", enquanto os de línguainglesa puderam manter-se mais próximos do original: Being hilosophically minded   (dois deles) e A philosophical frame o

mind .(163) Cf. Goethe, Diário, 13 de maio de 1780.(164) No original, Minorität  ( Minimalität ); em inglês e francês

o trocadilho de Nietzsche se conserva: a minority  (a minimality),une minorité (minimalité).

(165) Platão, República, X, 604b-c.(166) "instigadora do intelecto": aqui se perdeu, na tradução,

uma saborosa imagem de Nietzsche, pois o original fala emSouffleur des Intellekts. Em teatro, o souffleur   (literalmente,"soprador"; o termo francês foi adotado em alemão) é aquele que"sopra" as falas para os atores. A palavra com que designamos o souffleur   em português, "ponto", não foi usada porque não seriainequívoca.

(167) Tasso e Antonio: personagens da peça Torquato Tasso ,

de Goethe (1790).(168) "atrasadas": zurückgeblieben  — "atrasadas", idem,arretrate, arriérées, idem, retarded , backward , idem. É a mesma palavra que foi usada na seção 43, "Homens cruéis, homensatrasados". Ver também nota 73, sobre "retardado".

ENTRE AMIGOS: UM EPÍLOGO

(169) Este poema-epílogo foi acrescentado na segunda ediçãodo livro, em 1886.

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POSFÁCIOUM LIVRO SOBERANO

“Este livro é obra minha. Nele trouxe à luz minha mais íntima percepção dos homens e das coisas e pela primeira vez delimitei oscontornos de meu próprio pensamento.” Assim se manifestou Nietzsche a respeito de Humano, demasiado humano, no esboço deuma carta endereçada a Richard Wagner e sua mulher, Cosima, noinício de 1878.

 Não sabemos se a carta foi concluída e enviada. Nietzscheimaginava o quanto o novo livro poderia afetar sua relação com osWagner, uma relação que chegou a ser de intensa comunhão deidéias e intimidade pessoal. Em suas publicações anteriores, Onascimento da tragédia  (1872) e Considerações extemporâneas(1872-76), Wagner era louvado como o grande renovador dacultura alemã, o gênio alemão era o possível herdeiro do grego e àarte cabia o papel supremo na condução e justificação da vida. Essaatitude romântica, ardente-esperançosa, dava lugar, na nova publicação redigida em segredo, a um questionamento de matiziluminista, num tom sóbrio e cético. O nome de Wagner nãoaparece absolutamente, os franceses são tidos como mais próximosdos gregos e a estima da ciência é “marca de uma cultura

superior”. Nas palavras de um amigo de Nietzsche, o filólogoErwin Rohde, foi como se, num banho romano, alguém passassedo caldarium (a sala quente) para o frigidarium.

 Não apenas os Wagner, a maioria dos amigos teve uma reaçãonegativa. A recepção do público leitor não foi diferente: um anodepois, apenas 120 exemplares — de uma tiragem de mil — tinhamachado compradores. Mas entre os amigos houve pelo menos duas

exceções notáveis: o historiador Jacob Burckhardt e o filósofo PaulRée. O primeiro, que já não via com bons olhos o wagnerianismode Nietzsche, qualificou o livro de “soberano”. O segundo foi o principal interlocutor de Nietzsche no período de gestação de

umano, demasiado humano.De outubro de 1876 a setembro de 77, Nietzsche obteve licença

médica da Universidade da Basiléia. Ele sofria de sintomas que às

ezes o incapacitavam totalmente para o trabalho: enxaquecas,dores nos olhos, náuseas, vômitos. Convidado por uma amiga, aaristocrata e feminista Malwida von Meysenbug, ele passou umatemporada em Sorrento, na Itália, juntamente com Rée e um jovemdiscípulo. Os quatro formaram uma pequena família de pensadores.As leituras do grupo, em geral escolhidas e feitas em voz alta por Rée, viriam a ter ressonância nas páginas de Humano, demasiado

humano: entre os autores lidos e discutidos estavam Montaigne, LaRochefoucauld, Vauvernagues e Stendhal. O próprio Rée era autor de ensaios filosófico-psicológicos de viés materialista (Nietzsche serefere a eles nas seções 36 e 37). Não surpreende, portanto, que ocasal Wagner atribuísse a “lamentável” obra do amigo à influênciade Paul Rée — cuja ascendência judaica foi registrada e censurada por Cosima em seu diário.

Além de tudo, quando foi publicado, em abril de 1878,umano, demasiado humano  trazia na capa uma homenagem a

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Voltaire: era dedicado à memória do “grande liberador do espírito”,na ocasião do centenário de sua morte. Nietzsche tinha 33 anosentão. O novo livro era uma declaração de independência,representava a sua maioridade intelectual. Também a atitude emrelação a Schopenhauer, o pensador venerado conjuntamente por ele e Wagner, experimentou mudança: em várias seções ele éexplicitamente criticado.

Para o leitor que conhece as obras da última fase do autor — de Além do bem e do mal   em diante —, a impressão inicial é desurpresa: não só o estilo é classicamente contido, como nãoaparecem os termos geralmente associados ao nome de Nietzsche:

super-homem, eterno retorno, vontade de poder, etc. Mas o leitor também percebe que, como os livros posteriores, este é divididoem seções numeradas. Foi nele que Nietzsche utilizou pela primeiraez a forma do aforismo. Fez dela uma utilização pessoal, pois

tradicionalmente o aforismo era uma sentença breve e incisiva,sintetizando um conceito ou julgamento. Assim o encontramos nosmoralistas franceses mencionados e no alemão Georg Christoph

Lichtenberg (também nos românticos Schlegel e Novalis, mas comoutro espírito). Os “aforismos” de Nietzsche cobrem de uma ouduas linhas a várias páginas. Nisso é clara a influência doSchopenhauer de Parerga e paralipomena , que traz, segundo o próprio autor, “pensamentos ordenados sistematicamente, sobretemas diversos”. Nietzsche reuniu as tradições francesa e alemãneste ponto.

Em Humano, demasiado humano, a divisão em capítulos já étemática, e no interior deles há grupos de aforismos com maior ligação entre si. Às vezes há seqüências rigorosamente encadeadas,erdadeiros ensaios incrustados no conjunto. A forma adotada

 permitiu — e ao mesmo tempo refletiu — uma bem maior flexibilidade do pensamento, implicou uma enorme expansão doolhar.

Mas se este livro representou uma guinada, foi uma guinadadentro de um percurso próprio. É possível destacar temas einquietações que o ligam às primeiras obras, e é evidente acontinuidade entre ele e as obras posteriores. Abrindo  Além do beme do mal , publicado oito anos depois, verifica-se a mesma divisãoem nove capítulos, e já nos títulos se revelam as afinidades dosseus conteúdos: metafísica, moral, religião e arte são os principaisobjetos da crítica nietzscheana, secundados por observações sobre política, sociedade, personalidades, afetos, comportamentos,relações entre os indivíduos e entre os sexos.

 No prólogo do livro seguinte, Genealogia da moral   (1887), oautor explicita a relação com o livro de 1878, remetendo o leitor  para várias seções deste: as de número 45, que trata da “dupla pré-história do bem e do mal”, já contrapondo de maneira incipiente amoral escrava à moral nobre; as de números 96 e 99, sobre a“moralidade do costume”; e a 136, sobre o ascetismo cristão. Ele poderia ter citado várias outras relacionadas a estas, como as que

êm após a 136, que antecipam claramente a terceira dissertação daGenealogia da moral ; ou as que precedem a 45, nas quais tambémá se evidencia a abordagem histórico-genealógica dos fenômenos.

Sem dúvida, o conhecimento dessas formulações iniciais permiteentender melhor a trajetória nietzscheana.

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A comparação entre essas passagens dos livros mostra que Nietzsche ia refinando a análise, à medida que radicalizava a atitude.Tal radicalização abrangeria inevitavelmente o estilo: o prólogo de

umano, demasiado humano, acrescentado à segunda edição, em1886, exibe a mesma prosa arrebatadora dos livros dessa época.

 Não é preciso pesquisar muito para encontrar mais passagensantecipadoras de idéias e atitudes da época madura. A noção de perspectivismo, a ênfase na impossibilidade de um puro conhecer,é prenunciada nos §§ 32, 33 e 34. Indícios de uma visão da psicologia como “o caminho para os problemas fundamentais”, talcomo seria apresentada no § 23 de Além do bem e do mal , já estão

nas primeiras seções do segundo capítulo (que originalmente seria o primeiro). O escrutínio psicológico da natureza artística, queculminaria no célebre § 269 de ABM , aparece em seções como a denúmero 164.

A idealização dos heróis e seres superiores transparece no § 81,no qual a distância entre um príncipe e um plebeu é considerada tãogrande quanto aquela entre um ser humano e um inseto. Ele,

 Nietzsche, “põe-se no lugar” (os termos originais são maisexpressivos: sich in die Seele versetzen, “pôr-se na alma”) do poderoso. Deparamos com o modo de pensar antiigualitário por excelência. A glorificação da força, já presente no adolescente Nietzsche (no fascínio pelas sagas nórdicas, que o levou a esboçar um longo “poema sinfônico” sobre o rei Ermanarique), permaneceria em toda a sua obra — de modo que não foi

inteiramente descabido o uso que os nazistas fizeram de suasteorias. Thomas Mann, um grande admirador e herdeiro espiritualde Nietzsche, seria um dos poucos a reconhecer isto, no ensaio “filosofia de Nietzsche à luz da nossa experiência”, de 1947.

Algumas seções ou parágrafos que podem igualmente ser mencionados, agora como exemplos da originalidade e seriedade dareflexão de Nietzsche, são: o § 13, sobre o mecanismo e o sentido

dos sonhos; o 376, sobre as vicissitudes da amizade; o 379, sobre aformação do caráter na infância; o 406, sobre o requisito para umcasamento; o profético § 473, sobre o socialismo e o terrorismo deEstado; e o 475, em que ele se revela um arauto da unificaçãoeuropéia e que inclui uma bela página sobre o povo judeu. Essesaforismos, entre muitos outros, contribuirão para umenriquecimento da imagem que o leitor tem de Nietzsche.Iluminismo e trevas, dureza e compaixão, ardor e frieza coexistemna alma do nosso filósofo.

Este livro “para espíritos livres”, escrito há mais de cem anos, permanece bastante atual, portanto. Mas, afinal, diferentemente doque significaram em termos de progresso tecnológico, no últimoséculo, cem anos representam muito pouco, no âmbito das coisasque realmente interessam — que são as coisas “primeiras eúltimas”.

 Paulo César de Souza

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GLOSSÁRIO DE NOMES próprios

ANAXIMANDRO (c. 610-547 a.C.): filósofo pré-socrático grego.ARISTÓFANES (444-380 a.C.): comediógrafo grego.ARISTÓTELES (384-322 a.C.): filósofo e cientista grego.ASPÁSIA (século V a.C.): cortesã grega.BACH, Johann Sebastian (1685-1750): compositor barroco

alemão.BAER , Karl Ernst von (1792-1876): naturalista alemão.

BEETHOVEN, Ludwig van (1770-1827): compositor românticoalemão.

BERNINI, Lorenzo (1598-1680): arquiteto barroco italiano.BISMARCK , Otto von (1815-98): chanceler da Prússia entre

1871 e 1890.BUDA  (século V  a.C.): nome dado a Sidarta Gautama, príncipe

hindu.BYRON, lorde, George Gordon (1788-1824): poeta romântico

inglês.CALDERÓN DE LA BARCA (1600-81): dramaturgo espanhol.CALVINO (1509-64): teólogo francês da Reforma.CELLINI, Benvenuto (1500-71): escultor e ourives italiano.CÉSAR , Júlio (100-44 a.C.): general e estadista romano.DEMÓCRITO (c. 460-361 a.C.): filósofo grego.DEMÓSTENES (c. 384-322 a.C.): orador grego.DIÓGENES (c. 412-323 a.C.): filósofo cínico grego.EMPÉDOCLES (c. 490-430 a.C.): filósofo e poeta grego.EPICURO (342-270 a.C.): filósofo grego.EPITETO (século I d.C.): filósofo estóico.ÉSQUILO (c. 525-456 a.C.): dramaturgo grego.EURÍPIDES

 (485-407 a.C.): dramaturgo grego.FREDERICO, O GRANDE (1740-86): rei da Prússia.GOETHE, Johann Wolfgang von (1749-1832): poeta, romancista

e dramaturgo alemão.HESÍODO (século VIII a.C.): poeta grego.HÖLDERLIN, Friedrich (1770-1843): poeta alemão.HOMERO (século IX ou VIII a.C.): poeta épico grego.

HORÁCIO (65-8 a.C.): poeta romano.HUS, Jan (1369-1415): reformador e mártir tcheco.KANT  (1724-1804): filósofo alemão.KEPLER , Johannes (1571-1630): astrônomo alemão.LA ROCHEFOUCAULD , duque de (1613-80): filósofo moralista

francês.LESSING, Gotthold Ephraim (1729-81): dramaturgo e crítico

alemão.LICHTENBERG, Georg Christoph (1742-99): escritor satírico

alemão.LUBBOCK , John (1834-1913), naturalista inglês.LUTERO, Martin (1483-1546): monge alemão, iniciador da

Reforma.MAQUIAVEL (1469-1527): diplomata e filósofo italiano.

MÉRIMÉE, Prosper (1803-70): escritor romântico francês.MICHELANGELO  (1475-1564): pintor, escultor e arquiteto

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italiano.MIRABEAU, conde de (1749-91): estadista e escritor francês.MONTAIGNE, Michel de (1533-92): moralista e ensaísta francês.MURILLO (1617-82): pintor barroco espanhol.

 NAPOLEÃO  BONAPARTE  (1769-1821): general e imperador francês.

 NOVALIS: pseudônimo de Friedrich von Hardenberg (1772-1801): poeta romântico alemão.

PALESTRINA (1525-94): compositor italiano.PARMÊNIDES (século V a.C.): filósofo pré-socrático grego.PASCAL, Blaise (1623-62): matemático e filósofo francês.PÉRICLES

 (495-429 a.C.): estadista orador grego.PÍNDARO (c. 518-446 a.C.): poeta lírico grego.PITÁGORAS (c. 580-500 a.C.): filósofo e matemático grego.PLATÃO (c. 428-348 a.C.): filósofo e prosador grego.PLUTARCO (c. 46-119): biógrafo e historiador grego.RAFAEL (1483-1520): pintor e arquiteto italiano.ROUSSEAU, Jean-Jacques (1712-78): escritor e filósofo francês.

SCHILLER , Friedrich von (1759-1805): poeta, dramaturgo ecrítico alemão.SCHLEIERMACHER , Friedrich (1768-1834): filósofo e teólogo

alemão.SCHOPENHAUER , Arthur (1788-1860): filósofo e prosador 

alemão.SÊNECA (4 a.C.-65 d.C.): filósofo e dramaturgo romano.

SERVETO, Miguel (1511-53): médico e teólogo anticalvinistaespanhol.SHAKESPEARE, William (c. 1564-1616): poeta e dramaturgo

inglês.SIMÔNIDES (c. 556-467 a.C.): poeta lírico grego.SÓCRATES (470-399 a.C.): filósofo grego.SÓFOCLES (496-406 a.C.): dramaturgo grego.

SÓLON (c. 639-559 a.C.): estadista e legislador grego.SPINOZA, Baruch de (1632-77): filósofo holandês de origem

udaica.SWIFT , Jonathan (1667-1745): escritor satírico irlandês.TALES (c. 636-546 a.C.): filósofo pré-socrático grego.TUCÍDIDES (c. 471-401 a.C.): historiador grego.VOLTAIRE (1694-1778): filósofo e escritor iluminista francês.WAGNER , Richard (1813-83): compositor de ópera alemão.XANTIPA (século V a.C.): mulher de Sócrates.XERXES (século V a.C.): rei da Pérsia.

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FRIEDRICH NIETZSCHE nasceu no vilarejo de Roecken, próximo de

Leipzig, na Alemanha, em 15 de outubro de 1844. Estudou letrasclássicas na célebre Escola de Pforta e na Universidade de Leipzig.Durante onze anos foi professor de grego e latim na Universidadeda Basiléia, na Suíça, e por outros onze anos levou uma existênciaerrante, em pequenas cidades da Itália, Suíça, França e Alemanha. Nietzsche perdeu a razão no início de 1889 e viveu em estado dedemência, sob os cuidados da mãe e da irmã, até 25 de agosto de

1900, quando morreu de uma infecção pulmonar. Escreveu, entreoutros livros, A gaia ciência, Humano, demasiado humano,Genealogia da moral   e Ecce homo, todos publicados pelaCompanhia das Letras.

PAULO   CÉSAR DE  SOUZA  é mestre em história social pelaUniversidade Federal da Bahia e doutor em literatura alemã pela

Universidade de São Paulo. Foi professor de línguas, editor daBrasiliense e articulista da Folha de S.Paulo. Além de obras de Nietzsche, traduziu O diabo no corpo, de Raymond Radiguet(Brasiliense, 1985), Histórias do sr. Keuner   (Brasiliense, 1989) e

oemas, de Bertolt Brecht (Editora 34, 2004). Como ensaísta, publicou A Sabinada: a revolta separatista da Bahia, 1837 (Brasiliense, 1987) e As palavras de Freud: o vocabulárioreudiano e suas versões  (Companhia das Letras, 2010), entre

outros. Coordena as coleções de obras de Nietzsche e Freud daCompanhia das Letras.

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COMPANHIA DE BOLSO

Jorge AMADOCapitães da AreiaHannah ARENDT

 Homens em tempos sombriosPhilippe ARIÈS, Roger CHARTIER  (Orgs.)

 História da vida privada 3 — Da Renascençaao Século das Luzes

Karen ARMSTRONG

 Em nome de DeusUma história de Deus Jerusalém

Paul AUSTER 

O caderno vermelhoMarshall BERMAN

Tudo que é sólido desmancha no ar Jean-Claude BERNARDET

Cinema brasileiro: propostas para uma históriaDavid Eliot BRODY, Arnold R. BRODY

 As sete m aiores descobertas científicas da históriaBill BUFORD

 Entre os vândalosJacob BURCKHARDT

 A cultura do Renascimento na ItáliaPeter BURKE

Cultura popular na Idade ModernaItalo CALVINO

O barão nas árvoresO cavaleiro inexistente Fábulas italianasUm general na biblioteca Por que ler os clássicos

O visconde partido ao meioElias CANETTI

O jogo dos olhos A língua absolvidaUma luz em m eu ouvido

Bernardo CARVALHO

 Nove noitesJorge G. CASTAÑEDA

Che Guevara: a vida em vermelhoRuy CASTRO

Chega de saudade Mau humor 

Louis-Ferdinand CÉLINE

Viagem ao fim da noiteJung CHANG

Cisnes selvagensCatherine CLÉMENT

 A viagem de ThéoJ. M. COETZEE

 InfânciaJoseph CONRAD

Coração das trevas Nostromo

Alfred W. CROSBY Im perialismo ecológico

Robert DARNTON

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O beijo de LamouretteCharles DARWIN

 A expressão das emoções no homem e nosanimais

Jean DELUMEAU

 História do medo no OcidenteGeorges DUBY

 História da vida privada 2 —  Da Europa feudal à Renascença (Org.) Idade Média, idade dos homens

Mário FAUSTINO

O homem e sua horaRubem FONSECA

 Agosto A grande arteMeyer FRIEDMAN,Gerald W. FRIEDLAND

 As dez maiores descobertas da medicinaJostein GAARDER 

O dia do CuringaVita brevis

Jostein GAARDER , Victor HELLERN,Henry  NOTAKER 

O livro das religiõesFernando GABEIRA

O que é isso, com panheiro?Luiz Alfredo GARCIA-ROZA

O silêncio da chuvaEduardo GIANNETTI

 AutoenganoVícios privados, benefícios públicos?

Edward GIBBON

 Declínio e queda do Império Rom anoCarlo ginzburg Os andarilhos do bemO queijo e os vermes

Marcelo GLEISER 

 A dança do UniversoTomás Antônio GONZAGA

Cartas chilenasPhi LIP GOUREVITCH

Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos m ortos com nossas fam ílias

Milton HATOUM

Cinzas do Norte

 Dois irmãos Relato de um certo Oriente

Eric HOBSBAWM

O novo séculoAlbert HOURANI

Uma história dos povos árabesHenry JAMES

Os espólios de Poynton

 Retrato de um a senhoraIsmail KADARÉ

 Abril despedaçadoFranz KAFKA

O casteloO processo

John KEEGAN

Uma história da guerraAmyr KLINK 

Cem dias entre céu e mar 

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Jon KRAKAUER 

 No ar rarefeitoMilan KUNDERA

 A arte do romance A identidade

 A insustentável leveza do ser  A lentidãoO livro do riso e do esquecimento A valsa dos adeuses

Danuza LEÃO

 Na sala com DanuzaPrimo LEVI

 A trégua

Paulo LINS

Cidade de DeusGilles LIPOVETSKY

O império do efêmeroClaudio MAGRIS

 Danúbio Naguib MAHFOUZ

 Noites das m il e uma noites

 Norman MAILER  (jornalismo literário) A luta

Janet MALCOLM (jornalismo literário)O jornalista e o assassino

Javier MARÍAS

Coração tão brancoIan MCEWAN

O jardim de cimentoHeitor MEGALE (Org.)

 A demanda do Santo Graal Evaldo Cabral de MELLO

O negócio do Brasil O nome e o sangue

Patrícia MELO

O matador 

Luiz Alberto MENDES Memórias de um sobrevivente

Jack MILES

 Deus: uma biografiaAna MIRANDA

 Boca do InfernoVinicius de MORAES

 Livro de sonetos

 Antologia poéticaFernando MORAIS

OlgaToni MORRISON

 JazzVladimir NABOKOV

 LolitaV. S.  NAIPAUL

Uma casa para o sr. BiswasFriedrich  NIETZSCHE

 Além do bem e do mal  Ecce homoGenealogia da moral  Humano, demasiado humanoO nascimento da tragédia

Adauto  NOVAES (Org.) ÉticaOs sentidos da paixão

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Michael ONDAATJE

O paciente inglêsMalika OUFKIR , Michèle FITOUSSI

 Eu, Malika Oufkir, prisioneira do rei Amós OZ 

 A caixa-pretaJosé Paulo PAES (Org.) Poesia erótica em traduçãoGeorges  PEREC 

 A vida: modo de usar  Michelle  PERROT  (Org.) História da vida privada 4 — Da Revolução Francesa à Primeira Guerra

Fernando PESSOA

 Livro do desassossego Poesia com pleta de Alberto Caeiro Poesia com pleta de Álvaro de Campos Poesia com pleta de Ricardo Reis

Ricardo PIGLIA

 Respiração artificial Décio PIGNATARI (Org.)

 Retrato do am or quando jovemEdgar Allan POE

 Histórias extraordináriasAntoine PROST, Gérard VINCENT (Orgs.)

 História da vida privada 5 — Da PrimeiraGuerra a nossos dias

David REMNICK  (jornalismo literário)O rei do mundo

Darcy RIBEIROO povo brasileiro

Edward RICE

Sir Richard Francis BurtonJoão do RIO

 A alm a encantadora das ruasPhilip ROTH

 Adeus, Columbus

O avesso da vidaElizabeth ROUDINESCO

 Jacques LacanArundhati ROY

O deus das pequenas coisasMurilo RUBIÃO

 Murilo Rubião — Obra completaSalman RUSHDIE

 Haroun e o Mar de HistóriasOriente, OcidenteOs versos satânicos

Oliver SACKS

Um antropólogo em MarteTio TungstênioVendo vozes

Carl sagan Bilhões e bilhõesContatoO mundo assombrado pelos demônios Edward W. said Cultura e imperialismoOrientalismo José saramagoO Evangelho segundo Jesus Cristo História do cerco de Lisboa

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O homem duplicado A jangada de pedra Arthur schnitzler  Breve romance de sonho

Moacyr SCLIAR 

O centauro no jardim A majestade do Xingu A mulher que escreveu a Bíblia

Amartya SEN

 Desenvolvimento como liberdadeDava SOBEL

 LongitudeSusan SONTAG

 Doença com o metáfora / aids e suas metáforasJean STAROBINSKI

 Jean-Jacques RousseauI. F. STONE

O julgamento de SócratesKeith THOMAS

O homem e o mundo natural Drauzio VARELLA

 Estação CarandiruJohn UPDIKE

 As bruxas de Eastwick Caetano VELOSO

Verdade tropical Erico VERISSIMO

Clarissa

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Xinran As boas mulheres da China

Ian WATT

 A ascensão do romance

Raymond WILLIAMSO campo e a cidade

Edmund WILSON

Os manuscritos do mar Morto Rumo à estação Finlândia

Simon WINCHESTER 

O professor e o louco

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7/21/2019 NIETZSCHE, Friedrich - Humano, Demasiado Humano

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Copyright da tradução, notas e posfácio © 2000 by Paulo César Lima de Souza

Título original Menschliches, Allzumenschliches. Ein Buch für freie Geister (1878, 1886)

Capa

Jeff Fisher 

 PreparaçãoMárcia Copola

evisãoRenato Potenza RodriguesJosé Muniz Jr.

 ISBN 978-85-8086-407-6 Todos os direitos desta edição reservados àeditora schwarcz ltda.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 — São Paulo — spTelefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br