edição 402 - de 11 a 17 de novembro de 2010

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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 11 a 17 de novembro de 2010 Ano 8 • Número 402 ISSN 1978-5134 Reprodução e cultura latino-americana Pág. 8 Unidade deve ser o norte da esquerda europeia Os trabalhadores euro- peus atingidos por medidas neoliberais dificilmente conseguirão reverter os ata- ques feitos por seus gover- nos diante da crise. Assim opina o sociólogo brasileiro Michael Löwy, para quem a saída dos movimentos europeus é investir em um movimento unificado em toda Europa. Pág. 9 Uma das maiores preocu- pações dos movimentos so- ciais em relação ao petróleo descoberto na camada de pré-sal é para onde vão os recursos de sua extração. Es- te foi um dos temas do semi- nário promovido pela Petro- bras no Paraná, que discutiu a necessidade de criação do Fundo Social. Pág. 7 Empreiteiras j ogam pesado nas campanhas Vito Giannotti Cara escravagista O Brasil viveu sete anos de crescimento devido a fatores nacionais, internacionais e decisões políticas. O capital ganhou muito dinheiro. E os dois projetos apresentados nesta eleição não assustavam o capital. Pág. 3 A Igreja enclausurada O comportamento de parte da Igreja Católica nas últimas eleições presidenciais desvelou para a sociedade brasileira como as diretrizes doutrinárias do atual papa Bento 16 – por exemplo, a de voltar a instituição para si própria – afetam a luta por justiça social no país. Pág. 5 Anita Leocadia Prestes Os 75 anos dos levantes Num período de intensa polarização política, a ANL, criada em 1935, desempenhou um papel relevante na mobilização de amplos segmentos da sociedade e da opinião pública brasileira em defesa das liberdades públicas. Pág. 7 Miguel Urbano “Dissidência” financiada A “fabricação da dissidência”, concebida pelas elites econômicas, é exercida através da presença em movimentos progressistas de intelectuais e sindicalistas que condenam o neoliberalismo, mas não o capitalismo. Pág. 11 Debate sobre o futuro da renda do pré-sal Nas eleições deste ano, as empresas da construção civil financiaram 54% das candidaturas ao Congresso Nacional e cerca de 25% dos governadores eleitos. Um exemplo é o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Ca- bral (PMDB), cuja metade da campanha foi paga pelas construtoras. Pág. 4 Entrevista exclusiva com o guitarrista Tom Morello Pág. 8 Rage Against The Machine Torcida, futebol e cidadania Pág. 6 T orc id a, f ute b o l e c id a d an i a Pág. 6 Reprodução Reprodução Reprodução

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

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Page 1: Edição 402 - de 11 a 17 de novembro de 2010

www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 11 a 17 de novembro de 2010Ano 8 • Número 402

ISSN 1978-5134

Reprodução

e cultura latino-americana

Pág. 8

Unidade deve ser o norte da esquerda europeia

Os trabalhadores euro-peus atingidos por medidas neoliberais dificilmente conseguirão reverter os ata-ques feitos por seus gover-nos diante da crise. Assim opina o sociólogo brasileiro Michael Löwy, para quem a saída dos movimentos europeus é investir em um movimento unificado em toda Europa. Pág. 9

Uma das maiores preocu-pações dos movimentos so-ciais em relação ao petróleo descoberto na camada de pré-sal é para onde vão os recursos de sua extração. Es-te foi um dos temas do semi-nário promovido pela Petro-bras no Paraná, que discutiu a necessidade de criação do Fundo Social. Pág. 7

Empreiteiras jogam pesadonas campanhas

Vito Giannotti

Cara escravagistaO Brasil viveu sete anos de crescimento devido a fatores nacionais, internacionais e decisões políticas. O capital ganhou muito dinheiro. E os dois projetos apresentados nesta eleição não assustavam o capital. Pág. 3

A Igreja enclausuradaO comportamento de parte da Igreja Católica nas últimas eleições presidenciais desvelou para a sociedade brasileira como as diretrizes doutrinárias do atual papa Bento 16 – por exemplo, a de voltar a instituição para si própria – afetam a luta por justiça social no país. Pág. 5

Anita Leocadia Prestes

Os 75 anos dos levantesNum período de intensa polarização política, a ANL, criada em 1935, desempenhou um papel relevante na mobilização de amplos segmentos da sociedade e da opinião pública brasileira em defesa das liberdades públicas. Pág. 7

Miguel Urbano

“Dissidência” fi nanciadaA “fabricação da dissidência”, concebida pelas elites econômicas, é exercida através da presença em movimentos progressistas de intelectuais e sindicalistas que condenam o neoliberalismo, mas não o capitalismo. Pág. 11

Debate sobreo futuro da renda do pré-sal

Nas eleições deste ano, as empresas da construção civil financiaram 54% das candidaturas ao Congresso Nacional e cerca de 25% dos governadores eleitos. Um exemplo é o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Ca-bral (PMDB), cuja metade da campanha foi paga pelas construtoras. Pág. 4

Entrevista exclusiva com o guitarrista Tom Morello Pág. 8

Rage AgainstThe Machine

Torcida, futebol e cidadania Pág. 6Torcida, futebol e cidadania Pág. 6

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A agenda política de 2011

MARINA SILVA FOI ovaciona-da por milhares de pessoas no Fórum Social Mundial de Porto Alegre em janeiro de 2003. Nem Lula fora tão aplaudido naquele encontro da esquerda mundial. Ela era a expressão viva da mu-dança que muita gente esperava do Brasil. Intelectuais como o austríaco Fritjof Capra e a indiana Vandana Shiva até se dispuseram a ajudá-la a buscar, a partir do Brasil, um novo paradigma de de-senvolvimento baseado na justiça social e ambiental.

A vida real, entretanto, foi bem diferente. Marina perdeu todas as principais batalhas que travou dentro do seu próprio governo, deixou o PT e passou a concor-dar com muitos temas contra os quais se opusera anteriormente: sementes transgênicas (ainda no Senado, pediu moratória para os organismos geneticamente modi-fi cados), transposição do rio São Francisco, usinas no rio Madeira e Xingu.

Ao escolher o PV para concor-rer à Presidência e abraçar um programa macroeconômico tipi-camente tucano, fi cou evidente que a Neomarina nada mais tinha a ver com a Marina de janeiro de 2003. E que o PV havia sido escolhido justamente devido ao fato de nessa legenda caber qualquer pessoa e qualquer ideia. Cabe, inclusive, o esquema que a ex-ministra vem montando com agentes econômicos, nacionais e internacionais, para viabilizar um novo bloco de poder no Brasil.

O bloco de poder que Marina começa a representar envolve setores do mercado fi nanceiro que apoiou o PSDB e empresas agroextrativistas e de base que se aproximaram do PT. A estra-tégia de Marina e do PV é pinçar velhos agentes econômicos, já atuantes em governos passados, que agora querem aproveitar as oportunidades econômicas aber-tas pela alteração do clima no planeta.

Compõem este novo bloco, en-tre outros, os setores canavieiro, de mineração, de papel e celulose e o agronegócio. Arcaicos em sua essência, porque mantêm as prá-ticas de séculos atrás, vestiram roupa nova para entrar na festa da economia da crise climática e passaram a defender conceitos vazios de conteúdo e cheios de se-gundas intenções, como mercado de baixo carbono.

É por esta razão que não falta dinheiro para pesquisas universi-tárias e seminários sobre REDD (Redução de Emissões por Des-matamento e Degradação), um suposto mecanismo antiemissões que tem feito mais sucesso na avenida Paulista do que no meio rural, onde o modelo de desen-volvimento baseado na extração intensa de recursos naturais para exportação ainda vigora e se aprofunda.

Todo negócio agrícola do Brasil se eriça só de pensar na montanha de dinheiro envolvida

nessas tenebrosas transações. Vislumbram inclusive aproveitar o ufanismo criado em torno do etanol como combustível verde para imaginar a substituição da petroquímica pela alcool-química, em um cenário futuro de esgotamento comercial das reservas de petróleo. Só por conta dessa possibilidade já é possível imaginar os interesses que se articulam a uma candida-tura presidencial que se propõe justamente a desenvolver uma economia “ambiental”.

Os apoiadores da ex-candida-ta, boa parte deles oriundos do PSDB, falam em desenvolver uma economia fundamentada no mercado de carbono, ainda que pouquíssima gente saiba o que de fato isto signifi ca. O Banco Mundial e consultorias internacionais, pais e mães da nova terminologia, sabem muito bem. Na prática, toda a “econo-mia de baixo carbono” signifi ca diferentes esquemas para priva-tizar territórios, ar, água, diver-sidade biológica e minerais. São propostas que se escoram no argumento de que o mercado é a única saída possível para tratar a crise climática e que encon-tram enorme eco na equipe de Marina.

Esta opção conservadora é do mesmo tipo daquelas feitas pelos partidos verdes europeus, matrizes ideológicas do PV brasileiro. Depois de se procla-marem além da esquerda e da direita, eles terminaram gosto-samente nos braços da direita, a começar pela Alemanha, onde surgiram. Por aqui, o PV vai pelo mesmo caminho e procura uma maneira de apoiar o candidato tucano no segundo turno. A se confi rmar essa tática, Marina, que saiu da esquerda formal representada pelo PT, iria de roldão. E, depois dos verdes, ter-minaria na direita.

Carlos Tautz é jornalista

debate Carlos Tautz

Depois de verde, direita

crônica Luiz Ricardo Leitão

TERMINADO O PROCESSO elei-toral, a maioria dos movimentos sociais e organizações populares estão fazendo seus balanços. Nosso jornal também, de certa forma, já expressou seu balanço nas últimas edições. Agora, é olhar para 2011.

Certamente, será um ano di-ferenciado em termos de luta política, de luta de classes. Há no horizonte um novo governo. Seu formato deve representar a corre-lação de forças saída das urnas. E, na nossa opinião, deveria ser mais de centro-esquerda, mais desen-volvimentista e menos neoliberal. Mais produtivo, menos fi nanceiro. Mais social e menos economicista. E sua composição, saberemos até dezembro.

Há, no horizonte, uma forte crise capitalista internacional, que con-tinua bufando nos mares do norte. E se expressa pelos problemas de orçamento dos governos, pela crise fi nanceira, e, agora, na crise cam-bial, com o governo dos Estados Unidos usando sua principal arma econômica – a moeda – para extor-quir e explorar o trabalho e a rique-za produzida por todos os povos em todos os países, via manipulação do dólar e do câmbio.

Assim, precisam, querem e vão fi nanciar 600 bilhões de dólares de seu defi cit orçamentário interno (en-quanto, para nós, exigem superavit primário) e mais 700 bilhões de defi cit da balança comercial – com-

pram mais mercadorias do exterior do que vendem.

Também vão fi nanciar seus gastos militares com guerras estúpidas, no Oriente Médio, e as despesas de 800 bases militares esparramadas pelo planeta, para sustentar a taxa de lu-cro de suas empresas do complexo-industrial-militar.

Em algum momento, tudo isso vai estourar. E todos sabemos que a economia brasileira está cada vez mais dependente do mercado mun-dial e dos capitalistas estrangeiros. Portanto, sofrerá, certamente, fortes impactos do aprofundamento da crise internacional, se ela se apro-fundar.

Por outro lado, o estudioso André Singer, em entrevistas ao longo des-te ano, nos advertiu que as políticas de compensações sociais praticadas pelo governo Lula somente poderão continuar no governo Dilma, sem confl itos, na base da conciliação de classe, se a economia crescer mais de 5% ao ano. Pois esse crescimento permite que o Estado possa dividir um pouco da renda, sem afetar os interesses das classes dominantes.

Mas se a economia não crescer tanto, os recursos diminuem; e a imensa massa do subproletariado que votou em Dilma, mas que não tem consciência de classe, pode ter um comportamento errático, so-mando-se às articulações golpistas-direitistas, que é tudo o que a nova UDN (PSDB + Demo) sonham.

Para a sociedade brasileira como um todo, há uma agenda política co-locada pelas eleições, que é urgente ser tratada em 2011: a reforma po-lítica e a concentração do poder dos meios de comunicação de massa. Esses dois temas afetam diretamen-te os interesses da classe dominante e seus tentáculos na sociedade.

A reforma política está caindo de madura. Amplos setores organiza-dos da sociedade estão exigindo um sério debate. Em anos passados, os movimentos sociais, a Abong, a OAB e a CNBB apresentaram uma pro-posta que foi depois redigida pelo

eminente jurista Fábio Konder Com-parato. Mas a proposta foi abafada pelos interesses das elites e dorme em berço esplêndido em alguma ga-veta do Parlamento, embora esteja inscrita como projeto de lei.

É urgente a necessidade de mudar os critérios de fi nanciamento de campanha. Todos vimos como até a pretensa “imaculada candidatu-ra” de Marina Silva, pregada como diferente, foi fi nanciada pelo poder econômico mais poluente de nossa economia.

É urgente estabelecer mudanças para que o povo possa convocar, ele mesmo, plebiscitos, referendos e consultas populares sobre temas de seu interesse e, inclusive, pedir a revogação de mandatos de eleitos nos três níveis, sem necessidade de aprovação dos parlamentares, que protegem seus interesses e corpora-tivismo.

É urgente estabelecer novos crité-rios políticos de eleição e de fi delida-de partidária.

A agenda da concentração dos meios de comunicação é ainda mais espinhosa. De um lado, os sete gru-pos reagem a qualquer proposta democratizante, alegando ditadura, cerceamento da liberdade e outras mentiras, para manter seu poder. De outro, os veículos públicos fi cam o tempo inteiro querendo imitar a burguesia, e o Estado continua alimentando os meios da burguesia com polpudas verbas publicitárias. É

necessário que os veículos públicos tenham algum tipo de participação e controle da sociedade através de su-as formas de organização social.

Além disso, é necessário criar con-dições reais para que as organiza-ções dos trabalhadores, da socieda-de, possam ter seus próprios meios de comunicação de massa, subsidia-dos, para fazer frente ao monopólio do capital. Certamente será um tema muitíssimo importante e que exigirá mobilização de massa.

E, fi nalmente, há uma pauta dos movimentos sociais que está rela-cionada à solução dos graves proble-mas que afl igem os trabalhadores, como a questão do desemprego, da renda, da jornada de 40 horas, da falta de moradia digna, da falta de terra, e da ampliação do acesso dos jovens pobres à universidade.

Esperamos que os movimentos sociais, populares e sindicais con-sigam construir unidade política e programática para transformar esses temas em amplas mobilizações de massa, que consigam arrancar essas conquistas da burguesia.

Nesse sentido, acreditamos que 2011 será um ano muito rico de de-bates, de efervescência social e de luta ideológica na sociedade brasilei-ra. Preparem-se.

Conforme foi dito explicitamente pelo discurso do Serra, a direita brasileira está se preparando e vai querer vir para a ofensiva política. E do lado de cá?

de 11 a 17 de novembro de 20102editorial

Gam

a

A modernidade oligárquica de BruzundangaAS ELEIÇÕES JÁ se acabaram, e tudo continua como dantes na República de Bruzundanga. É claro que os ânimos ainda estão acirrados após mais uma derrota tucana, com manifestos virulentos a circular pelas chamadas “redes sociais” (?!), mas isso não é novidade a leste de Tordesilhas. Desde 1930, se bem me lembro, a burguesia paulista (cujos lucros com a lavoura cafeeira impulsionaram a industrialização do país) se julga a fração mais avançada e cosmopolita destas plagas, avocando para si o direito de gerir esta alucinada experiência periférica de capitalismo. Por isso, não estranho que jovens acadêmicos (?!) de Direito (?!) da terra da garoa escrevam em seu tuíter (arre, égua!) que “nordestino não é gente” e que o melhor favor que se faria a São Paulo seria matar afogado ao menos um desses “porcos imundos” que, segundo escreveu o advogado (?!) André Colli, “devas-tam as reservas fl orestais de sua cidade”. Isso sem falar de um grupo de universi(o)tários que logrou redigir um documento com o pomposo título de “São Paulo para os paulistas”, cujo mote seria “defender a cultura paulista contra quem inunda nosso Estado”.

Sob o véu do “regionalismo” misturam-se sem nenhum pudor diversos traços bastante singulares da formação socioespacial do país, cujo capital industrial e fi nanceiro possui raízes no secular negócio da agroexportação (vulgo agro business, na língua da matriz). Embora se creia superior aos velhos coronéis do Nordeste, a burguesia cafeeira bandeirante nada mais é do que uma fração ‘moderninha’ do desigual e diferenciado processo de evolução capitalista da colônia. O mote não é exclusivo destas plagas: na Itália do século 20, a burguesia toscana, ao Norte do país, também se atri-buiu uma posição de vanguarda, tratando de estigmatizar ao máximo os “rudes camponeses” do Sul, em especial os napolitanos, odiados pelas elites de Milão & Cia.

Muita gente se ocupou desse mote nas letras tupiniquins, desvelando em obras memoráveis de nossa prosa de fi cção aspectos indivisos desse pro-cesso. A maior contribuição desses narradores foi, sem dúvida, evidenciar ao público que os vícios e defeitos imputados ao nosso povo são, o mais das vezes, mera refração de vezos históricos das classes dominantes de Bru-zundanga, tão bem descritas no limiar do século 20 pela pena irreverente e implacável de Lima Barreto. A bem da verdade, a desfaçatez e cinismo de nossas elites já viera à luz nas páginas lapidares de Memórias póstumas de Brás Cubas, do genial Machado de Assis, um sinhozinho crescido no ocaso do regime escravocrata. E ela reaparece de forma despojada e sincrética na fi gura de Macunaíma, em quem muitos pretendem ver um símbolo do povo brasileiro, ainda que não fosse esta a intenção de Mário de Andrade, que, com rara lucidez, reconhecia ser impossível estabelecer uma síntese de bra-silidade nas primeiras décadas do século 20.

De minha parte, nunca hesitei em identifi car nesse “herói sem nenhum ca-ráter” um signo óbvio das elites brasileiras, convertido por um hábil ideologe-ma em ícone das classes populares. Para tanto, basta ler com maior atenção a obra que Mário escrevera um ano antes, Amar, verbo intransitivo, um peque-no romance de formação da burguesia bandeirante.

Já em São Bernardo, de Graciliano Ramos, o narrador atribui dinamismo e força a um caboclo arrivista, o fazendeiro Paulo Honório, cujo empreendi-mento terminará por sucumbir à sua própria voracidade, ao passo que o la-tifúndio moroso e inabalável do velho coronel jamais perde seu valor. Quem quiser entender um pouco mais a política brasileira, carecerá de reler com outros olhos essa parábola do selfmade man tropical, incapaz de adivinhar, ao seu redor, a velha fábula da modernidade oligárquica, em que o novo, o mais das vezes, é apenas a roupagem de que o velho se serve para que tudo permaneça como dantes ao sul do Equador.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de O Campo e a Cidade na Literatura

Brasileira e Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

Acreditamos que 2011 será um ano muito rico de debates, de efervescência social e de luta ideológica na sociedade brasileira

Nunca hesitei em identifi car nesse “herói sem nenhum caráter” um signo óbvio das elites

Ao escolher o PV para concorrer à Presidência e abraçar um programa macroeconômico tipicamente tucano, fi cou evidente que a Neomarina nada mais tinha a ver com a Marina de janeiro de 2003

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de 11 a 17 de novembro de 2010

aeroportos! Antigamente era tão bom! Cada um no seu lugar.

A classe enfurecida com o bando de miseráveis, ex-miseráveis, meio-miseráveis que iriam votar na candidata guerrilheira, mora no Leblon, Ipanema, Barra da Tijuca, Itaim Bibi, Morumbi e Alphaville.

Em Sampa, há dois bairros com o mesmo nome: Itaim. Um é Itaim Bibi, da classe alta, chique e ilus-trada. O outro é Itaim Paulista, bairro da periferia, dormitório dos que trabalham nas fábricas, lojas, mansões dos do Bibi. No Bibi, a votação foi 75% no candidato que levantava a Santa. No outro, o Pau-lista, a votação na ex-guerrilheira foi exatamente de 75%. Estranha simetria, não é?

Vamos para a Cidade Maravilhosa. O Rio da Re-de Globo. A votação entre o levantador de Santas e a ex-guerrilheira repetiu o que aconteceu na capital paulista. Em Olaria, zona norte, a votação da Dilma foi de 80,95%. Em Ipanema (irmãzinha do Itaim Bi-bi), Serra teve 72,84%.

Qual a explicação? Os de Ipanema e Itaim Bibi têm a resposta pronta na ponta da língua: “Esse po-vinho, esses miseráveis não sabem votar. São com-prados, cooptados pelo Bolsa Família, Prouni, Pró-isso e Pró-aquilo.”

Cara escravagistaO BRASIL VIVEU sete anos de crescimento devido a fatores nacionais, internacionais e decisões políti-cas. O capital ganhou muito dinheiro. E os dois pro-jetos apresentados nesta eleição não assustavam o capital. Não é a toa que Abílio Diniz, Setubal e a in-dústria automobilística apoiaram a candidata que o Leblon (Rio) e o Itaim Bibi (São Paulo) detestam. Não houve a clássica divisão: de um lado, a burgue-sia; do outro, os trabalhadores.

Não foi a alta burguesia produtiva, moderna, que se comportou como uma cria de pitbull com rotwei-ler contra a candidata da continuidade. Não foi a Fiesp sua principal inimiga. Qual foi, então, a clas-se que combateu com todas as armas o sonho de quem queria continuar a garantir seu emprego e um mínimo de direitos? Quem se horrorizou com a perspectiva de perder a empregada doméstica que dorme no emprego? Quem quis acabar com a pos-sibilidade de qualquer Zé ninguém entrar numa fa-culdade ou estudar numa escola técnica? É a clas-se que não admite que qualquer pé de chinelo pos-sa comprar seu carrinho em 72 prestações. É a clas-se que pensa: estes miseráveis estão querendo de-mais: liquidifi cador, geladeira, TV, celular, tudo! Agora querem ir a lanchonetes e até empesteiam os

Mateus Bruxel/Folhapressinstantâneo frases soltas

Vito Giannotti

estrago é infi nitamente maior do que o da cana, da soja e outras atividades do agronegócio. Sem falar que para produzir um kg de carne são necessários de dez a 40 mil litros de água, a depender do que é contabilizado em todo o processo.

Há um agravante. Os bovinos, em seu metabolis-mo, expelem gás metano pelos arrotos e outros me-canismos, um dos gases do efeito estufa, dezesse-te vezes mais perniciosos que o próprio dióxido de carbono.

As fazendas de gado, nascidas junto com o país, ainda têm o dom de abrigar trabalho escravo em muitas de suas atividades. Portanto, primitivas no jeito de produzir, primitivas no jeito de lidar com as pessoas.

Quem conhece a lógica da biodiversidade sabe que nenhuma espécie sozinha é danosa ao equilí-brio da vida. Porém, quando se torna monocultivo, passa a ser um problema, não uma solução.

Um Brasil que se queira justo e sustentável te-rá necessariamente que rever a patada ecológica de seus bois.

Patada ecológicaA “PEGADA ECOLÓGICA” dos 187 milhões de bra-sileiros está estimada em 2,4 hectares por pessoa ano. Já ultrapassou a demanda, considerada equi-librada, de 2,1 hectares. Como o Brasil é o décimo país mais desigual do planeta, é evidente que alguns poucos estão consumindo mais hectares do que a es-magadora maioria que mal consegue sobreviver.

Porém, o estrago feito pela média brasileira tem embutida à “patada ecológica” do rebanho bovino. A pecuária brasileira ocupa 172 milhões de hecta-res para 177 milhões de cabeça de gado. Cada boi, portanto, ocupa quase um hectare de terra, ou se-ja, quase 20% da superfície do país. Toda área ocu-pada pela agricultura não passa de 72 milhões de hectares. Portanto, a “patada ecológica” das boia-das representa quase 50% da “pegada ecológica” da média brasileira.

Hoje a pecuária, parte essencial do agronegócio, representa quase um terço do PIB agrícola. Portan-to, tem importância econômica. Ninguém que as-suma o comando político do país vai abdicar des-se negócio. Seria deposto no dia seguinte. Mas seu

Roberto Malvezzi (Gogó)

Emerson Fittipaldi, bicampeão mundial de 1972 e 1974, pilota a Lotus 72, carro com que ganhou seu primeiro título, na Ponte Estaiada, na zona sul da capital paulista

comentários do leitor

Presidenta eleita É com imenso alívio e com gran-

de alegria que comemoramos a vitória eleitoral de Vossa Excelência. Foi elei-ta a primeira Presidenta do Brasil. Os métodos fascistas do adversário com a cumplicidade da ultradireita da nos-sa Igreja Católica, graças a Deus, não vingaram. Como padres católicos, sen-timos profunda indignação e vergonha pela perseguição à Vossa Excelência por parte de membros da hierarquia ca-tólica. A campanha deles estava exclu-sivamente baseada em questões mora-listas, fazendo da separação da Igreja e Estado uma letra morta; em calúnias e difamações sem discutir programas de governo de ambos os candidatos e sem fazer uma avaliação justa e equilibra-da do governo Lula. Somos solidários a Vossa Excelência e queremos prestar o nosso apoio ao seu futuro governo.

Cremos que o seu passado de oposição à ditadura militar e a sua via crucis nas mãos dos carrascos fardados são a ga-rantia de combatividade para lutar por um Brasil justo, solidário e igual. Espe-ramos de modo especial que Vossa Ex-celência realize a tão sonhada reforma agrária e estimule a agricultura fami-liar; que controle o poder do latifún-dio e impeça o avanço do agronegócio. Com saudações democráticas. Os Mis-sionários do Sagrado Coração de Je-sus no Pará

Pe. Messias Vítor de Oliveira mscPe. Márcio José de Assis Macedo msc

Pe. Joaquim van Leeuwen mscRedenção, Pará

ReformaAcabei de ler o mais recente número

do nosso glorioso Brasil de Fato.Parabéns! A capa da edição 401 es-

tá divina. É uma nova linha gráfi ca? Se for, pelo menos por mim, está aprova-díssima. Está mais leve, bonito e o con-teúdo muito interessante. Sabem que quando vejo algo que não me agrada, sempre escrevo ao jornal, e não pode-ria deixar de fazer o mesmo quando ve-jo avanços como esse.

Joaquín Piñeiro, São Paulo (SP)

errataNa entrevista com Victor Wallis (edi-

ção 401, de 4 a 10 de novembro, pági-na 9), ocorreu um erro de tradução. Na realidade, o entrevistado não afi rma que o Tea Party faz uso “do fato de que Obama não nasceu nos Estados Uni-dos”, mas sim que a oposição espalha o boato de que Barack Obama não nas-ceu nos Estados Unidos. A verdade é que Obama nasceu no Havaí (EUA).

3

– Pense bem, você vai receber dois meses de assinatura [de graça].– Você gosta de jiló? Se eu falasse para você que o jiló mudou de sabor, você iria querer experimentar o jiló ou já iria fazer logo uma assinatura para receber dois quilos de jiló por mês durante um ano?– Então, eu iria pensar assim ó: ‘pô, se o jiló tá a metade do preço...’– [Tu] vai comer o jiló amargo mesmo? (risos)

Diálogo entre @dibarros70 e uma operadora de telemarketing da revista Veja, que tenta convencer o ex-assinante que a revista não fala mais mal do Lula,

após a derrota do Serra, já que até mandaram embora o colunista Diogo Mainardi, via Youtube, 5 de novembro

‘No Brasil, fazer cumprir a lei é revolucionário!’ Não lembro quem disse, mas lhe dou razão sempre que leio a Constituição.

@depChicoAlencar, deputado federal reeleito pelo Rio de Janeiro (Psol), 8 de novembro

Nunca fui chegado a política e nunca ensinei nada disso para as minha fi lhas. Tenho um enorme respeito pelos nordestinos e é graças a eles que consigo dar uma vida digna para minha família e pagar a faculdade da Mayara

Antonino Petruso, pai da estudante de direito Mayara Petruso, que pode vir a ser processada por discriminação, por ter

atacado os nordestinos via Twitter. Em tempo, Antonino é dono de uma rede de

supermercados e diz que tem vários clientes e empregados de origem nordestina. Em

entrevista ao iG, 5 de novembro

Por que não te calas?

Grito dado por membro da Fundação Zapata, do México, durante fala de José Serra, em seminário em Biarritz, França. A frase que se tornou conhecida depois de o rei da Espanha dirigi-la a Hugo Chávez, na Cúpula do Chile, em 2008, foi repetida quando o tucano acusou o Brasil de se “unir a ditaduras como o Irã”, agência EFE, 5 de novembro

Era sabida a doença desse homem. Lamentavelmente, a morte lhe permitiu se esquivar da Justiça. Mas creio que apesar de sua morte, deve ser dito todo o dano que ele fez ao povo argentino através da repressão. Quando a Justiça agir, a maioria já vai ter morrido. Quando a Justiça demora tanto, já deixa de ser Justiça

Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz, sobre a morte do ditador argentino Emilio Massera, no jornal Página 12, 9 de novembro

Janime Moraes/SEFOT/SECOM

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brasilde 11 a 17 de novembro de 20104

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

“NÃO EXISTE cafezinho grátis”, diz o co-nhecido corolário do meio político. Cons-tatação evidente de que pessoa alguma, em condições razoáveis de sanidade, co-loca dinheiro onde não quer. O fi nancia-mento privado de campanha é conside-rado, pelos setores progressistas da so-ciedade, uma chaga no sistema político do país. Através dele, empresas fi nan-ciam campanhas eleitorais e, depois de eleger candidatos, encontram mil e uma maneiras veladas de cobrar a fatura. Há os que se negam a entrar nesse jogo, os que entram nele com reservas, e os que aderem de forma descarada.

Um bom exemplo do último caso é o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), recentemente reeleito com 66% dos votos no estado. Com uma aliança de 16 partidos, e o apoio de 91 dos 92 prefeitos, ele talvez não precisasse de uma campanha milionária. Mas teve.

A campanha de Sérgio Cabral gastou R$ 20,7 milhões. O valor é quase seis ve-zes maior do que a despesa do segun-do colocado, Fernando Gabeira (PV), de R$ 3,6 milhões. Nove empresas, dentre os 20 principais doadores de campanha a Cabral (45%), são construtoras. Todas elas prestam ou já prestaram algum tipo de serviço ao governo do estado.

ObrasA OAS e a Camargo Corrêa, que, jun-

tas, doaram R$ 2 milhões à campanha (10% do total), formam um dos con-sórcios responsáveis pelo principal tre-cho do Arco Rodoviário, anel viário que pretende contornar a capital. Enquan-to a primeira foi uma das empresas que construíram o estádio João Havelange (Engenhão), a segunda realiza as refor-mas no metrô. A OAS ainda faz parte do consórcio que atua na reurbanização do Complexo do Alemão, com a construção de um teleférico – obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

A Queiroz Galvão, que doou R$ 800 mil, trabalha na reurbanização da favela da Rocinha, atua nos projetos do PAC na favela de Manguinhos e, também, inte-gra o consórcio que atua no Arco Rodovi-ário. As obras da Rocinha e do Arco tam-bém têm a contribuição da Carioca En-genharia, que doou R$ 500 mil à campa-nha de Cabral. Juntas, as nove construto-ras doaram R$ 4,8 milhões.

Ainda há a empresa Tecnosonda, res-ponsável por outros R$ 500 mil, que está atuando na reforma do Maracanã para a Copa de 2014. A EIT, também com meio milhão, atua na revitalização da área por-tuária, um megaprojeto em andamen-to na capital, especialmente vinculado à realização das Olimpíadas de 2016. Três bancos doaram dinheiro à campanha de Cabral – o Itaú Unibanco cedeu R$ 700 mil; o BMG, R$ 600 mil; e o Cruzeiro do Sul, R$ 200 mil.

Eike BatistaO empresário Eike Batista, um dos oi-

to homens mais ricos do mundo e amigo íntimo do governador, doou R$ 750 mil. Além de atuar em diversas obras no Es-tado – incluindo a construção dos polê-micos Portos do Açu e de Itaguaí –, Eike também já demonstrou especial interes-se na realização das Olimpíadas de 2016.

Não por acaso, Sérgio Cabral e o prefei-to Eduardo Paes (PMDB) viajaram, em 2009, a Copenhague, onde foi anuncia-do o Rio de Janeiro como sede da compe-tição, no jatinho particular do empresá-rio. A lista de doadores ainda conta com a Companhia Metalic Nordeste, subsidi-ária da CSN, na área siderúrgica. A em-presa concedeu R$ 750 mil à campanha (a maior siderúrgica da América Latina, a TKCSA, entrou em operação em 2010 no estado, mesmo sendo vítima de uma série de acusações).

São responsáveis também por gran-des doações a Arosuco Aromas e Sucos, com R$ 500 mil; Multiplan Empreendi-mentos Imobiliários, com R$ 500 mil; a Companhia de Cimento Ribeirão Gran-

do Rio de Janeiro (RJ)

Entre os parlamentares eleitos para a Câmara dos Deputados e Senado Federal nas eleições deste ano, as construtoras patrocinaram 54% das 567 campanhas. Ao todo, R$ 99,3 milhões foram doados a 264 deputados federais (51,5%) e 42 se-nadores (77,8%).

Aécio Neves e Itamar Franco, eleitos ao Senado por Minas Gerais, lideram a lis-ta dos benefi ciados, com R$ 9 milhões. O PT, que elegeu 100 parlamentares, rece-beu R$ 25 milhões. O PSDB, com 58, te-ve quase o mesmo valor, R$ 19 milhões. O PMDB, com 55, recebeu R$ 12 mi-lhões. O setor do agronegócio também se movimentou bastante. Empresas ligadas à agricultura doaram, ao todo, R$ 50 mi-lhões aos parlamentares.

No Rio de Janeiro, o volume de recur-sos é singular. Entre os deputados fede-rais, a campanha mais cara é a de Eduar-do Cunha (PMDB), com R$ 4,8 bilhões. O deputado federal reeleito é um dos mais infl uentes parlamentares junto ao governo federal, chegando a indicar car-gos em estatais.

Ele é considerado um dos maiores sím-bolos do fi siologismo peemedebista. Boa parte dos recursos de Cunha foi doada por Domingos Brazão (PMDB), deputa-do estadual reeleito que teve, em julho, um centro social fechado. No local, na época, foram encontrados remédios, ces-tas básicas, material hospitalar e escovas de dente com seu nome gravado. Brazão atualmente é cotado, com poucas chan-ces, para presidir a Assembleia Legislati-va do Estado (Alerj) em 2011.

Campeões dos gastosEntretanto, na relação gasto por voto, a

lista é liderada pelos conservadores Júlio Lopes (PP) e Rodrigo Bethlem (PMDB). Ambos gastaram em torno de R$ 43 pa-ra cada voto que conquistaram. Ex-xerife do choque de ordem do prefeito Eduardo Paes, Bethlem foi, contraditoriamente, uma das candidaturas mais vezes multa-da por desrespeitar a lei eleitoral.

Anthony Garotinho (PR), primeiro lu-gar na disputa com quase 695 mil votos, gastou R$ 2,6 milhões. Deste total, R$ 679 mil foram depositados, em 24 par-celas, em nome de Fernando Peregrino (PR), candidato ao governo que contou com seu apoio. No início do ano, Garoti-nho era o pretendente ao posto, e as pes-quisas indicavam segundo turno com Cabral. Ameaçado de ter a candidatura impugnada, lançou Peregrino e concor-reu a deputado federal. Misteriosamen-te, não se falou mais em impugnação, e Garotinho se elegeu (tanto quanto Ca-bral, com 66% dos votos, sem seu prin-cipal concorrente).

O senador eleito pelo Rio de Janei-ro, Lindberg Farias (PT), foi, nacional-mente, o parlamentar com maior gas-to. Foram R$ 14 milhões, cinco vezes mais do que o outro eleito, Marcelo Cri-vela (PRB), com R$ 2,6 milhões. Derro-tado na disputa, Jorge Picciani (PMDB) também teve gasto de peso, R$ 8,6 mi-lhões – mais do que o dobro do gasto de Fernando Gabeira, candidato ao gover-no. Entre os deputados estaduais, o que mais gastou foi Paulo Melo (PMDB), com R$ 2,2 milhões. Reeleito, Melo também é cotado para substituir Pic-ciani na presidência da Alerj em 2011. Rodrigo Neves (PT) foi o deputado que apresentou maior relação gasto por vo-to – cerca de R$ 36 para cada voto que recebeu. (LU)

do Rio de Janeiro (RJ)

O fi nanciamento interessado das cam-panhas eleitorais é regra no Brasil. O go-vernador eleito de São Paulo, Geraldo Al-ckmin (PSDB), gastou, na sua, R$ 34,2 milhões; em Minas, Antônio Anastasia (PDSB) dispendeu R$ 38 milhões; e, na Bahia, Jacques Wagner recebeu R$ 24,3 milhões em doações.

Na maioria dos casos, uma análise por-menorizada dos gastos refl ete o interesse direto dos doadores nas ações do Estado. Aproximadamente um quarto das doa-ções à campanha de governadores, no Brasil, vem de empreiteiras. Nos cálcu-los, geralmente não consta os valores do-ados pelos diretórios nacionais e estadu-ais, que também recebem valores de em-presas (os diretórios só farão a prestação de contas em 2011).

ConstrutorasA Camargo Corrêa e a OAS, em geral,

são as responsáveis pelas maiores doa-ções. As empresas participam de obras espalhadas por todo o território nacio-nal. Mas a lista de doadores inclui quase todas as construtoras. O governador de Sergipe, Marcelo Déda (PT), por exem-plo, recebeu R$ 300 mil da Construtora Celi, que, entre outras obras, participa da construção do novo prédio do Ministério Público Estadual.

No Mato Grosso do Sul, André Pucci-nelli, do PMDB serrista, recebeu R$ 500

mil da Itel Informática e R$ 1,7 bilhão de João Roberto Baird, dono dela. A empre-sa é responsável pela área de informática em todo o estado. Antônio Anastasia re-cebeu R$ 1 milhão da Companhia Meta-lúrgica Prada; R$ 800 mil da Galvão En-genharia; R$ 600 mil da Camargo Cor-rêa; e R$ 500 mil da Usiminas.

O governador eleito pelo Paraná, Be-to Richa (PSDB), recebeu R$ 1,5 milhão da Camargo Corrêa e duas parcelas de R$ 500 mil do BMG e do Itaú. Jacques Wagner (PT-BA) recebeu da Engevix En-genharia R$ 900 mil. A empresa partici-pa da instalação de um parque eólico na Bahia. Camargo Corrêa e OAS, responsá-veis pela obra do metrô de Salvador, do-aram, cada uma, R$ 1,5 milhão à campa-nha do governador baiano.

Reforma políticaGovernadores eleitos, como Geraldo

Alckmin, Cid Gomes (PSB-CE) e Rai-mundo Colombo (DEM-SC), têm, emsua declaração, a maior parte da recei-ta computada como oriunda do “Comi-tê Financeiro” – incluindo valores bas-tante signifi cativos no caso dos dois pri-meiros. Outros, dentre os que disputa-ram segundo turno, ainda não entrega-ram declaração.

Entre os críticos do fi nanciamento pri-vado de campanhas, a proposta de solu-ção é unânime. É preciso que se priori-ze a reforma política. A maioria dos par-tidos a considera a mais importante das reformas. Entretanto, o arsenal de in-teresses envolvidos impede que a pau-ta avance.

O anúncio do presidente Luiz InácioLula da Silva (PT) de que, após o fi m deseu mandato, vai se dedicar à reforma éemblemático. Chefe de Estado mais po-pular da história brasileira recente, Lula teve seu futuro amplamente questiona-do em 2010. Das Nações Unidas à Una-sul, muito se cogitou. A decisão do pre-sidente de destinar os próximos anos àreforma política, priorizando o fi nancia-mento público de campanha, dá mostras do valor estratégico da medida. (LU)

Parlamento comprometidoEntre as candidaturas proporcionais, 54% foram patrocinadas por construtoras. No Rio, houve fartura de dinheiro em campanhas

Financiamento interessado como regra nacionalA maioria das campanhas a governador contou com dinheiro de construtoras e empresas envolvidas nas ações do Estado

Aécio Neves e Itamar Franco, eleitos ao Senado por Minas Gerais, lideram a lista dos benefi ciados, com R$ 9 milhões

Quanto vale um mandato?ELEIÇÕES Construtoras corresponderam a quase metade do fi nanciamento da campanha do governador reeleito do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB). Todas são ou já foram responsáveis por obras ligadas ao governo

R$ 2milhõesfoi a soma do valor doado pelas

construtoras OAS e Camargo Cor-rêa à campanha de Sérgio Cabral

para o governo do Rio

de, com R$ 400 mil; e a Alfacom S.A., com R$ 370 mil, entre outros. A família Picciani doou, somados todos os valores, R$ 112,7 mil para a reeleição de Cabral, incluindo o pai, Jorge Picciani, candidato derrotado ao Senado e atual presidente

da Assembleia Legislativa (Alerj); e os fi -lhos, Leonardo e Rafael, eleitos respecti-vamente deputado federal e estadual. Ao todo, os três fi zeram 55 depósitos. A fa-mília é dona de, pelo menos, cinco fazen-das. Numa delas, em Mato Grosso, foram encontrados, em 2003, 55 trabalhadores em condições de escravidão.

A campanha de Sérgio Cabral gastou R$ 20,7 milhões. O valor é quase seis vezes mais do que a despesa do segundo colocado, Fernando Gabeira (PV), de R$ 3,6 milhões

Em visita a canteiro de obra do arco rodoviário, o governador Sérgio Cabral acena para a imprensa

Ignácio Ferreira/Governo RJ

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Eduardo Sales de Lima da Redação

PARTE DA IGREJA se posicionou parti-dariamente nas eleições de outubro des-te ano. Fatos, como o “apelo” dos bispos paulistas conservadores e o posiciona-mento de Joseph Ratzinger (papa Ben-to 16) três dias antes do segundo turno, conclamando, indiretamente, os católi-cos brasileiros a não votarem em Dilma Rousseff, desvelaram, de vez, quais são as principais forças eclesiais mais retró-gadas do país e, claro, quais perspectivas doutrinárias e políticas que o atual papa tem para o Brasil.

A atitude de Ratzinger, entretanto, não se confi gura como um fato isolado. O pa-pa possui um amplo histórico que anco-ra sua teologia dentro de uma visão ex-tremamente eurocentrista e autoritária, opondo-se, entre outras coisas, a movi-mentos progressistas surgidos dentro da Igreja Católica, na América Latina, como a Teologia da Libertação.

Mais. Para citar apenas um exem-plo mais próximo e recente, no discurso de abertura da 5ª Conferência Geral do Conselho Episcopal Latino-Americano e do Caribe (Celam), realizada em 2007, em Aparecida do Norte (SP), o papa criti-cou os governos latino-americanos adep-tos de “ideologias superadas”.

Pois bem, como lembra Dom Tomás Balduíno, bispo emérito de Goiás, “o pa-pa, além de nomear, tem o jeito de con-duzir as coisas”. Um jeito de conduzir que não faz questão de guardar segredos. Na opinião do integrante da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Dirceu Fumagalli, é por ação di-reta do Vaticano que o novo episcopado brasileiro vem sendo escolhido.

Trata-se, segundo ele, de um conjunto de clérigos, ou que se formaram, ou que realizaram cursos no Vaticano, “um pes-soal muito mais moderado, que tem uma leitura mais canônica, de direito, que es-tá preocupado muito mais com a rituali-dade da liturgia e a disciplina da comuni-dade”, afi rma.

Daí vem sua conclusão: “O perfi l des-se novo episcopado não é um perfi l pas-toreiro, mas sim de governo, de alguém que é colocado numa diocese para ad-

ministrá-la, tanto as questões econômi-cas como os confl itos internos do clero, questões de formação. É um perfi l que está preocupado com a institucionalida-de”, explica Fumagalli.

Fora de contextoA infl uência acadêmica indireta de

Bento 16 vai além. Neste ano, um cléri-go de alta patente, Raniero Cantalames-sa, muito próximo a Ratzinger, foi quem assessorou uma reunião da Regional 2 da CNBB, representada pelo estado do Rio Grande do Sul, segundo revela o pa-dre comboniano João Pedro Baresi, liga-do à Teologia da Libertação. Baresi conta que Cantalamessa é “o mesmo que com-parou uma suposta perseguição à Igreja diante dos casos de pedofi lia à persegui-ção aos hebreus”.

Desse modo, como afi rma Leonardo Boff, um conjunto de bispos, com a “su-pervisão” do papa, tenta se reestruturar para se fazer ouvir nas assembleias re-gionais e nacionais da CNBB. “Mas tais bispos não possuem [entre eles] fi guras proeminentes ou carismáticas. Simples-

mente, se alinham com Roma, às vezes, à custa de não ouvir o grito da Terra e dos oprimidos”, pondera Boff.

Efeito colateralNessa disputa política interna, um dos

lados possui o peso da Cúria Romana. Por meio da ênfase dada à institucionalidade, sorrateiramente a Igreja “se volta para si mesma”, explica Dom Tomás. “Antes, [o que era] uma Igreja muito mais samari-tana, direcionada ao auxílio do caído, do pobre injustiçado e do oprimido, [agora] volta-se mais sobre suas realidades reli-giosas, clericais, estruturais.”

Enquanto alguns creditam que a Igreja “voltou-se à sacristia” por causa do des-censo político da população, outros en-contram na condução de Joseph Rat-zinger a sua razão. Desse modo, a Igre-ja testemunha a escalada das alas direi-tas doutrinárias e a própria consolidação da força pentecostal entre a massa.

“Do lado doutrinário, temos a Opus-Dei, os Templários, organizações que fortalecem essa visão de uma Igreja do poder central. E do outro, existe o movi-

da Redação

“A Igreja é uma instituição mile-nar e ela tem a sua capacidade de fl exibilizar algumas questões pa-ra não rachar.” Essa é a opinião de Dirceu Fumagalli, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Para ele, apesar de a atual direção da orga-nização, capitaneada por dom Ge-raldo Lyrio Rocha, ter um cará-ter mais comprometido com o po-vo em comparação com a passada, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) está vivendo “dos juros que ela acumulou, do reco-nhecimento público nas décadas de 1970 e 1980”, ilustra.

“Há divergências, como houve agora entre os bispos, mas a comu-nhão prevalece, não há ruptura”, pondera dom Tomás Balduíno.

Pode não haver ruptura para a sociedade, mas já é possível cons-tatar um desequilíbrio entre as for-ças progressistas e conservadoras que disputam os rumos da Igre-ja Católica no Brasil. Como lem-bra o teólogo e escritor Leonar-do Boff, “os bispos conservadores, rompendo o acordo feito pela As-sembleia Geral da CNBB, segun-do o qual a Igreja como instituição não se meteria na política partidá-

da Redação

As Comunidades Eclesiais de Base (CE-Bs) são comunidades incentivadas pe-lo Concílio Vaticano II (1962-1965) que se espalharam por vários países princi-palmente a partir dos encontros episco-pais latino-americanos de Medellín (Co-lômbia), em 1968, e de Puebla (México), em 1979.

As CEBs impulsionaram a criação de associações de moradores, a inserção no movimento operário e outras iniciativas que fortaleceram o movimento social, so-bretudo durante a luta contra a ditadura militar. “Nunca fomos maioria, mas éra-mos uma minoria que conseguia pautar o debate; da opção pelos pobres, da par-ticipação do processo da abertura demo-crática dos países da América Latina, do enfrentamento das estruturas militares”, conta Fumagalli, da CPT, se referindo não somente às CEBs, mas a todo o mo-vimento religioso progressista da época.

100 mil comunidadesFumagalli lamenta que a Igreja pro-

gressista tenha perdido espaço na pe-riferia das grandes cidades para as for-ças pentecostais. “A massa popular não tem uma leitura popular e passou a se deixar ser conduzida pela liderança reli-giosa, um pastor, ou um padre pentecos-tal”, critica.

Já para Leonardo Boff, o que essas or-ganizações perderam foi, sobretudo, a vi-sibilidade de outros tempos, já que sob a ditadura militar nenhum movimento po-dia sair à rua, e elas, protegidas pela ins-tituição Igreja, apareciam. “As CEBs têm muita força ainda. Somam, hoje, cerca de 100 mil comunidades de base”, des-taca Boff.

Hoje, de acordo com ele, as CEBs estão nas pastorais sociais por terra, teto, saú-de, direitos humanos, mulheres, negros e indígenas. “O Vaticano sabe do vazio ins-titucional existente no Brasil, quer dizer, a falta enorme de padres para atender os fi éis. E aí veem as CEBs como forma de presença e de fazer frente às igrejas caris-máticas populares da parte dos evangéli-cos que conquistam muitos católicos mal servidos religiosamente pela Igreja Cató-lica”, explica.

Boff já criticava, em 2007, a miopia do Vaticano em relação à presença das CEBs no Brasil, quando por ocasião da 5ª Con-ferência do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), realizada em Apa-recida. À época, disparou: “Eles se orien-tam pelo direito canônico. Este não pre-vê nada para as CEBs. Talvez ‘pias asso-ciações’ [de caridade], coisa que elas efe-tivamente não são. Em razão disso, ne-nhum representante das CEBs, seja lei-go, padre, religioso ou bispo, foi esco-lhido para estar presente na 5ª Confe-rência. O resto são como ‘garis’ da Igre-ja, simples leigos, fregueses de paróquias e consumidores de bens simbólicos que eles, os padres e hierarcas, somente pro-duzem”.

Para Boff, tal atitude falava por si mes-ma: quando o Vaticano estava alienado da realidade concreta da Igreja e como já dava excessivo valor à hierarquia. (ESL)

ria, resolveram aproveitar a oca-sião das eleições e reforçar sua po-sição conservadora dentro da Igre-ja e em termos políticos, apoiando o candidato Serra”.

O problema é que, de acordo com Fumagalli, o grupo minoritário que expressava o segmento de uma Igreja comprometida com a justi-ça social, além de envelhecida, es-tá com pouco poder de expressão, de pautar os debates dentro CNBB. Por outro lado, ele afi rma que os bispos que representam a extrema direita também são poucos, “mas que fazem muito barulho”.

“Hoje, quem se posiciona, por exemplo, nas assembleias, também é um grupo minoritário da extrema direita, são bispos da Paraíba, de São Paulo, que fazem o regaço.”

2011Ao contrário do que muitos ima-

ginam, dom Tomás acredita que o resultado das eleições para a dire-ção da CNBB, em 2011, seja o de uma assembleia mais autônoma. “É pouco provável que o pessoal leve em conta o fato de uma candi-datura ser apoiada por Roma, por exemplo.” Porém, de acordo com o padre comboniano João Pedro Ba-resi, o “barulho” feito pela Regio-nal Sul 1, representada pelo esta-do de São Paulo, e por alguns bis-pos do Nordeste é sintomático. Do mesmo modo, Fumagalli vislum-bra a tendência de uma ala conser-vadora querer lutar pela direção da organização, o que, segundo ele, é preocupante. (ESL)

Disputa entre cordeiros?Para analistas, CNBB será intensamente disputada

Para Boff, “as CEBs têm muita força ainda”

Apesar da força do pentecostalismo, organizações permanecem ativas

O pecado de voltar-se para si mesma RELIGIÃO Distância do povo amplia alas doutrinárias e favorece pentecostalismo dentro da Igreja Católica

mento pentecostal, que também é de ex-trema direita”, explica Fumagalli. Segun-do ele, nesse processo eleitoral ocorre-ram as intervenções dessas duas forças.

Sobre essa ala pentecostal, Fumagalli acredita que ela escapou de vez do con-trole das organizações pastorais, inclu-sive da estrutura do episcopado. “Eles avançam, sobretudo, com uma visão al-tamente dualista, do mal e do sagrado, e essa concepção vai imprimir o debate en-tre o mundo da política e o mundo da re-ligião como mundos diferentes”, critica.

Tais bispos, com a “supervisão” do papa, não são fi guras proeminentes ou carismáticas. Simplesmente, se alinham com Roma, às vezes, à custa de não ouvir o grito da Terra e dos oprimidos, de acordo com Leonardo Boff

Neste ano, um clérigo muito próximo a Ratzinger foi quem assessorou uma reunião da Regional 2 da CNBB. O mesmo que comparou uma suposta perseguição à Igreja diante dos casos de pedofi lia à perseguição aos hebreus

O papa Bento 16, o alemão Joseph Ratzinger, que sucedeu João Paulo 2º no comando da Igreja Católica

Reprodução

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Controle privadoHomem de confi ança do oligopólio

privado da mídia, Ronaldo Sarden-berg foi mantido por mais um ano na presidência da Agência Nacional de Telecomunicações, por decisão do presidente Lula. Não se sabe se a presidenta eleita foi consultada, provavelmente sim. Passa pela Anatel o programa de banda larga, regulação da TV a cabo, renovação dos contratos de concessão da tele-fonia fi xa e a implacável repressão à radiodifusão comunitária. Tudo vai fi car igual?

Caixa doisA Polícia Federal prendeu, dia 5, no

Rio Grande do Norte, a diretoria re-gional do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e vários empreiteiros das obras de duplicação da BR-101 naquele Estado, sob a acusação de formação de qua-drilha e desvio de recursos públicos. Num trecho de 60 km de estrada eles teriam embolsado R$ 2 milhões. Ima-gine o quanto pode ser roubado em obras muito maiores!

Mineiros chilenosTrabalhadores da mina Collahuasi,

no Chile, que é a terceira maior pro-dutora de cobre do mundo, decidiram entrar em greve diante da intransi-gência da empresa – controlada por Anglo American e Xstrata – em acei-tar reajustes salariais semelhantes aos conquistados pelos trabalhadores da mina Escondida, da empresa BHP Billiton, a primeira do mundo. Os mineiros chilenos reassumem o seu papel histórico na luta contra a explo-ração!

Ato públicoO Dia da Consciência Negra será

marcado, no Rio de Janeiro, por ato na Cinelândia, dia 22, às 17 horas, que vai fazer homenagem especial aos 100 anos da Revolta da Chibata e denúncia contra a onda de remoções de comu-nidades para obras de preparação da cidade para a Copa do Mundo de Fu-tebol (2014) e as Olimpíadas (2016). Os negros e pobres são as principais vítimas da “urbanização”!

Tortura impuneA luta para responsabilizar os tor-

turadores e assassinos da Ditadura Militar (1964-1985) continua: dia 3, o Ministério Público Federal de São Paulo entrou com ação pública contra quatro militares reformados, que são acusados de participação na morte e desaparecimento de seis presos políti-cos, além de torturar mais 19 pessoas detidas pela Operação Bandeirante, em 1969 e 1970. Vale lembrar que a Oban foi fi nanciada por vários empre-sários brasileiros.

EncarceramentoCom o apoio da Defensoria Pública

do Estado de São Paulo, Associação de Juízes pela Democracia, Pastoral Carcerária e Conselho Regional de Psicologia, o movimento Tribunal Popular vai realizar, de 7 a 9 de de-zembro, na Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco), o Se-minário Encarceramento em Massa – Símbolo do Estado Penal, com a participação de especialistas de todo o Brasil. Mais uma denúncia contra o terrorismo de Estado!

Atraso históricoO Brasil melhorou no Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU: passou do 77º lugar, em 2009, para o 73º, no relatório de 2010. No entanto, a 8ª potência econômica mundial continua com graves proble-mas de pobreza, desigualdade, falta de saneamento e baixa escolaridade. Na América Latina está pior do que Chile (45º), Argentina (46º), Uruguai (52º), Panamá (54º), México (56º), Costa Rica (62º), Peru (63º) e outros.

Lucro fi nanceiroOs três maiores bancos privados

que operam no Brasil confi rmaram, no terceiro trimestre, mais uma boa safra de lucros líquidos espetaculares: o Itaú lucrou R$ 3 bilhões, acumulou R$ 9,4 bilhões em nove meses, deu 37,6% a mais do que no mesmo pe-ríodo de 2009; o Bradesco registrou R$ 2,5 bilhões no trimestre, bateu novo recorde na história do banco; e o Santander lucrou R$ 1,9 bilhão, 31% maior do que no ano passado. O Brasil é o paraíso!

Troca-trocaDados do Tribunal Superior Eleito-

ral demonstram que as empreiteiras de obras públicas, junto com os seto-res de mineração e fi nanceiro (ban-cos), foram os que mais contribuíram para as campanhas eleitorais de 2010. A Camargo Corrêa fez a maior doação, de R$ 79 milhões, seguida pela Andrade Gutierrez, de R$ 58 mi-lhões e pela OAS, de R$ 34 milhões. Por que será que essas empresas são tão boazinhas com os políticos?

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

NÃO HÁ MUITOS lugares disponíveis, por isso, o cidadão chega cedo. Compra um ingresso caro, na bilheteria, um sa-co de pipoca e entra. Busca um lugar que lhe permita ver por inteiro o grande ce-nário retangular – privilégio de poucos. Isso se no ingresso não constar cadeira numerada.

A cena assim descrita poderia ser facil-mente vista num cinema multiplex. Mas não é disso que aqui se fala. Trata-se da lógica cada vez mais comum nos estádios de futebol. O esporte preferido dos bra-sileiros tem inúmeros problemas – cor-rupção, mercantilização, cartelização, entre outros.

Tido como “a mais séria das ativida-des menos sérias”, não costuma provo-car grande resistência popular mesmo diante das práticas mais graves e corri-queiras. Mas, no dia 6 de outubro, reu-niu-se, em um bar carioca, um grupo que pensava diferente. Estava fundada a As-sociação Nacional dos Torcedores (ANT), para lutar pela moralização do futebol.

A inauguração ofi cial se deu no dia 10 do mesmo mês, em frente ao estádio do Maracanã. Um manifesto foi lançado, com sete pontos essenciais – o número é uma homenagem à camisa de Garrincha, “a alegria do povo”. O principal descon-tentamento é claro, nas palavras dos or-ganizadores: a elitização do futebol.

Adesão São muitos os indícios. Entre eles, in-

gressos caros, capacidades dos estádios diminuídas, extinção dos setores popu-lares nas arenas, superfaturamento das obras esportivas, monopólio da trans-missão pela Rede Globo e a falta de transportes populares para os jogos.

A adesão ao movimento é de uma or-dem sufi ciente para suspeitar que a as-sociação era uma demanda antiga; fal-tava apenas alguém “dar o pontapé ini-cial”. Em 15 dias, já alcançou 1.033 asso-ciados, organizados em, pelo menos, cin-co Estados.

“Querem transformar o futebol em uma mercadoria e o torcedor em um con-sumidor”, afi rma o carioca Marcos Alvi-to, idealizador e principal liderança. “O futebol tem quase 120 anos no Brasil, on-de gerou uma cultura própria tanto em termos da forma de jogar quanto da for-ma de torcer, de cantar, de discutir fute-bol, de fazer gozações entre os torcedo-

res. É esta imensa riqueza que está sendo ameaçada”, diz. Alvito critica, principal-mente, a utilização promíscua de verba pública, sem nenhum controle social, em nome de uma suposta “modernização” – que, entre outros danos, estaria afastan-do os mais pobres dos estádios.

Uma das preocupações da associação é a maneira como estão sendo planejadas a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, que serão sediadas pelo Brasil. Dos R$ 17 bilhões a serem gastos com as competições, 65% seriam revertidos em estádios “shopping centers”.

Somente no Rio de Janeiro, 119 co-munidades serão removidas nos próxi-mos anos, segundo a própria prefeitu-ra, e os avanços no sistema de transpor-tes concentram-se na Barra da Tijuca, bairro nobre da cidade. Os estádios es-tariam sendo construídos ou reformados seguindo moldes europeus, que reduzem os espaços populares e a possibilidade de manifestação das torcidas.

Criminalização da torcida“Não existe transparência de ges-

tão de custos e gastos, tanto de clubes quanto de federações e confederações. Ainda mais com os investimentos pú-blicos prometidos para a Copa de 2014, que não tratam de melhorias pontuais, mas de indicações advindas de ninguém sabe onde, que dizem que é viável cons-truir e manter estádios de alto padrão em Estados que não têm sequer uma equipe na Série B”, protesta Jorge Su-zuki, da célula paulistana da associação, que, no último Corinthians e Palmeiras, fez uma manifestação em frente ao es-tádio. Suzuki faz uma analogia entre os problemas do futebol e outros tradicio-nais do país.

“A criminalização da torcida popular e a elitização dos ingressos segue a po-lítica de marginalização da pobreza. A união de políticos, emissoras de televi-

são e grupos econômicos poderosos em torno de interesses próprios também não é mal exclusivo do futebol, tanto quanto interesses privados em obras e fi nancia-mentos de grande porte não são adstri-tos unicamente à Copa do mundo. No fi -nal, tudo é refl exo de um sistema maior, falido e corrupto”, acusa ele, afi rmando que a nova associação está, no momento, mais mobilizada em solidifi car a iniciati-va e espalhar núcleos pelo país.

Monopólio da transmissãoOs ativistas tampouco perdoam a Re-

de Globo – mesmo sem citá-la explici-tamente. A emissora seria a responsá-vel pela cartelização da economia de fu-tebol. “No Brasil, a mesma rede detém o monopólio das transmissões há décadas. Os clubes, que pegaram adiantamentos dos direitos televisivos, não podem pro-testar. O pior de tudo é que a televisão, ao afastar o torcedor dos estádios, leva-o a consumir seus produtos de TV a cabo e pay-per-view. É o crime perfeito: difi cul-to a tua ida ao estádio e te obrigo a virar torcedor de poltrona”, acusa Alvito.

Os horários aviltantes de alguns jogos também seriam culpa da emissora, pa-ra encaixar as partidas em sua imutável programação. Dessa forma, há jogos ter-minando à meia-noite, inviabilizando a ida ao estádio de muitos trabalhadores, e outros começando no início de tardes en-solaradas de verão.

Suzuki considera que, no futebol pau-lista, há ainda certas peculiaridades que precisam de maior enfrentamento. “So-mos proibidos de nos manifestar politi-camente nas arquibancadas. Vá ao está-dio com uma camiseta, com uma estre-la vermelha estampada, ou uma frase do tipo ‘contra a CBF e pela moralização do futebol’, e corra o risco de ser barra-do nas catracas. Baniram a cervejinha do torcedor, os fogos, as bandeiras de mas-tro. Nesse ponto, nosso Estado é onde há maior repressão aos torcedores”, diz.

do Rio de Janeiro (RJ)

Amante inveterado de futebol, o pa-ranaense Rafael Mello acompanhava uma série de listas de discussão e co-munidades de redes sociais sobre o te-ma. Há algumas semanas, soube atra-vés desses mecanismos de comunica-ção que estava sendo articulada a ANT. Imediatamente se identifi cou. Pas-sou a pesquisar e buscou associar-se aos fi liados. Era o embrião do que vi-ria a ser a célula paranaense da asso-ciação. É desta forma, rápida e natural, que a ANT vem crescendo e ganhando adeptos em pontos distintos do territó-rio nacional. “Temos fi liados em cida-des de que eu nunca tinha ouvido fa-lar”, comemora Marcos Alvito. A rami-fi cação da associação pelo território na-

cional, ao passo que complexifi ca o de-bate, por ganhar especifi cidades regio-nais, também soma respeito e reconhe-cimento graduais à iniciativa.

A ANT já tem unidades em processo de construção em doze estados, do Rio Grande do Sul a Roraima. Em alguns, como Paraná e Bahia, já começa a ha-ver uma estruturação maior, mais pró-xima das mobilizações carioca e paulis-tana. No último dia 24, por exemplo, o núcleo de Campinas realizou sua pri-meira manifestação. Em comemoração ao Dia Nacional da Juventude, fi zeram panfl etagens de conscientização pela ci-dade e organizaram fi liações de novos torcedores.

Lutas específi casA experiência dos paranaenses, po-

rém, é das que mais reafi rmam a argu-mentação de que a nacionalização do movimento complexifi ca os desafi os em jogo. O futebol no Estado tem notórias peculiaridades, que resultariam em lu-tas específi cas. A Federação Paranaen-se de Futebol (FPF) é uma entidade sem representação junto à Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Os clubes do Estado nem sempre res-peitam suas orientações, gerando con-fl ito. O campeonato paranaense é caro e seu calendário é acusado de ser mal for-

mulado. Alguns clubes tradicionais do Paraná estão completamente endivida-dos – problema comum a outras unida-des da federação, por causas distintas. Há um abismo entre a realidade do fute-bol na capital e no interior.

“Em resumo, temos uma federação que não defende os interesses dos clu-bes; pessoas visando benefícios pesso-ais, políticos ou fi nanceiros, agindo den-tro de clubes e federação; administrações amadoras que pecam por atropelar a tra-dição dos times, tratando-os como sim-ples produto a ser valorizado ante patro-cinadores e canais de TV; e uma impren-sa que, em sua esmagadora maioria, é parcial, interessada e de baixa qualidade, trabalhando em pautas agendadas”, sin-tetiza Rafael Mello.

Como se vê, a difi culdade e a complexi-dade das lutas do futebol são vastas. En-tretanto, nunca foi tão grande a dispo-sição para enfrentá-las. Torçamos pelos torcedores. (LU)

ESPORTE Nasce uma mobilização de amantes do futebol disposta a enfrentar os mais variados problemas do esporte. A Associação Nacional de Torcedores (ANT) quer enfrentar a elitização do futebol e a mercantilização do ato de torcer

Torcidas de futebol mais do que organizadas

Febre de torcida e de resistênciaCom o aumento do número de fi liados, ANT ganha reconhecimento, mas complexifi ca seus desafi os

“A criminalização da torcida popular e a elitização dos ingressos seguem a política de marginalização da pobreza”

1.033é o número de associados alcan-

çado pela ANT em 15 dias

A ANT já tem unidades em processo de construção em doze estados, do Rio Grande do Sul a Roraima

Corrupção, mercantilização e cartelização são alguns dos problemas relacionados ao esporte preferido dos brasileiros

Divulgação

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brasil de 11 a 17 de novembro de 2010 7

NUM PERÍODO de intensa polari-zação política no cenário mundial, diante do avanço do fascismo em nível internacional e do integralis-mo no âmbito nacional, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), cria-da em março de 1935, desempenhou um papel relevante na mobilização de amplos segmentos da sociedade e da opinião pública brasileira em de-fesa das liberdades públicas, grave-mente ameaçadas pelos adeptos da Ação Integralista Brasileira (AIB) li-derados por Plínio Salgado.

Nesse processo, a infl uência dos comunistas mostrou-se decisiva não só na formação da ANL e em sua ati-vidade legal, durante os meses de março a julho de 1935, como, princi-palmente, na preparação dos levan-tes armados de novembro daque-le ano, realizados sob as bandeiras da ANL. O grande prestígio de Luiz Carlos Prestes – o Cavaleiro de uma Esperança que renascera com o des-gaste de Vargas após a “Revolução de 30” – foi um fator fundamental para a difusão e a penetração, junto a amplos setores da sociedade brasi-leira, do programa anti-imperialis-ta, antilatifundista e democrático le-vantado pelo Partido Comunista do Brasil (PCB) e adotado pela ANL.

A justeza desse programa se evi-dencia pela aceitação e a repercus-são que obteve junto à opinião pú-blica democrática nacional. Como consequência, a ANL veio a transfor-mar-se, em pouco tempo, na maior

frente única popular jamais consti-tuída no Brasil. Seu lema: “Pão, Ter-ra e Liberdade”, inicialmente lança-do pelo PCB, empolgou centenas de milhares de brasileiros.

Os comunistas, entretanto, co-meteram um grave erro de avalia-ção ao caracterizarem a situação do país, em 1935, como “revolucioná-ria”, considerando que o desgaste do Governo Vargas seria tal que as suas condições de governabilidade esta-riam esgotadas. Confundindo os de-sejos com a realidade, os comunistas e muitos dos seus aliados superesti-maram as possibilidades reais de or-ganização e mobilização das massas populares. Consideraram que havia chegado a hora de levantar a ques-tão do poder, lançando a consigna de um Governo Popular Nacional Revolucionário, formado pela ANL, através de uma insurreição popular. A proposta dos comunistas, assumi-da pela ANL, mostrou-se fantasiosa e, portanto, inexequível, resultando na derrota do movimento.

A inviabilidade de promover uma insurreição das massas trabalhado-ras no Brasil, em 1935, aliada à con-juntura de intensa agitação e efer-vescência política então presente nas Forças Armadas, induziu os co-munistas e seus aliados da ANL a su-cumbirem à infl uência das concep-ções golpistas dos militares, forte-mente arraigadas no imaginário na-cional. Tal fenômeno sobreveio, ape-sar dos esforços desenvolvidos para

organizar e mobilizar as massas, as-sim como das repetidas e insistentes declarações do PCB, de Prestes e da ANL condenando o golpismo.

As Forças Armadas e, principal-mente, o Exército passaram a ser vistos pelos comunistas e aliancis-tas como o instrumento privilegiado para desencadear a almejada insur-reição popular, na medida em que a mobilização dos setores civis mos-trava-se mais demorada e difícil. O renascimento das concepções gol-pistas explica o caminho trilhado pe-la ANL: da amplitude inicial, quan-do a entidade se manteve dentro da legalidade, ao radicalismo revelado com a eclosão dos levantes armados de novembro de 1935.

A persistência de tais concepções pode parecer fruto das infl uências tenentistas, supostamente trazi-das, tanto para o PCB quanto para a ANL, por L. C. Prestes e muitos dos elementos provenientes do tenentis-mo. Sem negar tais infl uências, é ne-cessário considerar que o próprio te-nentismo foi um movimento mar-cado pelo vigor das tendências gol-pistas, resultantes das característi-cas do processo de formação da so-ciedade brasileira. Uma sociedade, na qual as classes dominantes sem-pre tiveram força para impor aos se-tores populares um estado de desor-ganização e desestruturação social, que viria a tornar-se um dos seus traços marcantes; uma sociedade excludente, na qual não haveria ca-

nais para que as massas populares pudessem fazer valer seus direitos e reivindicações. A expectativa de um golpe “salvador” seria a consequên-cia natural de tal estado de coisas.

Se, em 1935, o golpismo dos co-munistas e de muitos dos seus alia-dos se revelou no fato de have-rem delegado aos militares o pa-pel de detonadores da “insurreição das massas trabalhadoras”, deve-se considerar que o conteúdo do pro-grama então defendido – anti-impe-rialista, antilatifundista e democrá-tico – era distinto das propostas te-nentistas. Sejam as propostas libe-rais dos “tenentes” dos anos 1920, sejam as propostas autoritárias do tenentismo do início dos anos 1930. Em 1935, os militares, que iriam de-sencadear a insurreição projetada, não eram mais tenentistas, mas se-guidores de Prestes, que, desde seu Manifesto de Maio de 1930, deixa-ra de ser “tenente” para aderir às te-ses levantadas pelos comunistas – as mesmas que seriam encampadas pela ANL.

Mas o revés do movimento antifas-cista no Brasil, em 1935, não se ex-plica apenas pela infl uência das con-cepções golpistas. O Governo Vargas pôde tirar partido de uma conjuntu-ra internacional favorável ao fascis-mo e aos regimes autoritários para, com o apoio da direita e brandindo as bandeiras do anticomunismo, im-por uma grave derrota às forças de-mocráticas e progressistas do país.

75 anos dos levantes antifascistas de 1935 Anita Leocadia Prestes

Os militares que iriam desencadear a insurreição não eram mais tenentistas, mas seguidores de Prestes, que deixara de ser “tenente” para aderir às teses levantadas pelos comunistas

Pedro Carrano,enviado especial ao

assentamento Contestado, Lapa (PR)

DENTRO DA camada pré-sal, somen-te a renda petrolífera dos campos de Ia-ra e Tupi pode atingir a soma de 350 bi-lhões de dólares. São cerca de oito bi-lhões de barris, em uma reserva total on-de a aposta é de, no mínimo, 80 bilhões. Porém, o problema é onde investir e co-mo encaminhar a distribuição de recur-sos. Nessa perspectiva, foi realizado o se-minário “Os recursos naturais do pré-sal e o Fundo Social Brasileiro”. A atividade, proposta pela Petrobras, aconteceu entre os dias 5 e 6 na Escola Latinoamericana de Agroecologia, no assentamento Con-testado, Lapa (PR), e deve se repetir em outros Estados.

O projeto relacionado ao Fundo Social ainda aguarda votação na Câmara e no Senado, o que coloca a questão na agen-da política dos próximos meses. Para os movimentos sociais, é a chance de deba-ter o destino da renda petrolífera, que até hoje não benefi ciou o povo.

O tema do petróleo entrou no debate eleitoral já no fi nal de um segundo turno, marcado pela despolitização. O momen-to é de elevar o debate, explica o mem-bro da campanha “O Petróleo tem que ser nosso”, Igor Felipe dos Santos. “Para os movimentos sociais abre-se perspecti-va para fazer lutas em defesa do petróleo e riquezas naturais, principalmente que resolva os problemas estruturais. Ir além de disputas econômicas e fazer uma dis-cussão sobre o projeto do país”.

Os cerca de 300 educandos do Paraná presentes no seminário apontaram como prioridades da renda do petróleo o in-vestimento em educação, reforma agrá-ria, fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), meio-ambiente, entre ou-tros. As sugestões são no sentido de que os recursos devem ser centralizados pe-la União, encaminhados aos municípios, de forma igualitária, de acordo com pro-jetos da sociedade e dos movimentos so-ciais. E com controle social. No caso da educação, alertam para o fato de que não basta erguer universidades, mas univer-sidades populares, voltadas para campo e cidade, fornecendo condições aos es-tudantes.

Renda do petróleo ao destinatário certo ENERGIA Seminário, no Paraná, com apoio da Petrobras, debate a destinação dos recursos do pré-sal; tema está na agenda política dos próximos meses

Controle sobre os recursos Enquanto as reservas do pré-sal apre-

sentam alto potencial e qualidade em óleo, empresas estrangeiras, como a Pe-trogal (Portugal), esperam obter lucros extraordinários. Mais de 70 empresas estrangeiras atuam hoje no Brasil. Além disso, há uma tendência de integração entre transnacionais de setores diferen-tes. São grupos que almejam ao mesmo tempo as reservas petrolíferas, o territó-rio no entorno das jazidas e, inclusive, a produção de agrocombustíveis.

Este foi o tom da exposição de Silvaney Bernardi, presidente do Sindicato dos Petroleiros (Sindipetro PR-SC), duran-te o seminário. Ele apontou que, a partir da década de 1990, o Brasil caminhou na contramão da tendência mundial, que é de maior controle do Estado sobre os re-cursos naturais.

A consequência está no fato de que em-presas como a OGX, do bilionário Eike Batista, hoje se expandem nesses seto-res estratégicos. Bernardi, aponta ainda o ingresso de petrolíferas no mercado es-peculativo de terras no Brasil, como, por exemplo, a parceria entre a petrolífera Shell e a sucroalcooleira Cosan, por meio da empresa Radar, que tem comprado terras como reserva de valor.

Fortalecimento da PetrobrasNa avaliação do petroleiro, não houve

correlação de forças favorável para o go-verno Lula realizar mudanças na legisla-ção do petróleo, para garantir o monopó-lio estatal. Porém, a estratégia do gover-no, para ele, foi fortalecer a Petrobras. Cita a recente capitalização da empresa e o controle acionário que passou a 48% das ações da empresa pelo governo.

“A estratégia foi aumentar os investi-mentos da Petrobras. FHC vendeu dois terços da Petrobras no mercado, que fi ca com o lucro (...). Lula não mexeu na le-gislação, o que criticamos, mas temos a Petrobras forte neste momento, com re-cuperação do efetivo e empregados pró-prios”, afi rma.

Bernardi acredita que o Fundo Social abre espaço para a destinação da renda do petróleo para os problemas do país, ao passo que os royalties (renda indi-reta aos estados e municípios marcados pela exploração de petróleo) não têm mecanismo de controle. “Royalties não têm controle social nenhum”. Para ele, o Fundo Social é parte das riquezas para um fundo com regras claras, que enfoque na pesquisa, na Reforma Agrária”.

enviado especial ao assentamento Contestado, Lapa (PR)

A apropriação desigual dos recursos naturais refl ete na base da população e nas pequenas cidades. Das 5.561 ci-dades do Brasil, 870 recebem o recur-so. A defesa do professor da Universi-dade Federal do Sergipe (UFS), Frede-rico Romão, é de que os royalties não são uma fatia menor do pré-sal, ape-sar de até então representar 10% da sua renda. Na realidade, eles poderiam re-solver diversos problemas se distribuí-dos com destinação específi ca, e não ao sabor da pequena política.

“No Rio Grande do Norte, tem pro-prietário de terra recebendo R$ 24 mil por mês. Só você recebe e o seu vizinho não”, exemplifi ca. A cidade de Itaporanga (SE) tem direito a R$ 6 milhões na forma de royalties. Ca-so esse valor fosse distribuído para to-do o povo, cada pessoa receberia R$ 220. Um valor pequeno, mas que, da-do nas mãos da vereança local, signi-fi caria R$ 718 mil para cada vereador. Valor que poderia construir 129 casas ou três escolas para 400 alunos, infor-ma o professor.

Os royalties e o que esse país tem direito

Cidades que recebem royalties são marcadas por brutal desigualdade, aponta pesquisador, para quem a questão é de política de Estado

O tema do petróleo entrou no debate eleitoral já no fi nal de um segundo turno, marcado pela despolitização

Dinheiro não investidoAinda de acordo com Frederico Ro-

mão, a legislação, até o início da déca-da de 1990, balizava alguma forma de aplicação dos recursos dos royalties. Hoje não mais.

A distribuição entre municípios, deacordo com o pesquisador, é crescen-te, principalmente depois de 1997. Emdez anos, foram distribuídos R$ 19 bi-lhões para os municípios em royal-ties petrolíferos. Desde então, o cres-cimento do PIB, no Rio de Janeiro, éde 27% em comparação com os 16% do Brasil. No Espírito Santo, cresceu3.950% em produção. Mas o pesquisa-dor detecta que, no norte Fluminense,região de extração de óleo, é maior a quantidade de alunos que abandonama escola que no restante do Rio de Ja-neiro. “O dinheiro está chegando, masnão investido. O royalties entram, mas a cidade não investe”, explica.

Tantos exemplos apontam o mesmo cenário. Silvaney Bernardi, do Sindi-petro, complementa que somente a ci-dade de Campos de Goytacazes recebe 25% dos royalties de todo o Brasil. “Es-se recurso, infelizmente, não tem ca-rimbo. A regra foi feita para comprar os políticos de plantão”, critica. (PC) (Co-laborou Alexandre Boing)

Em dez anos, foram distribuídos R$ 19 bilhões para os municípios em royalties petrolíferos

Lula não mexeu na legislação, o que criticamos, mas temos a Petrobras forte neste momento

Proposto pela Petrobras, o seminário discutiu o investimento e a distribuição dos recursos naturais

Silvaney Bernardi/Sindipetro

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culturade 11 a 17 de novembro de 20108

“Minha hipótese é que o jornalista que diz sermos marionetes nas mãos

do MST possivelmente discorda da postura política do movimento”

Ana Maria Straube, Rodrigo Salgado e

Vinicius Mansur de São Paulo (SP)

NASCIDA EM 1991 na Califórnia, EUA, a banda Rage Against The Machine (RATM) se consolidou no cenário mun-dial da música com uma rara mescla de rap, variantes do rock and roll pesado e crítica política furiosa e constante.

Na trajetória da banda, pedradas ao capitalismo, ao belicismo estadunidense, ao racismo, ao etnocídio dos nativos da América e à violência machista. Home-nagens aos zapatistas, à Liga Anti-Fas-cista da Europa, à organização Women Alive, aos presos políticos Leonard Pel-tier e Múmia Abu-Jamal.

Para todos estes, a banda realizou sho-ws, revertendo todo o dinheiro para a de-fesa das causas. O RATM também to-cou em protestos contra o Nafta (Tra-tado Norte-Americano de Livre Comér-cio) e a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), fez dois shows contra à guer-ra (2000 e 2008) às portas da Convenção Nacional do Partido Democrata, provo-cou o fechamento da Bolsa de Valores de Nova York por algumas horas ao tenta-rem gravar um clipe, dirigido por Micha-el Moore, em frente à instituição, e, tam-bém, foi censurado pela emissora NBC por exibirem a bandeira dos EUA de ca-beça para baixo em uma apresentação.

Depois dos atentados de 11 de setem-bro de 2001, a emissora Clear Channel criou a lista de “músicas com letras ques-tionáveis”, em que o RATM foi a úni-ca banda a ter todas as suas músicas in-cluídas.

De 2000 a 2007, a banda esteve sepa-rada, mas, em outubro deste ano, aterris-sou e “aterrorizou” pela primeira vez em solo sul-americano, passando por Bra-sil, Argentina e Chile, homenageando o MST, as Mães da Praça de Maio, Víctor Jara e Salvador Allende. Passada a tur-nê, o guitarrista do RATM, Tom Morello, concedeu uma entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.

Brasil de Fato – Os fãs da América do Sul esperaram muito tempo por uma apresentação do RATM. Vocês gostaram da recepção do público? Tom Morello – Nós fi camos muito ex-tasiados com o público brasileiro. Nós te-mos grandes fãs no Brasil, e é uma vergo-nha termos demorado 19 anos para tocar no país. Mas valeu a espera. Foi realmen-te uma noite para ser lembrada.

O RATM é uma banda claramente anticapitalista. Porém, percebemos, no show do Brasil, que parte considerável dos seus fãs não se interessa pelo conteúdo político ou até mesmo tem aversão a posicionamentos de esquerda. Como vocês interpretam isso?

O RATM é uma banda que se preocu-pa em agir amplamente. Tocamos nos-sa música para atingir uma ampla varie-dade de pessoas, independentemente de suas inclinações ideológicas. Estou tran-quilo com isso. Nós não somos uma ban-da elitista que toca exclusivamente para pessoas que compartilham exatamen-te nossa pauta política. O que nós perce-bemos ao longo destes anos é que muitos jovens que antes eram apáticos ou possu-íam opiniões políticas diferentes foram expostos a um novo conjunto de ideias através de nossa música e, em alguns ca-sos, isso os ajudou a mudarem sua forma de pensar.

Um jornalista chegou a publicar que vocês foram usados pelo MST no Brasil, colocando-os como “gringos bonzinhos nas mãos de pessoas más”. O que você tem a dizer sobre isso?

Minha hipótese é que o jornalista que diz sermos marionetes nas mãos do MST possivelmente discorda da postura

política do movimento. Isto é uma crí-tica comum que encontramos aqui nos Estados Unidos. Quando a mídia de di-reita critica artistas por se posicionarem politicamente, é, geralmente, porque eles discordam do ponto de vista dos artistas. Eu aprendi sobre o MST com o Zack, que conhece bastante sobre os movimentos políticos de toda a Améri-ca Latina, e nós temos orgulho de pres-tar solidariedade ao MST na sua luta por justiça no Brasil.

Você faz parte de algum movimento político?

Sou cofundador, junto com Serj Tankian, da banda System of a Down, da Axis of Justices, uma organização sem fi ns lucrativos determinada a reunir mú-sicos, fãs de música e organizações polí-ticas de base para lutar por paz, direitos humanos e justiça econômica. Também sou membro do IWW (Trabalhadores In-dustriais do Mundo, por sua sigla em in-glês), uma organização de trabalhadores radical, fundada no início do século 20 e que engloba trabalhadores de todos os ti-pos. Trabalhadores da indústria do sexo, estudantes, músicos, metalúrgicos, cam-poneses etc.

Qual a importância, para vocês, de que os jovens apoiem movimentos sociais, como o MST? No Brasil, atualmente, a juventude raramente se engaja em lutas sociais. Como ela se comporta nos EUA?

É a juventude que muda o mundo, e eu acredito ser de crucial importância que eles ganhem perspectiva numa larga va-riedade de ideias e movimentos políticos que estão abertos para a participação de-les em seus próprios países. Nos Estados Unidos, a juventude foi muito energizada pela campanha presidencial do Obama e muitos se desiludiram com suas ações desde que ele foi eleito. Existe muito des-contentamento nos Estados Unidos com a economia e com o prosseguimento das guerras no Oriente Médio; e, infelizmen-te, os semideuses da direita têm manipu-lado esse descontentamento para os seus próprios propósitos.

A vitória dos republicanos nas últimas eleições nos parece um fi el exemplo disso. Existem movimentos populares nos Estados Unidos capazes de reverter esse quadro?

Durante a administração Bush, hou-ve um fortíssimo movimento antiguer-ra. Muito da energia desse movimen-to foi canalizada para a campanha do Obama, quem eu considero uma pes-soa decente. Mas acredito que a alta cú-pula do governo está repleta de compro-missos. A política, nos Estados Unidos, é dominada e operada pelo grande capi-tal, e não me surpreende este giro à di-reita que tivemos depois de dois anos com Obama. E não é porque sua políti-ca ameaçava a elite em qualquer aspec-to. Seu apoio contínuo à guerra do Afe-ganistão e o resgate criminoso oferecido aos bancos e à indústria fi nanceira são uma clara indicação de sua fi delidade de classe. Mas o que sublinhou o movi-mento da extrema direita na política es-tadunidense foi o desafi o às convenções culturais que o Obama representa. Exis-tem muitos racistas nos Estados Unidos que sequer podem dormir bem sabendo que existe um presidente negro na Ca-sa Branca. A extrema direita usou te-mas como raça, sentimentos antigay e anti-imigrantes para reavivar a animo-sidade para com o centrista Partido De-mocrata, deixando sua pauta econômi-ca e de poder por detrás e, assim, con-vencendo a maioria da classe trabalha-dora branca a votar contra os seus pró-prios interesses.

Que visão vocês têm sobre o recente processo político latino-americano?

Parece-me que, enquanto os Estados Unidos focaram sua atenção em nos-sas guerras imorais e ilegais no Orien-te Médio, a América Latina foi deixa-da para seguir seu próprio destino. Eu estou muito satisfeito que, ao longo do curso da última década, movimentos re-almente populares tenham começado a infl uenciar a política do Estado e, even-tualmente, tenham ascendido ao poder na América Latina. Governos que ex-plicitamente estão ao lado dos pobres e da classe trabalhadora, ao mesmo tem-

po em que a população de qualquer país deve estar atenta contra a corrupção. Eu acredito que é um sinal encorajador que os oprimidos tenham, mais do que nun-ca, voz na política latino-americana.

Entrando na música, mas sem sair tanto da política, como uma banda como o RATM lida com a indústria cultural?

Bom, é bem possível que ninguém no Brasil jamais tivesse escutado o RATM ou que ninguém se interessasse em ler esta entrevista se não fosse o fato da música do RATM ser veiculada pela Sony Music. Logo no início da banda, nós tomamos uma decisão de forma ex-tremamente consciente sobre como ten-taríamos divulgar nossa mensagem re-volucionária para o maior número de pessoas possíveis ao redor do mundo. E, ainda que eu respeite as decisões de outros artistas em lidar exclusivamen-te com gravadoras independentes, nos-sos objetivos políticos são muito maio-res. Nós queremos que nossa música te-nha um impacto mundial.

A infl uência musical de vocês é bastante vasta. Do rap ao rock, passando pela música negra e até o heavy metal. Ela sempre se pautou pela atividade política?

Minhas preferências musicais são mui-to amplas e certamente nem sempre existe um componente político nelas. Eu adoro heavy metal, como Black Sab-bath, Iron Maiden e Rush, assim como o hip-hop contemporâneo de DMX e Jay-Z e, obviamente, também gosto de gru-pos políticos, como Public Enemy e The Clash. No RATM, nós sempre sintetiza-mos nossas várias infl uências musicais para então preencher com o nosso com-promisso político.

Algo na música sul-americana é referência para você?

Um dos meus maiores heróis musicais é Víctor Jara, o tremendamente talento-so mártir do golpe de 1973 no Chile. Sua vida como músico e ativista é muito ins-piradora, especialmente no meu projeto solo, que leva o nome de The Nightwa-tchman.

Você apontaria novos talentos na música?

Eu sou um grande fã de Gogol Bor-dello, The Arcade Fire, Bright Eyes e de uma banda, pouco conhecida fora da ci-dade de Nova York, que se chama Outer-national.

O RATM voltou para fi car? Há previsão para novos trabalhos?

Bem, nós estamos juntos de verdade, como nosso show no Brasil demonstrou. Atualmente, não existem planos para um novo disco, mas nós continuamos ami-gos e fazendo shows. Mas o futuro não está escrito.

Vocês têm planos para retornar à América do Sul?

Eu adoraria voltar em breve para to-car mais vezes e explorar o continente.Nessa viagem, nós estivemos na Améri-ca do Sul por menos de dez dias, o quenão foi nem de longe sufi ciente. Eu fuiinspirado pelo público daí, pelo encon-tro com o MST, pelo ensaio que nós vi-mos da escola de samba Vai Vai, por vi-sitar os túmulos de Víctor Jara e Allen-de no Chile, por marchar com as Mãesda Praça de Maio em Buenos Aires. Es-sas coisas serão absorvidas por minhamúsica no futuro. Finalmente, gosta-ria de agradecer muito aos fãs do Bra-sil. Levamos 19 anos para ir pela pri-meira vez, mas garanto que não levare-mos outros 19 anos para voltar. Nos ve-remos em breve.

“Temos orgulho de prestar solidariedade ao MST”ENTREVISTA Após passagem pela América do Sul, o guitarrista do Rage Against The Machine, Tom Morello, fala sobre política e música ao Brasil de Fato

Nascido em 1964 no Harlem, em Nova York,

formado em ciências políticas na Universidade

de Harvard, Tom Morello foi incluído pela

revista Rolling Stone como um dos 100 maio-

res guitarristas de todos os tempos.

Quem é

“Nossos objetivos políticos são muito maiores. Nós queremos que nossa música tenha um impacto mundial”

Reprodução

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Dafne Meloda Redação

PARA O SOCIÓLOGO brasileiro radica-do na França, Michel Löwy, as últimas mobilizações, no país, contra o aumen-to da idade para a aposentadoria foram uma das maiores desde as célebres mo-bilizações do Maio de 1968. Entretanto, elas não devem ser sufi cientes para fazer o governo de Nicolas Sarkozy recuar. Is-so porque uma derrota em um país tão estratégico como a França seria inaceitá-vel do ponto de vista do capital.

“O capital europeu está muito preocu-pado com um possível recuo, o que pode-ria gerar uma onda de protestos mais for-tes em outros países. Então, é estratégico para o capitalismo europeu manter a re-forma da previdência na França”, afi rma o sociólogo.

No dia 28 de outubro, um dia após a aprovação do texto pela Assembleia Na-cional e pelo Senado francês, as manifes-tações no país sofreram uma baixa, em-bora se mantenham. Para Löwy, o cus-to político dessa decisão, para Sarkozy e seus aliados, deverá ser cobrado nas pró-ximas eleições, nas quais devem ser der-rotados, pelo menos para o cargo da Pre-sidência da República.

Hoje, o presidente francês amarga pés-simos índices de popularidade, com me-nos de 30% de aprovação. A difi culda-de em reverter a reforma da previdência na França, entretanto, não deve ser vis-ta com pessimismo. Segundo Löwy, os últimos episódios na Europa – que viu lutas também na Grécia e Espanha, en-tre outros países – mostram que a saída para combater as medidas neoliberali-zantes deve se dar por meio da unidade dos movimentos de toda Europa, e não de cada país isoladamente. “O que deve-ria ter ocorrido, por exemplo, nesses últi-mos meses, é uma greve geral coordena-da, unifi cada, em toda a Europa”, aponta. Leia, a seguir, a entrevista.

Brasil de Fato – Quando a crise econômica mundial se iniciou, muitos analistas apontavam que ela era profunda e prolongada. Como ela tem se manifestado na Europa nos últimos meses?Michael Löwy – É uma crise que co-meçou com a bolha dos imóveis nos Es-tados Unidos, em 2008, e acabou deses-tabilizando todo o sistema. O que os go-vernos fi zeram? Particularmente na Eu-ropa, a primeira preocupação foi tirar os bancos da crise, já que eles tinham vá-rias ações podres. Os governos intervie-ram com bilhões de dólares para salvar os bancos. Tem uma piada que resume bem essa situação. O ministro da Econo-mia de um país europeu fala: “tenho uma boa notícia. Nós pensávamos que não tí-nhamos dinheiro em caixa, descobrimos que tínhamos vários bilhões. A má notí-cia é que agora não temos mais nada de fato”. Então, uma vez feita essa operação, os bancos, que eram os responsáveis pe-la especulação fi nanceira e pelos títulos podres, foram salvos, só que os estados fi caram totalmente endividados. Só que alguém tinha que pagar essa conta. Na-turalmente, quem a está pagando são os trabalhadores do serviço público, da edu-cação, saúde, sistema de aposentadorias, ou seja, aquilo que atinge diretamente as classes subalternas. Essa é a lógica. En-tão, vem agora a austeridade, de corte neoliberal, tratando de fazer com que os pobres paguem a conta.

Desde então, tem havido muitas manifestações como há muito não se viam na Europa. Elas estão colhendo resultados?

Obviamente, essas medidas provoca-ram muita indignação, revoltas, protes-tos, greves, manifestações. A começar pela Grécia, onde está o elo mais fraco da União Europeia e onde a crise se incidiu de maneira mais dura. A Grécia conhe-ceu uma sucessão de greves gerais e ma-nifestações que impressionaram muito, mas não conseguiram barrar essas medi-das. Além do que, o remédio foi adminis-trado por um governo mais progressista, o que não deixa nem uma margem de al-ternância, de tirar um governo e pôr ou-tro, porque a outra opção é pior. Então, no momento, o movimento, na Grécia, está em descenso, há manifestações, mas não têm a mesma força. Bom, depois fo-ram aparecendo protestos na França e na Espanha. Evidentemente, os pro-testos na França foram mais importan-tes. Eles vieram em seguida de uma sé-rie de escândalos de corrupção envolven-do o governo, a começar pelo ministro do Trabalho, Eric Woerth, responsável pela reforma das pensões. Essa medida apa-receu como uma agressão direta aos in-teresses dos trabalhadores, obrigando-

os a trabalhar dois anos mais antes de se aposentarem. Isso gerou uma revol-ta geral na sociedade, os sindicatos co-meçaram a organizar greves e mobiliza-ções cada vez maiores, e o governo se viu apressado para fazer passar a lei o mais rápido possível. O governo de Nicolas Sa-rkozy ainda tentou uma manobra com a história dos romenos e ciganos, tentando desviar a atenção da opinião pública por meio de uma campanha racista contra os ciganos, que acabou não pegando. A opi-nião pública reagiu negativamente e até as igrejas protestaram. A Comissão Eu-ropeia protestou, e essa manobra falhou. Mas isto mostra bem a perversidade do personagem.

Como se deu a entrada da juventude nesses protestos?

A entrada dela reforçou muito os pro-testos. Num primeiro momento, o gover-no tentou passar a mensagem de que o assunto só interessava aos aposentados, aos velhinhos, mas os jovens perceberam que eles também seriam afetados, de for-ma imediata, já que, se os mais velhos

vão fi car mais tempo trabalhando, eles fi carão mais tempo na fi la para obter tra-balho. Então, a juventude, o movimento estudantil, entrou na rua. A juventude da periferia também protestou, colocando fogo em automóveis de novo. Houve uma onde de protestos, talvez uma das maio-res desde o Maio de 1968 na França. Não acho que vamos conseguir ganhar, acho pouco provável, porque o governo e toda a imagem que ele constrói é de uma es-pécie de Bonaparte capaz de impor a sua doutrina. O capital europeu está mui-to preocupado com um possível recuo, o que poderia gerar uma onda de pro-testos mais fortes em outros países. En-tão, é estratégico para o capitalismo eu-ropeu manter a reforma da previdência na França. Como o governo tem a maio-ria do Senado e da Câmara, difi cilmente vamos conseguir ganhar. Mas acho que conseguir gerar o movimento que se ge-rou já é uma vitória. O governo de Sarko-zy vai pagar um preço político muito alto. Isso porque 71% da população era contra essa reforma. A popularidade do Sarkozy está em menos de 30%, é a mais baixa da história da Quinta República.

Há possibilidades desse movimento se radicalizar agora?

A reforma já foi aprovada, e o resulta-do foi uma ducha fria. Os últimos pro-testos já foram reduzidos. As mobiliza-ções devem continuar por algum tem-po, mas não vai conseguir ter a mesma força. Haverá uma discussão no Conse-

lho Constitucional para ver se essa me-dida é constitucional e pode ser que ha-ja uma remobilização, mas, de qualquer jeito, há uma raiva muito grande da po-pulação e qualquer medida vai acirrar os ânimos de novo.

Nas próximas eleições, em um ano e meio, as forças políticas em torno de Sarkozy devem, então, sofrer uma derrota eleitoral?

Bom, claro que não se pode prever exa-tamente o que vai ocorrer em dois anos, mas o mais provável é que ele não consi-ga perpetuar-se no poder. Ele certamen-te tentará resgatar o discurso, como fez da última vez, anti-imigração, a questão da ordem, da polícia, da segurança, ba-seado no racismo e na xenofobia. Essas são as cartas que ele tem na manga e que ele usará até as eleições. Esse tema ain-da encontra muita ressonância na popu-lação. Neste momento, teve pouco, devi-do à forte rejeição. Mas, de qualquer mo-do, acredito que esse discurso não deve ser preponderante e que o mais provável é que ele seja derrotado eleitoralmente.

A Europa sempre foi considerada o lugar onde os direitos trabalhistas eram mais respeitados, devido a uma herança da social-democracia. Com a perda desses direitos, quais são as perspectivas para o trabalhador europeu nos próximos anos? Isso pode gerar uma maior organização da classe?

É difícil prever, mas, certamente, have-rá uma acirramento da luta de classes. O capital quer arrancar direitos conquista-dos em dezenas de anos de luta e, certa-mente, haverá resistência. Acredito que isso seja o mais provável. O problema é que, para ganhar essa batalha, precisa-ríamos de um movimento unifi cado em toda a Europa, o que até hoje não se con-seguiu. Há algumas iniciativas, mas não são sufi cientes. O que deveria ter ocorri-do, por exemplo, nesses últimos meses, é uma greve geral coordenada, unifi cada, em toda Europa. Mas, com a atual dire-ção sindical europeia, eu duvido que is-so aconteça.

Por que a resistência na França é maior? Por que há maior nível de organização?

A França não é onde o movimento é mais bem organizado, pelo contrário. A taxa de sindicalização, na França, é mui-to baixa se comparado com a Alemanha ou Inglaterra. O que há na França é uma maior combatividade, principalmente na base dos sindicatos e na juventude. A vantagem nossa, na França, é conseguir eleger um governo um pouquinho mais favorável, o que na Grécia não é possí-vel. A direção sindical francesa, entre-tanto, não quis comprar uma briga séria. Ia ser uma greve geral em dias alterna-dos, ao invés de uma greve contínua, que talvez pudesse gerar um recuo, como em 1995, quando houve três semanas de gre-ves ininterruptas e o governo acabou re-cuando. A direção sindical não quis cor-rer esses risco e freou um pouco o movi-mento. O principal partido da esquerda, de oposição, teve também uma posição muito mole; no começo, chegou a fazer média com o governo. Mas não travou essa batalha. O que é necessário são for-ças de esquerda fortes e anticapitalistas que tenham o interesse de ir além nessas lutas. Essas forças existem. Basicamen-te, há três forças de esquerda: uma so-cial liberal, com nuances mais direitistas, uma esquerda antineoliberal, e há uma esquerda declaradamente anticapitalis-ta, como o Bloco de Esquerda, em Portu-gal; o Partido Anticapitalista, na França; e o Partido Socialista dos Trabalhadores, na Inglaterra, que confi guram a Corrente Europeia da Esquerda Anticapitalista.

“É estratégico para o capitalismo manter a reforma da previdência na França”ENTREVISTA Na avaliação do sociólogo Michael Löwy, as elites europeias temem que um recuo do governo francês geraria uma onda mais forte de protestos em todo o continente

Michel Löwy é sociólogo brasileiro radicado na França, onde é pesquisador do Centro Na-cional de Pesquisa Científi ca (CNRS, na sigla em francês). É autor de mais de dez livros, entre eles, O pensamento de Che Guevara; Marxismo, modernidade e utopia; e Walter Benjamin: aviso de incêndio. É, ainda, organi-zador da coleção O marxismo na América La-tina: uma antologia de 1909 aos dias atuais.

Quem é

“A Grécia conheceu uma sucessão de greves gerais e manifestações que

impressionaram muito, mas não conseguiram barrar essas medidas”

“O capital quer arrancar direitos conquistados em dezenas de anos de luta e, certamente, haverá resistência”

O sociólogo Michel Löwy

Manifestação em Paris: derrota na França seria inaceitável do ponto de vista do capital

Revolta Global/CC

Revolta Global/CC

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Apostolis Fotiadisde Atenas (Grécia)

A NOTÍCIA APARECEU discretamente no site da Frontex (Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Mem-bros da União Europeia), a agência euro-peia de combate à imigração irregular.

A página explica o interesse desperta-do nos testes sobre o uso de pequenos UAV (os chamados drones, veículos aé-reos sem piloto) e sistemas de fi xação e monitoramento das costas. “No mundo da vigilância costeira, você pode usar um espectro muito amplo de possibilidades técnicas para fornecer uma vigilância efi -caz, incluindo câmeras infravermelho e, de dia, radares de terra, sensores fi xos de terra, sistemas móveis, jatos sem piloto e satélites”, pode-se ler na notícia.

“De todo modo, é evidente que os UAV também poderiam desempenhar um pa-pel importante nas missões futuras de vi-gilância, uma vez que eles superam mui-tos desafi os técnicos, entre outras coi-sas”, continua o texto.

A Frontex se negou a fazer declara-ções à Directa em relação à utilização dos drones. Mas o desenvolvimento de um sistema integrado de vigilância eu-ropeu (Eurosur), dentro do qual a agên-cia tem uma grande infl uência, já come-çou a chamar a atenção dos fabricantes de equipamentos de segurança como os drones, entre outros.

Mercado em crescimentoA Frontex também tem um papel-cha-

ve dentro do Fórum Europeu de Inves-tigação em Segurança e Inovação (Esrif, na sigla em inglês), que funciona desde 2007 e que, em 2009, uniu especialistas e grupos de pesquisa de toda a Europa, o setor privado de negócio e as instituições europeias.

A agência foi fundada em 2004 e se tornou operativa no ano seguinte, colo-cando-se à frente da luta da União Euro-peia (UE) contra a imigração não dese-jada. Ela coordena patrulhas marítimas, voos de reconhecimento e operações por terra e mar e se serve do apoio de espe-cialistas para identifi car os países de ori-gem dos imigrantes sem-papéis presos. Frank Slijper, da campanha antimilita-

e agências estatais) e 60 do lado dos for-necedores (indústrias). Durante os úl-timos dois anos, a agência vem sendo uma participante regular dos fóruns e tem promovido a militarização dos con-troles das fronteiras europeias, atenden-

do a lobbies favoráveis a corporações co-mo a Aerospace and Defence Association (ASD) – que promove a indústria aero-náutica como uma prioridade estratégica da Europa – e a Security Defence Agenda (SDA), baseada em um think tank – gru-

Julio Gambina

ENQUANTO A ARGENTINA continua impactada pela morte do ex-presiden-te Néstor Kirchner, gerando discussões sobre o presente e o futuro da econo-mia, a realidade da crise mundial se im-põe e condiciona qualquer especifi cida-de nacional.

Por que estou dizendo isso? Porque a uma semana da reunião entre os presi-dentes do G20 [iniciada no dia 11], em Seul, na Coreia do Sul, os Estados Uni-dos decidiram, unilateralmente, fazer uma gigantesca emissão de notas no va-lor de 600 bilhões de dólares.

Com essa medida, colocaram em ten-são o conjunto do sistema mundial, que, agora, deve decidir como atuar diante dos dólares que inundarão os mercados de capitais, reavivando, talvez, uma on-da especulativa, ou pelo menos, como já se vê, estimulando a alta dos preços das commodities, caso do ouro e da soja, dois produtos de exportação da Argentina.

Os EUA agem de acordo com sua von-tade e sabem que, se forem abertas as possibilidades para se discutirem essas medidas coletivamente, situações que superem a capacidade de ação do gover-no do debilitado Obama – derrotado nas últimas eleições – podem surgir. Diante da dúvida, preferiram a atitude unilate-ral, antecipando-se ao conclave de Seul, demostrando que se a crise econômica é mundial, as políticas econômicas são na-cionais e, nesse sentido, os EUA exercem a hegemonia que lhe outorga seu caráter imperialista.

LiçõesQuais são as lições que podem ser

aprendidas sobre essa situação? Não

G20

EUA exercem sua hegemonia antes da reunião do G20

é a primeira vez que isso ocorre, pois os EUA já deram mostras de sobra de ações unilaterais, como quando decidiu acabar com a paridade cambial estabe-lecida nos acordos de Bretton Woods de 1944. Remito à declaração da incon-vertibilidade do dólar em 1971, que de-satou a crise e a desordem do sistema mundial e que gerou ajustes e liberali-zação da economia.

A instalação da especulação generali-zada teve origem na atitude unilateral estadunidense, motivando iniciativas como a Taxa Tobin para tentar frear o inusitado movimento de divisas com fi ns especulativos que gerou a ruptu-ra do acordo monetário. Agora, volta-se a falar de guerra monetária, com ra-zão, já que a primeira batalha começou com a emissão estadunidense. Não em vão, volta-se a falar de mecanismos de controles de capitais ao estilo das su-geridas por Tobin no começo da déca-da de 1970.

Mas os EUA também atuaram delibe-radamente, em fi ns dos anos 1970, com a iniciativa Volcker, o mesmo persona-gem que é, agora, um elemento chave na política econômica de Obama. Naqueles anos, ela foi funcional ao neoliberalismo que Ronald Reagan implementou nos EUA. A medida signifi cou uma impres-sionante alta das taxas de juros, que de-sembocou na crise da dívida externa de nossos países, com o “calote” do México

e uma complexa situação de endivida-mento e negociações condicionadas por meio de pressões do Fundo Monetário Internacional (FMI) e organismos in-ternacionais. São situações que explica-rão as décadas perdidas dos anos 1980 e 1990 para América Latina e Caribe.

São várias as lições que se podem aprender com o exercício da hegemo-nia estadunidense e a unilateralidade no estabelecimento de políticas eco-nômicas, ainda que na conjuntura is-so possa favorecer a macroeconomia local. É que a alta do preço do ouro e da soja, desde já estimula os negócios em nosso país, sem que isso represente uma melhoria na qualidade de vida do conjunto da população.

Se melhora a performance dos investi-dores na megamineradora a céu aberto, ou a dos que administram o ciclo produ-tivo da soja – e, claro, ao manter o mo-delo produtivo –, algo se derrama sobre as contas fi scais, outorgando sensação de normalização e crescimento da eco-nomia, favorecendo a sensação de bem-estar e de que a crise está longe.

EmancipaçãoQuestionar é o que os países do sul do

mundo podem fazer na reunião do G20, mais do que legitimar a hegemonia dos EUA ao restabelecer o regime do capital com o olhar estadunidense. É fato que se pode protestar e é provável que existam discursos críticos à unilateralidade esta-dunidense, mas a emissão de dólares de Washington já incide na evolução da eco-nomia mundial, realimentando os negó-cios especulativos que antecipam novas rodadas da crise.

Talvez seja o momento de, além dos discursos críticos, colocar em prática, também unilateralmente, como região latino-americana e caribenha, uma de-

morada nova arquitetura fi nanceira, on-de o Banco do Sul e o Banco da Alba te-nham um papel, assim como a experiên-cia de intercâmbios que iniciaram Bra-sil e Argentina ou os que estão sendo en-saiados desde o começo desse anos pelos países da Alba com o Sistema Único de Compensação Regional (Sucre), tentati-va de avançar no sentido de estabelecer uma moeda regional.

Se a crise é mundial e a política econô-mica é nacional, então nossa região po-deria agir como uma economia de es-cala e propor-se objetivos desconecta-dos do epicentro da crise. Seria una for-ma emancipada de pensar, em um mun-do que hoje lembra a revolução socialis-ta de outubro na Rússia, como a primeira tentativa de construir uma sociedade pa-ra a satisfação das necessidades sociais estendidas. (Alai)

Julio Gambina é presidente da entidade argentina Fundação de

Pesquisas Sociais e Políticas (FISYP, na sigla em espanhol).

Tradução: Dafne Melo

A caçada aérea aos imigrantesMILITARIZAÇÃO Agência europeia de combate à imigração irregular se converteu no interlocutor entre a União Europeia e a indústria armamentista emergente no continente

po de pensamento – que organiza uma plataforma de encontros de instituições da UE e da ONU com representantes go-vernamentais e executivos da indústria armamentista, meios de comunicação especializados, outros think tanks, uni-versidades e ONGs.

Um novo posicionamento da UE per-mitirá que a Frontex possa adquirir equi-pamento militar diretamente (até agora, a agência era uma união de corpos de se-gurança estatais), fato que a converterá em cliente das empresas do Fórum e, ela própria, um corpo militar. Nesse sentido, o novo regulamento 2010/0039 da UE (ao qual a Directa pôde ter acesso) con-fi rma a militarização das fronteiras e dos controles de imigração. Além disso, ca-pacita a Frontex a recolher e processar dados de pessoas suspeitas de realizar atividades ilegais nas fronteiras e a ad-quirir equipamento militar. (Directa)

Tradução: Igor Ojeda

rista Tegen Wapenhandel, explica que o Esrif é mais que uma reunião para se intercambiar opiniões e pontos de vista. “Ele vem do espaço europeu onde os for-necedores e compradores têm se reunido em uma estrutura formal”, diz.

“É uma situação de ganhar ou ganhar para todos os participantes do Fórum. Iniciativas como essa são os passos que permitem à UE uma integração militar posterior”, acrescenta o ativista antimi-litarista, que conclui: “Note o número de empresas de armamento que participam no Fórum; algumas delas, depois do 11 de Setembro, criaram divisões especiais de segurança, pois este é um mercado em crescimento”.

Militarização das fronteirasA Frontex encabeça o terceiro grupo de

trabalho do Fórum. Ben Hages, investi-gador do Instituto Transnacional, diz que tal grupo é integrado por 80 mem-bros, 20 do lado da demanda (governos

ANÁLISE Com a gigantesca emissão de dólares levada a cabo recentemente, os estadunidenses colocaram em tensão o conjunto do sistema mundial, que, agora, deve decidir como atuar diante dos dólares que inundarão os mercados de capitais

Os EUA já deram mostras de sobra de ações unilaterais, como quando decidiu acabar com a paridade cambial estabelecida nos acordos de Bretton Woods de 1944

O desenvolvimento de um sistema integrado de vigilância europeu (...) já começou a chamar a atenção dos fabricantes de equipamentos de segurança como os drones

Questionar é o que os países do sul do mundo podem fazer na reunião do G20, mais do que legitimar a hegemonia dos EUA ao restabelecer o regime do capital com o olhar estadunidense

Primeiro voo do UAV no Reino Unido, realizado no País de Gales em abril deste ano

Defense Image Database

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Anúncio Republicano sugere que Obama gastou mais tempo jogando golfe que cuidando do país

Reprodução

NA EXPOSIÇÃO apresentada no III Encontro Civilização ou Barbárie, em Serpa, Portugal, Michel Chossu-dovsky refl ete sobre aquilo que defi -ne como “a fabricação do consenso” e “a fabricação da dissidência”.

Os dirigentes do sistema impe-rial compreenderam, após Seattle, que precisavam reformular a estra-tégia de resposta à vaga de protes-tos populares contra instituições co-mo a OMC, a OCDE, o Banco Mun-dial e o FMI, instrumentos do impe-rialismo.

A “fabricação do consenso” – ex-pressão divulgada por Chomsky – promovida pelas transnacionais que controlam a comunicação social, tem por objetivo desinformar e ma-nipular as massas, levando-as a for-mar a opinião através do discurso da mentira.

A “fabricação da dissidência”, con-cebida pelas elites econômicas, é mais complexa. Para difi cultar mo-dalidades de protesto radicais, visa a promover e controlar formas de oposição que não ameacem o fun-cionamento do sistema. É exercido através da presença em movimentos progressistas de intelectuais e sindi-

calistas que condenam o neolibera-lismo, mas não o capitalismo.

Uma oposição que acredita nu-ma reforma do capitalismo que “o humanize” não é apenas tolerável, mas útil. Alguns desses intelectuais não têm consciência plena do papel que desempenham. Outros esfor-çam-se para impedir tomadas de po-sição anti-imperialistas e consensos orientados para ações internaciona-listas.

Nesse contexto, a evolução do Fó-rum Social Mundial é esclarecedora.

Presentemente, muitos dos seus dirigentes tipifi cam o “reformador do capitalismo” inofensivo para o sistema. É o caso dos franceses Igna-cio Ramonet e Bernard Cassen. Va-le a pena recordar que, num dos fó-runs, em Porto Alegre, Mario Soares – o coveiro da Revolução Portugue-sa – foi o diretor do diário do even-to. Uma chuva de parlamentares eu-ropeus e latinos contribuiu para es-tabelecer a confusão no FSM. Uma percentagem elevada das ONGs que participam activamente da contesta-ção ao neoliberalismo está recheada de “informantes” a serviço de insti-tuições capitalistas, incluindo a CIA.

Tudo fazem para fragmentar o movi-mento popular.

Chossudovsky aborda uma reali-dade pouco conhecida: fundações privadas, com prestígio na chama-da “sociedade civil”, atuam hoje nos bastidores como grupos de pres-são, através de ativistas infl uentes, com renome internacional. São mui-tas, mas citarei apenas três gigan-tes: a Ford, a Rockefeller e a Stewart Mott.

Todas fi nanciam generosamente movimentos de contestação. Os di-rigentes de ONGS selecionadas não desconhecem a origem do dinheiro recebido, mas alegam que essas fun-dações são órgãos fi lantrópicos sem vínculos com o poder. As viagens aé-reas e os hotéis de intelectuais pro-gressistas respeitados são pagos por essas fundações.

Em outras palavras, o ativismo an-tiglobalização capitalista é, com fre-quência, segundo Chossudovsky, controlado por fundações a serviço da estratégia imperialista. Para de-monstrar abertura democrática, lí-deres de organizações como a Gre-en Peace, a Anistia Internacional e a Oxam são convidados a partici-

par do Fórum Econômico Mundial de Davos, a tribuna do grande capi-tal. Até o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, ali compareceu e foi abraçado por Soros.

A resposta das forças progressis-tas à manipulação das consciências através da “fabricação do consenso” e da “fabricação da dissidência” es-tá longe de ser satisfatória. A escas-sa presença de que dispõem na rede é mal aproveitada.

Revistas web de informação alter-nativa abrem as suas colunas a aven-tureiros da política, mascarados de revolucionários. Um charlatão como Heinz Dieterich, que chegou a suge-rir a capitulação das Farc, foi, du-rante anos, recebido em Havana co-mo amigo para, ultimamente. tomar distância e destilar veneno contra a Revolução Cubana.

Não faltam também intelectuais de “esquerda” que se contemplam como umbigo do mundo; alguns chegam ao extremo de promover homenagens a si próprios. A ampla divulgação pela mídia progressista do trabalho de Chossudovsky seria, creio, uma contribuição à luta contra o imperialismo.

O capitalismo fabrica e fi nancia a “dissidência” Miguel Urbano Rodrigues

O ativismo antiglobalização capitalista é, com frequência, segundo Chossudovsky, controlado por fundações a serviço da estratégia imperialista

Amy Goodman

COM O TÉRMINO das eleições de me-tade de mandato nos Estados Unidos, o maior vencedor ainda não foi declarado, porque a vitória foi dos grandes meios de comunicação. O maior perdedor, por en-quanto, tem sido a democracia.

As eleições legislativas de metade de mandato foram as mais caras da histó-ria dos Estados Unidos: custaram quase 4 bilhões de dólares, dos quais 3 bilhões foram gastos em publicidade. Pergunto o que aconteceria se o tempo publicitário para as campanhas fosse gratuito. Não se ouvem debates a esse respeito, e não se ouvem porque as corporações (conglo-merados empresariais, em geral, trans-nacionais) que manejam (manipulam e controlam) os meios de comunicação de massa obtêm imensos ganhos com os anúncios publicitários das campanhas políticas. No entanto, as ondas hertzia-nas (que trafegam pelo espectro radioe-létrico) utilizadas pelas empresas de mí-dia para emitir seus sinais são públicas.

Isso me recorda o livro escrito em 1999 pelo especialista em meios de comunica-ção Robert McChesney: Rich media, po-or democracy (Meios ricos, democracia pobre). Em seu livro, McChesney escre-ve: “Os radiodifusores têm pouco incen-tivo para brindar cobertura aos candida-tos, já que resulta de seu interesse forçá-los a publicitar suas campanhas”.

Somas ilimitadasO grupo de investigação Wesleyan Me-

dia Project, da Universidade Wesleyan, faz um acompanhamento da publicida-de política. Depois da recente sentença da Suprema Corte no caso “Citizens Uni-ted contra a Comissão Federal Eleitoral” pelo qual se autoriza às grandes corpo-rações (conglomerados empresariais) a destinar somas ilimitadas de dinheiro à campanha publicitária dos candidatos, o projeto de pesquisa sobre o compor-tamento da mídia destaca que “o tem-po de transmissão destinado a publici-dade tem-se saturado de anúncios rela-cionados com a Câmara de Representan-tes (deputados federais) e o Senado, que ocupam até 20% e 79%, respectivamen-te, do total de tempo em que as tevês es-tão no ar”.

Evan Tracey, fundador e presidente do grupo de análise de campanhas publici-tárias Campaign Media Analysis Group (Grupo de Análise das Campanhas na Mídia), predisse, em julho, em declara-ções ao jornal USA Today: “haverá mais dinheiro para ser investido do que es-paço de transmissão para ser compra-do”. Por sua vez, John Nichols, do se-manário The Nation, comentou que nos amáveis primeiros tempos da pu-blicidade política televisiva, os canais de TV nunca teriam permitido a transmis-são de um anúncio a favor de um candi-dato, seguido de outro anúncio apoian-do o candidato concorrente. Essa cons-tatação não levava em conta o patrimô-nio acumulado dos grandes meios. Mas, nos dias de hoje, veicular anúncios po-líticos é como alugar um imóvel. Bem-vindos ao “mundo feliz” das campanhas feitas com bilhões de dólares.

RetrocessoNo passado, já houve intentos de re-

gular o uso das ondas hertzianas trafe-gando pelo espectro radioelétrico pa-ra que estejam a serviço da população durante as eleições. Nos últimos anos, a tentativa mais ambiciosa fi cou conhe-cida como “Reforma do fi nanciamento das campanhas eleitorais de McCain-Feingold”.

Durante o debate sobre essa histórica legislação, tanto democratas como re-publicanos fi zeram referência ao pro-blema das exorbitantes taxas de publi-cidade televisiva. O senador pelo estado de Nevada John Ensign, republicano, lamentava: “As emissoras não queriam nem pensar nas campanhas eleitorais porque era a época do ano em que ga-nhavam menos dinheiro devido ao bai-xo valor atribuído às cotas publicitárias durante esse período. Agora, as eleições são seus momentos preferidos já que, de fato, é uma das épocas do ano com mais ampla margem de lucros”. No fi m, pa-ra que esse projeto de lei fosse aprova-

do, omitiram-se as cláusulas referentes ao “tempo de veiculação de propagan-da pública”.

A sentença dada no caso do grupo de pressão conservador Citizens United neutraliza efi cazmente a reforma do fi -nanciamento das campanhas propos-ta por McCain-Feingold. Não há como imaginar ou mensurar o que será gasto nas eleições presidenciais de 2012.

O senador por Wisconsin, Russ Fein-gold (coautor do projeto), perdeu a oportunidade de ser reeleito em sua dis-puta contra o praticamente autofi nan-ciado multimilionário Rum Johnson. O editorial do jornal Wall Street Jour-nal celebrou a esperada derrota de Fein-gold. O jornal é propriedade da corpora-ção transnacional News Corp, de Rupert Murdoch, que possui diversos veículos – incluindo a cadeia de televisão Fox – e que doou quase 2 milhões de dólares pa-ra a campanha dos republicanos.

Commodity“As eleições se transformaram em

uma commodity, um produto funda-mental para a alta lucratividade dessas rádios e canais de televisão”, me disse no dia das eleições Ralph Nader, defen-sor dos consumidores e ex-candidato a presidente.

Ele também falou: “As ondas de rádio e TV são públicas e, como sabemos, per-tencem ao povo. O povo é o proprietá-rio, e as redes de rádio e televisão são as titulares das licenças para usar essas on-

das; digamos que são como inquilinos. No entanto, para obter sua habilitaçãoanual, não pagam nada para o FCC [Fe-deral Communications Commission, aComissão Federal de Comunicações, ór-gão regulador dos canais nos EUA]. As-sim, seria de grande efi cácia persuasivase tivéssemos políticas públicas que im-pusessem módicas condições de preço(que os radiodifusores paguem pela per-manência de suas outorgas!) para obter a licença que permite a estas redes derádio e televisão aceder ao imensamente lucrativo controle das ondas públicas deradiofrequência 24 horas por dia. Pode-ríamos lhes dizer que, como parte do in-tercâmbio (do contrato social) por con-trolar estes bens comuns, deveriam des-tinar certa quantidade de tempo, tempo gratuito no rádio e na televisão, para oscandidatos a cargos públicos através de eleições”.

Esse tema deveria ser posto em debatenos grandes meios de comunicação, da-do que é neles que a maioria dos esta-dunidenses obtém informação. Mas asemissoras de rádio e televisão têm um profundo confl ito de interesses. Em sua ordem de prioridades, seus lucros es-tão acima de nosso processo democrá-tico. Seguramente não ouviremos falardesse tema nos programas de entrevis-tas políticas dos domingos pela manhã (Denis Moynihan colaborou na produ-ção jornalística desta coluna). (Demo-cracy Now!)

Amy Goodman é a âncora do noticiário internacional Democracy

Now! e coautora do livro Os que lutam contra o sistema: heróis

ordinários em tempos extraordinários nos Estados Unidos.

* Texto traduzido da versão em castelhano e revisado do original em inglês por Bruno Lima Rocha;

originalmente publicado em português em Estratégia & Análise.

Mídia rica, democracia pobreANÁLISE As eleições legislativas foram as mais caras da história dos EUA: custaram quase 4 bilhões de dólares, dos quais 3 bilhões foram gastos em publicidade nos meios de comunicação.

Nos dias de hoje, veicular anúncios políticos é como alugar um imóvel. Bem-vindos ao “mundo feliz” das campanhas feitas com bilhões de dólares Não há como

imaginar ou mensurar o que será gasto nas eleições presidenciais de 2012

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américa latinade 11 a 17 de novembro de 201012

Orsetta Bellani de San Cristóbal de Las Casas (México)

NOS ÚLTIMOS MESES, há um grande movimento em Santiago El Pinar. Es-cavadoras que arranham o solo, cami-nhões que vão e vêm e longas fi leiras de operários que empilham tijolos nas margens de uma rua em obras, com a boca coberta por lenços para se proteger da poeira que levantam dos carros e dos veículos do exército, que entram e saem continuamente no acampamento mili-tar deste povoado.

Parece estranho tanto movimento ao redor de uma pequena comunidade in-dígena dos Altos de Chiapas, a uma hora de San Cristóbal de Las Casas. Um gru-po de casas estreitas ao redor da igreja e uma esplêndida vista sobre as verdes montanhas chiapanecas, a uns três mil metros sobre o nível do mar. Ali, cons-trói-se uma das chamadas Cidades Ru-rais Sustentáveis. Já existe uma Cida-de Rural em Chiapas. Está no norte do estado e se chama Novo Juan de Grijal-va. A “velha” Juan de Grijalva se viu afe-tada, em 2007, por fortes chuvas que obrigaram os habitantes da Zona a se-rem “transferidos” para estes novos nú-cleos urbanos.

Mas Juan Sabines, governador do es-tado de Chiapas, anunciou a criação desses novos núcleos muito antes que as águas arrastassem as casas de mui-tos indígenas chiapanecos. As Cidades Rurais formam parte de um plano que o governo anunciou para acabar com a pobreza e que o presidente do México, Felipe Calderón, apoia porque, disse ele, essas cidades permitirão aos habitantes desta região viver melhor.

“No México, há uma enorme dispersão da população. Se o governo tem que le-var um cabo de luz ou um cano de água, é mais fácil levá-los para mil pessoas do que para dez famílias”, argumentou Cal-derón em uma visita à região.

BID e Banco MundialNo entanto, esta não é uma iniciativa

do governo de Chiapas. A primeira Ci-dade Rural do estado mexicano obede-

ce a um plano político e econômico de-senhado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e, em especial, pelo Banco Mundial: um plano que se inclui em um projeto coletado em um informe publicado há dois anos, deno-minado “Nova Geografi a Econômica”.

Em 2008, os presidentes do Méxi-co, Colômbia e outros países da Amé-rica Central fi rmaram o acordo comer-cial Plano Mesoamérica, uma nova ver-são do Plano Puebla-Panamá cujo fi m é

criar corredores comerciais e infraestru-turas que conectem o sul do México com a Colômbia. Dessa forma, as transnacio-nais terão via livre para chegar aos re-cursos naturais da região e transferi-los para os Estados Unidos.

As Cidades Rurais representam um passo a mais para levar adiante o pro-jeto de exploração pensado pelas trans-nacionais, muitas delas já instaladas em Chiapas. As comunidades que se encon-tram nessa região representam um obs-táculo para as grandes empresas mine-radoras.

Agora, as terras abandonadas das co-munidades que viverão em novos cen-tros estarão, por fi m, disponíveis para as multinacionais mineradoras. Chia-pas é rica em recursos naturais e sua natureza virgem proporciona, também, grandes potenciais turísticos. Para pre-parar o terreno, durante os últimos anos estão sendo abertas muitas estradas de acesso às comunidades indígenas que vivem na selva.

A construção das Cidades Rurais Sus-tentáveis se converteram em um negó-cio: muitas empresas mexicanas e es-trangeiras participam do projeto comfi ns lucrativos, por meio de suas fun-dações.

ContrainsurgênciaMas o programa Cidades Rurais vai

além: ele faz parte do Plano de Desen-volvimento Chiapas Solidária, que, portrás da fachada assistencialista, escon-de a estratégia contrainsurgente do go-verno contra o Exército Zapatista de Li-bertação Nacional (EZLN). A guerra debaixa intensidade em Chiapas não secombate só treinando paramilitares,mas também através de programas deajuda às famílias. Assim, provoca-se adivisão das comunidades, criando ten-sões entre quem aceita as ajudas do go-verno e quem, como os zapatistas, nãoa aceitam.

O Programa Cidades Rurais Sustentá-veis permite controlar as comunidades,a espoliação de suas terras e, sobretudo,mudar seus costumes. Destrói-se o mo-do de vida camponesa-indígena e desin-tegra-se a vida comunitária.

As inundações de 2007 foram o pre-texto que permitiu ao governo chiapa-neco transferir a população para den-tro da primeira Cidade Rural de Nue-vo Juan Grijalva. Não foi fácil conven-cer as centenas de pessoas a deixar su-as casas para serem recolocadas em um lugar asséptico e impessoal, onde a úni-ca possibilidade será a de se converterem mão de obra barata para as minas,centros turísticos, maquiladoras (fábri-cas de roupa onde os trabalhadores são superexplorados) ou grandes cultivos que surgirão nas terras por eles aban-donadas.

Não está claro qual será agora o argu-mento que o governo de Sabines inven-tará para convencer os habitantes das quatro comunidades próximas a Santia-go El Pinar para que deixem suas casas.Nem sequer se sabe o motivo pelo qualse escolheu justamente essa região pa-ra a construção da segunda Cidade Ru-ral de Chiapas. (Diagonal)

Tradução: Cristiano Navarro

Falsas cidades, interesses escusosMÉXICO Governo cria Cidades Rurais para controlar os povos indígenas de Chiapas e explorar suas terras

As Cidades Rurais representam um passo a mais para levar adiante

o projeto de exploração pensado pelas transnacionais, muitas delas já

instaladas em Chiapas

O presidente mexicano Felipe Calderón visita a Cidade Rural Novo Juan de Grijalva em Chiapas

Alfredo Guerrero/Gobierno Federal