edição nº 14 - são paulo, 2009

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São Paulo 2009 REVISTA BRASILEIRA DE

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Revista Brasileira de Literatura Comparada

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Page 1: Edição Nº 14 - São Paulo, 2009

São Paulo2009

REVISTABRASILEIRA

DE

Page 2: Edição Nº 14 - São Paulo, 2009

DiretoriaDiretoriaDiretoriaDiretoriaDiretoria A B R A L I C 2009-2011

PresidentePresidentePresidentePresidentePresidente Marilene Weinhardt (UFPR)

Vice-presidenteVice-presidenteVice-presidenteVice-presidenteVice-presidente Luiz Carlos Santos Simon (UEL)

1º Secretário1º Secretário1º Secretário1º Secretário1º Secretário Benito Martinez Rodriguez (UFPR)

2º Secretária2º Secretária2º Secretária2º Secretária2º Secretária Silvana Oliveira (UEPG)

1º T1º T1º T1º T1º Tesoureiroesoureiroesoureiroesoureiroesoureiro Luís Gonçales Bueno de Camargo (UFPR)

2º T2º T2º T2º T2º Tesoureiroesoureiroesoureiroesoureiroesoureiro Maurício Mendonça Cardozo (UFPR)

Conselho FiscalConselho FiscalConselho FiscalConselho FiscalConselho Fiscal José Luís Jobim (UERJ, UFF)

Lívia Reis (UFF)

Sandra Margarida Nitrini (USP)

Helena Bonito Couto Pereira (Universidade Mackenzie)

Arnaldo Franco Junior (UNESP - S. J. do Rio Preto)

Carlos Alexandre Baumgarten (FURG)

Rogério Lima (UnB)

Sueli Cavendish de Moura (UFPE)

SuplentesSuplentesSuplentesSuplentesSuplentes Adeítalo Manoel Pinto (UEFS)

Zênia de Faria (UFG)

Conselho editorialConselho editorialConselho editorialConselho editorialConselho editorial Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza,

Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima,

Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Yves

Chevrel.

A B R A L I CCNPJ 91.343.350/0001-06Universidade Federal do ParanáRua General Carneiro, 460, 11.o andar80.430-050, Curitiba - PRE-mail: [email protected]@[email protected]@[email protected]

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REVISTABRASILEIRA

DE

ISSN 0103-6963

Rev. Bras. Liter. Comp. São Paulo n.14 p. 1-311 2009

Page 4: Edição Nº 14 - São Paulo, 2009

2008 Associação Brasileira de Literatura ComparadaA Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963)é uma publicação semestral da Associação Brasileira de LiteraturaComparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congregaprofessores universitários, pesquisadores e estudiosos de LiteraturaComparada, fundada em Porto Alegre, em 1986.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá serreproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados,sem permissão por escrito.

EditorEditorEditorEditorEditor Luís Bueno

OrganizadoraOrganizadoraOrganizadoraOrganizadoraOrganizadora Marilene Weinhardt

Comissão editorialComissão editorialComissão editorialComissão editorialComissão editorial Luiz Carlos Santos Simon

Benito Martinez Rodriguez

Silvana Oliveira

Luís Bueno

Maurício Mendonça Cardozo

Preparação/RevisãoPreparação/RevisãoPreparação/RevisãoPreparação/RevisãoPreparação/Revisão Patrícia Domingues Ribas

DiagramaçãoDiagramaçãoDiagramaçãoDiagramaçãoDiagramação Rachel Cristina Pavim

Revista Brasileira de Literatura Comparada / AssociaçãoBrasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) –Rio de Janeiro: Abralic, 1991-v.2, n.14, 2009

ISSN 0103-6963

1. Literatura comparada – Periódicos. I. AssociaçãoBrasileira de Literatura Comparada.

CDD 809.005CDU 82.091 (05)

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Sumário

ApresentaçãoMarilene Weinhardt

Luís Bueno 7

Artigos

Realismo: a persistência de um mundo hostilTânia Pellegrini 11

A imagologia no Brasil: primeira tentativa de sistematizaçãoCeleste H. M. Ribeiro de Sousa 37

O artista fantasma e a máquina mitológicaRaúl Antelo 57

A condição americana da nossa identidadee a história da literatura brasileira

Luiz Roberto Velloso Cairo 77

Nações em confronto: as histórias literáriase as literaturas comparadas no século XIX

Luiz Eduardo Oliveira 99

Entre o cânone e a história: notas sobre historiografialiterária e escrita da história

Erivan Cassiano Karvat 117

Considerações sobre a teoria e o método histórico-literárioMarcos Rogério Cordeiro 141

História híbrida da literatura: uma questão de gênerosBiagio D’Angelo 173

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A imaginação do passado: uma contribuição de Alexandre Eulalioà crítica literária brasileira

Silvia Quintanilha Macedo 191

Alexandre Herculano, Gonçalves Dias e a teoria da históriaWilton José Marques 207

A paródia como fantasmaJosalba Fabiana dos Santos 227

Graciliano Ramos e “os fuzuês de Rocambole”:leituras sob o império da imaginação

Fernanda Coutinho 247

E se o reverso da história chegasse em dobras:os mutantes em Maria Gabriela Llansol

Celina Martins 263

Porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro:memory and narrative in Antonio Lobo Antunes

Aino Rinhaug 285

Pareceristas 305

Normas da revista 307

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Apresentação

A escolha do tema deste número 14 da Revista Brasilei-ra de Literatura Comparada, “Literatura Comparada eHistoriografia Literária”, tinha a intenção de propor umdesafio. Desafio constituído, em primeiro lugar, pela gran-de amplitude do debate que envolve essas duas áreas. E,também, por tratar-se de aproximação entre elas, que mui-tas vezes têm permanecido distantes.

As respostas a esse desafio foram bastante abrangentes,e vários temas e questões as atravessam nos mais diferen-tes sentidos. Ordenar as contribuições que nos chegaramnão foi, portanto, tarefa fácil. Como se sabe, ordenar é pro-por um itinerário em linha reta. Que critério usar? Dianteda constatação de que qualquer caminho linear seria in-suficiente, a opção foi pelo modelo mais simples. Assim,apresentam-se inicialmente os artigos que se debruçamsobre problemas e, em seguida, os que se debruçam sobreautores. É evidente que até mesmo essa divisão é compli-cada, mas é pelo menos um ponto de partida.

Dessa maneira, o artigo “Realismo: a persistência deum mundo hostil”, de Tânia Pellegrini, parte da observa-ção da literatura brasileira contemporânea e de sua filiaçãoa algo que tantas vezes já foi dado como superado e esgo-tado: o realismo. Investigando as origens do realismo comomovimento no século XIX, em cuja base estaria a reação aum mundo hostil, propõe, ao final, que o realismo não pro-cura reproduzir o real, mas sim “refratá-lo”, dar-lhe umaresposta estética. Se o mundo hostil permanece, essa rea-ção tende a também permanecer.

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“A imagologia no Brasil: primeira tentativa de siste-matização”, de Celeste H. M. Ribeiro de Sousa, além deapresentar o debate atualmente em curso nesta importan-te área da literatura comparada, procura pensá-la no Bra-sil construindo um panorama histórico das imagens do Brasilproduzidas pela literatura.

Raúl Antelo, em “O artista fantasma e a máquina mi-tológica”, nos apresenta um movimento de vanguardanovaiorquino do início do século XX, pouco conhecidoentre nós, o inje-inje, localizando-o perante os outros movi-mentos de vanguarda do período e apontando o quanto,na forma particular de primitivismo que criou, tem a dizerà contemporaneidade.

A problemática condição americana dos brasileiros, quefrequentemente se veem apenas como brasileiros, identifi-cando o americano nos homens das outras nações do con-tinente – seja de fala espanhola, inglesa ou francesa –,ganha nova luz no artigo de Luiz Roberto Velloso Cairo, “Acondição americana da nossa identidade e a história daliteratura brasileira”. O recuo ao século XIX, quando odebate sobre o nosso “caráter nacional” se cristaliza, e orecurso às histórias literárias, lugar privilegiado desse de-bate, permite apanhar o problema em seu nascedouro erevelar facetas novas e reveladoras da questão.

Um tema vizinho a esse é explorado por Luiz EduardoOliveira em “Nações em confronto: as histórias literárias eas literaturas comparadas no século XIX”. Retomando osdebates que fundam a história literária no ocidente,notadamente o papel que as línguas nacionais ocupam comoelemento diferenciador da nacionalidade, procura escla-recer um outro lado da questão. Ao retomar a historiografialiterária brasileira do século XIX, trata do apagamento dasdiferenças que se opera para que seja possível construiruma ideia una do que seja a nação.

E é ainda a ideia de nação que serve de eixo para adiscussão das relações entre a teoria da história e a teoriada literatura levada a cabo por Erivan Cassiano Karvat em“Entre o cânone e a história: notas sobre historiografia li-

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Apresentação 9

terária e escrita da história”. Partindo do ponto de vista dohistoriador, ele examina parte da historiografia literáriabrasileira do século XIX e propõe que a história literáriaseja vista menos como algo que consolide uma tradição emais como uma história da leitura.

A relação entre literatura e história, vista num longobalanço interpretativo que abarca as obras fundamentaisde Lucien Febvre, Raymond Williams, Carlo Ginzburg,Hayden White, Georg Lukács, Walter Benjamin, TheodorAdorno e Erich Auerbach, reaparece em “Consideraçõessobre a teoria e o método histórico-literário”, de MarcosRogério Cordeiro.

Biagio D’Angelo, em seu “História híbrida da litera-tura: uma questão de gêneros”, faz um caminho noutrosentido: propositivo. Procurando apontar as limitações dahistoriografia literária tradicional, indica o papel centralque a literatura comparada tem numa outra historiografialiterária, mais atenta à “contaminação”, ou seja, às fron-teiras – nacionais, de gênero e tantas outras.

Localizado ele próprio no entroncamento que dividiuhistoricamente a crítica brasileira em duas, a “jornalística”e a “acadêmica”, Alexandre Eulalio é evocado por SílviaQuintanilha Macedo em “A imaginação do passado: umacontribuição de Alexandre Eulalio à crítica literária brasi-leira”. E essa evocação chega exatamente para matizar umavisão monolítica, composta por formas estanques de ver aliteratura – afinal, é apenas num arcabouço mental comoesse que se pode falar em “divisão”, em separação radical.

Certas concepções de Alexandre Herculano acercada história são convocadas por Wilton José Marques em“Alexandre Herculano, Gonçalves Dias e a teoria da his-tória”, como forma de apresentar Gonçalves Dias, em seumomento de formação: não o autor consagrado anos de-pois pela crítica do próprio Herculano, mas o autor doinacabado Meditação.

Josalba Fabiana dos Santos lança mão do conceito deparódia para reavaliar a obra de Cornélio Penna. Se a crí-tica já aproximou a obra do escritor brasileiro ao romance

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gótico, foi no sentido de apontar seu anacronismo. Em “Aparódia como fantasma”, essa aproximação é refeita, masagora o Cornélio Penna é visto como um escritor moderno,que lança mão da paródia do romance gótico, incorporan-do-o como fantasma ao seu próprio texto.

Ao flagrar um Graciliano Ramos menino, no interiorde Alagoas, leitor do Rocambole, Fernanda Coutinho, emseu “Graciliano Ramos e ‘os fuzuês de rocambole’: leiturassob o império da imaginação”, aponta o alargamento devisão que pode representar para a historiografia literárianacional lançar mão dos estudos comparatistas.

Por meio da leitura da obra de Maria Gabriela Llansol,nomeadamente a análise meticulosa de O livro das comuni-dades, o artigo “E se o reverso da história chegasse em do-bras: os mutantes em Maria Gabriela Llansol”, de CelinaMartins, nos convida a pensar a história como algo nãolinear e mesmo não cronológico, e a ficção como o espaçoem que os eventos atualizam-se como relação e como lei-tura, engendrando mais uma vez esses mesmos eventos.

E se a escrita desconstrói/reconstrói a história, quepapel não terá em uma outra forma de recuperação do pas-sado: a memória. É isso que investiga Aino Rinhaug em“Porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro – Memoryand narrative in Antonio Lobo Antunes” por meio da abor-dagem de Ontem não te vi em Babilónia, da obra recente doromancista português.

Para além desse caminho, convidamos o leitor a proporoutras trajetórias, outras recorrências e outras histórias.

Marilene WeinhardtLuís Bueno

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Realismo: a persistência de um mundo hostil

Tânia Pellegrini*

RESUMO: O objetivo deste artigo é procurar explicar a persis-tência do realismo como técnica expressiva, nas narrativas con-temporâneas, com base na análise de alguns aspectos da evolu-ção do conceito, propondo que ele esteticamente opera, ao longoda história, uma refração da realidade e não uma “cópia”, uma“imitação” ou mesmo uma “interpretação”. Tal ponto de vista,de caráter histórico e social, permite entender sua continuida-de como corolário da persistência do mesmo “mundo hostil”que lhe deu origem.

PALAVRAS-CHAVE: realismo, romance, representação, refração.

ABSTRACT: This text aims to explain the persistence of realismas an expressive technique in contemporary narrative, departingfrom the analysis of some aspects of its evolution. It defendsthat it esthetically operates, in the course of history, a refractionof reality and not a “copy”, or “imitation”, or either aninterpretation of it. This point of view, of a historical and socialcharacter, allows understanding realism’s continuity as acorollary of the persistence of the same “hostile world” whichallowed its birth.

KEYWORDS: realism, novel, representation, refraction.

Le débat de ma vie a été celui de l’expression des chosesqui existent en dehors de moi, qui m’ont précedé en cemonde et y subsisteront quand j’en aurai été éffacé. Dansle langage abstrait cela s’appelle le réalisme. (Louis Aragon, 1963)

* Departamento de Letras ePrograma de Pós-Graduaçãoem Sociologia daUniversidade Federal de SãoCarlos (UFSCar).

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Gênero e realidade

Um exame mais cuidadoso da produção ficcional bra-sileira das últimas décadas chama a atenção para um dadono mínimo curioso: cada vez mais se acentua a tendênciarealista das formas de narrar. Convivendo com outras pos-sibilidades expressivas, essa tendência cresce sensivelmen-te, desde a década de 1970, sustentando-se na veia imagi-nativa preferencialmente urbana que a alimenta, fértil detodo tipo de matéria humana, das mais elevadas às maisignóbeis. A persistência desse realismo, ao mesmo tempoque fascina, intriga e faz pensar em possíveis razões e moti-vos: a que se deveria o eterno retorno dessas representaçõesdocumentais, explícitas, figurativas? Que força teriam elaspara competir com a consagração e poder das soluçõesmodernistas? Qual o sentido social dessas reconfiguraçõesmiméticas da realidade? Com base nestas questões, o fiocondutor deste texto, de viés histórico-teórico, é exata-mente a ideia de que o realismo em literatura continuavivo e atuante nas formas narrativas contemporâneas, as-sumindo as mais diferentes roupagens e possibilidades deexpressão.

A aparente obviedade do termo realismo escondeambiguidades de sentido e imprecisões que sempre o fize-ram difícil de apreender e definir, tanto no campo artísticoquanto no literário, uma vez que evidência e visibilidade– sua “visualidade” – aparentam constituir o segredo desua longa vida. Além disso, as duas palavras das quais eledepende, real e realidade, têm uma história bastante com-plexa, ligada a concepções filosóficas intrincadas, que re-montam a séculos, nas diferentes línguas. Mesmo depoisda explosão das vanguardas artísticas do início do séculoXX, quando passou a carregar uma espécie de estigma, sig-nificando atraso estético e conservadorismo político, perma-necendo esmaecido no convívio com soluções expressivasde ponta, as controvérsias sobre seu sentido continuaramfortes, indicando que seu potencial expressivo não se es-gotara. E hoje, ressurgindo com força na prática dos ar-

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tefatos culturais contemporâneos, tanto literários quantoaudiovisuais – e não só brasileiros –, suscita novas interro-gações sobre seu valor e vitalidade.1

Visto como um fenômeno que encontrara tempos pro-pícios para eclodir em meados do século XIX, na França,no bojo do positivismo, espalhando-se pelo ocidente, rea-lismo tem sido usado para definir qualquer representaçãoartística que se disponha a “reproduzir” o mundo concretoe suas configurações. E, de modo geral, qualquer que sejao ponto de vista teórico, aceita-se que ele emergiu de umprocesso histórico-social específico, traduzindo a naturezaturbulenta da realidade oitocentista: corresponde ao po-der crescente da ideologia burguesa europeia, procurandodar forma própria à cultura e trazendo o povo para o centroda cena, com uma postura politicamente revolucionária,ligada, em muitos autores, aos ideais socialistas surgidosda Revolução Francesa. Libertário, subversivo, confiante,contestador de tradições e instituições, filho dileto de umséculo de revoluções, para dizer como Hobsbawn (1981),encarnava então o que havia de mais moderno em termosde arte e literatura. Dessa maneira cresceu e se ramificou,fazendo da objetividade da experiência do indivíduo, desua vida articulada e contínua e de sua luta contra um“mundo hostil” o tema preferencial.

Sabe-se que não se trata apenas de um conjunto deideias, mas também de uma convenção artística extrema-mente adequada principalmente ao romance. Sabe-se tam-bém que os mesmos traços que o valorizaram seriam, maistarde, o motivo de seu repúdio, tornando-o, assim, um dosmais fascinantes problemas relacionados à arte e à litera-tura, graças a sua persistente capacidade de transmudar-se, travestir-se, transformar-se, espantando críticos e teó-ricos com a sua vitalidade.

Nesse sentido, o objetivo deste artigo é analisar al-guns aspectos da evolução desse conceito – nos termosadequados a um trabalho como este –, propondo que eleesteticamente opera, ao longo da história, uma refraçãoda realidade e não uma “cópia”, uma “imitação” ou mes-

1 É importante advertir queeste texto é um work inprogress, etapa de um projetomaior que venhodesenvolvendo desde 2007,primeiro com um pós-doutorado no Centre forBrazilian Studies, daUniversidade de Oxford,com auxílio da Fapesp, edepois com uma bolsa-produtividade do CNPq,investigando as recorrênciasrealistas na ficção brasileiracontemporânea.

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mo “interpretação”, o que permite entender sua continui-dade como corolário da persistência do mesmo “mundohostil” que lhe deu origem.

Desde o início, o romance acomodou-se de modo maisque perfeito ao realismo, por sua incompletude e berço in-certo e por eleger como epicentro da narração um indiví-duo determinado. De ossatura ainda não consolidada, se-gundo Bakhtin, o gênero era capaz de refletir “maisprofundamente, mais substancialmente, mais sensivelmentee mais rapidamente a evolução da própria realidade”(Bakhtin, 1988, p. 400).

A relação entre sua constante mudança e a transfor-mação da realidade é que lhe dá abertura para a incorpo-ração do povo como um critério maior ou menor de veraci-dade, num momento histórico em que a pressão das massasafirma-se como poder e como ameaça. Pode-se afirmar,então, que o chamado “realismo clássico” ou “burguês” –independentemente da extração social dos seus autores –é a representação necessária de uma nova realidade, emque o confronto das forças sociais e a figuração da vida desujeitos comuns são tomados de modo “sério” e até mesmo“trágico”, como frisa Auerbach (1974), de acordo com anova ordem social e o novo gênero, cuja forma lhecorresponde. A representação séria desses sujeitos não aris-tocráticos está ligada sobretudo à dimensão biográfica nointerior da qual o romance os coloca, construindo para elesespaços e tempos sem transcendência; não existem maisdeuses, nem o peso do destino ou do sangue, mas a cargade determinações diversas, como o meio, a hereditariedadee a própria história, tão terríveis quanto a imponderabilidadedo fatum.

Alguns estudiosos identificam no realismo do séculoXIX dois traços essenciais: uma exigência e uma contradi-ção. A exigência consistiria na palavra-chave “verdade”,que, para eles, acabou por destronar, na escala dos “valo-res estéticos e morais”, outros valores como o “bom gosto eo sentimento”, relacionados à aristocracia. A contradição

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residiria no estatuto da representação, pois, escolhendorepresentar o homem médio ou inferior, corria-se o risco decair no estereótipo e no clichê, dos quais precisamente sepretendia escapar, pois representar “un personnage simpleempêche l’approfondissement psychologique” (Larroux,1995, p. 76).2

Opiniões de outro tipo apontam a contradição em ter-mos de um conflito difícil de resolver entre a subjetividadedo artista e a objetividade que almeja; assim, o realismoseria mais bem percebido não em termos de uma objetivida-de inatingível, da “cópia fiel”, mas da técnica da impessoalidade,por meio da qual o artista constrói uma estrutura de persua-são aparentemente autônoma, uma ilusão de realidade fortee convincente (Williams, 1978, p. 13).

Digamos que aí se enfrentam questões de conteúdo ede forma, uma espécie de nó-cego, alimentando a polêmi-ca até hoje não resolvida, desde quem considera o realis-mo como uma “estética ruim”, por exemplo, até quem otoma como uma “necessidade histórica”. Na verdade, oque está em jogo é a interpretação dos conceitos de reali-dade e de representação, mutável ao longo da história.

Realidade e ilusão

A possibilidade de uma representação fiel, isto é, acomplexa relação estabelecida entre o sujeito criador e oobjeto criado já era um problema consciente para os realis-tas da primeira hora. Champfleury e Duranty,3 no alvore-cer do novo estilo, já apontavam as “deformações” ineren-tes ao ato de representar, como comprovam seus inúmerosartigos. Afirma o primeiro:

La reproduction de la nature par l’homme ne sera jamaisune reproduction ni une imitation, ce sera toujours uneinterpretation. […] À quoi tient cette difference? À ceque l’homme, quoi qu’il fasse pour se rendre l’esclave de lanature, est toujours emporté par son tempérament parti-culier qui le tient depuis les ongles jusqu’aux cheveux et

2 “um personagem simplesimpede o aprofundamentopsicológico.”

3 Champfleury é opseudônimo do escritorfrancês Jules Husson (1821-1889), tido como o iniciadordo movimento realista naliteratura francesa; Durantyrefere-se ao também escritorLouis Emile EdmondDuranty (1833-1880).

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qui le pousse à rendre la nature suivant l’impression qu’ilen reçoit. (L’ aventurier Challes) (Champfleury, 1973, p.171).4

Flaubert, discordando deles, já nesse tempo, sonhafazer uma obra com o mínimo possível de matéria real, comose depreende do conhecido fragmento de uma carta sua aLouise Colet, em 1852:

Ce qui me semble beau, ce que je voudrais faire, c’est unlivre sur rien, un livre sans attache extérieure, qui se tien-drait de lui-même par la force interne de son style, commela terre sans être soutenue se tient en l’air, un livre quin’aurait presque pas de sujet ou du moins où le sujet seraitpresque invisible, si cela se peut (apud Glaudes, 1999, p.187).5

Mas, de modo geral, os “realistas clássicos” procuramadquirir primeiro uma competência específica em relaçãoà matéria selecionada, para depois criar, a partir de umacúmulo de informações. Contudo, não renunciam ao atoficcional propriamente dito, pois sabem que o texto realis-ta não copia o real, mas pretende fazer crer que remete auma realidade verificável. Daí a ideia de ilusão, de men-tira, que se perpetuou, pois existe um sujeito, um olharque enquadra, recorta, organiza, confere um sentido àquiloque se observa e documenta, ainda como desordem e au-sência de significado.

É o que atesta também uma carta de Zola ao seu ami-go Antony Valabrègue, escrita em agosto de 1864, no augedas grandes discussões a respeito da afirmação do novomovimento artístico:6

Je me permets, au début, une comparaison un peu risqué:toute oeuvre d’art est comme une fenêtre ouverte sur lacreation; il y a, enchâssé dans l’embrassure de la fenêtre,une sorte d’ Ecran transparent, à travers lequel on aper-çoit les objets plus au moins déformés, souffrant des chan-gements plus ou moins sensibles dans leurs lignes et dans

4 “A reprodução da naturezapelo homem nunca será umareprodução nem umaimitação, mas sempre umainterpretação. A que se deveessa diferença? A que ohomem, por mais que façapara se tornar escravo danatureza, é sempre levadopor seu temperamentoparticular, que o prende dasunhas aos cabelos e que oleva a tomar a natureza deacordo com a impressão quedela recebe (O aventureiroChalles)”.

5 “O que me parece belo, oque eu gostaria de fazer, éum livro sobre nada, um livrosem ligação exterior, que porsi mesmo se mantivesse,devido à força interna de seuestilo, como a terra semantém no ar semsustentação, um livro quequase não tivesse assunto oucujo assunto fosse quaseinvisível, se isso é possível.”

6 Sob o termo “realismo”,nesse momento, abrigam-seainda vários significados, àsvezes coincidentes, às vezescontraditórios. Apenas em1879 define-se o naturalismocomo um movimentodiferente e articulado, com apublicação de O romanceexperimental, de Zola.

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leur couleur. […] La réalité exacte est donc impossibledans une oeuvre d’art. [...] I y a déformation de ce qui exis-te. Il y a mensonge (apud Becker, 2005, p. 154).7

Pesquisando a história do surgimento e evolução dorealismo na França, lendo as obras, os manifestos, os arti-gos e cartas pessoais dos envolvidos – hoje já exaustiva-mente analisados pelas mais diferentes linhas críticas –,nota-se que a polêmica travada naquela época revela tra-ços muito semelhantes aos que, a partir da eclosão das van-guardas modernistas, consideraram morta a própria ideia derepresentação, e quase a mesma de hoje, momento em quenovas possibilidades e dimensões criadas pelas tecnologiasaudiovisuais aguçaram a questão, introduzindo outras pers-pectivas, novos (ir)realismos, novos ilusionismos.

As análises críticas de viés formalista e estruturalista,8

grosso modo, enfatizando que as formas e estruturas dostextos não deveriam ser “contaminadas” pela atenção aquaisquer forças externas, reiteravam a “arte pela arte”, jápostulada por Flaubert; concentrando a atenção na “tela”,tentavam solucionar o dilema, encarando o texto realistacomo um modelo funcional ancorado num pacto de leituraentre o autor e o leitor, de acordo com um conjunto deregras por ambos conhecido, que remonta a Aristóteles.Ou seja, toda a complexa problemática realista reduzia-sea uma questão de linguagem, de organização discursivapura e simples. Essas postulações foram resultado de umnovo momento histórico, cujo correspondente estético eraconsequência da famosa “crise da representação”, comoveremos adiante.

Há, entretanto, um ponto de vista diverso, defendidopor Raymond Williams, nessa mesma época, que introduzoutra nuance no debate: existe uma importância históricaligada ao realismo, ancorada, em última instância, no fatode que ele faz da realidade física e social (no sentido ma-terialista do termo) a base do pensamento, da cultura e daliteratura, não se aceitando que estas estejam voltadasapenas para si mesmas ou que nada se representa além do

7 “Permito-me, de início,uma comparação um tantoarriscada: toda obra de arte écomo uma janela aberta sobrea criação; existe, encaixadana esquadria da janela, umaespécie de tela (écran)transparente, através da qualse percebem os objetos maisou menos deformados, commodificações mais ou menossensíveis nas suas linhas ecores. [...] A realidade exataé, portanto, impossível emuma obra de arte. [...] Hádeformação do que existe.Há mentira.”

8 Apenas como exemplos,Phillipe Hamon, MichelRifaterre, Tzvetan Todorov eo próprio Roland Barthes.Ver Barthes, R. (Org.).Literatura e realidade. Lisboa:Publicações Dom Quixote,1984. Pode-se reconhecernesses autores a influênciado texto de Roman Jakobsonem “Du réalisme artistique”,publicado em 1921. VerTodorov, T. (Ed.). Théorie dela littérature. Paris: Le Seuil,1965. p. 98-108.

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próprio texto. Definido como uma relação essencial entreindivíduo e sociedade, que não se esgota em nenhum dostermos, trata-se de uma categoria fundamental da inter-pretação estética do mundo, em qualquer época:

Neither element, neither the society nor the individual,is there as a priority. The society is not a background againstwhich the personal relationships are studied, nor are theindividuals merely illustrations of aspects of the way oflife. Every aspect of personal life is radically affected bythe quality of the general life, yet the general life is seen atits most important in completely personal terms. We at-tend with our whole senses to every aspect of the generallife, yet the centre of value is always the individual humanperson – not any isolated person, but the many personswho are the reality of general life (Williams, 2001, p. 304-305).9

Para o autor, toda a tradição realista está vinculada,desse modo, a um tipo de romance que cria e atribui valoràs especificidades de um modo de vida, em termos e ca-racterísticas específicas dos sujeitos; isso confere valor aoconjunto, a uma sociedade maior que qualquer dos indiví-duos que são parte dela e, ao mesmo tempo, considera-osimportantes e absolutos em si mesmos. No interior dessatradição de representação realista há, com certeza, múlti-plas variações ou graus de êxito, mas esse ponto de vista,buscando uma apreensão específica da relação entre indi-víduo e sociedade, relativiza a transparência ou a opacida-de da “janela”, a espessura da “tela”, pois o que se valorizasão a organização e o amálgama de diversas modalidadesde experiência representadas: individual e social, subjeti-va e objetiva, reflexiva e prática, pessoal e geral, uma re-fletida na outra, de modo a compor uma visão do todo,incluindo tudo aquilo que diz respeito às atividades hu-manas, quaisquer que sejam elas.

No mesmo diapasão, Ian Watt (1991), discorrendo so-bre a formação do romance inglês, em que identifica um“realismo formal”, sustenta que, todavia, não se trata de

9 “Nenhum elemento, asociedade ou o indivíduo, éprioritário. A sociedade nãoé um pano-de-fundo contra oqual as relações pessoais sãoestudadas, nem os indivíduossão meras ilustrações deaspectos dos modos de vida.Cada aspecto da vida pessoalé radicalmente afetado pelaqualidade da vida geral, masa vida geral, no seu âmago, étotalmente vista em termospessoais. Em todos ossentidos, cada aspecto davida geral é valorizado, mas ocentro dessa valorização ésempre a pessoa humana –não um indivíduo isolado,mas as muitas pessoas queformam a realidade da vidageral.”

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uma questão ligada apenas ao objeto (o tipo de vida repre-sentada), mas ao ponto de vista (a maneira pela qual orealismo é representado):

[...] um conjunto de procedimentos narrativos [...] organi-zados segundo a premissa de que o gênero constitui umrelato completo e autêntico da experiência humana e, por-tanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes dahistória [...] detalhes que são apresentados através de umemprego de linguagem muito mais referencial do que écomum em outras formas literárias (Watt, 1991, p. 31).

Visto também por esse ângulo, o realismo pode ser to-mado como uma postura geral e um método específico,aplicável a qualquer época, na medida em que é historica-mente transformável. Tal postura sempre teve um fortecomponente moral, quando não político; tal método é pre-ferencialmente documental, sendo esses dois adjetivosaqui empregados em sentido lato, significando, em con-junto, um compromisso de descrever os fatos e coisas comorealmente existem. Daí a possibilidade dos muitos realis-mos: naturalista, mágico, fantástico, subjetivo, feroz, sujo,traumático, lírico, romântico, neo, hiper, pós...

Realidade e refração

Posto nesses termos, o realismo adquire um sentidotrans-histórico – que apoia e explica em parte sua persis-tência – e volta a conferir importância particular ao clássi-co conceito de representação, hoje destronado pela ideiapós-moderna de “desreferencialização” da realidade.

A representação realista, aspirando a levar os objetosa uma espécie de evidência imediata, empenha-se em apa-gar a distância que os separa da realidade, mas sempreconsiderando ser a imitação do real menos uma questãode semelhança que de conformidade a regras de composi-ção. E os autores realistas, desde o início, intuem que, ba-seada em representações compartilhadas com o público, a

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obra constrói seu próprio objeto, essencialmente fictício,em referência às imagens mentais que preexistem à obra.

A referência à presença está no centro da ideia de re-presentação. Na origem, representar qualquer coisa é fazê-la aparecer, é mostrá-la in praesentia. Pensando em termoshistóricos, Glaudes (1999, p. 8-10) ensina que o cristianis-mo aceita, em nome da encarnação, a figuração de Deus,ao passo que as outras religiões monoteístas veem perver-são da natureza divina em toda imagem concreta de Deuse de sua criação. Desde a Antiguidade, o culto à imagemviva do Imperador, considerada divina, conferiu dignida-de à representação; em decorrência, a teologia cristã nas-cente, definindo suas condições a partir de dogmas –invisibilidade da essência divina, criação do homem à ima-gem de Deus –, faz nascer a literatura e a arte cristãs,legitimando a ambição de representar. Durante a IdadeMédia, a representação visa a estabelecer no mundo sensí-vel o que, pela própria natureza, é inacessível aos sentidos,compensando uma ausência concreta dificilmente tolerá-vel, em relação às crenças e valores coletivos da época.Assim, as imagens proliferam, contendo em si o espiritual eo temporal, afirmando a presença de Deus na Terra.

Depois de um longo período em que se mesclam pre-venção e liberação, inclusive com a Reforma Protestante,que provocou uma regulação rígida das formas de culto,foi Kant quem associou o gênio do artista ao estado místi-co, colocando o “sublime” acima do “belo” na escala dosvalores estéticos, o qual, para o filósofo, na verdade nãoreside em nenhum objeto da natureza, mas apenas no espí-rito. Desse modo, ele coloca a arte fora da esfera da repre-sentação, elevando-a ao infinito. Para Glaudes (1999),ganha corpo, portanto, uma espécie de prevenção religiosaligada à parte mais sensível e concreta da representação,alimentando todos aqueles, desde Baudelaire até ossurrealistas, que tentarão escapar dos limites tradicional-mente atribuídos à figuração, essência da concepção esté-

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tica realista, bem como à crítica que defende a “arte pelaarte”.

A noção de representações compartilhadas, acima ci-tada, reintroduz o dado conceitual básico – fonte de anti-gos e não resolvidos antagonismos – que norteia este tra-balho: a dependência de todas as artes em relação àscoletividades humanas de que surgem, inscrita na própriahistória da representação, pois, “if literature is a‘representation of life’, then representation is exactly theplace where ‘life’, in all its social and subjective complexity,gets into the literary work” (Lentricchia; McLaughlin, 1990,p. 15).10

Por conseguinte, pode-se dizer que o realismo, toma-do como nova postura e novo método, sobretudo no perí-odo em que aos poucos passa a dominante na literatura, apartir do século XIX, aguça a problemática da representa-ção do mundo, pois, a partir de então, estão postos os ter-mos “modernos” do debate sobre as relações entre literatu-ra e sociedade: os modos de percepção e de compreensãodo mundo social, que sustentam a representação, são de-terminados pelas formas sociais e culturais a que perten-cem; à diversidade dos objetos a representar correspondeuma diversidade de modos de composição que organizaglobalmente essa representação, em cada autor e em cadaépoca. Portanto, o processo representacional efetivado pelorealismo – sua dimensão mimética – não é de qualidadeapenas referencial, descritiva, fotográfica; trata-se de imi-tação em profundidade, cuja perspectiva geral estáinextricavelmente ligada à história e à sociedade.

É necessário enfatizar que a representação realistadepende da mediação – termo também de longa história –,que se firma a partir do início do século XIX, como umamaneira de tentar conciliar as antigas divergências refe-rentes ao ato de representar. Desafiando a ideia de arte eliteratura como simples reflexo – como algo que se vê atra-vés da janela –, a mediação pretende descrever um pro-cesso ativo, não limitado a uma simples reconciliação en-

10 “Se literatura é‘representação da vida’, arepresentação é exatamenteo lugar em que a vida, emtoda a sua complexidadesocial e subjetiva, penetra notrabalho literário.”

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tre opostos, o real de um lado, a obra de outro. Ou seja, nãose pode pretender encontrar realidades sociais refletidas di-retamente na arte, pois estas passam por um processo de me-diação, de refração – esse é o termo que proponho –, noqual seu conteúdo original é modificado, o que envolve,inclusive, questões ideológicas e políticas. Entretanto, issonão significa simplesmente que existe um “meio” (a lin-guagem, as cores, os volumes etc.) traduzindo a realidade,pois “todas as relações ativas entre diferentes tipos de ser econsciência já são inevitavelmente mediadas antes e esseprocesso não é uma instância separada – um ‘meio’ – mas éintrínseca às propriedades dos tipos correlatos” (Williams,1979, p. 101).

A refração, portanto, reside ao mesmo tempo no su-jeito e no objeto e não em alguma coisa entre o objeto eaquilo a que é levado. Assim, trata-se de um processo in-trínseco à realidade social, e não um processo a ela acres-centado como projeção, disfarce ou interpretação, o quepermite analisar cada produto cultural sempre comoconstitutivo das relações sociais.

Em Lukács encontra-se a abordagem histórico-teóri-ca mais abrangente que se conhece a respeito de realis-mo no romance,11 de que são tributários, com diferenças,Auerbach e também R. Williams. Para o pensador húnga-ro, o realismo é o paradigma artístico por excelência e oromance do século XIX, a sua mais alta realização, porcausa da complexidade da representação da vida huma-na em seu contexto histórico como totalidade. Assim, passaa ser critério essencial de valor a relação da obra comesse contexto:

[...] os novos estilos, os novos modos de representar a rea-lidade, não surgem jamais de uma dialética imanente dasformas artísticas, ainda que se liguem às formas e sentidosdo passado. Todo novo estilo surge como uma necessidadehistórico-social da vida e é um produto necessário da evo-lução social (Lukács, 1968, p. 57).

11 O livro Problemas dorealismo, publicado em 1954,reúne os principais ensaiosdo autor, inclusive “Narrarou descrever”.

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Mas é necessário aqui introduzir Brecht,12 que, comacerto, reclama um conceito de realismo mais amplo que olukacsiano: “no es el concepto de estrechez, sino el deamplitud, el que sienta bien al realismo. La realidad mismaes amplia, variada, está llena de contradicciones; la histó-ria crea y rechaza modelos” (Brecht, 1973, p. 257).13

E é a ideia de refração, com sua multiplicidade deângulos, linhas e matizes, que pode acolher essa amplitudee as contradições da realidade apontadas por Brecht, semignorar a totalidade, enfrentando a história, que mais umavez obriga a rever os conceitos de real e realidade, hojeinclusive mergulhados nas possibilidades virtuais das no-vas tecnologias.

Outro caminho

Sendo o realismo imitação em profundidade e a refra-ção o fenômeno que lhe permite representar artisticamen-te a realidade, o próximo passo no seu desenvolvimento –aceitando-se o percurso histórico traçado por Auerbach(1974, p. 491) – viria com a incorporação da representaçãodos movimentos da consciência, no início do século XX,num mergulho na interioridade individual que, a despeitode si própria, abrange os movimentos da história, mesmoque pareça, às vezes, não existir nenhuma realidade con-creta exterior a essa consciência. Esse realismo exige outraposição do escritor diante do real, pois ele perdeu sua se-gurança objetiva, dada pela certeza positivista; ele não émais a instância suprema; esta passa a ser a consciênciadas personagens, que tudo transforma e refrata. O monó-logo interior e/ou o fluxo de consciência, aquisiçõesestilísticas agora comuns, correspondem a um conceito derealidade totalmente modificado, que inclui, como reais erepresentáveis, as tensões e ambivalências da consciênciahumana. Como frisa Luiz Costa Lima: “A compreensão darealidade passa a depender do acordo prismático de váriassubjetividades e não mais é ditada pelo ponto de vista e

12 É importante pelo menosmencionar o amplo debatesobre as proposições dasvanguardas, que desafiavamas concepções do realismo (o“realismo socialista”) aceitopelas posições políticasdominantes dentro domarxismo de então (1937-1938). Entre outros,envolveram-se Lukács,Brecht e Adorno, de cujostextos há versões em váriosnúmeros das revistas NewLeft Review e Aesthetics andPolitics.

13 “não é o conceito deestreiteza, mas o deamplitude que cabe aorealismo. A própria realidadeé ampla, variada e está cheiade contradições: a históriacria e rejeita modelos.”

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pela imaginação do sujeito mediador, isto é, o narrador”(Lima, 2009, p. 174).

O autor fundamental dessa passagem é Proust, que con-seguiu representar uma dimensão completa da sociedadefrancesa, refratada em apenas uma subjetividade. Em bus-ca do tempo perdido (publicado entre 1913 e 1927) é umainterrogação dos incontáveis signos por meio dos quais semanifestam as pessoas e as coisas, mas o objetivo não é arepresentação da realidade, e sim o seu desvelamento; tra-ta-se da realidade refratada na consciência do narrador. Comopercebe Adorno, explicando sua “técnica micrológica”: “onarrador parece fundar um espaço interior [...] – e o quequer que se desenrole no exterior ocorre [...] como umretalho interior, um momento da corrente de consciência...”(Adorno, 1980, p. 271). Assim, Proust ultrapassa a objeti-vidade realista “clássica” e também a subjetividade pura esimples, por meio de uma gama de incontáveis refrações,que, mesmo questionando a ideia de totalidade, remete aela em cada fragmento representado.

Dostoiévski já antecipara o que Kafka, Joyce e VirginiaWoolf realizariam logo depois. Manifestações tênues, lábeis,difusas, que acompanham nossos pensamentos e atos coti-dianos, aparentemente insignificantes, tornam-se matériada narração; o romancista agora penetra em refolhos des-conhecidos dos realistas da primeira hora, aprofundandoa pesquisa de antes em direção aos meandros da consciên-cia: busca-se então um real mais recôndito, o fundo obscu-ro dos estados psicológicos, muito além da concretude dascoisas.

Aceita-se, grosso modo, que o esgotamento do primei-ro realismo e de sua exacerbação naturalista deve-se prin-cipalmente à deterioração da situação europeia em geral,no final do século XIX, por causa das consequências daindustrialização desenfreada, que efetivamente não abriraas portas do paraíso para todos. Questiona-se a razão, omais importante de todos os instrumentos de perquiriçãoherdados do Iluminismo; a especificidade da experiência

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material de uma individualidade poderosa, comodeterminante na relação com o mundo, desaparece aospoucos. É outra vez um momento de redefinição do sujei-to, como acontecera antes, na gradativa substituição datradição coletiva pela individual, observada desde oRenascimento (Watt, 1991, p. 30). Agora, a unidade e apermanência subjetivas positivistas são relativizadas, inclu-sive pela ascensão das forças do inconsciente,14 o que exi-ge novos códigos de representação. Instaura-se uma críti-ca sistemática à concepção de realidade: ela está alocadana mente, atomizando-se na extrema subjetividade dos pon-tos de vista.

No campo tecnológico, outros elementos contribuempara essa transformação: o aperfeiçoamento dos meios me-cânicos de reprodução, como apontou Benjamin mais tar-de, determinando novas formas de percepção do mundo,passa a questionar também a própria ideia de criação artís-tica, contribuindo para desvalorizar a ambição miméticada literatura e das artes; os aparelhos agora desempenhammelhor e mais rapidamente que a escrita ou a pintura amissão de representar.

A partir da última década dos oitocentos, assiste-se,então, ao crescimento de uma crítica cerrada às convic-ções realistas e também naturalistas, no centro das quais,na França, estão Flaubert e Zola. Desde a morte de Flaubert,em 1880, começam a surgir dissensões, entre elas a ideia deum “romance psicológico”, mais voltado para as questõesinteriores, espirituais, mentais, a que se seguiriam depois odecadentismo e o simbolismo. Entre os inúmeros artigos edeclarações às vezes virulentas que se levantam, princi-palmente contra o naturalismo, são dignos de nota os deHuysmans,15 que sempre desenvolvera temas caros aos na-turalistas, mas agora propõe a necessidade de encontrarum novo caminho, como no excerto abaixo, retirado doprimeiro capítulo de seu romance Là-bas, de 1891.

Il faudrait [...] garder la veracité du document, la précisiondu détail, la langue étoffée et nerveuse du réalisme, mais il

14 Importante assinalar ainfluência de Freud, quepublica, em 1895, seu Estudosobre a histeria e, em 1899, Ainterpretação dos sonhos.

15 Joris Karl Huysmans(1848-1907), escritor e críticode arte. Publicou, entreoutros mais, A rebours(1884).

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faudrait aussi se faire puisatier d’âme et ne pas vouloir ex-pliquer le mystère par les maladies des sens [...] Il faudrait,en un mot, suivre la grande voie si profondément creuséepar Zola, mais il serait necessaire aussi de tracer en l’air unchemin parallèle, une autre route, d‘atteindre les en deçàet les après, de faire, en un mot, un naturalisme spiritualis-te […] (apud Becker, 2000, p. 180).16

Aos poucos fica cada vez mais difícil, portanto, acre-ditar na possibilidade de conseguir objetividade genuínapor meio da literatura, mesmo porque essa objetividadesignifica agora a aceitação do próprio “mundo hostil” quea gerara e a alimentara até então, com as consequênciasvisíveis, em todos os campos da vida social.

Recusa e invenção

Como resposta a tudo isso, assiste-se a uma avassaladoraperturbação do regime tradicional da representação, a “criseda representação”, traduzindo-se ao mesmo tempo noquestionamento ou recusa das práticas anteriores e na in-venção de novas poéticas ou modos expressivos. Mas a re-jeição da interpretação realista não despojou a ficção desua ambição de representar; é uma concepção de repre-sentação que se esgotou: a da civilização calcada na razãoiluminista, a qual, pretendendo ser emancipadora, levarao mundo ocidental à mais sangrenta guerra do século XX;a que encarnava o todo-poderoso e empreendedor espíritoburguês positivista e transformara a arte em mercadoria.Já não é mais possível “se entregar ao mundo com umamor que pressupõe que o mundo tem sentido” (Adorno,1980, p. 269). Buscam-se, então, novos caminhos comopossibilidades de resistência: emerge, como negação radi-cal, a fantástica multiplicidade de soluções encontradapelas vanguardas do início do século XX, notadamente oSurrealismo.

Enquanto o realismo, de modo geral, determina racio-nalmente o sentido da representação, definindo os códigos

16 “Seria preciso guardar averacidade do documento, aprecisão do detalhe, a línguaabundante e nervosa dorealismo, mas seria precisotambém mergulhar na alma enão querer explicar omistério por meio dasdoenças dos sentidos. [...]Em uma palavra, seria precisoseguir o largo caminho abertopor Zola, mas também serianecessário traçar no ar umcaminho paralelo, uma outrarota, alcançar o daqui e o delá, fazer, em uma palavra, umnaturalismo espiritualista[...]”.

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de leitura e de apreciação, sem dissipar a ilusão da trans-parência – a verdade da “mentira” –, as novas tentativasexpressivas remetem às falhas, às fissuras da representação– às fissuras da própria realidade social –, pois “reality hasa myriad forms” e “experience is never limited and it isnever complete; it is an immense sensibility [...] it is thevery atmosphere of the mind”, tal como define Henry James– cuja obra o demonstra – no seu conhecido texto The artof fiction, de 1884.17

Seja como for, a ênfase no não dito, proveniente da ex-periência individual e da visão subjetiva, torna-se cada vezmais acentuada, até atingir sua forma final no Surrealismo.Em 1924, André Breton define, no seu Manifesto doSurrealismo,18 a natureza do movimento, procedendo a umaimplacável condenação do realismo e insistindo na procurade outros rumos, que não os da razão e da lógica.

O processo da atitude realista precisa ser instaurado, emseguida ao da atitude materialista. [...] a atitude realista,inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France,parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual emoral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade,ódio e insípida presunção (Breton, 1924, p. 2).

O que está em jogo e se desenha como a questão cen-tral para o Surrealismo é o julgamento da realidade; nessesentido, a nova postura é lutar por um novo conceito dereal e pela possibilidade de instaurar formas também novasde representação. Qual é, pois, a realidade do sonho e dodesejo? Como representá-los? A “escrita automática” foi apossibilidade proposta, apoiada nas contribuições de Freud,que Breton saúda.

Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direi-tos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estra-nhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contraelas lutar vigorosamente, há todo interesse em captá-las(Breton, 1924, p. 5).

17 “a realidade possui umamiríade de formas”; “aexperiência nunca é limitadaou completa; é uma imensasensibilidade [...] é averdadeira atmosfera damente”. Disponível em:<http://www.mantex.co.uk/ou/aa810/james-o5.htm>.Acesso em 09 mar. 2007.

18 Disponível em:<http://www.culturalbrasil.org/zip/breton.pdf>. Acessoem 04 mar. 2007.

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Mas aqui é importante lembrar que o impulso inicialdo realismo “burguês” baseava-se também num julgamen-to da realidade de então, todavia vista como concretudeexterior ao sujeito. Veja-se o exemplo do fragmento retira-do do prefácio de Germinie Lacerteux, dos irmãos Goncourt,em 1865:

Vivant au XIXe siècle, dans un temps de suffrage universel,de démocratie, de libéralisme, nous nous sommes deman-dé si ce qu’on appelle ‘les basses classes’ n’avait pas droit auRoman; si ce monde sous un monde, le peuple, devait res-ter sous le coup de l’interdit littéraire et des dédains d’auteurs [...]. Nous nous sommes démandé s’il y avait enco-re, pour l’écrivain et pour le lecteur, en ces années d’égalitéoù nous sommes, des classes indignes, des malheurs tropbas, des drames trop mal embouchés, des catastrophes d’uneterreur trop peu noble, [...] si dans un pays sans caste etsans aristocratie légale, les misères des petits et des pau-vres parleraient à l’interêt, à l’émotion, à la pitié, aussihaut que les misères des grands et des riches; si, en un mot,les larmes qu’on pleure en bas, pourraient faire pleurercomme celles qu’on pleure en haut (apud Chartier, 2005,p. 152).19

A tendência surrealista, portanto, parece inverter oprincípio do realismo em que se funda a arte ocidentalmoderna, pois se refere a um mundo puramente interior,rejeitando os elementos da realidade concreta e o impulsotransformador da sociedade, vista então como indigna, cruele injusta, de acordo com a postura moral que sustentava omovimento oitocentista. Mas, numa leitura mais atenta,percebe-se que Breton acredita “na resolução futura des-tes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho ea realidade, numa espécie de realidade absoluta, desurrealidade, se assim se pode dizer” (Breton, 1924, p. 6).

Na verdade, é possível pensar que na junção dessesdois aspectos, sonho e realidade – vista como interioridade–, estabelece-se apenas uma refração do real e não seudesaparecimento, uma vez que um depende intrinsecamen-

19 “Vivendo no século XIX,época de sufrágio universal,de democracia e liberalismo,perguntamo-nos se o que sechama de “classes baixas”não teria direito ao romance;se esse mundo abaixo domundo, o povo, devecontinuar esmagado pelaproibição literária e odesprezo dos autores [...].Perguntamo-nos se existemainda, para o escritor e parao leitor, nesses anos deigualdade em que estamos,classes indignas,infelicidades baixas demais,dramas tão pouco elevados,catástrofes de um terror tãopouco nobre, [...] se num paíssem castas e sem aristocracialegal, as misérias dospequenos e dos pobresfalariam ao interesse, àemoção e à piedade, tão altoquanto as misérias dosgrandes e ricos; se, em umapalavra, as lágrimas que sechoram embaixo poderiamfazer chorar como aquelasque se choram em cima.”

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te do outro, articulando-se esteticamente nas montagens,a linguagem surrealista por excelência. Concretiza-se, por-tanto, nova possibilidade de representação, outro caminho,que não exclui a realidade, apenas considera suas “refra-ções”. Como aponta Adorno:

As composições surrealistas podem ser consideradas, nomáximo, como análogas ao sonho, na medida em que alógica costumeira e as regras do jogo da existência empíri-ca são descartadas, embora respeitem nesse processo osobjetos singulares retirados à força de seus contextos, aoaproximar seus conteúdos, principalmente os conteúdoshumanos, da configuração própria aos objetos. Há decom-posição e rearranjo, mas não dissolução (Adorno, 2006, p.136).

Pouco depois da segunda Grande Guerra, em 1950,Nathalie Sarraute publica um artigo intitulado “L’ ère dusoupçon”, com feições de manifesto, no qual assume suaposição em relação ao romance, rejeitando a antiga recei-ta realista: “nous sommes entrés dans l’ère du soupçon”(Sarraute, 1997, p. 63).20

Percebe-se no subtexto de Sarraute a ideia já cristali-zada pelas vanguardas, grosso modo, de que uma totalida-de perfeitamente apreensível pelo olhar do artista tornou-se inviável; o próprio processo histórico encarregou-se disso:duas guerras terríveis, além de fazer esmorecer qualquerimpulso de ação política, destruíram a ilusão da represen-tação total e seus avatares. Suspeita-se agora de um mun-do reconstruído à imagem e semelhança da burguesia; sus-peita-se de sua estética; suspeita-se, portanto, dos ambientesminuciosamente descritos, dos fatos perfeitamente docu-mentados, dos narradores isentos e impassíveis, dos perso-nagens construídos segundo um “estatuto de verdade”, afim de manter intactas a “mentira”, a ilusão da referência,a “paisagem através da janela”.

Em suma, na esteira do Surrealismo, que durou até1939 – embora com diferenças, impossíveis de explorar aqui

20 “Entramos na era dasuspeita.”

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–, Sarraute postula “outra realidade” como inspiração doromance, composta de inquietações profundas, movimen-tos indefiníveis deslizando rapidamente nos limites daconsciência e que estão na origem dos gestos, das pala-vras e dos sentimentos manifestos, parecendo constituira fonte secreta da existência: “il n’était possible de lescommuniquer au lecteur que par des images qui en donnentdes équivalents et lui fassent éprouver des sensationsanalogues” (Sarraute, 1997, p. 8).21

Todavia, a representação continua necessária, pois ain-da há algo a representar; como refrações – a decomposi-ção, a fragmentação, a atomização – pode-se representaraquilo que para a autora são os “tropismos”, a essência desua busca, constituindo mais uma resposta à interminável“crise da representação”. A impossibilidade da figura-ção transparente do mundo administrado torna-se cla-ra para uma consciência traída pela “irrealidade darealidade”, pela impotência dos atos e da própria lingua-gem. É possível aventar que as inquietações de Sarraute edos surrealistas testemunham a tensão entre “a busca deuma liberdade subjetiva em uma situação de não liberda-de objetiva” (Adorno, 2006, p. 138), acentuando-se entãoa interrogação sobre os signos, descartadas sua concretudee transcendência.

Provavelmente, o último assalto à ideia de um “rea-lismo clássico” tenha surgido com o nouveau roman, deAlain Robe-Grillet. Recusando expressamente o quechama de “mitos” das profundezas de Sarraute, ele se le-vanta contra qualquer tentativa de exprimir “a alma ocul-ta das coisas”. E afirma que o novo romance deve se con-centrar sobre a reprodução literal de um mundo reduzidoapenas a superfícies, que diluem e desarticulam os perso-nagens, em descrições longas e minuciosas; daí o nome de“escola do olhar”. Denunciando qualquer interioridade,todavia também não aceita a objetividade de tipo natura-lista, pois pretende o registro puro e simples da concretudedas coisas. No seu texto de 1963, Pour un nouveau roman,22

21 “Só é possível comunicá-los ao leitor por meio deimagens que lhes sejamequivalentes e façam-noexperimentar sensaçõesanálogas.”

22 Por um novo romance.

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o autor pondera que o romance tradicional cria uma ilu-são de ordem e significado inconsistente em relação ànatureza radicalmente descontínua e aleatória da expe-riência moderna. Resultando de uma tensão não resolvi-da entre as palavras e as coisas – que evidentemente nãovale apenas para o romance, desde Mallarmé, Valéry eRimbaud –, a tarefa do novo romance seria, portanto, dis-pensar qualquer organização ou interpretação da reali-dade, simplesmente porque a realidade “está lá”: “C’estdéjà la vieille ambition de Flaubert: bâtir quelque choseà partir de rien, qui tienne debout tout seul sans avoir às’appuyer sur quoi que ce soit d’éxtérieur à l’oeuvre; c’estaujourd’hui l’ ambition de tout le Roman” (Robe-Grillet,1963, p. 137-139).23

De Flaubert a Robbe-Grillet parece ter-se desenhadoum círculo perfeito. O “pai” do realismo já intuíra aquilo aque se chegaria, em termos de possibilidades de represen-tação, um século depois; foi também a recusa insistente dorealismo que aguçou as condições de possibilidade de suasmúltiplas refrações.

Apesar das diferenças radicais entre si, tanto Sarrautequanto Robbe-Grillet não pretendem opor a aparência àessência, ou seja, o concreto ao abstrato, pois, segundoChartier (2005, p. 191), suas formulações teóricas não sãoisentas de resquícios de positivismo: se, na primeira, per-siste um sujeito que interroga e analisa, no segundo estásempre presente o olhar de um observador. De qualquermodo, ambos procuram dar, às exigências do mundo pós-guerra, conturbado pela ascensão de novas formas de ex-ploração e controle, em meio aos quais se debate um sujeitodestituído de certezas, algumas respostas que decididamen-te passam longe de qualquer interpretação fácil.

Olhando para trás, hoje se pode afirmar que as tenta-tivas do nouveau-roman situam-se a meio caminho entre asconquistas das vanguardas, principalmente do Surrealismo,e as postulações pós-modernas de morte do sujeito,descentramento, desterritorialização, desidentificação etc.

23 “Trata-se da velhaambição de Flaubert:construir alguma coisa apartir do nada, que semantém em pé sozinha, semter que se apoiar em nadaexterior à obra; essa é hoje aambição de qualquerromance”.

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deles derivadas, que continuam a incidir diretamente so-bre as concepções de realismo. Sua tonalidade austera eanódina, com descrições “físicas” precisas e estáticas, ele-vado sentido de ambiguidade dos pontos de vista, radicaisdisjunções de tempo e espaço, comentários autorreflexivosdos processos de composição e obediência à lógica dos pró-prios textos, na verdade representam – ainda e sempre –as vivências absolutamente novas do período pós-guerra,em que um “eu mínimo” se vê perdido e só num mundo emque reina a gestão tecnológica e a mercadoria, tanto quantoa objetividade fotográfica do realismo clássico represen-tou a potência de um “eu soberano”, racional, seguro deseus poderes e prerrogativas, o “eu solar”, cartesiano, deque fala Luiz Costa Lima (2000, p. 84).

Eterno retorno

A ideia de refração que procurei desenvolver, acom-panhando a história do realismo, parece-me operacional,nos tempos que correm, para o dilema da representaçãorealista, uma vez que, em nenhum momento, desde osurgimento de um realismo consciente, articulado e siste-mático, correspondente ao sujeito positivista, até a suaaparente destruição, cem anos depois, com a crise da re-presentação – o mais sério e duradouro assalto que se lhefez –, ele deixou de resistir, escondendo-se sob as mais di-versas aparências. Desde a transparência absoluta da “tela”,no início, até sua total opacidade, no final, ele resistiu,estilhaçado, para ressurgir reconstituído e forte, sobretudona produção narrativa de massa, mas também em muitostextos considerados de qualidade.

Cabe perguntar, portanto, a que se deve esse eternoretorno. Evidentemente não pode haver resposta conclusi-va para uma questão de tal envergadura – e nem é essa apretensão deste texto –, mas acreditamos ter encontradouma pista para discussão no viés escolhido desde o início:aquele fornecido pela conceituação de R. Williams, o qual

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encara o realismo como um modo de representar as rela-ções entre o social e o pessoal que não se limita a umsimples processo de registro e/ou descrição, pois sempredepende, para sua plena elaboração, da apreensão dasformas dessas relações, além da capacidade de tambémmanejar as formas de percepção e de representação ar-tística, mutáveis ao longo da história. Nesse sentido, tra-ta-se de um modo de compreensão estética do mundo so-cial, que o representa em profundidade, e não uma formade representação presa apenas a aspectos aparentes ou apossibilidades dadas pela linguagem em si.

Evidentemente existe aqui uma ideia de totalidade,rejeitada pela maioria da crítica contemporânea, que rea-firma a crise da representação, admitindo a fragmentação,a atomização, o estilhaçamento como as únicas formas pos-síveis de representação de um mundo repetidamente dila-cerado por guerras terríveis, tornado maior e menor pelastecnologias de comunicação, administrado pelo espetácu-lo e desestabilizado das antigas certezas em relação às iden-tidades e papéis sociais e à eficácia da própria linguagem.Nesse contexto, a noção de “progresso”, tão cara à razãoiluminista, foi substituída pela recusa da ideia de históriae por um acúmulo de experiências espetaculares adminis-tradas, que se sucedem num panorama caleidoscópico defatos sem relação de causa e consequência. A negaçãocabal do realismo ou sua condenação crítica como uma“estética ruim”, para dizer o mínimo, viria a ser, então, aúnica resposta possível a esse admirável mundo novo.

Todavia, fragmentação, atomização, indeterminação,ambiguidades traduzindo conceitos como fluidez de iden-tidades, morte do sujeito e outros, nascidos do contextohistórico presente, admitidos como critério único de valorestético e crítico, são elementos que enfatizam apenas arecusa individual como esfera de sentido. Desse modo, omundo exterior – quando é considerado – passa a ser ape-nas um dado material de que o eu se alimenta, que existefora de si como mera contiguidade. Desaparece qualquer

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possibilidade de completude, de complementaridade, deinterdependência ou mesmo de contato entre sujeito eobjeto, o que desobriga de qualquer compromisso.

O ponto a reter aqui é que, talvez justamente pelaexacerbação desses aspectos, o realismo, saindo pela portada frente, volta sempre pela dos fundos, como um modo –uma forma – de se impor ao sujeito como presençainescapável, representação da existência concreta domundo, mesmo como simulacro. Volta como afirmação daprópria impotência da criação autônoma diante do “super-poder do mundo-coisa” (Adorno, 1980, p. 270), do “mun-do hostil”, infinitamente multiplicado e reiterado pelo es-petáculo, que é sua linguagem. Volta despido de sua posturalibertária dos primeiros tempos, de seu sentido coletivo, desua intenção de penetrar profundamente no reino dos ob-jetos para devorá-los por dentro, pois essa seria a prova –ilusória – da integridade e da potência do sujeito que osrepresenta; volta refratado, como um modo de representaras relações de hoje entre o social e o pessoal; volta comosintoma e diagnóstico de um estado de coisas de algumaforma parecido com o do momento em que ele eclodiu comonecessidade histórica. Assim, a violência, o choque, o trau-ma e mesmo a barbárie, mais que temas realistas, tornam-se estratagemas estéticos, e o real avassalador – que deve-ria, mas não pode ser mudado – volta congelado em textoe imagem, cobrando caro o preço do espetáculo, não comosimples “paisagem através da janela” ou como “efeito dereal”, mentira, ilusão, mas sim “como testemunha da re-versão da liberdade abstrata em uma supremacia das coi-sas” (Adorno, 2006, p. 139).

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A imagologia no Brasil: primeiratentativa de sistematização

Celeste H. M. Ribeiro de Sousa*****

RESUMO: O presente texto conforma uma tentativa de acom-panhar num primeiro panorama – amplo e não demasiadamen-te detalhado – o desenvolvimento da imagologia no Brasil. Co-meça por apontar as primeiras imagens do país, que sãoheteroimagens; pontua as autoimagens, criadas com a indepen-dência nacional; aponta para a crítica imagológica que, ao con-trário da europeia, particularmente da francesa, faz seu début noâmbito da psicologia social e da história em vez de na literaturacomparada, e termina por sublinhar os estudos mais recentesnesta área.

PALAVRAS-CHAVE: Imagologia brasileira, autoimagens do Bra-sil, heteroimagens do Brasil, crítica imagológica brasileira.

ABSTRACT: This text is an attempt to follow in a first outline(extensive and not too detailed) the development of the imagologyin Brazil. It begins by pointing out the first images of the countrythat are heteroimages; punctuates the autoimages, created at thetime of the national independence; points out the imagologicalcriticism that, in opposition to the European and, particularly theFrench, makes its début in the area of social psychology and history,instead of within the area of comparative literature, and ends byunderlining the more recent studies in this field.

KEYWORDS: Brazilian imagology, brazilian autoimages, brazilianheteroimages, brazilian imagological criticism.

A construção da primeira imagem: umaheteroimagem

Antes de os escritores brasileiros se preocuparem coma autoimagem nacional, o território brasileiro já tinha sido

* Professora Sêniorcolaboradora do Programa dePós-Graduação em Língua eLiteratura Alemã daUniversidade de São Paulo(USP). Este texto é umaversão alargada, emportuguês, de palestraproferida, a convite, naConferência Internacional“Imagology today:achievements, challenges,perspectives”, realizada naUniversidade de Zagreb –Croácia, em setembro de2009.

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alvo de várias tentativas de identificação, isto é, os váriospovos que o haviam visitado já lhe haviam tecido uma ima-gem – uma hetero e arqui-imagem –, veiculada em suasliteraturas. Trata-se dos cronistas viajantes portugueses,como, por exemplo, Pero Vaz de Caminha (Carta a el-reidom Manuel, escrita em 1500), de Pero Magalhães Gandavo(História da província de Santa Cruz a que vulgarmente cha-mam Brasil, redigida em 1573), de Gabriel Soares de Souza(Tratado descritivo do Brasil, de 1587), de AmbrósioFernandes Brandão (Diálogos das grandezas do Brasil, de1618). Embora as primeiras crônicas citadas tenham sidoescritas nas datas apontadas, sua publicação é, contudo,tardia: a História da província de Santa Cruz a que vulgar-mente chamam Brasil é impressa três anos mais tarde, em1576, e a Carta só vem a lume em 1817. Além dos portu-gueses, também escreveram sobre o Brasil recém-desco-berto viajantes franceses, entre eles o primeiro, chamadoAndré Thevet, frade católico, (Les singularitez de la FranceAntarctique – As singularidades da França Antártica, de 1558)ou ainda Jean de Léry (L’ histoire d’un voyage fait en la terredu Brésil, autrement dit Amérique – Viagem à terra do Brasil),publicado pela primeira vez, na França, em 1578, cuja tra-dução para o português só ocorre em 1889. Além dos fran-ceses, igualmente os alemães estão entre as primeiras tes-temunhas europeias do Brasil. Já em 1515 surge naAlemanha um pequeno texto de autor desconhecido como título New Zeutung aus presillandt (Nova gazeta da terrado Brasil) e, em 1557, Hans Staden, que havia sido aprisio-nado pelos índios Tupinambá, publica em Marburg um li-vro intitulado Wahrhaftige Historia (Duas viagens ao Brasil).Entre muitos outros, sobressai Carl Friedrich Phillip vonMartius com um imenso tratado sobre a flora brasileira (Flo-ra brasiliensis), de 1829, e o romance Frei Apolônio, de 1831.Sobre a obra de cada um destes autores e da dos demaisescritores que tentaram retratar o Brasil há inúmeros tra-balhos críticos à disposição dos interessados.

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O que se pode perceber dos elementos gerais que cons-tituem a arqui-imagem produzida é que eles têm muito aver com a ideia de paraíso, o que, aliás, é compreensível,pois durante toda a Idade Média se havia acreditado queo paraíso existia de fato em algum ponto da terra, talvez daÍndia. Não sendo lá achado, as probabilidades de encon-trar-se o Éden na América, o último reduto terrestre a serdesbravado, eram altíssimas. Diante de uma realidade tãoexuberante, tão exótica e tão nova, não havia códigoslinguísticos apropriados para sua tradução adequada, peloque se recorre ao mito judaico do Jardim do Éden e aosmitos da Antiguidade Clássica (o Jardim das Hespérides,o velocino de ouro, a fonte da juventude, os faunos etc.) e,depois, ao mito do Eldorado para lhe dar forma. Assim, ostraços gerais da arqui-imagem do Brasil estarão associadosnum primeiro momento a um espaço fertilíssimo eriquíssimo, de clima ameno, em eterna primavera, ocupa-do por gente primeva, próxima do primeiro homem. Estesubstrato, de uma forma ou de outra, dificilmente abando-nará as metamorfoses que a heteroimagem do Brasil irásofrer.

A construção da autoimagem1

O Brasil, como país outrora colonizado, trabalhou para,após sua independência de Portugal, construir uma litera-tura que lhe emprestasse identidade nacional, que dessecorpo a seu novo status político, uma literatura, portanto,original, diferente das da metrópole e das demais europeias.Assim exigiam até simpatizantes estrangeiros da causa bra-sileira, tais como o francês Ferdinand Denis, os portugue-ses Almeida Garrett e Alexandre Herculano. Neste afã,sem dúvida, a preocupação com a construção de uma ima-gem, de uma autoimagem nacional, era manifesta.

A imagem do Brasil e do brasileiro como filho da mis-cigenação racial e cultural entre um português e uma ín-dia está, por exemplo, registrada pelo romântico José de

1 Capítulo baseado em:SOUSA, Celeste Ribeiro de.Autoimagens literárias doBrasil: um recorte. In:SOUSA, Celeste Ribeiro de.Do cá e do lá: introdução àimagologia. São Paulo:Humanitas/Fapesp, 2004. p.301-348.

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Alencar no romance Iracema, de 1865, configuração deuma lenda de 1611.

Com o tempo, a construção desta autoimagem torna-se mais e mais complexa. Além das raízes étnicas e cultu-rais, miscigenadas entre índios e portugueses, serãotematizados como elementos da imagem nacional tambémo locus rural, em particular o sertão, que carrega consigo oreconhecimento das fronteiras distantes do território ain-da mal conhecido, e o locus urbano.

O locus rural, o mundo distante da civilização, o mun-do arcaizante, está, por exemplo, presente em Inocência(1872) do Visconde de Taunay, onde predomina a nature-za virgem, a abundância, a hospitalidade sem restrições.Em 1902, Euclides da Cunha, em Os sertões, retoma estavertente ruralista do Brasil, porque suas fronteiras maislongínquas ainda precisam ser dadas a conhecer. O textoconstrói uma imagem de Brasil assente no choque de cul-turas e etnias diferentes, expande, desta forma, a ideia denação, ao valorizar o país do interior esquecido em relaçãoao país do litoral, marcado por contatos mais intensos como estrangeiro. Os sertões passam, então, a ser vistos como olocus da cultura brasileira mais pura, mais genuína, nacio-nal por excelência. Neste mesmo ano de 1902, Graça Ara-nha publica o romance Canaã, em que explora a mesmavertente ruralista, mas de uma outra perspectiva. É o pri-meiro escritor brasileiro a trazer ao plano da ficção a imi-gração alemã no estado brasileiro do Espírito Santo. É sabi-do que no Brasil a maioria dos imigrantes de língua alemãse estabeleceu no campo e desenvolveu técnicas agrícolasbaseadas no cultivo do minifúndio, algo novo no país àépoca. A imagem do Brasil, neste romance, é projetada nofuturo, como um resultado a ser obtido da influênciamodernizadora e empreendedora alemã sobre o espaço físi-co e cultural do país, bem como da influência branqueadorada miscigenação alemã à pele mulata brasileira. Em 1934,Graciliano Ramos retoma a veia ruralista no romance S.Bernardo. Nele, retrata um Brasil arcaico às voltas com a

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modernização do trabalho no campo em nome do capitalis-mo, o que entra em choque com a tradição latifundiáriada região, com os valores humanos e ideologias até aí cul-tivados. Em 1956, João Guimarães Rosa publica Grandesertão: veredas. Embora no espaço rural do romance se cru-zem culturas de brancos, de índios e de negros, e nele secrie uma determinada mundividência que eleva a obra aum plano universal, o Brasil que aí é configurado é um paíseminentemente rural, um país sertanejo. Em 1993, Fran-cisco Dantas publica um romance com o título Os desvali-dos, em que a linha ruralista é, mais uma vez, retomada,desta vez no estado do Sergipe no final dos tempos de ter-ror do cangaço e da morte de Lampião. Francisco Dantasconfigura o homem sertanejo pelo viés da compaixão. En-quanto Euclides da Cunha, em 1902, escrevia que o serta-nejo é um forte, Dantas registra agora que o sertanejo éum desvalido, nada lhe é favorável, nem o espaço físico,nem o político, nem o religioso, nem o familiar, nem suaprópria compleição franzina. Esta vertente ruralista é cul-tivada por muitos outros escritores canônicos, cuja discri-minação, porém, não se faz necessária ao objetivo destaprimeira sistematização imagológica.

A vertente urbana da autoimagem nacional é apre-sentada em dois estratos diferenciados: o das camadas popu-lares e o das elites. As camadas populares urbanas comoelementos da autoimagem nacional já estão presentes, porexemplo, no folhetim Memórias de um sargento de milícias,de Manuel Antônio de Almeida (1852-1853), e resgatamde modo corrosivo o perfil da baixa classe média (barbei-ros, comadres, parteiras, meirinhos, “saloias”) do Rio deJaneiro, ao tempo de D. João VI: um grupo social marcadopela malandragem, pela transgressão às leis e à ordem.Também o romance O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo,foca a periferia da sociedade brasileira urbana. No ambientecriado pelo romancista, os brasileiros pobres, tipos étnicosvariados, são retratados à la Zola, como turbulentos, sen-suais, amorais, degradados, preguiçosos, em consonância

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com o meio ambiente tropical que habitam. Os problemassociais causados pela Revolução Industrial na Europa sãoaclimatados ao Brasil, onde não há revolução alguma, mas,entre outros problemas, há um aumento desordenado dapopulação mestiça, o aparecimento de marginalizados e umaquerela entre escravagismo e antiescravagismo.

O estrato social das elites encontra registro significa-tivo no romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881),de Machado de Assis, que representa a alta classe socialda cidade do Rio de Janeiro à época. Nas palavras do crí-tico Robert Schwarz, trata-se de um grupo social com as“ideias fora do lugar”, quer dizer, um segmento social queconsegue conviver em simultâneo com uma estrutura eco-nômica-social-política arcaica, baseada na exploração dotrabalho escravo e favoritismo político e com as ideias mo-dernas iluministas-liberais que, em suas frequentes viagens,vai beber na Europa, mais precisamente na França, e sobreas quais se manifesta durante reuniões dos mais diversosmatizes. Em outras palavras, a alta sociedade urbana doRio de Janeiro é como que esquizofrênica, fala uma coisa efaz outra.

Em 1989, Ana Miranda, sem ser historiadora, perse-gue a reconstituição da história do Brasil no livro Boca doinferno. A imagem recriada do país foca a cidade da Bahiaà época da colonização portuguesa, habitada pelo PadreAntónio Vieira e pelo poeta barroco Gregório de Matos.Uma cidade degradada, feia e repulsiva, em muitos aspec-tos não condizente com os documentos históricos. Cito aspalavras do crítico Antônio Dimas acerca do romance e daimagem de Brasil veiculada no romance:

Ana Miranda restaura os cacos de um país vulgarmentetido como pacífico, substituindo essa mentira calcificadapor uma outra, de caráter ficcional, mas bem consentâneacom a verdade histórica [...] a mentira romanesca chegamais perto da verdade histórica do que a mitologia oficialque pinta esta terra como exemplo de cordialidadeinesgotável(Dimas, 1989).

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Para além deste modo tríplice de emoldurar autoimagensdo Brasil, há autores que tentam e conseguem iluminar opaís como uma ampla unidade de diversidades.

Em 1928, Mário de Andrade dá a lume o romanceMacunaíma, um caleidoscópio de lugares geográficos bra-sileiros, rurais e urbanos, de épocas, de lendas indígenas,anedotas locais, folclore de origem africana, canções deorigem ibérica, tradições portuguesas, incidentes pitores-cos, episódios da biografia do autor, transcrições textuaisde etnógrafos e cronistas coloniais, frases de personalida-des célebres, modismos linguísticos, enumerações exausti-vas, sonoridades curiosas etc. O título, por exemplo, é tira-do do livro de Theodor Koch-Grünberg, que pesquisou osíndios da Amazônia. Pretende o autor superar a visãoregionalista do Brasil e dar-lhe um caráter unificado de“pátria tão despatriada”, segundo suas próprias palavras,no sentido de colocar em evidência, a um só tempo, a enor-me diversidade que caracteriza a nação/estado brasileiros.Na literatura nacional, é talvez a primeira obra literáriaque consegue abarcar o Brasil como um Um, para usar ter-minologia do psicanalista italiano Contardo Calligaris emHello Brasil.

Em 1976, Darcy Ribeiro publica o romance Maíra.Como Mário de Andrade, Darcy Ribeiro quer trazer à lite-ratura a representação de um Brasil uno em sua imensadiversidade. A imagem do país que sai das páginas destaobra dá conta dos choques culturais entre brancos, índios,mestiços, missionários jesuítas, missionários protestantesestrangeiros, fanáticos evangélicos, garimpeiros, políticos,policiais, habitantes civilizados das capitais, cientistas es-trangeiros, gerando uma série de dissonâncias articuladasnum gênero policial. Talvez seja este o romance que me-lhor retrata o Brasil como um Um pleno de diversidades.

Apresento aqui apenas algumas das mais significati-vas produções literárias brasileiras, mas suficientes paramostrar como a autoimagem poética do Brasil prima pelafragmentação.

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A crítica imagológica: primórdios

Na Europa, talvez à exceção da França, a literaturacomparada e por extensão a imagologia literária, sua pri-meira vertente derivativa,2 sempre encontraram dificulda-des diante da força das filologias. Na Europa,

a Primeira Guerra Mundial e também a Segunda, a exigirema defesa de fronteiras e a forçarem o pensamento nacional,acabam por dificultar a trajetória supranacional da litera-tura comparada [e da imagologia]: a par do reconhecimen-to de que a literatura comparada poderia ser o veículo deuma “liga de povos”, tomam corpo sentimentos patrióti-cos poderosos. E, talvez, tenha sido justamente esta dialé-tica intensa entre o nacional e o supranacional, associadaao positivismo, que tenha levado ao desinteresse generali-zado pela disciplina, apesar de diversas tentativas de insti-tucionalização, muitas malogradas, tanto na Alemanha,quanto na Itália, na Suíça, na Inglaterra, na Dinamarca,nos USA, onde em conjunto com estudiosos locais, ou se-paradamente, alguns comparatistas franceses passaram aatuar (Sousa, 2007, p. 3).

[...]

O nacionalismo tranca as portas, arranca as aldravas e des-liga as campainhas, declarando que apenas os que estãodentro têm direito de aí estar e acomodar-se de vez. Opatriotismo é, pelo menos aparentemente, mais tolerante,hospitaleiro e accessível – deixa a questão para os que pe-dem admissão. E no entanto o resultado último é, quasesempre, notavelmente semelhante. Nem o credo patrióti-co nem o nacionalista admitem a possibilidade de que aspessoas possam se unir mantendo-se ligadas às suas dife-renças, estimando-as e cultivando-as, ou que sua unidade,longe de requerer a semelhança ou promovê-la como umvalor a ser ambicionado e buscado, de fato se beneficia davariedade de estilos de vida, ideais e conhecimento, aomesmo tempo em que acrescenta força e substância ao queas faz o que são – e isso significa ao que as faz diferentes(Bauman, 2001, p. 203).

2 Leia-se sobre estaproblemática o ensaio “Daetnopsicologia àetnoimagologia”, de HugoDyserinck. Disponível em:<http://www.rellibra.com.br>(publicações: Imagologia.Coletânea de ensaios deHugo Dyserinck II, 2007).Também o ensaio “Sobre odesenvolvimento daimagologia”, do mesmo autor,trata do tema. Disponível em:<http://www.rellibra.com.br>(publicações: Imagologia.Coletânea de ensaios deHugo Dyserinck I, 2005).

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Sobre a tensão, ainda hoje perceptível na Europa, masdiluída no Brasil, entre literatura comparada e filologiasdiscorre Wolfgang Bader no ensaio intitulado “Literaturacomparada – literatura nacional: sugestões germanístico-brasileiras”.

No Brasil, as práticas comparatistas nos estudos de li-teratura, por assim dizer, sempre existiram, mesmo antesda institucionalização da disciplina entre 1950 e 1960. Ostatus acadêmico confere à literatura comparada, a partirde então, um fôlego que não tem parado de crescer.

Em 1986, a Associação Brasileira de Literatura Com-parada (Abralic) é criada na cidade de Porto Alegre. Nes-te mesmo ano, é publicado, salvo erro, o segundo manualde literatura comparada de uma autora brasileira – TâniaFranco Carvalhal – com o título Literatura comparada, cujoobjetivo explícito é divulgar a matéria para estudantes uni-versitários, e que em 1999 já está em quarta edição. Oprimeiro manual, também intitulado Literatura comparada,havia sido publicado por Tasso da Silveira em 1964, dedi-cado “à memória de La Fayette Cortes, eminente educa-dor e criador da Cátedra de Literatura Comparada”, naesteira das propostas do francês Paul van Thiegem. Cons-tam do conteúdo desse primeiro manual brasileiro os se-guintes pontos: a obra literária, a literatura comparada,extensão dos estudos comparativos, literatura geral,tecnologia e divisão da literatura comparada, metodologiacomparatista, eficácia pedagógica da literatura compara-da, morfologia comparatista, tematologia, crenologia,mesologia, sobrevivência da obra literária, interpretaçõesequívocas, um estudo de literatura comparada.

Ao contrário das dificuldades enfrentadas pela litera-tura comparada na Europa, à exceção da França, acimamencionadas, no Brasil, a literatura comparada passa areunir entusiasticamente todos os estudiosos de literaturaem congressos de âmbito nacional, realizados a cada 2 anosa partir de 1988. No Brasil, todos os estudos de literaturase encaixam, de algum modo, em literatura comparada.

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Todavia, a imagologia literária, apesar de ser a sua pri-meira vertente derivativa, é, em terras brasileiras, uma prá-tica recente e quase invisível. É mencionada de passagemapenas no livro de Tânia Carvalhal, que começa com umbreve histórico da disciplina em território francês e em outrospaíses, passa por um texto sobre as relações entre literaturacomparada e literatura geral, fala das propostas clássicas edas grandes escolas, dos manuais franceses, do manual bra-sileiro, da questão das fontes, do caso Etiemble, docomparatismo em crise, do modelo estruturalista, das ino-vações metodológicas, das relações da teoria literária como comparativismo, do difícil diálogo dos textos, das rela-ções entre imitação e invenção, da intertextualidade, dasnoções de autoria e originalidade, da recepção produtiva,da interdisciplinaridade, das relações entre analogia, di-ferença e dependência, da voracidade antropofágica, dasrelações entre comparativismo e descolonização literária.

Sobre imagologia, constam as seguintes palavras:

Cabe ainda referir aqui que a investigação comparativistana Alemanha, dominada sobretudo por um critério deunidade, na tradição legada por Goethe e por todo o ro-mantismo alemão, orientou-se inicialmente para os estu-dos de temas, motivos e personagens literários que circu-lam na literatura de vários séculos ou de vários países.Atualmente, volta-se para estudos de imagologia, de casosfronteiriços e de relações literárias, tendo, entre outroscentros, desenvolvido esses estudos nos setores compara-tistas de Aachen e Bayreuth (Carvalhal, 1986, p. 16).

Tânia Carvalhal refere-se a duas universidades alemãscom centros de literatura comparada onde a imagologia ocu-pa um lugar de destaque. Bayreuth, com Alois Wierlacher àfrente, sempre estabeleceu um vínculo muito intenso com agermanística, em especial a ensinada aos estrangeiros, emque os conceitos de cultura e interculturalidade, bem comoo alcance dos processos cognitivos, são usados como supor-tes teóricos. Todavia, os pontos de referência nos processos

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comparativos recaem muito fortemente nas culturas de lín-gua alemã. O centro de comparatística em Aachen, chefi-ado por Hugo Dyserinck, reporta-se à tradição francesa edefende, para os processos comparativos, a presença devários objetos de estudo que deverão ser examinados deuma perspectiva supranacional.

Depois do manual de Tânia Carvalhal, vem a lumeem 1997 um terceiro manual de literatura comparada,igualmente intitulado Literatura comparada, de autoria deSandra Nitrini, resultado de suas pesquisas para a tesede livre docência, que logo se esgota. O livro apresenta-se dividido em 3 partes principais: a primeira sobre per-cursos históricos e teóricos, a segunda sobre conceitos fun-damentais, como influência, imitação, originalidade,intertextualidade e recepção, a terceira sobre literaturacomparada no Brasil. Neste livro, porém, não há nenhumareferência à imagologia.

No entanto, embora não no âmbito dos estudos literá-rios tidos stricto sensu, é possível descortinar estudosimagológicos a respeito do país, já em 1954, no livro Ocaráter nacional brasileiro, de Dante Moreira Leite, um psi-cólogo social, ou no livro de 1958, Visão do Paraíso, do his-toriador Sérgio Buarque de Hollanda, duas referências nosestudos da cultura brasileira. Em O caráter nacional brasi-leiro, Dante Moreira Leite faz um imenso levantamento deautores e obras brasileiros que tentam explicar o Brasil,que delineiam uma série de autoimagens brasileiras, tam-bém sistematizadas, desde as crônicas do descobrimento,passando por textos poéticos da literatura brasileira, porensaios de psicologia social, de antropologia, de história,até chegar aos anos 90 do século XX (Pero MagalhãesGandavo, Gabriel Soares de Souza, José de Alencar, SilvioRomero, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, GuimarãesRosa, Paulo Prado, Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, CaioPrado, Sérgio Buarque de Holanda e outros). SegundoMoreira Leite, o Brasil nestes autores é visto, grosso modo,de 1500 ao Romantismo como uma terra abençoada, um

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paraíso; a partir do Realismo, instala-se uma perspectivapessimista que retrata o país como um território tropicalonde a civilização não é possível, onde tudo se degrada. Oobjetivo do autor, entretanto, vai além, ao analisar edesconstruir essas autoimagens, criticando o modo de pen-sar por meio de estereótipos e o afã inglório de apreender ocaráter do povo brasileiro ou a psicologia da nação.

Sérgio Buarque de Hollanda, em Visão do Paraíso, de-tém-se no estudo aprofundado daquilo a que chamoarquiautoimagem do Brasil. Trabalha com o imaginário docolonizador europeu, particularmente com o do espanhol eo do português do final da Idade Média e começo doRenascimento. Diferencia o modo de ver o novo mundodo espanhol e do português: enquanto o espanhol cria umasérie de mitos da Conquista, derivados dos greco-judaico-cristãos (paraíso terreno, Jardim das Hespérides, velocinode ouro, faunos/sátiros), o português só sustentará um mitocristão, o de São Tomé (Sumé), talvez por ser navegadormais experimentado e estar mais acostumado como o exó-tico.

A crítica imagológica: tempos recentes

Estudos sobre a autoimagem do país são fartos em to-das as épocas no âmbito das mais diversas disciplinas, mui-tos dos quais, como disse, foram levantados e analisadospor Dante Moreira Leite. Mais recentemente, por exem-plo, a filósofa Maria Helena Chauí publica, em 2000, Bra-sil: mito fundador e sociedade autoritária, uma análisedemolidora da construção da autoimagem oficial do Bra-sil. Em 2009, sai o livro de Janaína Cordeiro Freire intituladoIdentidade e exílio em terra estrangeira, um estudo do filme“Terra estrangeira”, de Walter Salles,

que não preserva núcleos centrais de cultura, ou brasilida-des, e afirma um país híbrido, controverso, de limites efronteiras frágeis, onde a inscrição no mundo atual distan-cia-se de referências ou afiliações culturais (latinoameri-

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canas, terceiromundistas) engessadas, e redimensiona otema da identidade não em termos de atraso ou moderni-dade, periferia ou centro, mas, de atraso e modernidade,periferia e centro. Terra Brasilis e/é Terra Estrangeira (Frei-re, 2009, p. 26).

Outros estudos encontram-se, sobretudo, nas Revis-tas da Abralic e nos Anais dos Congressos da AssociaçãoBrasileira de Literatura Comparada. Contudo, um estudoamplo dessa autoimagem, no âmbito estrito da literaturacomparada, creio, está por fazer. Tento tocar nesse assuntono último capítulo, “Autoimagens literárias do Brasil: umrecorte”, do livro Do cá e do lá. Introdução à imagologia,onde é mostrado que raros escritores conseguem trabalharcom a imagem caleidoscópica de um Brasil abrangente.

No âmbito das heteroimagens literárias do Brasil, háestudos esparsos realizados por brasileiros, não relaciona-dos à imagologia, e sim tratados, por exemplo, como pre-sença do Brasil na literatura francesa, ou presença da Françana literatura brasileira. Focam-se problemas poéticos, ques-tões de interculturalidade e intertextualidade, mas nãohá referência específica à imagologia. É o caso das pesqui-sas do Grupo “Léry Assu”, fundado em 1978 por LeylaPerrone-Moisés.

Tanto quanto sei, talvez o passo inicial no estudo sis-temático de heteroimagens literárias do Brasil seja o meulivro Retratos do Brasil: Heteroimagens literárias alemãs. Esteestudo, no entanto, foi executado na área de literaturaalemã, tendo por pano de fundo teórico a germanísticaintercultural de Alois Wierlacher e Dietrich Krusche, commetodologia tirada do comparatista checo Dionýz Durisin,apoiada em noções de intertextualidade de Julia Kristevae Laurent Jenny. Nesse livro, são examinadas 33 obras,desde o século XVII até 1982: romances, novelas, peças deteatro, peças radiofônicas, contos e poemas. O ponto dereferência no processo comparativo é o topos do paraíso e otopos do Eldorado, encontrados respectivamente na Bíblia,nos livros medievais de Johannes Scotus, Santo Agostinho,

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Ernaldus e outros, bem como nas crônicas espanholas eportuguesas do século XVI sobre a América. Nos textosexaminados, o Brasil está presente, ou como tema central,ou como elemento periférico. Algumas das obras sãomarcadas por altíssima poeticidade como, por exemplo, ospoemas de Marie Luise Kaschnitz ou a peça radiofônicaDas Jahr Lazertis, de Günter Eich; outras são menos co-nhecidas, como Der Engelwirt, de Emil Strauß, ou Samba,de Ulrich Becher. Em todos os escritos investigados, as ima-gens do Brasil evocam, de modos diversos, os topoi acimamencionados. As semelhanças e diferenças entre as ima-gens do paraíso/Eldorado configuradas por esses topoi e asimagens do Brasil veiculadas nas obras literárias de línguaalemã selecionadas foram classificadas em tipos. As imagesbrasileiras, no recorte feito, desvelam-se de duas perspecti-vas básicas: a espacial e a humana. Da perspectiva espacial,o Brasil surge associado à ideia de paraíso terreal ou psicoló-gico. A fertilidade da terra primeva e as belezas naturais(flores coloridas e perfumadas, animais exóticos, árvoresverdejantes, céu magnificamente azul, mar indescritível)assinalam o paraíso terrestre, que assegura a felicidade e ocontentamento do espírito. O Brasil também surge, em al-gumas obras, como o paraíso das riquezas, o país das possi-bilidades econômicas ilimitadas, ou seja, como Eldorado –uma terra imaginária e lendária, muito rica em ouro, pratae pedras preciosas, onde os imigrantes podem enriquecer etornar-se felizes. O Brasil também é configurado como pa-raíso psicológico, como um país de liberdade política, sociale moral. No Brasil, as pessoas não sofrem sob uma rígidaordem social. Os imigrantes tentam começar, aqui, umanova vida, desvinculada do passado, em geral triste. Nestecaso, o Brasil é um lugar de refúgio.

Da perspectiva humana conformam o Brasil índios,estrangeiros e brasileiros. Os índios – nobres, puros, primi-tivos e estranhos, os últimos vestígios do primeiro homemsobre a terra – habitam nestes textos a paisagem edênica.Os estrangeiros abrangem uma gama variada (alemães,

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portugueses, dinamarqueses, japoneses, italianos e outros).Todos, à exceção dos alemães, são exploradores do país.Nas obras estudadas, os imigrantes são acusados de des-truir a natureza para obter ouro, prata e pedras preciosas,madeira de lei para vender ou construir casas na floresta.Apenas os imigrantes de idioma alemão são capazes de co-adunar progresso, economia e proteção ao meio ambiente.Os brasileiros são, em tais textos, gente negra e mulata,primitiva, inculta, mística, irresponsável.

O modo poético como estas duas imagens basilares deBrasil, a espacial e a humana, são criadas é variado. Ora asimagens da natureza e dos índios são levantadas sobremetáforas e comparações, ora são conformadas por meio decontrastes entre elementos emprestados da imagem do pa-raíso e elementos que funcionam como polos a ele opostos.Isto é particularmente visível na representação das cida-des degradadas, ou na configuração da maioria dos imi-grantes em oposição aos de língua alemã.

Os escritores de língua alemã projetam no Brasil seussonhos e, assim, dão forma metafórica e alegórica a seuspróprios paraísos particulares. Configuram imagens daalteridade, mas de uma alteridade que não é senão a pro-jeção da própria identidade às voltas com a tentativa e adificuldade, senão impossibilidade, de entender ou de acei-tar o outro, neste caso a realidade brasileira.

Contudo, este paradigma imagológico, conforme mi-nhas investigações, é superado, por exemplo, pelo jovempoeta alemão Ulrich Beil (1957-) em suas várias poesiassobre o Brasil, em especial na de título “Night thoughts”.Neste poema, Beil poetiza um conflito, mas termina o tex-to com o não reconhecimento, com a negação desse con-flito. O poeta tece relações entre o passado e o presente,entre a velha cultura europeia e a suposta absolutamentenova cultura do “Mundo Novo”, entre o conhecido e odesconhecido, entre o presente e o futuro, entre a Alema-nha e o Brasil, no fundo, entre o eu e o outro. Trata-se deum problema de identidade, do perigo de perdê-la. O modo

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como o eu-lírico articula todos estes elementos faz lembrara estrutura de um computador: clica-se uma palavra e,neste clique, abre-se uma janela cheia de informações.Continua-se a clicar em outra palavra, e uma outra janelade saber infinito se escancara ao leitor. Este saber move-seem círculo e liga tudo no poema, de tal forma que aquiloque o eu-lírico conhece, ou seja, a cultura europeia (mito-logia grega, alquimia, Idade Média) e aquilo que ele apren-deu, isto é, o exotismo e a modernidade do Novo Mundo(esmeraldas, palmeiras, calor intenso, arranha-céus, ban-cos gigantes, criminalidade) amalgamam-se num todo. Oselementos exóticos são, no fundo, criações europeias dotempo das grandes descobertas e da colonização do país eos símbolos da Modernidade pertencem, em geral, ao mun-do globalizado, são semelhantes em qualquer lugar. Destamaneira, o eu-lírico faz a fusão do velho com o novo, dopassado com o presente e o futuro.

Talvez se pudesse dizer que esta mudança de paradigmatem a ver com a atual fase internet do movimento deglobalização. Pelas media modernas experimenta-se umagradual desterritorialização do próprio e do alheio. Ambosos âmbitos começam a interpenetrar-se. No poema acima,o Brasil surge não mais como periferia, como o outro, talcomo no velho paradigma; o Brasil é agora, simplesmente,uma parte equânime do todo.

Voltando ao desenrolar desta pesquisa, é preciso, con-tudo, observar que só depois de a ter terminado, em 1988,fiquei sabendo, pelo professor visitante Prof. Dr. Theo Buck,da Universidade de Aachen, da existência do Departa-mento de Comparatística dessa universidade, onde aimagologia ocupava um lugar de destaque, coordenado porHugo Dyserinck, a quem escrevi, e que gentilmente meremeteu alguns de seus ensaios e livros, os quais vieram aembasar mestrados e doutorados que orientei/oriento den-tro do Grupo de Pesquisa “Rellibra” (www.rellibra.com.br),que fundei em 1993.

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Tenho acompanhado os congressos da Associação deLiteratura Comparada no Brasil desde o começo, em 1988,e posso dizer que, embora se possam tecer comentários so-bre determinadas imagens do Brasil, o assunto não é asso-ciado a uma disciplina comparatística de nome imagologia.A designação continua, de um modo geral, ignorada pelogrande público acadêmico e mesmo pelos comparatistas.O livro específico sobre imagologia que publiquei em 2004,Do cá e do lá. Introdução à imagologia, apesar de definir oque se entende, hoje, por imagologia, de oferecer-lhe ummétodo, de trabalhar o alcance e os limites do processocognitivo por meio das imagens, de questionar as frontei-ras da literatura perante a história, de ter sido subsidiadopela minha Universidade, pelo DAAD e pela Fapesp, foimuito discretamente recebido. Os comparatistas brasilei-ros preferem trabalhar com conceitos tais como ideologia,hibridismo, pós-colonialismo, intertextualidade, literaturade minorias, literatura de imigrantes etc. Já ouvi dizer que,para o Brasil, o estudo das suas heteroimagens é irrelevante,como se as opiniões alheias não fossem fundamentais parao conhecimento do que é próprio.

Nestes últimos anos entraram em voga os estudoscomparativos entre a literatura brasileira e as demaissulamericanas, mas também aqui a imagologia continua,por assim dizer, uma ilustre desconhecida. Também devodizer que a comparação entre as realizações literárias dospaíses de língua portuguesa, ou seja, as literaturas africa-nas de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde, em suarelação com a brasileira e com a portuguesa, também estãoem alta. Há estudos imagológicos neste âmbito, mas a pa-lavra imagologia também é preterida em favor de outrostermini, como os acima mencionados. Todos esses termini,no entanto, só instrumentalizam a análise linguística/lite-rária e cultural dos próprios textos, inclusive daqueles queconformam imagens de países, em outras palavras, tambémservem às pesquisas imagológicas.

A imagologia, hoje, tem condições de ser uma disci-plina autônoma, sendo a imagologia literária uma de suas

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vertentes. Construir imagens de países é costume antigo eestá associado à constituição da identidade grupal, quetem a ver com a criação do poder e da proteção do grupo edo indivíduo dentro dele. E, embora não se consiga fecharuma definição para “identidade” (tanto individual quantogrupal), já que o problema “emerge sob uma multiplicidadede elementos, o que sempre leva a impasses, quando seaborda a questão, porque esta se coloca num nível pura-mente relacional” (Sousa, 2004, p. 142), fato é que o as-sunto “identidade” ainda hoje se impõe, talvez mais do quenunca, no bojo da tão propalada e irresistível onda deglobalização cultural que varre o planeta, pois “a fraternidadecomunitária seria incompleta, talvez impensável, ainda queinvejável, sem essa inclinação fratricida inata” (Bauman,2000, p. 198).

Sem dúvida, as pesquisas imagológicas em nosso tem-po globalizado são indispensáveis para se entender e/ouaceitar não só o próprio e o alheio, mas também e, sobretu-do, o modo como o próprio e o alheio se articulam, interli-gam e interagem. Investigar esses movimentos é a tarefamultidisciplinar da imagologia, de que a imagologia literá-ria é coadjuvante. Cada país ou nação, qualquer que sejaseu formato (Estado/nação, comunidade imaginária, co-munidade linguística, comunidade pós-nacionalista), pre-cisa aprender a ler-se no contexto planetário, se quisermanter sua voz.

Referências

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BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien.Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4. ed. São Pau-lo: Ática, 1986.

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CHAUÍ, Maria Helena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritá-ria. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

DIMAS, Antônio. A retomada do romance histórico brasileiro. Jornalda Tarde, São Paulo, 19 ago. 1989.

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SILVEIRA, Tasso da. Literatura comparada. Rio de Janeiro: GRD, 1964.

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. Apresentação: brevíssima história da literatura comparada. In:SOUSA, Celeste Ribeiro de (Org.). Imagologia. Coletânea de ensaiosde Hugo Dyserinck II. 2007, E-book. Disponível em: <http://www.rellibra.com.br> (publicações). Acesso em 24 abr. 2009.

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O artista fantasma ea máquina mitológica

Raúl Antelo*

RESUMO: A máquina mitológica é um mecanismo que subjaz anossos modos convencionais de estabelecer a diferença huma-no-animal. Busca compreender a emergência do humanismoautonomizado, a partir do âmbito animal humano, e tenta atri-buir uma certa animalização a certos aspectos da vida nua, numatentativa de separar o primitivo do civilizado. Quem estiversituado nos limites do humano sofre consequências similares àsdaqueles seres captados pelo funcionamento da máquina mito-lógica, de modo que a biopolítica contém em si mesma a possi-bilidade virtual de certos meios niilistas de produzir e controlara vida nua. O movimento inje-inje, um grupo de modernistasnovaiorquinos, mostra-nos que a diferenciação humano-ani-mal precisa ser abolida junto com a máquina mitológica e an-tropológica que produz essa diferenciação.

PALAVRAS-CHAVE: vanguarda, primitivismo, vida nua.

ABSTRACT: The mythological machine is a mechanism underlyingour current means of determining the human-animal distinction.It seeks to understand the emergence of the fully constitutedhumanism from out of the order of the human animal and tends toinvolve an animalization of certain modes of human life, in anattempt to separate out what precisely is primitive on the onehand and civilized on the other. Beings situated at the limits ofhumanity suffer similar consequences to those beings caught withinthe working of the modern mythological machine so biopoliticscontains within it the virtual possibility of certain nihilistic meansof producing and controlling bare life. The inje-inje movement, agroup of New York avant-garde artists, shows us that the human-animal distinction needs to be abolished altogether along with itthe mythological and anthropological machine that produces thedistinction.

KEYWORDS: avant-garde, primitivism, bare life.* Universidade Federal deSanta Catarina (UFSC).

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…there was one, the ghost artist, and there was oneabout the famous so-called Inje-Inje, which John Baur atthe Whitney Museum wrote about…

(Cahill, 1960)

Todos nós nos lembramos da associação que WalterBenjamin faz entre a ficção de Kafka e o mundo primor-dial das hetairas. As fontes para estas consideraçõesbenjaminianas a respeito da proto-história remontam aosestudos de Ludwig Klages (Vom kosmogonischen Eros, 1922),e também aos escritos de Johann Jakob Bachofen (1815-1887), autor sobre o qual Benjamin chegou a escrever umpequeno ensaio, em 1934, em francês, onde compara AbyWarburg, como exemplo do teórico grand seigneur, à manei-ra de Alöis Riegl, por seu resgate do bizarro, ao seu com-plemento, o anarquista Elisée Reclus, autor de uma teoriaonicompreensiva de espaços e tempos.1 Mas há outro as-pecto da teoria de Bachofen que eu gostaria de relembraraqui. Em seu ensaio sobre o teórico da Basileia, recente-mente editado de forma póstuma, Furio Jesi (1941-1980)ilumina um aspecto da teoria da máquina mitológica,tributária das teses sobre filosofia da história de seuantecessor, que vale a pena recordar:

Mentre il rapporto con l’antico, fin dalle prime riscopertedei monumenti romani e greci, ha dato vita nella culturaoccidentale ad un filone di indagini esoteristiche, paralle-le e sovente intrecciate a quelle propriamente filologiche,il rapporto con i “selvaggi”, fin dagli esordi dell’etnografiae dell’etnologia, è di solito rimasto alieno da un approcciodi tal genere: quasi che i diversi in quanto antichi posse-dessero segreti e i diversi in quanto “selvaggi” ne fosseroprivi. Ricorderemo un solo esempio. Il benedettino DomPernety, archeologo, filologo, esoterista, da un lato era dis-posto a riconoscere nella tradizione mitologica circa laguerra di Troia i simboli dell’operazione alchemica, d’altrolato, nella relazione del suo viaggio con Bougainville alleIsole Malvine, si limitava ad assumere la partedell’etnografo e descriveva i costumi dei “selvaggi” senza

1 Cf. Benjamin, 2002, p. 11-24. Sobre Reclus me detiveem As flores do mal: sintomae saber anti-modernos. In:Ausências, 2009, p. 13-33.

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ricercarvi alcun segreto, da puro e semplice viaggiatorecurioso e discretamente obiettivo2 (Jesi, 2005, p. 25).

Jesi nos diz, em poucas palavras, que, para equacionaras relações entre o antigo e o selvagem, é necessário, antesde mais nada, analisar os modelos gnoseológicos utilizadospara produzir as múltipas categorias do diverso às quaisrecorremos quase sem pensar. Diz-nos que os primeirosviajantes às Malvinas eram esotéricos na medida em quereconheciam, nas formas simbólicas, a precedência de an-tigos esquemas, mas, não obstante, eram igualmente cien-tíficos enquanto, abolindo o segredo, descreviam usos epráticas culturais com uma suposta objetividade universal.Jesi planta assim, no coração mesmo do mito (a fábula), oespelho da mitologia (a ficção). Diz-nos, pois, que a lógicada representação (a história) está minada, então, pelo re-gime da verdade (da ambivalência). E explica:

Nell’attribuire ai diversi-antichi e non ai diversi-selvaggila proprietà del segreto, gli esoteristi non si limitano acustodire passivamente la loro ricchezza, ma la difendonoattivamente, usufruendo della dimensione temporale (incui collocano l’esibizione dei beni) per conferire fonda-mento alla progettazione della durata dei beni esibiti. Lasfera dei diversi-antichi custodisce come un astuccio defi-nitivamente suggellato la radice del segreto, inteso qualedifferenza per eccellenza. Nel dicchiarare riposta laggiùquella radice, gli esoteristi la pongono deliberatamente alriparo dai turbamenti della storia: al sicuro, in un luogoove essa non potrà mai essere tagliata e quindi potrà sem-pre fondare e alimentare la durata futura della pianta. Idiversi-selvaggi, che godono della contemporaneità congli esoteristi, sono invece esposti quotidianamente ai pe-ricoli della storia – e tanto più dall’istante in cui la loroscoperta da parte dei “civili” ha rotto le ultime barriereche separavano il loro tempo da quello dei “civili”, la lorostoria dalla storia d’Europa. Ciò significa, d’altronde, chela vera diversità, la diversità per eccellenza, quella che puòcoincidere con il segreto in quanto somma diversità, è solo

2 Anteriormente, em Mito(1973), dizia Jesi: “Nestequadro global, Creuzer eBachofen colocam-seimediatamente a uma luzequívoca aos olhos daquelesque do Iluminismo tinhamescolhido unicamente a ‘faceluminosa’, arrastando a luzpara a ‘objectividadefilológica’. Tanto Creuzercomo Bachofen dirigiam-se,pelo contrário, às‘profundidades do ser e dopensamento’, à regiãoobscura que se apresentavacomo um perigo, como umterreno de perigosas areiasmovediças ou de pântanoscheios de fantasmas, frenteàs certezas iluministas. E operigo era particularmentegrande porque a essência dopensamento iluministaimplicava uma precisadialéctica entre luz e trevas,que desaguavafrequentemente emexorcismo das trevas: na luzentendida como ‘o contráriodas trevas’, mais do que naconvicção – agostiniana – da‘treva’ como ‘ausência de luz’.Creuzer era culpado de teratribuído à ‘ciência’ dosímbolo e do mito – porconseguinte, à filologia –características de ‘ciência’ dosentido da história. Maisculpado ainda era Bachofen,o qual propunha umfundamento funerário dapropriedade (núcleo dapropriedade é a propriedadefundiária, núcleo dapropriedade fundária é otúmulo) e punha o estudiosoda mitologia frente àresponsabilidaderousseauiana de exegeta dascaracterísticas das

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la diversità nel tempo, poiché solo la diversità nel tempo èconfigurabile come efficace elemento di rottura del mode-llo della storia quale unico continuum. E proprio tale rot-tura è l’obiettivo preliminare delle dottrine e delle prassiesoteriche (Jesi, 2005, p. 27-28).

Em 1916, um poeta claramente esotérico, Ezra Pound,pretendia traduzir um texto de Vicente Huidobro, Horizoncarré, para o inglês. Nesse mesmo ano, em sua “Arte poéti-ca”, o poeta chileno se perguntava: “Por qué cantáis larosa ¡oh Poetas!/ Hacedla florecer en el poema”3 (Huidobro,1916), ideia que pouco depois o mesmo Huidobro admiti-ria, em francês, que havia sido transmitida, como em umarevelação, a ele mesmo, por um poeta aimará: “esta ideadel artista como creador absoluto, del Artista-Dios, me latrasmitió un viejo poeta indigena de Sudamérica (aimará)que dijo: ‘El poeta es un dios; no cante a la lluvia, poeta,haz llover’”4 (Huidobro, 1921). Do mesmo modo, o mexi-cano José Juan Tablada também registrou, em 1923, que adecadência dos velhos padrões da arte greco-romana in-clinava os artistas modernos até os primitivos da Etrúria,Ásia, África e América, em uma busca ardente do ParaísoPerdido e seus frutos dourados, pela visão direta, a formapura e a expressão clara. Em 8 de abril deste ano, depois deproferir uma conferência sobre a arte mexicana em Wa-shington, Tablada copia em seu diário uma passagem daHistória da arte, de Élie Faure, em que o crítico francêsargumenta que uma civilização é um fenômeno lírico e épor meio dos monumentos que eleva e deixa para trás de sique apreciamos sua grandeza e qualidade.5

Nesta mesma linha de trabalho poético, temos, na NovaYork de 1920, uma insólita derivação que não é de fontecientífica, mas sim esotérica. Com efeito, Holger Cahill(1887-1960) lança ali o movimento inje-inje, de declaradainspiração indígena sul-americana. Mas quem era Cahill,figura hoje completamente esquecida?6 Recordemos queHolger Cahill organizou as primeiras exposições sobre arteetnográfica norte-americana, American primitives e American

sociedades ‘primitivas’ e, porconseguinte, de todas associedades humanas, graçasà equivalência ‘primitivo’ =‘primordial’, portantofundamento perene” (Jesi,1977, p. 70).

3 Na tradução de DanteMilano, a Arte Poetica deVicente Huidobro torna-se“Que o verso seja como umachave / Que abra mil portas /Cai uma folha. Algo passavoando / Criado seja tudoque os olhos veem / E a almado ouvinte se extasietrêmula. / Inventa mundosnovos e escolhe a tua palavra/ O adjetivo quando não dávida mata / Estamos no ciclodos nervos / O músculo estápendente / Como umarecordação nos museus / Masnem por isso temos menosforça / O vigor verdadeiro /Reside na cabeça. / Poetaspor que cantais as rosas? /Fazei-as florescer no poema /Todas as coisas debaixo do sol/ Existem só para nós / Opoeta é um pequenino Deus”.

4 “Cette idée de l’artistecréateur absolu, de l’Artiste-Dieu me fut suggérée par unvieux poète indien del’Amérique du Sud (Aïmara)qui dit: ‘Le poète est unDieu, ne chante pas la pluie,poète, fais pleuvoir’”. Ao queHuidobro acrescenta suaponderação bem século XIX eautonomista: “Bien quel’auteur de ces vers tombâtdans l’erreur de confondre lepoète avec le magicien et decroire que l’artiste pour semontrer créateur doittroubler les lois du monde,alors que ce qu’il doit fairec’est créer son monde propreet indépendant

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folk sculpture, no Museu de Newark, entre 1929 e 1931, emais tarde, em 1932, outra, American folk art: The art of thecommon man in America, 1750-1900, seguida por Americansources of modern art, no ano seguinte, no mesmo Museude Arte Moderna de Nova York, instituição da qual foidiretor, assistindo, aliás, nessas tarefas, Alfred H. Barr Jr.Estudante de jornalismo na Universidade de Nova York,Cahill travou amizade, nessa época, com Irwin Granich,mais conhecido como Michael Gold, o eminente escritorcomunista americano. Em 1914, Gold conseguiu para o seuamigo o primeiro emprego profissional, como editor de doisjornais de Westchester, o Scarsdale Inquirer e a BronxvilleReview. Uma crônica apresenta esses dois recém-chegadosaos círculos artísticos de Nova York e os descreve como o“moreno judeu estadunidense volúvel”, no caso de Gold,e no de Cahill, como “um loiro de olhos azuis, forte, com apálida expressão fanática de William Blake”, ambos, en-tretanto, unidos fervorosamente em torno do movimentopoético inje-inje (Gold, 1921, p. 28-31).

Em 1918, de fato, Cahill lembra-se de ter lido umaobra etnográfica escrita por um membro da Real Socieda-de Geográfica, que bem poderia ser Exploração na GuianaBrasileira, de Alexander Hamilton Rice, em que se narra-va a história de “uma tribo em uma região localizada entreo Amazonas e os Andes que era tão primitiva que só con-tava com duas palavras, e o resto de sua comunicação erasuprida com os gestos. As palavras eram inje-inje”7 (Cahil,1957, p. 118). Esta esotérica fundação mitológica de NovaYork os fez prestar atenção em outros fenômenos coinci-dentes. Dois amigos de Cahill, os artistas plásticos John eDolly Sloan – que, em 1919, visitaram Santa Fé, no NovoMéxico, inspirados aliás por uma figura que, à época,gravitava nos círculos de vanguarda, o francês Robert Henri,que, por sua vez, havia estado ali anteriormente, em 1917,levado pelo etnólogo Edgar L. Hewett –, são os que dealgum modo importam a arte pueblo para Nova York. Apaisagem do deserto e os cerimoniais dos índios pueblo le-

parallèlement à la nature”(Huidobro, 1921, p. 772).L’Esprit Nouveau era a revistado cubismo construtivistaanimada por Le Corbusier.Seu crítico literário era PaulDermée, que defendia umateoria da modernidade deinspiração baudelairiana.Tanto os ensaios de Derméecomo os de Huidobro são decapital importância naelaboração do modernismoprimitivista de Mário deAndrade. José MariaArguedas é outro escritorque poderíamos associar aesta dinâmica transcultural.Recordemos seus ensaiossobre “El valor poético ydocumental de los himnosreligiosos kechuas” (LaPrensa, Buenos Aires, 28 jan.1945) ou sobre as “Cancionesquechuas”(Américas, Washington,Unión Panamericana, n. IX,out. 1957, p. 33-34).

5 Cf. Tablada, 1992, p. 221.

6 Para as informações sobreCahill, baseio-me no trabalhode Alan Moore, quedefendeu uma tese sobre oautor, em 1996, e a quemagradeço as informaçõesrecebidas. Devo a primeiraleitura deste texto a AntonioSaborit, que também seocupou da sua tradução aoespanhol. Cf. Moore, 2005.

7 Ver, a este respeito, Baur,1957. A edição foi promovidapor Jorge Romero Brest, queinovara na crítica de artesplásticas latino-americana,primeiramente, com seu livrosobre arte norte-americana e,a seguir, em 1945, com seuensaio sobre a pinturabrasileira contemporânea.

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varam Sloan a pintar e a promover mais tarde, emManhattan, a arte ameríndia, exibindo, na mostra da So-ciedade de Artistas Independentes, pinturas de artistaspueblo provenientes das coleções do doutor Hewett e deMabel Dodge Sterne.

Mas à diferença de Sloan, um esteta, a relação de Cahillcom os indígenas americanos teve, segundo um estudioso,Allan W. Moore, uma dimensão extraestética e até mesmoautobiográfica, que remontava a sua infância em Dakotado Norte, onde Cahill havia conhecido os índios sioux e oschipecua. Seja como for, por experiência direta ou consti-tuição teórica a posteriori, o fato é que a exposiçãonovaiorquina dos pueblo precipita, de algum modo, a divi-são no seio da Sociedade de Artistas Independentes.

Com efeito, organizada na base do modelo francês, aSociedade de Artistas Independentes era o reflexo fiel dasideias estéticas de Robert Henri e, entre seus diretores,figuravam tanto realistas antiacadêmicos como modernis-tas radicais. Entretanto, a contratação de Cahill, comopromotor da exposição da Sociedade de Artistas Indepen-dentes, em fevereiro de 1921, acabou por derrubar o ex-diretor da instituição, Hamilton Easter Field e, em poucotempo, suas atividades à frente da agremiação precipita-ram também a divisão irreconciliável entre seus membros.O setor mais conservador, com Walter Pach na liderança,abateu-se, com intolerância iconoclasta, contra as inicia-tivas de Cahill, tal como ficou refletido na exposição dasaquarelas dos índios pueblo. Cahill escreveu então um ar-tigo sobre essas obras para a International Studio, “Americahas its ‘Primitives’”8 (Cahill, 1922, p. 80-83), onde diziaapreciar particularmente essas obras, primeiro, por teste-munharem cerimônias em perigo de extinção, dramas dan-çantes nos quais se imitam os atos de seres sagrados queauxiliam e sustentam os homens, onde o índio pueblo sur-ge “como artista de una pantomima simbólica”, sem com-paração em qualquer outro lugar do mundo. À diferençado “pintor americano ou do europeu”, os quais pintam “ofenômeno”, consignando as sensações visuais, o “índio se

8 Ao escrever sobre osíndios pueblo, Cahill teve oantecedente de vários artigosde Hewett, em que sereconheciam os rastrosprévios de Waldo Frank, talcomo a nota linguística sobrea beleza e a felicidade que opróprio Cahill atribui aFrank. A ideia é profícua.Permite-nos, ao mesmotempo, pensar a relação entremito e máquina. QuandoWaldo Frank visitou Amigosdel Arte, em Buenos Aires(1929), suas duas primeirasconferências se chamaram“Whitman: El artista, elprofeta, el americano” e“Profetas en el arte modernode Norteamérica. IsadoraDuncan y la danza. AlfredoStieglitz y la pintura.Eugenio O’Neil y el teatro.El desarrollo del jazz.Chaplin y la revolución”.Podemos imaginar suaspalavras a partir do queconsigna seu livro Ustedes ynosotros, em que WaldoFrank atribui o papel de paifundador do clã americano aAlfred Stieglitz: “Stieglitz hasido fotógrafo. Sus obrasestán en algunos de los másgrandes museos del mundo:Nueva York, Londres, París –en tiempos pasados tambiénen Berlín y Viena, hasta queel hecho de ser judío quitótodo valor a la obra de estefervoroso americano. Siemprerechazó el término ‘artista’;nunca retoca un negativo; yes el enemigo jurado del ‘artefotográfico’. ‘Soy un artesano– dice – un hombre que usauna máquina,humildemente, ante lanaturaleza’. Muchos denosotros creemos que sus

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concentra na coisa mesma... O índio consigna o que elesabe, corrigindo sua visão por meio de seu conhecimento ede sua compreensão instintiva”.

Mais tarde, em 1934, Cahill colabora no catálogo daexposição de Arshile Gorky, para as Galerias Mellon daFiladélfia, junto a outros artistas conceituais comoFrederick Kiesler e Stuart Davis e, nos anos 50, chegou aresenhar para a New York Times Book Review duas obras,The Eagle, the Jaguar, and the Serpent, Indian Art of theAmericas (1954) e Indian Art of Mexico and Central America(1957), de alguém muito vinculado ao surrealista WolfgangPaalen, o pintor mexicano Miguel Covarrubias. Trata-sede peculiares experiências de anacronismo que, na Amé-rica Latina, tinham sido propostas, inclusive, por LucioFontana, que acreditava que os homens pré-históricos, aoperceberem, pela primeira vez, um som produzido por gol-pes dados sobre um corpo oco, se sentiram subjugados poressas combinações rítmicas, a ponto de transformarem aarte em uma questão de toque e contato (Fontana, inCipollini, 2003, p. 192), algo em sintonia com as experiên-cias de John Cage, em Totem ancestral (1943), Terra espon-tânea (1944) ou Música para Marcel Duchamp (1947). É aépoca, aliás, em que Sérgio de Castro, frequentando oAtelier Torres Garcia, empreende uma viagem pela regiãoandina, para aprofundar o conhecimento das culturas pré-colombianas.

Cahill, pioneiro nesse aspecto, compreende, portanto,na coisa mesmo, a unidade da cultura indígena, entendi-da como uma vida estética e religiosa integrada à nature-za. Aludindo a “algumas das línguas indígenas”, que sócontam com uma palavra para descreverem a felicidade ea beleza, Cahill contrasta este fato com o mundo contem-porâneo, descrito, em um arroubo crítico, como uma “sór-dida Babel industrial”, produto do “Povo da Máquina”, quelevou o feio à sua apoteose. Sua proposta estética, o inje-inje, não passaria, pois, de uma imitação performativa pau-tada pelo esforço de empregar elementos ameríndios para

fotografías de Nueva York,sus estudios de nubes, susretratos mágicamentereveladores del carácter, susdesnudos de mujer quetienen un dinamismoestilizado, no sin relacióncon la escultura egipcia,hacen de él el más grandefotógrafo que haya vivido. Ysi esto es así, es importanteque en nuestra tierra demáquinas, nuestra tierraselva de máquinas, el hombrede sensibilidad másprofunda, de visión máspersonal, quizás, hayaelegido una cámarafotográfica, – una máquina –para expresar su visión.Stieglitz no es un filósofo.Pero, con todo, si unverdadero Nuevo Mundonace en América, los filósofosdiscutirán la significaciónmetafísica de AlfredStieglitz. Sin embargo, mispensamientos están hoy conél, no como el artesano cuyahumildad ante el hecho haproducido milagros (solo elamor – cuyo otro nombre eshumildad – hace milagros):sino como el Sócratesamericano que ha nutrido atoda una generación depintores, escritores, hombresy mujeres creadoras. Digo:nutrido, y no mimado. Estehombre ha sido duro ydespiadado. Muchas veces,en los tiempos idos, fuí a él,angustiado, buscandoconsuelo. Nunca encontré elconsuelo; obtuve, en cambio,una visión de la verdad quecuraba el egoísmo de miangustia” (Frank, 1942, p.146-147).

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a estética da vanguarda que ele compartilhava com seuscolegas, George Bellows, Max Weber, Mark Tobey, WaltKuhn, Jules Pascin, Joseph Stella e William Zorach. Cahill,como disse, situa essa experiência do inje-inje em torno de1920:

En esa época, como saben, muchos de nosotros estábamosmuy interesados en el arte precolombino. Yo solía recorrerel Museo de Historia Natural, y ahí tenía un amigo especi-al, el doctor Mead, el curador de lo peruano. De haberserealizado alguno de nuestros conciertos, él me iba a prestarla flauta de percusión, un instrumento curioso hecho debambú, partido en uno de sus extremos, de origen filipino,y también algunos gigantescos tambores de señales africa-nos9 (Cahill, apud Moore, 2005, p. 85-112).

Ainda que o motivo desta busca das “qualidades abs-tratas”, como dizia Cahill, absolutamente panculturais epan-históricas, não pareça transcender o ecletismo da cul-tura art-nouveau, as questões sociais, históricas e culturaisprovocadas pelo primitivismo modernista são, não obstante,inegáveis consequências deste processo de amplatransculturação estética.10 Waldo Frank, um dos mentoresindiretos de Cahill, havia construído seus relatos de CityBlock (1922) segundo a tensão entre o eu inato e o euadquirido, a pessoa e o ambiente, o que aproximava Frankde narradores como Sherwood Anderson ou Hemingway.11

Mas essa mesma divisão subjetiva explicava igualmente afascinação de Frank por processos ameríndios soberanos defusão.12 Essa tensão nos mostra, além disso, que a estéticainje-inje se baseava, segundo Moore, no que parecia ser umaetnografia fantástica, mas de base linguística efetiva.

De forma semelhante à de Ana Cristina César, que,em Correspondência completa (1979), inclui uma única car-ta,

Inje-inje, una lengua de una sola palabra, ubica esencial-mente a un pueblo amerindio en el silencio, desplazadodel habla, del discurso, en un dominio de pura presencia

9 Segundo Moore, CharlesW. Mead, o curador decultura incaica no Museu deHistória Natural, pode tercolaborado de maneirasignificativa no inje-inje deCahill. Mead empenhou-sefortemente pelas coleções deobjetos peruanos do Museu,tanto entre os artistas comocom o público. Cf. Eberle,1921, p. 5; Einstein, inAntelo, 2008.

10 Cahill é, neste sentido,pioneiro do “primitivismo” naarte moderna. Ver, a esserespeito, Goldwater, 1966;Rubin, 1984; Rhodes, 1994;Clifford, 1988.

11 É a opinião de LuisSaslavsky, que anos maistarde filmaria um pastiche detravestimento como Vidalitaou uma ficção Unheimlichecomo Las ratas, baseada noromance de Pepe Bianco. Cf.Saslavsky, 1929, p. 131-132.Nesta mesma ocasião, agrande amiga de Saslavsky, aescritora Maria Rosa Oliver,traduz para Síntesis“Accolade” e “Esperanza”,dois relatos de City block.

12 Em seu clássico AméricaHispánica, diz Frank que“filhos do Sol, os incas setornaram absolutos na suaoutorga das leis do Sol.Nenhum dirigentedesrespeitou essas leis, cujosverdadeiros intérpretes eexpositores eram os amuatas.O ayllu dos incas era sujeito auma impiedosa disciplina doespírito e do corpo, a qualrecorda os Brâmanes e ospitagóricos. O jovem quefraquejava era degradado. SerFilho do Sol significava estarperpetuamente preso como o

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física, “la cosa en sí”. El teatro que Cahill […] derivó de losinjes fue la pantomima, y así la describe él. “Una de nues-tras reglas para el teatro era que las caras y las manos debí-an estar enmascaradas pues ellas ya habían aprendido mu-chos sobre las mentiras. Sólo debían estar expuestas laspartes más voluminosas del cuerpo” […]. “La idea de lasmáscaras en las representaciones dancísticas y teatrales(una máscara blanca para la cara, una especie de mitones-máscara-no-guantes para las manos) era que la cara y lasmanos ya habían sido muy usadas para una expresividadremilgada y sin sentido y hasta falsa y que el bailarín y elactor dependan más de las partes masivas del cuerpo, lascuales, al igual que la tierra, no ofrecen respuestas falsas”(1950). La idealización que hace Cahill de lo primitivo sebasa en la búsqueda de la verdad. Él no buscaba principiosuniversales de dibujo, como Arthur W. Dow o Jay Hambidge,sino variedades de expresión universales en un pasticheideal primitivo.13

O primitivismo performativo e a teatralização daetnicidade reconciliavam assim, aos olhos de Cahill, a fi-gura do poeta com o histrião, ou seja, filiavam-no à tradi-ção teatral de canção cômica e do teatro de revista, gêne-ros fortes nos Estados Unidos. Ainda que tanto osespetáculos locais de mímica quanto o vaudeville, de abertaraiz europeia, logo entrariam em decadência, é inegávelque as dinâmicas de identificação étnica se incorporaram,entretanto, à música do jazz e ao cinema, monopolizadopor Al Jolson e Irving Berlin, incorporando, efetivamente,a fala afro-americana, retrabalhada, por sua vez, na litera-tura, por escritores como, por exemplo, Ezra Pound, T. S.Elliot e Gertrude Stein. Na Argentina, isso também semanifesta sintomaticamente em um filme como Embrujo(1941), baseado no romance histórico A Marquesa de San-tos, de Paulo Setúbal, em que Enrique Susini, fundador daRádio Municipal e autor de um clássico como Los tresberretines, não hesita em escalar o cantor cubano Bola deNieve para interpretar o criado Chalaça, nem em pô-lopara cantar, em uma taberna paulista do século XIX, uma

próprio Sol. E tão raramente aspessoas desrespeitavam as leis,que crimes individuais setornaram históricos; em todosos anais de Tahuantin-suyu,não há exemplo de uma virgeminca dedicada ao Sol terfugido à virtude. Dia a dia, oSol perfazia o seu ciclo; e agente ligada ao Sol nãoimaginava atos em desacordocom a cadência dele.Contudo, havia liberdadespermitidas por lei: aembriaguez parece ter sidocostumeira em todas as festase o canto e a dança irradiavamda vida comunal como os raiosse desprendem do sol. Osegredo dessa cadênciauniversal encontra-se no fatodecisivo de que a vontadepessoal era instintivamentetransfigurada pela aceitaçãoinstintiva do ayllu como aunidade do eu. Um grupo nãopode fazer mal a si mesmo; só ogrupo que se julga separado deoutros ou que é dirigido porum homem que se senteseparado dele pode cair emdesvario. Mas esses grupos,desde o mais humilde ayllu sobo seu curaka até Tahuantin-suyu sob o seu inca universal,compunham-se de homens eeram dirigidos por homens quese sentiam não pessoas nosentido europeu de almas, masmeras cargas elétricas do ayllu.E o ayllu sentia-se uma funçãode Tahuantin-suyu; e oimpério sabia que era umesboço do ayllu. Por isso,embora o inca fosse o senhorsupremo, era o oposto domonarca, sendo o focoarticulado do povo” (Frank,1946, p. 74-75).

13 Alan Moore interpretaque, linguisticamente, “inje-

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modinha que não é outra coisa senão um poema afro-cu-bano de Songorocosongo, o livro de Guillén.14 Não nos es-queçamos tampouco que nos salões dos Amigos da arte, narua Florida, era possível ouvir, nessa época, tanto o quar-teto de alaúdes dos irmãos Aguilar como a música atonaldo grupo Renovación ou a voz da cantora francesa JaneBathori, íntima de Satie ou Debussy, junto a algumas ex-periências de music-hall, recitais de música negra na vozde Blackie ou tangos suburbanos cantados por Olinda Bozánou Azucena Maizani.15 Ali mesmo, nos salões de Van Riel,María Dalbaicín – bailarina que se integrara à trupe deDiaghilev, logo após a saída de Massine, aportando a sen-sualidade de seu Cuadro flamenco (1921), artista retratadapor Picasso, e que trabalhara, ademais, entre outros filmes,em Surcouf, com Antonin Artaud – organizou uma série debailes, “Una tarde española”, “Una tarde vasca”, “Una tar-de criolla” e “Una tarde peruana”. Também a cantora paulistaGermana Bitencourt, casada com o poeta martinfierristaPedro J. Vignale, ofereceu ali mesmo recitais de música bra-sileira, que se somaram ao concerto vocal da SociedadeCultural de Concertos, dirigida por Gastón Poulet, ou aospoemas de Baudelaire, recitados por Victoria Ocampo.

A experiência social do baile estava, portanto, intima-mente ligada aos atos de vanguarda. No Brasil são famosasas festas de carnaval promovidas pela Sociedade de Prote-ção da Arte Moderna (Spam), cujos salões eram decora-dos por artistas como Lasar Segall e louvadas por Mário deAndrade. O autor de Macunaíma chegou mesmo a comporum poema para o baile carnavalesco “A cidade de Spam”,cujos cenários eram de Lasar Segall. Diz o poeta:

E se abre a farra fanfarrã!Doutores, mendigos, exóticasPernas, carruagens estrambóticasBarcarolas a rataplã,Heróis nascidos na antevéspera,Jogadores de box e víspora,Esporas, cascos, besta ruã...

inje” é uma soluçãoreduplicativa, um eco, como“dadá”, “ismism” e muitosoutros conceitos que dão corà linguagem dos anos 1920.Outros, como “choo-choo” ou“fuck-fuck”, aparecem nalinguagem infantil e noinglês macarrônico usado naChina, segundo explicamWentworth & Flexner noDictionary of American Slang.Inje remete logo a Injun, umapalavra com rica história emgírias nos Estados Unidos eque equivale a um juramentode honestidade, “honestInjun!”, a uma expressão deira, como em “get up one’sinjun” e a uma expressão desinceridade aos princípios“Injun Here!”.

14 Embrujo. Diretor: EnriqueT. Susini. Produção: LumitonCinematografica.Argumento: Enrique T.Susini e o poetamartinfierrista Pedro MiguelObligado. Música: GeorgeAndreani. Coreografia:Maria Ruanova. Intérpretes:Georges Rigaud (D. Pedro),Alicia Barrié (Domitila deCastro), Pepita Serrador,Ernesto Vilches, SantiagoGómez Cou, Carlos Tajes,Maria Ruanova, AmeryDarbon, Pablo Donadio,Carlos Bouhier, PabloLagarde e Bola de Nieve.

15 Oposta à dos Amigos daarte era a estética de umcronista mundano como JuanJosé de Soiza Reilly, redatorde El Hogar, que, como nosinforma Verónica Meo Zilio,escreveu um extenso artigoinsultando “La cultura chicen Buenos Aires.Asociaciones protectoras delarte que terminan en casa de

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E a fauna urbana e suburbanaDançando o fox, o quero-manaCorda bamba, valsa alemãSamba, tango, jongo e bolero!Vinde ver isso ao TrocaderoNa carnavalada do SPAM!(Andrade, 2000, p. 551)

Havia, por outro lado, as reuniões mais iconoclastasdo Clube dos Artistas Modernos, chefiado por Flávio deCarvalho, mas, tal como a exposição da Sociedade dos Ar-tistas Independentes, o baile no meio artístico era reflexode modelos europeus, à moda do Baile de Quat’z Arts, afesta anual dos estudantes de Paris. A tendência à fanta-sia, nessa tresloucada mascarada, sempre esteve presentena vida social dos artistas de vanguarda. Muitos artistasbrancos, com a cara pintada de negro, fizeram parte doseventos dadaístas na Europa. Philippe Soupault apareceucomo artista de circo, com a cara pintada de preto, emParis, na primavera de 1920 e se apresentou no Salão Dadá,no ano seguinte, fantasiado de presidente da Libéria. Em1919, George Grosz se pintou de preto e imitou o sotaqueafro como mestre de cerimônias em um evento dadá emBerlim. E, nas sessões dos Amigos da arte, o escritor espa-nhol Ramón Gomez de la Serna fez o mesmo com o rostocoberto de betume. Essa identificação tão explícita da van-guarda com os colonizados costuma ser interpretada como“negrofilia”, le tumulte noir, a loucura europeia pelo jazz dosEstados Unidos e o amor pela escultura africana.16

Não se pode ignorar, porém, que foi entre os índiospueblo ou, para ser mais exato, em uma dança ritual destesindígenas, a dança da serpente, que, pouco antes do des-cobrimento de Edgar L. Hewett, Robert Henri ou JohnSloan, Aby Warburg encontraria o estímulo da mitologia(Mnemosyne) para escapar do mito evolucionista (o factum)da cientificidade e do tempo pleno. A saída, a seu ver,seria a de uma causalidade dançada, de estirpe dionisíaca,girando em torno do vazio de sentido do sentido.

juego o en algo peor”, noqual vaticinava que Amigosda arte, “una vez queobtenga su personeríajurídica, empezará amostrarse tal cual es. Ya nosimaginamos que en sus bellossalones se jugará a las cartas.Al treinta y cuarenta.Ruletita. Timba... Después sepondrá una jazz-band.Mesitas en cuadro. Bailes decultura ‘chic’. Y gracias a lamiseria de los artistas, lainstitución podrá convertirseen un aristocrático cabaretcon anexos donde algunasseñoras y niñas de cultura‘chic’ irán como antes iban alas casas de moda”.

16 Cf. Zayas, 2005; Einstein,1986, p. 344-353; Einstein,2002. Inclui “Escritos de CarlEinstein sobre arte africano”,de Liliane Meffre; “Laescultura negra” (1915), oensaio de Carl Einstein;“Notas sobre un torso”, por E.Bassant y J.-L. Paudrat; edois ensaios de CarlEinstein, “La esculturaafricana” e “A propósito de laexposición de la GaleríaPigalle”. Uma derivação dissoé a reflexão sobre a máscaraaborígene. Cito somente umacontribuição póstuma,“Iconology and the maskingcomplex in Eastern NorthAmerica”, que recolhe asobservações de um dos maisbrilhantes discípulos deFranz Boas, Frank G. Speck,publicada na Filadélfia(University Museum Bulletin,The University ofPennsylvania, v. 18, n. 1, jul.1950).

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Muito mais tarde, ao comentar A fábula mística deMichel de Certeau, Jacques Derrida aludiria a essa dançados significantes em torno do sim:

Supposons un premier oui, le oui archi-originaire qui avanttout engage, promet, acquiesce. D’une part, il est originai-rement, dans sa structure même, une réponse. Il est d’abordsecond, venant après une demande, une question ou unautre oui. D’autre part, en tant qu’engagement ou promes-se, il doit au moins et d’avance se lier à une confirmationdans un prochain oui. Oui au prochain, autrement dit àl’autre oui qui est déjà là mais reste pourtant à venir. Le«je» ne préexiste pas à ce mouvement, ni le sujet, ils s’yinstituent. Je («je») ne peux dire oui (oui-je) qu’en pro-mettant de garder la mémoire du oui et de le confirmeraussitôt. Promesse de mémoire et mémoire de promesse.Ce «deuxième» oui est a priori enveloppé dans le «premi-er». Le «premier» n’aurait pas lieu sans le projet, la mise oula promesse, la mission ou l’émission, l’envoi du secondqui est déjà là en lui. Ce dernier, le premier, se doubled’avance: oui, oui, d’avance assigné à sa répétition. Com-me le second oui habite le premier, la répétition augmenteet divise, partage d’avance le oui archi-originaire. Cetterépétition, qui figure la condition d’une ouverture du oui,le menace aussi: répétition mécanique, mimétisme, doncoubli, simulacre, fiction, fable. Entre les deux répétitions,la «bonne» et la «mauvaise», il y a à la fois coupure et con-tamination. «Cruelle quiétude», cruel acquiescement. Lecritère de la conscience ou de l’intention subjective n’a iciaucune pertinence, il est lui-même dérivé, institué, cons-titué (Derrida, 1987).

Promessa de memória e memória da promessa, o se-gundo sim, o segundo inje, deve ser portador de uma reno-vação absoluta, inaugural e livre de energias, uma autên-tica ruptura antropofágica, de modo que o segundo injerompa com o primeiro inje, tal como o mesmo Derrida nosdemonstra em “Ulisses Gramófono”:

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La repetición del oui puede tomar formas mecánicas, ser-viles, que a menudo doblegan a la mujer ante su amo; perono es por accidente, aun si toda respuesta a otro como otrosingular, parece, debe escapar a eso. El sí de la afirmación,del asentimiento o de sentimiento, de la alianza, del com-promiso, de la firma o del don debe llevar la repetición ensí mismo para valer lo que vale. Debe confirmar inmedia-tamente y a priori su promesa y prometer su confirmación.Esta repetición esencial se deja asediar por la amenaza in-trínseca, por el teléfono interno que la parasita como sudoble mimético-mecánico, como su parodia incesante.Regresaremos a esta fatalidad. Pero ya escuchamos esta gra-mofonía que registra la escritura en la voz más vivaz. Ellala reproduce a priori, en ausencia de toda presencia inten-cional del afirmador o la afirmadora. Tal gramofonía cier-tamente responde al sueño de una reproducción que guar-da, como su verdad, el sí viviente, archivado en su másviva voz. Pero por eso mismo, da lugar a la posibilidad deuna parodia, de una técnica del sí que persigue el deseo másespontáneo y más dador del sí. Este, para responder a sudestino, debe reafirmarse inmediatamente. Así tal es lacondición de un compromiso firmado. El sí no puede de-cirse a menos que se prometa la memoria de sí. La afirma-ción del sí es afirmación del la memoria. Sí debe conser-varse, o sea reiterarse, archivar su voz para volverla a dar aoír.Es lo que llamo el efecto de gramófono. Sí se gramofonea yse telegramofonea a priori.El deseo de memoria y el luto del sí ponen en marcha lamáquina anamésica. Y su aceleración hipermnésica. Lamáquina reproduce lo vivo, lo duplica con suautómata17(Derrida, 2002, p. 74-75).

Este efeito da máquina gramofônica, como a chamaDerrida, está presente, como assinalávamos antes, nos tra-balhos de Warburg. José E. Burucúa, grande estudioso ar-gentino da obra de Warburg, lembra que esse método so-freu, entre 1933 e 1948, um certo congelamento humanista,uma súbita autonomização, quando Fritz Saxl buscou am-pliar os registros das Pathosformeln da civilização europeia

17 Em “Nietzsche e amáquina”, Derrida reiteraque “There is a time and aspacing of the ‘yes’ as ‘yes-yes’: it takes time to say ‘yes’.A single ‘yes’ is, therefore,immediately double, itimmediately annouces a ‘yes’to come and already recallsthat the ‘yes’ implies another‘yes’. So, the ‘yes’ isimmediately double,immediately ‘yes-yes’. Thisimmediate duplication is thesource of all possiblecontamination.... The second‘yes’ can eventually be one oflaughter or derision at thefirst ‘yes’, it can be theforgetting of the first ‘yes’...With this duplicity we are atthe heart of the ‘logic’ ofcontamination. One shouldnot simply considercontamination as a threat,however. To do so continuesto ignore this very logic.Possible contamination mustbe assumed, because it is alsoopening or chance, ourchance. Withoutcontamination we wouldhave no opening or chance.Contamination is not only tobe assumde or affirmed : it isthe very possibility ofaffirmation in the first place.For affirmation to be possible,there must always be at leasttwo ‘yes’s’. If thecontamination of the first‘yes’ by the second is refused– for whatever reasons – oneis denying the verypossibility of the first ‘yes’.Hence all the contradictionsand confusion that thisdenial can fall into. Threat ischance, chance is threat –this law is absolutelyundeniable and irreducible.

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e incorporou a essa série criada por Warburg a figura dovarão que luta contra o animal, a figura do sofrido e a domensageiro celeste. A partir de então, a vida das Pathosformelnse converteu na vida de simples imagens e a descriçãopassional de seus avatares históricos se degradou em ummero itinerário iconográfico. Isto quer dizer que

el método trágico de Warburg, trágico debido al desgarra-miento que produce una construcción historiográfica ten-sada entre lo universal de una categoría, por más históri-camente determinada que se la considere, y lo particular,individual y fragmentario de sus concreciones reales suce-sivas, se transformó en un apaciguado método iconográfi-co merced a Saxl y, mucho más todavía, a los trabajos deErwin Panofsky.

Por isso Burucúa se impôs a tarefa de “retomar elcamino abierto por Aby Warburg e intentar hacer elrepertorio de las Pathosformeln que han tejido y tejen todavíala experiencia cultural y civilizatoria de quienes nostenemos por sucesores de la modernidad euroatlántica”.Porque esas formas representativas e significantes, autên-ticos vetores de uma constelação emocional, são

las intermediarias necesarias en todo proceso de pasaje otransferencia entre las esferas de lo racional-tecnológico ylo mágico que, según la teoría histórica de la cultura deAby Warburg (replicada en este sentido por la teoría an-tropológica general de Bronislaw Malinowski), es el pro-totipo de cualquier práctica de permanencia o de cambiocultural,

com o qual, apoiado em Warburg, Burucúa está nos dizen-do, em poucas palavras, que toda leitura descansa

casi exclusivamente en los términos de los conflictos, con-ciliaciones, coexistencias y combates entre la ratio de lailuminación científica, asociada al dominio técnico de lanaturaleza, y la comprensión analógica que nos conduce acreer en una unidad mágica y consoladora del mundo, más

If one does not accept it,there is no risk, and, if thereis no risk, there is onlydeath. If one refuses to takea risk, one is left withnothing but death.”(Derrida, 2002, p. 247-248).

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allá del principio de no contradicción. Las Pathosformeln,llevadas a la plenitud de su intensidad significante y emo-cional en el plano de la estética, serían así los eslabonesque, aun en los momentos de lucha más encarnizada entrelos hombres tecnológicos y los hombres mágicos [...] o bienen los momentos de derrumbe de los sistemas racionalesque provocan las grandes crisis de la economía y de la soci-edad, salvan y hacen posible la comunicación mínima en-tre el logos y las analogías emocionales, la relación quepreserva la unidad y la continuidad de la vida humana o dela cultura.

Desprende daí que, para Burucúa, uma Pathosformel é

un conglomerado de formas representativas y significan-tes, históricamente determinado en el momento de su pri-mera síntesis, que refuerza la comprensión del sentido delo representado mediante la inducción de un campo afec-tivo donde se desenvuelven las emociones precisas y bipo-lares que una cultura subraya como experiencia básica dela vida social. Cada Pathosformel se transmite a lo largo delas generaciones que construyen progresivamente un ho-rizonte de civilización, atraviesa etapas de latencia, de re-cuperación, de apropiaciones entusiastas y metamorfosis.Ella es un rasgo fundamental de todo proceso civilizatoriohistóricamente singular (Burucúa, 2006, p. 12-13).

Tanto na obra de Roberto Calasso (2005) como na deGiorgio Agamben (1998; 2007) ou na de Georges Didi-Huberman (2002-2007),18 há um evidente retorno aos pos-tulados dinâmicos warburguianos, mas é alguém que vemdo cinema, Philippe-Alain Michaud, que, talvez, tenhamostrado mais cabalmente, na montagem warburguiana,em sua máquina mitológica, os primeiros passos dashistoire(s) ou passagens que podemos propor a partir doslimites de experiência e memória.19

Por tudo isso, neste ponto, caberia retomar a distinçãoentre mito e mitologia que Furio Jesi nos propunha no iní-cio. Ou melhor, repensá-la à luz de uma releitura muitosintomática, a de Giorgio Agamben. Reconhecendo emJesi um precursor, alguém que não se adaptou ao pobre

18 Sobre o autor, consultarZimmermann, 2006.

19 Cf. Michaud, 2007.

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dualismo do pós-guerra, dilacerado entre racionalidade /irracionalidade, história / mito, religião / laicismo, direita /esquerda, Jesi, que, segundo Agamben, desenha a carto-grafia imaginária de um território limítrofe – os limiares –entre história e mito, tem em suas mãos um dispositivo – umtalismã – com o qual condensa seus “pensamentos secre-tos”, retomando aporias e paradoxos, que não são só teóri-cos, mas sim abertamente políticos. A mais emblemáticadessas contradições, nos diz Agamben, é a tensão entre re-belião e revolução, entre a experiência de suspensão dotempo histórico e a de introduzir, no tempo histórico, umadeterminada ordem. Isso nos leva a entender que a socie-dade contemporânea, por meio do controle, não busca dis-ciplinar a ordem, mas sim criar uma ordem que justifique apresença onímoda da vigilância.20 Note-se quão longeestamos da bem-pensante e evolutiva teoria do modernode Octávio Paz, com sua naturalização da revolução, aopreço de desativar a rebelião.

Muito pelo contrário, Jesi busca ativar a máquina mi-tológica, que é uma forma de confrontar “este mundo”com o “outro mundo”, mostrando que o mito não tem subs-tância, não tem matéria, mas é uma dobra, um modo deação da máquina mitológica – a linguagem, as institui-ções, a crença que as sustenta. O ser ou não ser se mos-tra, assim, impotente no presente. A questão que diz res-peito aos limites da cultura, ao contrário, consiste emconhecer a potência da tensão que ela mesma pode produ-zir entre mito e mitologia, entre o pré-existente e o ex-sistente, ou seja, gerar a diferença inerente ao próprio ser.

Jesi, muito influenciado pelo transformismo deHumboldt, chega a dizer que toda língua desenha, em tor-no do povo que a fala, uma sorte de círculo mágico, que aprotege do risco de entrar no círculo de outra língua e deoutro povo. Não há, pois, valor intrínseco. Todo valor sórevela uma força. Não é uma forma. Não é possível lê-losautonomamente. Assim, o inje-inje foi, para Cahill, um la-boratório macartista, uma América pura, ao passo que, para

20 É a tese foucaultianadefendida por Agamben emresposta à visão funcional deBauman. Cf. Bauman, 2008.

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Huidobro, funcionou como seminal laboratório concretista.“Il mito è questo cerchio magico e la sfera delle cose checi non-sono con cui esso s’identifica è quella che illinguaggio umano incessantemente produce e presupponenel suo cuore di non-essere” – nos resume Agamben –, eessa observação fortalece a prévia análise de Jesi, para quemo vazio – a disponibilidade, a linguagem – é aquilo que, arigor, habita a máquina mitológica.

L’una e l’altra, del resto, la rivolta e la rivoluzione, noncontraddicono a livello concettuale il modello propostodalla macchina mitologica. Anzi: nella prospettiva apertasia dall’una sia dall’altra, codesto modello finisce per iden-tificarsi con l’a priori che resta quale fondamento solido eoscuro del processo gnoseologico. Di fronte all’essenza delluogo comune – o all’essenza del mito – non vi è autenticaalternativa concettuale, bensì soltanto alternativa gestu-ale, di comportamento, ma di comportamento che restacomunque circoscritto entro la scatola delimitata dallepareti della macchina mitologica. Rivolta e rivoluzione, allivello concettuale, restano null’altro che diverse artico-lazioni (sospensioni del tempo; tempo “giusto”) del tem-po che vige all’interno di quella scatola (Jesi, 1996, p. 30-31).

A ideia, pensada para ler o Bateau ivre, obviamente,não se esgota em Rimbaud. É inerente à poesia e podemosreconhecê-la, muito antes do inje-inje, na suma desnudezou na noche oscura de San Juan de la Cruz.21 SegundoAgamben, neste ponto, autêntico limiar de sua própriasubjetividade, o crítico contempla, por um instante, emuma sorte de “disincantata divinazzione”, o autêntico alephde uma modernidade sem centro e sem matéria, absoluta-mente pós-autonomizada. “Giunto a questo limite” assina-la, conclusivamente, Agamben “in cui il cuore dellamacchina coincide con la sua stessa esistenza, il mitologo”– ou, poderíamos dizer, o crítico das ficções – “deve deporrei suoi strumenti. L’ esistenza e la non-esistenza dellamacchina coinvolgano ora la sua strategia vitale, si

21 Em seu prefácio às Poesiasde San Juan de la Cruz,Agamben assinala que “ilparadosso della teologiamistica è appunto questo:che, in quanto è opacità espossessamento integrale,l’espererienza finale che essaimplica è quella, puramentenegativa, di una presenzache non si distingue in nullada un’assenza; in sensoproprio, essa non è anzi unateologia (una scienza di Dio),ma una teo-alogia, cheapproda a un’inconoscibilitàultima, o, almeno, a unconoscere soltanto peropacamento e negazione, aun’appropriazione il cuioggetto è l’Inappropriabilestesso, e che non è, perciò,sostanziabile in un habitusdottrinale positivo, masoltanto metaforizzabile ealludibile per ossimori,catacresi a altre ‘figure esimilitudini stravaganti’”.Esta ideia, que reapareceráem sua obra mais recente(recordemos a definição depoesia moderna, em Il regno ela gloria, como teo-alogia), oleva a apontar aconcomitância entre o poetaespanhol e um pensadorcomo Georges Bataille, que,em sua Somme athéologique,nos revela a dívida com oprecursor, não só emconceitos como a nuditésouveraine de um e a sumadesnudez do outro, o non-savoir de Bataille e o saber dopoeta místico. Este mesmohaveria nos mostrado, dizAgamben, por meio daexperiencia interior, aopacidade do mal, razão pelaqual San Juan poderia serlido como fundador da

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decidono alle frontiere dello stesso linguaggio” (Agambenin Jesi, 1996, p. 8).

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A condição americana da nossaidentidade e a história da

literatura brasileira

Luiz Roberto Velloso Cairo*

RESUMO: Este texto pretende traçar uma possível genealogia doconceito de americanidade, que, embora estivesse tão presenteno momento romântico, parece ter-se esmaecido na memóriados brasileiros e mesmo ao longo da história de sua literatura,tão pontuada de signos americanos.

PALAVRAS-CHAVE: Americanidade, identidade nacional, his-tória da literatura brasileira.

ABSTRACT: This paper intends to discuss on an eventualgenealogy of Americanism in Brazilian Literary and Culture.Americanism seems to be out of Brazilian memory even thoughAmerican marks are alive into Brazilian Literary History.

KEYWORDS: Americanism, national identity, Brazilian literaryhistory.

De todos os povos americanos é sem exageração algumao brasileiro o mais digno da veneração dos estrangeiros.

(Joaquim Norberto de Sousa Silva, 1841)

Como brasileiro, uma questão que sempre me intrigoudiz respeito a nossa condição americana, que, frequente-mente, é escamoteada. Americanos são os falantes de lín-guas espanhola, francesa e inglesa que habitam a Améri-ca, ou seja, os outros, enquanto nós somos simplesmentebrasileiros. Em algum momento, perdemos nossa dimensãocontinental, talvez até pela extensão territorial, uma vezque ocupamos 70% do espaço sul-americano. O Brasil éuma nação verdadeiramente sui generis, que não costumaidentificar-se nem tampouco se ver como América, pois aexpressão é sempre usada para nomear a América Hispâni-* Universidade Estadual

Paulista (Unesp)

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ca, o Canadá, e principalmente os Estados Unidos da Amé-rica do Norte.

O olhar do brasileiro em relação à condição de ameri-cano, ou simplesmente o modo como o brasileiro se identi-fica ou não se identifica com os demais povos do continen-te americano, funciona mesmo como preâmbulo para asconsiderações sobre as quais passo a discorrer ao longo destetexto, em que procuro refletir sobre o americanismo da li-teratura brasileira.

O termo americanismo no Novo Aurélio Século XXI: oDicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque deHolanda Ferreira, tanto pode significar “admiração, apre-ço ou mania das coisas da América, particularmente dosEstados Unidos da América”, ou “tudo que diz respeito àcultura, tradição, instituições do continente americano ouque o caracteriza”, quanto “conjunto das ciências huma-nas (etnologia, antropologia, linguística, história etc.) con-sagradas ao continente americano”, ou “peculiaridade doinglês falado nos Estados Unidos da América, do espanholda América ou do português do Brasil”, e ainda como sinô-nimo de americanidade, no sentido simplesmente de “amorao continente americano” (Ferreira, 1999, p. 120).

Americanismo ou americanidade são expressões quevêm de americano, podendo significar, dentre váriasacepções: “de, ou pertencente ou relativo às Américas doNorte, Central e do Sul, ou ao continente americano” e/ou “o natural ou habitante do continente americano”. Es-sas expressões não devem, porém, ser confundidas comamericanização, que significa “ação ou efeito de america-nizar(-se)”, mais precisamente, no contexto em que vive-mos, ação ou efeito de “tornar(-se) americano ou norte-americano; adaptar(-se) ao temperamento, à maneira , ouao estilo americano ou norte-americano” (Ferreira, 1999,p. 120).

Americanidade, ou mesmo instinto de americanidade,como costumo nomeá-lo, se tomarmos o signo instinto nosentido dicionarizado de “impulso espontâneo e alheio à

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razão; intuição” (Ferreira, 1999, p. 1118) ou simplesmentede intenção, de “sentimento de pertença à América”(Bernd; Campos, 1995, p. 5). Tal instinto se manifesta tan-to em textos poéticos de autores que escreveram no Brasildesde os tempos coloniais quanto em textos da crítica lite-rária brasileira do momento romântico, quando já não apa-rece tão espontaneamente, mas, arrisco dizer, de maneiramais consciente e programada, contribuindo para a forma-ção da identidade de uma literatura então em construção,caminhando passo a passo com o que Machado de Assischamou de instinto de nacionalidade, no clássico ensaio“Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacio-nalidade” (1873), ou seja, “certo sentimento íntimo”, quetorna o escritor brasileiro, “homem do seu tempo e do seupaís, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo eno espaço”(Assis, 1962, v. III, p. 804), conforme constataçãofeita no mesmo texto de que: “Interrogando a vida brasi-leira e a natureza americana, prosadores e poetas acharãoali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomiaprópria ao pensamento nacional (Assis, 1962, v. III, p. 801).

Daí a necessidade de voltar o olhar para este instintona tentativa de traçar uma possível genealogia do concei-to de americanidade, que, embora estivesse tão presenteno momento romântico, parece ter-se esmaecido na me-mória dos brasileiros e mesmo ao longo da história de sualiteratura, tão pontuada de signos americanos, como: Aconfederação dos Tamoios (1856), de Domingos José Gon-çalves de Magalhães (1811-1882), A lágrima de um Caeté(1849), de Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885),As americanas (1856), Colombo ou O descobrimento daAmérica (1854), de Joaquim Norberto de Sousa e Silva(1820-1891), Colombo (1866), de Manuel de Araújo Por-to-Alegre (1806-1879), Iracema (1865), de José de Alencar,os “poemas americanos” de Primeiros cantos (1846), Segun-dos cantos (1848), Últimos cantos (1851) e Os Timbiras(1857), de Gonçalves Dias (1823-1864), O livro e a Améri-ca (1870), de Castro Alves (1847-1871), Vozes da América

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(1864) e Anchieta ou O evangelho da selva (1875), deFagundes Varela (1841-1875), O guesa errante (1874-77),de Sousândrade (1832-1902), Americanas (1875), de Ma-chado de Assis (1839-1908), e tantos outros.

Em artigo publicado originalmente n’O Estado de SãoPaulo, de 13 de novembro de 1977, sob o título de “Cris-tóvão Colombo”, o crítico e historiador Hélio Lopes (1919-1992) definiu o americanismo como uma exaltação docontinente americano, visto como um dos aspectos do na-cionalismo romântico brasileiro. O americanismo vem àtona, do seu ponto de vista: “Quando os nossos poetas ouromancistas engrandecem a própria terra, reassumem a vi-são paradisíaca das crônicas e dos poemas dos séculos co-loniais, realçando ou acrescentando-lhes agora a melodianova do orgulho do berço e da posse” (Lopes, 1997, p. 283).

Esta tendência não se restringiu, contudo, aos limitesdas terras brasileiras apenas, mas se estendeu principal-mente pela América Latina, a ponto de Lopes considerar aexistência de dois ângulos distintos no americanismo:

[...] o culto da natureza virgem e grandiosa, não necessari-amente exótica em oposição à natureza européia, emboraesta fisionomia se possa distinguir, e o culto dos heróisnacionais. Confluem estes dois ramos para a exaltaçãoúnica da Liberdade (Lopes, 1997, p. 283).

Vale ressaltar, porém, o fato curioso de que ele viuneste americanismo dos românticos brasileiros umausurpação mesmo do termo América dos hispano-america-nos, ao registrar que: “Tomamos então para nosso uso acordilheira dos Andes, o condor e os vulcões. E chega-se aroubar o próprio nome da América para restringi-lo ao Bra-sil” (Lopes, 1997, p. 283).

Exemplificando com o poema Anchieta ou O Evangelhona Selva (1875), de Fagundes Varela, no qual a América seapresenta primeiro, no Canto II, como uma reminiscênciaclássica, bíblica, da terra prometida, e no fechamento dopoema, no Canto X, confundindo-se com o Brasil, aos olhos

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de Anchieta moribundo, ela aparece como “o império daLei, – a majestade/ Suprema da Justiça”, casando-se “comos ideais românticos também quando se caminha para opassado, na revivescência das lendas primitivas, na procu-ra do berço das raças antigas” (Lopes, 1997, p. 284).

No fundo, Lopes procura mostrar, apoiado no texto Dela poesía en el Brasil (1855), do escritor espanhol Juan Vale-ra y Alcalá Galiano (1824-1905), cujos fragmentos forampublicados na revista O Guanabara (1849-1856), a exis-tência de uma épica romântica brasileira, pouco exploradapelos pesquisadores da nossa literatura, da qual o poemaColombo (1866), de Manuel de Araújo Porto Alegre, é umdos produtos mais significativos, e que é fruto do gosto por-tuguês, pois, de acordo com a avaliação de Fidelino deFigueiredo (1889-1967), “o feito de Colombo não desper-tou na Espanha uma épica de aventura marinha como ativeram os portugueses” (Lopes, 1997, p. 284).

A observação de Lopes diz respeito principalmente aostextos poéticos românticos, no entanto, venho observandoque, também na crítica, quase todos os textos da fase quecostumo chamar dos Bosquejos, Parnasos e Panteóns, oamericanismo está presente de alguma forma, em diferen-tes graus, ao lado do instinto de nacionalidade, haja vistao “Ensaio sobre a história da literatura do Brasil” (1836),de Domingos José Gonçalves de Magalhães, publicado emParis, na Niterói, Revista Brasiliense (1836) ou mesmo “Danacionalidade da literatura brasileira” (1843), de Santia-go Nunes Ribeiro (?-1847), publicado no Minerva Brasiliense(1843-1845), ambos tidos como verdadeiros manifestos daliteratura brasileira romântica.

Nesta mesma direção, Afrânio Coutinho, em A tradiçãoafortunada, ensaio memorável sobre o espírito de nacionali-dade na crítica brasileira, já havia observado que, na pri-meira metade do século XIX:

[...] a literatura brasileira – para ser brasileira ou nacional,como queriam os escritores inspirados pela poética român-tica – tinha que olhar em torno e reproduzir a paisagem

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americana a fim de adquirir a cor local necessária à suacaracterização nacional (Coutinho, 1968, p. 67).

No momento romântico, conforme verbete da Enciclo-pédia de Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho e J.Galante de Sousa, chegou-se mesmo a constatar o uso dotermo americanas como designação de um tipo de produ-ção poética:

Termo geralmente usado durante o Romantismo, no Bra-sil, para designar a produção literária, particularmente depoesia, tendo em vista caracterizar o aspecto americanoou brasileiro daquela poesia. Indica a tendência naciona-lista ou anti-lusa daquela época que procurava acentuar aincorporação dos aspectos locais (costume, flora, paisa-gem) à literatura. O próprio Almeida Garrett, no prefáciodo Parnaso Lusitano, conclamou os escritores brasileiros ausarem mais a Natureza brasileira nas suas produções lite-rárias. Entre outros, Gonçalves Dias e Machado de Assisempregaram a denominação poesias americanas para de-signar uma parte de sua produção poética, seguindo a ten-dência geral (Coutinho; Sousa, 2001, p. 222).

Esta tendência americanista, de feição nacionalista ouantilusa, tem uma dimensão continental, na medida emque se observa a publicação de antologias que expressamesse sentimento, também na América hispânica: Américapoética, Colección escojida de composiciones en verso, escritaspor americanos en el presente siglo é uma delas. Organizadapelo crítico argentino Juan María Gutiérrez, esta antolo-gia teve sua primeira edição em fascículos, publicados en-tre fevereiro de 1846 e junho de 1847 pela Imprensa de ElMercurio, de Valparaíso, no Chile, e a segunda edição, jáno formato de livro, em 1866, publicado pela Imprensa deMayo, de Buenos Aires. América poética reúne poemas de53 poetas, sendo catorze da Argentina, onze do México,cinco do Chile, cinco do Uruguai, quatro de Cuba, três daBolívia, três da Colômbia, três do Peru, três da Venezuela,um do Equador e um da América Central, e constitui a

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primeira coletânea sistemática de poesia americana em lín-gua espanhola e busca sintetizar “a progressiva ascensão dainteligência americana”, conforme aponta o crítico José En-rique Rodó, no ensaio “Juan María Gutiérrez (Introduccióna un estudio sobre literatura colonial)” (Medina, 1995, v. I,p. 211).

Em 1883, ainda na Argentina, Francisco Lagomaggioreorganiza e publica América literaria, uma antologia de tex-tos em prosa e verso na qual aparecem, pela primeira vez,poemas de escritores brasileiros, e, em 1897, CarlosRomagosa organiza e publica, em Córdoba, Joyas poéticasamericanas, uma coletânea de poemas na qual se incluemtextos do poeta norte-americano Edgar Alan Poe, traduzi-dos para o espanhol, ampliando assim o espectro da dimen-são continental dessas antologias de textos americanos.

Dizer, portanto, que os escritores românticos brasilei-ros andaram usurpando o termo América dos hispano-ame-ricanos me parece não fazer muito sentido, pois o instintode americanidade foi uma sugestão romântica europeiaacatada, me parece, por todo o continente americano.

Em texto clássico sobre o Romantismo brasileiro, o crí-tico Antonio Soares Amora (1917-1999) observou com pro-priedade que

Quem sabe o que foi na Europa do fim do século XVIII eprincipalmente do começo do século XIX o crescente mo-vimento de simpatia e até de entusiasmo por tudo que eraa originalidade do mundo americano – sua natureza, suasculturas exóticas, a pureza e o sentimento de liberdade deseus bons selvagens – de pronto compreende o espíritocom que todos os viajantes europeus viram, na época, oBrasil (Amora, 1973, p. 57).

A partir da leitura de um capítulo do livro La littératurecomparée, de M. F. Guyard sobre o tema viagens como marcade presença estrangeira nas diferentes literaturas, o críti-co Brito Broca (1904-1961) fez uma curiosa reflexão sobreos influxos estrangeiros das viagens na literatura brasilei-

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ra, arriscando, entre outras coisas, que, no período coloni-al, “as viagens a Portugal eram não somente elementos deinfluência como condição quase essencial para que um bra-sileiro viesse a produzir obra literária” (Broca, 1992, p. 122),haja vista Santa Rita Durão e Basílio da Gama e, após aindependência, no período nacional, as viagens, de iníciopreferencialmente à França e depois a outros países daEuropa e de outras partes do mundo, inclusive do conti-nente americano, passam a fazer parte do universo dos in-telectuais brasileiros que vão buscar as novas teorias poéti-cas a serem introduzidas no Brasil.

Esta tendência, que modifica o fluxo de influência por-tuguesa na literatura brasileira, pode ser observada no pri-meiro momento romântico, na trajetória da obra de Do-mingos José Gonçalves de Magalhães.

Ao sair do Brasil em direção à França, no dia 3 dejulho de 1833, a bordo do navio Dois Eduardos, o jovemescritor deixou registrados, em sua correspondência dirigidaa amigos brasileiros, alguns destes novos influxos. Ao to-mar conhecimento das principais tendências românticas,ainda recém-chegado a Paris, escreveu a Cândido BorgesMonteiro, insurgindo-se contra “as campanudas odes re-cheadas de Apolo e de Minerva” e manifestando-se a fa-vor de “uma nova poesia despida dos ouropéis clássicos”,mesmo tendo publicado, no ano anterior, seu primeiro livroPoesia, marcado pela estética árcade (Broca, 1992, p. 123).

Vale ressaltar que nesta carta fica documentado o seurompimento com a cultura clássica e a busca dos “cami-nhos de nossa literatura nacional, americana romântica”(Amora, 1973, p. 59).

Comprometido e preocupado com o projeto de cons-trução da história da literatura do Brasil, publicou o “En-saio sobre a História da Literatura do Brasil: estudo preli-minar”, no primeiro número da Niterói-Revista Brasiliense.Este ensaio é um panorama geral com a finalidade de apre-sentar um esboço rápido do passado literário brasileiro.

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O texto é um bosquejo formalmente marcado pelo pen-samento de Madame de Staël, o que justifica o conceitoamplo de literatura, advindo dos irmãos August e FriedrichSchlegel:

A literatura de um povo é um desenvolvimento do que eletem de mais sublime nas idéias, de mais filosófico no pen-samento, de mais heróico na moral, e de mais belo na na-tureza, é o quadro animado de suas virtudes, e de suas pai-xões, o despertador de sua glória, e o reflexo progressivo desua inteligência (Magalhães apud Coutinho, 1980, v. I, p.24).

Além disso, Magalhães confere ao texto um caráterde manifesto divulgador das ideias românticas francesasem oposição à tradição clássica que, no Brasil, era umaherança do colonizador português e por isso precisava serafastada, pois a natural lusofobia existente a partir da se-gunda metade do século XVIII, resultante da malfadadacolonização promovida por um país atrasado, na medidaem que privara a sociedade luso-americana de universida-des, tipografias e periódicos, conduzia a este tipo de atitu-de, ao contrário do que ocorrera nas colônias da AméricaHispânica, onde já havia universidades desde o século XVI.

Daí provavelmente o motivo por que Magalhães regis-trou que:

Não se pode lisonjear muito o Brasil de dever a Portugalsua primeira educação, tão mesquinha foi ela que bem pa-rece ter sido dada por mãos avaras e pobres; contudo boaou má dele herdou, e o confessamos, a literatura e a poesia,que chegadas a este terreno americano não perderam o seucaráter europeu (Magalhães apud Coutinho, 1980, p. 31).

A lusofobia de Magalhães levou-o equivocadamentea acreditar que um desvio da fonte portuguesa para a fran-cesa daria um impulso à construção da identidade da lite-ratura brasileira, conforme se pode observar no tom enfáti-

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co em que expressou o fim do período colonial e o início donacional:

Hoje o Brasil é filho da civilização francesa; como nação éfilho desta revolução famosa, que balançou todos os tro-nos da Europa, e repartiu com os homens a púrpura, e oscetros dos reis. O gigante da nossa idade até a extremidadeda península enviou o susto, e o neto dos Afonsos aterro-rizado como um menino temeu que o braço do árbitro dosReis cair fizesse sobre sua cabeça o palácio de seus avós. Elefoge e com ele toda a sua corte, deixam o natal país, e tra-zem ao solo brasileiro o aspecto novo de um rei , e os restosde uma grandeza sem brilho. Eis aqui como o Brasil deixoude ser colônia, e à categoria de Reino Irmão foi elevado.Sem a Revolução Francesa, que tanto esclareceu os povos,este passo tão cedo se não daria. Com este fato uma novaordem de coisas abriu-se para o Brasil. Aqui deve parar aprimeira história do Brasil (Magalhães apud Zilberman;Moreira, 1999, p. 35-36).

Vale observar que, neste momento, estou reproduzin-do um fragmento retirado da primeira versão desse texto,publicada na Niterói, em 1836, sob o título “Ensaio sobre ahistória da literatura do Brasil: estudo preliminar”, que,na leitura de Regina Zilberman e Maria Eunice Moreira,revela mais as ideias do jovem Gonçalves de Magalhães doque a versão, datada de 1865, do “Discurso sobre a históriada literatura do Brasil”, comumente reproduzida nas anto-logias, publicada em Opúsculos históricos e literários, istoporque:

Entre o “Ensaio” e o “Discurso” notam-se algumas dife-renças lingüísticas: o autor corrigiu gralhas, alterou a for-mulação de certas frases, dividiu o texto em subcapítulos eesclareceu idéias, sobretudo as relativas à nacionalidadeda literatura, tema que teve desdobramento posterior eque ele deve ter conhecido mais tarde (Magalhães apudZilberman; Moreira, 1999, p. 29).

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Ao longo do texto, Magalhães reflete sobre a origem,o caráter, as fases, os autores e as circunstâncias que, emdiferentes momentos, contribuíram para o florescimento daliteratura brasileira ou mesmo o impediram.

Após traçar o panorama geral do passado literário brasi-leiro, Magalhães anuncia uma descrição e análise de nossosprimeiros escritores, mas, em vez de fazê-lo curiosamente, re-toma questões que considera concernentes ao país e aos seusindígenas: “Pode o Brasil inspirar a imaginação dos poetas eter uma poesia própria? Os seus indígenas cultivaramporventura a poesia?”(Magalhães apud Coutinho, 1980, v. I,p. 35)

A primeira questão, na verdade, paira no ar durantetodo o texto e se relaciona com o americanismo, uma vezque diz respeito à visão edênica do continente americano,lugar privilegiado em que o Brasil se encontra, e onde anatureza, como fonte inspiradora de poesia, faz com que osseus habitantes quase já nasçam poetas.

Por este motivo, conclui que “o país se não opõe a umapoesia original, antes a inspira” (Magalhães apud Coutinho,1980, p. 37).

Se isto ainda não havia ocorrido, era

[...] porque os nossos poetas, dominados pelos preceitos, selimitaram a imitar os antigos, que, segundo diz Pope, éimitar mesmo a natureza; como se a natureza se ostentassea mesma em todas as regiões, e diversos sendo os costumes,as religiões e as crenças, só a poesia não pudesse participardessa variedade, nem devesse exprimi-la. Faltou-lhes for-ça necessária para se despojarem do jugo dessas leis arbitrá-rias dos que se arvoram em legisladores do Parnaso (Maga-lhães apud Coutinho, 1980, p. 37-38).

Outro traço do americanismo seria o talento musicaldos indígenas, considerado uma tendência natural para apoesia, que, segundo ele, comprovava-se, em trechos dedocumentos como, por exemplo, o antigo manuscrito Ro-teiro do Brasil, cuja autoria foi atribuída por Francisco AdolfoVarnhagen a Gabriel Soares.

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Magalhães aproximava a tão decantada veneração dosnativos a seus cantores à admiração que os senhores medie-vais dedicavam aos trovadores que peregrinavam de paísem país.

A discussão em torno desta tendência natural dos in-dígenas brasileiros para a poesia viria a ter continuidademais tarde principalmente nos capítulos da “História daliteratura brasileira”, de Joaquim Norberto de Sousa Silva,publicados na Revista Popular (1859-1862).

Estes registros de certa forma justificam meu ponto devista de que a construção da identidade nacional da lite-ratura brasileira caminhou paralela à consciência de per-tença ao continente americano, vale lembrar a imagem jáclássica fixada no “Ensaio sobre a história da literatura doBrasil: estudo preliminar”, de Magalhães:

A poesia brasileira não é uma indígena civilizada: é umagrega vestida à francesa e à portuguesa, e climatizada noBrasil; é uma virgem do Hélicon que, peregrinando pelomundo, estragou seu manto, talhado pelas mãos de Home-ro, e sentada à sombra das palmeiras da América, se aprazainda com as reminiscências da pátria, cuida ouvir o docemurmúrio da castalha, o trépido sussurro do London e doIsmeno, e toma por um rouxinol o sabiá que gorjeia entreos galhos da laranjeira (Magalhães apud Coutinho, 1980,p. 31-32).

O americanismo no contexto do século XIX é, por-tanto uma tendência de dimensão continental, conformeobservou Bernardo Ricupero em relação ao instinto denacionalidade no instigante trabalho intitulado O Roman-tismo e a ideia de nação no Brasil (1830-1870):

Já que a nação não é algo dado, natural, ela terá que serconstruída. Quem procura fazer isso, como projeto delibe-rado, são certos homens, os românticos, que, na Europa ena América, criam símbolos do que passará a ser conheci-do como constituindo nações. Prova do sucesso relativodos românticos não está só nas identidades nacionais que

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se formaram com o tempo, mas na ausência dessas identi-dades anteriormente (Ricupero, 2004, p. 37).

Isto se explica porque:

A nação, na verdade, aparece como o conjunto de vilas,cidades e províncias. Ou seja, a soberania não emanariatanto dela, nem seria una, mas estaria relacionada comentidades anteriores que se combinariam. Portanto, de-pois de organizado o Estado, trata-se de fazer a nação. Àemancipação política, à montagem do aparelho estatal,deve-se seguir a emancipação mental, a constituição deuma sociedade relativamente autônoma e diferenciada(Ricupero, 2004, p. 37).

Como uma tendência de dimensão continental, nãose pode também ignorar que:

A construção das diversas identidades nacionais latino-americanas (a despeito dos esforços integracionistas de Bo-lívar e outros) deu-se com base em condições essencialmentelocais e obedecendo a ritmos desiguais, ditados pelas cir-cunstâncias peculiares de cada caso (Santos, 2004, p. 43).

Zilá Bernd opta pelo termo americanidade, na apresen-tação do livro Literatura e americanidade (1995), organizadojuntamente com Maria do Carmo Campos, para nomear o“sentimento de pertença a América com ênfase na possibili-dade de contribuir para o esgarçamento de fronteirasindevidamente impostas entre as literaturas americanas, per-manecendo a Europa como comparante incontornável”(Bernd, 2003, p. 27). No ensaio “Americanidade e americani-zação” (2002), ela

[...] tenta refazer a trajetória que o conceito de americani-dade perfaz através das Américas, retraçando seus desloca-mentos, suas transferências e as razões pelas quais ele é orareivindicado ora rejeitado, pairando quase sempre sobreele o manto diáfano da ambiguidade (Bernd, 2003, p. 26).

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Com bastante pertinência, justifica seu esforço nareconstituição deste conceito pelo fato de ele estar

[...] intimamente associado às questões de identidade, po-dendo corresponder a um anseio de afirmação identitáriamais abrangente, para além das nacionalidades, dos gêne-ros e das etnias, por tratar-se de um desafio de identifica-ção continental (Bernd, 2003, p. 26).

Ao traçar o percurso brasileiro da americanidade,Bernd observa que no século XVII já se encontram “nu-merosas citações” do Padre Antonio Vieira (1608-1697)incluindo a palavra América em referência ao continentee registrando no Sermão da Epifania a “concepção daAmérica como um todo onde o Brasil se inclui” (Bernd,2003, p. 29).

No século XVIII, aponta o poema O Uraguai (1769),de José Basílio da Gama (1741-1795) como

[...] obra que está nos fundamentos da identidade nacio-nal, invocando “o gênio da inculta América” (canto IV), oque corresponde à personificação da Musa invocada inicial-mente no canto I. Menciona, no Canto V, a “LiberdadeAmericana” (com maiúsculas) e refere-se aos índios ven-cidos das missões jesuíticas como o “rude Americano,/ quereconhece as ordens e se humilha,/ e a imagem de seu reiprostrado adora” (Gama apud Bernd, 2003, p. 29).

Além disso, Bernd alerta para o fato de a historiografialiterária brasileira mostrar que “do século XVII ao XIX,circulava a palavra ‘Americano’ em referência ao Brasil”(2003, p. 29), acrescentando ainda a informação de que:

“América” e “Americano” foram gradativamente substi-tuídos por Brasil à medida que se consolidava o projetonacional e que institucionalizar as letras brasileiras tor-nou-se uma urgência. Valeu enquanto significava oposi-ção à Europa; quando os Estados Unidos passam a exercerinfluência sobre a América Latina, o interesse passa a ser ode se desvencilhar de um ideologema ambíguo em favor de

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um que representasse nossa identidade de maneira inequí-voca como Brasil, brasilidade e brasileiro (Bernd, 2003, p.30).

O que vem ao encontro do que penso, confirmandoassim a ideia de que o instinto de americanidade dos ro-mânticos brasileiros não é uma usurpação da palavra Amé-rica dos hispano-americanos, mas uma tendência de di-mensão continental.

Na primeira metade do século XIX, observa-se, noBrasil, um americanismo marcado pelas ideias românticaseuropeias, em resposta principalmente à lusofobia reinantena ex-colônia politicamente recém-emancipada. A eliteintelectual brasileira buscava, como parte da construçãoda nação brasileira, a constituição de maior autonomiacultural.

O Romantismo europeu, na medida em que reage àuniversalidade da Ilustração, defendendo as especificidadesnacionais, veio preencher as expectativas da elite letradabrasileira em busca de sua emancipação mental.

Bernardo Ricupero, no texto a que antes me referi,atenta para o fato curioso de que

Curiosamente, porém, tanto a crítica literária como a his-toriografia romântica brasileiras são fundadas por estran-geiros: o francês Ferdinand Denis, os ingleses Robert Sou-they e John Armitage, e o bávaro Karl Friedrich Phillip vonMartius. Ou seja, ironicamente o movimento literário quemais insiste na autonomia de nossa vida intelectual não éiniciado por brasileiros (Ricupero, 2004, p. 86).

Dentre estes estrangeiros, Ferdinand Denis (1798-1890) interessou-me mais de perto, pelo americanismo pre-sente no seu pensamento, uma vez que, após ter estado noBrasil entre 1816 e 1819, descreveu romanticamente a na-tureza brasileira como fonte de inspiração, em Scènes de lalittérature sous les tropiques (1824), tomando por base as te-ses de Chateaubriand e Madame de Staël, seguindo umaorientação inspirada por Humboldt; ajudou a criar o

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indianismo romântico no conto Os Machacalis (1824); efundou, segundo Antonio Candido (1918-), no Resumé del’histoire littéraire du Portugal, suivi du resumé de l’histoirelittéraire du Brésil (1826), a teoria da literatura brasileiranos moldes românticos.

Denis exerceu, durante muitos anos, o cargo de con-servador e administrador da Biblioteca Sainte Geneviève,em Paris, e foi amigo e mentor intelectual dos jovens brasi-leiros Domingos José Gonçalves de Magalhães, Manuel deAraújo Porto Alegre e Francisco de Sales Torres Homem(1812-1876), editores, em Paris, dos dois únicos númerosda Niterói-Revista Brasiliense (1836), marco oficial do nossoRomantismo.

Se nos anos 30 registramos a presença do instinto deamericanidade em Magalhães e Porto Alegre, nos anos 40,da geração que se formou em torno do Minerva Brasiliense,periódico carioca que circulou entre 1843 e 1845, vamosdetectá-lo em textos críticos de Joaquim Norberto de SousaSilva (1820-1891) e do chileno Santiago Nunes Ribeiro (?-1847), para quem a fonte inspiradora dos poetas brasileirosestava na própria natureza americana, pois mesmo viajan-do nenhum deles se afastou efetivamente da pátria, con-forme comenta:

A poesia do Brasil é filha da inspiração americana. [...] ogênio dos brasileiros pertence ao clima, ao solo, ao Brasilfinalmente. Assim em vez de considerar a poesia do Brasilcomo uma bela estrangeira, uma virgem da terra helênica,transportada às regiões do Novo Mundo, nós diremos queela é a filha das florestas, educada na velha Europa, onde asua inspiração nativa se desenvolveu com o estudo e a con-templação de ciênca e natureza estranha (Ribeiro apudCoutinho, 1980, v. I, p. 59).

A presença do instinto de americanidade no discursocrítico de Santiago Nunes Ribeiro emerge nos momentosem que necessário se faz ao crítico marcar a originalidadeda literatura produzida no Brasil, portanto na América, em

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oposição àquela produzida em Portugal, isto porque, paraele: “As condições sociais e o clima do novo mundo necessa-riamente devem modificar as obras nele escritas nesta ounaquela língua da velha Europa” (Ribeiro apud Coutinho,1980, v. I, p. 46). Ribeiro não fugiu à tendência da maioriados românticos brasileiros de tomar o Brasil por América evice-versa.

Não se pode esquecer que o caráter específico da crí-tica, naquele momento, entre nós, é muito mais de toma-da de consciência e de formação de um ponto de vista queidentificava a literatura clássica à colônia; e sentia a ne-cessidade de uma nova literatura, inspirada em outrosmodelos, para a jovem nação que surgia.

Neste sentido, as ideias críticas de Augusto Guilher-me Schlegel e Madame de Staël, que nos chegaram pormeio de Ferdinand Denis, forneceram elementos para queos novos escritores percebessem a oposição classicismo-ro-mantismo e, consequentemente, estabelecessem a relaçãoentre Classicismo e Brasil Colônia e Romantismo com Bra-sil independente.

Ao lado de Denis, não se pode minimizar a contribui-ção de dois portugueses no que se refere à manifestação doinstinto de americanidade nos textos produzidos no Brasilpor autores brasileiros. Refiro-me a Almeida Garrett (1799-1875) e Alexandre Herculano (1810-1877).

O primeiro, ao estudar a poesia de língua portuguesa,divulgando um corpus até então desconhecido, na medidaem que incluiu autores das colônias e ex-colônias de Por-tugal, apresentou um novo panorama desta literatura coma finalidade de corrigir informações inadequadas de seuponto de vista, divulgadas por Bouterwek na História dapoesia e eloquência portuguesa (1804) e por SismondeSismondi em Da literatura do meio-dia da Europa (1813).Além disso, criticou os árcades mineiros Cláudio Manuelda Costa e Tomás Antônio Gonzaga pela pouca presençada natureza americana, reivindicando mais originalidadee menos imitação dos europeus: “[...] a educação européia

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apagou-lhes o espírito nacional: parece que receiam de semostrar americanos; e daí lhes vem uma afeição e impro-priedade que dá quebra em suas melhores qualidades”(Zilberman; Moreira, 1998, p. 56-57).

Garrett valoriza os textos dos árcades Sousa Caldas,Santa Rita Durão e principalmente Basílio da Gama, a quem“Os brasileiros principalmente lhe devem a melhor coroa desua poesia, que nele é verdadeiramente nacional, e legítimaamericana” (Zilberman; Moreira, 1998, p. 58).

Alexandre Herculano, por sua vez, manifestou-se fa-voravelmente à literatura produzida no Brasil num artigointitulado “Futuro literário de Portugal e do Brasil”, publi-cado no Tomo IV da Revista Universal Lisbonense, em 1847,ao tecer elogios aos Primeiros cantos (1846), de GonçalvesDias, enaltecendo o fato do então jovem escritor enfatizaro vínculo com o seu meio social. Diz ele:

Naquele país de esperanças, cheio de viço e de vida, há umruído de lavor íntimo, que soa tristemente cá, nesta terraonde tudo acaba. A mocidade, despregando o estandarteda civilização, prepara-se para os seus graves destinos pelacultura das letras, arroteia os campos da inteligência; aspi-ra as harmonias dessa natureza possante que a cerca;concentra num foco todos os raios vivificantes do formo-so céu, que a alumina; prova forças enfim para algum diarenovar pelas ideias a sociedade, quando passar a geraçãodos homens práticos e positivos, raça que lá deve predomi-nar ainda; porque a sociedade brasileira, vergôntea separa-da há tão pouco da carcomida árvore portuguesa, aindanecessariamente conserva uma parte do velho cepo. Possao renovo dessa vergôntea, transplantada da Europa paraentre os trópicos, prosperar e viver uma bem longa vida, enão decair tão cedo como nós decaímos! (Herculano apudCésar, 1978, p. 134)

Assim, Herculano estimulou Gonçalves Dias e os de-mais poetas brasileiros à busca de uma identidade maisaprofundada, que afastasse cada vez mais a literatura bra-sileira da matriz portuguesa. O que levou o crítico

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Guilhermino César (1908-1993) a comentar com muitasagacidade: “Não desejar que os escritores da Américaimitassem os de Portugal, a ex-metrópole, numa submissãoservil, representava efetivamente uma atitude inusitadaentre portugueses” (César, 1978, p. 129).

Como no texto de Garrett, o estímulo à exaltação danatureza americana, da cor local, em Herculano, irá con-tribuir para a formação de um instinto americanidade quelevará muitos dos autores brasileiros à produção dos “poe-mas americanos”, como se pode ver no trecho que se se-gue:

Quiséramos que as Poesias Americanas que são como o pór-tico do edifício ocupassem nele maior espaço. Nos poetastransatlânticos há por via de regra demasiadas reminis-cências da Europa. Esse Novo Mundo que deu tanta poesiaa Saint-Pierre e a Chateaubriand é assaz rico para inspirare nutrir os poetas que crescerem à sombra das suas selvasprimitivas (César, 1978, p. 136).

Herculano e Garrett, na sinceridade que pontua seustextos, revelam uma confiança para com o futuro da litera-tura produzida no Brasil que com certeza serviu de estímu-lo e plantou raízes na construção da identidade nacionalda literatura brasileira. Daí a tradição literária brasileirareconhecer principalmente em Garrett, juntamente com ofrancês Ferdinand Denis, os patronos da nossa historiografialiterária. O Parnaso Lusitano e o Resumo da história literáriado Brasil são a carta de princípios dos jovens Magalhães,Porto Alegre e Torres Homem, que, em Paris, no ano de1836, lançaram nas páginas da Niterói, Revista Brasiliense,as bases da literatura brasileira.

Graças a Denis e Garrett, observa-se no Brasil um ins-tinto de americanidade que levou os que aqui viviam aexpressar um “sentimento de pertença à América” (Bernde Campos, 1995, p. 5), traduzido na exaltação do conti-nente americano por meio do “culto da natureza virgem egrandiosa, não necessariamente exótica em oposição à na-

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tureza européia [...] e o culto dos heróis nacionais” (Lopes,1997, p. 283).

Antes de concluir esta brevíssima genealogia doamericanismo na literatura romântica brasileira, movidapela não espontaneidade da condição americana da cul-tura brasileira de um modo geral, convém enfatizar que,por volta dos anos 30 do século XIX, já se registram fortesíndices de um instinto de americanidade consciente e pro-gramado nos textos poéticos, críticos e historiográficos bra-sileiros, ainda que sem feição pan-americanista e sem si-nais de alerta contra o expansionismo dos Estados Unidosda América do Norte, advindos da proposta do senadorJames Monroe, que sustentava a ideia da América para osamericanos. O pensamento libertário de Simón Bolívar(1783-1830) e a doutrina de Monroe (1823) não marcaramo conceito de americanidade da geração romântica, masirão provocar discussões na imprensa, a partir das últimasdécadas do século XIX e primeiras décadas do século XX,quando vêm à tona também os debates em torno das ideiaspan-americanistas. Nesse momento, o cenário político bra-sileiro não é mais o do Romantismo nem o do Império, maso da recém-proclamada República. Nele, irão circular asfiguras de Tristão de Alencar Araripe Júnior (1848-1911),Sílvio Romero (1851-1914), José Veríssimo (1857-1916),Joaquim Nabuco (1849-1910), Manoel de Oliveira Lima(1867-1928), Manoel Bomfim (1868-1932), Eduardo Prado(1860-1901) e tantos outros.

Admitida a presença do instinto de americanidadeparalela à construção da identidade nacional da literaturabrasileira, contribuímos para a aceitação efetiva da condi-ção americana de nossa tradição literária e o reconheci-mento mais espontâneo da nossa face latino-americana.

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Nações em confronto: as históriasliterárias e as literaturas

comparadas no século XIX

Luiz Eduardo Oliveira*

RESUMO: A historiografia romântica constitui-se como estra-tégia discursiva preponderante na construção da narrativa danação, uma vez que mobiliza mitos fundacionais e inventa tra-dições. Por outro lado, o Romantismo transcende as barreirasdo nacional, pois, ao implicar a relação entre as estruturas daslínguas e a índole de suas literaturas, sugere aos historiadores acomparação de diferentes narrativas nacionais. Este ensaio in-vestiga o modo como a comparação entre literaturas configu-rou-se, no século XIX, como uma comparação entre estados-nação, os quais se constroem discursivamente em mútuoconfronto, num processo permeado de relações de poder eestranhamento.

PALAVRAS-CHAVE: história literária, identidade nacional, lite-ratura comparada.

ABSTRACT: The romantic historiography is constituted as adiscoursive strategy which is preponderant in the constructionof the narratives of the nation, once it mobilizes foundationalmyths and invents traditions. On the other hand, Romanticismtranscends the limits of the national, for, implying a relationbetween the structures of the languages and the character oftheir literatures, suggests to the historians the comparisonbetween different national narratives. This essay investigatesthe way how the comparison of literatures, during thenineteenth century, configures a comparison between nationstates, which are themselves constructed discoursively in mutualconfrontation, in a process permeated by relations of powerand strangeness.

KEYWORDS: literary history, national identity, comparativeliterature.

* Universidade Federal deSergipe (UFS).

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Comparar literaturas é comparar nações, as quais seconstroem discursivamente, de forma dialética e dialógica,em mútuo confronto, num processo de assimilação recí-proca e, na maior parte das vezes, desigual, permeado derelações de poder e estranhamento. É também conceberde modo quase metafísico uma entidade específica cha-mada literatura, algo que se constitui como instâncialegitimadora dos estados-nação, concorrendo de modo pri-vilegiado para o processo de construção das identidadesnacionais.

Para se imaginar a nação, contudo, foi necessário nãosomente que as comunidades religiosas e dinásticas en-trassem em declínio, mas também que uma nova maneirade apreender o mundo fosse configurada, passando a his-tória a ser concebida como uma cadeia de causas e efeitos,o que implicava uma separação radical entre as noções depassado e presente. Foi quando a concepção medieval detempo – na qual passado, presente e futuro se confundiam– deu lugar a um “tempo vazio e homogêneo”, nas palavrasde Benjamin (apud Anderson, 2008, p. 54), fazendo comque a ideia de simultaneidade se tornasse possível. Tal ideiaserviu de suporte aos dois gêneros que proporcionaram, noséculo XVIII, os meios técnicos necessários para se “re-presentar” – ou “narrar”, como quer Bhabha (2006) – as“comunidades imaginadas” correspondentes à nação: oromance e o jornal.

Desse modo, fazer uma nação corresponde a fazer umaliteratura, como notou Miranda (1994, p. 33), uma vez quea concepção de história herdeira do Iluminismo, como umatemporalidade linear e contínua, evoluindo ou progredin-do de forma monolítica rumo a um futuro ilimitado, con-tribui de maneira decisiva para a construção de históriasliterárias que, em nome do interesse nacional e de prerro-gativas étnicas, buscam “re-presentar” – ou “narrar” – anação de modo unificado e sem fissuras.

Para Carpeaux (1959, p. 21), Herder teria sido o fun-dador da história literária autônoma, ao criar o conceito

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de “literatura nacional” como a expressão mais completada evolução espiritual de uma nação, inspirando todo onacionalismo do século XIX, o qual teria dado origem tan-to ao “pan-eslavismo” quanto ao “racismo alemão”. SuasIdeias para a filosofia da história da humanidade (1784-1791),ademais, teriam não somente formulado o conceito de “li-teratura universal” como também estabelecido – ou “na-turalizado” – a relação entre as estruturas das línguas e aíndole de suas literaturas.

Ao tratar das comunidades religiosas, as quais eramimaginadas pelo uso de uma língua e uma escrita sagradas,como foi o caso do árabe e do chinês escritos, bem como dolatim, no Ocidente, Anderson (2008, p. 44) relaciona oseu declínio, no final da Idade Média, com as exploraçõesdo mundo não europeu e as narrativas de viagem delasdecorrentes. Segundo o autor, no confronto com o Outro,“o uso inconsciente do ‘nossa’ (que se torna ‘deles’)” e a“qualificação da fé cristã como ‘a mais verdadeira’” de-nunciam uma “territorialização dos credos”, prenuncian-do o discurso nacionalista de que “a ‘nossa’ nação é a ‘me-lhor’ – num campo comparativo e competitivo”. Desse modo,o rebaixamento gradual das línguas sagradas – o que, nocaso ocidental, pode ser representado pelo declínio do la-tim – corresponde à ascensão dos vernáculos, algo tornadomassivo pelo “capitalismo tipográfico”, que possibilitou aprodução de livros escritos nas línguas vernáculas(Anderson, 2008, p. 46).

Nesse processo de estandardização dos vernáculos eu-ropeus, concorreram vários outros fatores, dentre os quaispodem ser destacados o desenvolvimento dos sabereslinguísticos, a administração dos grandes Estados, a ex-pansão colonial, o proselitismo religioso das duas Reformase a literarização dos idiomas, em sua relação com a identi-dade nacional. Nesse sentido, a constituição das naçõeseuropeias acarreta uma situação de luta entre elas,institucionalizando, consequentemente, uma concorrên-cia entre as línguas:

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A velha correspondência uma língua, uma nação, tomandovalor não mais pelo passado mas pelo futuro, adquire umnovo sentido: as nações transformadas, quando puderam,em Estados, estes vão fazer da aprendizagem e do uso deuma língua oficial uma obrigação para os cidadãos (Au-roux, 1992, p. 49).

Nessa perspectiva, se o fato da gramatização,1 comofenômeno massivo, pode situar-se no século XVI, no qualse verifica o aparecimento de grande número de gramáti-cas, e de quase todas as línguas do mundo, cujas descri-ções eram baseadas na gramática da língua latina, fatoverificado inclusive no Brasil, como testemunha a Arte dagrammatica da lingoa mais usada na costa do Brasil, de 1595,composta pelo padre jesuíta José de Anchieta (1533-1597),é por essa época também que a disputa entre as línguas setorna objeto dos vários diálogos então publicados, como foio caso da língua portuguesa.

Gênero em voga no Renascimento, o diálogo era umaespécie de encenação de uma conversa entre dois ou maisindivíduos, os quais eram representados pelos homens deletras, nobres e autores da época. No caso português, doisse tornaram célebres: O diálogo em louvor da nossa lingua-gem, de João de Barros, publicado em 1540, e o Diálogo emdefensão da língua portuguesa, de Pero de MagalhãesGândavo, publicado em 1574. Ambos estão articulados emoposição à língua espanhola, na tentativa de provar que oportuguês, estando mais próximo do latim, seria superior emais nobre do que o espanhol, num momento em que omovimento de defesa e ilustração das línguas vulgares seespalhou pela Europa, suscitando uma série de publica-ções sobre o tema. Assim, tanto Pietro Bembo, em Prosedella volgar lingua (1525), quanto Juan de Valdés, no Diálo-go de la lengua (1535), e Joachim du Bellay, em La deffenceET illustration de la langue françoyse (1549), além dos auto-res portugueses acima mencionados, defendiam a ideia deque a língua vulgar poderia ser tão digna quanto a latina,afirmando ser a própria língua nacional superior às demais:

1 O conceito de“gramatização”, tal como odefine Auroux (1992, p. 65) –“o processo que conduz adescrever e a instrumentaruma língua na base de duastecnologias, que são aindahoje os pilares de nosso sabermetalinguístico: a gramáticae o dicionário” –, difere-sedas primeiras tentativasfilológicas de tradução einterpretação de textos,assim como da grammatikégrega, que nasce na viradados séculos V e IV antes denossa era. Sua formulaçãotem origem no século II a.C.,com a Escola de Alexandria,e associa-se ao conhecimentoempírico dos poetas eprosadores, mas o sentidomoderno, como corpo deregras que explicam comoconstruir palavras medianteparadigmas, para aprender afalar – e depois ler e escrever–, é um advento maisrecente e coincide com oRenascimento.

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No contexto português, a defesa da língua articulava-setambém com a expansão marítima e territorial, com o pro-jeto imperialista da coroa portuguesa e com a colonizaçãodas novas possessões orientais e ocidentais. Como sinteti-zava Antonio de Nebrija no prólogo de sua gramática: “sem-pre a língua foi companheira do império”. Fernão de Oli-veira, nosso primeiro gramático, também enfatizava ocaráter político da língua: “porque quando senhoreavam omundo mandaram todas as gentes a elas sujeitas aprendersuas línguas”. [...] O português e também o espanhol sesonhavam como língua imperialista, projetando a sua ex-pansão pelas novas terras conquistadas, a exemplo dos ro-manos e do latim: uma nova língua imperial, herdeira doimpério romano (Hue, 2007, p. 16).

No diálogo de João de Barros, em que o autor conversalongamente com o filho sobre as qualidades e potencialidadesda língua portuguesa, preconizando uma pedagogia para seuensino, a relação entre língua e império, bem como os exem-plos clássicos, se faz evidente em mais de uma oportunida-de, como deixa ver o momento em que o pai, ao tentarconvencer o filho de que a aprendizagem da gramáticaportuguesa, além de garantir a transmissão dos preceitosda fé cristã, facilita o entendimento de outras línguas, re-fere-se a “Túlio, César, Lívio” – tidos como “fonte daeloquência” – para justificar que eles aprenderam sua “na-tural linguagem” antes da língua grega, argumentando ain-da que Carlos Magno e “outros tão graves e doutos barões”preferiam a vitória que sua língua tinha, em ser recebida –ou imposta – em nações bárbaras, à submissão dos seus po-vos ao jugo do seu império (apud Hue, 2007, p. 52-53).

Gândavo, por sua vez, em seu Diálogo em defensão dalíngua portuguesa, representa o antagonismo de doisinterlocutores: Petrônio, que defende, em português, a sualíngua, e seu adversário, Falêncio, que, em seu próprio idio-ma, argumenta a favor da superioridade do castelhano. Apesarde ter como modelo João de Barros, e de usar muitos deseus argumentos em favor da nobreza da língua portugue-

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sa, por ser mais próxima do latim do que o espanhol,Gândavo sugere uma aproximação entre as línguas e os gê-neros, pois, para o autor, cada língua tem um estilo que lheé mais próprio. Desse modo, o grego seria mais apropriadopara versos, o latim para orações, o toscano para os sone-tos, o português para as comédias em prosa e o verso herói-co e o castelhano para as “trovas redondas e garridas quenaturalmente parecem feitas para ela” (apud Hue, 2007, p.73).

É nesse momento que, para provar que os portuguesesnão tinham necessidade de usar o castelhano, algo critica-do pelo autor – que afirma que a nação portuguesa era“mais afeiçoada às coisas dos outros reinos que às da suamesma natureza, coisa que se não acha nas outras nações”2

(apud Hue, 2007, p. 72) –, Gândavo faz uma relação dospoetas e escritores portugueses, indicando suas obras. Tra-ta-se, nesse caso, do estabelecimento do primeiro cânonede autores de língua portuguesa: Francisco Sá de Miranda,cujas comédias e versos são tidos como os primeiros verda-deiramente portugueses; João de Barros; Frei Heitor Pinto,autor da Imagem da vida cristã; Lourenço de Cárceres; Fran-cisco de Moraes; Jorge Ferreira; Antonio Pinto; Luís deCamões, “de cuja fama o tempo nunca triunfará”; DiogoBernardes; António Ferreira e André de Resende (apudHue, 2007, p. 73-75).3

Nesse sentido, tem razão Buescu (1969, p. 18), quan-do afirma que

Ao pretender forjar para as línguas vulgares uma regulari-dade idêntica à das línguas antigas, os Gramáticos do sécu-lo XVI estão, pois, coerentes consigo mesmos, na medidaem que o grande leitor motivo de toda a actividade mentalrenascentista se concentra na dignificação das naçõesmodernas em paralelo com os povos da Antiguidade, so-bretudo o povo latino. A consciência lingüística vai, pois,a par com a consciência nacional, até mesmo com a cons-ciência imperial, e a língua aparece-nos pela primeira vezconsiderada como o espírito e alma de cada Nação.

2 Como afirma Hue (2007, p.11), “a ameaça docastelhano, língua de corte,arte e saber, refletia umaconfiguração ibérica em queo espanhol tinha se afirmadocomo idioma de culturadesde meados do século XV.Carlos V, em 1536, em Roma,adota o espanhol no âmbitoda diplomacia, configurandooficialmente uma ‘praxis depoder’ da língua epromovendo sua‘internacionalização’. Sãovários os autores portuguesesno século XVI que escrevemem espanhol para que suasobras alcancem um públicomaior, reconhecendo-o comolíngua mais difundida e commaior número de leitores”.

3 Em seu cânone, não estápresente o único autorportuguês mencionado porJoão de Barros, em seudiálogo: Gil Vicente. ParaHue (2007, p. 26-27), “seuteatro popular, de raízesmedievais, não se prestava aoobjetivo de mostrar a línguaportuguesa próxima do latime imersa no classicismo”,razão por que “dá preferênciaa autores cujas obras estãopontuadas por um vasto – epor vezes exibicionista –saber erudito e por inúmerascitações de autores latinos egregos”.

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Para Anderson (2008, p. 73-75), três fatores externoscontribuíram para o surgimento da consciência nacional,contribuindo para a dignidade literária dos vernáculos: 1) amudança de caráter do latim, que, de língua sagrada, gra-ças à sua condição de texto, passa a ser objeto de apreciaçãoestética e/ou estilística, tornando-se arcano por conta doque estava escrito, isto é, da “língua-em-si”; 2) o impactoda reforma, especialmente com a aliança entre o protestan-tismo e o capitalismo editorial; 3) a lenta difusão de algunsvernáculos como instrumentos de centralização administra-tiva, por obra de certos monarcas bem posicionados, compretensões absolutistas.

Há que se observar, contudo, a diferença entre uma“escolha” da língua como fruto de um desenvolvimentoinconsciente ou aleatório, como foram os casos inglês efrancês, e as políticas linguísticas autoconscientes dosdinastas oitocentistas – e mesmo setecentistas, como foi ocaso da política linguística e educacional do rei portuguêsD. José I, por meio do seu ministro, o Marquês de Pombal(Andrade, 1978) –, diante dos nacionalismos linguísticospopulares de oposição.

Se por meio do “gênio” de uma língua poderíamos apre-ender o espírito de uma nação, é pela sua expressão maisalta, a literária, que a nação é narrada. Assim pensavaHerder, em suas já mencionadas Ideias para a filosofia dahistória da humanidade (1784-1791). Sua obra, nessa pers-pectiva, teria sugerido a Humboldt, “o criador da linguísticacomparativa”, o estudo filológico das literaturas modernas,e a Friedrich Schlegel a ideia de um paralelismo históricona evolução de todas as artes, a partir de uma “lei de evo-lução espiritual” que apareceria na narrativa cronológicados fatos literários. Tal concepção de tempo estaria ligadaao “passadismo” dos românticos, pois o fio cronológico se-ria a “árvore genealógica das obras do espírito” (Carpeaux,1959, p. 22).

Esse era o mote, por exemplo, das primeiras obras dahistoriografia da literatura inglesa, como observou Wellek

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(1962, p. 315-316): Thomas Warton, em sua história dapoesia inglesa, de 1774, afirmava que o objetivo do estudoda literatura antiga era “registar fielmente as feições dasépocas e preservar as mais pitorescas e expressivas repre-sentações dos costumes”. Henry Morley, no prefácio a Englishwriters (1864), concebia a sua obra como a “história doespírito inglês”. W. J. Courthope, por sua vez, em outra his-tória da poesia inglesa, publicada em 1895, definia o estu-do da poesia inglesa como “o estudo do contínuo cresci-mento das nossas instituições nacionais tais quais elasaparecem reflectidas na nossa literatura”.

A historiografia romântica, nesse sentido, ao estabe-lecer como critério o princípio cronológico, alarga os hori-zontes temporais retrospectiva e prospectivamente, na me-dida em que (re)descobre períodos até então inexploradosou desprezados, como a Idade Média e o Barroco, graçasao desenvolvimento dos estudos arqueológicos e filológicos.Ademais, constitui-se como estratégia discursiva prepon-derante na construção da narrativa da nação, uma vez quemobiliza mitos fundacionais e de “povo original”, ou raçapura, inventando tradições (Hall, 2005, p. 52-56).

Por outro lado, o Romantismo transcende as barreirasdo que Carpeaux (1959, p. 23) denomina “miopia nacio-nal”, uma vez que, ao implicar a relação entre as estrutu-ras das línguas e a índole de suas literaturas, sugere aoshistoriadores da “literatura universal” a comparação dediferentes tradições literárias, ou de diferentes narrativasnacionais:

A França devia a Chateaubriand contatos novos com aliteratura inglesa, e a Madame de Stael a descoberta daliteratura alemã. A Histoire des Littératures Du Midi del’Europe (1813/1819), de Sismonde de Sismondi, chamou aatenção para os trovadores provençais, para Petrarca eAriosto, Cervantes e Camões. Sainte-Beuve, no TableauHistorique et Critique de la Poesie Française et du Théàtre Fran-çais au XVI Siècle (1828), reabilitou a honra de Ronsard. Oprofessor alemão Friedrich Bouterwek (Geschichte der neu-

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en Poesie und Beredsamkeit, 1801/1819) deu notícia exata detodas as literaturas ao alcance da sua vasta erudição lingu-ística (Carpeaux, 1959, p. 23).

Tal comparação entre literaturas configurava-se, emmuitos aspectos, como uma comparação entre estados-na-ção, pois sugeria a associação entre unidades geopolíticas e/ou linguísticas e determinadas identidades que, tidas comonacionais, consistiam na padronização, ou estereotipificação,de suas (auto)representações. Tal foi o caso de Bouterwek,tido como precursor da historiografia da literatura brasilei-ra.

Ao comparar entre si as literaturas do Ocidente, emsua já mencionada História da poesia e eloquência desde ofinal do século XIII (1801-1819) – a qual era parte de umambicioso projeto coordenado por Johann GottfriedEichhorn, que pretendia formular, com a ajuda de outrosintelectuais alemães, uma História das artes e da ciência desdea sua criação até o final do século XVIII –, Bouterwek fazia-se valer dos pressupostos estabelecidos por Madame deStäel, segundo os quais a natureza do homem do Nortecontrapunha-se à do homem do Sul. Ao tecer comentáriossobre a literatura espanhola, por exemplo, o autor ressaltao seu “iberismo congenial”, bem como sua “originalidademeridional”, em confronto com a “sensaboria nórdica”(César, 1978, p. xix-xx).

Com efeito, na “Introdução geral à história da poesiae eloquência mais novas”, Bouterwek associa a pobreza ouriqueza dos povos – isto é, das nações – à riqueza ou pobre-za de suas línguas, as quais encontram a sua mais alta ex-pressão na poesia e na eloquência:

O poeta não pode expressar simbolicamente, por meio depalavras, aquilo que o público não consegue entender.Como consequência, da mesma maneira que o espírito deum povo se mostra na sua língua, ele também se mostrainevitavelmente em todos os trabalhos poéticos feitos nessalíngua. A quantos fios de representações obscuras, que

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acompanham cada palavra, não está preso o significadoestético de uma poesia! E este jogo de representações obs-curas, para o qual quer ativar o espírito de seu público, é,em grande parte, resultado do caráter nacional, da culturanacional e da maneira geral de pensar do povo, em cujalíngua ele se expressa (apud Bolognini, 2003, p. 98-99).

Tal dicotomia entre as literaturas do Norte e do Sul,professada por Madame de Stäel, repercute também nosquatro tomos da obra de Sismondi, De la littérature du midide l’Europe (1813):

Não sabemos, até hoje, exatamente quais as razões que ainspiraram, mesmo porque a animadora do grupo de Co-ppet não o disse com suficiente clareza, nem os seus discí-pulos o puderam fazer. A verdade, hoje reconhecida, é que,se falta peso a tal divisão, teve ela entretanto o mérito dedirigir a curiosidade crítica de homens como Sismondi paraas regiões meridionais (César, 1978, p. xxiv).

Com Ferdinand Denis, em seu Resumé de l’histoirelittéraire du Portugal, suivi du resumé de l’histoire littéraire duBrésil (1826), tal relação é levada ao extremo, tornando-sereceituário, especialmente para a “literatura brasileira”, quepela primeira vez aparecia desvinculada de Portugal, poiso autor francês, ao eleger, entre os poetas setecentistasnascidos no Brasil, precursores para um certo indianismobrasileiro – que, em sua opinião, deveria ser mais bem ex-plorado, a exemplo do que fizera Cooper nos Estados Uni-dos –, aconselha os autores aqui nascidos a fazerem maisuso da matéria nativa, isto é, da fauna e da flora do país,sugerindo um verdadeiro “programa nacional literário”(Rouanet, 1991, p. 229), no intuito de assegurar à literatu-ra produzida no Brasil uma legitimidade que pudesse con-ferir-lhe, junto com a recente independência política, umaautonomia estética.

Nessa perspectiva, pode-se traçar uma linha de conti-nuidade entre a historiografia romântica e a historiografianaturalista – cujo modelo clássico é a Histoire de la littérature

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anglaise (1877), de Hippolyte Taine –, na medida em queesta, ao adotar os métodos objetivistas das ciências natu-rais, priorizando os condicionamentos ou fatores extrínsecosà obra – a raça, o meio e o momento histórico –, vai pro-porcionar um instrumental científico que servirá de supor-te à associação romântica entre unidades geopolíticas e/ou linguísticas e identidades nacionais.

Um exemplo célebre, no caso brasileiro, é o de SílvioRomero, que, em sua História da literatura brasileira (1888),foi o primeiro – e talvez o único – a discordar do “humoris-mo” e “pessimismo” de Machado de Assis, sendo, por isso,o pioneiro no trato da questão da influência não só doshumoristas britânicos, mas também dos filósofos pessimis-tas.4 Segundo o crítico e historiador sergipano, o humour sópodia ser verdadeiro, ou “genuíno”, quando se confundiacom a “índole” do escritor, que por sua vez era um produtoda “psicologia”, da “raça” e do “meio” do seu povo: “o tem-peramento, a psicologia do notável brasileiro não eram osmais próprios para produzir o ‘humour’, essa particularíssimafeição da índole de certos povos. Nossa raça em geral éincapaz de o produzir espontaneamente” (Romero, 1954,p. 1629).

Para assegurar seus argumentos, Romero contrapõealguns dados biográficos de Laurence Sterne, “filho demilitar inglês”, ao “sensato, manso, criterioso e tímidoMachado”, asseverando a profunda diferença entre o au-tor de Memórias póstumas de Brás Cubas e o de TristramShandy. Quanto a uma possível relação entre as obras, nãohá nenhuma referência, limitando-se o crítico à mençãodas cenas mais famosas criadas pelo romancista inglês, “nodizer dos mestres, verdadeiras obras primas”, e à afirmaçãoda disparidade entre os personagens de Sterne, “criaçõescheias de realidade”, e os do escritor brasileiro, que “ja-mais ideou nada que lembre os dois irmãos Shandys”(Romero, 1954, p. 1630).

Os mesmos pressupostos naturalistas – “a psicologia”,“a raça” e “o meio” – são utilizados para descartar o pessi-

4 O narrador de Memóriaspóstumas de Brás Cubas, noprólogo intitulado “AoLeitor”, ao revelar a adoçãoda “forma livre de um Sterneou de um Xavier deMaistre”, refere-se à possívelintrodução de “algumasrabugens de pessimismo” naobra. (Assis, 1991) A crítica,talvez motivada por taispistas, não hesitou emcaracterizá-la com o humoursterneano ou com os seuselementos pessimistas,construindo assim, adespeito da solenediscordância de SílvioRomero, consensos que sereproduzem até nahistoriografia recente daliteratura brasileira, como naHistória concisa da literaturabrasileira (1970), em que, apropósito de alguns poemasque teriam precedido asegunda fase do autor,alude-se o “pessimismocósmico de Schopenhauer eLeopardi” (Bosi, 1994, p.178), ou em De Anchieta aEuclides, onde Brás Cubas éconsiderado um “romancesterneano” (Merquior, 1979,p. 166).

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mismo de Machado de Assis. O nosso romancista, não des-cendendo das raças arianas, não poderia ser um desencan-tado à maneira dos verdadeiros pessimistas:

Nós brasileiros somos faladores, desrespeitadores das con-veniências, assaz irrequietos, até onde nos deixa ir nossaingênita apatia de meridionais, não somos pessimistas, nemnos agrada o terrível desencanto de tudo, sob as formasdesesperadoras dos nirvanistas à Buda ou à Schopenhauer(Romero, 1954, p. 1631).

O que está em causa, aqui, não é a obra do autor bra-sileiro em suas relações com a do romancista inglês, massimplesmente a sua suposta personalidade, no que tem deinferior e incompatível com a de Laurence Sterne. Ao queparece, Sílvio Romero nunca lera o autor de TristramShandy, sendo talvez esse o motivo pelo qual não desenvol-ve suas afirmações, podendo-se supor que suas opiniões arespeito de Sterne fossem adquiridas de segunda mão –provavelmente via Taine.

Tal preconceito de Romero justifica-se pelo próprioprojeto de sua obra, que buscava encontrar as “leis” quepresidiam a formação do gênio, do espírito e do caráter do“povo brasileiro”. Para tanto, era de suma importância ofenômeno da miscigenação, o qual seria gerado a partir decinco fatores: o português, o índio, o meio físico e a imita-ção estrangeira. Desse modo, a literatura somente adqui-riria um caráter nacional quando exprimisse, literariamente,o novo tipo histórico criado pela miscigenação, algo que, aseu ver, não seria realizado por Machado de Assis.

Embora sua proposta e seu método sejam diferentesdaqueles dos historiadores românticos, uma vez que bus-cam identificar a nacionalidade literária a partir de crité-rios objetivos e tidos à época como científicos, Romero acabapor (in)definir o “caráter nacional” como “um não sei quê”indicativo de nacionalidade, reforçando assim, nesse as-pecto, o pressuposto romântico de que a literatura repre-senta o espírito – algo difícil de definir – das nações:

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Essa aproximação auxilia, assim, na inserção de Romerona tradição historiográfica, como também dimensiona oensaio de Machado [“Literatura brasileira – instinto denacionalidade”, publicado em 1873] como “ponte” entreos românticos e os “modernos” do fim do século. A noçãodo “caráter nacional”, do “sentimento íntimo”, já podiaser lida em Santiago Nunes Ribeiro; ela passa por Macha-do, que a desvincula dos índices específicos da nacionali-dade – a natureza, o indígena etc. – abrindo a literaturapara os temas gerais da humanidade; e deságua em SílvioRomero, que busca, embora problematicamente, desven-dar-lhe historicamente os fundamentos (Weber, 1997, p.76).

A busca pela nacionalidade literária, meta principalda historiografia romântica e naturalista, atravessa todaa historiografia da literatura brasileira, tornando-se pro-blemática na historiografia produzida durante a décadade 1970, principalmente entre os partidários da teoria dadependência. Apesar da ideia de uma literatura nacio-nal homogênea e integrada à tradição ocidental desselugar a uma visão dialética de seus descompassos edescontinuidades, inserindo as literaturas da América La-tina na zona de influência das literaturas metropolitanas,a tradição historiográfica inaugurada com o Romantismose mantinha presente, especialmente no tocante à questãosempre reiterada da circulação de ideias, dentro e “fora dolugar”:

Reescrevia-se, dessa forma, portanto, boa parte da tradi-ção – de uma tradição, melhor dito, que, desde o Roman-tismo, levantava a questão por vezes incômoda da imita-ção, das influências, da transplantação: a da imitação dosclássicos pelos árcades, sinônimo, para os românticos, deimitação da e de subserviência à literatura portuguesa (en-quanto, “paradoxalmente”, se saía a campo consumindomodelos franceses...); a da importação constante de mo-dismos estrangeiros, já denunciada por um Sílvio Romero,por exemplo, a fazer com que um modismo se substituísse

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a outro, sem que as idéias apresentassem “seriação inter-na” (atitude “paradoxalmente” reforçada pelo próprio Síl-vio, ao consumir a última moda cientificista européia e o“último autor”, ou ao propor a substituição do francesis-mo pelo germanismo...); a da importação que levaria umOswald de Andrade, nos anos 20, a propor a devoraçãoantropofágica (modo “paradoxal” de se continuar a im-portação...); a da transplantação de Nelson Werneck So-dré (que, “paradoxalmente”, denunciava a “ideologia docolonialismo”, a resultar na diferença entre a culturaimportada e a realidade nacional, com base na ortodoxiastalinista...) (Weber, 1997, p. 144-145).

Essa busca da nacionalidade literária, como se vê, sópode realizar-se em confronto com as outras nações, pormeio de relações de poder e estranhamento, se pensar-mos o Outro como uma oposição ou negação contra aqual uma subjetividade dominante é definida, pois, comoa psicanálise lacaniana tem postulado, é a partir dasalteridades que as identidades se constituem (Boehmer,1995, p. 21). Ela remonta tanto à origem dos sabereslinguísticos – uma vez que, nas tradições egípcia,babilônica e grega o florescimento do saber linguísticotem sua fonte no fato de que a escrita, fixando a lingua-gem, tem por objetivo a alteridade e a coloca diante dosujeito como um problema a resolver (Auroux, 1992, p.23) – quanto aos primórdios da história literária, na épo-ca da produção das primeiras bibliotecas sistemáticas edicionários biobibliográficos, no século XVI.5

É o que sugere Diogo Barbosa Machado, em sua Biblio-teca Lusitana (1741), ao justificar a publicação de sua obra,que buscava inscrever-se no “movimento geral de dotar asnacionalidades européias de histórias de literatura” (Lajolo,1994, p. 88):

Estimuladas de ambição da glória as mais célebres naçõesdo mundo querendo estender a sua fama, assim como atinham dilatado com as espadas, perpetuarão nos monu-mentos literários das bibliotecas os admiráveis progressos

5 Entre essa primeiras obras,Carpeaux (1959, p. 18)menciona a BibliothecaUniversalis (1545-1555), deConradus Gesner, e oDictionarium Historicum,Geographicum et Poeticum(1553), de CarolusStephanus.

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que fizeram em todas as faculdades [...]. Entre todos osreinos e cidades da Espanha, que com gloriosa emulaçãocompuseram bibliotecas para perpetuar na república dasletras os nomes de seus naturais, unicamente Portugal senão jactava de semelhante brasão (apud Lajolo, 1994, p.88).

Desse modo, se, no processo de constituição das naçõeseuropeias, a produção das histórias literárias se fazia acom-panhar da aliança entre língua e império, ou por uma espé-cie de nacionalismo imperialista que se forjava em oposiçãoao Outro colonial, como no caso inglês (Boehmer, 1995, p.32), no caso dos países americanos, nos quais a língua nãoera um elemento que os diferenciava das respectivas metró-poles imperiais, nunca tendo se colocado como questão nasprimeiras lutas de libertação nacional (Anderson, 2008, p.84-85), os primeiros impulsos historiográficos confundem-secom o corte dos vínculos políticos com as potênciascolonialistas europeias, na tentativa de tornar possível o apa-recimento de novas nacionalidades literárias, as quais, emoposição à metrópole, inseriam-se em um projeto de inde-pendência nacional para o qual era de suma importânciauma narrativa de sua fundação e destino (Souza, 2007, p.13).

Assim, a ênfase de boa parte da reflexão teórica sobre opassado, especialmente em países de condição pós-colonial,tem levado a uma revisão dos pressupostos da historiografiaromântica e, portanto, do próprio projeto da modernidade,uma vez que passa a ser postulada a multiplicidade de relatose sujeitos, em oposição a uma narrativa monolítica eunificadora que despreza os fenômenos de desterritorialização,migração e integração:

O sujeito enunciador do discurso fundante do estado-na-ção na América Latina durante o século XIX – indepen-dentemente de sua individuação – teve um projeto patri-arcal e elitista que excluiu [...] não só a mulher, comotambém índios, negros, escravos, analfabetos e, em muitoscasos, aqueles que não tinham propriedades. Esse perfil do

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sujeito enunciador contribuiu, por sua vez, para a constru-ção do perfil de um sujeito da nação (o cidadão) que seidentificou com o discurso de certo nacionalismo (Achu-gar, 1994, p. 49-50).

Tal nacionalismo, por sua vez, em função de uma lín-gua e uma literatura nacional que “esquece” – no sentidoque Renan (2006) dá ao termo – ou apaga as diferençasétnicas, sociais, linguísticas e culturais que não se encai-xam no projeto nacional de que o Estado e os homens deletras são os principais representantes, estabelece o padrãonecessário para a produção de dicionários, gramáticas,antologias, parnasos e, principalmente, histórias literárias,os quais, institucionalizando-se nos sistemas de educaçãonacionais, serão uma instância preponderante, no séculoXIX, para a legitimação das identidades nacionais.

Estas, como já se afirmou, constituem-se discursivamente,em confronto com uma alteridade, que pode ser representadapelo colonizador ou pelas nações concorrentes, em relação àsquais, ou em decorrência das quais, suas narrativas foram sen-do produzidas. Nesse sentido, o processo de institucionalizaçãoda historia literária, seja como instância legitimadora do esta-do-nação, seja como disciplina escolar e acadêmica, encon-tra-se indissoluvelmente associado ao da configuração dos pri-meiros estudos de literatura comparada.

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Entre o cânone e a história:notas sobre historiografia literária

e escrita da história

Erivan Cassiano Karvat*

* Universidade Tuiuti doParaná (UTP).

RESUMO: Este artigo pretende discutir – a partir do “olhar dohistoriador” – a tensa relação entre a escrita da história e ahistoriografia literária, principalmente a partir de aspectos equestões que envolvem a constituição dos cânones e seus meca-nismos – e que afetam e transpassam a historiografia da litera-tura, bem como a historiografia de modo geral, configurando-secomo elemento possível de promoção de diálogo entre a teoriada história e a teoria literária e, portanto, entre a história e aliteratura.

PALAVRAS-CHAVE: historiografia literária, cânone, teoria dahistória, teoria literária, literatura brasileira.

ABSTRACT: This article intends to discuss – from the “historianpoint of view” – the tense relation between history writing andliterary historiography, mainly regarding aspects and questionsinvolving the constitution of canons and their mechanisms –and that affect and go through literature historiography, as wellas historiography as a whole, configuring itself as an elementpossible of fostering the dialogue between theory of history andliterary theory and, consequently, between history and literature.

KEYWORDS: literary historiography, canon, history theory,literary theory, Brazilian literature.

Reflexões sobre uma leitura/abordagemhistoriográfica

Como um doente, ardendo em febre, transforma em idéiasdelirantes todas as palavras que ouve, o espírito do nossotempo se apropria de todas as manifestações de mundos

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intelectuais passados ou distantes, arrasta-os para si e,[...] incorpora-as às suas fantasias egocêntricas.

(Benjamin,1984)

Ainda que já se tenha dito, e muitas vezes, que a na-cionalidade é um dos elementos definidores de uma ideiade literatura brasileira e, consequentemente, de uma his-tória literária, ainda assim, textos como Ensaio sobre a his-tória da literatura brasileira, de Gonçalves de Magalhães(1836) ou Da nacionalidade da literatura brasileira, de NunesRibeiro, de 1843, parecem pertencer a um outro tempohistórico ou, melhor, implicam um outro “regime dehistoricidade”. Ainda que tal assertiva – ligeira e aparente-mente superficial – pareça de uma obviedade extremada,cabe lembrar que diversas leituras em torno dos diferentesdiscursos historiográficos se notabilizaram – e notabilizam-se – justa e negativamente por seu aspecto anacrônico, im-pondo a tais discursos elementos que fogem da sua coerên-cia e de seu tempo. É neste sentido, então, que se entendeque a noção de “regime de historicidade”, conforme utili-zada por François Hartog, pode ser de notável ganho quan-do tratamos de textos e discursos historiográficos.

Antes, porém, uma ressalva: que fique claro, desde já,os sentidos que atribuímos às palavras história e historiografia.

Termo polissêmico, presta-se a história, entre outras, aum mar de confusão vocabular, pois a mesma palavra per-mite a referência a coisas e significados diversos:

[d]esde logo, observamos a tradicional polissemia da pala-vra. Ora a história é tomada por ontologia, ora como re-presentação da ontologia. Ora ela é um conjunto fragmen-tário de eventos (as histórias), ora a totalidade processualdestes (a História Universal). Por vezes se confunde com aempiria em geral; em outras, com um certo modo específi-co de estruturação diacrônica dessa empiria. Assim, par-tindo da ambiguidade básica da palavra que conota tantoos fatos do passado como sua instituição e ordenação pela ati-vidade crítica do conhecimento, teremos concepções dis-tintas tanto do que seja o devir (concepções histórico-ontoló-

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gicas) como dos modos adequados ao seu conhecimento(concepções historiográficas) (Jasmin, 1997, p. 17).

O conhecimento histórico, ou a história como forma deconhecimento, articulando-se entre o vivido e o ensinado(portanto, entre história vivida e história ensinada), vol-tando-se à compreensão/interpretação, enfim, à constru-ção de entendimento acerca do passado, caracteriza-secomo historiografia e, portanto, como a própria escrita dahistória. A historiografia, então, manejando diferentestemporalidades, produz, assim, a própria inteligibilidadesobre a história vivida, tornando a história toda história si-nônimo dessa expressão. A escrita da história apresenta-se, consequentemente, como possibilidade privilegiada deconhecimento sobre o já vivido.

Dessa forma, a polissemia da História parece arreme-ter-se de um sentido circular, pois nos parece voltar aomesmo ponto: toda História sendo História (ou toda histó-ria sendo história) infunde o complicador semântico. Poisse “a história fala da História”, como dizia Pierre Vilar (apudFalcon, 2002, p. 28), toda história é historiografia, uma vezque todo e qualquer conhecimento sobre o passado é pro-duto da historiografia. Da mesma forma, portanto, e emconcordância com o historiador Keith Jenkins, pode-se dizertambém que todo estudo de história é um estudo dehistoriografia (Jenkins, 2000, p. 32).

No roldão desses diferentes significados da palavra his-tória, ou dessas diferentes possibilidades, percebe-se a com-plexidade, ou complexificação, de designações atreladas aovocábulo história. É isso que ocorre, por exemplo, com aprópria expressão historiografia – à qual voltaremos adian-te –, ou ainda com os seus desdobramentos, talvez aindapouco usuais, historiografia cognitiva e historiografia normativa.O mesmo vale para a malfadada expressão Filosofia da His-tória, que pode referir-se a uma filosofia especulativa ou,ainda, a uma filosofia crítica da história.1

A historiografia – a escrita da história ou a históriacomo escrita – se impõe, ainda, como a história da própria

1 De acordo com WilliamDray, enquanto a filosofiaespeculativa objetiva“descobrir na história o cursode acontecimentos”, afilosofia crítica, aparentando-se da(s) filosofia(s) daciência, “empenha-se emtornar clara a natureza daprópria investigação dohistoriador, de modo a ‘situá-la’, por assim dizer, no mapado conhecimento” (Dray,1977, p. 9). Note-se que,ainda que recentementetenhamos assistido à ampladivulgação do trabalho deFrancis Fukuyama, há maisde quarenta anos o próprioDray apontava o caráter “forade moda” dos sistemasespeculativos de história.Ressalte-se que a ediçãooriginal do livro é de 1964.

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história. Assim, pois, a historiografia apresenta-se como“nada mais que a história do discurso – um discurso escri-to e que se afirma verdadeiro – que os homens têm susten-tado sobre o seu passado” (Carbonell, 1992, p. 6). Comefeito, se todo conhecimento acerca do passado, ou acercada história, é historiografia ou resulta desta, por sua vez aexpressão adquire certo grau de especialização na medidaem que é (ou que diz respeito), concomitantemente, a his-tória do próprio conhecimento histórico, ou a “história domodo de elaborar e de escrever história” (Palmade, 1988,p. 35). A historiografia, a escrita e/ou o discurso sobre a his-tória, caracteriza-se, dessa maneira, como o exercício dereflexão sobre as obras históricas e, portanto, sobre a produ-ção dos historiadores. É, enfim, o debruçar-se sobre a histó-ria-conhecimento que, voltando-se aos circunstanciamentos,ditames, limites e/ou dilemas do próprio conhecimento his-tórico, promove o necessário diálogo – ou metadiálogo – acer-ca da própria legitimidade e possibilidades deste conheci-mento e de seus preceitos, conceitos e mecanismos deprodução.2

Assim, de um “conjunto de obras históricas” – poden-do remeter a um campo particular (Tétart, 2000, p. 156) e,por exigência do ofício, um campo de estudo do qual ne-nhum historiador pode se furtar (Silva; Silva, 2005, p. 189),ou não deveria se furtar –, temos aí a historiografia torna-da uma perspectiva de trabalho, aquela que se volta ao“exame dos diferentes discursos do método histórico e dosdiferentes modos de escrita da história [...]”, segundo a ob-servação de Guy Bourdé e Hervé Martin. (Bourdé; Martin,1990, p. 9). Passa a historiografia, desse modo, de objeto auma possibilidade de abordagem deste mesmo objeto.

Ainda nesta senda, poderíamos abandonar o caráterantes referendado da tradicional polissemia da palavra his-tória e assinalar o seu malfazejo aspecto homonímico, comoaponta Jacques Rancière em sua poética do saber:

Problemas de palavras, dirão. É uma infeliz homonímiaprópria a nossa língua que designa com um mesmo nome a

2 Segundo Rogério Forastierida Silva, “[...] podemosconsiderar o estudohistoriográfico como o estudoda história dos escritoshistóricos, métodos,interpretações e asrespectivas controvérsias.”Enfim, como “o estudo queenvolve reflexões, denatureza vária, sobre oshistoriadores e suasrespectivas obras” (Silva,2000, p. 26 e 22).

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experiência vivida, seu fiel relato, sua ficção mentirosa esua explicação erudita. Exatamente para perseguir as ar-madilhas da homonímia, os ingleses distinguem story ehistory. Ciosos de explorar na sua especificidade a experiên-cia vivida e as condições de construção do discurso, osalemães separam Historie e Geschichte. Estas convenientesreferências podem fechar alguns buracos nas exposiçõesmetodológicas. Sua virtude pára aí. Os caçadores de ho-monímias fazem como os outros: atribuem séries de acon-tecimentos a sujeitos. É que não há nada diferente a fazer,a menos, precisamente, que não se faça história (Rancière,1994, p. 11).

Cabe ressaltar, contudo, que a passagem da tradicionalpolissemia ao mal da homonímia revela, além da ambiguidadeda palavra, a riqueza vocabular da expressão,3 ou seu pró-prio paradoxo: “A historiografia (quer dizer ‘história’ e ‘es-crita’) traz inscrito no próprio nome o paradoxo – e quase ooximoron – do relacionamento de dois termos antinômicos:o real e o discurso” (Certeau, 1982, p. 11).

Assim, e como pretendemos desenvolver uma reflexãohistoriográfica ao longo deste estudo, entendemos que osaspectos terminológicos apresentam-se, já de início, comofundamentais e reveladores.

Histórias da literatura e mais alguma história

Há apenas dez anos, João Alexandre Barbosa, discu-tindo a formação do cânone na história da literatura brasi-leira, simultaneamente à própria formação da historiografiae da crítica literária brasileiras, observava a existência deuma certa posição conservadora adotada pelas Históriasda literatura brasileira escritas a partir dos anos 1970, de-corrente dos métodos histórico-literários adotados pelos au-tores dessas obras.4 Sem problematizar aquilo que Barbosachama de discurso histórico-literário, essas obras, escritasnos limites de um naturalismo crítico tradicional, recaíamna repetição e no lugar-comum historiográfico:

3 O aspecto da ambiguidadeda palavra História éapontado, dentre outros, porCommager, 1967, p. 11.

4 João Alexandre Barbosarefere-se,fundamentalmente, aostrabalhos de Alfredo Bosi eMassaud Moisés, intitulados,respectivamente, Históriaconcisa da literatura brasileira eHistória da literatura brasileira(Barbosa, 1996, p. 56-57).

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Mesmos autores, mesmas obras, na sucessão de quadroscanônicos seculares, acrescidos, aqui e ali, mas sem maio-res repercussões de análise literária, pelo próprio tempohistórico, e em decorrência dos métodos historiográficosadotados. Não aquela adição ao cânone, advinda de umareleitura capaz de pôr em xeque as fables convenues da his-toriografia tradicional (Barbosa, 1996, p. 57).

Assim, curiosamente, se esta posição conservadoraacaba marcando obras que buscavam promover uma revi-são do próprio cânone por meio da releitura de autores queaté então não haviam merecido maior atenção por partedas sistematizações historiográficas, não conseguem supe-rar a prática (além de canônica, também canonizada) daspróprias histórias da literatura que as precedem, gerando,portanto, um discurso com a marca do continuísmo ou dacontinuidade de um tipo de história. Recuperam-se auto-res e obras, mas se mantém a mesma forma de abordagem.

Ainda que, claramente, se faça necessária a superaçãode tal forma de elaboração historiográfica, uma vez que agoraé cada vez mais evidente que a história não se define apenascomo tarefa de acumulação de datas e dados, mas se impõe,para a sua própria efetivação, uma metalinguagem que sevolte para o discurso histórico, ainda assim, e talvez por issomesmo, ressalta-se na permanência desta(s) história(s) járealizada(s) o próprio movimento entre escrita da histórialiterária e a urgência da canonização, que enleva autores eobras, institucionalizando nomes e marcas. A instauraçãodo cânone literário supõe a própria instauração e reconheci-mento das histórias literárias.

Uma história que impõe, para a sua própria efetivação,uma metalinguagem que se volte para o discurso histórico.Este será, com toda probabilidade, o trabalho principal deuma historiografia literária para o futuro. Eis, em 1996, oprognóstico que encerrava o balanço de Barbosa, mas que,antes de tudo, deixava entrever o incômodo em relação àmanutenção das tradições dos discursos da historiografialiterária brasileira. Se, por um lado, justamente deste in-

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cômodo, e de sua constatação, é que se pode destacar umapossível via de acesso à problematização desta mesmahistoriografia, aquela que diz respeito a sua própria consti-tuição de outro lado, as observações de A biblioteca imagi-nária remetem aos próprios problemas acerca da constitui-ção do próprio campo de estudos da história literária e umapossível historicização desse campo.

Assim, o mesmo texto de João Alexandre Barbosa nosinduz às reflexões de René Wellek, realizadas ao longo dosanos 1930-1940. Da mesma maneira que o autor de Biblio-teca imaginária ou o cânone na história da literatura brasileirarecusava, em 1996, uma história da literatura como meratarefa de acumulação de datas e dados e apontava paraum futuro possível ou desejável ainda a se realizar, Wellek,em 1936, apontava para a importância crucial do conceitode evolução em relação à arte literária, prescrevendo:

O conceito de evolução é o principal conceito do historia-dor real, e sem ele não há História. O dever do futuro seráo de elaborar este conceito de evolução e mostrar, concre-tamente, como a literatura como arte se desenvolveu: pri-meiramente, em uma nação, e depois no concerto das na-ções, através do mundo inteiro. Só então poderá ser escrita,com uma razoável possibilidade de êxito, uma verdadeirahistória da literatura, que será mais do que uma compila-ção de fatos sobre influências e migrações de motivos (We-llek, 1975, p. 294-295).

Ainda que as orientações dos autores se distanciem(Barbosa, tratando da instauração do cânone na historiografialiterária brasileira, nos chama atenção sobre a necessidadede uma metalinguagem que se volte para o discurso histó-rico, enquanto Wellek, acenando para uma possível teoriada história literária, aponta para o polêmico, e, para nós,aparentemente distante, conceito de evolução), ainda as-sim ambos promovem um balancete acerca da situação dosestudos atrelados à historiografia literária. E mais: ao reali-zar tal promoção, cada um em sua época, e com seu devido

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interesse, alerta para o quadro a ser superado. Se para oensaísta brasileiro faz-se necessário superar uma definiçãode história e, consequentemente, de crítica, atrelada a umcorte naturalista, que não problematiza sua própria confi-guração, com Wellek, voltamos ao próprio problema daconfiguração das histórias literárias no século XX, e a dis-cussão em torno da própria viabilidade de se fazer ou em sefazer uma história literária propriamente dita. E é nestesentido que o texto do autor de Teoria da história literáriamostra-se instigante.

Escrevendo num contexto de acirrada discussão emtorno dos problemas da escrita da história literária, nummomento que questionava as orientações anteriormenteestabelecidas àquelas que, por exemplo, transparecem noshistoriadores brasileiros oitocentistas, Wellek propunha umanova história da literatura, com uma abordagem menos pro-pensa aos métodos extrínsecos e mais voltada para a pró-pria obra literária.5 Inicialmente indagando sobre a exis-tência de uma história literária, diferente da crítica literáriaou da história social, e admitindo que geralmente a res-posta fosse afirmativa, acabava por apontar que a únicavinculação das ditas histórias da literatura à história é tãosomente pelo fato de tratarem do passado, pois:

não são nada mais que do que histórias sociais ou históriadas idéias [...] refletidas em uma certa literatura nacional,ou são simplesmente uma série de julgamentos e de im-pressões sobre trabalhos individuais de arte, ou sobre apsicologia dos escritores, organizados numa ordem maisou menos cronológica (Wellek, 1975, p. 294-295).

Sem, contudo, negar ou negligenciar a importânciada relação da obra com seu contexto social, o que seria,em sua opinião, um absurdo, Wellek chamava atenção parao emprego de uma concepção semiológica de obra de arte:um sistema global dinâmico de signos ou como uma estru-tura de signos servindo a uma finalidade estética definida(Wellek, 1975, p. 282). Procurando responder ao problema

5 Sobre o termo, ver opróprio Wellek, s/d. Ediçãooriginal norte-americana de1963.

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do modo de existência da obra de arte em geral, e literáriaem particular, o autor desviava-se, assim, das abordagensque promoviam o estabelecimento da dependência causal,que entendem a obra como mero reflexo do meio social ehistórico, bem como das leituras de caráter psicologizantese/ou subjetivistas. Em seu lugar, Wellek, conclamando ochamado perspectivismo, propunha um processo que permi-te atingir o conhecimento do objeto, segundo diferentespontos de vista:

Ver as coisas em perspectiva, ou vê-las historicamente éexatamente o mesmo. Ainda que haja documentos para oreagrupamento de uma estrutura, o historiador literáriodeve ser capaz de situar uma obra de arte tanto em relaçãoaos valores da época em que ela foi criada, como em todasas épocas subseqüentes (Wellek, 1975, p. 289).

Voltando-se para os aspectos da estrutura, signo e va-lor da obra de arte, que não podem ser separados da/naanálise da obra, Wellek, com o perspectivismo, se opunhaàquilo que chamava de teses do absolutismo e do relativismoda análise. Para nós, deste rico debate interessa o seguinteaspecto: a partir dessas observações, de maneira geral, po-demos refletir sobre a própria constituição da historiografialiterária, seus dilemas e suas relações com a escrita da his-tória.

Desde o início de suas notas, o autor questiona-sesobre o porquê da inexistência, até aquela data, de umahistória que tentasse delinear a evolução da literatura in-glesa como arte. A possível resposta, segundo Wellek, de-correria da dificuldade de se pensar em duas concepções:a da função artística e a da evolução da arte. A complica-ção em se analisar a obra a partir da função estética (ouartística), isolando tal função das demais, acabou, de acordocom o autor, por restringir tal tipo de abordagem. Alémdisso, por causa da existência de outras funções relaciona-das à obra e, talvez, mais acessíveis à análise, e por se en-tender a existência da forma como único elemento artísti-

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co, priorizou-se, na historiografia literária, o exame das re-lações externas da obra com o contexto social, bem comocom sua relação com a psicologia do autor e com o seuconteúdo comunicativo. Essas são, sabidamente, práticascomuns às historiografias da literatura da segunda metadedo século XIX. E aqui volta a importância ao elementoestrutural da análise, acima já referido: um conceito queinclui tanto forma quanto conteúdo e rompe, simultanea-mente, com as tradicionais análises dicotômicas.

Ainda que possa ser arriscado tal comentário, pode-mos dizer que, guardadas as devidas diferenças e propor-ções, é possível vislumbrar na teoria da história literária,de Wellek, uma antecipação daquilo que constituiu, emtermos, as grandes linhas do debate historiográfico da his-tória da literatura na segunda metade do século XX. Afi-nado com o Círculo de Praga, parece prever a inovação dateoria da recepção, levada a cabo em fins dos anos 1960,bem como parece antever um diálogo com Hayden White,ao discutir a relação forma versus conteúdo. Além destes,também parece predizer a recorrência à possibilidade daabordagem sincrônica, exaltada no Brasil por Haroldo deCampos, a partir de uma livre manipulação da obra deSaussure e da leitura de uma poética sincrônica de Jakobson.Ao discutir o problema da significação artística de umaobra de arte, permite que lembremos da atual recorrênciaao conceito de representação, difundido pela obra de RogerChartier.6 Muito possivelmente as vinculações por nós re-feridas procedam, antes de mais nada, do período vividopor Wellek, período do qual decorreram as próprias defini-ções e problemas para a escrita das histórias da literatura.Expresso em outros termos, parte dessas formulações buscamresponder a questões que já se apresentavam à época emque Wellek escreve. Tais formulações, assim como as pon-derações do próprio autor em questão, dialogam, aproximan-do-se ou distanciando-se, em diferentes graus, de proble-mas postos naquele momento fulcral para a problematizaçãohistoriográfica em questão. Assim, justifica-se, para nós, a

6 No que diz respeito aHaroldo de Campos, ver osensaios “Poética sincrônica”(In: Campos, 1977), e “Textoe história” (In: Campos,1976). Em relação à obra deWhite, consultar,principalmente, “O textohistórico como artefatoliterário” (In: White, 1994).

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própria referência à teoria de Wellek: um texto em discus-são com sua época e que se abre para outras configuraçõesque, de diferentes maneiras, nos atingem ainda. Dito isto,cabe recordar que foi uma discussão parecida com a deWellek, só que realizada bem posteriormente ao fechamentodo balanço realizado por João Alexandre Barbosa em 1996,e sua expectativa em relação a uma outra escrita da histó-ria literária brasileira que nos remeteu ao texto de 1936.

Ainda que o texto de Barbosa não faça menção diretaao texto de Wellek – apesar da reivindicação da necessi-dade da mudança quanto à elaboração de uma nova histó-ria literária, presente em ambos –, podemos nos lembrar deoutros dois ensaios, dos mesmos autores, que possibilitamque continuemos refletindo sobre o próprio caráter de con-figuração geral de uma história literária e, mais especifica-mente, que permitem que continuemos indagando a res-peito das mazelas da escrita da história da literaturabrasileira. Assim, se em Biblioteca imaginária, escrita em finsdo século XX, Wellek não era citado, o mesmo não ocorreno Ensaio de historiografia brasileira, outro texto de João Ale-xandre Barbosa, apresentado no II Congresso Brasileiro deCrítica e História Literária, em Assis, São Paulo, em 1962.7

Em certo sentido, o diálogo que o ensaísta brasileiro esta-belece com Wellek acaba por transparecer um diálogo en-tre os seus próprios textos, isto é, entre A biblioteca imagi-nária, de 1996, e o texto apresentado em 1962.

Barbosa, em seu Ensaio, parte da leitura de um texto,“A história literária”, de René Wellek, que, de certa for-ma, retomava a discussão iniciada nos anos 1930. Últimocapítulo do já anteriormente citado Teoria da literatura, es-crito em parceria com Austin Warren e publicado em 1949,“A história literária” é, contudo, de autoria do próprioWellek, como aparece no prefácio à primeira edição daobra.8 Novamente recorrendo à ideia de evolução, o autorfrisava que a história só pode ser escrita em referência aesquemas variáveis de valores, e esses têm de ser abstraí-dos da própria história (Wellek; Warren, 2003, p. 352).

7 Além da apresentação noreferido Congresso, o textointegra a coletânea Opus 60(Barbosa, 1980, p. 25-52).

8 Como curiosidade apenas,podemos dizer, portanto, queBarbosa se equivoca aoafirmar que o texto foiescrito por Wellek e Warren.O autor brasileiro se utilizouda edição espanhola da obrade ambos (Editorial Gredos,1959), que suprimiu oprefácio acima indicado, noqual são referenciados oscapítulos pertencentes acada autor.

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Ainda que haja uma diferença de mais de uma décadaentre A teoria da história literária e “A história literária”,mais uma vez, Wellek, a partir de um balanço, exercitavaa crítica às concepções vigentes no campo da historiografialiterária. Contudo, agora, em 1949, utiliza um tom aparente-mente mais didático. O autor comenta, numa lúcida narra-ção, como designa Barbosa, os principais problemas com osquais se defronta(va) a história literária. Por se tratar de ques-tões que marcam, como já dissemos antes, a constituição daprópria disciplina (história da literatura) e por assim afligi-rem-na continuamente, além de implicarem a elaboração dahistoriografia da literatura brasileira e, consequentemente,de seus dilemas, vale apontá-las:- o problema das relações entre as obras de arte, suas fon-

tes e influências (que constituiriam, segundo Wellek, oprincipal elemento dos estudos tradicionais);

- o problema da originalidade da obra. De acordo com oautor, estabelecer a posição que uma obra ocupa emuma tradição caracterizaria a tarefa primeira da histó-ria literária;

- o problema adicional na evolução da história literária:estudo das relações entre obras (séries de obras) de ummesmo autor, para a constituição de uma série evolutiva;

- o problema decorrente de outro tipo de série evolutiva:isolar certa característica na obra e acompanhar seuprogresso rumo a um tipo ideal;

- o problema da definição de gêneros e tipos literários;- o problema da definição de período ou movimento lite-

rário;- e, finalmente, o problema adicional mais amplo: aquele

que diz respeito à escrita de uma história da literaturanacional como arte, sem pender para os elementosextraliterários ou não literários.De maneira muito clara pode-se perceber que é a par-

tir de uma leitura daquilo que, em seu tempo, era pratica-do como história da literatura, que Wellek propõe umaoutra perspectiva para a abordagem dessa história. Ainda

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que, aqui, sua concepção de história literária nos interessemenos objetivamente, essa sua leitura da historiografia daliteratura produzida até aquele momento nos parece, comojá dito antes, fundamental. Serve como uma porta de en-trada, para refletirmos sobre a própria disciplina. Cabelembrar, da mesma maneira, que essa visão sobre a escritada história permite que pensemos a constituição dahistoriografia da literatura aqui no Brasil e suas relaçõescom a própria historiografia, por exemplo. Apontados porWellek, problemas como o da escrita da literatura nacional,da definição de períodos ou de movimentos literários apare-cem constantemente na elaboração dos programas dahistoriografia da literatura brasileira, ao menos naquela doséculo XIX. E mais: parte daquilo que constitui o conheci-mento historiográfico da literatura brasileira comumentedesignada como nacional procede desta mesma historiografia,que produziu verdades que perpassaram gerações e foramsendo naturalizadas ao longo dos anos. Assim, menos do quediscutir a própria concepção de história literária em Wellek,o que se revelaria instigante, pois é sabido que o autorinfluenciou parte da crítica literária a partir dos anos 1950,interessa-nos perceber a instauração dos planos para a es-crita das histórias literárias no Brasil, vistos a partir da-quelas discussões suscitadas na fase que antecede as cha-madas grandes sínteses históricas desta mesma literatura,fase marcada, principalmente, pelos trabalhos de SílvioRomero e José Veríssimo.

Parte daquilo que se revela problema para a histórialiterária pode bem ser detectada nos estudos que se referi-ram aos planos (ou programas) da história da literatura bra-sileira, bem como a respeito de seus autores, geralmentelidos como românticos, nacionalistas ou precursores, o quefacilmente deixa perceptíveis os encaminhamentos da re-cepção que lhes foi feita. Se os planos se legitimavam aoestabelecer determinadas leituras do passado literário, aca-baram por ser lidos da mesma maneira pelas gerações pos-

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teriores, que também buscavam instituir uma leitura acer-ca do passado.

Assim, a via dupla, ou mais que isso: os planos elabora-dos, principalmente ao longo do século XIX – do Resumo dahistória literária do Brasil, de Ferdinand Denis (1826), à Intro-dução à história da literatura brasileira, de Sílvio Romero (1882)– se voltam para um suposto passado literário brasileiro (doséculo XVI até parte do XIX), institucionalizando-o einstitucionalizando-se. A constituição da crítica literária edas chamadas obras referenciais da historiografia da litera-tura brasileira, em fins do século XIX, retomam esses planos,seus autores e orientações, produzindo diferentes avaliaçõessobre esses planos, ao mesmo tempo em que se voltam aomesmo objeto destes. Portanto, leituras sobre leituras, avali-ações sobre avaliações e que acabaram por produzircanonizações possíveis: sobre a própria literatura, sobre a crí-tica e seus críticos e sobre a própria historiografia literária.Por mais que não nos utilizemos da concepção de Wellekpropriamente dita, é inevitável não retomá-lo aqui. Refe-rindo-se ao significado total de uma obra de arte, dizia ele:

[tal significado] não pode ser definido meramente em fun-ção do seu significado para o autor e aos seus contemporâ-neos. Trata-se, antes, do resultado de um processo de adi-ção, isto é, a história da crítica pelos seus muitos leitoresem muitas épocas (Wellek; Warren, 2003, p. 42).

Entendemos que é possível a mesma observação em re-lação àqueles textos que se constituem como discursos fun-dadores que buscaram, num primeiro momento, produzir umaideia de literatura e de história da literatura no Brasil. Des-de o século XIX, ora lidos e relidos, recebem interpretações,viabilizando marcos, ora, simplesmente, são preteridos damemória literária e historiográfica. Assim, tão revelador quan-to a própria leitura destes documentos, por vezes transfor-mados em monumentos, outras relegados ao apagamento, édeparar-se com as leituras, histórica e historiograficamentepromovidas, que incidiram sobre esses textos.

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De marcos e eras: o Romantismo

O acima citado processo de adição ou, poderíamos dizer,de recepção crítica afigura-se aqui como fundamental, umavez que nos voltamos, justamente, para textos que pade-ceram desse processo ao serem inscritos numa história dacrítica e da historiografia literárias brasileiras, sendo apon-tados como iniciadores dessas mesmas crítica ehistoriografia.

O mesmo Wellek que entendia que o significado daobra decorre tanto do tempo em que é produzida – emfunção do seu significado para o autor e aos seus contem-porâneos – quanto da adição das demais leituras que pos-teriormente sobre ela se voltam (e que para nós é crucial,pois é daí que decorrerá uma possível historicização dasleituras da própria crítica) aponta para a suposta funçãodo historiador literário: “[...] antes de mais nada, atentarpara as idéias e concepções, os programas e nomes dos pró-prios escritores e, assim, contentarmo-nos em aceitar assuas próprias divisões”. Contudo, continua o autor:

O valor do testemunho fornecido por programas, facções eauto-interpretações formuladas conscientemente na his-tória da literatura não deve, naturalmente, ser minimizado,mas, com certeza, o termo movimento poderia muito bemser reservado para atividades autoconscientes e autocríticasa serem descritas como descreveríamos qualquer outra se-qüência histórica de acontecimentos e pronunciamentos.Mas tais programas são apenas materiais para o nosso estu-do de um período, exatamente como toda a história dacrítica oferecerá um comentário contínuo a qualquer his-tória da literatura. Podem nos dar sugestões e indicaçõesmas não devem prescrever os nossos métodos e divisões,não porque nossas visões sejam necessariamente mais pe-netrantes que as suas, mas porque temos o benefício de vero passado à luz do presente (Wellek, 2003, p. 361).

Cabe lembrar que o autor desenvolve essas observa-ções quando reflete acerca dos problemas que tocam a his-

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tória da literatura, referindo-se, neste caso, especificamen-te, à definição de período e/ou movimento literários, comodito nas páginas anteriores.

Tal observação merece atenção. A ênfase final, dobenefício de ver o passado à luz do presente, nos garantemuito pouco, acreditamos, contribuindo para incorrermosnas mazelas da acronia ou do anacronismo,9 problema quenão poucas vezes se revela bem presente nos trabalhos dehistória da literatura, história que, não poucas vezes tam-bém, homogeneíza o passado para ajustá-lo aos olhos dopresente (Teixeira, 2003, p. 138).

Ainda que aloquemos a fala no seu devido lugar, umaproposta de encaminhamento para a escrita da história li-terária, faz-se necessário lembrar que a leitura da críticanem sempre se pauta pelo apreço à objetividade ou àhistoricidade, muitas vezes recepcionando os programas,facções e autointerpretações a partir de questões que esca-pam a estes mesmos programas, facções e autointerpretações.Dito isso, e ainda pensando na citação exposta acima, nosinteressam justamente esses programas e aquilo que o autorchamou de comentário contínuo da história da crítica sobreesses mesmos documentos, pois entendemos, diferentemen-te de Wellek, que esses documentos se caracterizam em algomais que apenas materiais, e que o processo de adição, maisdo que nos levar à união de diferentes fatores ou frações emum único resultado, permite que percebamos, sim, a cons-trução de diferentes sentidos, por vezes incongruentes, arespeito da história literária e do próprio passado.

Assim, voltamo-nos, aqui, à crítica romântica queatuou no Brasil, nas primeiras décadas do século XIX eque, em certo sentido, estabeleceu os primeiros estudosliterários nas terras tropicais. Longe de qualquer preten-são de objetividade, que se revelaria improvável, ou afas-tados de qualquer expectativa que supusesse possível a ob-tenção de uma apresentação imparcialíssima do supostotema-objeto de interesse, ainda assim, estruturemos um

9 O problema doanacronismo é comentadotanto em Apologia da história,de Marc Bloch, de 1949,quanto em Le problème del’incroyance au XIV.e. siécle, deFebvre, de 1942 (Cf. Febvre,2009 e Bloch, 2001). PaulVeyne lembra que o exercíciohistoriográfico desempenha,ou deve desempenhar, umpapel de “luta incessantecontra nossa tendência aocontra-senso anacrônico”(Veyne, 1998, p. 112).

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quadro histórico acerca do objeto em questão.10 Interessa-dos na constituição dos estudos acima referidos, e maisespecificamente na elaboração das primeiras histórias daliteratura, ou nos programas que as anunciavam,11 nos vol-tamos, inevitavelmente, para o contexto da primeira me-tade do século XIX, comumente designado como era ro-mântica (Coutinho, 1997), período que, como lembra AbelBarros Baptista, se notabiliza na literatura brasileira – e nasua historiografia consequentemente – como “um momen-to verdadeiramente fundador, não porque só então ela co-mece, mas porque aí se coloca o problema do seu começo”(Baptista, 2003, p. 24).

Para movimentarmo-nos nesse quadro, ou melhor, paraambientá-lo, recorremos às próprias histórias da literaturabrasileira, buscando, portanto, e desde já, dialogar comnosso problema, qual seja, estas mesmas histórias da litera-tura.

Os programas e histórias que apontamos abaixo, emnota, foram e continuam sendo objeto privilegiado de es-tudo no campo da história intelectual no Brasil. E dissodecorre que foram estudados a partir de diferentes tradi-ções, o que implica dizer que a chamada Era Românticafoi, como bom objeto da história, interpretada de maneirasdiversas, de acordo com diferentes épocas e pretensões.Dessa maneira, não se pode ignorar que as leituras sobre otema-objeto decorrem, muitas vezes, de interpretaçõesestabelecidas, diríamos, quase (quase?) canônicas.

Assim se desenha um objeto: a construção das his-tórias da literatura no Brasil, ao longo do século XIX, bemcomo a constituição, entre este mesmo século XIX e o XX,de uma suposta fortuna crítica sobre essa historiografia.

A partir delas se pode vislumbrar, por exemplo, o enca-minhamento dado pela crítica de fins do século XIX ao pas-sado que o antecede, ou a apropriação realizada pela própriahistoriografia literária do período acerca da produção ante-rior e que vai, por sua vez, orientar a elaboração de um cânoneda crítica e historiografia literárias brasileiras oitocentistas.

10 A expressão “quadro”aparece, com frequência, naestética romântica,referindo-se a texto (v.Rouanet, 1999, p. 21 e SS).

11 Em relação a estes“programas” e “histórias”,destacamos: DENIS,Ferdinand. Resumo da histórialiterária do Brasil (1826);MAGALHÃES, D. J.Gonçalves de. Ensaio sobre ahistória da literatura do Brasil(1836); RIBEIRO, SantiagoNunes. Da nacionalidade daliteratura brasileira (1843);VARNHAGEN, Francisco A.de. Ensaio histórico sobre asletras no Brasil (1850); SILVA,Joaquim Norberto de Sousa.História da literatura brasileira(1843-1862); Pinheiro,Joaquim Caetano Fernandes.Curso de literatura nacional(1863) e Resumo de histórialiterária (1873).

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Nesse movimento, de diferentes estratégias de leitura (Cu-nha, 2006, p. 22), pode-se notar também, e principalmen-te, os usos do passado pela crítica de fins do século XIX, eaparentemente, até mesmo pela crítica posterior buscandovalidar seu próprio lugar e discurso: movimento incessante,portanto, gerador de leituras convenientes (Rouanet, 1991,p. 168) e por elas gerado, que acenam a uma comunidadede leitores, específica, da qual se originaram, constituídapelos historiadores/críticos da literatura brasileira, o quepossibilita a aproximação junto àquelas estratégias de lei-tura que apontamos acima.

Tal comunidade, cujos membros compartilham os mes-mos estilos de leitura e as mesmas estratégias de interpre-tação (Chartier, 1992, p. 216), também designada comocomunidade interpretativa, é responsável (ou assim se outor-ga) pelo estabelecimento de leituras autorizadas dos textosde que se apropria. Leituras que implicam a imposição deum sentido único ou de um único significado, bem como ainstauração de uma compreensão/interpretação corretas.12

Ainda que menos preocupados com as práticas deleitura, que implicam necessariamente o reconhecimen-to da materialidade ou suporte do texto lido, bem comoda tensão central de toda a história da leitura (Chartier,1992, p. 213), que opõe, de um lado, a prática criativa doleitor e, de outro, o refreamento desta, pela imposição daleitura pretensamente correta, entendemos, com Chartier,que o historiador deve buscar um meio de determinar osparadigmas de leitura predominantes em uma comunida-de de leitores, num dado período e lugar. Com isso, quer-se acreditar, aproximam-nos das chamadas estratégias deleitura, apontadas acima, reveladoras das formas de apro-priação e manipulação dos próprios textos (Chartier, 1992,p. 226-227).

Interessam-nos, assim, nestes autores, portanto, suaspróprias concepções de história/historiografia, pois é delasque decorreram, obviamente, a(s) leitura(s) que fizeramdo passado literário brasileiro. A ênfase na nascente críti-

12 A expressão comunidadeinterpretativa, usada porChartier, é de Stanley Fish.

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ca literária/historiografia da literatura, ou histórias(s) daliteratura, no século XIX, justifica-se, uma vez que, a par-tir delas, temos o estabelecimento de um cânone literárioe historiográfico, que legitima e autoriza leituras sobre asobras escolhidas, ou melhor, canonizadas. Neste sentido,cabe lembrar, como aponta Marisa Lajolo, que osorganizadores das primeiras histórias das literaturas oci-dentais faziam parte de instituições às quais cabia um pro-jeto de constante redefinição dos protocolos vigentes en-tre vida cultural (particularmente vida literária) e sentidode nacionalidade. (Lajolo, 1995, p. 23)

Talvez possamos, a partir dessa observação, estabele-cer um primeiro elemento apontado como comum às histó-rias da literatura brasileira e que, em certo sentido, acabacriando vínculos entre os seus autores: todos parecem par-tilhar, ainda que fundamentados em diferentes concep-ções de história, crítica e literatura (e, portanto, respalda-dos em uma suposta autoridade intelectual), do desejo de,a partir do estabelecimento de uma história da literaturabrasileira, projetar o próprio sentido ou o sentido da próprianacionalidade brasileira. Acabam, assim, esses críticos/his-toriadores, definindo e fixando uma seleção em termos deobras e autores, promovendo, como dizíamos antes, a pró-pria canonização dessas mesmas obras e autores. Cabe, por-tanto, e assim entendemos, problematizar a constituiçãodesse(s) cânone(s) literário(s), historiando ou historicizandoessa mesma constituição.

Conforme comenta Roberto Reis, o critério para sequestionar um texto literário ou, podemos dizer, qualquertexto, não somente o de caráter literário, não se podedescurar do fato de que, numa dada circunstância históri-ca, indivíduos dotados de poder atribuíram o estatuto deliterário àquele texto (e não a outros), canonizando-o:

perguntar quem articulou o cânon, de que posição socialfalava, que interesses representava, qual seria seu público-alvo e qual a sua agenda política [...], por quais critériosnorteou a sua eleição e rejeição de obras e autores. A noção

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de valor e a atribuição de sentido não são empresas separá-veis do contexto cultural e político em que se produzem,não podendo por conseguinte, ser desconectadas de umquadro histórico. O significado de qualquer juízo de valorsempre depende, entre outras coisas, do contexto em quefor emitido e de sua relação com os potenciais destinatá-rios e a sua capacidade de afetá-los ou mesmo convencê-los (Reis, 1992, p. 65-92).

Mesmo que nos interesse menos a própria natureza ouo estatuto de literário do texto, interessam-nos, sim, oscircunstanciamentos históricos e, principalmente, as leitu-ras (geradas por estes, ou nestes, circunstanciamentos his-tóricos) realizadas sobre determinados textos e que produ-ziram diferentes sistematizações sobre esses escritos.

Por isso, nesse sentido, antes de questionarmos a pró-pria produção literária, interessa-nos, primeiramente,problematizarmos a própria leitura que canoniza essa pro-dução, ou seja, a leitura realizada pela crítica oitocentista,uma vez que (pode-se dizer):

[...] o crítico foi o grande beneficiário quando [...] se sepa-rou a obra do autor para concentrar o objeto de análiseliterária no próprio texto. É o crítico que passa a exercer aautoridade sobre o sentido, a estrutura. As relações inter-nas do artefato literário e, através do exercício profissio-nal, a disseminar as interpretações que lhe convêm [...].Sem o autor para reivindicar a sua interpretação e a inte-gridade semântica de sua obra, o crítico está liberado paradirecionar a exegese de acordo corn suas premissas e pro-pósitos, sejam eles conscientes ou não (Reis, 1992, p. 75).

Voltando-nos a uma possível sociologia das práticasde leitura, como propõe Roger Chartier, cabe, portanto,superar o caráter todo poderoso do texto e seu poder decondicionamento sobre o leitor, bem como relativizar a pró-pria noção de liberdade do leitor, pretendendo, sim, iden-tificar, para cada época e para cada meio, no nosso caso, acrítica/ historiografia brasileira oitocentista, as modalida-

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des partilhadas do ler (as quais dão formas e sentidos aosgestos individuais) e que colocam no centro de sua inter-rogação os processos pelos quais, perante um texto, é his-toricamente produzido um sentido e diferenciadamenteconstruída uma significação.13

Nesse mesmo sentido, recorremos novamente a RobertoReis, que parece corroborar a observação de Chartier:

A indagação da literatura não deve, em suma, se resumir apensar o que lemos, interpretando o livro [...] que temosdiante de nós: é imperioso considerar quem lê e quem es-creveu e em que circuntâncias históricas e sociais se deu oato de leitura, sem deixar de ter em conta que tipos detextos são escritos e lidos e, neste último caso, por queleitores. Sob este prisma, o texto [...] deixa de ser um obje-to estático (e estético) e passa a se entrançar com o autor,o leitor, com o horizonte histórico que lhe é subjacente ouque lhe deixou pegadas, com outros textos, com o passadoe o presente e o futuro, estabelecendo uma emaranhadarede de afiliações intertextuais (Reis, 1992, p. 74).

Por outro lado, a sistematização promovida por críticose historiógrafos advém de uma determinada leitura, e estescríticos e historiógrafos congregam-se, justamente, ern ter-mos de comunidades interpretativas. Em outras palavras, eno caso específico daquilo que pretendemos estudar, seriamessas comunidades interpretativas, ou comunidades de leito-res, que efetivam determinados juízos de valor acerca deobras e autores lidos.

Em resumo, a comunidade de leitores, organizada emtorno de críticos e historiógrafos/historiadores, ao mesmotempo em que promove aquilo que Chartier chama de “osmesmos estilos de leitura e as mesmas estratégias de inter-pretação”, promove, insistimos, a leitura autorizada, ou for-çada, sobre os textos aos quais se volta, estabelecendo de-terminadas propostas de sentido e significação para essesmesmos textos. Assim, é interessante que se perceba, asdiferentes histórias da literatura brasileira, resultando deestratégias próprias de interpretação, embasando-se na au-

13 A citação se refere aomesmo texto, utilizadoanteriormente, Textos,impressos, leituras. Aqui nasua versão portuguesa,oriunda de CHARTIER,Roger. A história cultural:entre práticas erepresentações. Lisboa: Difel,1990. p. 121. Na versãobrasileira, antes adotada, taltrecho foi suprimido.Originariamente, este artigodo prof. Chartier foiapresentado no Colóquio“Conceitos, métodos eobjecto em história dacultura”, realizado em 1986,na Universidade do Porto.

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toridade concedida principalmente pelo emprego de dife-rentes preceitos (e que caracterizam o Ocidente oitocentista)e respaldando-se num locus institucional, acabam por legiti-mar, ou não, o próprio texto lido, conferindo-lhe, ou não,um lugar nessas mesmas histórias.

Podemos, nesse sentido, arriscadamente propor que,nessa relação, o texto que nos interessa sondar, aqueleproduzido pela crítica literária e/ou a historiografia daliteratura oitocentista ao recepcionar a produção anteriore sistematizá-la, produzindo leituras autorizadas, acabapor se tornar um dispositivo de intervenção sobre essa mes-ma produção e, portanto, suporte para o próprio texto.Ainda que tenhamos clara a necessidade de reconheceros elementos que compõem o texto apropriado ou reco-nhecer os elementos que dão coerência a este texto, cabe-nos lembrar que a crítica/historiografia, tornada dispositi-vo de intervenção (sendo, assim, também leitura), acabapor produzir expectativas de leitura e perspectivas deentendimento, ou antecipações de compreensão sobre otexto ao qual se volta (Chartier, 1990, p. 132).14

Dessa maneira, a produção crítica/historiográfica daliteratura brasileira do oitocentos é uma possibilidade deleitura sobre a produção que a antecede, que estabelece ocânone e a tradição sobre essa mesma produção – ou, emoutras palavras, o cânone tornado “garantia a uma tradi-ção” (Curtius, 1996, p. 323) –, cabendo, assim, tratá-la naperspectiva de uma nova e possível história da leitura, umahistória que, principalmente, rompa com os simplismos,dicotomias e explicações deterministas. Pois, enfim, a his-tória dos textos e livros e, diríamos, das interpretações edos processos de canonização de autores e obras, deve ser,acima de tudo, uma reconstituição das variações nas prá-ticas, em outras palavras, uma história da leitura. Uma his-tória do próprio ato de ler.

14 Na edição brasileira, v. p.228.

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Considerações sobre a teoriae o método histórico-literário

Marcos Rogério Cordeiro*

RESUMO: Este artigo busca reconhecer alguns pontos detangência entre literatura e história, fazendo uma análise com-parativa de teorias e metodologias. Com esse intuito forampesquisadas as obras de Lucien Febvre, Raymond Williams, CarloGinzburg, Hayden White, Georg Lukács, Walter Benjamin,Theodor Adorno e Erich Auerbach.

PALAVRAS-CHAVE: literatura, história, historiografia.

ABSTRACT: This article aims to identify some tangential aspectsbetween literature and history, making a comparative analysisof different theories and methodologies. The research involvedthe works by Lucien Febvre, Raymond Williams, CarloGinzburg, Hayden White, Georg Lukács, Walter Benjamin,Theodor Adorno and Erich Auerbach.

KEYWORDS: literature, history, historiography.

Somando as conquistas das diversas escolas e corren-tes da literatura comparada, observamos que os estudos arespeito das relações entre literatura e história puderamsuperar alguns entraves teóricos e metodológicos como, porexemplo, as lições historicistas que ensinavam o cotejamentotexto-contexto sem mediação, isto é, sem considerar asnuances e complexidades que cada uma dessas áreasapresentava e, ainda, as que nasciam a partir do ato mesmode as relacionar. Hans Robert Jauss aponta para problemasdessa natureza em seu ensaio sobre a renovação metodológicaempreendida pela teoria da recepção, na medida em queesta incorporava o horizonte histórico como fatura interiorda compreensão da obra (Jauss, 1994). Mas os caminhostomados pelos teóricos da literatura comparada não se re-sumiam a esse ponto; eles foram muitos e variados, obede-

* Universidade Federal deMinas Gerais (UFMG).

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cendo, por sua vez, às diversas demandas que a teoria e aanálise exigiam: superação do formalismo excessivo, intro-duzindo problemas de ordem extrínseca aos de ordem in-trínseca à literatura; adoção de uma perspectiva política ecultural pluralista contra o etnocentrismo dos grandes cen-tros de influência; redefinição dos padrões de arte e cultu-ra; ruptura com as amarras da periodização do processo deprodução e recepção de obras literárias etc. Podemos afir-mar, portanto, que os estudiosos, filiados ou não a algumacorrente ou escola da literatura comparada, procuraramaprofundar a análise de obras literárias, tornando mais com-plexas as relações entre literatura e história social. Paratanto, houve uma preocupação cada vez maior com os pro-blemas teóricos e metodológicos que tal análise exigia, umapreocupação que levou à ampliação do campo conceituale à diversificação do objeto de interesse, dedicando-se aoutras áreas de conhecimento, como a história, a sociolo-gia, a antropologia e a filosofia, por exemplo.

Meu interesse neste artigo está voltado para a discus-são do problema teórico-metodológico de análise histórico-literária, ou seja, para uma reflexão sobre os pressupostosteórico-metodológicos que dão lastro aos estudoscomparatistas, embora evite o uso excessivo de terminologi-as, conceitos e teorias que norteiam a prática de análise daliteratura comparada. Procurei evitar partir diretamente dostrabalhos de teóricos e críticos reconhecidamente vincu-lados à literatura comparada, como Manfred Schmeling(1984), Fritz Strich (1946), René Wellek (1976 e 1994),Gerard Kaiser (1989), P. Brunel (1995), Eduardo Coutinho(2003), Tânia Franco Carvalhal (2003) e Sandra Nitrini(2000), por exemplo, que desenvolveram muito bem – cadaum ao seu modo e seguindo um interesse particular – osproblemas que aqui aponto. Embora não os cite diretamente,nem exponha aqui em detalhes seus argumentos e suasproposições, procurei levar em consideração as conquistasde todos eles, tomando-as como inspiração e fundamenta-ção dos argumentos que pretendo apresentar, mas alteran-

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do aqui o foco de interesse: em vez de partir de questõesteóricas nascidas no âmbito da teoria literária em geral ouda literatura comparada em particular para alcançar suarelação com a história e a historiografia, serão considera-dos os problemas teóricos nascidos no campo da história,da historiografia e, ainda, da filosofia para discutir o modocomo a literatura é absorvida por essas áreas, tornando-separa elas matéria de reflexão. Acredito que esse procedi-mento poderá servir para ampliar e diversificar de algumamaneira o campo de forças estabelecido pela literaturacomparada, na medida em que esta adota métodos de abor-dagem crítica que reconhecem e exploram as relações en-tre literatura e história.

A seguir será desenvolvida uma reflexão sobre a con-tribuição de historiadores e historiógrafos que promove-ram uma renovação em suas áreas de atuação na medidaem que incorporam um novo objeto (a obra de arte literá-ria) ao seu campo de interesse. Depois serão consideradasas contribuições de autores de formação filosófica que pro-curaram refinar a teoria interdisciplinar partindo de umadiscussão teórica avançada, muito preocupada em especi-ficar o modo como a obra literária internaliza questões his-tóricas e sociais e as torna matéria estética. Por fim, segui-rá uma breve conclusão na qual será discutido o saldo dacontribuição da historiografia e da filosofia para o proces-so de acumulação teórica e metodológica da literaturacomparada como área – paradoxalmente – específica emultidisciplinar.

Realinhamento teórico-metodológico

O interesse por estudos relacionados com a literaturafoi crescendo e se diversificando aos poucos entre os histo-riadores. Embora possamos encontrar apenas exemplosdispersos através da história da historiografia (GiambattistaVico e Wilhelm Dilthey, por exemplo), essa tendência setornou constante e foi se consolidando a partir da década

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de 1930 com a contribuição da escola dos Annales (Dosse,1994, 2001). Seus membros procuraram se antepor à ten-dência dominante nos estudos históricos de inspiraçãometódica e base positivista, que visavam a uma análisesegura, excessivamente objetiva, apegada a conceitospouco flexíveis, manipulados com o fim de garantir acientificidade da disciplina. Contra isso, a escola dosAnnales procurou construir uma concepção e uma práti-ca de pesquisa distinta. Vou destacar um desses aspectose suas consequências: os historiadores dos Annales procu-raram aproximar e imiscuir os estudos históricos aos deoutras áreas do conhecimento, como a geografia, a socio-logia, a psicologia, a arte e a literatura. Com isso, eles pas-saram a manipular conceitos e métodos de pesquisa diver-sificados, ampliando assim o modo de compreender ahistória; exploraram o sentido histórico depositado na cul-tura material (vestuário, mobiliário e alimentação, assimcomo linguagem, imaginário e crenças), constituindo umcampo novo chamado genericamente de “mentalidades”;por fim, começaram a desconstruir a cientificidade do dis-positivo factual e deram início a um trabalho que parte doprincípio de que a compreensão dos fatos depende mais dainterpretação sobre eles do que deles mesmos. Todos essesaspectos estão mutuamente implicados: a multiplicação deobjetos equivale à multiplicação de métodos e amboscorrespondem à flexibilidade da epistemologia histórica.Somando tudo, os historiadores dos Annales desenvolve-ram a hipótese de que a história é uma forma de represen-tação.

O interesse pela literatura e sua relação com a his-tória advêm diretamente desse tour de force teórico emetodológico: se os estudos históricos não mais dependemde documentos stricto sensu, se não mais dependem da aná-lise de fatos e se a representação passa a ser vista comoalgo historicamente construído e compreensível, então aarte e a literatura podem ser alçadas a objetos privilegia-dos de interpretação histórica, e as teorias que delas se

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ocupam podem ser tomadas como princípios epistemológicospara os estudos históricos. Dentro dessa visão, a literaturaé apropriada como um recurso novo e original de análise,que aparece amplo e aberto como modo de representaçãode uma prática social formada historicamente. A concep-ção teórica que orienta esse tipo de investigação é muitobem apresentada por Lucien Febvre:

Uma história histórica da literatura, quer dizer ou deveriaquerer dizer história de uma literatura, em dada época, emsuas relações com a vida social dessa época. Para escrevê-laseria preciso reconstituir o meio, perguntar-se quem es-crevia e para quem; quem lia e para quê (Febvre, 1989, p.274).

Febvre queria fazer no âmbito da literatura aquilo quefizera no âmbito das mentalidades (como mostram seus es-tudos sobre Lutero e Rabelais, por exemplo): analisar umarede de significações simbólicas historicamente constituí-da por meio de um “objeto” particular, salvando-a dedistorções anacrônicas e de apropriações subjetivas. Naverdade, como mostrou François Dosse, essa novidade jáhavia sido apresentada por Gerard Lanson, de quem, apa-rentemente, Febvre apanhou a ideia (Dosse, 2001, p. 88).Mas não há como negar que foi a partir de Febvre e daescola dos Annales que ela adquiriu consistência e foiintroduzida definitivamente nos planos dos estudos histó-ricos. Se pensarmos nas possibilidades teóricas que essaconcepção abriu aos estudos históricos, veremos que ela semostra muito esclarecida e se justifica por sua anteposiçãoàs correntes metódicas e positivistas que se queria comba-ter. Mas é preciso atentar para o fato de que a literatura éincorporada ao campo da análise histórica menos pelo sig-nificado social implícito de uma obra e mais pelo modocomo ela se insere numa teia intrincada de sociabilidade.Portanto, para efeito de um entendimento da obra literáriapropriamente dita ou de sua inter-relação com a história,essa perspectiva teórica mostrou certa limitação. A crítica

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direta vem de Gerard Genette, um crítico literário quereage a esse tipo de instrumentalização, advogando em fa-vor de “uma história da literatura tomada em si mesma (enão em suas circunstâncias exteriores) e por si mesma (enão como documento histórico)” (Genette, 1974, p. 21).Os teóricos da literatura comparada reconheceram aquium impasse que procuram superar, evitando as proposiçõesde Lucien Febvre, que não concebe a autonomia da obraliterária, e as de Gerard Genette, que, destacando o valordessa autonomia, não reconhece tais relações (Kaiser, 1989,p. 71-137; Coutinho, 2003, p. 69-79; Carvalhal, 2003, p.13-34; Nitrini, 2000, p. 117-156).

Outra contribuição importante foi dada pelos histo-riadores ingleses reunidos em torno da New Left Review emmeados da década de 1940, que acabaram lançando asbases para o que ficou conhecido como “estudos cultu-rais”. Assim como no caso dos Annales, o objetivo era pro-mover uma renovação nos estudos históricos contra umavisão positivista, mas, neste caso, também contra umatendência marxista dominante, de inspiração soviética eorientada pelas determinações ideológicas das III e IV In-ternacionais. Mas aqui reside um paradoxo, porque, ao mes-mo tempo, os membros da New Left – como o próprio nomeindica – tinham forte orientação ideológica e política deesquerda. Assim, os historiadores pertencentes a essa cor-rente se empenharam em superar o marxismo no sentidode refiná-lo, não de negá-lo como um todo, e isso contri-buiu para um debate teórico mais ideologizado do queaquele que existiu entre os historiadores dos Annales.

Tal como seus colegas franceses, os historiadores da NewLeft buscaram construir um corpus teórico e metodológicocom envergadura multidisciplinar para melhor reconheceruma rede de significações no corpus cultural e simbólico eanalisar como ela surge, se estabelece, se desenvolve e setransforma historicamente. Os livros de Edward Thompsonsobre costumes e leis e sobre a formação ideológica, políti-ca e cultural de classes sociais, de Chistopher Hill sobre

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semelhanças e diferenças de ideologias política e religiosa,sobre a atividade intelectual boêmia e as bases da revolu-ção na Inglaterra, ou de Eric Hobsbawn sobre as práticasde vida, a economia, a política, a ideologia etc., num pro-cesso de transformações contínuas e desiguais, são provasdo empenho dos historiadores vinculados à New Left.

Mas os estudos mais consistentes no âmbito aqui ana-lisado são da lavra de Raymond Williams, pois foi elequem mais se dedicou em construir um quadro teóricoe metodológico próprio para pensar a relação entre o pro-cesso histórico e as manifestações artísticas e culturais. Paralevar adiante seus propósitos, ele procurou aliar duas ten-dências teóricas opostas, corrigindo os excessos de uma pormeio da outra e vice-versa: de um lado, inspirou-se noclose reading, técnica de análise literária desenvolvida porI. A. Richards e Frank R. Leavis que se orientava por umainterpretação cerrada do texto e pela abstração do proces-so histórico-social; de outro lado, foi influenciado pelomarxismo, que insistia na relação entre os dados históricose os artísticos e culturais, partindo de uma visão mais are-jada que vinha do chamado “marxismo ocidental”. Essadívida é reconhecida pelo próprio Williams:

Quando cheguei a Cambridge, duas influências marcantescausaram uma impressão profunda em minha maneira depensar. A primeira foi o marxismo e a segunda os ensina-mentos de Leavis. Mesmo depois, quando começaram aaparecer minhas divergências com essas posições, nuncadeixei de respeitá-las (Williams, 1968, p. 13).

A produção teórica e crítica de Raymond Williams éuma tentativa de compreensão da cultura a partir da his-tória e da história a partir da cultura, sem, no entanto,sucumbir às armadilhas da teoria do reflexo. Para isso de-senvolve dois conceitos que ajudarão a consolidar sua teo-ria: “materialismo cultural” e “estrutura de sentimentos”.

O primeiro conceito vem de uma acepção livre e in-vertida do marxismo dogmático: no lugar de pensar a rela-

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ção entre infraestrutura (meios e relações de produção) esuperestrutura (ideias, arte, cultura) de maneira que estase mostrasse um resultado direto daquela, estabelecendoassim uma hierarquia de valores e uma pressuposição dafunção, Williams defende a ideia de que o nervo da expli-cação desse esquema se encontra na noção de produção einfere que cultura não é mera reprodução dos meios e dasrelações de produção, mas é – ela mesma – produtora devalores que intermedeiam as relações estabelecidas nainfraestrutura.

Se “produção” em uma sociedade capitalista é a produção demercadorias, então termos diferentes e capciosos acabamsendo usados para qualquer outro tipo de produção ou deforça produtiva. [...] [as superestruturas] nunca são ativida-des superestruturais. São as produções materiais necessáriasque possibilitam a continuação de um modo de produçãoauto-sustentado apenas na aparência (Williams, 1979,p. 94).

Williams trabalha livremente com as categoriasmarxianas, diversificando sua aplicação, mas conservandoo seu sentido. O “materialismo cultural” se mostra um meiode pensar as relações entre história e literatura como for-ças produtoras por si mesmas e não como se a primeira pro-duzisse a segunda, ou como se esta não tivesse nenhumaautonomia diante daquela.

O segundo conceito desenvolvido por RaymondWilliams – “estrutura de sentimentos” – se mostra maisadequado para a análise literária propriamente dita, o que,como o historiador mesmo admite, se mostra uma tarefamais complexa e mais difícil de realizar.

A parte mais interessante e mais difícil de uma análisecultural é a procura por compreender os processos ativos eformativos, mas transformacionais. As obras de arte, porseu caráter substancial e generalizado, são especialmenteimportantes como fontes dessas evidências complexas.(Williams, 1979, p. 161)

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A partir dessa constatação, Williams empreende umaanálise que busca realçar os perfis de personagens de obrasliterárias e teatrais para empreender uma análise das rela-ções históricas. Ou seja, o objetivo é compreender como asrelações sociais historicamente constituídas são configura-das nas obras.

Quando as obras estavam sendo feitas, seus autores muitasvezes pareciam estar sozinhos, isolados. No entanto, mui-tas vezes, quando essa estrutura de sentimento tiver sidoabsorvida, são as conexões, as correspondências, e as se-melhanças de época que mais saltam à vista. O que era umaestrutura vivida é agora uma estrutura registrada, que podeser examinada, identificada e generalizada (Williams, 1964,p. 18).

O objetivo de Williams é bastante interessante, mas épreciso atentar para aquilo que pode se tornar uma limita-ção intrínseca de sua teoria: existe o perigo de tornar ométodo um esquema lógico, o que levaria a conceber oselementos internos da obra artística a partir de prefiguraçõesextra-artísticas. Assim, em sua análise, os personagens sur-gem como tipos sociais e não como construções estéticas.

A escola italiana, que desenvolveu uma teoria conhe-cida como “micro-história”, também acrescentou conquis-tas importantes para o debate teórico aqui analisado. Doisaspectos devem ser destacados: a inclinação para o estudode casos menores e o uso de um estilo de escrita semelhan-te à narrativa ficcional.

A primeira característica nos remete às conquistasda escola dos Annales: adesão à recusa antimetódica eantipositivista de construir uma historiografia guiada pelanoção de cientificidade e veracidade, e esforço de pensarhistoricamente – mediante metodologia interdisciplinar –as representações simbólicas, o cotidiano, o imaginário, aarte e as relações que conservam com a cultura, a socieda-de, a política e a economia. Mas, como adverte RonaldoVainfas, não se deve entender a micro-história como um

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prolongamento da concepção de história das mentalida-des, mas como uma herdeira que questiona alguns aspec-tos dessa herança (Vainfas, 2002, p. 13-51). Carlo Ginzburg,um dos mais destacados historiadores dessa corrente, cha-ma atenção para isso quando questiona o fato de LucienFebvre conferir importância demasiada às ideias, aos cos-tumes e às práticas sociais cotidianas de personagens proe-minentes da história, mas se mostrar insensível aos proble-mas dos anônimos.

Um dos maiores historiadores deste século, Lucien Feb-vre, caiu numa armadilha. Num livro inexato mas fasci-nante, tentou, através da investigação sobre um indivíduo– ainda que excepcional, como Rabelais – identificar ascoordenadas mentais de toda uma era. [...] Os camponeses,isto é, a grande maioria da população daquela época, sãovislumbrados no livro de Febvre só para serem apressada-mente liquidados como “massa semi-selvagem, vítima dassuperstições” (Ginzburg, 2002, p. 29).

Os historiadores italianos se voltam justamente para abiografia desses anônimos: em O queijo e os vermes, por exem-plo, Ginzburg estuda a vida de um moleiro italiano do sé-culo XVI acusado de heresia e, a partir daí, reconstrói todoo seu cotidiano inserido no ambiente ideológico e políticoda contrarreforma. Essa proposição metodológica revela ovínculo paradoxal com a escola dos Annales: enquanto estaaproxima, a ponto de assemelhar e nivelar, a forma mentalde membros da elite e do populacho,1 a micro-história de-fende as particularidades de cada segmento, reconhecen-do que uma formação social se mostra bastante complexaem um recorte sincrônico.

Voltando ao principal, o caráter miúdo dos estudosbiográficos e a forma de enunciá-lo levam à percepção dahomologia entre o discurso histórico e o ficcional.

Livre dos entraves documentais, a literatura comporta umainfinidade de modelos e esquemas biográficos que influen-ciaram amplamente os historiadores. Essa influência, em

1 Jacques Le Goff afirmaque “a mentalidade de umgrande homem é comum aoutros homens de seu tempo[...] César e o último soldadode suas legiões, São Luís e ocamponês de seus domínios,Cristóvão Colombo e osmarinheiros de suascaravelas” (Le Goff, 1976,p. 71)

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geral mais indireta do que direta, suscitou problemas, ques-tões, esquemas psicológicos e comportamentais que puse-ram o historiador diante de obstáculos documentais mui-tas vezes intransponíveis: a propósito, por exemplo, dosatos e dos pensamentos da vida cotidiana, das dúvidas edas incertezas, do caráter fragmentário e dinâmico da iden-tidade e dos momentos contraditórios de sua constituição(Levi, 2002, p. 168).

Antes de mais nada, nota-se aqui o mesmo tipo deimpasse com o qual Raymond Williams se deparou, de-nunciando as dificuldades do historiador em conciliar seusobjetivos com um tipo de análise menos instrumentalistada obra literária. A proposição da escola italiana, resumi-da nas palavras de Giovanni Levi, apresenta o recurso bio-gráfico como um procedimento similar ao recurso narrati-vo e o personagem histórico passa a ser encarado comopersonagem literário. Os procedimentos discursivos de Oqueijo e os vermes, por exemplo, revelam claramente a basedessa teoria historiográfica: todo o desenvolvimento do li-vro repousa sobre uma estrutura semelhante à do roman-ce, na qual podemos identificar uma composição que deli-mita a ação dos personagens e os relaciona no tempo e noespaço. Deste modo, os personagens históricos sãoconstruídos meticulosamente e a trajetória de suas vidas éapresentada segundo certas regras de narração que inte-gram os fatos da vida de um indivíduo (suas ideias e seussentimentos) aos da sociedade. No final, Mennochio, oherege do livro de Ginzburg, aparece como um persona-gem de papel, assim como toda a sociedade em que viveu.

Podemos dizer que a micro-história se encontra no meiodo caminho entre a escola dos Annales – com sua inclina-ção para o universo das práticas cotidianas e suas simbologiascomplexas – e a tendência historiográfica, que tende aaproximar a história e a literatura por meio das afinidadesdiscursivas. Não existe propriamente uma escola que tratedisso, mas uma série de autores – a maioria deles historia-dores – que refletiram sobre o tema. Entre eles, podemos

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destacar alguns nomes: Paul Veyne, que atribuiu à escritahistoriográfica a necessidade de integrar os fatos por meiode recursos narrativos semelhantes à intriga romanesca(Veyne, 1987, p. 43-59 e 107-137), e neste ponto se aproxi-ma das conquistas dos historiadores italianos, parecendojustificá-las; Michel de Certeau, para quem a história nãodeve ser pensada como referência puramente objetiva, mascomo uma construção discursiva, ou seja, uma realidadeconstruída mediante a linguagem (Certeau, 2006, p. 45-46e 107-137); Paul Ricoeur, que procurou superar a dicotomiaentre história e linguagem, defendendo a ideia de quequalquer modo de compreensão da primeira se realiza porintermédio da segunda, isto é, qualquer relato histórico,por mais analítico ou estrutural que seja, recorre aos expe-dientes da narração (Ricoeur, 1997, v. III, p. 173-415); eDominick LaCapra, que entendeu a história como um tex-to, o qual a todo historiador é dado ler (LaCapra, 1985, p.15-44 e 115-134).

Dentro dessa linha de interpretação, o historiador nor-te-americano Hayden White merece destaque. Seu livroMetahistória é o melhor e mais bem acabado exemplo deobra que mostra a síntese entre discurso historiográfico elinguagem literária, não tanto pelas ideias apresentadasem forma de teoria na introdução (“A poética da histó-ria”), mas pelo desdobramento que se segue no corpo dolivro. As ideias expostas teoricamente variam, mas não ino-vam o que já vinha sendo discutido antes da publicaçãode seu livro, nem o que passou a ser defendido após: odebate sobre a cientificidade da história, a marca de umestilo pessoal de escrita por parte de cada historiador, orecurso narrativo utilizado no ato da escrita e sua funçãohermenêutica, a tendência natural da historiografia de seinclinar à força organizadora da narração, o apego à tramae à intriga como forma de composição textual etc. O histo-riador resume sua tese com as seguintes palavras:

Em todos os casos a tensão dialética evolui dentro de umcontexto de uma visão coerente ou imagem governante da

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forma do campo histórico completo. Isso dá à concepçãodesse campo particular do pensador o aspecto de uma tota-lidade autoconsciente, e essa coerência e consistência dãoà sua obra seus atributos estilísticos distintivos. O proble-ma aqui consiste em determinar a base dessa coerência econsistência. Em minha opinião, essa base é de naturezapoética, e especialmente linguística (White, 1992, p. 39).

A parte mais interessante e inovadora de seu estudoestá no corpo do trabalho, dividido em três partes e dezcapítulos – cada um deles dedicado a um historiador oufilósofo da história –, nos quais White identifica e inter-preta um estilo particular, dividindo e classificando os au-tores estudados (Hegel, Michelet, Ranke, Tocqueville,Burckhardt, Marx, Nietzsche e Croce) em esquemas emodelos estabelecidos pela tradição retórico-poética (co-média, drama, tragédia, poesia, romance), figurativa (iro-nia, metáfora, metonímia, sátira), explicativa (formista,mecanicista, contextualista, organicista) e ideológica (anar-quista, radical, conservadora, liberal). Ele finaliza sua obraexplicando que “o estilo de determinado historiógrafo podese caracterizar em termos do protocolo lingüístico que uti-liza para prefigurar o campo histórico antes de lhe aplicaras várias estratégias explicativas que utiliza para modelarum relato” (White, 1992, p. 405).

Embora toda sua exposição seja feita com inteligênciae rigor, a proposição de Hayden White apresenta algumasdistorções teórico-metodológicas. Primeiro, por partir demodelos estabelecidos a priori e aplicá-los a autores quesão mais complexos do que ele os apresenta. Assim, porexemplo, Nietzsche não é somente metafórico, como Whiteafirma, mas também irônico, metonímico, dramático, trá-gico, iliberal, radical etc.; Marx não é somente metonímico,mas irônico, romântico, realista, radical etc. – os exemplospoderiam ser multiplicados até o limite de sua exposição.White parece cair na armadilha de partir de “fôrmas”estilísticas em vez de ver o estilo se formar. O aspectoesquemático e classificatório fica registrado em outro tex-

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to seu: “a questão que se coloca para os historiadores con-temporâneos não é a de saber se vão utilizar ou não ummodelo lingüístico que os ajude em seu trabalho, mas quetipo de modelo lingüístico vão usar” (White, 1987, p. 189).2

Como se vê, o uso sistemático de modelos constituídos deantemão persiste, denunciando o lado duro da tese deWhite.

Outro problema que sua tese apresenta reside no fatode que, embora White procure afirmar a inter-relação en-tre história e literatura, na verdade ele tratou da relaçãoentre historiografia e literatura, ou seja, ele tratou das afi-nidades estilísticas entre dois tipos de discursos. Neste pon-to, ele se assemelha muito aos outros autores que trabalha-ram o mesmo tema: nenhum deles analisou o problema dahistória propriamente dita, isto é, das relações sociais ob-jetivas que se formam no decorrer do tempo sob pressão defatos e acontecimentos, de vivências concretas ou simbóli-cas, mas elaboraram uma série de reflexões sobre a inter-relação de modos e estilos de construção textual. Entreparênteses, lembre-se da crítica que White sofreu da par-te de diversos historiadores que o acusaram de tornar ahistória uma abstração impalpável.3

Vistas em conjunto, com olhar retrospectivo, as diver-sas tendências teóricas aqui apresentadas, embora dife-rentes entre si, têm em comum o fato de procurar desen-volver uma metodologia de análise cujo objetivo éesclarecer a relação entre história e literatura. As imper-feições teóricas ou metodológicas que porventura apresen-tam são, na verdade, percalços desse tipo de análise, istoé, fazem parte do processo de acumulação paulatina deconquistas que vão se corrigindo e aprimorando no própriomovimento que o produz. Como nenhuma teoria oumetodologia por si só pode dar conta de um objeto comple-xo e multifacetado, como é o caso da literatura, faz-se ne-cessária a análise cuidadosa de cada proposição, de cadacorrente ou escola, para que se possam encontrar dispositi-vos válidos que permitam o cruzamento com propostas,

2 Ver também o capítulo 1:“The value of narrativity inthe representation of reality”(White, 1987, p. 1-25).

3 Roger Chartier apresentaum resumo das críticasdirigidas a Hayden White,acrescentando as suaspróprias restrições ao métodoe às conclusões dohistoriador inglês (Chartier,2002, p. 81-100 e 101-116).

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correntes e escolas distintas. As proposições de historiado-res e historiógrafos acima apresentadas e analisadas reve-lam um grande avanço na área de conhecimento que re-presentam, destacando temas que vão da importânciareconhecida da linguagem como matéria de reflexão his-tórica à aproximação discursiva na construção do corpushistórico. Parecem faltar, neste âmbito do debate, questõesque se mostram muito importantes para a teoria da litera-tura e para a literatura comparada, como, por exemplo, omodo como a linguagem estética internaliza os dados his-tóricos e sociais e os torna parte de sua fatura. Ou seja,parece faltar uma reflexão mais detida a respeito das me-diações que articulam e relacionam em profundidade his-tória e literatura, algo que será desenvolvido por uma sériede filósofos atentos para os problemas da forma e da forma-ção.

A busca pela mediação

Em outra raia, podemos identificar um grupo de auto-res que se voltou para o mesmo problema, de um modomais ou menos parecido. Apesar de cada um ter biografiaintelectual própria, eles procuraram compreender a rela-ção entre história e literatura partindo de uma tentativade fundamentá-la teórica e metodologicamente. Para tan-to, dedicaram-se em apurar a noção de forma.

Lembremos primeiramente de Georg Lukács. Toda suaprodução teórica gira em torno desse problema e, levandoem conta as mudanças que seu pensamento sofreu ao lon-go dos anos, observamos que seu sentido foi substancial-mente alterado e depurado, mas não deixou de ser centralem seus trabalhos. Para resumir, vou destacar dois momen-tos nitidamente distintos dessa trajetória.

O primeiro vem impresso em dois livros de juventudeque denunciam a influência da metafísica de Kant, do idea-lismo de Hegel, da sociologia de Weber e do historicismode Dilthey e Simmel (Lukács, 1969; 1999; 2000). Em A

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alma e as formas, Lukács atribui um valor fundamental aoconceito de forma, tornando-o o eixo em torno do qualtodos os ensaios ali reunidos giram: apresenta aspectos efunções diferentes do conceito, mas aponta sempre para atendência que ele tem de estruturar uma totalidade hete-rogênea: “as formas delimitam uma matéria que, se nãofosse por elas, seria como o ar e se dissolveria no todo”(Lukács, 1975, p. 24). Em A teoria do romance, ele procuraaplicar mais precisamente esta concepção à análise do gê-nero, que considera – ao mesmo tempo – uma forçadesagregadora dos gêneros anteriores (que apresentavamuma forma mais coesa) e a estruturação ordenadora dos frag-mentos desses mesmos gêneros (que foram internalizados peloprocesso de transformações históricas). Ou seja, a forma li-terária apresenta a organização estruturada de transforma-ções ocorridas na linguagem e também na história.

Toda forma artística é definida pela dissonância metafísicada vida que ela afirma e configura como fundamento deuma totalidade perfeita em si mesma; o caráter de estadode ânimo do mundo assim resultante, a atmosfera envol-vendo homens e acontecimentos é determinada pelo peri-go que, ameaçando a forma, brota da dissonância não ab-solutamente resolvida (Lukács, 2000, p. 71).

Nota-se neste fragmento a dívida metafísica e idealis-ta de Lukács: primeiro na linguagem que evita terminolo-gias materialistas, definindo seu campo de análise comconceitos mais abstratos e difusos como “vida” e “mundo”no lugar de “história”; e “atmosfera” no lugar de “relaçõessociais”; segundo, ao determinar que é a forma artísticaque configura e conforma a história, imprimindo-lhe umaforma, ou seja, tornando-a uma forma. Nem por isso eledeixou de perceber que qualquer alteração ou variação daforma interna da obra literária é uma manifestação (emnível estético) de características precisas (embora apanha-das em sua forma abstrata) das transformações históricas.

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A estrutura descontínua do mundo exterior repousa emúltima instância no fato de que o sistema de idéias exercesomente um poder regulativo sobre a realidade. A incapa-cidade de as idéias penetrarem no seio da realidade faz des-sa última um descontínuo heterogêneo e, a partir dessamesma proporção, cria para os elementos da realidade umacarência de vínculo.O processo segundo o qual foi concebida a forma internado romance é a peregrinação do indivíduo problemáticorumo a si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro narealidade simplesmente existente, em si heterogênea evazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoco-nhecimento (Lukács, 2000, p. 81-82).

O mundo histórico apresenta, portanto, uma forma,que se mostra heterogênea e cuja lógica só poderá ser com-preendida mediante a ação da consciência do indivíduo.Mas esse indivíduo é, por sua vez, carente de unidade, oque torna fragmentado e abissal todo o universo interior eexterior à consciência. O romance, não sendo capaz desuperar essa fragmentação heterogênea, a incorpora e atorna forma interior. Vemos que a concepção idealista seconfirma nessa citação, mas apresenta de maneira inequí-voca o nível superior e abstrato do vínculo indissolúvel entreo mundo extrínseco e o mundo intrínseco à forma do ro-mance.

Esta última limitação do pensamento do jovem Lukácsserá superada aos poucos e o motivo da mudança será aconstrução de um pensamento materialista por parte dofilósofo. Em História e consciência de classe, Lukács apreen-de a ideia marxista de que a história – ela mesma – é for-ma. Para Karl Marx, as relações sociais historicamente cons-tituídas se orientam pela forma da contradição, forma essaque se manifesta nos vários estratos da história: nos modosde produção, nas relações que daí advêm, no aparelho ideo-lógico, nas manifestações artísticas e culturais etc.4 Umadas características facultativas dessa noção materialista deforma é que sua contradição se mostra interior a ela mes-

4 Uma análise resumida einteligente desta concepçãoé desenvolvida por Kosik(1976, p. 9-20, 33-58 e 139-168).

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ma, e, logo, sua transformação é ativada por forças que aconstituem. Outra característica é que a forma – no atode se formar e se transformar – oculta o processo que aconstitui, daí ela se apresentar como um fetiche.5 Enten-dendo a história como forma nesses termos, Lukács procu-rará então analisar uma de suas formações fetichizadas: aobra de arte.

A partir daqui, podemos identificar duas tendênciasno pensamento lukacsiano. Uma delas é aquela que traçaconceitos e métodos de análise mecanicistas, que procu-ram estabelecer uma relação direta e causal entre proces-so histórico-social e obra literária e, ao mesmo tempo, apre-sentar uma série de prescrições artístico-filosóficas quedeveriam ser adotadas pelos escritores para que eles nãoreproduzissem, como forma literária, a forma fechitizadada alienação das sociedades modernas. Segundo HelgaGallas, essa concepção não surge em Lukács por causa domarxismo propriamente dito, mas por causa do contato queo filósofo estabeleceu com a Federação de Escritores Pro-letários-Revolucionários de Moscou nos anos 1930: junta-mente com a FEPR, Lukács ajudou a elaborar as diretrizesdo “realismo-socialista”, a partir das quais escreveu umasérie de artigos de análise e julgamento de obras literárias(Gallas, 1977, p. 15-24 e 90-96). Esses artigos se encon-tram reunidos em diversos livros, como Ensaios sobre litera-tura, Marxismo e teoria da literatura e Realismo crítico hoje. Aoutra tendência aparece no velho Lukács, quando ele di-minui um pouco a voltagem dogmática dos ideais marxis-tas, misturando-os com a flexibilidade de uma reflexão maisarejada, menos ideologizada, que tinha na juventude. Essaconcepção aparece em livros como Goethe e sua época, In-trodução a uma estética marxista e, principalmente, Estética:a peculiaridade do estético, a obra que vai coroar sua trajetó-ria intelectual. Nos quatro volumes dessa obra – um delesvoltado inteiramente à literatura –, Lukács apresenta umainvestigação minuciosa a respeito de como a obra de arteliterária internaliza a forma histórica, isto é, a forma das

5 Em O capital, Marxdesenvolve essa teoriaquando analisa ametamorfose do trabalho emmercadoria, da mercadoriaem dinheiro e de tudo emforma simbólica. A análisechega ao ponto maisdecantado no capítulo “Ofetichismo da mercadoria:seu segredo” (Marx, 1996, p.79-93). Lukács se inspiranesses textos paradesenvolver sua própriateoria em “A reificação e aconsciência do proletariado”(Lukács, 1981, p. 97-231).

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relações sociais historicamente produzidas: “o caráter ele-mentar da mimesis, anterior a toda atividade artística, seencontra entre os fatos da vida” (Lukács, 1972, v. 2, p. 30).Para ele, a forma literária apreende e organiza uma formaque já existe, criando um reflexo, não entre a história e aliteratura, mas entre as afinidades e dissonâncias inscritasna essência e na aparência dessas duas esferas.

Outro filósofo que se dedicou ao tema foi Walter Ben-jamin, que, embora trilhando um caminho diferente, che-gou a conclusões semelhantes às de Lukács. O problemada forma aparece amadurecido em Benjamin também emum texto de juventude, no qual ele parte do idealismocrítico de Fichte, segundo o qual a forma aparece e seefetiva no ato de conhecimento orientado pela reflexão:“[Fichte] determina a reflexão como reflexão de uma for-ma, demonstrando, desta maneira, a imediatez do conhe-cimento dado nela” (Benjamin, 1993, p. 31). Ou seja, areflexão sobre a forma nasce nela e dela, pois a forma apre-senta em ato a possibilidade de pensá-la.

A partir daí, Benjamin procura mostrar que os pressu-postos gnosiológicos da filosofia fichiteana inspiraram a ideiade forma poética desenvolvida pela primeira geração ro-mântica na Alemanha, como foi explicitado por um dosmais importantes representantes dessa escola: “Seria bempossível que Fichte fosse o inventor de uma espécie novade pensar. Podem nascer aqui prodigiosas obras de arte, seum dia se começar a praticar artisticamente o fichitizar”(Novalis, 1988, p. 111). Voltando às ideias de Benjamin, aforma tem uma estrutura intrincada cujos passos revelam oato contínuo da reflexão, que se desdobra e se completano ato de autorreflexão:

O Eu põe-se (A), contrapõe-se na imaginação um Não Eu(B). A razão intervém e a determina a acolher B no Adeterminado: mas então A, posto como determinado, temde ser mais uma vez delimitado por um B infinito, com oqual a imaginação procede exatamente como acima; e as-sim prossegue até a determinação completa da razão por si

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mesma, quando não é preciso mais nenhum B delimitantefora da razão, isto é, até a representação do representante(Benjamin, 1993, p. 33).

Transposta para o domínio da arte, essa concepção deforma consiste em construir dois movimentos distintos ecomplementares: a forma literária consiste numa unidadetensa, mas indissolúvel, na qual expressão e reflexão sobrea expressão se efetuam incessantemente. A forma artística,portanto, apresenta, segundo Walter Benjamin, a unidadeda contradição, que se constitui num movimento de refle-xão contínua e infinita. Nos termos de hoje, seria o que acrítica literária se acostumou a chamar de “metalinguagem”,mas esse termo não representa bem o que essa noção signifi-ca para os românticos, nem para Benjamin. Ele recorre aFriedrich Schlegel, principal ideólogo do romantismo ale-mão, para quem a forma artística representa a reunião detodas as formas e, ao mesmo tempo, reflete sobre si mesmacomo tal:

A poesia romântica é uma poesia universal progressiva.Sua determinação não é apenas a de reunificar todos osgêneros separados da poesia e estabelecer um contato dapoesia com a filosofia e a retórica. Ela também quer, e deve,fundir às vezes, às vezes misturar, poesia e prosa, genialida-de e crítica, poesia artística e poesia natural, tornar a poe-sia sociável e viva, fazer poéticas a vida e a sociedade, poe-tizar a espiritualidade, preencher e saturar as formas daarte com toda espécie de cultura maciça, animando-as comvibrações do humor (Schlegel, 1994, p. 99).

Por isso Benjamin fala em autorreflexão da forma enão em metalinguagem, porque a forma que a forma lite-rária “reflete” (no duplo sentido de representação de algoe meditação sobre a representação de algo) é a forma domundo. Por isso podemos dizer que Benjamin atribui à obraliterária uma interioridade complexa: ela apresenta umacontradição formal que garante a inteligibilidade de suaautonomia, mas também – e ao contrário – ela decanta a

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forma da contradição do mundo, demonstrando ter umarelação intrínseca (ou melhor, uma relação formal) comele.

Reconhecer a interioridade complexa (dialeticamentecontraditória e relativamente autônoma) da forma literá-ria é fundamental para entendermos as ideias estéticas deBenjamin, mas não esgota o problema aqui investigado.Em Origem do drama barroco alemão, ele reaparece e ajus-ta melhor os termos de comparação que aqui interessa es-pecificar. Nessa tese, Benjamin procura analisar o proble-ma da interioridade complexa da forma a partir da noçãode alegoria: “a dialética da convenção e da expressão é ocorrelato formal da dialética do conteúdo. A alegoria é asduas coisas, convenção e expressão, e ambas são por natu-reza antagonísticas” (Benjamin, 1984, p. 197). A forma dacontradição é a forma alegórica do barroco – isso é fácilconstatar –, no entanto, a questão elevada do problemanão está aí, mas em saber o que produz essa forma:

A história filosófica é a forma que permite a emergência, apartir dos extremos mais distantes e dos aparentes exces-sos do processo de desenvolvimento, da configuração daidéia, enquanto Todo caracterizado pela possibilidade deuma coexistência significativa desses contrastes (Benja-min, 1984, p. 69).

Assim, o que observamos nos escritos de Walter Ben-jamin é a constatação de que a forma do barroco, baseadano arranjo de contrastes, contradições e antíteses, é o ex-trato da forma histórica. Logo, o processo que inter-relacio-na história e literatura não é um paralelismo entre os acon-tecimentos e a sua configuração no âmbito da arte, masum processo que internaliza uma forma (histórica) na ou-tra (estética). A virtualidade dessa construção é reveladapor Benjamin com um engenho muito sutil, cuja com-preensão exige uma educação no estilo de pensamento dofilósofo: para analisar as implicações e as metamorfoses daforma alegórica, Benjamin desenvolve um método alegóri-

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co de exposição, isto é, ele não desenvolve seu pensamen-to de maneira conceitual, mas por meio de alusões e ima-gens. Um dos momentos mais intrincados de sua análise –e que se refere às relações profundas entre forma históricae forma artística – é apresentado assim: “As alegorias sãono reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino dascoisas” (Benjamin, 1984, p. 200). Segundo essa ideia, aruína tem uma importância maior para o historiador por-que ela não só presentifica o passado como mostra o que opresentifica: o tempo. Mas ao fazê-lo, ao presentificar opassado, o tempo o corrói, o transforma em restos, e sãoesses restos que são presentificados. Mas Benjamin vai maislonge, pois compara a ruína à alegoria, o que mostra queseu objetivo não era somente refletir sobre a história, mastambém refletir sobre a arte. Assim – e se não há enganode minha parte –, ao inferir que a alegoria representa noreino da arte o que a ruína representa no reino da história,Benjamin deu dois passos: primeiro, no terreno específicoda estética, mostrando que o sentido artístico não estáevidente na obra, mas oculto, porque sua expressão – aquiloque é desentranhado dos interstícios da linguagem e semanifesta à consciência crítica – passou por um processode rasura, um processo de corrosão, que oblitera o sentidoexplícito das formas: por isso, a alegoria nunca é evidente;segundo, no terreno filosófico, mostra que a forma artísticase assemelha à forma histórica porque ambas ativam umprocesso homólogo de corrosão e ocultamento do sentidopleno. Deste modo, podemos dizer que Benjamin encami-nha e aprofunda o sentido de fetichização do mundoextrínseco e intrínseco da arte, tal como vislumbrado porLukács.

Se observarmos a produção teórica e crítica de WalterBenjamin, poderemos notar como ele desdobra essa noçãoao mesmo tempo materialista e alegórica de forma em ou-tras tantas situações: na estrutura narrativa que internalizaa desagregação da unidade da consciência e das relaçõessociais; no processo infinito de produção imagética no mo-

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mento de reorganização dos meios de produção capitalis-ta; no realinhamento da notação lírica no contexto de trans-formações econômicas e sociais etc. (Benjamin, 1987, p.114-119, 197-221 e 165-196; 1988, p. 21-120 e 123-170).

Esses questionamentos perpassam o pensamento deTheodor W. Adorno, para quem a forma é uma determina-ção própria do mundo, a qual o pensamento só consegueapreender e refletir se considerá-la como forma do próprioato de pensar. Adorno renega a dialética hegeliano-mar-xista – “uma dialética que reduz tudo o que cai em seumoinho à forma pura da lógica da contradição” (Adorno,1984, p. 14) – e advoga em favor de uma dialética negati-va, “que procura desfazer a rígida estrutura dicotômica edeterminar cada pólo como componente de sua própriaantítese” (Adorno, 1984, p. 143). A forma da contradiçãosem síntese (a forma própria do mundo objetivo, forma pro-duzida pelas relações histórico-sociais) deve ser apropria-da pelo pensamento de tal modo que se estruture comoforma própria do pensar. Essa mesma determinação é trans-posta para o âmbito da arte:

A forma [artística] funciona como um magneto que orde-na os elementos da realidade empírica de um modo queprovoca estranhamento às conexões de sua existência ex-tra-estética e só através disso eles podem se apoderar desua essência extra-estética (Adorno, 1988, p. 336).

Em seu estudo sobre as transformações da lírica, Ador-no insiste nessa feição ambígua da forma literária e adver-te contra aquilo que Lucien Febvre, por exemplo, afirmavaser o objetivo de uma análise histórico-social da literaturae que Raymond Williams praticava em suas análises, esca-pando também da contra-argumentação de GerardGenette: “o procedimento [de análise] deve ser, conformea linguagem da filosofia, imanente. Conceitos sociais nãodevem ser trazidos de fora para dentro das formações líri-cas, mas absorvidos na intuição delas mesmas” (Adorno,1993, p. 39). Assim, a configuração histórico-social pre-

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sente na literatura deve se manifestar como instância in-terior, ou seja, propriamente literária. Mais ainda, Adornoprocura especificar o elemento estruturador responsável pelamediação existente entre história e literatura, atribuindo essepapel à linguagem:

A linguagem é algo duplo. Através de suas configuraçõesela se molda às emoções subjetivas, fazendo-as brotar eamadurecer. Mas, por outro lado, ela continua sendo o meiodos conceitos, restabelecendo a referência irrenunciávelao universal e à sociedade (Adorno, 1993, p. 43).

A linguagem, portanto, é o dispositivo que estruturainternamente a obra, e o faz de tal modo que torna os fato-res extrínsecos imanentes a ela. A relação entre história eliteratura se realiza plenamente na medida em que a lin-guagem cumpre esse papel de mediação. Neste ponto,Adorno se aproxima dos outros pensadores aqui lembra-dos, todos procurando avaliar as vibrações no plano da or-ganização estética como uma estratégia que internaliza aessência de uma formação histórico-social.

Alguns estudiosos da obra de Adorno comungam aopinião de que sua concepção de forma atinge o grau má-ximo de validade nos estudos sobre música (Duarte, 1997,p. 85-107; Gómez, 1998, p. 61-80; Paddison, 1993, p. 121-162). Segundo Adorno, a forma musical configura de ma-neira mais abstrata – ou seja, de uma maneira em que alinguagem adota um caráter essencialmente artístico –a forma histórica. É o que ele defende ao mostrar como asofisticação da composição dodecafônica levou a músi-ca a uma aporia, pois ela não encontraria mais espaço paraa fruição num ambiente dominado pela secularização dosbens artísticos tal como foi perpetrado pela indústria cul-tural. Assim, a música ficou encurralada entre dois impasses:de um lado, a fragmentação da estrutura musical (tal comocriada por Schoenberg) parece decalcar a fragmentação ea alienação da consciência crítica no auge do capitalismo;de outro lado, a restauração dessa estrutura (tal como apa-

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rece nas composições de Stravinski) leva a um estreitamentoque facilita a fruição para as consciências alienadas. Aforao pessimismo adorniano (uma marca de seu pensamento),chamo atenção para o seu método de análise (outra mar-ca): “Trata-se de um procedimento imanente: a exatidãodo fenômeno num sentido que se desenvolve somente noexame do próprio fenômeno” (Adorno, 1989, p. 31).

Todo o debate a respeito de como a forma literáriainternaliza e especifica uma forma histórico-social leva auma questão básica na teoria da literatura e da arte: oproblema da mimese. Para melhor compreendê-la de modobastante delimitado, isto é, atendendo aos interesses apre-sentados e discutidos neste artigo, recorro aos escritos dofilólogo Erich Auerbach, um crítico que não se filiava anenhuma vertente marxista, como os outros, mas que con-servava a mesma noção materialista de forma estética. Suanoção de forma se mistura com as de mimese e estilo, masisso serve para apreender melhor o processo pelo qual arealidade extra-artística é transfigurada para se tornar rea-lidade artística. É preciso enfatizar dois pontos. Primeiro,que mimese e estilo correspondem a uma adequação entrea escrita e a história, numa inter-relação na qual ocorre aapuração dos dados escolhidos (portanto, não é a realida-de como um todo que entra na fatura da obra, mas algunsaspectos determinados que são internalizados de modo ase constituírem como um todo organizado). Segundo, quenão existe um único modo de mimetizar ou estilizar a rea-lidade e cada modo corresponde a uma disciplina de escri-ta particular. Na junção desses dois aspectos está a vanta-gem da concepção de Auerbach a respeito da relação entreprocesso social e constituição estética da literatura:

A vida política, econômica e social entrou na literatura,em toda sua extensão e com todos os seus problemas; tra-ta-se da vida contemporânea e atual não na forma genera-lizadora e estática, mas como um conjunto de fenômenosapresentados com suas causas profundas, sua interdepen-dência, seu dinamismo. [Foi] portanto [assim] que se rea-

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lizou a mistura dos gêneros na sua forma moderna. Essamistura me parece a forma mais importante da literaturamoderna; acompanhando de perto as rápidas transfor-mações de nossa vida, abrangendo cada vez mais a totali-dade da vida dos homens sobre a Terra (Auerbach, 1972,p. 243).

Essa citação sintetiza aqueles dois aspectos aponta-dos anteriormente: a realidade histórica é compreendidacomo ampla, heterogênea e complexa; o modo como ela éinternalizada em uma determinada obra literária, tor-nando-se, portanto, manifestação do belo artístico(Auerbach, 2000, p. 341-356; Adorno, p. 81-84, 98-100),exige que seja disciplinada (ela é internalizada, portan-to, como forma). O resultado das reflexões de Auerbachse mostra muito complexo e igualmente rico: a realidadehistórico-social apresenta uma estrutura heterogênea,coerente e contraditória em si mesma; o processo de re-construção mimética supõe a abstração e apreensão des-sa estrutura, cujo resultado artístico se conforma em umestilo mesclado (Auerbach, 1971, p. 345-377). Em outraspalavras, assim como a história se constitui a partir deelementos díspares, assim o estilo de uma obra os repro-duz como tal. Neste ponto, Auerbach se aproxima muitodas conclusões do jovem Lukács, embora sem o pendormetafísico e idealista que marcou o pensamento desteúltimo.

Na verdade, todos esses autores, embora partindo deprincípios distintos, chegaram a conclusões mais ou menosparecidas. Isso assim ocorreu porque eles perseguiam umobjetivo semelhante: compreender as relações intrínsecasentre formação histórica e estilização da linguagem comoforças capazes de se formarem mutuamente, isto é, uma àoutra. Ou seja, a dicotomia extrínseco/intrínseco perdeforça e sentido, pois esse par aparece amarrado numadialética em que um e outro se traspassam mutuamente. Épreciso destacar ainda que a perspectiva metodológica tam-bém aproxima esses pensadores: no lugar de trabalhar com

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conteúdos prontos, eles se esforçaram em tentar descobriro processo que os constitui, focando o interesse nos ele-mentos estruturadores das duas instâncias (história e lite-ratura). Assim, a análise se encontra centrada nos proble-mas advindos do próprio movimento da análise, percebendo,ou procurando perceber o mais claramente possível, as co-nexões mediadoras que organizam de maneira escolhida ométodo crítico.

Considerações finais

Embora a literatura comparada tenha uma história mui-to longa, ao ponto de dificultar a datação de seu início,alguns estudiosos situam seus primórdios no século XVIII(Wellek, 1976, p. 53-62; Kaiser, 1989, p. 35-66; Carvalhal,2003, p. 89-107). O fato é que somente no decorrer doséculo passado esse campo de estudo adquiriu notabilida-de como disciplina acadêmica e área de conhecimento.Todavia, sua institucionalização científica acarretou umparadoxo que merece ser discutido: se por um lado a lite-ratura comparada adquiriu um corpus conceitual emetodológico específico, por outro, cada vez mais, fez usodo corpus conceitual e metodológico de outras disciplinas.Longe de ser uma contradição que enfraqueça suacredibilidade científica e acadêmica, esse aspecto a tornamais consistente como área de conhecimento, uma vez quepermite que sua interação epistemológica se diversifique ese renove constantemente. Mais que isso: o fato de os es-tudiosos da literatura comparada se apropriarem de teo-rias e métodos de outras disciplinas reforça o caráterinterdisciplinar ou multidisciplinar que a análise requer erevela que esses estudiosos não se acomodaram em colherum ou outro aspecto das disciplinas vizinhas, mas se dedica-ram ao seu conhecimento profundo e seu uso consciente.

Por outro lado – outro lado do mesmo processo aquianalisado –, também houve por parte dos estudiosos dahistória e da historiografia uma flexibilidade epistemológica

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semelhante: desde o momento em que Hegel rompeu coma ideia de que ao historiador cabia apenas o exame dedocumentos que atestassem a veracidade de um fatoempírico e propôs uma atitude reflexiva diante desses fatos(Hegel, 2001), os estudos históricos começaram a adquiriruma forma mais aberta e pluralista. As conquistas obtidaspela escola dos Annales rotinizaram essa aquisição, e a in-clusão de novos objetos e perspectivas teórico-metodológicasaproximou a historiografia dos estudos culturais. Esse foium dos pontos de convergência entre a história e a litera-tura, mas não foi o único. Como vimos, existem outros ter-mos de mediação, dentre os quais foi destacada a lingua-gem: é por meio da linguagem que a literatura se firmacomo tal, e ela não pode ser compreendida somente comoalgo intrínseco à fatura estética de uma obra; ela, a lin-guagem, é forma, e aquilo que ela representa – a realidadehistórico-social – é também, por sua vez, forma. A media-ção entre essas duas formas é o que garante a especificidadeambígua da literatura comparada como área de conheci-mento, distanciando-a do esteticismo puro e do culturalismoaplicado.

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História híbrida da literatura:uma questão de gêneros

Biagio D’Angelo*

RESUMO: Há algumas décadas, nota-se, nas manifestações cul-turais contemporâneas, a insistência para uma redução das fron-teiras entre os esquemas tradicionais de taxonomia dos gênerosliterários. A consequência inevitável dessa diluição das fron-teiras é o fortalecimento do hibridismo como necessidade derenovação cultural perante os novos paradigmas estéticos. Ahistória da literatura hoje não pode desconsiderar a convivên-cia desses fatores heterogêneos que renovam não apenas oparadigma historiográfico, mas também o próprio cânone tra-dicional de textos nacionais, continentais e universais.

PALAVRAS-CHAVE: fronteiras literárias, hibridismo, história daliteratura, taxonomias, evolução.

ABSTRACT: For a few decades, a strong tendency on a reductionof the boundaries between literary genres can be observed withthe rupture of traditional schemes in cultural manifestations.The inevitable consequence of such a dilution of boundaries isthe strengthening of hybridism as a necessity for a culturalrenovation before the new aesthetical paradigms. Today historyof literature cannot ignore the co-existence of theseheterogeneous factors that renew not only the paradigm ofhistoriography but also the traditional canon of national, con-tinental and universal texts as well.

KEYWORDS: literary boundaries, hybridism, history of literature,taxonomies, evolution.

“Tudo funciona por contaminação”(Bernardo Carvalho, O sol se põe em São Paulo)

“Um homem distinto é um homem misturado”(Montaigne, Essais)

* Professor Doutor deLiteratura Comparada doPrograma de Pós-Graduação:Literatura e Crítica Literáriada Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo(PUCSP).

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Misturas e contaminações

A ambiguidade do termo e do conceito de “história”nos processos literários tem sido posta em evidência porAntoine Compagnon, que, no seu Demônio da teoria, escre-ve: “A história designa ao mesmo tempo a dinâmica da lite-ratura e o contexto da literatura. Essa ambigüidade se refe-re às relações da literatura com a história (história daliteratura, literatura na história)” (Compagnon, 2006, p. 197).Há algumas décadas, nota-se, nas manifestações culturaiscontemporâneas, a insistência para uma redução das fron-teiras entre os esquemas tradicionais de taxonomia dos gê-neros literários. A consequência inevitável dessa diluiçãodas fronteiras é o fortalecimento do hibridismo como neces-sidade de renovação cultural perante os novos paradigmasestéticos, além da presença de olhares multiperspectivos,como a cultura de massa, a renovação dos processos daoralidade, a inclusão dos procedimentos hipertextuais.

A história da literatura hoje não pode desconsiderara convivência desses fatores heterogêneos que renovamnão apenas o paradigma historiográfico, mas também opróprio cânone tradicional de textos nacionais, continen-tais e universais. Esses elementos heterogêneos funcio-nam como propostas desfamiliarizantes, no sentido que osformalistas deram a essa noção. Assim, o texto “se carac-teriza por um deslocamento, uma perturbação dosautomatismos da percepção” (Compagnon, 2006, p. 208).Todo o sistema literário, inerente ao texto, é sacudido, e comele o processo histórico que o envolve: “A descontinuidade(a desfamiliarização) substitui a continuidade (a tradi-ção) como fundamento da evolução histórica da literatu-ra” (Compagnon, 2006, p. 208). Nesse sentido, vale maispensar na “descontinuidade” de uma obra literária quenão na sua “permanência”, contradizendo assim a ideiahistoricista de um progresso linear da obra de arte: “Ahistória literária não é mais o relato rarefeito do auto-engendramento das obras-primas nem uma tradição de

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formas que se perpetuam de forma idêntica ao longo dosséculos” (Compagnon, 2006, p. 209). A história da litera-tura se produz também por meio daqueles textos que paro-diam e dialogam com textos anteriores, retirando, das fron-teiras discursivas, o fio de novos paradigmas, amiúdetransgressivos.

A América Latina, por exemplo, propõe-se como lu-gar de produção de conhecimento híbrido por natureza,pois os gêneros literários têm alcançado aqui uma funcio-nalidade inovadora nos processos culturais. Nesse senti-do, é interessante repensarmos novas aberturas para ocomparatismo latino-americano a partir da discussão sobreo “latino”-americano como espaço e discurso insuficiente àabrangência dos discursos da atualidade. Parece-nosindispensável reler figuras como Haroldo de Campos eOctávio Paz, e romper as marcas “latinas” de um continen-te que é plural, marcado pela heterogeneidade, peloplurilinguismo, pelos movimentos utópicos, pelas conexõescom África e Oriente.

Os debates atuais sobre a globalização, o multicultu-ralismo, o transnacional e as migrações tornaram indispen-sável retomar a discussão sobre a vivacidade da multiplici-dade narrativa, etnográfica, antropológica e epistemológicadas Américas. Digo “das Américas”, e não apenas “daAmérica”, pois as narrações e as fábulas investem vertical-mente todo um mapa geopolítico. A recuperação das fábu-las como expressão de uma força ficcional e intelectual“americana” representa a tentativa de romper as barreirase os limites com os quais estão sendo lidos e interpretados,culturalmente e ideologicamente, o Norte, o Centro e oSul da América.

É com razão que Pierre Rivas enfatiza o caráter inova-dor da literatura latinoamericana: “A literatura estrangei-ra, em particular a dos países emergentes (Índia, AméricaLatina, África, Caribe) dá sentido à vida e à imaginação”(Rivas, 2008, p. 52). De fato, o espaço simbólico america-no não é apenas ficcional: ele é, sim, ficcional, mas tam-

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bém nele se reescrevem doutrinas, pensamentos, estudosantropológicos, debates etnográficos.

O continente latino-americano se configura como umespaço real e alegórico, ao mesmo tempo, pois as socieda-des tradicionais deixam espaço à constituição de “comu-nidades interliterárias”, conforme a intuição de TâniaCarvalhal, sistemas plurais por definição e por natureza –geográfica, política, cultural, artística. Noções como a ideiade literatura nacional ou como o espaço da tradição oral edo literário devem ser examinadas em uma articulação nãonacional: “Cada literatura nacional pode tornar-se, ao longode seu desenvolvimento histórico, um componente de vá-rias comunidades interliterárias, não se constituindo essasem sistemas fechados ou invariáveis” (Carvalhal, 2003, p.84-85).

A exigência de reconsiderar tanto as narrativas quantoas nações demonstra amplamente a vivacidade e a impor-tância dos estudos comparados sobre o continente ameri-cano. Os problemas e as questões que se formulam, háalgumas décadas, sobre a necessidade de superar os obstá-culos geográficos e históricos do continente, configuram,hoje, um panorama da dispersão e do ainda insuficienteconhecimento recíproco cultural e literário. A literaturacomparada permite ressimbolizar os obstáculos e as distân-cias, isto é, reunir e discutir a heterogeneidade america-na, cuja mobilidade de questionamentos e discursos seencaminha, cada vez mais intensamente, para práticastransdisciplinares múltiplas e críticas.

A proposta de heterogeneidade, que Antonio Cornejo-Polar considerou como o elemento “estável” da latino-americanidade, leva a uma redefinição de nação e identi-dade, a uma ressignificação dos confins planetários, umareescrita utópica, impossível; um “espaço (que) é simulta-neamente explorado e constituído, re-achado por sua me-tamorfose em lugar de uma procura” (Moura, 2007, p. 195).América Latina se transforma, assim, em um território plu-ral, global. Mas também em uma “identidade múltipla” –

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conforme a proposta de Edouard Glissant –, uma tradição“diversa”, incompleta, em discussão contínua, aproximati-va, na qual “as etnias e as culturas coexistem sem efetiva-mente interpenetrar-se” (Glissant, 2005, p. 50).

O Mundo treme, se criouliza, isto é se multiplica, mistu-rando as florestas e seus mares, seus desertos e seus blocosde gelo, todos ameaçados, trocando e mudando seus costu-mes e suas culturas e aquilo que, no passado, chamávamosainda as suas identidades, na grande maioria hoje massa-cradas (Glissant, 2005, p. 75).

O discurso de Glissant busca as orientações básicaspara sistematizar uma cultura “nacional” – talvez liminarcomo aquela caribenha ou martinicana – a favor de umamudança de percurso.

O continente latino-americano tem cooperado paraobservar a história da literatura enciclopedicamente – comoqueriam Borges e Valéry – como “história do espírito pro-dutor e consumidor”, sem que seja mencionado um únicoescritor.

Lembrando a posição crítica de Bakhtin, segundo oqual cada ato autenticamente criador “evolui em frontei-ras” (Carvalhal, 2003, p. 153), Tânia Carvalhal abre umensaio lucidamente dedicado às fronteiras da crítica comoproblemática sempre atual dos estudos literários e cultu-rais. Poderíamos tratar aqui as fronteiras segundo uma de-terminação geográfica ou política, ou ainda como ferra-menta de distinção exemplar, rígida, “extrema” entre doisou mais campos, que se constituem, portanto, a partir desuas diferenças. Todavia, nesse âmbito, retomar-se-á o ter-mo “fronteira” em sua acepção de margem, de orla, de li-nhas de demarcação que se sucedem ou que se cruzam,isto é, retomaremos o espaço de pertença às fronteiras nãonas suas divisões, mas naquilo que elas propõem de co-mum e coincidente, embora, talvez, divergente.

A “fronteira”, nesse sentido, é (e não apenas simboli-camente) um meio que a literatura comparada e a história

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da literatura têm à disposição para a análise e a atuaçãode objetos textuais, cuja diversificação representa a varia-bilidade do gesto literário e cultural. Tânia Carvalhal temrazão quando afirma que “aos poucos torna-se mais claroque literatura comparada não pode ser entendida apenascomo sinônimo de comparação” (Carvalhal, 1986, p. 5). Sefosse a comparação entre dois objetos ou se fosse dado ex-cessivo espaço à natureza do “sinônimo”, constataríamosque a disciplina – que já não admite uma orientação únicaa ser seguida, mas propõe, às vezes, sem suficientes justifi-cações, um arriscado “ecletismo metodológico” – seria re-duzida a uma perigosa dicotomia, a um binarismo lamen-tável para os estudos literários. Estudar e debater a figuraalegórica da “fronteira”, especialmente dentro da signifi-cação que ela adota na conformação dos gêneros literári-os, constitui uma reflexão fundamental sobre a compara-ção literária. Para Tânia Carvalhal, o fazer da literaturacomparada coincide com

um procedimento mental que favorece a generalização oua diferenciação. É um ato lógico-formal do pensar diferen-cial (processualmente indutivo) paralelo a uma atitudetotalizadora (dedutiva). Comparar é um procedimento quefaz parte da estrutura do pensamento do homem e da orga-nização da cultura (Carvalhal, 1986, p. 5).

Esse processo, que envolve a ação da contemporanei-dade do crítico comparatista, é revelador de desierarqui-zações dos elementos do sistema literário, sem deixar deser, justamente por causa disso, fator de enriquecimento elugar de discussão de dados e noções estancadas e sembrilho. De acordo com a leitura crítica de George Steiner,Tânia Carvalhal detalha o que deveria se compreenderhoje com o termo “fronteira”, em uma passagem do textoem que as orientações da literatura comparada configu-ram as posturas epistemológicas da crítica contemporânea.

Falar em fronteiras significa aqui ocupar-se com o como, osmodos por meio dos quais uma determinada atuação críti-

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ca torna-se ela mesma híbrida, apropriando-se de recur-sos de uma e de outras orientações, levadas pela naturezados textos, que as solicita. Falar em fronteiras implica, so-bretudo, uma postura adotada pelo leitor crítico, que con-fronta, contrasta, que lê nos limites, nas bordas, nas vizi-nhanças (Carvalhal, 2003, p. 171).

O fenômeno literário manifesta-se por meio de partesintegrantes e atuantes na construção da atividade do ima-ginário: discurso, ficção, narratividade, poética, estilo, te-mas e o texto por sua natureza representam, na síntese deCesare Segre, os pontos convencionais da experiência dacomunicação literária. Os gêneros, que, por muito tempo,a história da literatura considerou como modelos fixos,extremamente coesos e, sobretudo, impenetráveis, partici-pam, com pleno direito, dessa “experiência” de “regras” doliterário. Seria impensável uma teoria dos gêneros, hoje,sem referir-se a eles como um organismo vivo, produtor ereprodutor de canalizações estéticas diferentes. Os gêne-ros literários configuram-se como estruturas taxonômicasque – incorporando-se a um espaço cultural que se pre-tende global e, ao mesmo tempo, fragmentado – funcio-nam como resultantes dinâmicas e como geradores de novasrealidades. Como afirma Tânia Carvalhal, referindo-se àprodução sul-rio-grandense que experimentou na própriapele a simbolização do fronteiriço, por meio da literaturade Érico Veríssimo, Ivan Pedro Martins, Brasil Dubal, Si-mões Lopes Neto e Ricardo Güiraldes, a “fronteira” geo-gráfica interfere com o efeito do gênero no pensamento ena escolha da filiação estética: “os efeitos de representa-ção da realidade em zona fronteiriça” resultam ser, portan-to, “recursos dessa ordem que asseguram a formação dosconjuntos supranacionais” (Carvalhal, 2003, p. 158). Pen-semos, por exemplo, no questionamento da identidade re-gional na América Latina e da co-presença de um espaçode fronteiras rico de convergências, diversidades e incom-preensões, como o descrito em Radiografia do pampa porEzequiel Martinez Estrada em 1933. Nesse pampa, cuja

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regionalização concerne a múltiplos lugares de diferentessoberanias nacionais, a fronteira entra em crise e, com ela,o gênero do ensaio, que começa a perder a aura de objeti-vidade suprema para refugiar-se num sentimento de pessi-mismo e de solidão, que perdurará por muito tempo aindanas letras latino-americanas. Trata-se de uma marca cons-tante, um fio invisível que “desvela” mitos e ficções, heróise deformações históricas (um exemplo que vale por todos:Cem anos de solidão, de Garcia Márquez). Em outras pala-vras: a fronteira geográfica influencia o próprio gênero li-terário, que se torna, ele mesmo, fronteiriço. EscreveGregorio Weinberg na introdução à obra do ensaísta ar-gentino:

¿estaban fundidos, confundidos o apenas entreverados, elindio, el gaucho, el criollo, el inmigrante?¿Cuál era la re-sultante, el perfil cierto de la Argentina? Interrogantestodas llenas de sentido. La imprevisibilidad, que linda conel pesimismo, atiza la crisis de conciencia; el tema de laidentidad, angustia (Martinez Estrada, 1994, p. XVII-XVIII).

A partir dos conceitos explicados por GuilherminoCésar, Tânia Carvalhal agrega à figura da fronteira umametáfora peculiar por meio da qual exemplifica-se o gostoda estudiosa brasileira pela prática comparatista como ope-ração inventiva e intuitiva: o contrabando. Dos Contosgauchescos, de Lopes Neto, aos contos de Noite de matarum homem, de Sérgio Faraco, Carvalhal propõe uma supe-ração do limite regionalista. Inserindo essas obras em umamais ampla dinâmica, na qual a região do Sul do Brasilestreita fortes vínculos fronteiriços com Argentina e Uru-guai, cria-se assim uma “nova” possível zona de contatosliterários (já que os contatos culturais são evidentes a to-dos). O regional penetra na fronteira do continental, aba-tendo as fronteiras limitadoras dos estados nacionais.

A respeito das fronteiras geopolíticas, é importanteanalisar “os processos de integração de novos espaços”, que,

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sofrendo influxos diversos, permitem observar que “umafronteira não pode existir senão a partir de uma fronteiraoutra, ou seja, que uma fronteira origina outra, como espa-ço de incorporação ao espaço global” (Carvalhal, 2003, p.159). Já que a problematização da fronteira se abre justa-mente em um complexo fenômeno de contextualidade,interdependência e relações culturais, com as quais as fron-teiras integram-se e complementam-se, gostaríamos de re-tomar aqui esse mesmo conceito de Tânia Carvalhal paradiscutir a zona fronteiriça que permeia a conformação dosgêneros literários.

Sabemos o quanto é complexo sublinhar a mesma“genealogia” para literaturas provenientes de diferentessubstratos culturais; a afinidade que o comparatista des-cobre, por exemplo, entre literaturas ocidentais e orientais(veja-se o gênero ficcional do diário nas produçõeseuropeias e latino-americanas de, respectivamente,Lermontov, Bachmann, Arguedas com a escritura do journalintime em Tanizaki) é um terreno fascinante que revela oquanto as regras que subjazem aos códigos dos gêneros sãomaleáveis, porosas e nunca rígidas. “Tudo funciona por con-taminação”, repete com assiduidade o narrador do roman-ce de Bernardo Carvalho, O sol se põe em São Paulo (2007).

Certamente, a “contaminação” descreve o dinamismoda produção literária e, como afirmava já Tynianov, a pas-sagem de temas e motivos de um gênero ao outro, ou oscanais de permeação, as marcas comuns a gêneros distin-tos, constituem a vitalidade autêntica do fazer literário. Acontaminação, além disso, influencia, como é óbvio, a pró-pria personalidade do autor. Utilizando certos materiais eescolhendo lugares específicos do imaginário, o autor mo-difica, renova, inventa gêneros novos (até inconsciente-mente), muda as relações interliterárias e interdisciplina-res, por meio de “alargamentos, restrições, deslocamentos”(Segre, 1985, p. 260). A contaminação “contamina”, pro-pala a saudável epidemia de romper “com as concepçõesfixas, sedentárias”, de tornar “problemático o desenvolvi-

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mento de estratégias unidirecionais e centralizadoras”(Abdala, 2004, p. 11). As articulações propostas por SergeGruzinski, que vê, na heterogeneidade dos processos deconstrução da identidade, a pluralidade e a atualidade do“pensamento mestiço”, indicam que cada identificaçãounitária acaba por ser desrespeitosa do presente e reduz ocontexto histórico-cultural a mera estratégia binária.

Cada criatura é dotada de uma série de identidades, ouprovida de referências mais ou menos estáveis, que ela ati-va sucessivamente ou simultaneamente [...] A identidadeé uma história pessoal, ela mesma ligada a capacidades va-riáveis de interiorização ou de recusa das normas inculca-das (Gruzinski, 2001, p. 53).

É possível substituir o elemento autoral pela taxono-mia dos gêneros para constatar surpreendentemente as si-militudes. Os gêneros se “comportam” da mesma maneira.As condições que eles apresentam poderiam chamar-se de“mestiças”. Mestiçagem e hibridismo vivem tangencialmen-te nos gêneros literários. A “leitura em vizinhança”, quemencionávamos utilizando as palavras de Tânia Carvalhal,consolida uma operação de típica natureza comparatista.Nessa relação entre as margens e as fronteiras,

não há como negar a produtividade da literatura compara-da para a análise de literaturas/culturas próximas e vizi-nhas, cujos processos históricos de formação e consolida-ção, com posterior autonomia, conferem aos seusintegrados uma feição parecida, sem os tornar iguais (Car-valhal, 2003, p. 174).

Os pontos de contato entre fronteiras dos gêneros res-peitam a natureza própria do hibridismo, isto é, não umatotal integração e reabsorção dos elementos em jogo, masuma coexistência no cruzamento, uma predileção mais pelodeslocamento de signos simbólicos do que de uniformida-de. De fato, já Tynianov, nos anos 1930, não concordavacom uma história da literatura linear, mas apostava em um

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desenvolvimento “por saltos”. As novas categorias dos gê-neros nascem justamente dessas fronteiras, talvez inexpli-cáveis, como os desvios, os “erros”, os atalhos casuais, autilização arbitrária dos materiais de conhecimento do autor.Assim, as fronteiras, por meio da porosidade estrutural comque se apresentam, evitam a automatização do literário e orenovam a partir de dentro, reavaliando discursos não ca-nônicos e procedimentos interdisciplinares, renovandoformas vetustas ou introduzindo diálogos extraliterários. É,em outras palavras, a força ainda atual da problemáticados gêneros: “o gênero como sistema pode, dessa forma,oscilar. Ele surge [...] e cai, se transformando nos elemen-tos de outros sistemas” (Tynianov, 1929, p. 26), afirma Ty-nianov.

Das cinzas dessa alteração e contrafação, as fronteirasressurgem, reafirmando-se em novos paradigmas, em no-vas genealogias. A hibridez dos gêneros não é monstruosi-dade, mas um novo organismo que vibra “das inépcias daprodução literária, dos cantos mais recônditos” (Tynianov,1929, p. 27) – das dobras, para usar um termo caro a Deleuze– que fogem do esconderijo para se mostrar por completo.

Resulta assim a tarefa do comparatista como explora-dor de fronteiras, em busca, hoje, de revelar figuras e mo-delos híbridos, assim como reescrever a história da litera-tura como história de rupturas e paródias. Justificar-se-ia,também, dessa forma, a tentativa de uma Weltliteratur, comoaspirava Goethe, que deslumbra ainda hoje, numa épocade re-pensamentos globais e de retorno de afirmações dosuniversais. Um fenômeno como o barroco, tão decisivo paraa cultura e para a literatura do continente latino-america-no, em particular, do Brasil, articular-se-ia não tanto emum conjunto utópico de textos falantes de forma homogê-nea, mas, sim, como busca de uma pluralidade necessáriaàs formações das entidades nacionais. A literatura mundial– conforme as palavras de Haroldo de Campos – não pode-rá neutralizar-se, nem esvaziar-se “em um otimismo messi-ânico, em um horizonte apokatástico do surgimento inelu-

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tável de uma comunidade ideal alienada, livre da maldi-ção pós-edênica e babélica de separação das línguas e dadivisão do trabalho” (Campos, 1997, p. 107). Uma literatu-ra mundial alimentar-se-á hoje, ao contrário, como afirmaKrysinski, “pela heterogeneidade de suas obras, das lín-guas que ela fala e das paixões que a sustentam” (Kry-sinski, 1995, p. 151). Krysinski, Haroldo de Campos e Tâ-nia Carvalhal coincidem, apesar de suas diferentesperspectivas de leitura, com o fato de os comparatistas tra-balharem com “conceitos em constante formação, de equi-líbrio instável” (Carvalhal, 2003, p. 106), problematizandoassim os cânones literários universais, a formação e diver-sidade de gêneros, o lugar do hibridismo como ontológicoaos processos estéticos e a necessidade da literatura com-parada como campo epistemológico.

É nesse sentido que Tânia Carvalhal sintetiza de ma-neira apropriada a importância de ultrapassar “os limiaresdas diversas categorias, de gêneros e de formas de aproxi-mação ao literário” e examiná-los, explorá-los, como suge-ríamos, para entrever o atuar na investigação das fronteirascom o que realmente compõe o fenômeno literário: “ques-tões que decorrem do confronto entre o literário e o nãoliterário, entre o fragmento e a totalidade, entre o similare o diferente, entre o próprio e o alheio” (Carvalhal, 2003,p. 11).

Gingando no final

Para os gregos, falar de hibridismo (cuja raiz, hybris,pode significar tanto ultraje quanto orgulho exorbitante)correspondia a uma violação das leis da natureza. Híbridoé também o anômalo, o misturado: “o híbrido mistura co-res, idéias e textos sem anulá-los” (Schüler, 1995, p. 11),permitindo que o discurso que não aceite a lógica viva nasmargens e das margens. O híbrido procura uma “terceiramargem”, poderíamos dizer, tomando emprestada uma ex-pressão de Guimarães Rosa, ou um espaço in-between, con-

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forme as palavras de Homi Bhabha: “não se esqueça doespaço fora da frase” (Bhabha, 1992, p. 455). Assim éexplicada a teoria do hibridismo literário de Homi Bhabhapor Lynn Mario Menezes de Souza:

Lembrar o espaço “fora da frase” é recusar a ditadura doenunciado normatizado, pronto e fechado; é lembrar docontexto, da história da ideologia e das demais condiçõesda produção da significação que constituem o momentode enunciação e, portanto, que contribuem para a consti-tuição do sentido do enunciado. É nesse espaço interstici-al e particularizante que se desfazem os desejos substanti-vos pela universalização, pela homogeneidade e pelaestabilidade; portanto, é nesse mesmo espaço que a dife-rença e a alteridade do hibridismo se fazem visíveis e audí-veis (Menezes de Souza, 2004, p. 131).

Não há dúvida de que o questionamento da rigidezdos gêneros literários tem encontrado um terreno fértil noséculo XX, em particular, na região cultural latino-ameri-cana e nas áreas pós-coloniais por causa da transformaçãoe da tomada de consciência de um imaginário singular enovo, posto que periférico. Um primeiro fenômeno emer-gente dessa configuração híbrida dos gêneros é uma tex-tualidade vivenciada e enriquecida pelas linguagens daoralidade, numa forma de transcendência e superação doescrito como “puro estilo”. Daqui, por exemplo, a codifica-ção da música popular brasileira como canção e, ao mesmotempo, como discurso poético de protesto e de presençacultural esteticamente elevado; também é notória a recu-peração da simbolização oral das culturas latino-america-nas, cuja pluralidade étnica incorpora falares, línguas,modus vivendi, ditados que superam as fronteiras do regio-nal para aproximar-se, de maneira interdisciplinar, da an-tropologia e da poesia como campos de conhecimentoporosos e já não esquematizados. É o caso da narrativa deGuimarães Rosa, de Arguedas, de Luandino Vieira e deMia Couto, só para citar alguns nomes de relevo. Podería-mos apropriar-nos da célebre imagem de Dona Flor, do ro-

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mance de Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos, paraobservar, na “ginga” da protagonista, a graça de um movi-mento oscilatório que não tende a fusionar elementos dis-paratados, mas a co-estar, co-existir sem que os conflitossejam ultrapassados: não há necessidade disso, diria Ben-jamin Abdala, pois, entre os dois maridos, a imagem sim-bólica de Dona Flor está entre “duas posturas de gênero,duas culturas, duas maneiras de ser que se aproximam emfunção do sujeito, mas que também se opõem conflituosa-mente” (Abdala, 2004, p. 16). Junto com Dona Flor, outroherói da literatura brasileira participa da configuração dogênero híbrido, contribuindo para criar, por meio dessamixagem cômica e carnavalesca, paródica e antropoló-gica, o emblema nacional: Macunaíma, de Mario de An-drade. Caracterizada por “fratura e precariedade”, aidentidade nacional coincide, nesse caso, com a formaçãode um romance e de um “caráter” trágico (posto que semuma origem reconhecidamente única) e burlesco (porqueaceita a lacuna da origem, com um ridículo processo deconhecimento). Esse hibridismo, que foi visto, sobretudo,em termos culturalistas, de transculturação narrativa (An-gel Rama), heterogeneidade multitemporal (Canclini) outotalidade contraditória (Cornejo Polar), é, a nosso ver,um fenômeno originariamente literário; é o que chamariade “hibridismo genético”, no sentido de um hibridismo deconcepção: o gênero literário é, desde o começo, impuro,misturado, plurilíngue, mestiço, errático e gerador de cul-turas constantemente movediças. Para resistir à funçãonomenclativa ou taxonômica, o gênero deve se distanciare criar, desde o começo, uma alternativa à norma; dessamaneira, o gênero é errático e, “ao gerar novas formas detrânsito e de intercâmbio cultural, essas culturas em er-rância favorecem a formação de novas identidades intera-tivas e hibridas” (Fantini, 2004, p. 175), isto é, novas formasgenéticas que se perpetuam hibridamente.

São gêneros híbridos, hoje particularmente em voga, a li-teratura e a escrita de viagem, com a sua variante de noma-

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dismo, escritas marginais como o romance gótico, que os-cila, apesar de seu modelo manter-se sempre uniformiza-do, entre ideais românticos, ruptura com o racionalismo einquietações do passado medieval; ou como a ficção utópi-ca e científica que, se abrindo a recentes tecnologias, assi-nala para uma personagem inovadora, híbrido por exce-lência, o cyborg, (herói semi-humano, sob espécie demáquina) que sacode a ilusão de estabilidade heróica e fic-cional tradicional e atua sobre o pensamento filosóficoapocalíptico de uma crise irrefreável da subjetividade (Fan-tini, 2004, p. 175).

Todo ato de paródia ou de hibridismo corresponde sem-pre a um momento explícito de crise. No começo da mo-dernidade, as fronteiras entre os campos de conhecimentose configuravam como rígidas, delimitando o saber e o re-conhecimento da cultura alheia em disciplinas e métodossetorizados, como se os vasos comunicantes da experiênciahumana fossem obstruídos por um empirismo de derivaçãopositivista. Também o híbrido (e com ele, o hibridismo cul-tural) que discutimos representa outra faceta da mesmacrise. O hibridismo está, de fato, bem longe de ser identi-ficável com um estado de graça. O comparatista tem deaguçar as antenas intelectuais em sua posse, e acolhê-lopolemicamente, dialogicamente, poder-se-ia dizer, referin-do-se a Bakhtin. O híbrido gera, portanto, novos espaçoscomunitários, novas comunidades dialógicas, as quais, comobem lembrado por Benjamin Abdala, reescrevem os pro-cessos culturais das histórias das literaturas e das nações:“o híbrido, ao contrário, é marcadamente heterogêneo: umprocesso em contínua transformação, sem um ponto dechegada” (Fantini, 2004, p. 19). Faltando a meta, o com-paratista migra, erra, desloca-se ainda perturbado (justa-mente perturbado). Talvez a máscara da utopia destecomeço de século se revele no conceito de hibridismo, jáque ele “favorece o entendimento entre pessoas e povosdesde que não se reduza a um pastiche sem história” (Fan-tini, 2004, p. 19).

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Na região austral das Américas, os processos discursivospós-utópicos (ou, se quisermos, pós-modernos) estão enco-rajando um achatamento preocupante da significação edas repercussões da literatura comparada. A ausência daspráticas comparatistas compromete o conhecimento dooutro; portanto, repensar a literatura (mundial e latino-americana) deveria ser associado à problemática culturaldas nações e das identidades. Tânia Carvalhal escreve:“Propor a comparação dos comparatismos é, efetivamente,reconhecer que a literatura comparada é hoje plural”(Carvalhal, 1997, p. 11).

Estamos convencidos da força que permanece aindana configuração dos gêneros literários dentro dessa dinâ-mica inquieta, concedendo vitalidade à crise. Por outrolado, a história da literatura se resume na história dos trân-sitos e mudanças entre um gênero e outro, entre fronteirasultrapassadas e fronteiras invisíveis nas quais se vivencia.Isso permite, paradoxalmente, que a crise seja geradora denovas fronteiras, novos híbridos, novos contatos (a criouli-zação visada por Edouard Glissant).

As “imperfeições” e os hibridismos dos gêneros literá-rios devem servir para refletir, como sugere Segre, sobre “acrise verdadeira”, que é “aquela do Eu, do mundo e desuas relações” e “talvez antecipar uma solução (se ela exis-te)” (Segre, 1985, p. 278). A tarefa do comparatista atual,para entender os devaneios do eu e da atividade literária ecultural, é distinguir, isto é, historicizar zonas híbridas eindicar margens em tensão entre contrários, procurando a“ansiedade” da coexistência, como desejo utópico e pro-posta cordial.

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A imaginação do passado: umacontribuição de Alexandre Eulalio

à crítica literária brasileira

Silvia Quintanilha Macedo*

RESUMO: O maior interesse deste trabalho é analisar a trajetó-ria intelectual de Alexandre Eulalio, no sentido de compreen-der sua poética crítica, que incorpora o exercício do jornalismocultural somado à influência do meio acadêmico. O estudo dotexto “Imaginação do passado”, escrito na maturidade do autor,ilustra como se orienta a inquietação do crítico principalmentequando defende o ponto de vista histórico na apreciação daliteratura, sem abandonar a perspectiva estética.

PALAVRAS-CHAVE: Alexandre Eulalio, trajetória intelectual,poética crítica, teoria literária, jornalismo cultural.

ABSTRACT: This research intends to analyse Alexandre Eulalio’sintelectual trajectory so as to comprehend his critical poetics,which encompasses cultural journalism and academicenvironment influence. The study of the text “Imaginação dopassado”, a text which was written when the author was moremature, illustrates the path of the critic’s restlessness, especiallywhen he defends the historical point of view in literaryappreciation without abandoning the aesthetic perspective.

KEYWORDS: Alexandre Eulalio, intelectual trajectory, criticalpoetics, literary theory, cultural jornalism.

Um crítico muito original

Alexandre Eulalio (1932-1988) inicia sua obra de crí-tico e estudioso da cultura como jornalista e, um poucomais tarde, como editor da Revista do Livro, publicada apartir de 1956 pelo Instituto Nacional do Livro. No meioda década de 50, abandona o curso universitário e começaa atuar em jornais do Rio, São Paulo e Minas. Redator-* Centro Universitário

FIEO (Unifieo).

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chefe da Revista do Livro, elaborou uma agenda rica depublicações inéditas, além de contribuir com a redação deartigos e ensaios.

À atividade editorial seguem muitas outras ao longodos anos: tradutor, prefaciador, resenhista de vários livros,conferencista, leitor brasileiro na Itália, professor convida-do de universidades estrangeiras, funcionário da burocra-cia estatal ligada à cultura e, finalmente, professor nodepartamento de teoria literária da Universidade de Cam-pinas.

A obra deixada por Alexandre Eulalio merece, semdúvida, um estudo que detalhe sua importância, avaliesua profundidade e alcance no campo da história daensaística brasileira. Produção recente no conjunto dasrealizações de nossa crítica, traz uma contribuição que sin-tetiza a vivência do jornalismo, sem perder de vista o uni-verso da experiência acadêmica e o da erudição.

Na tese de doutoramento Alexandre Eulalio, retrato deum intelectual singular,1 estudo a ensaística crítica do autore a trajetória do intelectual participante da vida culturaldo país. Uma das proposições desse doutorado consiste emdemonstrar que a especificidade da produção eulalianaresulta do processo de renovação da imprensa cultural queocorre durante as décadas de 1950 e 1960. A influência domeio acadêmico e dos experimentos vanguardistas dos anos50 atuará de modo decisivo na imprensa do período, con-tribuindo para a formação do crítico.

A incursão de Alexandre por revistas e jornais resultaem uma maneira própria de conceber o texto crítico, queassume a forma ensaística ou ainda a de resenha, artigo,prefácio. Vista em conjunto, sugere, à primeira vista, umaprodução feita de fragmentos, “em pedaços”, como o pró-prio Alexandre chamou a obra de Brito Broca.

Publicados postumamente, Escritos,2 Livro involuntário3

e a revista Alexandre Eulalio diletante4 levam a crer no cará-ter dispersivo dessa obra destinada, em seu princípio, àimprensa, especializada ou não. Mesmo o livro que publi-

1 Tese apresentada em 2004,com orientação do professordoutor Antonio Dimas, naárea de Literatura Brasileira,da FFLCH – USP.

2 EULALIO, Alexandre.Escritos. (Orgs.: BertaWaldman, Luiz Dantas).Campinas: Unicamp; SãoPaulo: Unesp, 1922.

3 EULALIO, Alexandre.Livro involuntário: literatura,história, matéria e memória.(Orgs.: Carlos AugustoCalil, Maria EugeniaBoaventura). Rio de Janeiro:UFRJ, 1993.

4 CALIL, Carlos Augusto;BOAVENTURA, MariaEugenia (Orgs.). AlexandreEulalio diletante. Remate deMales, Revista doDepartamento de TeoriaLiterária do Instituto deEstudos da Linguagem daUnicamp, Campinas, 1993.

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ca, A aventura brasileira de Blaise Cendrars, guarda a com-posição de caráter fragmentário, do escritor que associa aprática da escrita à da colagem, do recorte e da monta-gem. Mas é bastante particular a natureza dispersiva dosescritos de Eulalio.

A fortuna crítica que aborda a produção eulaliana dáa medida do papel exercido pela imprensa na formação docrítico, bem como seu contato com o pensamento universi-tário, principalmente aquele fundado na História.

Essas duas linhas diretivas afirmam-se em “A imagina-ção do passado”, pequeno texto no qual Alexandre Eulaliodiscute a medida de valor para o trabalho desempenhadopela imprensa e pela universidade. Ambas vinculam-se àhistória da moderna crítica literária brasileira, vista segundoa mudança de rota dos estudos literários que substituem aimprensa pelo mundo acadêmico.

Talvez não seja exagero conceber a crítica de Alexan-dre Eulalio como um exercício de equilíbrio entre uma prá-tica que se despede e outra que se consolida dentro douniverso intelectual brasileiro. Portanto, é oportuno verifi-car como a apreensão dos novos instrumentos de análiseoferecidos pela teoria literária sofre, no interior do pensa-mento eulaliano, uma pressão de ordem mais pessoal, fran-camente possível para quem ainda não se desligou total-mente do jornalismo cultural.

Explicam melhor esse duplo movimento o conceitode história e o de história literária; ambos se articulamcom a matéria estudada pelo crítico, escolha que muitasvezes ocorre a partir de um sentimento de ordem afetivae pessoal.

É o caso, por exemplo, dos laços familiares que pren-dem Alexandre Eulalio a Diamantina, resultando no inte-resse sempre renovado do autor pela obra de um dos maisilustres diamantinenses, o historiador Joaquim Felício dosSantos; a causa do Império merece, igualmente, tratamen-to diferenciado: muitos monarquistas históricos, comoEduardo Prado, Afonso Celso e mesmo o príncipe-herdei-

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ro, Dom Luís, figuram como protagonistas de estudoseulalianos.

Embora dialogue com a pesquisa universitária repre-sentada pela divulgação do new criticism e pela publicaçãode Formação da literatura brasileira, o ensaísta atribui à his-tória e à crítica literárias um tratamento que não dispensaa antiga prática jornalística à maneira de Brito Broca, umdos mais caros interlocutores do autor.

A presença de Alexandre Eulalio na Revista do Livro,durante quase dez anos, contribui para a realização de umprojeto literário-cultural que marca definitivamente suaprodução crítica futura. A linha editorial da Revista do Li-vro corresponde às expectativas do jovem erudito, que en-contra espaço nas seções destinadas à publicação de docu-mentos inéditos ou dispersos em jornais e arquivos. Otrabalho do editor consiste na busca, na seleção desses re-gistros e na adoção de uma linha interpretativa que con-duza essas escolhas.

Para acompanhar os documentos publicados, Alexan-dre Eulalio redige os textos de apresentação, artigos cujascaracterísticas particulares e aspectos comuns dão umafisionomia própria ao conjunto. O recorte extraído da Re-vista do Livro serve para ilustrar o primeiro grande passo nacarreira intelectual de Eulalio. Ela se inicia com o com-promisso de recuperar documentos e publicá-los, uma con-tribuição considerável no campo da história literária brasi-leira. Entende-se, portanto, a orientação basicamentehistoriográfica exigida na compreensão de um material aindapouco explorado pela crítica jornalística daquele momen-to, interessada em resenhar os lançamentos mais recentes.

Daí a importância pioneira de Brito Broca, que vascu-lhou os arquivos em busca de matéria que ainda não en-contrara seu pesquisador. O ingresso de Brito Broca naRevista do Livro confirma a sintonia entre o jovem editor eo velho jornalista.

Esses textos de juventude também conduzem ao en-contro entre crítica e história literária. Isso significa abor-

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dar o direcionamento adotado pelo escritor nos documen-tos escolhidos para a publicação. Explorar o valor dessesescritos significa rastrear as informações que compõem oquadro das ideias, do gosto estético, das relações sociais efamiliares de uma determinada época.

Para realizar essa tarefa, Alexandre Eulalio segue ocaminho teórico aberto pelo livro Formação da literaturabrasileira, publicado justamente naquela ocasião por An-tonio Candido. A Revista do Livro empreende um trabalhode recuperação da memória cultural brasileira, de acordocom uma tradição construída sobretudo pelo conjunto deobras, autores e gêneros secundários, matéria essencial dapesquisa eulaliana e aspecto importante da teoria de An-tonio Candido.

A produção do crítico ganha ainda espaço nos cader-nos culturais da grande imprensa, onde ocupa a função dejornalista e escritor de matérias bastante diversificadas. En-tretanto, tais artigos guardam sempre a marca particular doautor interessado na história literária e cultural do Brasil.

Estudos que o escritor dedica a Machado de Assis,particularmente ao romance Esaú e Jacó, refletem as obri-gações do jornalismo literário, mas também a abordagemminuciosa e detalhista de um crítico que sempre valorizouum cânone muito particular. Neste convive o interesse pelomaior escritor brasileiro e também um imenso empenhodedicado aos artistas de província.

Interpretar a poética crítica de Alexandre Eulalio sig-nifica acompanhar certas escolhas temáticas de seu agrado,como aquela que privilegia o memorialismo, a vanguarda,as obras da província; certos procedimentos metodológicosconcebidos a partir da história literária e cultural, dainterpenetração entre as artes, da editoração. Na trajetó-ria desse autor singular, o trabalho do crítico comporta ainvenção de um mundo particular, fragmentos recolhidosde tantas fontes, tantas leituras, reunidas pelo desejo dedescobrir o lugar de cada parte na construção da obra, dacultura, da própria vida.

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A efervescência da década de 1950, marcada pelaqualidade dos cadernos culturais, é reconhecida pelo pró-prio crítico na introdução que escreveria anos mais tardepara o texto de juventude “Roteiro de Jorge de Lima” (Eu-lalio,1993, p. 123). Aliada à lembrança pessoal, a referên-cia às condições oferecidas pelos cadernos literários daépoca amplia o valor do relato. Nele se afirma o prestígiodo Diário Carioca, que, ao lado do Correio da Manhã, era omais conceituado do Rio de Janeiro. À frente da coorde-nação do Diário, figuram Pompeu de Souza e Prudente deMoraes, neto, este último responsável pela acolhida ao “plu-mitivo” (Eulalio, 1993, p. 123).

Alexandre Eulalio parece pensar em si mesmo ao con-siderar o período, marcado pela movimentada produçãodos cadernos culturais. Incluem-se aí: O Jornal, o Diário deNotícias, o Jornal do Commércio, A Noite, o Jornal do Brasil– “suplementos sem os quais, aliás, será impossível fazer asério a história intelectual do período” (Eulalio, 1993, p. 123).

Iniciando muito jovem na imprensa, em 1952, Ale-xandre Eulalio começa a publicar alguns artigos na univer-sidade e também em jornais de grande circulação, entre osquais ganham destaque o Correio da Manhã e O Globo,segundo o levantamento proposto por Carlos Augusto Calile Maria Eugênia Boaventura na revista Remate de Males,em número especialmente dedicado ao estudiosodiamantino.5

A projeção ocorre de fato com o ingresso do escritorna Revista do Livro em 1956, fundada nesse mesmo ano,que também viu nascer os suplementos literários de O Es-tado de São Paulo e do Jornal do Brasil (Cf. Martins, 1977-1978, p. 365-366). A crítica literária brasileira, “seguindoo ciclo do jornalismo, desde o século XIX, a caixa de res-sonância da literatura do país”, foi, segundo BeneditoNunes, “regularmente veiculada pelos jornais das duas me-trópoles, Rio e São Paulo (Correio da Manhã, Diário deNotícias, A Manhã, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil)– antes que seus autores as enfeixassem em livros” (Nunes,2000, p. 61).

5 Nascido no Rio de Janeiro,em 18 de junho de 1932, filhode Elisário Pimenta daCunha (1890-1961) e deMaria Natália Eulalio deSousa da Cunha (1891-1974),Alexandre Magitot Pimentada Cunha resolveu por contaprópria trocar sua cidade deorigem por Diamantina.Substitui o nome Magitot,homenagem do pai dentistaao patrono de sua profissão,pelo sobrenome Eulalio, “umalembrança do clã materno emais condizente com o seuobsessivo culto àancestralidade mineira”(Calil; Boaventura, 1993,p. 323).

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Quem melhor analisou o poder de influência da His-tória no ensaísmo crítico de Alexandre Eulalio foi JoséGuilherme Merquior. Na conferência que proferiu sobre oensaísmo eulaliano, “O demônio do perfeccionismo”,6 con-feriu-lhe uma posição exemplar dentro da crítica literáriabrasileira, por causa do compromisso do escritor mineirocom uma tradição crítica que Merquior denominaexplicativa, voltada para os aspectos contextuais da obra.

Apoiado no conceito de crítica explicativa e interpre-tativa, Merquior explicita a participação de Brito Broca eAugusto Meyer como os mentores, no plano nacional, daformação do crítico diamantino, ajustada ao modelo decrítica que sintetiza explicação de ordem histórica e inter-pretação de caráter formal.

Augusto Meyer comparece relacionado ao aprendiza-do de sensibilidade da forma e da leitura imanente do tex-to, inspirada na estilística. A valorização pioneira da obrade Brito Broca ilustra o interesse de Alexandre Eulalio peloenfoque na vida literária como meio de enriquecer a críti-ca interpretativa, voltada para os condicionamentos sociais.A ênfase no contexto, no entanto, supera, de acordo comMerquior, o modelo inspirado em Brito Broca, porque in-tegra o senso da forma e a atenção mais apurada para oestético.

O conferencista não descarta a outra parte, interpre-tativa, de caráter formalista, na produção do homenagea-do, cuja dinâmica sintetiza aquelas duas dimensõespropostas da crítica (explicativa e interpretativa), de modoa não incorrer no erro de “explicar” a obra do ponto devista externo, justapondo explicação e interpretação.

Alexandre tratou de negar a legitimidade dessa separaçãoentre forma e processo social, e o fez soberanamente. Essafoi uma de suas contribuições à crítica brasileira, talvezpor mobilizar armas de erudição incomuns, com um co-

6 MERQUIOR, JoséGuilherme. O demônio doperfeccionismo. Remate deMales, Alexandre Eulaliodiletante, Campinas, p. 291-296, 1993.

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nhecimento de literatura e época ímpar no contexto nacio-nal (Merquior, 1993, p. 292).

Já em meados da década de 1940, a cena intelectualbrasileira delineia um quadro de confronto entre as duasinstâncias, representadas, de um lado, pelo bacharel letra-do que faz do jornal veículo de sua reflexão e, de outro,pela figura do especialista, crítico universitário cuja pro-dução aparece vinculada ao livro e à atividade de profes-sor. Flora Süssekind ilustra essa tensão, lembrando a cam-panha que Afrânio Coutinho move, na época, contra osrodapés, e seu conflito com Álvaro Lins, o maior represen-tante dessa modalidade crítica (Süssekind, 1993, p. 13).

A definição de Flora Süssekind, segundo a qual o per-fil do crítico moderno brasileiro se originou a partir da ten-são entre o crítico-jornalista e o crítico-scholar, cabe per-feitamente para compreender a posição de AlexandreEulalio, sem perder de vista que essa especificidade derivade uma conjuntura precisa, relacionada a “um período deestreitamento de laços entre a crítica universitária e ossuplementos, entre literatura de invenção e grande im-prensa” (Süssekind, 1993, p. 28).

A fermentação do ambiente cultural produzida nasredações de jornais e revistas pode ser certamente avalia-da pela variedade de posições e representatividade de seusautores, já a partir década de 1930, marco da crítica mo-derna no Brasil. Como reconhece Flora Süssekind, se osolo comum da crítica jornalística abriga nas colunas ex-clusivas ou pés de páginas nomes importantes da inteli-gência brasileira, as posturas, entretanto, a respeito do con-ceito de crítica e de seu exercício nem sempre sãoconvergentes.

Sem dúvida, o time que frequenta os rodapés e suple-mentos literários é de primeira linha: Mário de Andrade,Tristão de Ataíde, Sérgio Milliet, Lúcia Miguel Pereira,Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido,Sérgio Buarque de Holanda, Álvaro Lins e outros. O con-flito central de posições que Flora Süssekind aponta refle-

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te a polêmica entre a geração dos “homens de letras” e ados pesquisadores universitários, nos decênios de 1940 e1950. Mas o arco de diferenças abriga um debate intensode posicionamentos diversificados.

Na prática diária, em jornais e revistas, AlexandreEulalio percebe o alcance das transformações culturais emesmo admite, no ensaio “A imaginação do passado”, quea imprensa não precisa ceder o espaço da reflexão sobre aliteratura e a arte para a universidade.

Em “A imaginação do passado” (Eulalio, 1993, p. 9-16),7 texto escrito na maturidade e um dos poucos de cará-ter teórico na bibliografia do autor, aparece esboçada umasíntese especial entre jornalismo literário e especializaçãouniversitária. Trata-se de um pacto de convivência, a fimde melhor aparelhar a crítica para comparecer “com agili-dade e competência no enfrentamento de problemas atéagora inéditos do seu ofício” (Eulalio, 1993, p. 10).

Torna-se evidente, portanto, a falsidade da oposição ma-niqueísta que uma apologia pro domo promoveu ao con-trastar emblematicamente o espaço degradado, frustro eárido do jornal com um idealizado espaço de laboratóriouniversitário, habitat ideal da nova crítica. Oposição quenão se mantém de pé e é inteiramente alheia à realidadefactual, embora também seja verdade que a imprensa diá-ria jamais poderia ser, como jamais pretendeu, nem pode-ria, a estufa propícia onde as catléias raras do mais comple-xo ensaísmo crítico iriam florescer. Não fiquem esquecidas,portanto, as mediações constantes entre as duas áreas, in-clusive o vivíssimo intercâmbio de estímulos que aindahoje tem lugar entre uma e outra (Eulalio, 1993, p. 10-11).

Desse “espaço frustro e árido” fazem parte diferentessegmentos da intelectualidade, assim representados: “oarticulismo avulso de autodidatas e curiosos”, “o ‘rodapé’crítico subscrito por alguma autoridade do ramo”, e ainda“movimentos de experimentação estética”. Se continuar-mos a leitura do texto, veremos confirmar os respectivosperfis incluídos no processo de formação da crítica

7 O título “(à guisa doprefácio) A imaginação dopassado” é uma atribuição àlivre montagem que osorganizadores do Livroinvoluntário realizaram notexto da comunicação “Acrítica literáriacontemporânea”. Editora/Bienal Nestlé, 1986. p. 119-127.

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jornalística e as diferentes possibilidades de trocas que essaconvivência estabelece.

Nessa linha, Alexandre Eulalio cita os “formandos deLetras da Universidade Anos 40”, uma intervenção que semanifesta na imprensa por meio das especializações de cadaum,

novidades que começarão a ser absorvidas também pelacomunidade não iniciada na alquimia acadêmica [...] cola-boradores mais alertas e inquietos, que na imprensa levamavante empiricamente reflexões e estudos sobre o temárioda cultura nacional (Eulalio, 1993, p. 10).

Embora o escritor ressalte, sempre genericamente, aimportância do conjunto sem referir a si mesmo, é eviden-te a correspondência entre ele e “os colaboradores maisalertas e inquietos”, e com os articulistas autodidatas.

“Foro animado e apaixonado de debates intelectuais”,assim Alexandre Eulalio define a crítica exercida na im-prensa, que passa a contar com a especificidade do co-nhecimento universitário e, com isso, torna-se mais aptapara enfrentar as mudanças exigidas pela nova conjunturaintelectual. A atuação das vanguardas, “que também rea-bre espaço experimental na imprensa do tempo”, completaesse quadro de manifestações decisivas, que tornam as re-vistas e jornais um espaço privilegiado de discussão cultu-ral.

Com Alexandre Eulalio à frente, a Revista do Livro ga-rantiu, em suas páginas, a presença dos artistas ligados aoConcretismo e a exegese das manifestações literárias con-temporâneas, podendo então definir-se como “publicaçãodestinada aos estudos de história literária, erudição e pes-quisa bibliográfica”, sem entretanto descuidar “dos proble-mas que agitam a nossa literatura no momento”. Aexplicação encontra-se no volume 10 e serve de introdu-ção à polêmica instalada por ocasião do lançamento doConcretismo.

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Se a imprensa é o lugar da crítica, a História figuracomo meio de sua realização. É o que Alexandre Eulaliosustenta em “A imaginação do passado”, a partir do qualdiscute a solução de privilegiar a História, sem abrir mãoda forma literária:

Será neste ponto que a análise concreta do texto individuale a generalização organizativa da história literária podemse integrar e se completar – a forma da História integrandoa História-das-Formas. Trata-se do momento de reinte-gração do texto no contexto (Eulalio, 1993, p. 11).

É o próprio ensaio, “Imaginação do passado”, que me-lhor explica essa convergência entre História e forma lite-rária. A solução encontrada para se chegar à “história dasideias, da cultura e história intelectual de uma coletivida-de” deriva do poder de abrangência conferido pelo conhe-cimento histórico: “Abertura de horizonte, ela é fruto deum súbito iluminar de perspectivas graças ao concurso denovas informações de origem diversas” (Eulalio, 1993, p.11). De acordo com Alexandre Eulalio, tal abertura falta àcrítica contemporânea em vista do estado de “compartimen-tação sufocante” em que se encontra. Como solução, oensaísta mineiro sugere o caminho proposto pela “indis-pensável confluência de saberes complementares”.

Eulalio parece estabelecer uma relação de dependên-cia entre a noção de “pensamento ensaístico englobante”e “minuciosa reflexão estética”, assim como antes tratara aquestão em termos semelhantes: “análise concreta do tex-to individual”, “levantamento crítico do caso particular” –termos sempre associados à ideia de “generalização organi-zativa da história”, “espaço abrangente da história”. A pro-posição finalmente se confirma: “análise formal einterpretação histórica muito concretas se defrontem numainstância dialógica cheia de intensidade e que assim anu-le provisoriamente os feixes de interseção de diacronia esincronia” (Eulalio, 1993, p. 13).

A proposição que leva em conta um movimento inte-grado entre sincronia e diacronia pede “rigoroso aparato

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filológico”, “técnicas de explicação do texto através da lei-tura colada, da close reading, dando toda ênfase à cons-ciência do fato literário, enquanto específico fenômenocomunicativo” (Eulalio, 1993, p. 14). A partir desse proce-dimento se estabelecem as “condições de tempo, lugar,mentalidade, alusões específicas”. Portanto, não se trataaqui de privilegiar “generalizações pseudo-englobantes”(Eulalio, 1993, p. 14).

Estamos no centro do problema. Isto porque é impor-tante para Alexandre Eulalio formular o conceito de críti-ca literária como totalidade que reivindica a tradição cul-tural, para em seguida associá-la às conquistas do presente:

Daí a crítica literária se constituir idealmente o sítio emque contemporaneidade e sucessão dos tempos se inte-grem, e onde se tenha lugar, com rigorosa verossimilhan-ça, a imaginação do passado, segundo os indícios que amo-rosa arqueologia do saber vai permitir efetuar (Eulalio,1993, p. 14).

A questão da síntese de saberes complementares e di-versificados, vista de modo tão insistente por meio da ge-neralidade e abrangência do pensamento histórico, integraforma e História: “integração do conhecimento que é, aomesmo tempo, resenha das formas e história social dos meiosde criação” (Eulalio, 1993, p. 15). Importa assinalar a cons-ciência de uma forma historicizada, integradora, que o crí-tico manifesta sobretudo quando se refere à “buscaintrínseca da poeticidade do texto, vale dizer, da comple-xidade compositiva que tem lugar na peça observada” (Eu-lalio, 1993, p. 15). Logo em seguida, a ideia de“problematização poética” confirma como Alexandre Eu-lalio de fato concebe uma noção unificadora da forma ar-tística: “a sua [a obra analisada] problematização poética,ou seja, [a avaliação] dos seus níveis cultural, existenciale intelectual. Questões implícitas na linguagem dessasobras” (Eulalio, 1993, p. 15).

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Para chegar a essa síntese, o crítico aconselha o afas-tamento da especialização e faz a defesa da interdiscipli-naridade, do poder abrangente do conhecimento e dodiálogo entre as disciplinas e também entre as artes.

O enriquecimento da crítica literária tem que se dar assim,em nosso meio, pela interpenetração não apenas com aSociologia [...] mas principalmente com a História e a An-tropologia, muito em especial com esta última, com a Psi-canálise e com o urgente conhecimento da teoria e daprática das outras artes. Não se trata da proposição de umnovo Ecletismo mas da instrumentalização de saberes com-plementadores que contribuem de modo decisivo para a operaçãohermenêutica (Eulalio, 1993, p. 15) (Grifo nosso).

Nos anos em que Alexandre Eulalio surge como o jo-vem redator da Revista do Livro, duas questões movimen-tam o debate em torno do conceito de crítica. A primeiradelas expressa a insatisfação dos scholars diante do exercí-cio crítico calcado no impressionismo, no biografismo, fa-lhando no cumprimento de exigências do pensamentocientífico.

A segunda questão reflete o triunfo dos scholars, masnovamente outro dilema aparece, dessa vez configuradono confronto entre as posições de Afrânio Coutinho e An-tonio Candido. Embora ambos se voltem para a historio-grafia literária e para as relações entre literatura e históriasocial, no “caso de Afrânio, porém, trata-se de pensar taisrelações com a supressão parcial de um dos termos (a ‘his-tória’) e a afirmação de uma autonomia plena do literário”(Süssekind, 1993, p. 22). Antonio Candido, ao contrário,importa-se com as relações entre literatura e sociedade eainda com “a adoção de uma crítica que trabalhe dialeti-camente tais relações” (Süssekind, 1993, p. 23-24).

Não há dúvida de que a trajetória intelectual de Ale-xandre Eulalio seja influenciada pelo interesse que os es-tudos histórico-literários despertam em torno dos anos 1940e 50. João Alexandre Barbosa considera Antonio Candido

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e Afrânio Coutinho os dois críticos que “mais procurarampensar, por essa época, de modo teórico e sistemático, oproblema das relações entre literatura e história, no qua-dro da literatura brasileira” (Barbosa, 1996, p. 34).

Como o texto “A imaginação do passado” deixa claro,não existe uma prevalência do estético na relação entrehistória e literatura, proposição defendida por AfrânioCoutinho, que segue a orientação do new criticism aoenfatizar a noção da obra literária como estrutura estética.A proposta de Eulalio parece afinada com aquela concebi-da por Antonio Candido, de acordo com a qual o texto é oresultado da integração de elementos expressivos e ele-mentos não literários.

Na Formação da literatura brasileira (1959), que é “um livrode crítica, mas escrito de um ponto de vista histórico”,Antonio Candido defende e demonstra pela prática analí-tica, com a clareza de sempre, a legitimidade do ponto devista histórico no estudo da literatura, sem que isto signi-fique o abandono da perspectiva estética (Arrigucci, 1999,p. 244).

A referência “saturado de experiência histórica”, apli-cada a Alexandre Eulalio, é usada por Merquior um poucoantes de ele estabelecer a distinção entre historista e his-toricista. Cabe ao primeiro, ao contrário do segundo, nãorevelar “qualquer preocupação com o marco do processohistórico e com grandes etapas da evolução histórica”. His-torista, Alexandre Eulalio demonstra uma disposição pro-funda para mergulhar num contexto específico, produzindouma crítica eminentemente detalhista, que dispensa umatese central e incorpora uma massa de conhecimentos his-tóricos extremamente específicos. Disto resulta a impor-tância das notas, como meio de conduzir um emaranhadode vias interpretativas e hipóteses explicativas (Merquior,1993, p. 294-295).

O vasto repertório que garante a Alexandre Eulaliouma maneira particular de conduzir a reflexão crítica não

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prioriza uma visão da obra reduzida a documento da reali-dade social ou enfocada apenas em seus elementos de fa-tura. Como bem observou Vinícius Dantas,

Na mania detalhista do perito, havia uma porção de deva-neio e, principalmente, paixão pela matéria tal como ela éproduzida e plasmada pela imaginação de um fazer técnico.Havia igualmente o desejo de encontrar algo concreto quejustificasse a realidade menos palpável, mas realidade aoquadrado, da criação literária. Alexandre queria assim en-sinar a ler a tessitura dessas relações múltiplas e históricascom lupa e paciência (Dantas, 1993, p. 333).

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Alexandre Herculano, GonçalvesDias e a teoria da história

Wilton José Marques*

RESUMO: O presente artigo apresenta alguns aspectos das rela-ções literárias entre Alexandre Herculano e Gonçalves Dias.Tais aspectos são discutidos, sobretudo, em função da influênciado texto panfletário A voz do profeta (1836), de Herculano, so-bre Meditação (1850), de Dias. Nesta obra inconclusa, além dedialogar textualmente com A voz do profeta, o poeta brasileirotambém faz uso da teoria da história do autor português.

PALAVRAS-CHAVE: Alexandre Herculano, A voz do profeta, Gon-çalves Dias, Meditação, teoria da história.

ABSTRACT: This article presents some aspects of the literaryrelations between Alexandre Herculano and Gonçalves Dias.These aspects are discussed, especially in light of the influenceof the pamphleteer text A voz do profeta (1836), by Herculano,about Meditação (1850), by Dias. In this unfinished work, besidesestablishing a textual dialogue with A voz do profeta, the Brazilianpoet also makes use of the theory of History from the Portugueseauthor.

KEYWORDS: Alexandre Herculano, A voz do profeta, GonçalvesDias, Meditação, theory of history.

A missão do vate

No Brasil romântico, a principal missão de seus pri-meiros autores, notadamente os que cresceram à sombraprogramática de Gonçalves de Magalhães, foi a de confi-gurar os elementos temáticos necessários à definição daimagem e do discurso formador da nacionalidade brasilei-ra. Dessa forma, nos anos subsequentes ao da independên-cia política, e ainda escorada na retomada de um desejado

* Professor de LiteraturaBrasileira e Teoria Literáriado Departamento de Letrasda Universidade Federal deSão Carlos (UFSCar) e doPrograma de Pós-Graduaçãoem Estudos Literários daUniversidade EstadualPaulista Júlio de MesquitaFilho (Unesp/Araraquara).Este artigo é parte integranteda pesquisa Gonçalves Dias: opoeta na contramão (literatura& escravidão no romantismobrasileiro), financiada pelaFapesp.

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nexo histórico, cuja função primordial era a de legitimar onovo status do país, a literatura romântica exerceu um pa-pel fundamental no duplo processo de construção e disse-minação da ideia de nação entre os próprios brasileiros.Nesse sentido, não se pode deixar de reconhecer que oaparecimento literário de Gonçalves Dias, sobretudo pelaimediata ressonância pública de seus “poemas americanos”,foi igualmente fundamental para o efetivo delineamentode um “nacionalismo propriamente literário” no Brasil.Entretanto, não custa ressaltar, a produção literária gon-çalvina não se restringiu apenas à vertente indianista, elatambém dialogou com outros temas inerentes à estéticaromântica, tais como o amor, a relação com a natureza, areligiosidade etc. Em sua obra, o poeta maranhense conse-guiu encontrar algumas brechas que lhe permitiram expres-sar em outros textos, para talvez até melhor compreender opaís, as várias e inerentes contradições que, desde sempre,permearam o cerne das relações de poder na sociedadeoitocentista brasileira, incluindo-se aí o espinhoso proble-ma da escravidão.

Primeiro autor brasileiro que, sem nenhum tipo dehesitação, pode ser reconhecido como essencialmente ro-mântico, e, nesse sentido, dotado de uma sensibilidade queo caracteriza como “gênio”, isto é, aquele que, como ver-dadeiro vate e profeta, acredita ser o portador “de verda-des ou sentimentos superiores aos dos outros homens” e,por isso mesmo, acredita ser “a nítida representação de umdestino superior, regido por uma vocação superior” (Can-dido, 1981, p. 27), Gonçalves Dias não somente assumiupara si a crença de que sua obra era revestida de um cará-ter de missão estético-social, como se sentiu igualmenteresponsável para com os destinos do país. Para o poeta, con-tribuir literariamente para a consolidação do projeto civi-lizatório brasileiro, alçado de imediato à condição deprincipal bandeira de luta do movimento romântico local,passava também pelo entendimento e pela consequenteexpressão das várias contradições sociais, o que, de algu-

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ma forma, já representava um primeiro passo para transfor-má-las.

Em outras palavras, pode-se afirmar que havia por partedo poeta um forte desejo de fazer com que sua obra literá-ria, ecoando até mesmo certos padrões morais de conduta,se tornasse um exemplo importante de intervenção social.Tal desejo se aplica, sobretudo, à Meditação. Nesta obra,como bem observou Antonio Candido, o poeta esboça umalarga visão poética do país, retratando:

as suas raças, os escravos, os índios à margem do progresso,a iniquidade da vida política, as dificuldades de acertar –abrindo uma perspectiva otimista com o apelo ao patrio-tismo, chamado a cumular as lacunas da civilização e com-pensar, tanto as falhas dos governos quanto a indisciplinados costumes públicos (Candido, 1981, p. 52).

Contrariando uma possível atitude passiva, num mo-mento em que o silêncio de resignação diante das mazelassociais do país talvez fosse a opção mais fácil entre os lite-ratos, que, em sua grande maioria, também eram funcio-nários públicos, Gonçalves Dias, então professor de latim ede história do Brasil no Imperial Colégio Pedro II, não ape-nas insistiu em tornar pública essa obra de juventude, que,apesar de inacabada, cristalizava sua visão crítica sobre opaís, como também escolheu um periódico emblemáticopara a consolidação do romantismo brasileiro, isto é, a re-vista Guanabara (1849-1856).

Publicada ao longo de 1850, essa obra inacabada deGonçalves Dias foi provavelmente inspirada tanto em Avoz do profeta (1836), de Alexandre Herculano, quantoem As palavras de um crente (1834), de Lammenais. Aqui,no entanto, a despeito da influência do padre francês, apreocupação maior será a de rastrear alguns aspectos dasrelações literárias entre Herculano e Gonçalves Dias e,por tabela, mostrar que, em Meditação, o poeta maranhensetambém lançou mão do conceito de teoria de história deHerculano.

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Alexandre Herculano & Gonçalves Dias

A história das relações literárias entre Alexandre Her-culano e Gonçalves Dias é demarcada, sobretudo, pelo apa-recimento, em novembro de 1847, do artigo “O futuroliterário de Portugal e do Brasil”, em que o autor português,por ocasião da leitura do livro de estreia do jovem poetabrasileiro, tece algumas considerações sobre as futuras pos-sibilidades literárias da ex-colônia e da ex-metrópole.1 Ori-ginalmente, o texto foi publicado na Revista Universal Lisbonense(1841-1853), semanário fundado e dirigido inicialmentepor Antonio Feliciano de Castilho e considerado um dosmais influentes periódicos de divulgação do romantismoem Portugal.

O artigo de Alexandre Herculano inicia-se com umalonga digressão comparativa entre os dois países. Para ele,o Brasil, destinado pela novidade de seu status de recém-liberto, e notadamente influenciado pelo “favor da natu-reza” a representar um grande papel na história do novomundo, “é a nação infante que sorri”; ao passo que, aocontrário, Portugal é o “velho aborrido e triste, que se vol-ve dolorosamente no seu leito de decrepidez”.2 Para o ro-mântico português, sempre pessimista em relação aosdestinos de seu país, “estas amarguradas cogitações surgi-ram[-lhe] na alma com a leitura de um livro impresso oano passado no Rio de Janeiro, e intitulado: Primeiros can-tos: Poesias por A. Gonçalves Dias”:

Naquele país de esperanças, cheio de viço e de vida, há umruído de lavor íntimo, que soa tristemente cá, nesta terraonde tudo se acaba. A mocidade, despregando o estandar-te da civilização, prepara-se para os seus graves destinospela cultura das letras; arroteia os campos da inteligência;aspira as harmonias dessa natureza possante que a cerca;concentra num foco todos os raios vivificantes do formo-so céu, que alumia; prova forças enfim para algum dia re-novar pelas idéias a sociedade [...].

1 Conta Antonio HenriquesLeal que os Primeiros cantosforam parar nas mãos deAlexandre Herculano pormeio de seu irmão, o Sr.Ricardo Henriques Leal, queentão se achava em Lisboa.Foi o próprio Ricardo que,desejoso de saber a opiniãode Herculano, encaminhou ovolume de poemas ao livreiroSr. Bertrand para que estemostrasse ao grande escritorportuguês. “O livreiro –escreve Henriques Leal –assim o fez, e passados diasdeclarou-lhe o exímioliterato transportado deentusiasmo que se lhe nãodaria de ficar com aqueleexcelente livro que lheproporcionara horas tãoaprazíveis, e dentro em poucoapareceu na página 5 dotomo VII da Revista UniversalLisbonense de 1847 este artigotão animador e benévolo”(Leal, 1875, p. 84).

2 Herculano nutria grandesexpectativas em relação aofuturo do Brasil, tanto que,dez anos antes do texto sobreo livro de Gonçalves Dias,ele afirmou num artigo, “OBrasil”, publicado em OPanorama, em 30 dedezembro de 1837, que “oBrasil é uma terra deesperanças. [...] À sombra deboas leis, e se alcançar atranqüilidade interior,aquele império crescerá cadavez mais em navegação eindústria; assim o horizontedo seu futuro brilhante não édifícil de compreender”(Herculano, 1980, p. 173-174).

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[O Brasil] É um mancebo vigoroso que derriba um velhocaquético, demente e paralítico. O que completa, porém, aprova é o exame não comparativo, mas absoluto, de algu-mas das modernas publicações.Os Primeiros cantos são um belo livro; são inspirações deum grande poeta. A terra de Santa Cruz que já conta ou-tros no seu seio pode abençoar mais um ilustre filho.O autor, não o conhecemos; mas deve ser muito jovem.Tem os defeitos do escritor ainda pouco amestrado pelaexperiência: imperfeições de língua, de metrificação, deestilo. Que importa! O tempo apagará essas máculas e fica-rão as nobres inspirações estampadas nas páginas desseformoso livro (Herculano apud Dias, 1944, p. 8-14).

Como se sabe, as palavras sinceras de Alexandre Her-culano foram fundamentais tanto para a afirmação do pro-jeto poético gonçalvino quanto para a própria consagraçãode Gonçalves Dias na literatura brasileira. Nesse sentido,quando da reunião de seus três livros de poesia em umúnico volume batizado de Cantos, em 1857, o poeta mara-nhense passou a reproduzir o artigo de Herculano na for-ma de prólogo. No texto que antecede a reprodução doartigo, expressando sua gratidão, ele afirma que:

[...] merecer a crítica de A. Herculano, já eu considerariacomo bastante honroso para mim; uma simples mençãodo meu primeiro livro, rubricada com seu nome, desejava-o de certo; mas esperá-lo, seria de minha parte demasiadavaidade. [...] [O] ilustre escritor pôs por alguns momentosde parte a severidade que tem direito de usar para comtodos, quando é tão severo para consigo mesmo – e, bene-volamente indulgente, dirigiu-me algumas linhas, que mefizeram compreender quão alto eu reputava a sua glória, naplenitude do contentamento, de que suas palavras me dei-xaram possuído (Dias, 1944, p. 7-8).

Antes de tecer apenas elogios, que evidentementemuito lisonjearam o poeta maranhense, o escritor portu-guês também se preocupou em fazer uma ressalva em rela-ção aos Primeiros cantos. Na verdade, ele reclama um maior

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espaço no livro para as “Poesias americanas”.3 Para Hercu-lano, como existia “nos poetas transatlânticos [...] por viade regra demasiadas reminiscências da Europa”, Gonçal-ves Dias deveria ter se ocupado mais com a temática naci-onal, já que os poemas americanos funcionavam, para ocrítico, como uma espécie de verdadeiro “pórtico do livro”(Herculano apud Dias, 1944, p. 13). Semelhante a outraobservação feita anteriormente por Almeida Garrett quereclamava de falta de cor local na produção literária dosárcades brasileiros,4 Herculano remata sua opinião obser-vando, como outro sincero conselho de mestre preocupadoem indicar o melhor caminho para o aprendiz, que “esseNovo Mundo que deu tanta poesia a Saint-Pierre eChateaubriand é assaz rico para inspirar e nutrir os poetasque cresceram à sombra das suas selvas primitivas” (Her-culano apud Dias, 1944, p. 13).

A despeito das futuras consequências que esse artigoterá sobre o desenvolvimento da obra literária de Gonçal-ves Dias, deve-se, no entanto, atentar aqui que a influên-cia do autor português vinha de longe, relacionando-secom o processo de formação intelectual do poeta brasilei-ro, notadamente no período em que este cursou Direito naUniversidade de Coimbra (1840-1844). Aliás, em 1857, nojá referido texto que antecede o artigo de Herculano emCantos, Gonçalves Dias reconhece tal influência, afirmandocom igual sinceridade que: “o escritor [Herculano] co-nhecia-o eu há muito, mas de nome e pelas suas obras:essas obras que todos nós temos lido e esse nome que eusempre ouvira pronunciar com admiração e respeito” (Dias,1944, p. 7).

Herculano e A voz do profeta

Em novembro de 1836, aos vinte e seis anos, Alexan-dre Herculano de Carvalho e Araújo aparece propriamen-te para a literatura portuguesa por meio da publicação daprimeira série de textos de um panfleto, de nítido teor po-

3 Os Primeiros cantos, damesma forma que os demaislivros de poemas publicadospor Gonçalves Dias, sãodivididos em três partes:Poesias americanas, Poesiasdiversas e Hinos. Na primeiraedição do livro, em 1847,apenas cinco poemasapareciam sob o nome dePoesias americanas: “Cançãodo exílio”, “O canto doguerreiro”, “O canto doPiaga”, “O canto do índio” eo “Morro do Alecrim”.Quando da publicação deCantos (1857), GonçalvesDias reescreveu o poema“Morro do Alecrim”,dividindo-o em dois:“Deprecação” e “Caxias”.

4 Em 1826, AlmeidaGarrett, ao comentar sobre aprodução literária dosárcades brasileiros, nocapítulo “Restauração dasletras, em Portugal e noBrasil, em meados do séculoXVIII” do ensaio Bosquejo dahistória da poesia e línguaPortuguesa, que serviu deabertura à coletânea depoemas conhecida comoParnaso lusitano, queixa–seque “as majestosas e novascenas da natureza” deveriamter dado aos nossos poetas“mais originalidade, maisdiferentes imagens,expressões e estilo”. Para oescritor português, “o espíritonacional” parece estartolhido pela “educaçãoeuropéia” e que por isso ospoetas “receiam de semostrar americanos” (Garrettapud César, 1978, p. 87-92).

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lítico, que ficou conhecido como A voz do profeta. Em fe-vereiro do ano seguinte, sairia a segunda série, juntamen-te com uma nova edição da primeira. Além dessasrepublicações em Portugal, é importante salientar aindaque nesse mesmo ano também foi publicada no Brasil umaoutra edição de A voz do profeta. De imediato, pode-seconjecturar que as sucessivas edições do livro em tão cur-to espaço de tempo indicam o grande potencial de impac-to desse texto panfletário. Além de discutido nos meiosliterários e políticos locais, inclusive tornando seu autor,nas palavras de um crítico português, “conhecido de umdia para outro” (França, 1993, p. 127), essa obra de Hercu-lano tem sua gênese explicada pelo atropelo dos aconteci-mentos históricos em Portugal causado principalmente pelacisão política entre os liberais no período imediatamenteposterior ao término da Guerra-Civil, em 1834, e que cul-minou, em 1836, com a chamada Revolução de Setembro.Liberal conservador e, acima de tudo, cartista, AlexandreHerculano opunha-se à ideia do sufrágio universal, defen-dendo que o efetivo poder político deveria ser exercidopredominantemente por uma aristocracia recrutada na novaburguesia rural. Dessa maneira, descontente com a açãopolítica dos setembristas, Herculano, além de, como formade protesto, demitir-se da direção da Biblioteca Públicado Porto, cargo que ocupava desde o final da Guerra Civil,escreveu e publicou, no calor dos próprios acontecimen-tos, A voz do profeta, que, por sua feita, transformou-se nasua resposta literária e pública à Revolução de Setembro.

Em A voz do profeta, como o nome já o antecipa, enum tom severo que dialoga com o tom de seus poemas,nos quais, inclusive, já aparece, como marca recorrente,uma solenidade de profeta bíblico,5 Herculano adota umapostura, inerente ao gênio romântico, que, transcendendoa sua mera condição de indivíduo, comporta-se antes comoa Voz, o Guia, enfim, o Profeta. De modo geral, e mais doque nunca, acreditando não somente numa utilidade so-cial para a sua literatura como também no seu poder deintervenção histórica, o texto de Herculano, para quem o

5 Para Saraiva e Lopes, jáem sua mais antigacomposição poética, “Semanasanta”, datada de 1829,Herculano, dando vida a essetom profético, enaltece osideais cristãos e liberais(“Creio que Deus é Deus eos homens livres!”) e, aomesmo tempo, credita oassassinato de Cristo aos“tiranos e hipócritas” e às“turbas envilecidas, bárbaras,e sevas” (Saraiva; Lopes,1989, p. 770).

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abandono da Carta Constitucional contrariava todos osprincípios pelos quais ele tinha lutado, direciona-se tantocontra os excessos de violência cometidos pela “ralé popu-lar”, a quem chama de “fezes da sociedade”, quanto con-tra os malditos dirigentes setembristas que “acenderam ovulcão popular”.

Gonçalves Dias e a Meditação

Apesar de ter sido publicado apenas ao longo do pri-meiro semestre de 1850, na revista Guanabara, quandoGonçalves Dias já era um autor consagrado e plenamentereconhecido nas letras nacionais, é importante não perderde vista que o fragmento de Meditação é, antes de qual-quer coisa, uma obra de juventude. Em função disso, épossível não apenas constatar que se, por um lado, nesseprimeiro estágio a obra literária é muito mais infensa a in-fluências estéticas, por outro, também já apresenta algu-mas de suas principais matrizes temáticas, incluindo-se oindianismo. Concomitante à feitura dos últimos poemas queentrariam nos Primeiros cantos, essa obra singular foi escri-ta entre os anos de 1845 e 1846.

De modo geral, os três capítulos que compõem o textoarticulam-se em torno de um diálogo travado entre umjovem e um velho sobre as possibilidades futuras de umpaís que, pela leitura do texto, infere-se obviamente ser oBrasil. Dentro do texto, a personagem do jovem ainda ocu-pa a posição central de narrador. Por sua vez, o velho, alémde representar em si a voz da experiência, é dotado de umcaráter quase divino, pois, com a simples a intervenção dotoque mágico de suas mãos sobre os olhos do rapaz, permi-te a este viajar pelo novo país. E tal viagem adquire umcaráter peculiar, uma vez que ela não se realiza apenas doponto de vista espacial, mas, sobretudo, do ponto de vistatemporal. Em outras palavras, a ação do ancião faz comque o jovem possa ter acesso tanto ao presente quanto aosoutros e diversos tempos históricos do Brasil. Por conta do

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ir e vir, o jovem, ao se defrontar com esses vários tempos e,por conseguinte, ao narrá-los, acaba assumindo uma pos-tura semelhante à de um profeta que medeia (revelando)as relações entre os homens e os mistérios de Deus, inaces-síveis a esses mesmos homens. Pensado dentro dessa pers-pectiva, ao imitar a postura de guia e profeta inerente aogênio romântico, o comportamento do jovem narrador deMeditação reflete de certo modo tanto a postura quanto odesejo do próprio Gonçalves Dias de também interferir, aomenos literariamente, no processo de formação da socie-dade brasileira, cuja ascensão à civilidade, para ele, passa-va igualmente pelo fim do trabalho escravo.

Diálogo textual

No primeiro capítulo de Meditação, composto por seispartes, o grande problema que evidentemente salta aos olhosé, sem sombra de dúvidas, o da escravidão. Na primeiravisão do jovem profeta sobre o Brasil, o problema apresen-ta-se a partir da constatação de que a sociedade brasileiraassentava-se e, por conseguinte, dependia sobremaneirado trabalho escravo. Nesse sentido, tal condição, entra-nhada na estrutura socioeconômica do país, tornava-se omaior empecilho, que obviamente deveria ser transposto,para que o país, enfim, pudesse alçar-se a um novo e dese-jado status de civilidade.

Ao longo desse capítulo e entre outros argumentos, acrítica à escravidão é feita em função do “grande medo”de uma possível revolta dos escravos. Para o velho, se suasduras palavras sobre a escravidão não surtirem efeito sobreos brasileiros, talvez um acontecimento doloroso possa, naprática, levá-los à reflexão. Desse modo, as amargas liçõesda experiência, não apreendidas em tempos de relativacalma, poderiam, no entanto, ser apreendidas agora pormeio do risco eminente de uma possível e traumática rup-tura social. É nessa direção que, na última parte do pri-

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meiro capítulo, o pensamento do jovem profeta é subita-mente tomado por uma terrível visão:

[...] os meus olhos seguiam um objeto – horrível como otalvez de um grande infortúnio.Como Laocoonte, sofrendo terríveis agonias, concentra-va todas as suas forças para espedaçar os anéis vigorosos daserpente que o enlaçava.Como no meio de uma habitação que arde, o homem loucoe delirante agarra-se às traves em brasa meio consumidaspelo incêndio, e não sente a dor do fogo, que lhe rói a carnedos membros.Os homens que sofriam reuniram-se como um só homem,e soltaram um grito – horríssono, como seria o desabar dosmundos.E pareceu-me que eles se transformavam em unidade comoum colosso enorme e válido, cuja fronte se perdia nas nu-vens, e cujos pés se enterravam em uma sepultura imensa eprofunda como um abismo.E o colosso tinha as feições horrivelmente contraídas pelaraiva, e com os braços erguidos tentava descarregar às mãosambas um golpe que seria de extermínio.E a vítima era um povo inteiro; eram os filhos de umanumerosa família, levados ao sacrifício por seus pais, comoAbraão levou a Isaac, seu filho.E como Isaac, as vítimas deste sacrifício cruento tinhamcortado a lenha para a sua fogueira, e adormeceram sobreela, sonhando um festim suntuoso.E como Isaac também, eles acordaram com as espadas so-bre as suas cabeças, e o seu despertar foi terrível, porquesomente Deus os poderia salvar.E um calafrio de terror percorreu a medula dos meus ossos,e o meu sangue parou nas minhas veias, e o meu coraçãocessou de bater.E o ancião que tudo sabia, compreendeu o meu sofrimen-to, e tirou a mão de sobre as minhas pálpebras, e os meusolhos se abriram de novo.E um manto de trevas impenetráveis se desenrolou subita-mente diante dos meus olhos, como diante dos olhos deTobias, quando o Senhor quis provar a sua virtude.

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E eu senti que a vida fugia dos meus sentidos, e caí de facecontra a terra com a inércia de um corpo sem vida (Dias,1850, p. 107).

Nessa passagem, a imagem poética diz tudo. Gonçal-ves Dias, ao frisar no seu texto que “os homens que sofriamreuniram-se como um só homem, e soltaram um grito –horríssono, como seria o desabar dos mundos”, refere-semetaforicamente ao grande medo que, desde fins do sécu-lo anterior, povoava o imaginário das elites brasileirasoitocentistas, isto é, a possível repetição no Brasil de umarevolta de negros nos mesmos moldes da que aconteceraem São Domingos, atual Haiti. Segundo Célia de Azeve-do, o início do século XIX trouxe pelo menos dois grandesacontecimentos que, por sua vez, tiveram grande influên-cia no arraigado modo de vida escravista local. De um lado,o movimento emancipacionista, que, ancorado inicialmentenas ideias da ilustração, foi posteriormente fortalecido pelaadesão da Inglaterra, que iniciou, inclusive sobre o Brasil,as pressões para coibir o tráfico de escravos africanos paraa América; e, de outro, o grande medo suscitado pelo su-cesso da sangrenta revolução de São Domingos. Sobre esta,a historiadora afirma:

[...] os negros não só haviam se rebelado contra a escravi-dão na última década do século XVIII e proclamado suaindependência em 1804, como também – sob a direção deToussaint L’Ouverture – colocavam em prática os grandesprincípios da Revolução Francesa, o que acarretou trans-tornos fatais para muitos senhores de escravos, suas famí-lias e propriedades (Azevedo, 1987, p. 35).

De maneira mais do que explícita, a alusão no texto àrevolta do Haiti é construída metaforicamente por meioda súbita transformação dos “homens que sofriam” numimenso gigante, cujas feições estavam “horrivelmente con-traídas de raiva”, e que, movido por uma força irracional,“tentava descarregar às mãos ambas um golpe que seria deextermínio”. Nessa visão apocalíptica, “a vítima era o povo

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inteiro”, que, a exemplo do Isaac bíblico, seria conduzido,sem nenhuma suspeita, ao seu próprio sacrifício. Nesse sen-tido, fazendo o papel de Abraão, a elite brasileira, sem, éclaro, os motivos religiosos que norteavam as ações do pa-triarca bíblico, e ao insistir na manutenção da escravidãoe no consequente e reinante estado de tensão social, seriaa responsável, em primeira e última instâncias, pela pró-pria destruição do país e de seu povo. Portanto, tal manu-tenção suscitava um iminente risco a todos os brasileiros.Nesse sentido, e relembrado a todo momento, o exemplodo Haiti apresentava-se aos olhos de todos como um peri-go constante, como um grande medo, quase sempre pres-tes a explodir. Se, no caso de Meditação, a terrívelconsequência do grande golpe, que poderia ser desferidopelos “homens que sofriam”, é suspensa pela ação provi-dencial do velho, que, compreendendo o sofrimento cau-sado pela visão no jovem, faz com que ele abra novamenteos olhos, no caso da realidade brasileira, a manutenção daescravidão implicava a convivência forçada e cotidiana coma possibilidade de, a qualquer momento, esse fantasma tor-nar-se real.

Expresso por Gonçalves Dias, o medo latente das eli-tes brasileiras das chamadas “classes perigosas”, que na-quele momento restringia-se notadamente aos escravos,não era um medo restrito apenas ao Brasil. AlexandreHerculano, na sua A voz do profeta, também escreve umcapítulo emblemático, que, pela evidente similitude comessa última passagem de Meditação, bem poderia ter servi-do de exemplo a Gonçalves Dias. Como já se mostrou an-teriormente, para Herculano, as “classes perigosas” eramas chamadas “ralés populares”, que, por sua vez, seriamnada mais que as “fezes da sociedade”. No capítulo XIIIde sua obra, Herculano revela uma visão de futuro em que“os magotes” dos campos e das cidades transformam-se,cada um, numa única e grande turma, que, convertidanuma “besta-fera”, assemelhada a um tigre, lança por todaparte gritos de extermínio:

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Eu vi uma visão do futuro, e o Senhor me disse: vai e reve-la-a na terra.Como em panorama imenso, um reino inteiro estavadiante dos meus olhos.E nas duas cidades mais populosas dele homens de má ca-tadura começavam de aglomerar-se nas praças e a trasbor-dar pelas ruas.E nos campos e nas aldeias outros homens com aspecto deréprobos começavam tambem a apinhar-se nos passos dasserras, nas assomadas das montanhas e nas clareiras dasflorestas.E tanto nas faces dos filhos dos campos, como nas doshabitadores das cidades adivinhava-se o grito de extermi-nio que bramia no fundo dos corações.Os magotes de serranos fundiram-se n’uma só turma; e omesmo sucedeuaos das cidades.E cada uma das turmas se converteu em uma besta-fera,que se assemelhava ao tigre.Agigantada era a sua estatura, e na fronte de uma lia-se:“fanatismo”; e na da outra: “desenfreamento”.Com os olhos tintos em fel e sangue, correram então osdois monstros um para o outro, ergueram-se em pé e es-tenderam as garras.No mesmo instante abriram-se os céus: dous grandes cu-telos afiados e dois fachos encendidos cahiram junto dasalimárias ferozes.E nas lâminas dos cutelos estavam escritas com letras defogo as palavras seguintes: “maldição de Deus”.E cada uma das alimárias segurou com a esquerda um dosfachos, e com a direita um dos cutelos.A das cidades arrojou o seu facho sobre os campos, e oscampos ficaram em um momento áridos e ermos.E a outra sacudiu o seu sobre as duas cidades, e súbito nolugar onde elas foram estavam dois montões de ruínas.Depois, combatendo por largo tempo e atassalhadas degolpes, caíram e renderam os espíritos.Então as lágrimas me ofuscaram os olhos; porque bem en-tendia o que significava a visão.

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Mas enxugando-os, tornei a lançá-los para o lugar da pele-ja.E vi uma solidão sáfara e negra, sobre a qual a perder devista para todos os lados alvejavam milhares de ossadas.E em cima dellas estavam assentados dous espectros gi-gantes. Chamavam-se Assolação e Silêncio (Herculano,1993, p. 48-50).

Perceptível, a imagem literária dos dois textos é muitosemelhante; de um lado, “a ralé popular”, tanto do campoquanto da cidade, transforma-se numa “besta-fera”, lan-çando por toda parte “gritos de extermínios”; por outro, “oshomens que sofriam”, do texto de Gonçalves Dias, reuni-ram-se como um só homem (um enorme colosso), lançan-do um grito horríssono como seria o desabar dos mundos.De qualquer forma, e a despeito de seus intuitos diferen-tes, tanto a idêntica postura de profetas quanto a similitudeentre os dois fragmentos sugerem mesmo a possibilidadede o texto do escritor português ter servido de exemplo aobrasileiro, reforçando, dessa forma, o evidente diálogo en-tre ambos.

A teoria da história

Além desse evidente diálogo textual, Gonçalves Diastambém se apoia na teoria de ciclos históricos de Hercula-no. No terceiro e último capítulo de Meditação, e aindapressupondo uma evidente e providencial intervenção di-vina do velho, o espírito do jovem narrador é transportadoao início dos tempos locais. A partir daí e aos poucos, esem nunca perder de vista o referencial de comparaçãocom “a triste experiência do presente”, ele revelará ao lei-tor alguns aspectos da história do Brasil. De saída, assu-mindo-se como um “viajor que vai empreender longa via-gem”, cujo espírito, confundindo o presente com o passado,assistiu “com prazer inefável ao espetáculo das erastransactas”, o jovem observa que encontrou “nas cenas danatureza e da sociedade em seu começo quadros belíssimos

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de poesia e lições de moral sublime, que são como ineren-tes à natureza humana” (Dias, 1850, p. 171). Em outraspalavras, ao transitar por diferentes tempos históricos e den-tro dos próprios preceitos românticos que caracterizam osujeito poético como um vate, o narrador adota uma pos-tura semelhante à de um profeta bíblico, uma vez que tam-bém lhe será concedido o privilégio de ter acesso a reali-dades que teoricamente são inacessíveis aos homenscomuns.

No seguinte fragmento, e num tom ainda pessimista, ojovem narrador arremata sua visão histórica sobre a colo-nização brasileira, destacando em chave negativa que,apesar de aplaudida pela “Europa inteligente”, a “naçãomarítima e guerreira” fundava “um novo império em novomundo” em bases espúrias, pois assentavam-se antes novício do “cancro da escravatura” e no “amor ao ouro” doque propriamente “no amor do trabalho”:

E a Europa inteligente aplaudiu a nação marítima e guer-reira que através do oceano fundava um novo império emmundo novo, viciando-lhe o princípio como o cancro daescravatura, e transmitindo-lhe o amor do ouro sem o amordo trabalho.E os valentes soltaram o grito da vitória, e em lembrançadela quiseram assentar uma cruz no solo por eles conquis-tado.E no chão que eles cavavam para o assento da cruz encon-traram uma veia de ouro, que os distraiu do seu trabalho.E a cruz ficou por terra enquanto eles espalhavam prodiga-mente o azougue fugitivo para descobrir o depósito do metalprecioso.E viu Deus que a nação conquistadora se tinha pervertido,e marcou-lhe o último período da sua grandeza.E deu-lhe uma longa série de anos para que ela lastimasse asua decadência, e conhecesse a justiça inexorável do Todo-Poderoso.Ela tornar-se-ia fraca, porque tinha escravizado o fraco;incrédula, porque tinha abusado da religião; e pobre, por-que sobremaneira tinha cobiçado a riqueza.

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E todas as nações do mundo passariam diante dela, compa-rando a sua grandeza d’outros tempos com a miséria deentão.E ela tornar-se-ia o opróbrio das gentes de maravilha quetinha sido (Dias, 1850, p. 174).

Além de criticar o “cancro da escravidão” e a ausên-cia do amor ao trabalho como impeditivos futuros ao de-senvolvimento do Brasil, o jovem narrador, por meio daimagem literária do abandono da cruz, reitera o real inte-resse da exploração. Num jogo de aparência e essência, onarrador observa que do mesmo chão, escavado pelos por-tugueses para a fixação da cruz, brota um veio de ouro que“os distraiu do seu trabalho”. Desse modo, diante da possi-bilidade imediata da riqueza, a preocupação religiosa érelegada a um providencial segundo plano, já que a “cruzficou por terra” e, prontamente, a cobiça é elevada à razãoprimeira que não somente legitima a dizimação eescravização dos indígenas como também passa a justificara expropriação das riquezas do novo mundo. Em função doabandono da religiosidade e, nesse sentido, comportando-se aqui como verdadeiro profeta bíblico, o narrador revelaque foi a inexorável vontade de Deus que condenou Por-tugal, a nação conquistadora que tinha se pervertido, auma “longa série de anos para que ela lastimasse a suadecadência”. Ou seja, por ter “escravizado o fraco”, “abu-sado da religião” e apenas “cobiçado a riqueza”, a ira divi-na condena a nação lusa a se tornar “o opróbrio das gentesde maravilha que tinha sido”.

A condenação tácita de Portugal a um longo períodode decadência, ligado ao momento histórico dos descobri-mentos e mais especificamente ao contexto da montagemdo sistema colonial brasileiro, dialoga diretamente com avisão de ciclos históricos que permeia as posições teóricasde Alexandre Herculano na escrita de sua História de Por-tugal, cujo primeiro volume saiu em 1846. Novamente, apa-rece aqui mais uma possível influência do escritor portu-guês sobre o poeta brasileiro. Inicialmente, o conceito de

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ciclos históricos foi desenvolvido numa série de cinco tex-tos (Cartas sobre a história de Portugal) publicados na Revis-ta Universal Lisbonense, de 7 de abril a 3 de novembro de1842. Na quinta carta, Herculano afirma que:

[...] em dois grandes ciclos me parece dividir-se natural-mente a história portuguesa, cada um dos quais abrangeumas poucas fases sociais, ou épocas: o primeiro é aqueleem que a nação se constitui; o segundo, o da sua rápidadecadência: o primeiro é o da Idade Média; o segundo, o doRenascimento (Herculano apud Catroga, 1998, p. 93).

Dito de outro modo, agora segundo a interpretação dohistoriador Fernando Catroga, para Herculano, o Renasci-mento representava o começo da decadência pátria, umavez que foi o responsável direto pelo início do processo queconduziu ao império da unidade e do centralismo.

E este levou ao estabelecimento da monarquia absolutasobre as ruínas da “monarquia liberal” da Idade Média, porque os Descobrimentos e as conquistas acabaram por mu-dar a índole da nação, transformando-a, de guerreira emmercadora, de municipal em cortesã (Catroga, 1998, p. 93-94).

Ou ainda, nas palavras do próprio Herculano, “adqui-rimos um largo patrimônio para dividir com as outras na-ções: reservamos para nós a fraqueza interior, consequênciade esforços mui superiores aos nossos recursos para remotasconquistas; reservamos para nós a corrupção moral e a de-cadência material” (Herculano apud Catroga, 1998, p. 94).Assim, arremata Catroga, ao responsabilizar a centraliza-ção política, a aventura colonial e o centralismo católico einquisitorial como causas primordiais da decadência lusa,Herculano “fixou uma das interpretações mais controver-sas sobre a história de Portugal que, daí para frente, seráum ponto de referência obrigatória em todas as interroga-ções sobre o nosso destino” (Catroga, 1998, p. 94).

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Em suma, pelo menos no que tange à Meditação,pode-se dizer que, ao explicitar tal “referência obriga-tória”, Gonçalves Dias seguiu de perto a lição do mestreportuguês.

Referências

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A paródia como fantasma

Josalba Fabiana dos Santos*

RESUMO: A menina morta, de Cornélio Penna, é um romanceque sempre desnorteou a crítica brasileira pelo seu aspecto apa-rentemente anacrônico. No entanto, um estudo mais cuidado-so demonstrará que esse livro publicado em 1954 dialoga sobre-maneira com o seu momento histórico e estético, pois seapresenta como uma paródia do tradicional romance gótico in-glês. Vale lembrar também que a paródia foi um recurso utiliza-do à exaustão pelo modernismo. De maneira que Cornélio Pennanão seria anacrônico, ao contrário, seria um romancista do seutempo e até além, pois se trata aqui de uma narrativa requintada– A menina morta – que se constitui a partir de um gênero dacultura de massa, o romance gótico.

PALAVRAS-CHAVE: paródia, gótico, Cornélio Penna.

ABSTRACT: Brazilian literary critics have always been puzzledby the apparent anachronism of A menina morta, by CornélioPenna. However, a closer examination will demonstrate thatthis book, published in 1954, is strictly connected with itshistorical and aesthetic period, since it is characterised as aparody of the traditional English Gothic novel. It is worthmentioning that the parody was a highly utilised resource duringthe modernist movement. Therefore, Cornélio Penna shouldnot be seen as anachronistic but as a novelist of his time andbeyond, since A menina morta is an exquisite narrative wovenfrom elements of the Gothic novel, a mass-production genre.

KEYWORDS: parody, gothic, Cornélio Penna.

Em Uma teoria da paródia, Linda Hutcheon fala, entrevárias outras coisas, de uma “reacção intencionada inferida,motivada pelo texto” (1989, p. 76), que ela chama de ethos.Enquanto a intertextualidade estaria no leitor, de forma

* Universidade Federal deSergipe (UFS).

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que este seria livre para fazer diferentes associações, a pa-ródia se inscreveria ela própria como intenção, pedindoum leitor relativamente instrumentalizado dentro da tra-dição literária. Logo, é preciso buscar os vestígios do textoque desencadeou a paródia. A saber, os vestígios do góticoinglês possíveis de se encontrar no romance de CornélioPenna ora abordado.1 Esses vestígios, essas pistas, deverãoacenar para os inumeráveis enigmas que a narrativacorneliana proporciona. É objetivo deste trabalho tambémmarcar a necessidade de uma leitura crítica que busqueagregar contexto histórico (cultura) e texto (na sua di-mensão estética), lembrando que a literatura é cultura eestética, sobretudo trabalho de elaboração estética. Estu-dar a paródia, principalmente a estrutura paródica do tex-to ou o que faz do texto uma paródia, não exclui (muito aocontrário) outras correlações possíveis: entre o romancemoderno e o gótico, entre a paródia como fantasma ouduplo, o fantasma ou duplo como metáforas, as metáforascomo alegoria, e, no caso do romance corneliano, a alego-ria no lugar da violência patriarcal-escravocrata.

De 1954, A menina morta é o último livro publicadopor Cornélio Penna. A narrativa transcorre em meio a umforte clima de mistério. As cenas iniciais são construídasem torno dos preparativos para o enterro da filha mais novada rica família Albernaz, proprietária do Grotão, uma fa-zenda produtora de café no século XIX, situada às mar-gens do rio Paraíba, na fronteira entre as então provínciasdo Rio de Janeiro e de Minas Gerais. A produção é con-trolada pelo Comendador, o patriarca, e executada por es-cravos. Não se diz o que levara a menina à morte. E esseserá apenas o primeiro de uma série de enigmas lançadosao leitor, mas outros virão, como, por exemplo, o dissenso en-tre os pais da criança – o Comendador e Dona Mariana –; atentativa de assassinato que sofrerá o Comendador; a mor-te do escravo que tentara matá-lo; a saída repentina deDona Mariana da fazenda.

1 Este artigo é parteintegrante do projeto Aquestão do mal em CornélioPenna e Lúcio Cardoso, querecebe apoio financeiro doConselho Nacional deDesenvolvimento Científicoe Tecnológico (CNPq).

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Já que a menina, quando viva, funcionara como um eloa unir a casa-grande e a senzala, o Comendador ordena quea filha mais velha regresse do colégio da Corte, onde estu-dava, para ocupar o lugar da irmã morta. É assim que CornélioPenna constrói um romance cindido, no qual a primeirametade é dominada pela presença ausente da criança oupor sua memória e a segunda metade será, por sua vez, ocu-pada pelo retorno de Carlota, a filha mais velha.

A opção por essa forma ou fôrma narrativa cindida,dividida, constituirá, por assim dizer, um fantasma ou du-plo do texto, pois a menina, morta desde o início da narra-tiva, se presentificará por meio da irmã, que retorna a par-tir da metade do livro. Isto é, as duas irmãs são duplos umada outra e existe ainda uma série de outros duplos ao lon-go do romance. Contudo, neste momento preferimos nosdeter nos fantasmas ou duplos que avultam da construçãodo texto como tal e não naqueles que são narrados, quefazem parte da história. Ora, se A menina morta se desdo-bra e se duplica sobre si, não é difícil intuir que seja, porsua vez, um romance desdobrado de outro ou de outros,dada a fixação de seu autor por duplos.

Uma leitura da fortuna crítica da obra de CornélioPenna confirmará essa hipótese e mostrará uma tendênciageral a vê-lo como anacrônico, deslocado do seu momentoestético e histórico. Mas o encaminhamento aqui preten-de dizer exatamente o contrário disso. Para a crítica, é comose Cornélio Penna fosse um autor ocupado com fantasmas,pois haveria nele uma tendência a tratar do passado, do jámorto. Afinal, ambientado na segunda metade do séculoXIX e aparentando seguir uma escrita que desconsiderariaas conquistas das vanguardas europeias e nacionais domodernismo, A menina morta faz pensar em antiguidades.Mário de Andrade, que não conheceu este romance, falade seu autor como um antiquário, um guardador de peçascaídas em desuso, mas ainda com algum valor. Diz ele:

O Sr. Cornélio Penna tem uma força notável na criação dosombrio, do tenebroso, do angustioso. As suas evocações

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de ambientes antiquados, de pessoas estranhas ou anor-mais, de cidades mortas onde as famílias degeneram lenta-mente e a loucura está sempre à “espreita de novas víti-mas”, tudo isso é admirável e perfeitamente conseguido.Alma de colecionador vivendo no convívio dos objetosvelhos, o Sr. Cornélio Penna sabe traduzir, como ninguémentre nós, o sabor da beleza misturado ao de segredo, dedegeneração e mistério, que torna uma arca antiga, umacaixinha de música, um leque tão evocativo, repletos deuma sobrevivência humana assombrada e trágica. Sente-se que os seus romances são obras de um antiquário apai-xonado, que em cada objeto antigo vê nascer uns dedos,uns braços, uma vida, todo um passado vivo, que a seumodo e em seu mistério ainda manda sobre nós (Andrade,1958, p. 174 – grifo meu).

Queremos salientar dois aspectos nesta passagem de“Romances de um antiquário”, o título desse artigo de Máriode Andrade. Primeiro, a vocação do autor de A meninamorta para se deter no antigo, no passado, e, segundo, asua singularidade. Isto é, por um lado Cornélio Penna nãoseria um autor do seu tempo, estaria incondicionalmentepreso ao que passou, ao que não é mais. Ele, Cornélio, comoum colecionador privilegiado, teria a capacidade de trazerpara o âmbito da ficção qualquer objeto perdido em suamaterialidade, mas potencialmente vivo para o romance.Ou seja, tudo o que compõe a sua narrativa estaria mortoe vivo ao mesmo tempo, de modo que a própria matéria doromance corneliano seria fantasmagórica. O escritor trariaainda para dentro da literatura brasileira uma escrita úni-ca, ocupada com o mistério. O texto de Mário não deixacompletamente claro se ele está falando que ninguém en-tre nós fez isso antes ou se Cornélio seria o que o fez me-lhor. De todo modo, a singularidade, o lugar especial doautor de A menina morta estaria reservado. No entanto,em alguns casos a presença constante do mistério incomo-da Mário de Andrade, que descreve exageros:

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Não vejo razão para ele [Cornélio Penna] se utilizar assimde truques fáceis, que atingem mesmo, às vezes, o irritantedos romances de fantasmas, ruídos atrás de portas, cochi-chos indiscerníveis, medos inexplicáveis, que nada podemacrescentar ao verdadeiro mistério (Andrade, 1958, p. 174-175).

Como já foi dito, Mário de Andrade não conheceu oúltimo livro de Cornélio Penna, de maneira que não sesabe se este comentário o atingiria, ao último livro. O fatoé que aqui dois aspectos interessam especialmente: a insis-tência na associação entre a obra corneliana e o mistério ea aproximação com os romances de fantasmas. Um nãoexclui o outro, na verdade, somam-se: mistério e romancesde fantasmas. Onde há um, há outro. Note-se que, en-quanto Mário discutia a presença do mistério, tudo eraadmissível, por assim dizer, mas, quando ele acha queCornélio “pesa a mão”, surge uma nova classificação: ro-mance de fantasma. Romance de fantasma seria o limitepara o bom gosto, quando as narrativas cornelianas entramnesse território elas se perdem, elas perdem em valor lite-rário. Abandonemos Mário e passemos a Luiz Costa Lima,que é um pouco mais específico do que o autor deMacunaíma. Costa Lima afirma:

Pensar que A menina morta é de 1954 é de difícil entendi-mento, pela absoluta falta de contato que o romance mos-tra com a produção imediatamente anterior. [...] devere-mos tomar Cornélio como o raro epígono de algumacorrente precedente – do romance gótico, talvez, mistura-do a Camilo Castelo Branco (Lima, 1976, p. 56).

Costa Lima retoma a ideia da singularidade já aponta-da por Mário de Andrade e levanta uma hipótese: Cornélioseria um epígono do romance gótico, talvez. Não se tratade uma afirmação contundente. Talvez Cornélio possa serconsiderado um representante do gótico no Brasil, mas CostaLima não o afirma categoricamente, apenas indaga, nemsequer retoma essa ideia ao longo do seu livro, A perversão

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do trapezista: o romance em Cornélio Penna. Como epígono,Cornélio pertenceria a uma geração seguinte ao gótico,seria uma espécie de pós-gótico. Portanto, novamente oseu caráter anacrônico é destacado: nem moderno nemgótico, porque o romance gótico propriamente dito já teriase esgotado. A menina morta estaria assim, na visão dessecrítico, fora do seu tempo, seria um romance deslocado,alienado do seu momento histórico e estético, talvez porisso estéril para muitos dos seus leitores.

Ao se referir a Fronteira (1935), o primeiro romance deCornélio Penna, Léo Schlafman sai do território das dúvi-das, do “talvez” de Costa Lima, e afirma claramente:

O espaço exterior de Itabira engloba os estados subjetivose expressa o sinistro, o triste, como inerentes à próprianatureza. A paisagem torna-se lúgubre pela projeção deestados de alma estranhos. Cornélio fala da magia e davibração que lhe inspira a gente de Itabira, e encontra noambiente mineiro as premissas do gótico. Entre as monta-nhas erguem-se os casarões cheios de sombras, esmagadospor telhados enormes. Paredes altas, sótãos, móveis pesa-dos, malas, relógios antigos, escorpiões, aranhas negras –tudo isso forma a moldura dentro da qual atuam presençasimpalpáveis, o perigo próximo, ameaçador... (Schlafman,2001, p. 14).

Segundo Léo Schlafman, Minas Gerais, a região deItabira, ao menos tal como configurada em Fronteira, secoadunaria com a atmosfera do gótico. Ou melhor, esteromance corneliano – ambientado nos primeiros anos daRepública, portanto, no final do século XIX – soube apro-veitar um potencial que Itabira já retinha: as montanhas,os casarões e os móveis antigos seriam perfeitos para emol-durar fantasmas e perigos, elementos que Léo Schlafmanatribui ao gótico, de maneira que Cornélio Penna teria sidosuficientemente sensível para perceber no Brasil um localque se coaduna com o clima de mistério descrito no ro-mance gótico europeu.

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E o que seria exatamente o gótico? Segundo o Dictionaryof literature, gótico é

um tipo de romance que foi extremamente popular no fi-nal do século XVIII, combinando elementos do sobrena-tural, do macabro e do fantástico, geralmente em cenáriosbem ao estilo Radcliffe, como abadias arruinadas ou caste-los antigos. Os heróis e/ou heroínas, tanto medievais quan-to modernos, na maioria dos casos usam uma linguagemformal, afetada, curiosamente em contraste (para o leitormoderno) com as situações estarrecedoras em que se en-contram. The castle of Otranto (1764), de Horace Walpole,e The mysteries of Udolpho (1794), de Ann Radcliffe estãoentre os exemplares mais conhecidos do gênero. Northan-ger Abbey (1818), de Jane Austen, continua sendo a paró-dia definitiva (1995, p. 92-93).

Gostaria de começar destacando a popularidade atri-buída ao romance gótico, popularidade de que a obra deCornélio Penna nunca desfrutou. A localização históricatambém é relevante: a maioria dos exemplos é datada dasegunda metade do século XVIII e há um único caso nocomeço do século XIX. Visto que Cornélio Penna produziusua obra entre os anos de 1930 e 1950, verifica-se que ocaráter anacrônico levantado por críticos como Mário deAndrade e Luiz Costa Lima não é nenhum absurdo. Mas adefinição acima nos declara ainda mais algumas coisasimportantes: o gótico se acercaria do sobrenatural em aba-dias arruinadas ou castelos antigos. Ora, pode-se dizer quetudo isso pode ser mais ou menos encontrado em A meninamorta, como se verá adiante.

Outra definição, que, a rigor, não contraria a anterior,é a do Companion to literature in English:

Ficção gótica. Um tipo de romance ou novela popular dofinal do século XVIII e início do século XIX. A palavra“gótico” havia passado a significar “selvagem”, “bárbaro”e “rude”, qualidades que os escritores achavam atraentecultivar, em reação ao neoclassicismo sóbrio da cultura do

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início do século XVIII. Romances góticos geralmente eramambientados no passado (frequentemente no passado me-dieval) e em países estrangeiros (particularmente em paí-ses católicos do sul da Europa); eles se passavam em mo-nastérios, castelos, masmorras e paisagens montanhosas.Os enredos apoiavam-se no suspense e no mistério, en-volvendo o fantástico e o sobrenatural. Elementos da for-ma começam a aparecer já em Ferdinand count fathom (1753),de Smollett, mas o primeiro romance gótico propriamentedito é The castle of Otranto (1764), de Horace Walpole.Romancistas que posteriormente se associaram ao estilogótico foram Clara Reeve, Ann Radcliffe, William Beck-ford, M. G. (‘Monk’) Lewis e C. R. Maturin. Sua influênciapode ser sentida na poesia romântica (por exemplo, Chris-tabel, de Coleridge), em Frankenstein, de Mary Shelley, noscontos de Edgar Allan Poe nos EUA, e nos romances dasirmãs Brontë (Ousby, 1992, p. 379).

O selvagem, o bárbaro e o rude aqui mencionados tam-bém podem ser observados no romance corneliano, tantona presença dos escravos quanto no sistema patriarcal-es-cravocrata. Se, por um lado, os cativos da fazenda na qualse desenvolve a narrativa são constantemente apontadoscomo selvagens e bárbaros, por outro é inegável que o pa-triarcalismo escravocrata, para atingir seus fins, será tãoou mais selvagem e bárbaro do que as pessoas que preten-de dominar e controlar. O Companion to literature in Englishmenciona ainda uma predileção por países estrangeiros epelo passado, sobretudo o medieval. Como já foi mencio-nado, A menina morta foi escrito nos anos de 1950, mas anarrativa se localiza na segunda metade do século XIX. Ahistória não se desenvolve em nenhum país estrangeiro,mas transcorre distanciada de qualquer centro urbano, ospersonagens só têm contato com habitantes da própria fa-zenda, o contato com moradores de outras propriedades émuito pequeno, quase inexistente. Consequentemente, odistanciamento temporal e o isolamento espacial contri-buem para criar o clima de mistério.

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Uma última definição do gótico pode ser explorada, ado Dicionário de termos literários (1974), de Massaud Moisés:

Derivando o seu nome do fato de passar-se em ambientemedieval, a prosa gótica apresenta, de forma genérica, osseguintes característicos: histórias de horror e terror,transcorridas em castelos arruinados, com passagens se-cretas, portas falsas, alçapões, conduzindo para locais mis-teriosos e lúgubres, habitados por seres estranhos que con-vivem com fantasmas e entidades sobrenaturais, ematmosferas penumbrosas e soturnas, onde mal penetra aluz do dia. [...] Quer se crer que não se trata de uma ficçãomenor, votada ao entretenimento do leitor, mas de ro-mances, ou novelas, dotados de outro interesse, na medidaem que os protagonistas, antes que meros fantoches, se-riam autênticos casos psicológicos. Além disso, o góticobusca envolver o leitor, mantendo-o em suspense, alar-má-lo, chocá-lo, incitá-lo, provocando-lhe, em suma, umaresposta emocional (Moisés, 1985, p. 263).

Para Massaud Moisés, o gótico não seria uma narrati-va menor, e note-se aqui a necessidade de defendê-lo, oque evidencia que devia (deve?) ser tratado exatamentecomo um tipo de narrativa desprezível para boa parte dacrítica. Também gostaríamos de marcar na definição deMassaud Moisés a função do romance gótico: envolver, alar-mar, chocar e incitar o leitor. E esses são dois pontos nosquais a obra de Cornélio Penna se distancia do gótico, por-que não é uma obra menor, ao contrário, pois é cuidadosa-mente trabalhada, tampouco busca colocar medo no leitorpor meio de recursos fáceis.

Passa-se agora a uma leitura que apontará aspectos nanarrativa corneliana até então desprezados pela crítica oraelencada, um verdadeiro contraponto ao que foi citadoanteriormente. Marília Rothier Cardoso, assim como LuizCosta Lima e Léo Schlafman, faz uma ligação entre a obrade Cornélio Penna e o romance gótico. Todavia, o seu pon-to de vista é muito diferente do de Costa Lima e, por ex-tensão, do de Mário de Andrade. Apresentando uma nova

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edição para Fronteira, o já mencionado primeiro romancecorneliano, Marília Rothier Cardoso comenta:

Cornélio Penna constrói sua estratégia narrativa [...] sele-cionando algumas conquistas da vanguarda, adapta-as atraços do romance gótico e da tradição fantástica. Produz,assim, na contramão do regionalismo em voga, um estilode alto requinte, capaz de perscrutar a intimidade e sugerirpanoramas sócio-históricos, de forma sutil, nebulosa e frag-mentária, longe da banalidade realista (Cardoso, 2001).

A partir dessa citação, podemos dizer que CornélioPenna estabelece uma relação paródica com a ficção góti-ca que é justamente uma das conquistas das vanguardas.Não que a paródia em si seja fruto exclusivo do modernis-mo, mas o seu uso sistemático com certeza o é. A paródiachega ao modernismo já bem conhecida pela tradição lite-rária. Mas, a partir desse momento, tal recurso passa a seintegrar como técnica de construção na literatura, exacer-bando o seu caráter metalinguístico. Afinal, parodiar é umexercício que não apenas desdobra um texto sobre outro,mas igualmente obriga a uma reflexão sobre a linguagem ea sua produção, o fazer literário.

Assim sendo, a obra corneliana não seria anacrônicacomo afirmaram Mário de Andrade e Costa Lima, por exem-plo, muito pelo contrário, dialogaria com o seu tempo, es-taria muito mais próxima da ruptura proposta pelos escri-tores ligados à Semana de Arte Moderna e às vanguardaseuropeias do início do século XX do que da “banalidaderealista” – para utilizar ainda uma vez a expressão de MaríliaRothier Cardoso. Um livro como A menina morta não esta-ria simplesmente tentando reproduzir a técnica ou a fôrmado gótico mas estaria parodiando-o, estaria relacionando-se com ele para dizer outra coisa. O estado de apreensãoque envolve o leitor corneliano não é o do gótico. Os fan-tasmas e os duplos no último livro de Cornélio Penna nãopretendem assustar o leitor, mas desviar o seu olhar paraoutro foco. Na verdade, os fantasmas e os duplos estabele-

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cem um jogo entre velar e revelar ao leitor a violênciapatriarcal-escravocrata, presente no romance e na histórianacional. Pode-se dizer ainda que A menina morta não éum livro anacrônico porque se vale de fantasmas, de maté-ria morta, na sua estratégia narrativa, mas que a paródia éum recurso literário que se constitui como um duplo ouum fantasma. Ou seja, o recurso da paródia nesse romancereproduz no seu formato elementos, como o duplo e o fan-tasma, que fazem parte do seu conteúdo: a forma ou a fôr-ma espelha o seu conteúdo.

Tratando de outra maneira: a paródia é um duplo ouum fantasma de outro texto, a paródia é de um texto quejá “morreu” ou que está esquecido e que revive por meiodo seu duplo ou fantasma. O duplo, segundo Rank (2001,p. 17 et seq.), é um anúncio de morte. Por extensão, é pos-sível afirmar que por trás de toda a morte há um nascimen-to, um renascimento. Tudo que morre possibilita que algovenha à vida. Um fantasma propriamente dito é um serque teria morrido de forma trágica, violenta, um ser queteria morrido antes da sua hora. Este ser morto de formatrágica, violenta ou antes da hora resistiria a abandonar oreino dos vivos, teria uma má morte, uma morte ruim. Ob-viamente não se pensa num texto nos mesmos termos. Sãoconsideráveis as diferenças entre pessoas e livros. No en-tanto, deve ser observado que a ficção gótica como mo-mento estético acabou. Vários dos seus recursos permane-cem utilizados em outros gêneros, mas são precisamenteisso, outros gêneros, não são mais exemplos do gótico, nãoo reproduzem na sua totalidade. Podemos dizer que o góti-co morreu, mas continua vivo nos novos gêneros que sevalem de alguns dos seus recursos.

Da mesma maneira, podemos afirmar que o texto es-crito depois de extinta a ficção gótica, mas que se vale dealgumas das suas conquistas, se encena como seu duplo.Todavia, nem duplo nem fantasma devem ser reduzidos acópias, a meras reproduções num sentido negativo. Existerepetição, não há dúvida, no entanto, na esteira do pensa-mento de Gilles Deleuze (2000), falaremos em repetição

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na diferença. O duplo e o fantasma reafirmam até certoponto os seres que os motivaram ou precederam, mas sãooutros, permitem o reconhecimento, mas não a identifica-ção total. O mesmo ocorre com a paródia, ela reafirma otexto que a motivou ou precedeu, mas não o repete na suaíntegra, pois se o repetisse não seria uma paródia, seria otexto que a motivou. Note-se que o par origem/cópia, noqual o segundo elemento é sempre inferiorizado, vemnorteando a tradição literária desde Platão e foi reafirma-do mais recentemente pelo romantismo, período tãoevocativo do chamado “gênio do escritor”. Para Deleuze(2000, p. 136), tal hierarquia inexiste, mesmo porque paraele somente existem cópias, não há original.

Na paródia literária, há uma corrupção de outro tex-to, há uma deformação (Sant’Anna, 1985, p. 28). O fan-tasma e o duplo, tão presentes no romance corneliano, tam-bém são corrupções ou deformações de outros seres.Reforçando o conteúdo por meio da forma, A menina mor-ta se duplica e se fantasmagoriza ao mesmo tempo, numjogo de espelhos para o leitor. Naturalmente, é um roman-ce – como todo romance que se vale de um recursointertextual – que solicita um leitor bem equipado, inseri-do na tradição literária, para poder revelar seus enigmasou pelo menos compreender as suas funções, as dos enig-mas. A paródia pode ser considerada elitista (Hutcheon,1989, p. 112) porque exige esse leitor bem equipado natradição literária, mas também pode ser didática porquecontribui para uma maior bagagem ou equipagem do leitorna medida em que ampliará seu horizonte de leitura. Aopensarmos na paródia como um texto que tem a intenção(Hutcheon, 1989, p. 76 e 112) de dialogar com outro e querevela essa intenção ao leitor, percebe-se que este podeaté não compreender qual o jogo que está sendo jogado,mas possivelmente será capaz de identificar uma regra ououtra, um vestígio ou outro, de forma a se sentir instigadoa desvendar os “mistérios” do texto. Além disso, de qualelitismo precisamente se fala quando o texto parodiado é o

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popular romance gótico inglês? Howard Phillips Lovecraft,em O horror sobrenatural na literatura (1987), num tom bas-tante sarcástico, afirma o caráter apelativo deste gênero,que

Incluía o nobre tirânico e perverso como vilão; a heroínainocente, perseguida e geralmente insípida que é a vítimados principais horrores e serve como ponto de vista e focodas simpatias do leitor; o valente e impoluto herói, semprede nascimento nobre mas frequentemente em disfarcehumilde; a convenção de sonoros nomes estrangeiros, omais das vezes italianos, para as personagens; e toda umasérie de artifícios teatrais entre os quais estranhas lumi-nosidades, alçapões apodrecidos, lâmpadas que não se apa-gam, manuscritos bolorentos escondidos, gonzos rangen-tes, cortinas agitadas, e por aí afora (Lovecraft, 1987, p.16).

É possível que a maioria dos leitores de Cornélio Pennajamais tenha lido um único romance pertencente ao góti-co, mas certamente a maioria dos leitores conhece narrati-vas de mistério literárias ou fílmicas e será capaz, portanto,de reconhecer, de experimentar uma sensação de já visto(déjà vu) em A menina morta.

Segundo Linda Hutcheon (1989, p. 17), a ironia é umfator fundamental para a definição da paródia moderna eé da presença dela que trataremos agora. Percebe-se quenão deixa de ser irônico que Cornélio Penna parodie o ro-mance gótico num país tropical. Apesar de Minas Geraisapresentar um ambiente em que as premissas do gótico es-tão dadas – “casarões cheios de sombras, esmagados portelhados enormes. Paredes altas, sótãos, móveis pesados,malas, relógios antigos” (Schlafman, 2001, p. 14) – e detudo isso ser produtivo em todos os romances cornelianos,é preciso lembrar que o cenário de A menina morta é o valedo rio Paraíba, é a fronteira entre a província mineira e oRio de Janeiro. Enfim, é o Brasil e não a Europa. E CornélioPenna faz outras adaptações bem irônicas. A primeira dizrespeito ao castelo antigo (do senhor feudal), que é substi-

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tuído pela casa-grande – “rústico palácio, fortaleza serta-neja de senhor feudal sul-americano” (Penna, 1997, p. 118).Em A menina morta, a casa-grande ironiza o castelo antigoporque na verdade não é antiga, é uma construção recen-te, erguida pelo próprio Comendador e não por seus ante-passados, mas que apela para elementos contidos nas cons-truções medievais, ao menos os elementos contidos noromance gótico, pois é enorme, está sempre escura, cheiade sons estranhos à noite, lugar onde se podem ver passarfantasmas em pleno dia (segundo afirma uma das suasmucamas) e, principalmente, labiríntica. O caráter de for-taleza da casa-grande é marcante ao longo da narrativa.Aliás, essa constituição da casa como fortaleza fora co-mum no Brasil colonial e era utilizada como defesa paraataques indígenas, como nos informa Gilberto Freyre emCasa-grande & senzala (2000, p. 49). A questão é: do queou de quem era preciso se defender numa fazenda cafeeirado Segundo Império? E mais uma vez a ironia é reafirmada,porque o possível ataque, se ataque houvesse, não viria doexterior, o ataque seria forjado no interior da fazenda pelosseus “escravos, que formavam pequeno exército” (Penna,1997, p. 415), expressão que condensa uma total ironia,afinal o exército de escravos que está a serviço do “senhorfeudal sul-americano” no eito e no interior da casa-grandepode se virar contra este mesmo senhor a qualquer mo-mento. É um exército que pertence ao seu senhor, mas quelhe é potencialmente o seu contrário. Por isso é precisoque a propriedade se assemelhe a uma fortificação: seus“súditos” são seus maiores inimigos, seus “súditos” natural-mente não lhe são leais. A expressão “senhor feudal sul-americano” é igualmente irônica. Por que feudal se já nas-cemos modernos como quer boa parte da crítica atual? E seolharmos para as marcas da modernidade que temos, pro-vavelmente concordaremos com essa crítica. À luz da nar-rativa, percebemos várias analogias entre o Comendador, o“senhor feudal sul-americano”, e o Conde Drácula, do li-vro homônimo de Bram Stoker, e que seria uma espécie de

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epígono do gótico, visto que é publicado em 1897, portan-to já afastado desse momento estético. O Comendador, naobra corneliana, é evidentemente um vampiro, pois vivedo sangue dos escravos que para ele trabalham.

O passado medieval do gótico é substituído pelo séculoanterior ao da escrita do romance corneliano, explicitandoa curta história nacional brasileira. Quando Cornélio Pennaambienta seu romance, escrito e publicado em meados doséculo XX, no século XIX, uma nova ironia se constitui. Opassado nacional brasileiro é recente, nossa história de paísindependente é pequena, no entanto nós já constituímos osnossos fantasmas, o nosso horror:

A cronologia histórica inverte [...] a cronologia de publi-cação dos romances, direcionando o romancista para o res-gate da herança do passado, onde se localizaria o processode formação da nossa nacionalidade, que o período escra-vocrata traduz sob a forma de um violento dissenso. Aocolocá-lo em cena como nenhum outro romancista entrenós, Cornélio Penna não só estaria problematizando a pre-tensa unidade que nos constituiria enquanto nação, masassinalando a permanência de um conflito não sanado naorigem e que, sob a forma de um fantasma desagregador,continua a nos assombrar e a nos manter exilados no pas-sado, como num pesadelo que parece não ter fim (Miran-da, 1997, p. 482).

Tentar esquecer a violência da escravidão, prática queperdurou no Brasil por quase quatro séculos, não a elimi-na, ao contrário, só contribui para criar fantasmas.

Outra ironia a ser mencionada é a ambiência em paí-ses estrangeiros presente na ficção gótica e trocada pelaambiência interiorana, sertaneja, em A menina morta. Osertão e o interior foram (e de certa forma ainda são) onosso exótico (note-se que usamos a palavra sertão aquino mesmo sentido utilizado no século XIX, ou seja, poroposição ao litoral). Enquanto os autores dos romancesgóticos localizavam suas histórias em outros países paraaumentar o grau de estranhamento daquilo que narravam

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e saindo do pressuposto de que o esquisito é o outro, oescritor brasileiro localiza A menina morta no interior doBrasil. Aparentemente não se trata de um interior assimtão interiorizado, visto ser a fronteira entre Minas Gerais eRio de Janeiro. Mas registrando a incomunicabilidade oua dificuldade de comunicação entre o Grotão e as fazen-das vizinhas, o difícil acesso à Corte, à cidade do Rio deJaneiro – uma viagem de muitos dias em estradas precárias–, Cornélio Penna deixa claro ao leitor que Paris era maispróxima da capital do Império brasileiro do que uma pro-víncia vizinha, logo éramos (somos?) estrangeiros para nósmesmos, lembrando aqui o título do livro de Julia Kristeva.Não precisamos temer ou nos assustar com os estrangeiros,com os outros, porque somos estranhos a nós próprios, nãonos conhecemos.

Considerações finais

A paródia é um texto fronteiriço que se posiciona en-tre a recriação (do que estava “morto”) e a criação, isto é,a paródia propriamente dita, cumprindo assim o seu papelde fantasma, nem totalmente viva, porque ligada ao queestava morto, nem totalmente morta, porque agente detransformação do texto parodiado. A paródia se coloca entreo passado, a tradição, e o novo, o rompimento com a tradi-ção. Ela anuncia uma repetição, mas é diferença sempre.A paródia é a abertura de uma lacuna no tempo “vazio ehomogêneo” mencionado por Walter Benjamin (1993, p.229) em uma das suas Teses sobre a história. No caso daparódia, será no tempo da tradição literária que se abriráuma lacuna. Resvalando no passado, ela transforma o pró-prio presente. Ela pode retirar a aura, para lembrar outraexpressão cara a Benjamin no seu artigo “A obra de arte naera de sua reprodutibilidade técnica” (1993, p. 165 et seq.),do texto parodiado ou pode investi-lo de uma nova aura.Nesse processo, a própria paródia adquire uma aura: a deser diferença, porque não é mais o texto parodiado, e a de

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ser repetição, porque toda paródia tem um desejo oculto edissimulado de ressuscitar os mortos. A consciência histó-rica da paródia “lhe dá o potencial para, simultaneamen-te, enterrar os mortos, por assim dizer, e também para lhesdar nova vida” (Bethea; Davydov apud Hutcheon, 1989, p.128). O recurso constante da paródia está voltado em Amenina morta, como na maioria dos romances modernos, aum embaralhamento de fronteiras, a um embaralhamentodo que seria a alta e a baixa literatura. Grosso modo, po-deríamos dizer que a alta literatura seria aquela que resis-tiria a leituras rápidas e descompromissadas, enquanto abaixa pertenceria ao universo do entretenimento. Parodi-ando o romance gótico, Cornélio Penna constitui seu ro-mance, sobretudo A menina morta, na fronteira entre a altae a baixa literatura, uma fronteira que muitos modernistaspretendiam ver destruída e que, como escritor do seu tem-po, ele contribuiu para aniquilar. Retomando uma últimavez o conceito de Linda Hutcheon sobre a paródia moder-na, no qual a ironia se coloca como fundamental, perce-beremos que provavelmente essa é a maior de todas as ironiascornelianas: uma obra requintada parodiando um gêneroromanesco típico da literatura de massa, o gótico.

O autor de A menina morta seria um colecionador defantasmas, inclusive de fantasmas textuais. E é por isso queele se emoldura de forma eficiente no epíteto atribuído porMário de Andrade – um “antiquário apaixonado”. Mas essesfantasmas estão a serviço do presente. Falando do e com opassado, a paródia dialoga com o seu momento histórico, oda própria paródia. Cornélio Penna escreveu e publicouseu principal livro quando o Brasil passava por um períodode desenvolvimento econômico financiado sobretudo pe-los Estados Unidos. O progresso anunciado então preten-dia apagar o passado. Segundo o historiador francês ErnestRenan, no seu clássico “O que é uma nação?” (publicadooriginalmente em 1882), esquecer a violência da origem éessencial para a configuração do nacional (Renan, 2000,p. 56). O patriarcalismo escravocrata seria precisamente

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essa violência que deveria ser esquecida. No entanto, Amenina morta é um romance que resiste, não nos deixandoesquecer e problematizando uma suposta fundação nacio-nal harmônica.

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Graciliano Ramos e “os fuzuês deRocambole”: leituras sob o

império da imaginação

Fernanda Coutinho*

RESUMO: O propósito deste trabalho é relacionar historiografialiterária e literatura comparada, por intermédio dos modos deapreensão do herói folhetinesco Rocambole, em ambientes dis-tantes geográfica e culturalmente, como o buliçoso Rio de Ja-neiro do século XIX e a pacata cidade de Viçosa, em Alagoas.Vai-se tomar como bússola, para tal, a circunstância de leiturado romance folhetim por parte do Graciliano Ramos menino, aqual desencadeia no futuro escritor um novo padrão de aprecia-ção do texto literário, fornece notícias sobre o papel dos media-dores locais e lança questionamentos sobre a existência ou nãode um cânone literário infantil à época.

PALAVRAS-CHAVE: historiografia literária, literatura compara-da, leitura, Rocambole.

ABSTRACT: The aim of this paper is to relate LiteraryHistoriography and Compared Literature, by means of themanners of apprehension of the pamphlet hero, Rocambole, indifferent environments, according to geography and culture,like the XIXth century restless Rio de Janeiro, on one hand, andthe peaceful town of Viçosa, in Alagoas, on the other. Thecompass for this relationship will be the reading of serial popu-lar novels by Graciliano as a child, which causes in the futurewriter a new pattern of appreciation of the literary text, suppliesinformation about the local mediators’ role, and throws doubtsabout the existence or not of an infantile literary canon atthe time.

KEYWORDS: Literary Historiography, Compared Literature,reading, Rocambole.

Na História de 15 dias, de 1877, no Livro I, “Aleluia,Aleluia”, Machado de Assis faz urbe et orbi a confissão de* Universidade Federal do

Ceará (UFC).

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um pecado. Essa confissão, na realidade, é dirigida, maisexatamente, “a todos os ventos do horizonte: eu (cai-me acara ao chão), eu [...] nunca li Rocambole, estou virgemdessa Ilíada de realejo”. O cronista prossegue enumerandouma série de outras “obras mágicas”, que, ao contrário,haviam sido objeto de sua leitura, para ao final, em tombem-humorado, acrescentar: “[...] nunca jamais em tem-po algum me lembrou ler um só capítulo do Rocambole.Inimizade pessoal? Não; posso dizer à boca cheia que não.Nunca pretendemos a mesma mulher, a mesma eleição, omesmo emprego” (Assis, 1982, p. 357). A título de remis-são da aludida falta, o escritor carioca recorda-se da anti-ga encenação de um drama levado ao teatro por FurtadoCoelho1 onde pôde ver e ouvir: o ágil Rocambole, de umaagilidade próxima à ubiquidade – duvidar, quem há-de? –,se não, como escapar ao emaranhado de aventuras, quelhe fartavam a trepidante existência?

O controvertido personagem prossegue em sua mira,na História de 15 dias, sendo assunto do Livro II, intitulado“Aquiles, Enéias, Dom Quixote, Rocambole”, no qual,numa comparação empreendida entre ele e os outros per-sonagens igualmente dados a façanhas, o cronista, emboranão conceda realeza a Rocambole, como aos dois primei-ros, ou sublimidade, ainda que apenas nas intenções, comono caso do cavaleiro da triste figura, não lhe nega, contu-do, importância, como se verifica no fecho da crônica:“Outrora excitavam pasmo aquelas descomunais lançasargivas. Hoje admiramos os alçapões, os nomes postiços, asbarbas postiças, as aventuras postiças. Ao cabo, tudo é ad-mirar” (Assis, 1986, p. 358).

Ao se referir ao personagem folhetinesco e ao glosar oespírito desse gênero de narrativa, tomando-os como as-sunto dessas saborosas notícias sobre o Rio de Janeiro deseu tempo, a nonchalance de Machado de Assis abre espa-ço para uma reflexão acerca das relações entre literaturacomparada e historiografia literária.

1 Luís Cândido CordeiroPinheiro Furtado Coelhonasceu em Lisboa em 1831,vindo para o Rio de Janeiroem 1856. Na corte, esseversátil lisboeta desenvolveuas atividades de teatrólogo,romancista, ator, empresárioteatral, além de compositor epianista, daí o pseudônimode Fallopio. Furtado Coelhofaleceu em Lisboa, em 1900,desaparecendo junto com oséculo que ele tanto ajudoua alegrar. Machado de Assisa ele se refere em outracrônica do mesmo livro,dizendo: “Na hora em queescrevo estas linhas, preparo-me para ir ver um sapatinhode cetim, – o sapatinho queDona Lucinda nos trouxe daEuropa e que o FurtadoCoelho vai mostrar aopúblico fluminense”.

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É, portanto, o bom, velho e dissimulado Machado deAssis – quem é capaz de garantir que todo esse vácuo quan-to às páginas recolhidas via leitura não passa de mais umde seus logros? – que aqui mediará a abordagem da ques-tão. O ângulo preferencial desta análise será o protocolode leitura que o herói criado por Ponson du Terrail(Montmaur, 1829 - Bordeaux, 1871) desencadeará emGraciliano Ramos (Quebrangulo, AL, 1892 - Rio de Janei-ro, 1953), não, porém, no escritor consagrado, e, sim, noGraciliano menino que se iniciava no universo da leitura.

Registrando a presença do personagem francês no gostoliterário de sua época, Machado de Assis empreende umaponderação de delineamento historiográfico, na medidaem que deixa entrever a compreensão das narrativas lite-rárias como histórias de muitos portos – do Havre ao portodo Rio de Janeiro, por exemplo, por quantos lugares nãopassara o irrequieto Rocambole? Esse aspecto marca adinamicidade do fenômeno ficcional, e assinala igualmen-te a flexibilidade da compreensão da historiografia literá-ria, na medida em que a ela se agrega o influxo irradiadorcomparatista. Uma viagem dos livros, então, poderia seruma primeira fórmula para se pensar a literatura, nessaconjunção entre historiografia e comparativismo.

Como se sabe, cabe ao historiador literário o papel deordenador das experiências estéticas de um determinadopovo, e, no desempenho de sua tarefa, não poderia pres-cindir de um critério de ação. Que critério adotar, então?A questão não é simples, pois são inúmeras as variáveisenvolvidas nessa que é indubitavelmente uma cartografiaintrincada.

A pergunta de Yves Chevrel: “Será possível escreveruma história da literatura européia?” (Chevrel, 2004, p.55) concentra um debate problemático, o qual, ainda queem menor escala, está presente na raiz de indagação se-melhante: Será possível escrever uma história da literatu-ra brasileira? Materialmente, a resposta é positiva e boashistórias circulam nas mãos de quem se interessa por essa

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sorte de estudos. O que se quer colocar aqui, partindo dasobservações de Chevrel, é que, de uma maneira geral, ahistoriografia tem-se apegado à noção de organicidade,buscando precipuamente ser fiel à linha do tempo em quese inserem autores e obras. O estudioso assinala em segui-da que “para integrar a história das criações literárias numahistória que não seja uma sucessão de notícias individuais,o historiador de uma literatura nacional faz apelo a gran-des conjuntos, delimitados por referências à vida política esocial do país em causa” (Chevrel, 2004, p. 66-67). E for-nece como exemplos a tendência à sucessividade dos sé-culos adotada pela literatura francesa, a vinculação aosreinados na da Inglaterra e a ligação a eventos significati-vos, do ponto de vista literário, na Alemanha, a qual tomacomo baliza a morte de Goethe.

Em “O lugar do leitor: do texto aberto aos protocolosde leitura”, chama-se a atenção para o fato de que a sele-ção de obras e autores com fins didáticos, que redunda naconstituição de escolas e de estilos, dá-se “posteriormenteà elaboração das obras em si e que ela tem caráter precárioe provisório” (Pinto, 2004, p. 56).

Pelo que se percebe, então, é necessário cautela a fimde não deixar prevalecer para a historiografia unicamenteum padrão de linearidade, como o sugerido pelo crivo tem-poral, do contrário, muitas questões permanecerão em aber-to, principalmente as relativas à intervenção do leitor comoum novo regente no que toca a uma reorganização do cam-po literário, reorganização sugerida por uma série de as-pectos, inclusive os ditados por sua subjetividade. Tratan-do a questão de forma mais específica: Como explicarmomentos fulgurantes da presença de Rocambole em nos-so sistema literário – como no caso de Graciliano Ramos –tendo por base uma historiografia de feição periodológica?

Sabe-se que o auge da fortuna do personagem corres-ponde à voga do romance-folhetim, principalmente à épo-ca de nosso Romantismo.2

2 Para esse gênero deestudos, a fonte primordial éo hoje clássico: Folhetim: umahistória, de Marlyse Meyer.

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No entanto, proclamando sua paixão pelo personagem,já em pleno século XX, na medida em que o elege comoindutor de maravilhamento, Graciliano Ramos implantauma dupla sinuosidade no traçado historiográfico brasilei-ro: em primeiro lugar, pela reinstalação do personagem emlugar de destaque no sistema literário, e, em segundo, poralocá-lo como material de evasão a ser fruído pelo públicoinfantil, quando antes fora ele mais legitimamente fontede leitura de adultos. Fica assim mais um questionamento:como situar Rocambole em face da historiografia literáriainfantil brasileira? Em outras palavras, o que liam nossascrianças nesse período?

Como se verifica, torna-se pertinente, nesse sentido,entender o fenômeno historiográfico a partir da dimensãocomparatista, pelo viés de uma história da leitura, a qualtambém se escreve pelo registro do efeito catártico decor-rente do convívio com a dimensão fantasiosa da ficção.

A esse propósito, retomando o metadiscurso em queMachado discorre sobre as diferenças entre o outrora e ocontemporâneo de sua época, no que diz respeito ao “exci-tar pasmo”, vê-se aí colocada em evidência a necessidadehumana, demasiadamente humana, de fuga ao ordinário,aspecto que remonta às ponderações platônicas, que de-tectavam na evasão provocada pela arte um descaminhopara a harmonia da alma. Essa discussão, por direito, tam-bém inclui Aristóteles, que, em desacordo com seu mes-tre, enxergava nessa espécie de desvio uma das fórmulasde conquista dos leitores das epopeias ou dos espectadoresdas encenações dramáticas.

Mario Vargas Llosa, por sua vez, em A verdade dasmentiras, coloca a ficção como o fator de homeostase en-gendrado pela imaginação para acomodar elementos tãodiscordantes como a limitação da realidade e a desmedidada vida imaginária. Ao mergulharmos na ficção, diz ele:“Nela nos dissolvemos e nos multiplicamos, vivendo diver-sas outras vidas além da que temos e das que poderíamos

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viver se permanecêssemos confinados no verídico, sem sairdo cárcere da história” (Llosa, 2004, p. 25).

Todas essas observações revelam-se pertinentes, napassagem do Rio de Janeiro do século XIX, à Alagoas doprincípio do século XX, onde é possível agora, como já sesabe, encontrar o mesmo Rocambole, bem situado no mapadas leituras de formação de Graciliano Ramos, que nãoquis repetir o “pecado” de seu antecessor. Em seu caso,aliás, se houvesse culpas a confessar, iriam elas exatamen-te na direção oposta.

Se a recepção das mirabolâncias envolvendo o perso-nagem chega a bouleversar o futuro escritor, é bem o casode se perguntar em que condições ocorreu esse contato,tomando essa circunstância de leitura como um elementoa mais no entendimento da historiografia pela visadacomparatista.

A resposta à pergunta comporta uma retrospecção acer-ca dos primeiros anos de Graciliano relatados em Infância,os quais dão conta de um indivíduo totalmente acachapa-do por temores. É um massacrado narrador retrospectivoque, por exemplo, afirma a certa altura do texto: “Eu vivianuma grande cadeia.” E agudiza ainda mais a afirmação,desdizendo-se, ato contínuo, por meio da retificação ames-quinhante: “Não, vivia numa cadeia pequena, como papa-gaio amarrado na gaiola” (Ramos, 2006, p. 220-221).

Nesse sentido, esse livro de memórias tem o poder deum libelo ao expor cruamente as agruras sofridas pelas crian-ças em geral e pelo narrador em particular, agruras decor-rentes do atraso reinante, no interior do Brasil, nesse período,no tocante à qualidade das interações interpessoais, aomodelo dos rituais de entrada no universo das letras e aodesconhecimento da criança como um ser idiossincrático.

Essas experiências primordiais trouxeram comoconsequência muitos transtornos até que o menino conse-guisse se desembaraçar das dificuldades encontradas naelucidação dos “cipoais escritos” e da “confusão de vere-das espinhosas” (Ramos, 2006, p. 132). Esses sintagmas tra-

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duzem à perfeição a condição de seu contato inicial com omistério das letras, colocando, inclusive, num mesmo pa-tamar de aridez elementos distintos como natureza e cul-tura. Por que a forma de se abeberar do conhecimento de-veria necessariamente reproduzir a secura da caatinga, comsua vegetação pouco veludosa? Mas, superado o temor doshieróglifos esfingéticos, e alcançada a decifração doscaracteres antes esotéricos, dá-se uma metamorfose: acriança é tomada por uma febre de leitura, o que tambémse encontra anotado nas páginas de reminiscências.

Eu precisava ler, não os compêndios escolares, insossos,mas aventuras, justiça, amor, coisas até então desconheci-das. Em falta disso, agarrava-me a jornais e almanaques,decifrava as efemérides e anedotas das folhinhas. Esses re-talhos me excitavam o desejo, que se ia transformando emideia fixa (Ramos, 2006, p. 229).

Onde, entretanto, encontrar livros de verdade, na-quele meio tão acanhado? Audálio Dantas, biógrafo doGraciliano menino, descreve-o passeando pela calçada dacasa do tabelião Jerônimo Barreto, “espichando os olhospara a sala onde uma grande estante exibia encaderna-ções coloridas” (Dantas, 2005, p. 26).3

Alimentando-se dos intercâmbios entre sistemas ar-tísticos, a literatura comparada ampara-se enormementena noção de “mediador”, noção duplamente conotada, poisreúne “tudo o que condiciona as transferências, quer setrate de suportes materiais ou da ação de personalidades”(Chevrel, 1989, p. 54). Ao confiar seu patrimônio literárioao ávido leitor, Jerônimo Barreto transforma-se em um doselos dessa cadeia que liga as literaturas de línguas irmãs.Barreto faria o papel de alguém encarregado de entregar obilhete de viagem ao passageiro, prestes a se lançar nomundo aventuroso.

No caso de Graciliano, a referência às capas coloridasdos livros do tabelião contrasta vivamente com a descriçãomaterial do breviário infantil da época, o livro do Barão de

3 Tomando por base aprecariedade de livros nointerior alagoano, Dênis deMoraes simula a seguintesituação narrativa, em suasmemórias de Graciliano,deixando à mostra agenerosidade de JerônimoBarreto:“Como consegui-los emViçosa senão recorrendo àsedutora biblioteca dotabelião, porta de entradapara terras inóspitas esegredos bem guardados?Jerônimo sorriugostosamente, alisando-lhecom a palma da mão oscabelos mirrados.– Pegue o que você quiser,são seus – disse, quebrando adistância entre o menino decalça curta e a fortaleza detomos encadernados”(Moraes, 1996, p. 6-7).

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Macaúbas: “Um grosso volume escuro, cartonagem seve-ra. Nas folhas delgadas, incontáveis, as letras fervilhavammiúdas, e as ilustrações avultavam num papel brilhantecomo rasto de lesma ou catarro seco” (Ramos, 2006, p. 129).

Não por acaso, o autor do breviário, Abílio Borges(1842-1891), fundador do Colégio Abílio, e considerado oprotótipo para o Aristarco de O Ateneu, romance de RaulPompéia, publicado em 1888, inspirou ao velho Graça umacrônica nada edificante, transcrita na seção de Linhas tor-tas, denominada “Traços a esmo”, na qual o autor, sob opseudônimo de J. Calisto, vocifera: “Voto ao muito ilustreeducador Abílio Borges uma profunda aversão. Nunca per-doarei àquele respeitável barbaças as horas atrozes quepassei a cochilar em cima de um horrível terceiro livro queuns malvados me meteram entre as unhas” (Ramos, 2005,p. 94).

Depois de relatar minuciosamente, em todas as suasestações, o calvário das crianças que tiveram de se subme-ter a tais padecimentos, o cronista conclui: “Os livros in-fantis! Que livros! São paus de sebo a que a meninada écompelida a trepar, escorregando sempre para o princípioantes de alcançar o meio, porque afinal aquilo é um exer-cício feito sem o menor interesse de chegar ao fim” (Ra-mos, 2005, p. 94).

A comparação de Graciliano remete, por contraste, àideia da leitura como algo indutor de prazer, aventura es-pontânea e não exercício compulsório e sensaborão como ohá pouco descrito. Seria preferível, então, retomar a po-tência da ideia de viagem para espelhar sua nova forma derelacionamento com os livros, relacionamento mediadopelos encantos da fantasia. A viagem, trazendo em si anoção do abandono ao estático, revela, com precisão, osentido de dinamicidade, de troca, de convívio com o di-ferente, aspectos tão caros à imagologia, um dos pilares daliteratura comparada.

Como tal, é possível pensar, neste segundo momento,nas viagens realizadas pelo leitor por meio das histórias quevão sendo absorvidas por seu imaginário.

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No caso de Graciliano, na faixa dos dez anos de idade,a revelação de outras realidades vai sendo feita, pouco apouco, pelo próprio Jerônimo Barreto, que inicia sua cru-zada literária por meio do empréstimo de obras do Roman-tismo, como O Guarani, embora Alencar não chegue exa-tamente a empolgar o leitor principiante. Depois: históriasdo Macedinho, e, em seguida, Jules Verne. Na realidade,contudo, o frisson em seu estado mais vivo coincidirá como sôfrego virar de páginas em busca dos inumeráveis “edepois” que são a própria essência da vida do personagemde maior apelo de Ponson du Terrail.

É um narrador distanciado do terra-a-terra de seu co-tidiano que registra em Infância: “Nesse tempo eu andavanos fuzuês de Rocambole”. E as aventuras de tirar o fôlegoeram sorvidas “em folhetos devorados na escola, debaixodas laranjeiras do quintal, nas pedras do Paraíba, em cimado caixão de velas, junto ao dicionário que tinha bandei-ras e figuras” (Ramos, 2006, p. 232).

O discurso reiteradamente hiperbólico da afirmaçãode Graciliano vem ao encontro do entendimento da leitu-ra como “uma viagem, uma entrada insólita em outra di-mensão que, na maioria das vezes, enriquece a experiên-cia”. A complementação desse pensamento reside naafirmação de que “o leitor que, num primeiro tempo, deixaa realidade para o universo fictício, num segundo tempovolta ao real, nutrido da ficção” (Jouve, 2002, p. 108).

No caso de Graciliano, a evasão como uma experiên-cia nutridora da psique pode ainda ser aferida pela valori-zação do indivíduo: essas leituras vão representar uma prá-tica balsâmica, um pilar na constituição de um novo sujeito.

Se, anteriormente a essa experiência, o menino cons-trangia-se com o pouco caso em que era levado na escola eem casa, agora conhecia o valor da solidão produtiva, oumelhor, reconhecia que se evadir das pessoas em funçãode uma boa narrativa, isso, sim, era compensador.

Quando tomei pé na Europa, eles exploravam outras par-tes do mundo. Surdo às explicações do mestre, alheio aos

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remoques dos garotos, embrenhava-me na leitura do pre-cioso fascículo, escondido entre as folhas de um atlas. Àsvezes procurava na carta os lugares que o ladrão terrívelpercorrera. E o mapa crescia, povoava-se, riscava-se de es-tradas por onde rodavam caleças e diligências.Conheci desse jeito várias cidades, vivi nelas, enquanto ospequenos em redor se esgoelavam, num barulho de feira. Orumor não me atingia. Em vão me falavam. Sacudido, so-bressaltava-me, as idéias ausentes, como se me arrancas-sem do sono (Ramos, 2006, p. 233).

Em histórias de leitura de literaturas de outras proce-dências também é possível deparar com passeios pelos bos-ques da ficção, em registro semelhante ao de Graciliano,em que a solidão, longe de estorvar, aparece regida pelaplenitude.

Esse é um novo eixo que se apresenta para a correla-ção historiografia versus literatura comparada, sendo, en-tão, interessante lembrar, a respeito, os depoimentos deMarcel Proust e de Jean-Paul Sartre, colhidos em livrosque remetem às suas memórias infantis. Em Sobre a leitura,4

é transcrito o comentário que se segue: “Talvez não hajana nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamen-te como aqueles que pensamos ter deixado sem vivê-los,aqueles que passamos na companhia de um livro preferi-do” (Proust, 1989, p. 6).

No depoimento de Sartre, o que parece ser uma de-claração de não infância, a princípio, fica patenteado, aofinal, como uma vivência em pleno reino do ludus.

As densas lembranças, e a doce sem-razão das crianças docampo, em vão procurá-las-ia, eu, em mim. Nunca esgara-vatei a terra nem farejei ninhos, não herborizei nem jogueipedras nos passarinhos. Mas os livros foram meus passari-nhos e meus ninhos; meus animais domésticos, meu está-bulo e meu campo; a biblioteca era um mundo colhidonum espelho; tinha a sua espessura infinita, a sua varieda-de e a sua imprevisibilidade (Sartre, 1978, p. 14).

4 As ponderações teóricasde Proust sobre a leituraapareceram inicialmente emum seu prefácio à tradição deSésame et les Lys, de JohnRuskin. O que seria, aprincípio, um simples prefácioadquiriu foros de obraindependente, pelaprofundidade do conteúdo.O livro, intitulado Les Hauteset fines enclaves du passé,trazia como subtítulo Sur lalecture. A tradução brasileiraateve-se ao subtítulo, quepassou a designar a obra.

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Infância, como se verificou, dá ainda a conhecer a rus-ticidade dos lugares das práticas leitoras de então, dandomargem a um cotejo com outra experiência de leitura, nocaso, agora, a de um escritor brasileiro, o próprio José deAlencar. Já se tornou lugar-comum em nossa história soci-al a referência ao “ledor da família”, como ele se autointitulaem Como e por que sou romancista. Para ele, esse cargo erauma honraria da qual se orgulhava, como nunca aconte-cerá depois no magistério ou no parlamento.

Ao se reportar aos hábitos culturais no ambiente do-méstico brasileiro no século XIX, Leila Mezan Algrantirelaciona a leitura em voz alta ou silenciosa ao gozo daintimidade dentro dos lares, o que é atestado, segundoela, pelo achado fortuito de livros nos inventários paulistase mais ainda no das famílias ilustradas do Rio de Janeiro ede Minas Gerais. A estudiosa afirma, contudo, que “Nãoera, todavia, hábito muito difundido, tomando-se em con-ta, inclusive, o fato de grande parte da população seriletrada até o início do século” (Algranti, 1997, p. 115).

Se Graciliano não experimenta a liberdade de leiturade Proust e Sartre, inclusive na facilidade de posse doslivros, nem o destaque de Alencar, junto aos familiares,sabendo-se que os seus eram, quase sempre, desapegadosdos livros, em compensação, depois de adentrar o mundoficcional, fica difícil pensar, ainda, no “papagaio preso nagaiola”, tristemente agarrado à sua prisão? O arrebatamentoprovocado pela leitura, a satisfação colhida na viagem pormeio dos livros, revela agora alguém presa dos encanta-mentos, das seduções das histórias cheias de idas e vindasdos personagens, num movimento frenético que ultrapassaas páginas dos folhetos, vindo reverberar no arrebatamen-to feliz de quem empreende a descoberta de outros mun-dos.

Daí por diante, o novo leitor redesenha os contornosde uma realidade que não esboça nenhuma resistência aoseu comando, ao contrário dos ásperos acontecimentos domundo empírico. Nesse sentido, é cabível falar na experiên-

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cia do gaudium, assim definida por Barthes: “prazer que aalma experimenta quando considera a posse de um bempresente ou futuro como assegurada; e possuímos tal bemquando ele está de tal forma em nosso poder que podemosusufruir dele quando queremos” (Barthes, 2003, p. 47).

As leituras francesas do Graciliano criança, particu-larmente as de Ponson du Terrail, são elementos importan-tes para o desenho de um diagrama do trânsito dos livrosno circuito Europa/Brasil, na passagem do século XIX parao século XX, diagrama que, se não repercute o gosto lite-rário da época em nosso país – o Rocambole do bulício daCorte já não causa tanto furor no Rio de Janeiro republica-no dos marechais –, pelo menos o faz com relação à pacatalocalidade em que vivia o escritor, aqui plasticamente des-crita por Audálio Dantas: “O Morro do Pão-sem-miolo éum dos muitos que rodeiam a cidade de Viçosa, em Ala-goas. A cidade sobe por ele, espicha-se em ruas compridas,enrola-se em becos, as casas humildes mal enfileiradas”(Dantas, 2006, p. 17).

Cabe então uma pergunta: Por que as aventuras doherói de Ponson du Terrail, Rocambole, deixava os leito-res, crianças e adultos nesse estado de sofreguidão?

Herdeiras do espírito frenético dos romances barroco egótico, suas narrativas transformaram-no, segundo PatriceSoler, em um “mito da literatura popular” (Soler, 2001, p.380). Nos folhetins em que figurava, reinava a pletora deincidentes dramáticos, neles desfilando vampiros, castelos,príncipes, testamentos. Aliás, o tema da herança é pratica-mente onipresente, dando a Rocambole a oportunidade deexercer ações que empurravam com todo vigor a narraçãopara os caminhos sem fronteiras da inverossimilhança.

Reprisando, mais uma vez, a ideia de viagem, flagra-se agora o próprio criador como um flanêur, e dessa flanêriecriam-se novas circunvoluções no terreno da arte literária,a viagem que os escritores empreendem a um sítio comum,patrimônio sedimentado no fluxo leitura/impregnação/re-escrita. O sentido da viagem encontra assim equivalência

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na noção de intertextualidade, definida por Tiphaine Sa-moyault como “mémoire de la littérature” (Samoyault,2001, p. 1). Tendo em vista a super utilização do termointertextualidade, a autora adverte sobre o atual empregode expressões menos pontuais para dizer da presença deum texto em outro. Assim é que se reporta a “tissage, biblio-thèque, entrelacs, incorporation ou simplesment dialogue”.Chama ainda a atenção para o fato de que “la littératures’écrit certes dans une relation avec le monde, mais toutautant dans une relation avec elle-même”5 (Samoyault,2001, p. 5).

Como tal, é importante grifar a observação de Solersobre a presença nos Dramas de Paris, de Ponson du Terrail,de autores franceses como Eugène Sue, Balzac e VictorHugo, dentre outros. No caso, então, Rocambole teria emsuas veias o sangue de “Rodolfo, de Os Mistérios de Paris,de Monte-Cristo, de Dumas, de Valjean e de Vautrin”(Soler, 2001, p. 380). Soler atualiza o personagem fazendo-o próximo de uma versão masculina de Zazie, a Zazie deZazie dans le métro, de Raymond Queneau (1959), que seapresentará em um outra roupagem, no filme de LouisMalle, de 1960.

Como se vê, as aproximações entre historiografia e lite-ratura comparada, com a abertura da última rumo ao mun-do da leitura, puderam revelar produtividade ao se pensaremquestões como a existência ou não de um cânone da litera-tura infantil no começo do século XX, nas regiões interiora-nas do Brasil. O fato de Graciliano leitor ter-se iniciado porobras da literatura adulta tem algo a nos inquirir. Outroaspecto importante é sua confessada predileção pela litera-tura de folhetim, inscrita mais frequentemente no rol dachamada paraliteratura. Graciliano, que em sua atividadede escritor se firmou como um esteta, apresenta essa facetade descompromisso com um rigor de elaboração textual emseus momentos de formação. O que só vem demonstrar queas respostas para tanto se encontram em aliar-se historiogra-fia e literatura comparada, e ambas, investigando as condi-ções de leitura do escritor, facilmente vão descobrir na soltura

5 “tessitura, biblioteca,entrelaçamentos,incorporação ousimplesmente diálogo”. “Aliteratura se escreve, éverdade, em uma relaçãocom o mundo, masprincipalmente em umarelação consigo própria, comsua história, a história desuas produções.”

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do folhetim a descompressão psicológica buscada pelo me-nino alagoano.

As notícias biográficas relacionadas a Graciliano Ra-mos costumam registrar 1952 – o ano anterior à sua morte– como o ano de sua visita à França, convidado para assis-tir às comemorações do sesquicentenário de Victor Hugo,viagem essa que compôs o roteiro europeu, cujo ponto maisalto seriam os festejos de 1º de maio, em Moscou.

Em Mestre Graciliano, confirmação humana de uma obra,Clara Ramos assinala o pouco entusiasmo do pai com rela-ção a deslocamentos, informando que, nessa circunstân-cia, o velho Graça “é outra vez viajado” (Ramos, 1979, p.232), acrescentando, contudo, que, em Paris, o escritorbrasileiro “dá longas caminhadas pelo cais Anatole, ruelase avenidas, examinando as caixas dos alfarrabistas, ‘comoum basbaque, interrogando sem-cerimônia a gente da rua’”(Ramos, 1979, p. 232).

Na realidade, pelo que foi visto, Graciliano, de umoutro modo, já desfrutara daquelas paisagens, não exata-mente as mesmas, porque o progresso, marca registrada dapassagem do século XIX para o XX, encarregara-se deatapetar a bela cidade de exuberantes jardins, dotando-a,também, de grandes bulevares, mais apropriados à circula-ção fervilhante de pessoas e automóveis, pois, como se sabe,a palavra da moda, de há muito, vinha sendo velocidade.

Com relação à França, no entanto, o viajante já expe-rimentara outras sensações de espanto, pois o leitorGraciliano antecedeu o escritor na realização de frequen-tes e estimulantes viagens àquele país, viagens por elemesmo buscadas, proporcionadas por um outro grande lei-tor, Jerônimo Barreto, e que tiveram como guia habitualPonson du Terrail, sob cuja sombra transpareciam Balzac,Dumas, Eugène Sue, Victor Hugo e tantos outros adorá-veis mentirosos.

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E se o reverso da históriachegasse em dobras: os mutantes

em Maria Gabriela Llansol

Celina Martins*

RESUMO: O livro das comunidades, de Maria Gabriela Llansol,subverte a narrativa histórica e canónica. Llansol apropria asqualidades e o fluxo da rebelião de místicos e pensadores quetransgrediram o pensamento hegemónico. Llansol apoia-se natécnica da sobreimpressão de modo a criar uma ucroniaeudemonista a partir da qual São João da Cruz, Ana de Peñalosa,Thomas Münztzer e Nietzsche tornam-se figuras do texto queinteragem, segundo o inesperado encontro de energias e deafectos. A metaficção llansoliana cria a cosmogonia do novo,em que o eterno retorno da escrita e da leitura propõe umageografia espiritual reinventada, dado que fora abolida pela ló-gica do poder.

PALAVRAS-CHAVE: sobreimpressão, ucronia, mística europeia,eterno retorno da leitura e da escrita.

ABSTRACT: The Book of Communities by Maria Gabriela Llansolis a fragmentary writing which subverts the canonical andhistorical narrative. Llansol absorbs qualities and the rebelliousflow of mystic men and historical thinkers, men who havetransgressed the hegemonic thought. She draws upon thetechnique of overprinting so as to create an eudemonist uchronyin which St John of the Cross, Ana de Peñalosa, Münztzer andNietzsche become textual figures that interact according to theunexpected encounter of energies and affects. Llansol’smetafiction has the creative potential to offer a new cosmogonywhere the eternal return of reading and writing puts forth arenewed spiritual geography, which had been erased by the logicof Power.

KEYWORDS: overprinting, uchrony, European mysticism, eternalreturn of reading and writing.

* Universidade da Madeira(UMa).

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O ciclo do Renascimento não está concluído; ainda hátempo, para voltar ao seu começo, e reescrever-lhe umnovo sentido.

(Maria Gabriela Llansol, 2005)

A minha forma de rebeldia foi tão-só a recusa de o vivermutilada.

(Maria Gabriela Llansol, 1998)

Escrevo movimento puro.(Clarice Lispector, 1999)

Desde a publicação d’O livro das comunidades (1977)1

até Os cantores da leitura (2007), Maria Gabriela Llansol(1931-2008) explorou a textualidade fragmentária, cadavez mais depurada, forjando uma escrita questionante ehermética, que molda a miscigenação genológica, segun-do o princípio reactivador da metamorfose. Durante o exí-lio na Bélgica, de 1965 a 1985, por causa da deserção colo-nial de Augusto Joaquim, seu cúmplice de “fluição” (2000,p. 268), concentrou-se na feitura de uma escrita que des-mantela a verossimilhança realista, assente no psicologismodos personagens. Nos anos setenta, trabalhou numa escolaexperimental que acolhia os filhos dos estudantes estran-geiros. A desterritorialização permitiu o distanciamentocrítico em face de um Portugal inerte e a reflexão sobre osencontros imprevisíveis entre místicos, filósofos e poetasque poderiam ter gerado outros modos de pensar o homemem relação com o seu lugar, imaginário e todas as formasdo vivo:

nós dizíamos como a cultura europeia de que a portuguesafaz parte (a um ponto que os portugueses não imaginam),era marcada por encontros de confrontação que não sederam – e poderiam ter sido autênticos recomeços de no-vos ciclos de pensamento e de formas de viver (Llansol,1998, p. 105).

Llansol desconstrói o paradigma expansionista dos des-cobrimentos e a trepadeira do poder porque são regidos

1 Consultámos a segundaedição, de 1999. No corpo dotexto, figurarão doravante adata e a página.

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E se o reverso da história chegasse em dobras: os mutantes... 265

pela voragem da posse e acarretam a imposição de modelosdogmáticos. A aventura marítima dos portugueses é ummuro que bloqueia Portugal no “ser histórico em estado deintrínseca fragilidade” (Lourenço, 2005, p. 25),2 sem comu-nicação com um destinatário real. Contra essa herançamarcada por guerras e desavenças, a escritora postula oencontro da cultura portuguesa com visionários europeus,numa escrita que valoriza a liberdade de consciência nosentido de criar uma cosmogonia distinta, que redimensioneo humano e derrube as distinções de hierarquia. É desde aperspectiva do pensamento e da palavra diferenciados dorebelde que Llansol revela nós fulcrais que a tradiçãohegemónica não conseguiu apreender. Llansol perscruta eredimensiona os vestígios desses encontros improváveis,diluídos num “gotejar contínuo de acções inacabadas”(Llansol, 2005, p. 47), soterradas num abismo sem fim. Emlugar de apontar para uma visão definida e estática do pas-sado, sob o signo do historicismo oitocentista, Llansol es-cava e relê as dobras de uma História subterrânea, em queabala o tempo “homogéneo e vazio, antes formando umtempo pleno de ‘agora’” (Benjamin, 1992, p. 166), privile-giando a coexistência de tempos diferenciados e de espa-ços heterogéneos. Em Finita, “diário interrogante sobre oprocesso da escrita associado às leituras marcantes do quo-tidiano”, a escritora revela a sua visão avessa à Históriainstitucionalizada, legada pelo positivismo, assente na ori-gem, causalidade e linearidade cronológica. Contra o dis-curso totalizante, Llansol cria a escrita da inquietude namedida em que articula um tempo por vir, constituído pelainter-relação de vários passados simultâneos, no sentidode introduzir fendas e dissonâncias, desfazer o imposto erelançar perguntas sobre a exploração dialéctica do passa-do:

[…] não suporto a palavra História, e no entanto, há cen-tros de irradiação, tramas sólidas de geografias espirituais,lugares de recorrência, humanos duradouros e perduráveis:

2 Itálicos do autor.

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tudo o que encontrar aqui será imperceptivelmente belo,ou tornar-se-á belo (Llansol, 2005, p. 66).

É a partir da cosmogonia perscrutadora das geografiasespirituais da Idade Média até ao século XVII que Llansolreescreve e reinventa a História, particularmente, nas tri-logias “A geografia dos rebeldes” e “O litoral do mundo”,3

assim como em Lisboaleipzig 1: o encontro do diverso e Lisbo-aleipzig 2: o ensaio da música. Num imbricamento intratex-tual elíptico mas coerente, todos esses tecidosintercomunicantes encenam tensões e convívios inauditosentre protagonistas históricos associados ao misticismo(Eckhart, Hadewijch, São João da Cruz, Ibn Arabi), àemergência da liberdade de consciência (Müntzer, Copér-nico, Nietzsche), à revisitação transfigurante da culturaportuguesa (Luís M/Comuns/Camões, D. Sebastião/D. Ar-busto, Jorge de Sena/Jorge Anés), à travessia do dom poé-tico (Pessoa/Aossê e Johann Bach) e à demanda da Alegria(Espinosa). Todos são transformados na “irmarginação”(Llansol, 2000, p. 268) da escrita mediante a sobreimpres-são, processo visual por meio do qual a escritora sobrepõetatuagens na pele do texto, que respira a sinergia de lin-guagens polifónicas.

Destituídas do seu passado vivido como silêncio eexcomunhão, as figuras4 migram para a comunidade dosmutantes, que não se reduz a uma série preexistente. Pró-xima da comunidade de Agamben (1993, p. 11-12), os “fora-de-série” (1999, p. 9) não se cingem a uma essênciaimpositiva. O mutante é um ser do texto que Llansol nãocessa de transformar porque é no encontro imprevisto devibrações e de afectos que todos experenciam o renascer,alimentando-se na criação. Segundo a metáfora do clinamende Lucrécio – turbilhão de forças que opera uma inclina-ção ou um desvio sobre um estado unidireccional (Mourão,2003, p. 18) –, o texto de Llansol cria espaços de atracção ede desvio em que as figuras de mundividências diferencia-das interagem e se interpenetram, impelidas pelo novo.

3 Esta trilogia é constituídapelos livros O livro dascomunidades, A restante vida eNa casa de julho e agosto. Asegunda trilogia integraCausa amante, Contos do malerrante e Da sebe ao ser.

4 No discurso metaliteráriode Llansol, o termo “figura”é um dos “nós construtivosdo texto” (Llansol, 1998, p.130) que abala o continnumespaço-tempo,desencadeando grandesmudanças de energia “quepõem em risco o corpo […] emodificam a forma de sentire de viver” (LLANSOL,1994, p. 142-143).

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A partir da leitura de alguns fragmentos d’O livro dascomunidades, incidiremos na dinâmica do rebelde como“energia vagueante contra-o-mundo, que se desprende,como um odor do místico, que não pôde realizar-se en-quanto tal, dada a destruição de toda a geografia eremítica”(Llansol, 1994, p. 110). Ao trazer para a escrita o substratomístico, Llansol coloca-se numa posição de questionamentodo literário e dos sistemas unilaterais em que o novo nãoteve morada. O livro das comunidades é o texto seminal apartir do qual Llansol entrecruza a mística, o erotismo e asrupturas dos rebeldes, traçando a “ucronia eudemonistade intenção apocástica” (Barrento, 2008, p. 198). Comoobserva o crítico, o texto llansoliano não se inscreve nonão lugar, nem no lugar-do-não por modelar figuras queestão por vir: é uma ucronia de cariz eudemonista, dadoque, para os Estoicos, o eudemonismo visava à felicidade,à ataraxia do sábio e ao abandono dos bens materiais. Aapocatástase designa, por etimologia, a reconstituição, oregresso e a repetição, representando o retorno cíclico deperíodos da história e a repetição de acontecimentos desa-parecidos (Barrento, 2008, p. 149-150). É por meio da re-petição intensiva de encontros improváveis que Llansoltransforma o eterno retorno do mesmo no eterno retornoda leitura e da escrita.

Foi em Jodoigne que Llansol concebeu O livro das co-munidades, descrito como a casa de um só quarto e de umasó janela. É a casa da linguagem indagante em processo defundação, a casa do desprendimento dos místicos que es-creveram e agiram fora das regras do sistema hierarquizan-te, a morada dos errantes que, pela primeira vez, coincidem,sem as amarras de origem, nação, religião e língua. Aoinvés dos capítulos característicos do cânone romanesco, otexto segmenta-se em vinte e seis lugares, que moldam apedra da tradição histórica para a projectar em direcção à“signografia sobre o mundo” (Llansol, 2003, p. 167), na ten-tativa de grafar o não dito e escrever em consonância com“o espírito da Restante Vida” (1999, p. 11), o verbo quecria outra tradição e memória, feitas de deslocamentos.

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Llansol busca detectar dobras de sentido ao encenar résti-as de distintas insurreições numa geotextualidade impre-visível. São João da Cruz (1542-1591), fundador da ordemdos carmelitas descalços (1568), deu continuidade ao es-pírito de renovação de Teresa de Ávila (1515-1582). Oanabaptista Tomás Müntzer (1488-1525) falhou na sua ten-tativa de reforma religiosa na batalha de Frankenhausen.Nietzsche (1844-1900) reescreveu o percurso do ermita Za-ratustra, revisitado como o mestre da vontade do poder edo eterno retorno. Os três rebeldes foram forças de muta-ção que se abateram contra os muros da censura e da into-lerância. Martirizado no cárcere de Toledo pelos carmelitasque se opunham à instauração da via contemplativa e aodespojamento como objetivos da ordem, o fluxo inovadorde São João da Cruz é bloqueado. O pregador Müntzerescreveu o Manifesto de Praga, que visava à purificação daterra e da igreja (1999, p. 51). Morre decapitado pelos prín-cipes católicos e luteranos reconciliados, de forma a travaro seu projeto. Bloch considera Müntzer como o apóstolo daviolência apocalíptica e a voz nuclear da consciência utó-pica, ao passo que Engels diagnostica no falhanço deFrankenhausen o primeiro anúncio de uma luta de classes(Macherey, 2008). Pensador da teoria do eterno retorno,Nietzsche é o filósofo da morte de Deus. A reescrita deZaratustra sublinha uma época povoada pelos falsários daverdade e da História. Sem ter sido interpretado de acor-do com a inovação radicalizante das suas propostas, Niet-zsche desvanece-se na loucura e no suicídio. Os defensoresdo totalitarismo deturpam as suas ideias sobre o super-ho-mem para propagar o nazismo.

São João da Cruz, Müntzer e Nietzsche foram faróisna ilha dos mutantes; a sua luz incidiu na areia da deca-dência, revelando as marcas da paralisia reflexiva. O seufulgor, porém, esvaiu-se na “Trama da Existência” (1999,p. 9), tecido que, como Cronos, devora os portadores daseiva múltipla, criadores de mundos de transfiguração den-tro de espaços cercados. Em Finita, Llansol conclui que

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apenas permaneceram nuvens dos fluxos de mudança(Llansol, 2005, p. 47). A escritora captou, contudo, o éterda palavra desses vultos sob a forma de “nuvens sonoraspairando” (Llansol, 2005, p. 98) anunciadoras da tempes-tade que desassossega os defensores da tradição, todos osque fizeram jejum da liberdade de consciência.

É a partir da apropriação da linguagem dos visionáriosque estes ganham renovadas potencialidades do agir, se-gundo o conatus de Espinosa (1992, p. 278-280) sobre oqual Llansol se funda como alavanca. São João da Cruz eAna de Peñalosa são as primeiras figuras a atravessar a luzda ressemantização no valor místico de experire, dado quepenetram numa escrita sob signo do medo e da imagéticado inaudito, que representa uma viragem profunda das mo-dalidades de escrita no contexto literário português.

A partir de uma série de montagens descontínuas en-tre flashes de passados sobrepostos e instantes plenos dedevir, São João da Cruz e Ana de Peñalosa absorvem novascorporalidades e fazem ressoar o sopro da outridade: adqui-rem a idade e a alteridade do texto, arfando o sopro daeternidade.5 No lugar 1, incipit destruturador de uma voznarrativa estabilizada, as crianças de uma escola6 copiam erecitam os versos da “Subida do Monte Carmelo”, de SãoJoão da Cruz. Copiar é uma técnica de sobreimpressãoomnipresente em Llansol, pois escrever um texto de outroà mão é entrar em ressonância com a voz e pensamento doautor, captar a energia transformante de cada fonema, édeslocar o texto entranhado e ter “a sua presença acentua-da” (Llansol, 2002, p. 143-145). A escola é o primeiro espa-ço de rebeldia que assenta numa pedagogia diferenciada,visto que crianças de estratos sociais e mundividênciasculturais diferentes ouvem a recitação da professora-aman-te7 que dá a conhecer um texto místico numa escola quefunciona também como retiro espiritual. Pela mediação daleitura em voz alta, uma forma de orar a leitura, as crian-ças mergulham na voz de São João da Cruz porque ler tor-nou-se a vibração transmutante, um exercício de “encan-

5 Adoptámos a tradução dotermo “otredad” de Paz comsignificados distintos (Paz,1999).

6 É uma alusão à Escola daRua Namur, na Bélgica.

7 É a primeira singularidadedo texto. Trata-se de umanarradora anónima,determinada a não ter filhos,mas é a amante dos que avisitam na escola, ondetransmite o saber místico àscrianças. Ela foge àsclassificações. Tem “umamaneira distante de fazeramor: pelos olhos e pelapalavra. E também pelotempo” (1999, p. 11).

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tamento” (Santos, 2008, p. 160). Citam-se os comentáriosdo místico sobre o topos da noite, dividida na noite da pur-gação que suprime todos os apetites e tentações do corpo ea noite da purificação da alma. Llansol é uma esteta ecirurgiã (Compagnon, 1979, p. 31-32), dado que corta, colae costura um fragmento da obra de São João da Cruz parao transfigurar no corpo da escrita, amalgamado às reacçõesdas crianças. O lugar 1 exibe a fruição da palavra vivida epartilhada. Não se mitifica o santo, porque a professorapermite o riso que tudo relativiza. A presença de São Joãoda Cruz adquire o dom da ubiquidade: “com São João daCruz que encontraria em qualquer parte” (1999, p. 12). Opensamento do místico adentrou-se no corpo da professoracomo um companheiro de leitura: a sua leitura e cópiaoferecem um mais-saber (Llansol, 2000, p. 15)8 à narradorae ao místico.

Considerando que O livro das comunidades é uma hi-pótese de uma cosmogonia ainda por vir, não é de estra-nhar que o predomínio da isotopia do sonho, marcada pelosmatizes do “sonoler” (1999, p. 13), vibre o desejo de outraspaisagens. A pregnância do verbo “sonhar” torna as “cenasfulgor”9 uma viagem em estado nascente. Sonhar, em Llan-sol, é percorrer caminhos diversos num ritmo simultâneo,ser transportado por um fluxo, abrir-se à fragmentação eser hóspede do Outro. Num estado de disponibilidade paraa escrita, a narradora sonha “com grupo de homens e SãoJoão da Cruz, carmelita descalço, sentado em frente deum forno, a assar carne de carneiro” (1999, p. 12). À visãodo místico canonizado sobrepõe-se um retrato, falsamen-te, trivial, pois existem diversos níveis de palimpsesto emLlansol. Segundo o triângulo culinário de Lévi-Strauss(1965, p. 396-422), São João da Cruz é o cozinheiro, dadoque a cozinha é uma mediação entre a natureza e a cultu-ra. Ele é a figura-ponte dos rebeldes que permite instaurarrelações revitalizantes entre os místicos cindidos pela en-grenagem da História. Inscrito no cru, pois nada consomedo mundo terreno, ele passa pela transmutação do fogo: “a

8 Itálicos da autora.

9 É uma técnica compositivado discurso llansoliano. Ofulgor é uma envolvência quepreside à estética de Llansol(2002, p. 21) desdobrando-sena “luz de ler” (Llansol, 2000,p. 195) e no “sexo de ler” emJogo da liberdade da alma(Llansol, 2003, p. 73).

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testa começava a bronzear, vermelha, entre ondas de chei-ro” (1999, p. 13). A transmutação escritural prenuncia adimensão ucrónica: Llansol con-funde num mesmo lugaretapas distintas da errância do santo que ora tendem airromper in media res, ora o presentificam num estado deprofunda meditação e de êxtase. Sem transição, por meiode um olhar zoom, São João da Cruz atravessa a noite obs-cura, que alude ao poema escrito, entre 1578 e 1582, ondeecoam influxos do Cântico dos cânticos. O poema situa-seno momento da fuga do místico do convento de Toledo,onde fora submetido a provação, martírio e desolação in-terior durante nove meses. Numa dinâmica que adopta oléxico do amor profano, sob a influência do sufi Ibn Arabi(López-Baralt, 1995, p. 38), o poema sublinha os diferentesestados de espírito de uma mulher apaixonada que corres-ponde à Alma. São João da Cruz percorre os diferentesdegraus da treva até alcançar a luz da comunhão com oAmado (Deus). Embora existam níveis de articulação di-ferenciados, Llansol encontra em João da Cruz o agencia-mento da metamorfose sob o signo do misticismo nupcial:

¡Oh noche que guiaste!;¡Oh noche amable más que el alborada!¡Oh noche que juntasteAmado con Amada,Amada en el Amado transformada!

(San Juan de la Cruz, 2005, p. 484).10

No Lugar 2, Ana de Peñalosa, a benfeitora dos carme-litas de Granada a quem o místico dedicou “A chama deamor viva”, em 1584, passa por um processo de transforma-ção. Incorpora traços da educadora e cortesã anónima doincipit ao decifrar no baralho de cartas o jogo de fazer amor.11

Ana de Peñalosa é a energia da libido que inaugura, emLlansol, a escrita infinda, a prática de ler como técnica deescrita sobreimpressa: “Leio um texto e vou-o cobrindo como meu próprio texto que esboço no alto da página mas queprojecta a sua sombra escrita sobre toda a mancha do li-

10 Tradução nossa: Oh noiteque guiaste!/Oh noiteamável mais que a alba!/Ohnoite que juntaste/ Amadocom Amada/Amada noAmado transformada!

11 Ana de Peñalosa tem umafita de veludo ao pescoço queremete para o óleo Olympiade Manet, pintura datransgressão na história daarte que dilui a dicotomiaentre a arte clássica e a artepopular ao citar a Vénus deUrbino de Ticiano numcontexto de dessacralização:a cortesã nua que cobre osexo é acompanhada por umacriada negra que serve floresa um suposto cliente.

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vro” (1999, p. 57). No lugar 3, São João da Cruz passa docru ao apodrecido, está em processo de se tornar cinza emUbeda. Num seguinte corte abrupto, instaura-se a geogra-fia espiritual ibérica numa confluência polifónica: Ana dePeñalosa conta a sua repentina viuvez, São João da Cruzestá em ascensão e a voz de Santa Teresa de Ávila fala deum castelo comparado a um diamante, enxerto do primei-ro capítulo das Moradas da sua autoria. Além da metáforada alma vinculada ao castelo, a citação de Santa Teresatem efeitos de mise en abyme. Nas Moradas, há uma casaprincipal, tal como n’O livro das comunidades existe a casa-matriz onde também “se passam as coisas de grande segre-do” (1999, p. 17).12 Para a prática mística em que o crentese questiona como dizer o inefável, São João da Cruz eSanta Teresa de Ávila são rebeldes que enfrentam o para-doxo de falar de um excedente inexprimível por meio deum discurso simbólico. Nesse sentido, a figura errante en-contra sinais indecifráveis e animais miscigenados (Cora-ção de Urso), reabilitando o topos místico do andar à derivados séculos XVI e XVII (Lopes, 1988, p. 25).

Por meio de espelhamentos, Ana de Peñalosa lê “Achama de amor viva” (1999, p. 20) como se fosse um textoque estivesse a ser reescrito pelas suas mãos, as mãos daprofessora anónima e a mão direita de São João da Cruz no“agora” do acto da enunciação. O místico perdeu a mãoesquerda – sinal simbólico que relembra um possível casti-go da censura –, no seu lugar irrompe a página que evocaa sua errância pelo deserto de Peñuela. Em virtude da di-nâmica subversiva do sonho, o dia torna-se, de súbito, noi-te: indício de outro rito de passagem. Absortos na luz davela, São João da Cruz e Ana de Peñalosa exilam-se daHistória no momento em que as suas caligrafias se fundeme, em posição fetal, ambos renascem com “a boca suja doleite das palavras” (1999, p. 22). A libido como força im-pulsiva da ficção sugere que a isotopia do acto sexual é umacto gestatório de novos textos. Quebra-se, por conseguinte,a lógica da origem, a autoridade do escritor no valor de

12 Em Teoria da des-possessão,Lopes sublinha os elosmísticos em Llansol. Apalavra “mística”, em grego,provém da raiz verbal myéo,que significa “fechar”. Ovocábulo está associado aomistério, mysterion. O sufixo-terion remete para um lugarfechado, somente acessívelaos iniciados dentro dalógica dos ritos esotéricos. Adensidade e a progressivafragmentação do textoincentivam o leitor areaprender a ler. O leitor étambém um mutante. Ler éestar na disponibilidadeafectiva de acolher os nós deintensidade que se reiteramde texto em texto.

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voz monológica e o cânone como Medusa que petrifica oliterário em ficheiros estanques. “A chama de amor viva”não é somente intertexto, é o texto que está a ser escritopela fusão de afectos13 entre São João da Cruz e Ana dePeñalosa. O místico transforma-se na figura do “entresser”14

(Llansol, 1985, p. 19), pois transita do seu passado para odevir múltiplo. Entre duas mulheres distintas mas cujasvozes se sobrepõem por serem abrigo de energias, o pensa-mento do místico é redinamizado pela professora pela viado ensino e continua a ser reelaborado na e pela leitura deAna de Peñalosa: a mão que o reactualiza e a sua mãepóstuma.

São João da Cruz olhou a vela como a perguntar-lhe o que,a seguir, iria a escrever […] e a cera, luzente, na base lem-brou-lhe o esperma depositado no ventre da mãe, sua mãedo livro; havia duas velas mais baixas encostadas à velaacesa e o livro aberto apresentadas as páginas ligadas porum sulco.A Viva Chama não foi escrita a frio, diz o Prólogo. Se aspalavras têm um sentido: ultrapassa tudo o que se poderiaconceber e estilhaça aquilo em que queríamos encerrar[…]Ele via sua mãe no auge do êxtase e pensou, sem o escrever,num barco ou num espelho no alto de uma vaga: a páginados olhos ocupava o centro da parede e era cem vezes mai-or do que o seu corpo. Teve então medo e o lápis pareceu-lhe a ponta de um seio, que levou à boca. Ana de Peñalosaestava suspensa na página e, ele ao seu colo. Embalava-o,mas amplitude da sua voz era a de um coro e principiou aperceber na sombra as várias fisionomias dos irmãos quecantavam tu procuras-me, mas eu te procuro ainda maisTudo está por ser dito e o resto do comentário não descre-verá um momento da História (1999, p. 26).

A réstia de cera da vela convoca, por metonímia, oesperma, e o lápis torna-se o seio protector da inesperadamãe num gesto de reinvenção do tempo. A metaficçãoreincorpora ecos do prólogo do poema “A chama de amor

13 Adoptamos o termo“afectos” no valorespinosiano. Espinosaatravessa a obra de Llansolcomo figura e leituratransfiguradora da suamaneira de pensar, ler eescrever com o corpo emodelar o mundo. EmLisboaleipzig I, Llansolescreve: “o instrumento decriação são os afectos. Estesserão tanto menos perecíveis,fugazes e acidentais, quantomais se revelar no humanoamado, a figura do amante.Até que o Amor tome figurahumana, e o dom poético semanifeste no carisma que atodo o homem foi entregue: ode continuar, com a suaconsciência livre, a criaçãodo mundo” (1994, p. 112).

14 Itálicos da autora.

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viva”, em que “o espiritual excede o sentido” e o amormístico arde na sua perene flama (San Juan de la Cruz,2005, p. 913), impregnando, por empatia e contágio, os vintee seis fragmentos da “cor falante do fogo” (1999, p. 26). Asinestesia concilia o fogo místico, o fogo da batalha perdi-da de Frankenhausen e o fogo do Apocalipse. Ao contrárioda História oficial, as palavras do texto não se cingem aum sentido unidimensional e concluso, elas prolongam oenigma, tal como ocorre na experiência mística e no textoliterário. Durante a cena, imbuída de visões extáticas dosmísticos, Ana de Peñalosa interioriza a Alteridade, poisacolhe e sente o Outro dentro de si. Absorve “o coro devozes” que remete para as homílias e para o canto subversi-vo dos camponeses de Frankenhausen, suturando as do-bras que a História nunca fez. Por isso, nada foi, tudo estápor ser reescrito: é crucial que o encontro entre São Joãoda Cruz e Müntzer tenha lugar.

Ana de Peñalosa torna-se a Mãe do metatexto e a re-belde que se une à priora de Segóvia, Ana de Jesus, natransfiguração dos perseguidos. Seguindo “o espírito dadespossessão” (1999, p. 60), Ana de Peñalosa despoja-sedo seu papel secundário, impresso nas linhas da História,para adquirir os atributos da beguina, porque cura São Joãoda Cruz ao desvanecer as marcas do martírio: o santo tor-na-se João num gesto de refiguração. Ana oferece-lhe umnovo rosto mediante a transfusão do escreler:15 “Nascidosem agonia, o rosto de João estava cheio de paz e conten-tamento, de uma beleza especial que não é a de um cadá-ver […] é preciso comê-lo realmente” (1999, p. 24). Doisaspectos de relevo merecem comentário. Por um lado, émediante a energia do júbilo rejuvenescedor de Espinosaque Llansol redimensiona o verso da “Chama de amor viva”:

¡Oh toque delicado!, que a vida eterna sabe y a toda deuda pagamatando, muerte en vida la has trocado (San Juan de la Cruz, 2005, p. 914)16

15 Escreler é uma amálgamapropícia para descrever otrabalho deinterdependência da escritae da leitura que nosapropriamos de JoãoBarrento, director do EspaçoLlansol.

16 Tradução nossa: “Ohtoque delicado!/ que a vidaeterna sabe/ e toda dívidapaga;/ matando, morte emvida transformada.”

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A morte dos insurrectos é uma passagem transitória,que se transforma em incessante recomeço e renascimento.Por outro lado, “comer” São João da Cruz é uma escolhaantropófaga que consiste na devoração e na absorção daAlteridade. Por emulação, Llansol incorpora no texto asqualidades do místico, “o actor da palavra” (1999, p. 19)nos sentidos de poeta, comentador da sua poética e pensa-dor de uma reforma religiosa. Por afinidade electiva, Llansolreconfigura o místico que interiorizou o percurso do des-prendimento, seguindo a via especulativa de Eckhart (1987,p. 20).17 O desprendimento é um dos princípios da traves-sia da noite obcura que supõe o ascetismo e a interiorizaçãoprogressiva da luz tenebrosa da fé. O topos da noche oscurareveste-se de um simbolismo carregado de conotaçõesiniciáticas, que sobrepõem o nada, a cegueira do espírito,a captação de diferentes penumbras até atingir a luz e ace-der ao êxtase com o divino (Sesé, 2009, p. 27-37).

Em Llansol, aceder à luz da noite, segundo a retóricaoximórica dos místicos, é um rito de passagem, uma vezque todas as figuras transitam pela noite obscura para setransformarem em seres textuantes e propulsores de umarevolução latente vinculada à “apocatástase profana” (Bar-rento, 2008, p. 150). Graças à peregrinação que pressupõepercorrer “a via do rio, a via dos pinheiros e a iluminaçãoda vela” (1998, p. 27), São João da Cruz é o nómada queatravessa a mutabilidade, na esteira de Heráclito (2005, p.459),18 passa pelo rio da escrita mas contorna o rio do tem-po. Divaga pela natureza como se ela fosse um “texto pro-fético” (Llansol, 2005, p. 59), no intuito de interpretar osseus sinais conducentes ao êxtase. São João da Cruz é omestre da generosidade (Llansol, 1992, p. 320), de acordocom diversas camadas de leitura. Segundo a Ética deEspinosa, a generosidade “é o desejo pelo qual um indiví-duo se esforça por ajudar aos outros homens e por se unir aeles pelo laço da amizade, em virtude apenas do ditame darazão” (1992, p. 329). Como a generosidade é um dom deabertura para o Outro, São João de Cruz é um dos místicosque faculta a Llansol a apreensão do homem como “po-

17 Eckart escreveu: “Ledétachement tend vers unpur néant, car il tend versl’état le plus haut, danslequel Dieu peut agir ennous entièrement à sa guise[…] le détachement […]rapproprie l’âme, purifie laconscience, allume le cœuret éveille l’esprit, il donne dela rapidité au désir, ilsurpasse toutes les vertus:car il nous fait connaîtreDieu, il sépare de ce qui estde la créature et unit l’âme àDieu. Car un amour partagéest comme l’eau répandudans le feu, mais un amourunique est comme un rayonplein de miel (1987, p. 28).Tradução nossa: “Odesprendimento direcciona-se para o puro nada, porquemovimenta-se para o estadomais surpremo, no qual Deuspode actuar em nós conformea sua vontade […] odesprendimento […]reapropria a alma, purifica aconsciência, ilumina ocoração e desperta o espírito,acelera o desejo, ultrapassatodas as virtudes: porque nosfaz conhecer Deus, ele separao que pertence à criatura eune a alma a Deus. Porqueum amor partilhado é como aágua prolongada no fogo, masum amor único é como umraio pleno de mel”.

18 Fragmento 91: “Não sepode entrar duas vezes nomesmo rio”. Tradução nossa.

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bre”, despojado das tentações da posse. Por ser uma leiturade referência, São João da Cruz é o mediador que a leva aler outros místicos como Eckhart e a repensar o silêncioalienante em torno de Müntzer (Llansol, 1994, p. 89). EmO livro das comunidades, São João da Cruz acolhe os rebel-des na sua diferença, operando “o milagre de esconder ocorpo de quem perseguiam” (1999, p. 31). Num processoautorreflexivo com o leitor, o mestre da generosidade foi aclareira que iluminou o caminho da escrita de fulgor d’Olivro das comunidades, dado que o título do livro figura comoum texto integrante das Obras completas de São João daCruz numa sobreimpressão infinda de escritas que interagem(1999, p. 49) como folhas de húmus. O texto llansolianofaculta ao pensamento e poesia do místico a possibilidadede ser lido em inter-relação com outros textos místicos ecomo leitura de redenção.

O mestre da generosidade percorre a travessia benéfi-ca do deserto (1999, p. 21), em que examina o seu desertointerior em busca de autognose e da via contemplativa epurificativa. No lugar 8, João da Cruz erra com Müntzernum deserto anelar, que associa a simbólica do Apocalipsede São João ao massacre de Frankenhausen. A derrota doscamponeses é o acontecimento em que a mística se esvaiem revolta (Llansol, 1994, p. 110). É, precisamente, sob omodelo escatológico, que São João da Cruz e o combaten-te Müntzer vivem a morte de trinta mil camponeses, cujaspeugadas “ficaram perdidas no deserto” (1999, p. 42). Otexto repele o silenciamento da História e será a partir d’Olivro das comunidades que Llansol ensaia dar outro desfe-cho à derrota de Frankauhaussen (Llansol, 1994, p. 93).

O Müntzer violentado pelas forças do poder recebe afecundidade da escrita de Ana de Peñalosa que o regene-ra como filho. São João da Cruz também revitaliza o irmãoao restituir pela escrita o seu corpo desgarrado:

São João da Cruz ergueu o seu outro rosto, […] principioua bordar palavras com o dedo sobre o corpo incompleto de

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Müntzer. Ana de Peñalosa olhava os seus dois filhos, lia aescrita que cobria as costas do decapitado. Da sua respira-ção saíam sons rápidos e atónitos, ouvia-se o vento que osacompanhara desde o deserto.Ana de Peñalosa deitou-se para trás, a cabeça de Müntzernascia das suas pernas, adulta, os olhos dificilmente des-cerrados (1999, p. 50).

A sombra de Assim falava Zarastustra perpassa nos pri-meiros treze lugares d’O livro das comunidades. O facto deSão João da Cruz e Müntzer se transformarem em criançasé uma releitura de Nietzsche que retoma o fragmento deHeráclito 70 (2005, p. 76).19 Eis o texto de Nietzsche: “acriança é a inocência, e o esquecimento, um novo come-çar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movi-mento, uma santa afirmação” (Nietzsche, 2006, p. 65).20

Se os dois rebeldes se tornam crianças é porque eles seprojectam no futuro da comunidade, carregam a força demodelar o novo e criar valores de liberdade em consonân-cia com a geografia do litoral do mundo. Os rebeldes comocrianças experenciam o lugar como encontro de vibraçõesliberados do fardo do poder e da tradição monolítica.

De modo imprevisível, Nietzsche imbrica-se na poesiaportuguesa por meio da carta que Ana de Peñalosa lheescreve na qual se evidenciam citações do poema “Meni-no da sua mãe”, de Fernando Pessoa. O trânsito de Pessoapela escrita llansoliana pressupõe uma possível mutaçãode duas energias silenciadas que não alcançaramreceptividade na sua época. A carta “Texto ao Sol subme-tido” sobreimprime no eterno retorno do mesmo umareleitura paródica de Assim falava Zarastustra, que, por suavez, é uma paródia de várias paródias. O Zaratustra deNietzsche encena um eremita-profeta, esquecido pela so-ciedade, que não consegue anunciar a teoria do eternoretorno, pois, quando está prestes a formulá-la, adoece(Nietzsche, 2006, p. 244 e p. 272). Segundo Deleuze,Zaratustra cai doente porque é aterradora a ideia cíclicade que tudo volte ao mesmo (2009, p. 36). No plano da

19 Fragmento 70 “Jogos decrianças, as opiniõeshumanas”.

20 Consultámos a versãofrancesa, por isso, propomos anossa tradução.

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História hegemónica, os sábios e rebeldes foram bloquea-dos. Zaratustra é, por um lado, a figura que aponta para aleitura crítica do declínio do ermita como sábio, visto porLlansol como um corte histórico pouco analisado (Llansol,1994, p. 120).

Por outro lado, é também necessário que o texto deLlansol atravesse Assim falava Zarastustra, porque marca aruptura da historicidade pela recorrência do eterno retor-no no valor de transgressão. O olhar de Nietzsche é umaforça intempestiva. Zaratustra confia nos homens superio-res porque são aqueles que sabem o significado da mortede Deus. Por isso, o eremita imagina-os como possíveis dis-cípulos. Embora empenhados em substituir os valores divi-nos por valores humanos, eles revelam a sua fraqueza quan-do fogem em face do signo do leão, indicador da destruiçãode todos os valores instituídos (Deleuze, 2009, p. 45). Oshomens superiores são incapazes de rir e de brincar. Du-rante a festa do burro, um terrível ressurgimento de dogmasse prenuncia. O riso do homem mais feio desmente, contu-do, o risco de dogmatização (Nietzsche, 2006, p. 372-376).O riso abre a senda do desaprender, oferece leveza e diluia gravidade dos conceitos fossilizados. Como observaDeleuze, Zaratustra compreende que o Eterno Retorno é arepetição selectiva, “a Repetição que salva” (2009, p. 37).

É contra “ o reumatismo dos conceitos” (Llansol, 2000,p. 227) que Llansol também se inscreve como escritora re-belde que adopta o riso transgressor: “Vou cruzar o canónicocom o apócrifo” (Llansol, 2003, p. 67). A figura de Nietzscheatravessa o rebaixamento medieval (Bakhtine, 1970, p. 29).É necessário que morra o Nietzsche canonizado para querenasça Friedrich N, segundo os desígnios de Ana dePeñalosa. A metamorfose do filósofo é um processoambivalente de despojamento e de violência. Nu e calvo,Ana de Peñalosa cobre-o com uma túnica como se lhe ofe-recesse, por metonímia, a força de um místico. Convertidonum animal pérfido e imóvel, com o sexo arrancado,Nietzsche agoniza. É devorado pelo porco Eckhart. O

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niilismo de Nietzsche é transformado pelo espírito religiosodo místico. Llansol reactiva as metamorfoses de Zaratustra.Em vez de o espírito se tornar camelo, o camelo em leão eo leão em criança, que correspondem aos diferentes está-dios de destruição e renovação dos sistemas impostos, oespírito de Nietzsche atravessa a Alteridade de Eckhartpor ser o místico que meditou sobre o instante pleno (aion).Llansol recupera a vibração do sermão 10 “Stella matuti-na”, de Eckhart.21 O excerto do sermão surge sob a formagráfica de um versículo:

se eu me concentrar num fragmento do temponão é hoje, nem amanhãmas se eu me concentrar num fragmento do tempo,agora,esse fragmento revelará todo o tempo (1999, p. 67).

Todo o Livro das comunidades é a indagação do instan-te epifánico que fractura o continnuum da história no intui-to de devolver a cada rebelde o seu instante de singulari-dade e de entrecruzamento de energias. Após o rito detransformação, Ana de Peñalosa e Nietzsche copiam umtexto inconcluso, alusão sub-reptícia ao Livro das comuni-dades. Concordamos com Eiras (2005, p. 21) quando co-menta que a figura de Nietzsche é uma “possibilidade dedevir de São João da Cuz” não só porque ele devolve aolivro a fluidez da escrita, como também por se exilar dosseus textos e adoptar a faculdade contemplativa. Ana dePeñalosa e Nietzsche concebem um novo ser, um híbrido,feito de traços de monstro e de texto (1999, p. 75). O mons-tro-texto é o próprio livro que lemos, que provoca o medo,segundo o prólogo (1999, p. 10). Se relembrarmos aindaque o monstro se associa à etimologia do verbo mostrare nosentido de “prescrever a via a seguir” (Gil, 2006, p. 73), omonstro-texto anuncia o lugar da anulação em que todasas formas vivas têm a sua palavra a dizer e o seu devir.

Ana de Peñalosa estabelece uma relação entre o peixeSuso e o porco Eckhart, que forja uma geografia espiritual

21 “Si je prends un fragmentdu temps, il n’est aujourd’huini hier. Mais si je prends« maintenant », il contienten soi tout le temps”(Eckhart, 1987, p. 110-111).

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esquecida entre o discípulo e o seu mestre. É pela media-ção do peixe Suso que Ana de Peñalosa borda e escreve ossermões de Eckhart que “penetram a água gota a gota”(1999, p. 61). Tudo se restitui pela faculdade do eternoretorno da cópia, da metamorfose das figuras e do eternoretorno da leitura e da escrita sobreimpressa. Ler e escre-ver equivalem-se: “Com um livro escreve-se outro livro.Como um livro é vegetal (1999, p. 58).” A metáfora dovegetal sugere que o texto é uma forma do vivo que con-tém o germe do recomeço e da regeneração. De acordocom o sentido etimológico de ler, Llansol recolheu rastosde vários rebeldes para refundar nas entranhas da textua-lidade a comunidade de visionários ligados por “uma coe-rência, e não por uma identidade” (1999, p. 92). Cabe àMãe do metatexto ser a dinamizadora do eterno retornoda leitura e da escrita que realiza o percurso renovado doermita: “a solidão não é mais que a salvaguarda da escritaquando o desejo se apresenta” (1999, p. 61). Ela está nadisponibilidade receptiva de aprofundar o saber transmiti-do. A rebelde penetrou nas vísceras da sobreimpressão eserá “um feixe de seres” (Llansol, 1996, p. 37) em inces-sante errância.

N’O livro das comunidades, os rebeldes históricos nãosão alegorias. Todos tornam-se receptáculos de energiasabertos à mobilidade atraídos por um envolvimentolibidinal. O livro é o locus dos semelhantes na diferençaem que os “seres têm um sentimento final de que há umlugar onde chegarão à sua coincidência” (Llansol, 1998, p.129). O texto produz-se nas margens do institucionalizadopara indagar a comunidade no sentido de “epifanias domistério” (Llansol, 1994, p. 85).

O texto é um dispositivo de questionamentos a partirdos cortes dissonantes das figuras dos rebeldes: Como re-pensar a História sem aprofundar, em termos de um estudocomparatista, os movimentos anunciadores da liberdadede consciência? Como destravar a vertigem galopante doPoder sem ler os textos dos místicos europeus que têm ne-

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xos com os mestres do Budismo, dada a força do despren-dimento em Eckhart e São João da Cruz?

Se ponderarmos que, desde o século XVI até os nossosdias, as utopias desembocaram na decepção, se pensarmosque o massacre de Frankenhausen teve desdobramentosem Auschwitz, Hiroshima e Tiananmen (em proporçõesmenores), se reflectirmos sobre os conflitos étnicos, políti-cos e religiosos que continuam a dilacerar o homem emguetos de violência e de intolerância, a leitura do textollansoliano é uma indagação espiritual do novo. É a ucroniacom lampejos de esperança que anuncia a comunidadedos mutantes, que constroem a escrita da meditação e doencontro, geradora do interdiálogo entre os místicos euro-peus e os místicos do Oriente.22 E se o reverso da Históriachegasse em dobras? O livro das comunidades desfaz a pará-bola do Anjo da História, baseada no quadro Angelus novus,de Klee (Benjamin, 1992, p. 162), que contempla, impo-tente, o acumular das ruínas do passado, sem poder inter-vir sobre a paisagem devastada diante dos seus olhosatónitos, empurrado para o futuro por uma tempestade. Oprimeiro texto de fulgor de Llansol é a dobra reduplicadainfinitamente em que não se acredita numa utopia, mas sereescreve um lugar compósito e belo que possibilita o con-vívio dos rebeldes na sua diversidade e devir. É a dobra dosviandantes da noite obscura “que se dispõem a virar doavesso as próprias estrelas que orientam as suas vidas”(Llansol, 1994, p. 136).

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22 Llansol leu os místicossufis. Uma místicacomparada é um tema aindanegligenciado no universollansoliano.

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Porque aquilo que escrevo podeler-se no escuro: memory and

narrative in Antonio Lobo Antunes

Aino Rinhaug*

RESUMO: O presente artigo procura explorar a relação entrememória e história tal como aparecem na literatura. Com refe-rência ao romance Ontem não te vi em Babilónia, de AntónioLobo Antunes, a análise centra-se na questão de representaçãoe de autentificação das vozes narrativas dentro do domínioliterário. O foco principal é dado à literatura e narração literá-ria como lugar de memória e, consequentemente, à possibilida-de de tal lugar poder tornar acessível o passado.

PALAVRAS-CHAVE: António Lobo Antunes, memória, repre-sentação, ficcionalidade, voz

ABSTRACT: The present article seeks to explore the relationbetween memory and history as it emerges in literature. Withreference to the novel Ontem não te vi em Babilónia by AntónioLobo Antunes, the analysis questions the representation andauthentication of voices of narration in the literary domain.The main focus is on literature and literary narration as a site ofmemory and, consequently, on the possibility of such a site torender the past accessible.

KEYWORDS: Antonio Lobo Antunes, memory, representation,fictionality, voice

In light of how chaos increasingly came to define lifeexperiences, Samuel Beckett believed the task of thecontemporary artist was “to find a form that accommodatesthe mess”, which, as James Olney writes, would be to obeythe modernist injunction of “making it new” (Olney, 2000,p. 12). And the idea of making experiences new in acontext of historiography and literature seems to invite toa reflection on the literary relation between rememberedpast and lived present. Indeed, there is an urgency to

* Post-Doctoral ResearchFellow – Department ofLiterature, Area Studies andEuropean Languages,University of Oslo, Norway.

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reconsider what form memories of lived experience maytake as narrated past, which, in turn forms the question ofwhether the past as such may at all be seen as accessible.As Beckett further notes:

What I am saying does not mean that there will hencefor-th be no form in art. It only means that there will be newform, and that this form will be of such a type that it ad-mits the chaos and does not try to say that the chaos isreally something else. The form and the chaos remain se-parate. The latter is not reduced to the former. That is whythe form itself becomes a preoccupation, because it existsas a problem separate from the material it accommodates[…] (Driver, 1961, p. 23).

On the basis of these initial observations, the presentessay seeks to examine how contemporary literature reflectsthese concerns with narrative form and lived experience.The main focus will take as its point of departure thequestions “to what extent is the past accessible” and “howis it knowledgeable”? In other words, as a direct responseto Beckett’s observations, points will be made as to howmemory relates to history in terms of formal (literary)depiction. It is obvious that such considerations will affectour ideas of authenticity and representation and in orderto illustrate how this may be done, references will be madeto the work of Portuguese author António Lobo Antunes.His recent novels seem to be the mediating force betweenthe two instances past and present, history and literature.

Awakening

The novel Ontem não te vi em Babilónia (2006) couldbe said to illustrate the difficulty of separating, but also ofmerging lived experience and narrative form withoutobliterating or barring access to both; indeed, it seems as ifthe narration occurs in a moment caught in between pastand present: in the course of five hours – from midnight to5 am – a web of interweaving nocturnal voices emerges,

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whose fragmented life stories intersect with observationsof the present nightly hour. The narrative as representationtakes on a form similar to a patchwork of past and presentevents in which the narrating voices negotiate theirnarration, signification and subjectivity. As they traverseacross two temporal modalities, the act of rememberingalso becomes a matter of forgetting, and the narrative isthe result of this interchange of information. By bringingthe past into the present, a mirror is held up to each of thenarrators, whose monologues become a dialogue betweenself and other, between what was and what is. For example,the fundamental difference between the past and presentis made evident right at the beginning of the novel, whichrenders an impression of a kind of awakening, not to theclarity of the day, but to the all-embracing, distortingdarkness of the night. The first voice “speaks” thus:

estou aqui, quantas vezes ao acordar me surpreendia que osmóveis fossem os mesmos da véspera e recebia-os com des-confiança, não acreditava neles, por ter dormido era outrae no entanto os móveis obrigavam-me às recordações deum corpo a que não queria voltar, que desilusão esta cami-lha, esta cadeira, eu, cochichar à madrinha da aluna cega oque me cochichava a mim, pedir desculpa sem que me li-guem e a porta e as janelas abertas, a professora nas escadas,as primeiras crianças, pais […] (Antunes, 2006, p. 14).

Here, from the point of view of the nocturnal voice,we get an acute sensation of alienation in regards to theother diurnal self. The impression of being transported to adifferent realm is emphasised by the fact that simple objects,like furniture, is regarded with suspicion; objects have thecapacity to force upon the narrator memories of a body towhich she – explicitly – refuses to return. The overallsensation of nocturnal awakening is one of attraction andrepulsion, similar to a state of sleepwalking, which allowsfor a form of communication that is different from theexchanges of gestures taking place during daytime. Whenmeaningless gestures are laid to rest, there is, however,

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room for another kind of communication to appear, whichoccurs as the exploration of self and other in an apparentlyinactive position; indeed, this form of nocturnalcommunication originates from a position in which the selfwakes up to otherness and incomprehension. As anothernarrating insomniac of Antunes’ novel writes:

deve ser meia-noite porque os cachorros desistem, imó-veis nos tufos dos canteiros e nos legumes mortos de talmodo que se confundem com pedras, são pedras, estou acor-dado entre pedras, se calhar uma pedra eu também, umapedra minha mulher, uma pedra a que me espera em Lisboa[…] (o que se passa comigo?) (Antunes, 2006, p. 32)

If it is possible to tell conventional time according tothe sounds or silences of puppies, it would seem as if silen-ce can be measured according to another kind of “clo-ckwork”: a waking narration is all there is in this Antuniannight and the narrating bodies have all turned into ob-jects, as if they were pieces being moved in a game. Mo-reover, what could be signalled in the opening pages ofAntunes’ novel is not far from what guided Paul Valéry’swriting in his Cahiers. Spanning more than fifty years and28 000 pages, Valéry relentlessly pursued an expression ofhis self by way of what he called “exercises” in awakening,or “daily scales” in the music of awakening, (Gifford; Stimp-son, 1998, p. 41):

Without object, that is, save perhaps the greatest: theanalytical unfolding to conscious understanding ofeverything that is implied in “mind” – that is, in the hu-man psyche as such, with its inevitable axes and unfailingValéryan correlatives of body and world […] (Gifford;Stimpson, 1998, p. 41).

As for this kind of game, or exercise, awakening isalso the beginning of a process of exhausting and regene-rating the self in language and in play. One may assumethat the act of consuming the self through narration may

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equally be productive of a restoration of the past, and asValéry remarks to the significance of memory, “[memory]is the gift of the return to the same, or of the same. Itsgreat affair is not the past, but the re-present. This is whyit returns from the ‘past’ and never climbs back up to it”(Heller-Roazen, 2007, p. 76). Most importantly for the fo-llowing examination of historiography and literature, theAntunian awakening happens in or as literature both as adomain, or lieu, suggestive of a particular mode of being, inwhich, to speak in a game terminology, the game can lastboth five hours as well as a lifetime.

Sites of memory as relational space

Lobo Antunes’ recent writing has a fascinating capacityto conjure up a sensation of how narrative voices interactwhile being enclosed in a claustrophobic domain. When,as a recurrent topic, communication between familymembers is dead, we have the impression that the remainsof it is taken up as fuel for inner monologues, where eachvoice insists on the unbridgeable abyss between self andthe other. Furthermore, the power that this site has on itsinhabitants can be connected to its double nature: whilstit demonstrates an infinite emptiness, it also communicatesan overwhelming fullness and richness, originating fromthe incessant activity of narration. It is, in short, a questionof changing our spatial awareness according to how thedomain of narration is being constructed as the narrationunfolds. As such, it becomes a domain of memory; or, morespecifically, a realm in which the past is communicated inthe present, or, where the past takes place: With regards tothe pertinence of these domains, or sites of memory, PierreNora writes:

Our interest in lieux de mémoire where memorycrystallizes and secretes itself has occurred at a particularhistorical moment, a turning point where consciousness ofa break with the past is bound up with the sense that

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memory has been torn – but torn in such a way as to posethe problem of the embodiment of memory in certain siteswhere a sense of historical continuity persists. There arelieux de mémoire, sites of memory, because there are nolonger milieux de mémoire, real environments of memory(Nora, 1989, p. 7).

For Nora, the emergence of a site of memory is aconsequence of a particular loss, namely of what he calls“real environments” of memory: communities of collectivememory are now replaced by new and “hopelessly forgetfulmodern societies” (Nora, 1989, p. 8) as carriers of meaningin a globalised world (Nora, 1989, p. 7). Furthermore, thisloss of memory in archaic form, illustrates a split or funda-mental difference between history and memory, adifference, which, as will be shown below, is decisive forour structure and organisation of narration of the past.

Forms of memory

According to Nora, the emergence of site in place ofmilieu of memory is intimately related to the conflict be-tween different ways in which temporality is viewed andorganised. On the one hand, he observes, there is “realmemory,” defined as “social and unviolated, exemplifiedin but also retained as the secret of so-called primitive orarchaic societies” (Nora, 1989, p. 8). This is the case of an

integrated, dictatorial memory – unself-conscious, com-manding, all-powerful, spontaneously actualizing, a me-mory without a past that ceaselessly reinvents tradition,linking the history of its ancestors to the undifferentiatedtime of heroes, origins, and myth.

On the other hand, there is history, or what he calls“our memory, nothing more in fact than sifted and sortedhistorical traces” (Nora, 1989, p. 8). From the way in whi-ch history has eradicated memory in the course of time,there is now a situation of imbalance, or a breach of the

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previous idea of an equation of memory and history. We nolonger live within memory, but in history, which is a mererepresentation of the past (Nora, 1989, p. 8). The latter, itmust be added, is equated with a fragmented sense of his-toric reality and perception. Lieux de mémoire become visi-ble, thus, in the moment of realisation that memorydisappears “surviving only as a reconstituted object bene-ath the gaze of critical history” (Nora, 1989, p. 12). Thesesites – which for Nora are exemplified by archives, dictio-naries, museums, but also by monuments, such as the Pan-theon and the Arc de Triomphe – appear in a society thatis “deeply absorbed in its own transformation and renewal”and where there is no room for spontaneous memory (Nora,1989, p. 12). Most importantly, in view of history and itsrelation to literary form, Nora writes:

We buttress our identities upon such bastions, but if whatthey defended were not threatened, there would be noneed to build them. Conversely, if the memories that theyenclosed were to be set free they would be useless; if his-tory did not besiege memory, deforming and transformingit, penetrating and petrifying it, there would be no lieux demémoire. Indeed, it is this very push and pull that produceslieux de mémoire – moments of history torn away from themovement of history, then returned; no longer quite life,not yet death, like shells on the shore when the sea ofliving memory has receded (Nora, 1989, p. 12).

Several points need to be made here: first, there is anintimate relation between the creation of identity and thefact that certain sites embody the material that constitutessuch an identity formation. Hence, there is the need to“see,” protect and “name” these sites. Secondly, althoughthese lieux emerge in order to return a sense of history, thefact is, as Nora points out, that what is being returned is ofa very different matter – something “no longer quite life,not yet death,” in other words, no longer true, not yet alie. Thirdly, it must be noted that the relation betweenidentity, sites, naming and matter is based on one funda-

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mental factor, namely that our encounter with these sitesof memory reveals how time operates on two levels, or astwo modalities simultaneously. As a consequence, we couldsay that when sites of memory return the lived past to thepresent in the form of narration (in a broad sense) what is,in fact, being given (hence named) is essentially of anambiguous nature. This makes it possible to assume thatthe “real” past is only accessible through narration as playand playing.

Return as play: destruction of the calendar anda different site of memory

In “Reflections on History and Play,” with referenceto Collodi’s novel about Pinocchio (1883), Giorgio Agamben,observes what happens when life is invaded by play, theresult of which is a “paralysis and destruction of thecalendar” (Agamben, 2007, p. 76). In the same way as Norawould regard lieux de mémoire as marking the rituals of asociety without ritual (Agamben, 2007, p. 12), Agambenrefers to how certain ceremonies (here, New Yearcelebration) in “cold societies, or societies where history isfrozen” have a double function: they regenerate time andensure the fixity of the calendar (Agamben, 2007, p. 76).Now, in relation to play and rituals in these societies, thefirst changes and destroys the calendar, whilst the latterfixes and structures it (Agamben, 2007, p. 77). In regardsto Nora’s rituals without ritual meaning, play would,therefore, seem to occur without a real idea of its purposeor sense (Agamben, 2007, p. 79). Also, in so far as sites andsignification are concerned, Agamben notes that play “pre-serves and profane objects and behaviour that have ceasedto exist. Everything which is old, independent of its sacredorigins, is liable to become a toy” (Agamben, 2007, p. 79).Toys, he writes, as objects have a very different function ascarriers and communicators of the past than, say, archivedocuments, monuments, etc:

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What the toy preserves of its sacred or economic model,what survives after its dismemberment or miniaturizati-on, is nothing other than the human temporality that wascontained therein: its pure historical essence. The toy is amaterialization of the historicity contained in objects,extracting it by means of a particular manipulation. Whi-le the value and meaning of the antique object and thedocument are functions of their age – that is, of theirmaking present and rendering tangible a relatively remo-te past – the toy, dismembering and distorting the past orminiaturizing the present – playing as much on diachronyas on synchrony – makes present and renders tangible hu-man temporality in itself, the pure differential marginbetween the “once” and the “no longer” (Agamben, 2007,p. 80).

According to these observations, it seems as if thedifference between Agamben’s toy and Nora’s sites ofmemory resides in their relation, or rather, in how they re-late to time. Furthermore, by differing in their relation totime, they also return a different kind of signification.Whilst for Nora’s monuments, it was case of returning adistorted, changed, inauthentic matter; for Agamben’s toyas site of memory, there still seems to be something “real”emanating from the object, a sense of its (and our) ownauthenticity. Paradoxically, the latter is based on our ludicmode or practice of encountering and naming the object.If monuments or archives are, arguably, “functions of theirage,” the toy, however, could seem to emerge as a site inwhich there is a negotiation between the tangible andintangible.1 The toy is timeless, yet constituted by timeonly and by being a representation, or materialisation of“pure historical essence,” it derives its signification fromthe relation between “essence” and “representation”(miniaturization), in short, from the question of the makingof authenticity.2 The toy is, thus, invested with meaningby its actualisation or participation in a game, or play, whichoccurs in between two temporal modes as well as betweentwo instances of players. Within the ludic domain, in our

1 Here it is necessary topoint out that no monumentor site is simply “functions oftheir time.” In studies ofheritage it is becoming moreand more evident that it isprecisely the intangiblequalities of the site thatgives it its value. Sites are,thus, identified by culturalprocesses and social events,which give them meaning(Smith, 2006, p. 3).

2 Cf. Agamben, “toys assignifiers of diachrony,featuring in that immutableworld of synchrony”(Agamben, 2007, p. 90).

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encounter with it, we merge with the site in a form ofcommunication, which could be said to relate betweenhistory and memory. This can best be illustrated by lookingat how narration and in particular literature “connects”past and present and, secondly, at how subjectivities, orvoices within the literary realm are being created andremain in a process of authentication.

Subjectivities and voices: materialisation ofhistoricity

To return to the novel by Lobo Antunes, it is clearthat the narration, or confessions function as a relationalforce between past and the present, memory and history asif in a game. As such it displays a structure, or form, whichaccommodates the inherent temporal conflict “in a newway.” If this form of temporal accommodation could benamed “literature,” then the novel is a site of memory,consisting exclusively of language, which can weave itshistoric pattern playfully across past, present and future.The question of what returns from as well as of what isinvested in this particular site, becomes a matter of decidingits authenticity and essence. This is, obviously, an intriguingissue, given the temporal flexibility and signifying functionof fiction as essentially artificial: when the “past” is returnedto the present within the literary realm and as literature,there is a play taking place that accommodates the relentlessproduction and consumption of history by memory and visaversa.3

Return of the ghost

In light of the above, the novel by Lobo Antunes maycome across as an archive composed of intersecting lineagesof past experiences. Simultaneously, in terms of form, it is astriking documentation of what happens when life is invadedby play, or rather, when play performs and distorts life

3 Cf. Nora’s remark that“[h]istory has become…arealistic novel in a period inwhich there are no realnovels. Memory has beenpromoted to the center ofhistory: such is thespectacular bereavement ofliterature” (Nora, 1998, p.24).

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through narration and articulation. The stirring into therealm of the night is also an awakening to the fact thatnarration is an interaction between the past and thepresent, whose result is an ambiguity of temporality and ofvoice. Who are these voices, and where do they come from?The confessional activity seems to be one way of findingout, which is exemplified by how the voices repeatedlyquestion their own narration as well as state of being:

Não era nada do que escrevi até agora o que queria dizer ouseja a que me espera em Lisboa, a que dorme lá dentro, oscachorros, tudo isso, os meus colegas no quintal pela ban-da do pomar etc, não eram histórias do passado nem daminha vida hoje em dia nem histórias de pessoas, não douimportância às histórias, às pessoas, eram coisas minhas,secretas, que mal se notam, ninguém nota, a ninguém in-teressam e no entanto as únicas que sou realmente mas tãoleves, tão ínfimas […] (Antunes, 2006, p. 315).

Despite emerging as “things” or “secrets” belongingneither to the past nor to the present, what is being writtenand what has been written is “all I am” and, as such, thenovel is a document, or an archive of voices, whichdemonstrates an ongoing process of making its autonomy,hence, authenticity qua play. The voices, or subjectivities,which constitute the literary site of memory, are, asmentioned earlier, the embodiment of the archive (past)in dialogue with their own present ludic constitution.Illustrative of the “communicative” situation is the factthat the event which launches us into the story, or stirs usup to the “wake,” is the death of a fifteen year old girl: hersuicide initiates the narration of her mother and of thewhole book: “já lá vamos à minha filha, antes da minhafilha e pela última vez repito que o mar da Póvoa de Varzimtão sereno em agosto com uma paz de nuvens em cima epor falar na minha filha uma paz de nuvens em cima tam-bém, estiradas ou redondas…” (Antunes, 2006, p. 24). Ifthe transitory function of the toy is that it plays as much on

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diachrony as on synchrony (Agamben, 2007, p. 80) by being,or taking place at the moment in between life and death,then the death of the young girl exemplifies her transitionfrom being a subject (“filha”) to an object of memory, or atoy (“boneca”). The mother’s confessional account of howshe found her daughter dead can be both informative andneutrally descriptive:

de início não vi a corda nem me passou pela cabeça queuma corda, para quê uma corda, vi a borboleta, a boneca nochão e o banco, a boneca por sinal não deitada, sentada, debraços afastados e cabelo preso na fita usando o vestidinhoque lhe fiz, a boneca a quem eu – Desaparece (Antunes,2006, p. 24).

While later, it becomes evident that the death of thegirl has distorted the mother’s idea of how the past can becontained or narrated in a meaningful way. The distortionof temporal continuity and sequences are exemplified inher narrative, which is similar to a vision or a dream, wherethe daughter and the doll figure and are interchangeable,and where the memories of her own childhood mingle withscenes with her daughter at the table. She writes:

não no Pragal, no meu sono ou na Póvoa de Varzim emagosto, no que respeita ao horizonte tornava-se difícil dis-tinguir o céu do mar, não um risco como de costume, orisco ausente de forma que impossível saber o sítio em queo céu se dobrava e começava a onda, em que a espuma afranzir-se, percebia-se a boneca, não a minha filha, na pon-ta da corda ou do fio de estendal que ia girando devagar,não de braços afastados, pegados ao corpo numa attitudede entrega, uma boneca de que as borboletas(dúzias de borboletas)de que dúzias de borboletas me impediam de notas as fei-ções, notar a minha filha em casa a começar a comer em-purrando para a borda do prato com a delicadeza do garfo(não é por ser minha filha mas sempre teve modos distin-tos)

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os legumes de que não gostava, a minha filha a começar acomer, acho que fui clara e peço que me não contrariemneste ponto, a minha filha a começar a comer desculpan-do-se– Como nunca mais vinha fui começando a comera minha filha a começar a comer, a minha filha viva e deuma vez por todas se não me levam a mal(espero que não me levam a mal)não se fala mais nisso (Antunes, 2006, p. 28-29).

In these two accounts “play” is everything, indeed, thenarration contains the interplay between the vision and voiceof the mother (past and present), the dead girl (past) andthe doll (present). First, there is a temporal interplay andthe narration is a relational force between diachrony andsynchrony, memory and history; the mother’s account ofher daughter’s death is repeatedly interrupted by memoriesbelonging to her own childhood, which indicates anecessity to re-establish a sense of self after the loss of thegirl (the sea at Póvoa do Mar; of someone calling her name:“Ana Emília”). Secondly, there is a case of an ongoingsubstitution between the doll (pure temporality) and thedaughter (lost temporality) as signifiers, where the doll, asthe representational “ghost” of the daughter, to speak withAgamben, “facilitates a bridge between the world of theliving and that of the dead, ensuring the passage from theone to the other without, however, confusing the two”(Agamben, 2007, p. 91). Death, as it were, is “overcome”due to the function of the toy as site of signification fromwhere it can relate to life, to history and to memory and, infact, would provide the narrative of a form of signification,which accommodates and, hence, returns a sense ofauthenticity. As such, the return of the past by way of thesignificance invested in the doll as site of memory,demonstrates how narration as play “feeds into” a processwhere memory relates to history through exhaustion orconsumption of the past in order to produce its significationin the present (which, in turn, as we shall see, devours

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it).4 More precisely, in Lobo Antunes’ work, within fiction asa site of memory and in the course of the night as play arather paradoxical situation is conjured up in which thepresent (history) consumes the past (memory) in order toproduce subjectivities, hence authenticity and a sense ofpurity returning from the site of memory.

Procedures of authentication: consumptionand production

Based on the interplay between consumption andproduction of signification and identity in the novel, wecan now try to discern a literary practice of authenticationof voices and of language (as pure temporality). Again, itis a matter of how language weaves its pattern betweendifferent temporalities and as such, oscillates betweenhistory and memory and between play and life. On the onehand, we have the insistence of naming and determiningthe age of each narrator, hence fixating, personifying andidentifying the voice and moment, and, on the other hand,the explicit negation of the name (and time) as signification.For example, in the names of Alice, Lurdes and Antóniowe read as follows:

francamente não sei o que se passa comigo ajudem-me,cinquenta e seis anos, quase cinquenta e sete, eu uma se-nhora, uma enfermeira, contem-me o que reclama o meucorpo, não o meu corpo, este corpo diferente do meu, o quereclama este corpo oiço os campos, o vento, a azinheirajunto à casa da minha avó a cantar […]– Alice (Antunes, 2006, p. 50-51)[…]tenho quarenta e quatro anos e o que significam quarentae quatro anos contem-me, que relação entre quarenta equatro e eu, entre Lurdes e eu, entre o meu corpo e eu,casas, cheiros, silêncio e eu no centro […] (Antunes, 2006,p. 138)[…]

4 Agamben observes that“children and ghosts, asunstable signifiers, representthe discontinuity anddifference between the twoworlds” (Agamben, 2007, p.92-93).

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ficava a pensar no meu nome a equilibrar-me no tornozelodireito primeiro e no esquerdo depois, sentindo o peso dasletras, não o do corpo, nas pernas, a pena quebrada foi-seembora de sapatos miúdos triturando as pedras depressa aesmagar o meu nome, desembaraçada de mim e eu livre,não me chamo Lurdes, chamo-me Eu, os meus pais recua-ram insignificantes […] (Antunes, 2006, p. 150)

And finally, towards dawn:

O seu livro quase no fim visto que dia…você não imagi-nando que a morte uma pessoa real, sem mistério a defen-der-se do frio, o seu nome– AntónioNão consegue ouvir nada a não ser o seu nome– António (Antunes, 2006, p. 395-96)

Here, there is a split in language as there is one ofvoices (I – body – name) and time, and the narration iswhat belongs both to the game of the night (framed by fivehours), and to the produced, “returned” self asremembered, or authenticated through the modality offiction.

Language and death: naming and authenticity

The final point to be made in connection with memory,history and literature as a site of memory is concerned withthe split in language between the act of naming and whatis being named. Again, we turn to the voice as language –narration and narrator – in the novel, and see that withoutthe split in language and in temporality, there would notbe a site of producing subjectivities. Agamben observes inanother essay on the topic of “language and death” that asilent and unspeakable voice “permits thought toexperience the taking place of language and to ground,with it, the dimension of being in its difference with respectto the entity” (Agamben, 1991, p. 86). Moreover, if we returnto the function of the toy as an object of both synchrony

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and diachrony, whose silent voice guarantees the “takingplace” of memory in literature as a site we see that itarticulates a continuity as well as discontinuity.Furthermore, what becomes visible is the double structureof the narrative play and voice, whereby the playing voicesare intimately related to “death” in order to perform life.As Agamben notes,

To experience death as death signifies, in fact, to experi-ence the removal of the voice and the appearance, in itsplace, of another Voice […] which constitutes the origina-ry negative foundation of the human word. To experienceVoice signifies, on the other hand, to become capable ofanother death – no longer simply a deceasing, but a person’sownmost and insuperable possibility of his freedom (Agam-ben, 2007, p. 86).

If, according to these observations, the voice of thesilent doll is equated with the taking place of the voice ofthe daughter in the novel, we see that she speaks from asite of infinity, both in terms of temporality and signification,which, in turn, means that it is a site of in-significance,where language, is and is contained in, yet has ceased tosignify and to name. As a subject, therefore, she – thisVoice – has removed herself from the other voices andthereby disclosed herself as pure “taking place of language.”(Agamben, 2007, p. 86) She has exhausted herself, thus,in order to produce others, that is, to on the one handreturn as narrative and memory in the voices of others,and on the other hand, allow them to return to her.5

Escrevo em nome da minha filha

Towards the end of the novel, we learn that the Voiceof the doll, or silence of the dead girl, narrates through thevoice of her mother: “Escrevo o fim deste livro em nome daminha filha que não pode escrever” (Antunes, 2006, p.459). Here we have an example of how silence is givenVoice and articulation by our returning to it, which, in

5 Interestingly, Agambennotes that only “not beingborn, not having a nature(phusis) can overcomelanguage and permit man tofree himself from the guiltthat is built up in the link ofdestiny between phusis andlogos, between life andlanguage” (Agamben, 1991,p. 90). We could add to thisthat the same topic isillustrated in the novel byLobo Antunes, by the factthat the points of referenceof Ana Emília and Alice asnarrators are the deaddaughter and the unbornson, who both indicate howthey – as logos, or history –relate to phusis, life, or “real”memory.

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turn provides memory with historical signification and,consequently, a sense of authenticity. Also, from the pointof view of the daughter, as Voice, it is the status of themother (“Ana Emília”) which is being questioned andplayed with – (Você um boneco mãe?) (Antunes, 2006, p.462) – as she is aligned with the invention of other familymembers:

tive um irmão que inventei e dormia comigo, guardava-oem segredo entre os livros de estudo, a minha mãe– Para quem é essa cadeira à mesa?sem notar o meu irmão ao lado, não na cadeira do meu pai,na outra com menos vincos dado que a não usávamos e omeu irmão levezinho, eu para a minha mãe– Não vê? (Antunes, 2006, p. 464-465)

From this ludic double point of view, in which theperspective, or voice of the mother as well as of the daughtermerge, the narration is both blind and lucid to its ownunfolding. Neither the story nor the voices are entirely true,or completely false, but can, by emerging from the playbetween history and memory, be invented andauthenticated by way of their own process of constitutingtheir narration as site of memory. The instance ofauthorisation of the text, thus, is playfully, alluded to inbrackets, where the narrating Voice reveals, “(chamo-meAntónio Lobo Antunes, nasci em São Sebastião da Pedrei-ra e ando a escrever um livro)” (Antunes, 2006, p. 465),before returning to and merging with the narratedsequences again. Here, towards the very end of the novel,she, as voice – as memory – is fixated in an image, a photoin a book, “que não é um livro, é a vida” (Antunes, 2006,p. 473): “e na película eu, as minhas tranças e o vestido deramagens feito de um vestido da minha mãe demasiadolargo para mim e de que nunca gostei […]”(Antunes, 2006,p. 473).

As image, as word different to language, the daughteraccommodates herself (and the others) as memory and assuch, the memory can be returned to history in the course

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of the play. The memory has, to speak with Agamben,crossed over time and “the scission that reveals itself inthe place of language.” The voice can thereby return toitself and to “where it was in the beginning; that is, in theVoice.” (Agamben, 1999, p. 93) Significantly, therefore,the very end of the novel can also be said to mark thereturn to the beginning, a return of the mother to thedaughter as pure language. The voice of the mother nolonger writes in the name of her daughter, but writes andnarrates as her daughter, who has, to speak figuratively,devoured her, here by describing a desire to continue toplay:

e por um instante[…]vontade que me prendesse os braços e girássemos ambasdurante horas sem fim no recreio da escola, eu com medo econtente, insegura e feliz– Continueque girássemos conforme giro sozinha, o que me apetece[…]o que eu gostava, o que eu queria, o que teria desejado sefosse capaz de desejar e não sou, era que a palma me conti-nuasse na cara durante tanto tempo que eu cega, era que aminha palma continuasse na vossa cara durante tanto tem-po que cegos[…]e não fazia mal, não tem importância, não se preocupemcom o livro(não estou a girar sozinha é com a minha mãe que eu giro)porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro (Antu-nes, 2006, p. 478-479).

Here, the Voice utters the wish or hypothetical will tocease to narrate and to become pure language, no narration.As only language she obliterates history, or rather, the splitbetween memory and history, in order to become only purememory, non-identifiable, yet pure self. Could it be thatthe only form of accommodation possible for our authentic

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experience of time and history is a narrative which desiresto merge with the other (language) in blindness, in puremovement?

Conclusion: authentication of history as play

Is it possible to wake up to anything but to the past?The examination of Lobo Antunes’ novel has sought todemonstrate that the intricate relation between historicityand literature is maintained in literature by way of hownarration and language merge in a practice or process ofauthentication of historical experience. First, we have seenthat if life is invaded by play, it can facilitate an examinationof the past from the present point of view; secondly, throughthe interplay of temporality and voices emerges the logicof the night and of the insomniac will and desire toremember, to recover and to lose its self out of sight in thedepth, or infinity of the silence. “[O] que é a memóriasanto Deus,” (Antunes, 2006, p. 477) asks the Voice at theend of the novel, and chances are that the answer is onlygiven by the removal of voices, or by end of the book, inwhich its beginning takes place. Its final signifying momentof authentication lies – as it well knows – outside its ownwritten scope, hence in blindness.

References

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ANTUNES, António Lobo. Ontem não te vi em Babilónia. Lisbon:Dom Quixote, 2006.

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GIFFORD, Paul; STIMPSON, B. Reading Paul Valéry. Cambridge:Cambridge University, 1998.

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HELLER-ROAZEN, Daniel. The inner touch: archaeology of sensation.New York: Zone, 2007.

NORA, Pierre. Between memory and history: les lieux de mémoire.Representations, n. 26, p. 7-24, 1989.

OLNEY, James. Memory and narrative: The weave of life-writing.London: The University of Chicago, 2000.

SMITH, Laurajane. Uses of heritage. London: Routledge, 2006.

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Pareceristas

Antonio Dimas

Antonio Roberto Esteves

Benito Martinez Rodrigues

Edgar Cesar Nolasco

Fábio Akcelrud Durão

Gilberto Pinheiro Passos

Helena Bonito Couto Pereira

Ivete Walty

João Roberto Faria

Lúcia Granja

Luís Bueno

Luiz Carlos Simon

Luiz Gonzaga Marchezan

Márcia Abreu

Maria Célia de Moraes Leonel

Maria Elisa Cevasco

Maria Eunice Moreira

Maria Lídia Maretti

Marilene Weinhardt

Mauricio Mendonça Cardozo

Pedro Brum

Rosana Zanelatto dos Santos

Salete de Almeida Cara

Silvana Oliveira

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Tânia Ramos

Vera Bastazin

Vera Teixeira de Aguiar

Zênia de Faria

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Normas da revista

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- Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito,itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome doautor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deveráser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de doiscentímetros de margem direita e esquerda. O resumodeve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10;

- Palavras-chave – dar um espaço em branco após oresumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo detexto 10. A expressão palavras-chave deverá estar emnegrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos.Máximo: 5 palavras-chave;

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ALGUNS EXEMPLOS DE CITAÇÕES

• Citação direta com três linhas ou menos

[...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objetoe sujeito mostram-se particularmente indecisas. A pa-lavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elassão nossa única realidade, ou pelo menos, o único tes-temunho de nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37)

• Citação indireta

[...] entre as advertências de Haroldo de Campos(1992), não há qualquer reivindicação de possíveis in-fluências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesiaconcreta que assumiu as conseqüências de certas li-nhas da poética drummoniana.

• Citação de vários autores

Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teó-ricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991;Valéry, 1991; Borges, 1998; Campos, 1969)

• Citação de várias obras do mesmo autor

As construções metafóricas da linguagem; asindefinições; a presença da ironia e da sátira, eviden-ciando um confronto entre o sagrado e o profano; o

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enfoque das personagens em diálogo dúbio entre seuspapéis principais e secundários são todos componentesde um caleidoscópio que põe em destaque o valor esté-tico da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992)

• Citação de citação e citação com mais de três linhas

Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-seum trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire:Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprende-ra e formara em si muitas imagens de homens; que faz?Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que reco-lhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e formauma imagem que antes não havia, concebendo que todoo homem tem potência de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87apud TEIXEIRA, 1999, p. 148)

ALGUNS EXEMPLOS DE REFERÊNCIAS

• Livro

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Pa-radoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhiadas Letras, 2007.

• Capítulo de livro

BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In: JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dosdiscursos literários e culturais – o local, o regional, o nacio-nal, o internacional, o planetário. Niterói: EdUFF, 2006.p.122-33.

• Dissertação e tese

PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produçãopoética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004.Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-cias Humanas, Universidade de São Paulo.

• Artigo de periódico

GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: umabreve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37-57, 2004.

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Normas da revista 311

• Artigo de jornal

TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, SãoPaulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4.

• Trabalho publicado em anais

CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: OttoMaria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Lite-ratura e Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte.p. 85-95.

• Publicação on-line – Internet

FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história(e geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Es-tudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008.Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acessoem: 6 fev. 2009.

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