edição 311 - de 12 a 18 de fevereiro de 2009

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Há meio século, a Re- volução Cubana dava seus primeiros passos. Resultado de dois anos de luta intensa e muitos outros de batalhas polí- ticas. A partir desta edi- ção, o Brasil de Fato publica uma série de re- portagens: história, luta, conquistas, obstáculos e desafios. A primeira delas trata da chegada de Fidel e seus homens na ilha, a bordo do iate Granma. Págs. 10 e 11 Quando Fidel e seus homens chegaram para a Revolução São Paulo, de 12 a 18 de fevereiro de 2009 www.brasildefato.com.br Ano 7 • Número 311 Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,50 Juros bancários altos freiam produção e geram desempreg o Os altos juros cobrados pelos bancos no Brasil criam entraves ao desenvolvimento produtivo do país. O elevado custo do crédito aumenta as despesas das empresas que são levadas a demitir para manter sua margem de lucro. Assim, os juros altos, além de limitarem o consumo, tornando mais caro comprar a prazo, reduzem a renda da população. Na ponta, desaquecimento da economia e aprofundamento da crise econômica. Enquanto isso, os lucros dos bancos continuam subindo, conforme os dados divulgados pelo Santander no dia 5. Pág. 3 Na última semana, o Bra- sil perdeu um de seus maio- res símbolos da luta pela reforma agrária. O deputa- do federal Adão Pretto (PT- RS) faleceu, aos 63 anos, em decorrência de com- plicações em uma cirurgia para a retirada do pâncreas. Fundador do MST, do PT e da CUT, Adão nunca se esqueceu da sua origem pobre e camponesa e será lembrado pela defesa de um país mais justo. Pág. 8 A luta pela terra perde Adão Pretto ISSN 1978-5134 A Agência Nacional de Energia Elétrica autorizou, dia 3, reajuste nas tarifas de energia para São Paulo, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. “É um período de cri- se muito difícil, e nos parece imoral, nesse momento, qualquer aumento no custo de vida dos trabalhadores”, avalia Antonio Trierveiler, do MAB. Pág. 4 “Reajuste na conta de luz é imoral” Desde o início do ano, a letalidade policial na região metropolitana de Belém (PA) aumentou, afirma Cibele Kuss, ouvidora do Sistema de Segurança Pública do Es- tado do Pará. Dos 13 homicí- dios ocorridos, 90% apresen- tam características de execuções sumárias. Pág. 7 Jovens pobres e negros na mira da polícia do PA 8,5 bilhões de dólares é a quantia que o governo francês deve injetar nas montadoras do país – como contrapartida exige a garantia dos empregos. O valor corresponde a cerca de R$ 19 bilhões. Com esse dinheiro, seria possível transferir diretamente cerca de R$ 2.700 para cada um dos 7 milhões de franceses que vivem abaixo da linha da pobreza. AFOGANDO EM NÚMEROS O Supremo Tribunal Fe- deral (STF) negou pedido de liminar feito pelo governo da Itália para anular o re- fúgio político concedido ao escritor e ex-ativista Cesare Battisti. A negativa foi do ministro Cezar Peluso, em resposta à liminar – que constava de um mandado de segurança – protocolada pe- lo governo da Itália no STF. O ministro também deu prazo de dez dias para que a defesa de Battisti se ma- nifeste sobre o mérito do mandado de segurança ita- liano. Após esse prazo, ain- da será concedida vista dos autos ao procurador-geral da República. Segundo o governo italia- no, o benefício concedido pelo Brasil a Cesare Battisti – condenado à prisão per- pétua em seu país sob acu- sação de quatro assassinatos na década de 1970, época em que militava no grupo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) – tem “o indisfarçável objetivo de obstruir a continuidade do processo de extradição de Battisti, que tramita no Su- premo”, além de afrontar a Constituição Brasileira e os tratados internacionais. Battisti foi preso preventi- vamente no Brasil, em abril de 2007, e segue detido na Penitenciária da Papuda, no Distrito Federal, à espera da decisão do STF sobre o processo de extradição, após a concessão do refúgio dada pelo governo brasileiro no dia 13 de janeiro. Dois dias depois (15), a defesa de Bat- tisti entrou com uma petição no STF para que o tribunal autorizasse a saída do italia- no da prisão (leia mais so- bre Battisti na página 2). STF nega liminar da Itália contra refúgio a Battisti Cuba, 50 anos Em Paraisópolis, um levante contra a desigualdade A revolta dos moradores de Paraisópolis, em São Pau- lo (SP), que no dia 2 ataca- ram carros e lojas em protes- to contra a polícia, é o clímax de uma tensão alimentada há 40 anos pela criminaliza- ção da pobreza. Paraisópolis, porém, é a comunidade que abriga os trabalhadores que ergueram e servem de mão-de-obra barata para o luxuoso bairro Morumbi, cujos moradores exploram e humilham os habitantes da vizinha pobre. Pág. 5 Aprovada a nova Constituição na Bolívia, o governo Evo Morales parte agora para o de- safio de colocar em prá- tica as mudanças conti- das na nova legislação. Para Jerjes Justiniano, do Partido Socialista em Santa Cruz, será preciso negociar com todas as forças políticas do país, inclusive com a oposição de direita, an- tes de recorrer à pres- são popular. Pág. 9 Implantar a Constituição: o novo desafi o do governo Evo Igor Ojeda Pescadores remam sobre o local onde o Granma encalhou Edson Santos/Secom Almeida Rocha/Folha Imagem Policiais militares revistam moradores da favela Paraisópolis, em SP, durante a Operação Saturação, que conta com 400 homens e 100 carros Reprodução

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Uma visão popular do Brasil e do mundo Os altos juros cobrados pelos bancos no Brasil criam entraves ao desenvolvimento produtivo do país. O elevado custo do crédito aumenta as despesas das empresas que são levadas a demitir para manter sua margem de lucro. Assim, os juros altos, além de limitarem o consumo, 8,5 bilhões de dólares é a quantia que São Paulo, de 12 a 18 de fevereiro de 2009 www.brasildefato.com.brAno7•Número311 Cuba, 50 anos AFOGANDO EM NÚMEROS Edson Santos/Secom

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Page 1: Edição 311 - de 12 a 18 de fevereiro de 2009

Há meio século, a Re-volução Cubana dava seus primeiros passos. Resultado de dois anos de luta intensa e muitos outros de batalhas polí-ticas. A partir desta edi-ção, o Brasil de Fato publica uma série de re-portagens: história, luta, conquistas, obstáculos e desafios. A primeira delas trata da chegada de Fidel e seus homens na ilha, a bordo do iate Granma. Págs. 10 e 11

Quando Fidel e seus homens chegaram para a Revolução

São Paulo, de 12 a 18 de fevereiro de 2009 www.brasildefato.com.brAno 7 • Número 311

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,50

Juros bancários altos freiam produção e geram desempregoOs altos juros cobrados pelos bancos no Brasil criam entraves ao desenvolvimento produtivo do país. O elevado custo do crédito aumenta as despesas das empresas que são levadas a demitir para manter sua margem de lucro. Assim, os juros altos, além de limitarem o consumo,

tornando mais caro comprar a prazo, reduzem a renda da população. Na ponta, desaquecimento da economia e aprofundamento da crise econômica. Enquanto isso, os lucros dos bancos continuam subindo, conforme os dados divulgados pelo Santander no dia 5. Pág. 3

Na última semana, o Bra-sil perdeu um de seus maio-res símbolos da luta pela reforma agrária. O deputa-do federal Adão Pretto (PT-RS) faleceu, aos 63 anos, em decorrência de com-plicações em uma cirurgia para a retirada do pâncreas. Fundador do MST, do PT e da CUT, Adão nunca se esqueceu da sua origem pobre e camponesa e será lembrado pela defesa de um país mais justo. Pág. 8

A luta pela terra perde Adão Pretto

ISSN 1978-5134

A Agência Nacional de Energia Elétrica autorizou, dia 3, reajuste nas tarifas de energia para São Paulo, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. “É um período de cri-se muito difícil, e nos parece imoral, nesse momento, qualquer aumento no custo de vida dos trabalhadores”, avalia Antonio Trierveiler, do MAB. Pág. 4

“Reajuste na conta de luz é imoral”

Desde o início do ano, a letalidade policial na região metropolitana de Belém (PA) aumentou, afirma Cibele Kuss, ouvidora do Sistema de Segurança Pública do Es-tado do Pará. Dos 13 homicí-dios ocorridos, 90% apresen-tam características de execuções sumárias. Pág. 7

Jovens pobres e negros na mira da polícia do PA

8,5 bilhões de dólares é a quantia que

o governo francês deve injetar nas montadoras

do país – como contrapartida exige a

garantia dos empregos.

O valor corresponde a cerca de R$ 19 bilhões.

Com esse dinheiro, seria possível transferir

diretamente cerca de R$ 2.700

para cada um dos 7 milhões de franceses

que vivem abaixo da linha da pobreza.

AFOGANDO EM NÚMEROS

O Supremo Tribunal Fe-deral (STF) negou pedido de liminar feito pelo governo da Itália para anular o re-fúgio político concedido ao escritor e ex-ativista Cesare Battisti. A negativa foi do ministro Cezar Peluso, em resposta à liminar – que constava de um mandado de segurança – protocolada pe-lo governo da Itália no STF.

O ministro também deu prazo de dez dias para que a defesa de Battisti se ma-nifeste sobre o mérito do mandado de segurança ita-liano. Após esse prazo, ain-da será concedida vista dos autos ao procurador-geral da República.

Segundo o governo italia-no, o benefício concedido pelo Brasil a Cesare Battisti – condenado à prisão per-pétua em seu país sob acu-sação de quatro assassinatos

na década de 1970, época em que militava no grupo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) – tem “o indisfarçável objetivo de obstruir a continuidade do processo de extradição de Battisti, que tramita no Su-premo”, além de afrontar a Constituição Brasileira e os tratados internacionais.

Battisti foi preso preventi-vamente no Brasil, em abril de 2007, e segue detido na Penitenciária da Papuda, no Distrito Federal, à espera da decisão do STF sobre o processo de extradição, após a concessão do refúgio dada pelo governo brasileiro no dia 13 de janeiro. Dois dias depois (15), a defesa de Bat-tisti entrou com uma petição no STF para que o tribunal autorizasse a saída do italia-no da prisão (leia mais so-bre Battisti na página 2).

STF nega liminar da Itália contra refúgio a Battisti

Cuba, 50 anos

Em Paraisópolis, um levante contra a desigualdadeA revolta dos moradores

de Paraisópolis, em São Pau-lo (SP), que no dia 2 ataca-ram carros e lojas em protes-

to contra a polícia, é o clímax de uma tensão alimentada há 40 anos pela criminaliza-ção da pobreza. Paraisópolis,

porém, é a comunidade que abriga os trabalhadores que ergueram e servem de mão-de-obra barata para o

luxuoso bairro Morumbi, cujos moradores exploram e humilham os habitantes da vizinha pobre. Pág. 5

Aprovada a nova Constituição na Bolívia, o governo Evo Morales parte agora para o de-safio de colocar em prá-tica as mudanças conti-das na nova legislação. Para Jerjes Justiniano, do Partido Socialista em Santa Cruz, será preciso negociar com todas as forças políticas do país, inclusive com a oposição de direita, an-tes de recorrer à pres-são popular. Pág. 9

Implantar aConstituição: onovo desafi o do governo Evo

Igor Ojeda

Pescadores remam sobre o local onde o

Granma encalhou

Edson Santos/Secom

Almeida Rocha/Folha Imagem

Policiais militares revistam moradores da favela Paraisópolis, em SP, durante a Operação Saturação, que conta com 400 homens e 100 carros

Rep

rodu

ção

Page 2: Edição 311 - de 12 a 18 de fevereiro de 2009

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Patrícia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam),

João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] Para anunciar: (11) 2131-0800

Estrebucha, baby, estrebucha!

NOS PRÓXIMOS dias, o Supremo Tri-bunal Federal (STF) se reunirá para decidir sobre o futuro de Cesare Battis-ti, cidadão italiano acusado de crimes políticos da luta armada dos chamados “anos de chumbo” em seu país, a quem o governo brasileiro concedeu, em de-cisão soberana, o status de refugiado político. Com a decisão adotada pelo ministro Tarso Genro, o caminho do pedido de extradição de Cesare Battisti, preso desde 2007 em Brasília, deverá ter o caminho do arquivo. Deverá? Eis a questão que hoje movimenta anima-das fi guras expressivas do pensamento de direita dos dois países diretamente envolvidos – Itália e Brasil – e de toda a aldeia global.

A decisão do Supremo será tomada num contexto de franca ofensiva de comunicação dos reacionários dos dois países. A jurisprudência é clara, fi xada em decisões anteriores do STF simila-res ao caso de Battisti, inclusive as que envolvem fugitivos da Justiça italiana procurados ou condenados por ações armadas nos anos de 1970, quando a Corte brasileira negou os pedidos de ex-tradição com fundamentos praticamen-te idênticos aos adotados pelo Ministro Genro em sua decisão atualmente tão contestada. Ela própria considerou constitucional dispositivos previstos na Lei 9.474/97, a mesma base utilizada para o parecer do Procurador Geral de Justiça em defesa do arquivamento do pedido de extradição movido pelo governo italiano contra Battisti, após a decisão soberana do governo brasileiro lhe concedendo o refúgio.

O que cria o suspense sobre a manifes-tação do Supremo é o contexto de luta política que se seguiu, tanto no plano interno quanto no internacional, contra a decisão de Tarso Genro, amparada em unânime e bem articulada grita dos meios de comunicação de massa dos dois países.

Sucessivos governos italianos assi-milaram com aparente tranquilidade o asilo informal concedido a Battisti e outros participantes da luta armada na Itália pelo presidente François Mit-terrand. Por mais de uma década, eles viveram em paz na França, ali constituí-ram família e desenvolveram atividades profi ssionais, sob a condição imposta pelo governo socialista que os acolhia de renúncia formal à luta armada. Bat-tisti assinou tal declaração, casou-se, teve duas fi lhas, escreveu livros e cons-truiu sua vida na França até que os ven-tos conservadores que varrem o Velho Continente levaram ao poder a direita francesa e Jacques Chirac lhes cassou o status conferido por Mitterrand. O mesmo não sucedeu desta feita.

Alguns “crimes” cometidos na decisão do ministro da Justiça no caso Battisti açodaram a direita italiana em sua re-

ação furiosa. Um deles foi a menção à violação aos direitos humanos pelo Es-tado italiano, extrapolando as próprias leis de exceção editadas no período: “é público e incontroverso, igualmente, que os mecanismos de funcionamento da exceção operaram, na Itália, também fora das regras da própria excepciona-lidade prevista em lei. Tragicamente, também no Estado requerente, no período dos fatos pertinentes para a consideração da condição de refugiado, ocorreram antes momentos da História em que o ‘poder oculto’ aparece nas sombras e nos porões, e então supera e excede a própria exceção legal. Nessas situações, é possível verifi car fl agrantes ilegitimidades em casos concretos, pois a emergência de um poder escondido ‘é tanto mais potente quanto menos se deixa ver’. Isso é professado em nome da preservação do Estado contra os in-surgentes, que não é menos ilegítima do que as ações sanguinárias dos insurgen-tes contra a ordem”, afi rma Genro em sua decisão (parágrafos 17 e 18).

Berlusconi e a direita italiana não gos-taram de ver apenas o seu passado re-mexido. Ao analisar o pedido de Battisti e fundamentar sua decisão igualmente na sua condição de perseguido e nos riscos à sua vida e integridade pessoal decorrentes da extradição solicitada pela Itália, o Ministro Genro também aponta elementos de continuidade entre a situa-ção de exceção vivida nos anos de 1970 e a ofensiva da nova velha direita italiana de retomar os processos contra os mili-tantes da luta armada daquele período. “Concluo entendendo, também, que o contexto em que ocorreram os delitos de homicídio imputados ao recorrente, as condições nas quais se desenrolaram os seus processos, a sua potencial impos-sibilidade de ampla defesa face à radi-calização da situação política na Itália, no mínimo geram uma profunda dúvida sobre se o recorrente teve direito ao de-vido processo legal. Por consequência, há dúvida razoável sobre os fatos que, segundo o recorrente, fundamentam seu temor de perseguição”, encerra Genro sua decisão (parágrafos 43 e 44).

Assim, o presidente espetaculoso da

Itália, montado em sua coligação que in-tegra todas as tonalidades do pensamen-to mais direitista de seu país, incluindo-se aí os neofascistas e racistas da Liga do Norte, e ainda respaldado pelos meios de comunicação de que é proprietário privado e dos meios de comunicação estatais sob seu comando, transformou o caso Battisti num elemento de “união nacional” e de legitimação do Estado De-mocrático de Direito italiano pretensa-mente atingido pela decisão do governo brasileiro.

A direita tupiniquim alvoroçada encontrou um mote para fustigar o go-verno Lula, no contexto de uma crise internacional que elevou ainda mais a popularidade do Presidente e do próprio governo a patamares recordes de mais de 80%. Alinharam-se assim os principais editorialistas dos jornais escritos e as redes de televisão no ataque à soberania brasileira, reproduzindo os argumentos fascistas de autoridades italianas que nos remetem à condição de República de Ba-nanas a desafi ar o berço do Direito e da Civilização Cristã Ocidental.

Nessa cruzada, direitas ítalo-brasilei-ras se juntaram, pressões diplomáticas injustifi cáveis foram adotadas na Itália e justifi cadas no Brasil, expressões pre-conceituosas e discriminatórias ofensivas contra o povo brasileiro foram veiculadas por meios impressos, rádio, TV e internet por uma direita sem bandeiras e sem outras perspectivas para o Brasil que não seja a submissão covarde aos ditames dos governos dos países que compõem o G-8, mesmo que econômica e politi-camente decadentes, como é o caso da corte bufa de Berlusconi.

Vejamos como o STF resolverá o ‘imbroglio’. Se manterá suas decisões anteriores, baseadas no direito e na Constituição brasileiras, ou se fará média com a mídia e os setores conservadores transnacionais em campanha para fazer de Battisti um instrumento da afi rmação de sua prepotência e autoritarismo.

Renato Simões é Secretário Nacional de Movimentos Sociais e Políticas Setoriais do PT

e conselheiro nacional do Movimento Nacio-nal de Direitos Humanos (MNDH).

debate Renato Simões

Battisti e a união das direitascrônica Dom Demétrio Valentini

OS PODERES da nossa República andam um tanto combalidos – nem muito mais, nem muito menos que de costume. Apenas – como sempre que a aliança PSDB-DEM não têm seus interesses atendidos – a grande mídia estrebucha.

Ora, é óbvio que todos sabemos quem é o PMDB, quem é o senador José Sarney, o deputado Michel Te-mer e tutti quanti nesse circo em que se transformou a política institucio-nal. Portanto, tolice continuarmos a trombetear as falcatruas ou outras estripulias desses senhores, ou dos articuladores de suas candidaturas. Igual tolice seria mais uma vez nos dedicarmos às biografi as do ex-presi-dente e atual senador, e dos articula-dores de sua candidatura à presidên-cia do Senado.

Ridículo igualmente ocuparmos nossas páginas com declarações de vestais tucanas ou do DEM – escan-dalizadas, “em nome da probidade”, com o que se passou no Congresso Nacional para a escolha dos presiden-tes de ambas Augustas Casas.

O cálculo presidencialInútil também querer desgastar

os mais de 80% de popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, denunciando o apoio que este teria dado tanto à candidatura do senador Sarney quanto à do deputado Temer (mesmo este tendendo mais para atu-canar-se), contra, respectivamente, o senador petista Tião Vianna e o depu-tado Aldo Rebelo, do PCdoB – parti-do que compõe a base governista.

É sobejamente conhecido que o pre-

sidente Luiz Inácio não é um homem de partido, e esse seu comportamento não tem qualquer novidade.

Ou seja, o presidente trabalha sem-pre com um cálculo frio, simples e pessoal. Com relação às presidências da Câmara e do Senado, o PT não tem outra alternativa senão engolir mais este sapo, e continuar a apoiá-lo (aliás, apesar de tudo, seria um delí-rio pior se não o fi zesse – o que nada justifi ca); de certo modo, o PCdoB, idem. Certamente, pouco lhe importa também o destino do governador Jackson Lago – real politik é isso. Pragmatismo também é isso – e o presidente Luiz Inácio jamais passou de um pragmático.

Portanto, melhor (em seu cálculo) garantir o incerto apoio do PMDB, uma vez que o certo – como vimos – fi ca sem outra alternativa que não apoiá-lo.

E, depois de tudo, vá lá saber o que se negocia nos bastidores, no que diz respeito ao escândalo envolvendo o senhor Daniel Dantas – os famosos dossiês, que se tornaram um hit po-lítico pelas mãos do senhor Antônio Carlos Magalhães (DEM-BA) e que, ofi ciosamente, hoje têm o grande po-der de decisão.

Mas, do caso Dantas, a grande mí-dia comercial e seus apaniguados não querem nem ouvir falar, pois envolve muito diretamente os dois primeiros presidentes (e suas respectivas cor-tes) que aquela mídia elegeu no pós-

ditadura: seu enfant gâté (criança mimada) Fernando Collor de Mello – que ela própria viria a destronar em seguida; e o seu príncipe, o douto Fer-nando Henrique Cardoso, que, aliás, uma colunista da Folha de S. Paulo, habilmente e sem afi rmá-lo dire-tamente, classifi cou de um “pitbull abandonado”.

O homem dos porõesNuma República e numa demo-

cracia, se o que apontamos acima já é motivo de sobra para acendermos todos os sinais de alerta, mais grave porém é o fato do corregedor-ge-ral da Câmara Federal ter sido um torturador durante a mais recente ditadura.

O deputado Edmar Moreira (DEM-MG), o “tenente de óculos ray-ban” que torturava os presos políticos de Linhares (MG), acabou por renunciar à Corregedoria. Mas ninguém pense que por haver sido identifi cado e de-nunciado enquanto torturador nos anos de 1970. Não, não foi isso. Sua renúncia se deveu ao fato de ter frau-dado sua declaração de bens, ao não declarar corretamente o valor de um castelo que mantém. O castelo Mo-nalisa, no município mineiro de São João Nepomuceno.

No caso do ex-tenente, porém, o DEM foi rápido no gatilho. Condenou seu tenente-deputado e o obrigou a deixar o cargo, pois o austero DEM não é e nunca foi um partido de fal-

catruas... De senhores de generais-presidentes para a situação de terem tenentes-deputados, é um bom sinal de decadência.

Detendo-se no castelo Monalisa, a grande mídia comercial faz absoluta questão de elogiar a presteza das ves-tais do DEM e esconder o torturador atrás do apelido de “O Homem do Castelo”.

Ou seja, aqui, baby, não estrebu-cha...

O antro do JudiciárioNo entanto, se no Executivo e Legis-

lativo as coisas se passam desse mo-do, as questões do Judiciário perma-necem trancadas a sete chaves. Tam-bém aqui a grande mídia comercial se cala. Pelo menos enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) permanecer sob a custódia do doutor Gilmar Men-des, essa impoluta fi gura ali alocada pelo “pitbull abandonado”.

Quando pensávamos que nenhum outro ministro do STF superaria os desmandos e transgressões das nor-mas constitucionais cometidos pelo doutor Marco Aurélio Mello – primo do ex-presidente Collor, que ali o co-locou para barrar qualquer investida legal contra suas trampolinagens, os fados nos brindam com o doutor Mendes.

Apesar de todas as advertências prévias de juristas da envergadura do professor Dalmo Dallari, e apesar de todas as denúncias de corrupção

recentemente trazidas a público pela revista Carta Capital, lá permanece inamovível o doutor Gilmar, qual uma rocha senhora de todos os dossi-ês secretos.

Depois de livrar o banqueiro Daniel Dantas do xilindró, do mesmo modo como doutor Marco Aurélio procede-ra com o senhor Salvatore Cacciola, o doutor Gilmar dedica-se hoje a se ar-ticular com os fascistas e neofascistas italianos, na tentativa de extraditar o escritor e ex-militante Cesare Battisti. A grande mídia comercial, parte da mesma aliança, não estrebuchou. Aplaudiu.

O papel dos trabalhadores No entanto, não somos pessimistas.

Apesar de tudo, a conquista do atual Estado de Direito, com todas as limi-tações, é um avanço, se lembramos da ditadura inaugurada, há exata-mente 45 anos, com o golpe de 31 de março de 1964.

Sua consolidação e aprofundamen-to, porém, só será possível se as or-ganizações e movimentos autônomos dos trabalhadores e do povo, sem abandonar sua estratégia que defi ne como principal terreno de disputas as ruas e praças, passarem a intervir também na política institucional. E não apenas nos momentos de crise – como no recente caso de defesa do governador Jackson Lago, do Maranhão, alvo da fúria e sanha do senador Sarney, mas também através de uma ação regular e até preventiva, interferindo em todos os níveis dessa disputa e ampliando os instrumentos de controle social do Estado.

de 12 a 18 de fevereiro de 20092

editorial

Centenário de dom HelderNO DIA 7 de fevereiro completaram cem anos do nasci-mento de dom Helder Camara. Para personagens com di-mensão histórica, a roupagem adequada é a dos séculos.

De fato, o arco de um século situa melhor a importância e a grandeza de dom Helder. É muito acertada a iniciativa de se promover um “ano centenário”, para recolher a gran-de herança deixada por ele.

A iniciativa parte de diversas instituições, a começar pela CNBB, com a presença do seu atual presidente, dom Lyrio Rocha, na missa de abertura do “ano centenário”, em Reci-fe, defronte à Igreja das Fronteiras.

A Cáritas Brasileira se sente particularmente ligada à pes-soa de dom Helder, que foi o seu fundador, no ano de 1956. Por isso, ela se antecipou e promoveu uma homenagem es-pecial ao seu primeiro secretário-geral e presidente no dia 6, à noite. Quando a liturgia tem uma data especial a celebrar, ela começa no dia anterior, com as “primeiras vésperas”. A Cáritas se incumbe de entoar os primeiros louvores, sinali-zando que a celebração é de “primeira classe”!

Entre tantos predicados, dom Helder foi indiscutivel-mente um grande profeta e um sonhador das grandes uto-pias humanas e cristãs.

Para descortinar os amplos horizontes suscitados pelo centenário do seu nascimento, podemos lembrar os dois grandes sonhos de dom Helder. Ambos em vista da passa-gem do milênio, que ele nem pôde ver. Como Moisés que não chegou a pisar a terra prometida, só a enxergando do alto do Monte Nebo, assim dom Helder deixou este mundo em 1999, antes da chegada do novo milênio, que ele so-nhou com a generosidade de suas grandes utopias.

Pois bem. Para o mundo, dom Helder sonhou o fi m da miséria e da fome. Um mundo justo, em paz, reconciliado e fraterno, onde ninguém precisasse viver na miséria e pas-sando fome. Este é o mundo que dom Helder sonhou para o milênio que já estamos vivendo!

Para a Igreja, dom Helder sonhou, e divulgou, sua grande utopia, carregada de profundo simbolismo: a convocação do Segundo Concílio de Jerusalém! Para entender a força desse sonho, é preciso saber o que foi o Primeiro Concílio, descrito na Bíblia e realizado no começo da Igreja. Os após-tolos se congregaram em Jerusalém e perceberam a univer-salidade do Evangelho de Cristo, que precisava romper os limites estreitos do judaísmo e de quaisquer outras amarras culturais e religiosas para ser levado a toda a humanidade, que o aguardava como terra sedenta de verdade e de amor, pronta para produzir os frutos do Reino de Deus.

Agora, um segundo “Concílio de Jerusalém” implicaria a predisposição da Igreja em rever sua caminhada, e o con-vite ao mundo para se abrir ao Evangelho de Cristo, supe-rando preconceitos e confrontos inúteis, e abrindo caminho para um novo tempo de reconciliação e de paz mundial.

Assim sonhava dom Helder. Ele vinculava seus sonhos a uma data, carregada de simbolismo, para dizer que esses sonhos ultrapassam as possibilidades concretas do nosso dia a dia, mas ao mesmo tempo começam a acontecer se lhes damos abrigo em nossas mentes e em nossos corações. Ele insistia na dimensão comunitária das utopias, alertando que um sonho que se sonha só fi ca na ilusão, mas um sonho que sonhamos juntos começa sua encarnação.

O “Ano centenário” é para voltarmos a sonhar como dom Helder, para nos comprometer com a realização concreta de suas grandes utopias. Apesar das nuvens carregadas de pessimismo que se abateram sobre o mundo no alvorecer deste novo milênio.

Em tempos de borrascas, os profetas precisam anunciar a bonança!

Dom Demétrio Valentini é bispo de Jales (SP).

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de 12 a 18 de fevereiro de 2009 3

brasil

Eduardo Sales de Limada Redação

OS BANCOS no Brasil pare-cem não estar sendo afetados pela crise econômica mun-dial. Seus lucros, obtidos em grande medida por meio do spread (diferença entre os ju-ros que pagam para obter em-préstimos e a taxa que co-bram quando oferecem crédi-to), criam obstáculos internos ao desenvolvimento produ-tivo do país, refl etindo, ao fi -nal, o desemprego. A política monetária brasileira benefi cia sobretudo os banqueiros que, ao seu bel-prazer, traçam seus próprios critérios operacionais para estruturar o spread.

O Banco Santander é um exemplo de como o Brasil fez com que a tempestade da crise se transforme numa refrescan-te chuva de verão para os ban-cos. A empresa registrou em 2008 uma redução de 2% de seu lucro em relação a 2007, atingindo 8,8 bilhões de euros. No Brasil, porém, seu lucro foi 22% maior, alcançando 1,1 bi-lhão de euros, que em reais re-presenta R$ 3,2 bilhões.

O Santander é o terceiro banco que cobra mais caro pe-lo cheque especial, contabili-zando 9,9% de taxa de juros ao mês. Se você tiver dívidas com essa instituição, talvez já tenha se convencido de que o Brasil é o melhor cenário para o lucro bancário e o pior cená-rio para o crédito.

Lucro embutidoÉ no índice do spread ban-

cário que está embutido boa parte do lucro dessas empre-sas fi nanceiras. Grosso modo, é a soma do spread com a taxa de captação (o custo de obten-ção dos recursos fi nanceiros pelos bancos comerciais) que formam os juros cobrados so-bre os empréstimos a pessoas físicas ou jurídicas. Já o spre-ad é composto por impostos,

da Redação

Para economistas ouvidos pelo Brasil de Fato, de mo-do a evitar o avanço da crise no país, o Banco Central pre-cisa agir rapidamente, sobre-tudo em dois pontos: reduzir a taxa Selic e fazer com que os bancos públicos sejam os primeiros a facilitar o crédi-to. Mas, antes disso, na opi-nião do economista Reinaldo Gonçalves, da UFRJ, é ne-cessária “uma extraordinária fi scalização do Banco Cen-tral, porque banco no Brasil é caixa-preta, ninguém sabe o que acontece”.

Atualmente a taxa Selic é de 12,75%. Trata-se de um índice fundamental que tem relação direta com o spread bancário. Vejamos: para ga-nhar com a Selic, os bancos compram títulos públicos re-munerados pela taxa. Uma forte queda dessa taxa for-çaria a diminuição dos ju-ros cobrados pelos bancos, pois ganhariam menos em-prestando dinheiro à União e, para compensar, deveriam conquistar clientes no mer-cado, sejam pessoas físicas ou jurídicas.

Por consequ-ência, o spread teria que ser menor. No en-tanto, a taxa Selic está ainda

da Redação

A redução da taxa Selic, hoje em 12,75%, não é im-portante só para reduzir o spread. Denise Gentil, di-retora adjunta de Estudos Macroeconômicos do Ins-tituto de Pesquisas Eco-nômicas Aplicadas (Ipea), acredita que a queda é im-portante também para re-duzir os gastos fi nanceiros do governo e, consequente-mente, liberar recursos pa-ra que ele aumente o nível de investimento público e de gastos sociais.

Com uma forte redução da Selic, cria-se um espa-ço maior no orçamento da União para fazer, segundo Gentil, uma política fi scal mais ativa, ou seja, uma po-lítica de investimento mas-sivo. “Uma Selic menor de-sestimula o investimento do capital no circuito fi nan-ceiro e passa a dirigir o ca-pital para o circuito produ-tivo”, explica a economista.

Ela argumenta que a que-da da taxa proporcionaria rentabilidade aos empre-endimentos e projetos que antes não eram rentáveis por causa da infl uência de-la nos outros juros bancá-rios. Assim, Gentil conclui que “por todas as razões, a Selic deve cair”.

da Redação

O economista da Univer-sidade Federal do Rio deJaneiro (UFRJ), ReinaldoGonçalves, retrata o sistemabancário nacional como umcartel. “A pergunta é: porque isso (alto spread ban-cário) só tem no Brasil? Poruma razão que é a mais im-portante, que é o cartel dosbancos”, atesta.

Com um governo “captu-rado” pelos bancos desde ofi nal dos anos de 1980, co-mo diz Gonçalves, represen-tantes do setor se tornaramdominantes também na po-lítica, utilizando instrumen-tos que vão do fi nanciamen-to de campanha à intimida-ção política. “Por isso queo governo entrega o BancoCentral ao sistema fi nancei-ro; o governo Lula se sub-meteu a isso de uma formavergonhosa”, afi rma.

Gonçalves acrescenta,contudo, que os banqueirosserviram de base não so-mente para o fi nanciamen-to de campanha de Lula,mas de vários deputados esenadores. (ESL)

UrgênciaA economista pondera

que a curto prazo, no mo-mento atual de crise, a polí-tica fi scal se sobrepõe à mo-netária, porque é necessário “injetar demanda agregada ‘na veia’”, como diz Gentil. “O efeito multiplicador de um investimento público e de gastos sociais é muito grande na economia; a po-lítica fi scal tem um impacto mais rápido e maior na eco-nomia neste momento do que a política monetária”.

O economista e presiden-te do Instituto Desemprego Zero, José Carlos de Assis, reforça a posição de Gen-til e crê que o Brasil viverá uma fase expansiva de gas-tos públicos. Segundo ele, a histórica fase neoliberal do acúmulo de reservas volta-das para o superavit pri-mário (economia de recur-sos para pagar juros da dí-vida pública) acabou. Para reforçar sua opinião, Assis cita exemplos de países an-tes conservadores e que ho-je comprometem até mes-mo seus orçamentos. “Os Estados Unidos estão com um defi cit projetado no or-çamento de 10%; a Ingla-terra, de 9,6%; a Alemanha, de 4,4%; e nós (Brasil) es-tamos com um defi cit no-minal do orçamento menor que 2%”, compara. (ESL)

tão alta que seria necessária uma redução drástica para que tal mudança possa im-pactar no spread.

“Se a remuneração ocasio-nada pela taxa Selic dimi-nui, o banco será forçado a buscar rentabilidade no cré-dito ao setor privado, às pes-soas e empresas”, explica o economista e presidente do Instituto Desemprego Ze-ro, José Carlos de Assis. Ele pondera, ainda, “que o ban-co não empresta dinheiro para mais ninguém se a ren-tabilidade da taxa básica de juros (Selic) for maior; tem banco por aí com 40% em tí-tulos públicos. É uma inde-cência!”, conclui.

Lucro público Concomitantemente a uma

aguda redução da taxa selic, Reinaldo Gonçalves aponta para a necessidade do pro-tagonismo dos bancos pú-blicos na retomada do ciclo econômico brasileiro, facili-tando o crédito sobremanei-ra para pessoas físicas e jurí-dicas. Desse modo, segundo ele, seria favorecido um cli-ma de “acirramento pela dis-puta dos clientes, jogando lá para baixo o spread, em to-das as linhas de crédito”.

Mas esse protagonis-mo parece não ser do gos-to do governo federal. “O fato singular é o seguinte: não há no mundo um spre-ad tão alto quanto no Bra-sil. Nós somos campeões de duas coisas, de taxa básica de juros (Selic) e de spre-ad. O sentido é ainda me-nor quando bancos públi-cos acompanham os crité-rios operacionais dos ban-

cos privados”, lembra José Carlos de Assis.

A título de exemplo, com-pare-se o Itaú com o Ban-co do Brasil. O primeiro, privado, apresenta uma ta-xa de juros de capital de gi-ro, voltado para empresas, de 2,75%. O segundo, por ser público, exerce uma ta-xa que poderia ser bem me-nor, mas que é de 2,46%. Por isso, de acordo com Assis, da forma como agem os bancos públicos, em vez de ser uma força reguladora do mercado para reduzir as taxas, puxam para cima os juros também. Então, “do que adianta ter banco público?”, questiona o economista.

Para resolver isso, ele ex-plica que, a curto prazo, o Banco Central teria que sub-meter o Banco do Brasil, a Caixa Econômica e os outros bancos públicos, que coope-ram com o crédito direto ao consumidor e com o capital de giro às empresas, a uma supervisão que determinas-se os tetos para a taxa de ju-ros em cada setor. “O ban-co tem que cumprir e ponto fi nal”, salienta.

O economista entende que, nessa situação, é a partir do comportamento operacio-nal dos bancos públicos que o sistema bancário privado irá se reorganizar, pois não vai querer perder seus clien-tes. No entanto, reforça que a economia não pode fi car de-pendente, sobretudo numa hora de depressão econômi-ca, de um sistema privado que não quer correr nenhum tipo de risco. Tal atitude, pa-ra ele, somente agrava a situ-ação macroeconômica. (ESL)

depósitos compulsórios, des-pesas administrativas, risco de inadimplência e, claro, a margem de lucro.

Ao longo de 2008, os brasi-leiros pagaram um spread mé-dio de 26,6 pontos percentuais. Em dezembro, o índice chegou a 30,6%. A média praticada em outros 42 países pesquisa-dos pela Federação das Indús-trias do Estado de São Paulo (Fiesp), que representam mais de 90% do PIB mundial, é de 3 pontos percentuais.

No último trimestre de 2008, conforme a Fiesp, o se-tor industrial brasileiro des-pendeu R$ 5,5 bilhões, em média, por mês, só para pagar juros, ante uma média mensal de R$ 4,4 bilhões entre janei-ro e setembro. No custo para captação de recursos dos ban-cos, entretanto, a média pas-sou de R$ 3,72 bilhões para R$ 4 bilhões. Quer dizer, os juros tiveram um aumento de 25% enquanto a taxa de cap-tação contou com uma varia-ção de 7,5%.

Spread contra emprego“Não há a menor dúvida de

que o spread bancário é um gigantesco entrave ao desen-volvimento, inclusive ao ge-renciamento da crise que es-tá se aprofundando”, lembra

Reinaldo Gonçalves, econo-mista da Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro (UFRJ).

É preciso compreender que, não somente no momento de crise, é esse lucro dos bancos, embutido no spread, que re-sulta nos juros altos. Estes, por conseguinte, difi cultam o investimento produtivo de empresas e retêm o crédito a pessoas físicas. Toda essa on-da vai na direção contrária ao desenvolvimento econômico. Quando ela quebra, é o traba-lhador que paga o preço, per-dendo seu emprego.

A desaceleração na expan-são da oferta de crédito teve um impacto direto nas empre-sas. Somado aos demais efei-tos da crise (como a difi culda-de de captar recursos no ex-terior e a queda das exporta-ções), a alta do custo fi nancei-ro contribuiu para a redução da atividade econômica. Tan-to que a produção industrial caiu 7,5% de setembro para novembro. E a situação fi cou ainda pior: dados do Instituto Brasileiro de Geografi a e Es-tatística (IBGE) mostram que houve recuo de 1,8% no nível de emprego na indústria em dezembro, quando compara-do a novembro.

Mais um dado revela como o capital fi nanceiro se sobres-

sai ao capital produtivo no Brasil. Segundo a Fiesp, na média entre outubro e dezem-bro, os desembolsos para pa-gamentos de juros foram 11% superiores aos gastos com sa-lários. De janeiro a setembro, a média das despesas fi nan-ceiras correspondia a 95% dos gastos mensais com salários. Para Denise Gentil, diretora adjunta de Estudos Macro-econômicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), esses juros altos, que comprimem os investimen-tos, também desestimulam o consumo. “No todo, have-rá uma redução de demanda agregada e, por consequên-cia, o aumento do estoque das indústrias. E aí as indústrias se veem diante de trabalha-dores que elas não têm condi-ções de sustentar nas fi leiras de trabalho”, explica.

DisfuncionalO governo cobra dos ban-

cos que liberou o Imposto so-bre Operações Financeiras (IOF), reduziu a taxa do depó-sito compulsório e a Selic em janeiro e, mesmo assim, os ju-ros fi nais não caíram. Os ban-cos, por sua vez, culpam o fa-tor inadimplência pela eleva-ção do índice.

O economista José Carlos de Assis, presidente do Ins-tituto Desemprego Zero, des-considera o argumento e acu-sa justamente o alto spread cobrado pelos bancos como o principal culpado da inadim-plência dos clientes, pelo sim-ples fato de não conseguirem pagar as altas taxas. De acor-do com ele, é por essas e ou-tras que o sistema bancário nacional se tornou disfuncio-nal e criou um círculo vicioso quanto à falta de acesso ao ca-pital produtivo. É, sobretudo, por causa desse círculo vicio-so, que, segundo Assis, a crise atingiu o Brasil, “além da que-da de exportações, que é um fator externo”.

Bancos lucram em cima da produçãoe provocam aumento do desempregoECONOMIA Com um dos maiores spreads do mundo, setor bancário brasileiro corrobora para que a crise econômica cresça no país

Na crise, cartel entre banqueiros mantém lucros

“Governo Lula se submeteu a isso de uma forma vergonhosa”, critica economista

Taxas* de juros de cheque especial (pessoa física) de 21 a 27/01/2009

Instituição (entre 34 instituições fi nanceiras)

Taxa de juros

Posição no Ranking

HSBC BANK BRASIL S.A. BANCO MULTIP 9,99 2ºBANCO SANTANDER S.A. 9,90 3ºBANCO ABN AMRO REAL S.A. 9,01 6ºBANCO BRADESCO S.A. 8,77 10ºBANCO ITAÚ S.A. 8,58 11ºBANCO NOSSA CAIXA S.A. 8,44 13ºUNIBANCO UNIÃO BANCOS BRAS S.A. 8,38 15ºBANCO DO BRASIL S.A. 8,04 17ºBANCO DO NORDESTE DO BRASIL S.A. 7,09 21ºCAIXA ECONÔMICA FEDERAL 6,78 22º

Fonte: Banco Central do Brasil*Taxas efetivas ao mês (%)

Taxas* de juros de crédito pessoal (pessoa física) de 21 a 27/01/2009

Instituição (entre 98 instituições fi nanceiras)

Taxa de juros

Posição no Ranking

BANCO BRADESCO S.A. 5,05 27ºBANCO ITAÚ S.A. 4,93 29ºHSBC BANK BRASIL S.A. BANCO MULTIP 4,66 31ºUNIBANCO UNIÃO BANCOS BRAS S.A. 4,34 35ºBANCO SANTANDER S.A. 4,15 37ºBANCO ABN AMRO REAL S.A. 3,81 44ºBANCO NOSSA CAIXA S.A. 3,28 52ºBANCO DO NORDESTE DO BRASIL S.A. 2,74 64ºBANCO DO BRASIL S.A. 2,69 65ºCAIXA ECONÔMICA FEDERAL 2,53 80º

Taxas* de juros de capital de giro prefi xado (pessoa jurídica) de 21 a 27/01/2009

Instituição (entre 77 instituições fi nanceiras)

Taxa de juros

Posição no Ranking

HSBC BANK BRASIL S.A. BANCO MULTIP 3,69 13ºBANCO NOSSA CAIXA S.A. 3,44 17ºBANCO BRADESCO S.A. 3,35 22ºBANCO ABN AMRO REAL S.A. 2,79 37ºBANCO ITAÚ S.A. 2,75 39ºUNIBANCO UNIÃO BANCOS BRAS S.A. 2,63 40ºBANCO DO BRASIL S.A. 2,46 46ºCAIXA ECONÔMICA FEDERAL 2,36 51ºBANCO SANTANDER S.A. 1,91 60ºBANCO DO NORDESTE DO BRASIL S.A. 1,48 71º

Mais produção, sem especulaçãoProteger a economia exige redução da Selic e protagonismo do setor público

Investimento público “na veia”Para economista do Ipea, mesmo sem queda da Selic, investimento público tem forte impacto na economia

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IMPERIALISMO TUPINIQUIM

de 12 a 18 de fevereiro de 20094

brasil

Patrícia Benvenutida Redação

A AGÊNCIA Nacional de Energia Elétrica (Aneel) di-vulgou, no dia 3, os índices de reajuste nas tarifas de ener-gia elétrica nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. Consumido-res do Paraná e de Minas Ge-rais que são atendidos por empresas paulistas também serão afetados.

Em São Paulo, cinco distri-buidoras que fornecem ener-gia para o interior do Estado foram autorizadas a aumentar o preço das tarifas. Com isso, cerca de 360 mil clientes das companhias Jaguari, Moco-ca, CPFL Leste Paulista, CPFL Sul Paulista e Santa Cruz se-rão atingidos pela medida, em vigor desde o dia da divulga-ção da Aneel.

O maior reajuste, para con-sumidores residenciais, é da Santa Cruz (14,62%), que abas-tece 24 municípios paulistas da região de Ourinhos e Ava-ré e ainda três cidades para-naenses. Já para as indústrias, o maior percentual foi o da CPFL Leste Paulista (18,76%), que fornece eletricidade para municípios como São José do Rio Pardo e Divinolândia.

No Espírito Santo, morado-res de 11 cidades atendidas pe-la Empresa Luz e Força San-ta Maria já estão com a ener-gia 2,08% mais cara, enquan-to que as indústrias pagarão 8,62% mais.

A única redução no preço se-rá no Rio Grande do Sul, onde foi aprovada uma proposta de queda de 1,24% nas tarifas da usina hidrelétrica Nova Pal-ma, que abastece nove muni-cípios. A proposta faz parte de um processo de revisão tarifá-

Ana Garcia e Maria Luisa Mendonça

A atuação de empresas

transnacionais brasileiras na América Latina tem sido um assunto polêmico. Porém, pa-ra representantes de movi-mentos sociais latino-ame-ricanos, esse tema deve ser aprofundado no Brasil, no sentido de esclarecer os limi-tes entre interesses públicos e privados, geralmente confun-didos quando tratados pela imprensa comercial.

O Brasil está em 3º lugar no ranking de empresas de paí-ses “emergentes” com poten-cial para desafi ar empresas transnacionais estaduniden-ses e europeias. Entre as bra-sileiras que atuam no exterior, estão Petrobras, Vale, Voto-rantim e grandes construto-ras como Odebrecht e Camar-go Corrêa. Essas empresas se internacionalizam com fi nan-ciamento público, ganham protagonismo na política ex-terna brasileira e tornam-se também agentes de confl itos entre estados. Entre os mais emblemáticos estão os ca-sos do confl ito entre Brasil e Bolívia, por conta da nacio-nalização do petróleo naque-

le país em 2006, e entre Bra-sil e Equador no último ano, devido aos problemas causa-dos pela construtora Odebre-cht na construção da hidrelé-trica São Francisco.

Integração de fachadaSegundo o pesquisador

Luis Novoa, da Rede Brasil, o papel do BNDES é central na expansão dessas empre-sas para a América do Sul. “O BNDES fi nancia apoio tecno-lógico e comercial, com o ob-jetivo de controlar mercados locais e facilitar o modelo ex-portador. O discurso de inte-gração é usado como facha-da. Precisamos criar alian-ças entre nossos povos por-que temos inimigos comuns, ou seja, as burguesias nacio-nais subjugadas a interesses externos”, explica.

Por trás de uma grande em-presa há sempre um Estado forte, que a fi nancia e estru-tura o campo jurídico e polí-tico para que ela atue. E por trás de um Estado hegemôni-co há sempre empresas trans-nacionais que atuam dentro e fora do país, levando sua mar-ca e criando sua imagem junto à imagem do país-potência.

Nesses casos, a relação en-tre empresa e Estado é dire-ta e se explicita com a cons-tante penetração das empre-sas dentro do aparelho esta-tal (em conselhos, ministé-rios ou pela via informal de amizades e lobby). Assim, elas infl uenciam políticas pú-blicas, tanto para serem be-nefi ciadas por grandes obras como para receberem crédi-tos e incentivos fi scais. Esta mescla entre capital e Esta-do é característica da hege-

monia capitalista, na qual os interesses da classe burguesa são apresentados como inte-resses de todos.

Essas empresas também se benefi ciam de projetos de in-tegração regional baseados na infraestrutura, como no marco da IIRSA (Integração da Infraestrutura Sul-Ame-ricana), que têm sido condu-zidos prioritariamente para exploração de recursos natu-rais e para o aprofundamento do modelo exportador. Para a professora Ana Esther Ce-ceña, da Universidade Nacio-nal do México, “o capitalismo é um sistema mutante e, nes-ta nova fase, utiliza monopó-lios fi nanceiros para a apro-priação territorial e de recur-sos estratégicos”.

SubimperialismoDurante o Fórum Social

Mundial, o Instituto Rosa Luxemburgo promoveu, jun-tamente com organizações e movimentos sociais brasilei-ros – MAB, Rede Social Justi-ça e Direitos Humanos, PACS, Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, Re-de Justiça Ambiental e Re-de Jubileu Sul –, um seminá-rio para debater a atuação das empresas transnacionais bra-sileiras na América do Sul.

Uma das palestrantes foi Patrícia Molina, que expli-cou a atuação da Petrobras na Bolívia. Segundo ela, “a ex-pansão do capital com apoio do Estado brasileiro consti-tui uma situação de subim-perialismo, ou seja, a busca de hegemonia regional atra-vés de controle de recursos e mercados”. A Petrobras con-trola 50% das reservas de gás

e 40% das reservas de petró-leo da Bolívia, além de deter 100% das refi narias e 50% dos postos de gasolina. A empresa utiliza uma facha-da de “responsabilidade so-cial” através do fi nanciamen-to de atividades esportivas e culturais, mas também apoia o movimento separatista nos Estados da meia-lua. Para Patrícia,“o governo brasilei-ro usou chantagem na nego-ciação dos novos contratos da Petrobras, e o Itamaraty insis-tiu em negociar com a oposi-ção, mesmo após o massacre de Pando, no ano passado”.

Terra indígenaHá denúncias também so-

bre a atuação da Petrobras no Equador. Alexandra Almei-da, da Accion Ecológica, afi r-ma que a empresa pratica ex-tração de petróleo no Parque Nacional de Yasuni, uma área rica em biodiversidade que inclui comunidades indíge-nas. Movimentos indígenas e ambientalistas equatorianos protestam contra a concessão desse tipo de território para exploração petrolífera, mui-tas vezes chocando-se com o governo de Rafael Correa. Se-gundo Alexandra, “o governo brasileiro fez pressão para que a Petrobras mantivesse a ex-ploração na região”.

A ação da Petrobras e do go-verno brasileiro para expandir a produção de agrocombustí-veis na América Central tam-bém tem sido alvo de críticas. “As visitas de Lula à região e as campanhas de publicidade se intensifi caram após o acor-do fi rmado entre Brasil e Es-tados Unidos para expandir a produção de etanol. Dessa forma, os EUA podem impor-tar mais facilmente o produto, através do acordo de livre co-mércio com a América Central (CAFTA). Há também forte propaganda para que peque-nos agricultores substituam suas lavouras para produzir etanol. Assim, o poder públi-co passa a defender interesses privados”, explica Andrés Le-on Araya, pesquisador da Co-missão de Estudos Políticos Alternativos na Costa Rica.

Outro caso emblemático diz respeito aos danos eco-nômicos, sociais e ambien-tais causados pela Odebrecht no Equador. Segundo Nata-lia Landivar, da FIAN, “a Ode-brecht não cumpre leis am-bientais e causou a destruição de comunidades ribeirinhas. Uma auditoria identifi cou fraude, superfaturamento e falhas técnicas na construção da hidrelétrica São Francis-co, realizada pela Odebrecht com recursos do BNDES. A empresa administrou dire-tamente esses recursos, mas quem paga a conta é o Estado equatoriano”.

ItaipuO Brasil é contestado ainda

sobre sua relação com o Para-guai na gestão da usina de Itai-pu. Para Constancio Mendon-za, da Frente Social e Popular do Paraguai, “o atual acordo foi fi rmado durante a ditadu-ra, mas hoje o Brasil não pode seguir com esse tipo de políti-ca. O Paraguai deve ter sobe-rania sobre seus recursos na-turais e dispor livremente de sua energia. Deve receber um

preço justo, o que não aconte-ce hoje, pois é obrigado a ven-der energia de Itaipu a preço de custo para o Brasil”.

Constancio explica que o al-to custo cobrado pelas empre-sas transnacionais que distri-buem essa energia causa pre-juízos tanto para os brasi-leiros quanto para os para-guaios. “É preciso revisar a dívida da construção de Itai-pu, pois houve superfatura-mento das obras. A usina cus-tou dez vezes o que era previs-to inicialmente. Por isso, 66% do que o usuário paga por essa energia vai para o pagamento da dívida. Uma auditoria po-deria servir para baixar a tari-fa de energia”, defende o pes-quisador.

Um ponto em comum neste debate é a necessidade de des-construir o senso comum que mescla a identidade nacional com o papel dessas empre-sas. De maneira emblemática, a Odebrecht se autodenomi-nou recentemente “construto-ra da integração regional” em anúncios públicos, colocando-se como instrumento de rea-lização dos interesses dos po-vos e dos países, na tentati-va de, ao mesmo tempo, “lim-par” sua imagem deteriorada por problemas graves em su-as obras. Estas questões re-metem ao papel da chamada “responsabilidade social cor-porativa”, um mecanismo que mistura interesse público e privado, funções estatais exer-cidas por empresas, “benevo-lência” e marketing. A Petro-brás, que fi nancia boa parte da cultura brasileira, assim como o próprio Fórum Social Mun-dial, é exemplo deste quebra-cabeça entre identidade na-cional, política externa e inte-resses privados.

Ana Garcia é pesquisadora do Instituto Rosa Luxemburgo.

Maria Luisa Mendonça é coorde-nadora da Rede Social de Justi-

ça e Direitos Humanos.

ria que fi cará em consulta pú-blica até o dia 4 de março.

Entre as razões para o re-ajuste das tarifas, de acordo com a Aneel, está a variação do Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M), utilizado para medir a infl ação no pe-ríodo, e o aumento do custo da energia produzida pela usi-na hidrelétrica de Itaipu, que é cotada em dólar.

Preço “imoral”O reajuste, no entanto, é criti-

cado por Marco Antonio Trier-veiler, da coordenação nacio-nal do Movimento dos Atingi-dos por Barragens (MAB). Pa-ra ele, esse aumento nas tarifas de energia onera ainda mais a população, que já sofre com os efeitos da crise fi nanceira mun-dial. “Há muitos trabalhadores perdendo seus empregos, ten-do redução dos seus direitos, muitos camponeses que tam-bém estão sendo expulsos da terra. É um período de crise muito difícil, e nos parece imo-ral, nesse momento, qualquer aumento no custo de vida dos trabalhadores”, avalia.

Trierveiler também rebate os argumentos da Aneel pa-ra o reajuste, lembrando que, com a hidreletricidade, os cus-tos para a produção de ener-gia atualmente são muito bai-xos. Além disso, ele destaca os subsídios governamentais oferecidos às grandes compa-nhias, que compram a energia a preço de custo, fazendo com que as famílias paguem muito mais caro pela energia elétri-ca do que as empresas. “Nós temos grandes empresas, co-mo a Votorantim, comprando energia pública de Furnas a R$ 0,09 o quilowatt [kW], en-quanto nós, no meio urbano, estamos pagando, aqui no Rio Grande do Sul, R$ 0,52 por

kW consumido – praticamen-te sete vezes mais caro do que a Votorantim paga”, relata.

Para Trierveiler, portanto, o único objetivo dos aumen-tos é manter altas as taxas de lucros das empresas. “As em-presas têm uma margem de lucro muito grande em cima dessa venda de energia, então não teria porque aumentar os preços. Pelo contrário, a ‘gor-dura’ é tão grande que nós po-deríamos, tranquilamente, es-tar discutindo diminuição da tarifa ao invés de qualquer re-ajuste”, argumenta.

Queda no consumoDesde setembro de 2008,

segundo dados do MAB, o consumo da energia elétri-ca no país vem apresentan-do queda, mais acentuada nos meses de dezembro e janeiro. Na avaliação de Trierveiler,

esse resultado evidencia, além da redução da atividade do se-tor industrial, que existe hoje um excedente de energia, que derruba o discurso sobre a ne-cessidade de produzir eletrici-dade a qualquer custo. “Isso abre um período para nós dis-cutirmos a matriz energética brasileira, principalmente as alternativas energéticas, tan-to de produção como de con-sumo de energia”, afi rma.

Com a redução no consu-mo, porém, o coordenador do MAB também prevê o aumen-to da pressão das companhias que controlam o setor ener-gético sobre o governo e so-bre a sociedade. “Essas em-presas que são proprietárias vão pressionar muito para o aumento de preço de ener-gia porque, como diminuiu o consumo e as empresas não aceitam reduzir sua margem

de lucro, elas vão brigar por reajustes de preços cada vez maiores”, analisa.

Tarifa SocialTrierveiler reforça, por isso,

a necessidade de fortes mobi-lizações, este ano, para forçar políticas públicas que facilitem o acesso da população mais ca-rente à energia. Uma das lu-tas mais importantes tem si-do a aplicação efetiva da Tari-fa Social, que poderia favorecer até 18 milhões de brasileiros. O benefício já é garantido por lei às famílias que consomem até 80 kW/h e, desde 2007, uma liminar expedida pelo Tribunal Regional Federal também ga-rante o direito às famílias que gastam até 220 kW/h.

Para acessar os descontos, as famílias precisam apenas en-tregar uma autodeclaração na distribuidora de energia elétri-

ca da região e não há necessi-dade de cadastro em progra-mas sociais do governo. Mi-lhares de brasileiros com di-reito ao benefício, no entanto, não conseguem usufruir dele. As principais razões para isso, segundo Trierveiler, são a falta de conhecimento e os entraves provocados pelas empresas. “Existem milhares de famílias que têm direito, mas não rece-bem informação e não reivin-dicam por causa disso. Inclu-sive, a lei diz que toda família que gasta até 80 kW de energia automaticamente teria na sua conta o desconto, mas isso não acontece. E as empresas fazem todo esforço em não informar e, quando informam, tentam de todo o jeito prejudicar esse direito”, denuncia.

“O preço da luz...”Com o objetivo de protestar

contra os altos preços da ener-gia elétrica, o MAB mantém, desde 2007, a campanha “o preço da luz é um roubo”. De acordo com informações da campanha, a tarifa de energia paga pelo brasileiro é a quin-ta mais alta do mundo, duas vezes mais cara do que a paga pelos estadunidenses.

Entre as propostas da cam-panha, está a igualdade de preço entre o valor pago pe-las grandes empresas e pelas famílias e o cadastramento e aplicação da Tarifa Social para todas as famílias que possuem esse direito. “A gente sabe o quanto pesa a tarifa de energia elétrica quando chega no fi nal do mês e tu tens que pagar a conta, mas não tem dinheiro. Está desempregado ou o salá-rio não deu para pagar todas as contas. A gente sabe a di-fi culdade, até porque a luz é uma coisa muito necessária”, completa Trierveiler.

Transnacionais brasileiras são denunciadas por movimentos latino-americanosEmpresas usam discurso de integração como fachada para apresentar seus interesses como se fossem os de todos

A Petrobras controla 50% das reservas de gás e 40% das reservas de petróleo da Bolívia, além de deter 100% das refi narias e 50% dos pos-tos de gasolina

Quanto

Com a crise, alto preço da energiaelétrica onera ainda mais populaçãoENERGIA Aneel reajusta tarifas; para coordenador do MAB, empresas querem compensar queda no consumo gerada pela crise

Objetivo do aumento é manter altas as taxas de lucros das empresas

João Zinclar

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brasil

Márcio Zontade São Paulo (SP)

O REAL motivo que levou jo-vens moradores a apedreja-rem comércios e carros na co-munidade de Paraisópolis, em São Paulo (SP), no dia 2, ain-da não foi divulgado pela im-prensa e tampouco pela Se-cretaria de Segurança Pública do Estado. Um fato levantado pela comunidade parece que não ganhou eco nesses meios: a morte de um homem pela polícia e a ocultação de seu ca-dáver. A família, muito abala-da e com medo, não quer falar sobre o assunto.

De acordo com moradores que preferem manter em si-gilo suas identidades, a polí-cia chegou a Paraisópolis ati-rando. Tanto Marcos Purci-no, identifi cado como foragi-do da Justiça, como o homem que estava com ele não esbo-çaram reação alguma. “Che-garam atirando, nenhuns dos dois reagiu, o outro rapaz era trabalhador e ainda sumiram com o corpo dele, talvez por verem que ele não devia nada a polícia”, relata um morador.

Um dos líderes comunitá-rios da região, que também não quer ser identifi cado, in-daga: “Por que o socorro foi prestado a Purcino, que eles sabiam que era um foragido, e o outro rapaz, que não ti-nha nenhum envolvimento com o crime, teve seu corpo desaparecido? Não tem en-trada em hospital, Instituto Médico legal, nada?”

de São Paulo (SP)

Ao andar pelas ruas ín-gremes e apertadas de Pa-raisópolis, é fácil perceber que o assunto principal é a violência da polícia e o me-do da comunidade por re-presálias, como foi dito por diversas pessoas.

Um líder comunitário, que já está há aproximada-mente 30 anos na comuni-dade, vem sendo muito so-licitado por moradores que trazem relatos dos maiores absurdos cometidos pelos policiais que ocupam a área, compostos por três corpora-ções: Rondas Intensivas To-bias Aguiar (Rota), Choque e Comando de Operações Especiais (COE).

Ele relata que, no dia 2, por volta das 23 horas, com a situação já controlada, ho-mens das três corporações da Polícia Militar invadi-ram a comunidade e mes-mo sem ter ninguém nas ru-as atiraram bombas de efei-to moral e dispararam tiros de borracha contras as jane-las das casas, inclusive con-tra as pessoas que voltavam do trabalho. “Crianças e ido-sos gritavam desesperados pela difi culdade de respira-ção que a fumaça da bom-ba causava, inclusive idosos acamados”, diz.

BarbáriePara a comunidade foi

uma noite de terror, mas para um morador em espe-cial quase lhe custou a vida. O jovem garçom de um res-taurante situado na Aveni-da Paulista, que resguarda sua identidade, contou que, preocupado com a violência desmedida quando da inva-são dos policiais, foi encon-trar sua mulher que volta-va do trabalho, mas ao sair de casa ele encontrou com aproximadamente oito poli-ciais: “Eles pediram para eu entrar em casa novamente,

de São Paulo (SP)

“Essa humilhação constan-te no trabalho, aliada à pró-pria violência simbólica que a riqueza desmedida provoca na população da favela, transfor-ma a relação entre os dois po-los numa bomba-relógio”. Es-sa é a análise do sociólogo da Universidade de São Paulo (SP) Tiaraju D’Andrea, autor da dissertação de mestrado Nas Tramas da Segregação: o Real Panorama da Pólis, so-bre a relação entre Paraisópo-lis e o bairro de classe econô-mica alta do Morumbi.

Em sua pesquisa para o mestrado, ele constatou que 25% da população de Parai-sópolis estão desempregados e os outros 75% trabalham no setor informal; a maio-ria no entorno rico, servindo como mão-de-obra barata, prestando serviços de babás, empregadas domésticas, ze-ladores, motoristas e pedrei-ros com baixa remuneração e alta exploração.

O sociólogo revela que es-ses trabalhadores não usu-fruem das conquistas da clas-se trabalhadora, já que “não possuem nenhum tipo de be-nefício, como carteira assina-da, férias ou 13º”.

A população da comunida-de de Paraisópolis serve a eles para que realizem os serviços braçais, diz o sociólogo. “Pen-sar que o Morumbi apresen-ta ofertas de emprego ao Pa-raisópolis é uma análise rasa. Afi nal quem precisa de quem? A elite do Morumbi não reali-za nenhum desses trabalhos e necessita dessa população po-bre para realizá-los. E quanto maior for a oferta, mais explo-rados eles serão”, enfatiza.

Fora daquiSegundo Tiaraju, pode-se

afi rmar que Morumbi e Pa-raisópolis crescem imbri-cados por uma necessida-

de mútua, “impulsionada apartir da década de 1960 pe-lo crescimento do bairro ri-co. Paraisópolis se constituicomo sendo o abrigo dos tra-balhadores da construção ci-vil contratados para edifi caras mansões e condomíniosdo Morumbi e para trabalharnas obras viárias e de infra-estrutura urbana que passa-ram a ocorrer na região nes-sa época”, revela.

Por que não se oferecem à comunidade, com tanta ri-queza ao redor, meios de vidadignos, já que as principaisdemandas são por educação,saneamento básico, moradiae trabalho? José Maria, líderda União do Movimento emDefesa das Moradias e Me-lhoras da Comunidade de Pa-raisópolis, tem a resposta aoseu modo: “Eles querem aca-bar com a favela, nos tirar domeio dos ricos”.

A menos de 30 metros de uma das entradas que dá ace-so a Paraisópolis, num comér-cio da avenida Giovanni Gron-chi, um morador de um sun-tuoso prédio da região faz jus às palavras de Zé Maria: “Ado-rei essa Operação Saturação, esses caras pensam que são quem para quebrar tudo? Não são ninguém, têm que tomar bala mesmo”, afi rmou.

Esse pensamento opressorexplicita o modo de vida naregião. “Existe toda uma ga-ma de situações que induzemà revolta local: o trabalhadorexplorado, o jovem miserá-vel e sem perspectiva, o de-semprego em massa, a tor-tura por parte da polícia, de-nunciada pela população lo-cal, a opressão simbólica ex-pressa pelas mansões e con-domínios do entorno, a fal-ta de moradia digna, de sa-neamento básico, de serviçospúblicos, entre outros fato-res que transformam o mo-rar em favelas em uma hu-milhação cotidiana”, concluiTiaraju. (MZ)

mas quando coloquei a mão na cabeça e virei as costas le-vei muitos tiros de balas de borracha, e o pior, a bom-ba de efeito moral foi atirada contra meu corpo, estilha-çando na minha perna”.

Arrastando-se até a sala e sangrando muito, foi socor-rido por sua esposa que che-gou logo em seguida e havia assistido a tudo. Ela conta que mesmo com o unifor-me de serviço, quando gri-tou para que deixassem seu marido em paz, recebeu in-sultos. “Me xingaram mui-to, deram muitas risadas e continuaram a percorrer o bairro”.

O pior estava por vir: quando chamou a ambu-lância e a demora em chegar persistia, ela retornou a li-gação para a central de aten-dimento da prefeitura. Pe-lo telefone lhe informaram que a unidade móvel esta-va na entrada de Paraisópo-lis, mas impedida de prestar qualquer socorro aos mo-radores por ordem da polí-cia. “Meu marido fi cou das 22h às 2h15 da madrugada sem atendimento médico, só conseguimos sair de ma-drugada, quando um vizi-

nho que tem carro nos pres-tou ajuda”, desabafa.

Ainda não se sabe, pela gravidade dos ferimentos, se o jovem conseguirá recupe-rar os movimentos da perna ou mesmo se terá que am-putá-la. Em casa, ele lamen-ta o ocorrido e promete que irá processar o Estado. “Um pai de duas fi lhas precisa trabalhar, eles pensam que na favela só tem bandidos, sou muito criminalizado por morar aqui”, conclui.

DespreparoA vizinha da frente conta

que teve sua casa invadida sem nenhum mandado ju-dicial e ainda que, quando os policiais viram sua tele-visão e computador novos, pediram nota fi scal. “Fui hu-milhada, sou trabalhadora, será que, só porque eu mo-ro na favela, se tiver algo é porque roubei? Quase es-freguei na cara deles as no-tas”, revela.

O líder comunitário dei-xa claro que não é contra a polícia na comunidade, mas ressalta: “Somos contra o modo de agir da mesma, te-nho relatos e vi barbarida-des nesses últimos dias, os

negros são os mais aborda-dos; policias revistam mu-lheres e crianças de 10 a 13 anos de idade; menores e moradores são algemados; os pedidos de ajuda são res-pondidos com bombas de efeito moral”, indigna-se.

Quando o líder da comu-nidade repudiava a atua-ção da polícia para a repor-tagem do Brasil de Fato, parece ter tomado outro gol-pe, ao ser interrompido por uma moradora que diz que seu fi lho foi agredido por-que é defi ciente auditivo e, quando abordado, tentou se comunicar por sinais. “Essa polícia não tem preparo ne-nhum, bateram no meu fi lho porque ele sofre de uma de-fi ciência, será que nem de-fi cientes eles respeitam?”, questionou.

Atordoado, ele diz que nos dias a rotina foi essa, sair pelas ruas e escutar re-clamações de todos os lados sobre as abordagens dos po-liciais. “A revolta contra a polícia é geral, por isso, a atuação da polícia não me-lhora a comunidade, preci-samos muito mais de edu-cação do que de repressão”, refl ete. (MZ)

A deturpação dos fatosA Secretaria de Seguran-

ça Pública do Estado de São Paulo, que vem alegando vá-rios motivos para a realização da manifestação, dentre eles a morte do foragido, os confl i-tos a mando de facções crimi-nosas e até a troca de um co-mandante do 16º Batalhão da Polícia Militar, parece querer esconder a realidade.

Segundo o sociólogo da Uni-versidade de São Paulo (USP) Tiaraju D’Andrea, isso se dá pela forma como a polícia contextualiza o ocorrido. “A polícia tentou impor a mais óbvia de todas as versões: a de que um ‘criminoso’ havia sido morto em uma ‘troca de tiros’ e que, em decorrência disso, o ‘crime organizado’ havia orde-nado o levante. Enfi m, a ver-são clássica utilizada em qual-quer contexto”, comenta.

Conforme revela a própria Secretaria de Segurança, dos nove homens detidos no con-fl ito, entre eles três menores, nada foi provado contra os mesmos, principalmente se faziam parte de alguma facção criminosa ou se estavam se manifestando a mando delas.

Nesse sentido, o sociólogo avalia que isso prova que não é um caso de criminosos, até porque em seu raciocínio ele enfatiza: “Não sou um espe-cialista em facções ligadas ao tráfi co de drogas, mas real-mente tenho dúvidas sobre o caráter da ação. Geralmente esses grupos organizados não se expõem tanto quando reali-zam uma ação, pois não dese-

jam o confronto direto e nem a presença policial”, pontua.

A comissão de líderes co-munitários de Paraisópolis acredita que esse desencon-tro e as variedades de infor-mação podem ser proposi-tais para a não-elucidação do caso e para manter em fo-co apenas os atos de vanda-lismo: “A manifestação não pode ser taxada apenas co-mo vandalismo. Ela foi rea-lizada por jovens da comu-nidade que estão revoltados não só com a opressão da po-lícia, mas com o preconceito da sociedade em geral”.

Para o sociólogo, o argumen-to dos líderes da comunidade faz sentido em relação à ma-nifestação e os seus reais mo-tivos, pois “tudo indica que o ocorrido em Paraisópolis tenha sido um levante popular, pro-tagonizado em sua maior par-te por jovens desejosos de ex-por sua revolta, mas sem uma demanda reivindicativa clara ou sem saber os meios para ex-pressar publicamente essa de-manda”, identifi ca.

O sociólogo ainda afi rma que, indiferentemente do ocorrido, já havia uma pré-tensão na região que só pre-cisava de um estopim para ge rar a revolta. “Qualquer que tenha sido o fato ocorrido no domingo [dia 1º], já exis-tia uma tensão latente nes-sa população. Esta foi cana-lizada em um fato ocorrido. Sem uma tensão latente, sem um clima de revolta anterior, o fato não teria servido de es-topim”, complementa.

Comunidade Paraisópolis saturadaVIOLÊNCIA POLICIAL Em São Paulo, revolta de moradores, que atacaram carros e lojas no dia 2, é refl exo de tensão latente provocada pela criminalização da pobreza

Paraisópolis x MorumbiBairros cresceram juntos; um fornece mão-de-obra; o outro, opressão

Uma noite de terror contra trabalhadoresPoliciais usaram violência desmedida contra trabalhadores que vivem na região

Henrique Manreza/Folha Imagem

Policial da 1a Companhia de Rota Noturna atira bala de borracha contra manifestantes

Policiais militares revistam moradores da favela Paraisópolis durante a Operação Saturação

Zanone Fraissat/Folha Imagem

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brasil

Evasão máximaEmpresas estrangeiras que ope-

ram no Brasil estão orientando suas fi liais a enviar para as suas respecti-vas sedes, em especial as que estão localizadas nos Estados Unidos, todas as reservas fi nanceiras dis-poníveis, por meios legais e ilegais. Especialistas tratam de maquiar as remessas ilegais. Mais uma vez o Banco Central dorme em berço es-plêndido e o Brasil é considerado o paraíso do capital.

Máquina emperradaA bronca do governo federal nas

prefeituras que não tocam o PAC expõe a pior face da política e da administração pública: de um la-do, muitas prefeituras usaram o programa apenas para fazer mar-keting nas eleições municipais de 2008 e, depois, não se empenha-ram em tocar as obras prometidas; de outro lado, a burocracia da Caixa Econômica é o maior entra-ve para liberação dos recursos. O povo espera!

Trabalho escravoEnvolvido em diversos confl itos

fundiários no Maranhão, segundo denúncia da Comissão Pastoral da Terra, o deputado estadual Antonio Bacelar, do PDT, é tam-bém o dono da Fazenda São Do-mingos, no município de Coelho Neto, onde a fi scalização do Mi-nistério do Trabalho encontrou, no início deste mês, 13 pessoas submetidas ao trabalho escravo e vivendo nas piores condições. Isso é que é modernidade!

Caos políticoEm artigo na Folha de S. Paulo,

a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, defendeu a união do PT e PSDB para “moralizar” o ambiente político do país. O PMDB, que acaba de conquistar as presidências da Câmara Federal e do Senado, está empenhado em eleger o vice-presidente da Repú-blica em 2010, que tanto pode ser em dobradinha com o PT ou com o PSDB. Dá para entender?

Jogo medievalGravação de conversa familiar

revelou o senador José Sarney, do PMDB, orientando seu fi lho Fer-nando a ser implacável na persegui-ção política de seus adversários no Maranhão. O clã domina o Estado há 50 anos, controla as comuni-cações, mistura negócios privados com os recursos públicos, cuida das nomeações etc. E o senador ainda fi cou irritado porque foi chamado de oligarca. Faz sentido?

Medida paliativaO governo federal encaminhou ao

Congresso Nacional projeto de lei que descriminaliza a radiodifusão comunitária. Ou seja, se o projeto for aprovado ninguém poderá ser preso, mas será processado admi-nistrativamente. Melhor seria se o governo tivesse liberado os sete mil pedidos de rádios comunitárias pa-rados no Ministério das Comunica-ções há muitos anos. Assim, todos estariam na legalidade.

Grande mistérioO deputado federal Edmar Mo-

reira, do DEM-MG, é um daqueles personagens que ganham projeção na mídia – de tempos em tempos – com seus currículos espetacula-res: envolvimento com tortura, so-negação de impostos, jogo proibido, desvio de dinheiro público, fraude fi scal e a construção de um castelo de R$25 milhões não-declarado à Receita Federal. Pergunta básica: como ele fez tudo isso sem ser pre-so e condenado?

Revista marxistaPesquisadores e professores da

Universidade Federal do Ceará aca-bam de lançar a revista eletrônica Arma da Crítica, que é um periódi-co “organizado sob as coordenadas teóricas do marxismo ontológico, aberto à colaboração de intelectuais e militantes comprometidos com a luta pelo socialismo”. O endereço http://www.armadacritica.ufc.br/ está à disposição dos interessados em colaborar.

Data históricaHá 12 anos, no dia 17 de fevereiro

de 1997, partiram de São Paulo, Mato Grosso e Minas Gerais mi-lhares de militantes do MST rumo a Brasília, na histórica Marcha Nacional pela Reforma Agrária. Re-cepcionada carinhosamente pelas populações das cidades por onde passou, a marcha projetou o MST na mídia, conquistou credibilidade e reforçou a inclusão da reforma agrária na agenda nacional.

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Comunidades ainda conservam os locais por onde os monges passaram; no detalhe, criança é batizada na

fonte de Santos Olhos d’Água de São João Maria

Sol

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Solange Engelmannde Curitiba (PR)

ALIANDO religiosidade, cultura po-pular e preservação ambiental, seis entidades e associações rurais do Paraná realizam um trabalho de res-gate cultural e religioso dos Santos Olhos d’Água de São João Maria, também conhecidos na região como “pocinhos” de São João Maria.

Os locais são fontes d’água consi-deradas santas pelo imaginário po-pular e sinais deixados pela passa-gem dos três monges do Contestado (ver texto abaixo), que tiveram um papel fundamental de apoio e cons-cientização dos caboclos da época.

Na região do Contestado mui-tas histórias são passadas de gera-ção em geração. Segundo a popu-lação, por onde passavam, os mon-ges abençoavam o lugar ou dei-xavam algo. Os devotos também acreditam que, nos locais em que eles descansavam ou dormiam, nascia uma fonte d’água benta. Es-ses lugares depois passaram a ser chamados de Santos Olhos D’Água de São João Maria. Ainda hoje, a população realiza batizados de re-cém-nascidos nesses locais, além de promessas e agradecimentos de graças alcançadas.

O trabalho de recuperação da memória cultural e ambiental abrange 12 municípios da região centro-sul e sudoeste do Paraná, atingindo agricultores familiares tradicionais, posseiros, faxinalen-ses (comunidades de agricultores específi ca da região que produz de forma comunitária), assentamen-tos de reforma agrária e acampa-mentos do Movimento dos Traba-lhadores Rurais Sem Terra (MST). A iniciativa faz parte do Projeto Águas em Movimento, patrocina-do pela Petrobras através do Pro-grama Petrobras Ambiental.

Em Reserva do Iguaçu, na co-munidade de Reserva, existe uma

de Curitiba (PR)

Os três monges do Contestado ti-veram grande infl uência no imagi-nário popular dos caboclos que vi-vem na região, afi rma Eloy Tonon, professor-doutor de História da Faculdade Estadual de Filosofi a, Ciências e Letras de União da Vi-tória. “Cada um deles teve um pa-pel importante, em determinado momento, na criação do imaginá-rio popular e coletivo dos homens e mulheres que povoavam o ser-tão do Contestado. Eles infl uencia-ram primeiramente a cultura cabo-cla, trazendo atributos que enri-queceram ainda mais uma religio-sidade rústica, já presente no meio do povo simples, que se contenta-va em viver com o pouco que podia produzir, convivendo harmoniosa-mente com a natureza”, comenta.

As rezas de ladainhas, curas com ervas e “benzimentos” para espan-tar os males trouxeram elementos que se agregam de tal forma à cul-tura local que fi zeram surgir uma religiosidade rústica única que

permanece viva até os dias atuais, apesar do não-reconhecimento das religiões ofi ciais, garante To-non. Em alguns locais, considera-dos santos, também se encontram os chamados cruzeiros (cruzes en-contradas ao lado das fontes, que identifi cam a irmandade cabocla e se tornaram símbolos da passa-gem de um monge).

Várias pessoas mais velhas se consideram afi lhadas dos mon-ges, com a missão de continuar

o seu legado. Por isso, em mui-tos municípios do interior encon-tram-se os curandeiros, que re-ceitam ervas, fazem as “garrafa-das” e “benzimentos” para curar diversos males.

Para um dos um dos coordena-dores do Projeto Águas em Mo-vimento, Valdenir dos Santos, o segundo monge, João Maria de Agustini, o mais conhecidos, ado-tou o codinome do anterior “São João Maria”, mas para alguns au-tores seu verdadeiro nome era Ata-nás Marcaf. Ele surgiu publica-mente com a Revolução Federalis-ta de 1893, mostrando uma postu-ra fi rme, dizendo “estar ao lado dos que sofrem”. Atuava na região en-tre os rios Iguaçu e Uruguai e per-correu a estrada velha de Palmas (antiga estrada dos tropeiros). Há relatos de que o monge fez orações e curas por onde passou, desapare-cendo em 1908.

O terceiroEm 1912, apareceu publicamen-

te a fi gura do terceiro monge, um curandeiro que se apresentava co-

Segundo a crença popular, o terceiro monge comandou a resistência dos caboclos e camponeses, durante a Guerra do Contestado, morrendo em combate

A história dos três monges do Contestadomo “José Maria”, de nome verda-deiro Miguel Lucena de Boaventu-ra. “Como ninguém conhecia sua origem, logo ganhou a confi ança do povo com a presunção de ter ressuscitado uma jovem (provavel-mente, vítima de Catalepsia Pato-lógica) e curado a esposa de um co-ronel, vítima de uma doença gra-ve. Ao rejeitar terras e ouro deste, passou a ser considerado santo pe-la população”, argumenta Valde-nir dos Santos. Segundo a cren-ça popular, esse foi o monge que comandou a resistência dos cabo-clos e camponeses durante a Guer-ra do Contestado, morrendo em combate.

O coordenador do Projeto Águas em Movimento afi rma que, ao contrário dos curandeiros da época, esse monge sabia ler e es-crever e catalogava as proprieda-des medicinais das plantas encon-tradas na região. Em um rancho, cedido por um coronel, ele mon-tou um local chamado de farmá-cia do povo, onde atendia a popu-lação e fazia o depósito das ervas medicinais que utilizava. (SE)

fonte na qual batismos são feitos até hoje. O lugar é bastante visita-do e já serviu de parada para via-jantes na coleta de água, relata o agricultor João Chaleira (como é conhecido), de 115 anos, que diz ter ouvido muitas histórias dos monges do Contestado.

Na comunidade de Faxinal dos Santos, entre os municípios de Bituruna e General Carnei-ro (PR), também há uma fonte de São João Maria. A agricultora Cecília Nunes afi rma que o local é importante porque mesmo de-pois de muito tempo as pessoas continuam acreditando no legado dos monges. “Isso faz com que as gerações futuras passem a respei-tar mais as águas e a preservar as fontes”, garante.

Guerra do ContestadoOs monges tiveram um papel

muito importante na Guerra do Contestado, que aconteceu entre 1912 e 1916, em uma área dispu-tada pelos estados de Santa Ca-tarina e Paraná, denominada re-gião do Contestado. A causa foi a construção da estrada de ferro en-tre São Paulo e Rio Grande do Sul pela empresa estadunidense Bra-zil Railway Company, que recebeu uma enorme extensão de terras no trecho da ferrovia, provocando a expulsão de milhares de famílias camponesas de suas terras.

Segundo a escritora Mitsue Mo-rissawa, com apoio de um prega-dor e curandeiro chamado Monge José Maria, os caboclos da região se organizaram e pegaram em ar-mas para lutar pela posse de su-as terras, combatendo a entrada do capital estrangeiro no país. A batalha fi nal terminou com o ex-termínio de cerca de 20 mil cabo-clos, assassinados pelos militares dos dois estados e do Exército Na-cional. Essa foi a primeira vez, no Brasil, que os militares usaram a aviação em combates.

Eloy Tonon, professor-doutor de História da Faculdade Estadu-al de Filosofi a, Ciências e Letras de União da Vitória, relata que muitas das fontes d’água são heranças di-retas dos beatos e registros de on-de passaram, mas apenas algumas fontes foram eleitas pela devoção da população. “Os locais onde os Santos Olhos d’Água se encontram, geralmente nas beiras de estradas, e indicam o caminho que provavel-mente os santos fi zeram durante a passagem pela região”, observa.

Alguns desses locais, comunitá-rios, permaneceram intactos até hoje, permitindo a preservação e a conservação, mas muitas fontes que fi cam em propriedades par-ticulares sofrem os impactos do avanço do capitalismo no cam-po, principalmente do agronegó-cio da madeira, conforme ressal-ta um dos coordenadores do Pro-jeto Águas em Movimento, Valde-nir dos Santos. “No passado, es-ses locais abrigavam uma comuni-dade de faxinal, mas hoje estão so-bre a tutela de uma empresa ou de um proprietário. [Assim,] a planta-ção de pinus e eucalipto a engoliu ou ela fi ca ao lado de uma planta-ção que despeja dejetos [geralmen-te agrotóxicos e químicos]. Muitas já desapareceram”, denuncia.

Ações do projetoNa tentativa de resgatar essa me-

mória popular do Contestado, atra-vés do projeto foi feito um levan-tamento histórico do legado dos monges nos municípios de abran-gência, mapeando em torno de 40 olhos d’água e coletando informa-ções de subsídio para a continuida-de das atividades. Dentre esses 40 locais, foram selecionados 16 para o início do trabalho de recuperação e conservação.

Santos afi rma que o trabalho é conduzido de forma cautelosa pa-ra não interferir nos costumes da população local e ser mais um fator

importante na preservação do meio ambiente. “Após a escolha dos es-paços, a equipe do projeto se reú-ne com as comunidades para discu-tir como será a recuperação dessas áreas. A proposta é não provocar interferência nos costumes e cul-tura local, além de fazer com que o trabalho de recuperação e resgate da história também ajude a forta-lecer as atividades de recuperação ambiental na região”, destaca.

Em São Mateus do Sul (PR), um dos municípios de abrangência do projeto, o trabalho de recuperação de fontes d’água foi realizado por meio de mutirões em duas comuni-dades. Na comunidade Terra Ver-melha, segundo devotos, São João Maria passou no início do século 20 e abençoou a água de vertente. O local, que para os religiosos guar-da água benta capaz de curar fe-ridas, é muito visitado nas véspe-ras de dias santos. Giovana Lemos de Mello, técnica da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais de São Mateus do Sul, conta que a fon-te é bastante visitada pela popula-ção da região, mas o local estava co-berto de muito mato e com acesso ruim. Então, a comunidade se or-ganizou em mutirão para fazer a limpeza, retirar o lixo, melhorar o acesso e plantar mudas de árvores.

Já na comunidade Divisa, a recu-peração ocorreu em uma gruta on-de se concentra a devoção da po-pulação. O local guarda uma cape-linha com imagens de santos, so-bre a qual desce a água, considera-da milagrosa. A área é cercada por vegetação nativa e visitada, prin-cipalmente, nas sextas-feiras san-tas, por fi éis que creem no poder de cura da água.

Comunidades resgatam patrimônio histórico na região do ContestadoPROJETO Agricultores protegem a memória das fontes d’água dos Santos Olhos d’Água de São João Maria

Com apoio de um pregador e curandeiro chamado Monge José Maria, os caboclos da região se organizaram e pegaram em armas para lutar pela posse de suas terras, combatendo a entrada do capital estrangeiro no país

40 olhos d’água foram mapeados pelo Projeto Águas em Movimento

Quanto

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brasil

Cibele Kuss é ouvidora da Segurança Pública do Estado do Pará.

Quem é

Ali Rochade Belém (PA)

EM PLENO processo de Fó-rum Social Mundial (FSM), a violência estatal contra jovens pobres e negros da região me-tropolitana de Belém (PA), só fez crescer. A ouvidora do Sistema de Segurança Públi-ca do Estado do Pará, Cibe-le Kuss, que está à frente do órgão desde meados de 2007, tem notado um aumento ex-pressivo na letalidade policial desde o início deste ano. En-tre as causas do problema, ela aponta a política de enfrenta-mento defendida abertamen-te pelas autoridades de segu-rança do Estado, a apologia a essa prática feita pela grande imprensa e o apoio da socie-dade ao uso da violência no combate à criminalidade.

A ouvidoria está acompa-nhando 13 homicídios ocorri-dos nas primeiras seis sema-nas de 2009 e 90% dos casos apresentam características de execuções sumárias. Cibele vê uma verdadeira criminaliza-ção da pobreza, já que todas as vítimas executadas moram em bairros de periferia. Ela defen-de que os órgãos de controle, a sociedade civil e os movimen-tos sociais trabalhem em con-junto para que um outro mun-do seja, de fato, possível.

Brasil de Fato – A senhora disse que o número de denúncias teve um aumento expressivo desde que assumiu o cargo na ouvidoria.Cibele Kuss – Sim, tivemos um aumento de 300% nas de-núncias, mas o que mais nos assusta é o aumento dos casos de letalidade. Você tem gera-ções inteiras de policiais mi-litares e civis formados nes-sa perspectiva de que bandido bom é bandido morto. Aí vem os secretários de segurança pública, os comandantes, os delegados gerais falando aber-tamente que a nossa política é repressiva e de tolerância zero. Imagine o que um praça com uma arma na mão, recém-saído de seu treinamento, vai fazer com essa arma. Ele es-tá ouvindo tolerância zero, re-pressão ao crime, imagina... Na primeira oportunidade que ele tiver, por uma questão até mesmo de falta de prepa-ro, vai acabar cometendo ho-micídios. Então, essa é uma preocupação muito grande.

Qual o caso recente que você considera mais emblemático?

Um deles é a chacina de Curuçambá. A poucos dias do início do FSM, um cabo da po-lícia militar foi assassinado durante um assalto em Ana-nindeua, bairro da periferia de Belém. A PM montou uma operação na área para encon-trar os assassinos do policial. Cinco pessoas acabaram mor-tas na operação, que recebeu o nome de “Reação”. Eles não conseguiram nem mascarar o propósito dessa operação.

Como a imprensa se posiciona em relação a essas mortes?

Aqui no nosso Estado, os jornais cujas páginas poli-ciais são um derramamento de sangue extremamente sen-

sacionalistas, fazem uma apo-logia diária à letalidade por-que as manchetes são sem-pre positivas no que diz res-peito a isso, dizendo coisas co-mo “mais um bandido fora de circulação”. Então dá a enten-der que a única forma de aca-bar com o crime é através da letalidade. E a imprensa aca-ba reforçando essa tese de que quando um policial mata uma pessoa, se ela for assaltante ou tiver antecedentes criminais, está legitimado.

Essas pessoas, na verdade, deveriam ser presas e julgadas...

Sim, isso só aumenta a vio-lência, pois se alguém que tem envolvimento com o crime sa-be que não vai passar por um processo jurídico normal, que não vai ser preso, que não vai responder um processo, é ób-vio que a letalidade deles tam-bém vai aumentar. Você tem um fogo cruzado com um ten-tando matar o outro. O bandi-do querendo matar o policial e o policial tentando matar o bandido. E no meio estão to-das as outras pessoas.

E como é a investigação desses casos?

Esses confrontos que apare-cem diariamente nos jornais, que nós muitas vezes suspei-tamos que haja envolvimen-to de policiais, raramente são investigados, porque os inqué-ritos, quando saem das dele-gacias, colocam normalmente um auto de resistência seguida de morte, então quando chega no judiciário, é arquivado por-que o réu está morto. Não sai como homicídio, mas deveria sair como homicídio. Auto de resistência é uma coisa, tem um embasamento legal, mas auto de resistência seguida de morte é uma invenção da po-lícia para realmente mascarar as execuções ocorridas e isso é realmente muito comum.

Para impossibilitar a perí-cia e difi cultar ainda mais as investigações, os policiais vio-lam a cena do crime, retiran-do o corpo mesmo quando a pessoa já está morta, colocan-do-o dentro da viatura e levan-do-o para o hospital, além de desaparecem com as armas e balas.

E qual o papel da sociedade civil nisso tudo?

Primeiro nós temos que conscientizar a sociedade em geral de como funciona esse jogo das execuções sumárias, e de como nós somos coagi-dos também e somos leva-dos pela imprensa a acredi-tar que aquilo realmente foi um confronto, mas as pesso-as em geral não sabem como funciona isso. O outro gran-de desafi o está nesse proces-so de monitoramento dos ca-

sos de letalidade. Esse mo-nitoramento é responsabili-dade da sociedade civil tam-bém. Ela deve se organizar e dizer para os corregedores, para o judiciário: “Olha, nós estamos aqui acompanhando esses casos e queremos que essa investigação seja feita com transparência”.

E as vítimas dessa letalidade policial são em geral homens pobres e negros...

E muito jovens, na adoles-cência ou início da fase adul-ta. E é realmente esse exter-mínio da população negra que é impressionante, esse eixo da cor é taxativo. Você identifi ca que são essas pes-soas que estão mais distan-tes das políticas públicas de inclusão social. Elas são real-mente as maiores vítimas. E são as mulheres que fi cam vi-úvas, que fi cam órfãs de fi lho, que vêm procurar a ouvido-ria. Na maioria das vezes são as mães que já tiveram outros fi lhos também assassinados pela polícia ou mortos em al-gum outro tipo de crime, mas que é consecutivo; a história dessas famílias é marcada por essa violência, por essas tra-gédias. É impressionante.

Você acredita que o mesmo aconteceria se as vítimas fossem da classe média?

Quando houve o assassina-to agora recente de algumas pessoas cujas referências profi ssionais eram públicas – médico, procurador – vo-cê teve um apelo e um di-recionamento muito grande da classe média. A imprensa chamava para caminhadas, para passeatas pela paz, ha-via realmente uma pressão, eu diria até fi nanceira, sobre o governo para que tomasse providências porque pessoas de bem morreram. Enquan-to que em todas as mobiliza-ções que nós fazemos, quan-do há casos de violência con-tra crianças e adolescentes ou assassinatos de jovens da periferia, você tem realmen-te um abandono total. Aí a sociedade se manifesta mes-

mo, com indiferença ou pu-blicamente, dizendo que es-tão aí defendendo os bandi-dos novamente.

A nossa sociedade então está dividida em cidadãos de 1a e 2a classe?

Isso fi cou muito explícito. O quanto a classe média é hi-pócrita, e como as elites ain-da têm o poder de conduzir os comandos da segurança pú-blica no nosso Estado. Deve-mos falar mais abertamente sobre essa hipocrisia, que es-ses mandos e desmandos es-tão ligados a uma classe so-cial muito branca, muito rica, muito detentora dessas cotas na política, e que isso tem um refl exo muito grande mesmo na sociedade – a estigmatiza-ção de grupos, de pessoas, da juventude, principalmente da juventude negra –, e trabalhar em processos de formação, de capacitação da juventude.

Como funciona o corporativismo na polícia?

“É uma situação muito di-fícil também para os pró-prios policiais militares e ci-vis que ainda possuem um pouco de dignidade e amor à farda, porque manter-se dig-no e fi el a essa profi ssão é um exercício diário de resistên-cia, e nós temos que dar todo apoio para aqueles policiais que têm um envolvimento nesse compromisso. Nós ti-vemos casos aqui de policiais que nos procuraram dizendo que estavam sendo ameaça-dos pelos próprios colegas.

Teve um policial militar cujo afi lhado de 16 anos foi morto por policiais. Ele foi até o local do crime e, por ter se recusado a cumprimen-tar os policiais que ali esta-vam, imediatamente depois passou a sofrer ameaças. Ele confessou que hoje tem mais medo da polícia do que de bandidos, e isso me chocou muito. Em outro caso, poli-ciais foram acionados para impedir um linchamento de dois assaltantes por morado-res da comunidade. Quando foram atender a ocorrência, descobriram que os dois ra-pazes haviam assaltado uma mercearia onde seus colegas de farda faziam bico de se-gurança e que teriam sido os próprios policiais a incitar o linchamento. Depois disso, passaram a ser perseguidos por esses colegas.

O judiciário também contribui para a impunidade dos policiais?

Os inquéritos já saem das delegacias com muita fragi-lidade, e o judiciário não se manifesta em relação a isso, então obviamente nós vamos

ter um resultado muito ruim. Muitas vezes a gente encon-tra promotores que solici-tam já no processo de inves-tigação que mude o delegado, que fazem algumas articula-ções para que se coloque lá um delegado ou uma delega-da que possa presidir esse in-quérito, que seja uma pessoa com mais autonomia. Mas aí depende muito do compro-metimento do promotor que está acompanhando aquele caso. E a isso a gente preci-sa dar valor. Mas na maioria dos casos não tem, o judici-ário está completamente ab-sorvido com a quantidade de processos que tem e devolve esses inquéritos para que ha-ja uma melhor investigação. Muitas vezes nem identifi ca as falhas no inquérito. E aca-ba absolvendo os policiais.

E o que a ouvidoria pode fazer sobre isso?

A ouvidoria tem que ter um papel mais ativo no monito-ramento da investigação dos casos. Em muitos casos que estamos acompanhando, es-tamos em diálogo direto com o promotor justamente pra fazer um trabalho em con-junto, para verifi car como foi construído esse inquérito, quais foram as falhas encon-tradas e o que a gente ainda pode voltar atrás para verifi -car. Acho que esse é um tra-balho fundamental da ouvi-doria. Se nós conseguirmos sistematicamente fazer esse tipo de coisa pelo menos nos casos mais emblemáticos, te-remos um avanço.

O que dizer de uma ouvidoria que recebe uma denúncia e simplesmente a encaminha para a corregedoria, sem fazer nenhum acompanhamento?

Aí vamos fechar as portas. Se a ouvidoria se reduzir a mandar um documento para a corregedoria, pode fechar a porta porque para isso não precisa ter ouvidoria, pa-ra isso qualquer pessoa po-de fazer. Se é só para mandar um ofício solicitando, não tem função nenhuma. Nós temos que realmente mo-nitorar. Isso signifi ca sen-tar com o corregedor, ir até a delegacia, conversar às ve-zes com o delegado, pergun-tar que tipo de investigação é essa, porque muitas vezes a gente vai até a corregedoria e a pessoa encarregada pelo caso diz: “Não, mas eu fui lá, investiguei, verifi quei”. Mas como é que as outras quatro pessoas viram coisas dife-rentes? Aí você, fazendo con-tato com as pessoas envolvi-das, vai tendo intuições e vai descobrindo coisas no decor-rer dessa aproximação. A ou-

vidoria tem que ter proximi-dade das pessoas, dos casos,para conseguir contribuir.

Você acha que uma polícia comunitária ajudaria a resolver o problema?

Sim, acredito que esse pro-grama de formação de segu-rança comunitária, de segu-rança cidadã, tem um eixo te-mático muito interessante. Érealmente fundamental, poisse inverte a lógica daquelepolicial frenético, enlouque-cido, com armas na mão den-tro de um carro, sem se re-lacionar com ninguém, paraum policial que realmente ca-minha, para a tal da polícia deproximidade.

Mas para que isso realmen-te aconteça, tem que haver uma conjuntura, um contex-to preparado para isso, por-que nas periferias e em algu-mas áreas as pessoas não que-rem essa polícia. A classe mé-dia não quer essa polícia, a eli-te não quer essa polícia. A eli-te quer a polícia que afaste as pessoas de perto delas, que afaste os pobres, que afaste aquele que chega para pedir alguma coisa, porque ela mor-re de medo de que alguém que bate no vidro do seu carro vá assassiná-la.

Os policiais continuam matando porque sabem que continuarão impunes?

Temos que fazer uma sé-rie histórica de punições aospoliciais violadores de direi-tos humanos. As puniçõesexemplares são fundamen-tais porque repercutem in-ternamente dentro das cor-porações. Elas têm uma for-ça enorme de criar novos re-ferenciais, de realmente ins-taurar uma política pautadana ética. Na maioria das ve-zes, policiais infratores nãosão punidos nem adminis-trativamente. Quando o são,uma semana depois já estãosoltos e duas semanas depoisjá estarão divididos em ou-tros lugares. Acho que esteé um grande desafi o nosso:verifi car que tipo de puniçãoexemplar eles estão realmen-te fazendo.

O que se verifi ca aqui eacolá é alguma punição no-ticiada por algum órgão deimprensa, para afi rmar queo Estado está punindo seusfi lhos. Mas, e depois? Essasmanchetes não têm funda-mentação, são apenas man-chetes para aquietar a socie-dade civil organizada e paranos enganar.

Alguma consideração fi nal?

A classe média, a elite, temmedo das crianças que pe-dem nos faróis. Acho que agente tem que ter coragemde falar mais abertamen-te sobre isso. E de trabalharmais para a autonomia dosnossos órgãos, para que elesrealmente possam trabalharnuma perspectiva de que apolítica de segurança públi-ca deve ter equidade. Umapolítica de segurança públicaque não tiver equidade sem-pre vai matar mais juven-tude negra e fazer cada vezmais segurança privada e se-gurança nos bairros ricos.

Ali Rocha escreve pelo Tribunal Popular em Belém (PA).

A imprensa acaba reforçando a tese de que quando um policial mata uma pessoa, se ela for assaltante ou tiver antecedentes criminais, está legitimado

No Pará, violência policial contrajovens pobres e negros da periferia

ENTREVISTA Cibele Kuss, ouvidora de Segurança Pública do Estado do Pará, tem notado um aumento expressivo na letalidade policial desde o início deste ano

Ali Rocha

Policiais militares revistam jovem negro em rua da capital paraense

Reprodução

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de 12 a 18 de fevereiro de 20098

brasil

Árvore da justiçapor Adão Pretto

Nós plantamos uma árvore cujas folhas nunca caem,O inverno vem e se vai e ressurge a primavera,E a natureza então gera muitas folhas e galhos novos,É uma esperança do povo que vem brotando da terra.

Em seus galhos haverá espaço pra todos os passarinhosConstruírem ali seus ninhos com fraternidade mútua.Darão milhares de frutas dos mais variados sabores,Produzirão também fl ores pra quem tombar nesta luta.

É a árvore da justiça que a honestidade cultiva,Regada por força viva que quer mudar a sociedade,E a fúria da tempestade não impede o crescimento,Porque é chegado o momento de nós elegermos a verdade.

A ganância e a mentira são contratempos que ocorrem,Mas a verdade não morre e continua sendo dita.Por aqueles que acreditam no fi m desta exploração,E nem as vozes dos canhões calam essas bocas que gritam.

Patrícia Benvenutida Redação

A LUTA pela reforma agrária e pela agricultura campone-sa perdeu um de seus símbo-los. No dia 5 de fevereiro, fa-leceu em Porto Alegre (RS) o deputado federal Adão Pretto (PT-RS), de 63 anos, devido a complicações após uma cirur-gia para retirada do pâncreas.

Agricultor por profi ssão e com apenas quatro anos de estudo, Adão Pretto nunca es-queceu suas origens simples. Foi por elas que, durante toda a sua vida, dedicou-se a defen-der os pobres, especialmen-te os pequenos produtores e aqueles que não tinham ter-ra. Que o diga o próprio Movi-mento dos Trabalhadores Ru-rais Sem Terra (MST) no Rio Grande do Sul, o qual ajudou a criar, há 25 anos.

HistóricoNatural da pequena cidade

de Coronel Bicaco, no noro-este gaúcho, Adão Pretto co-meçou sua trajetória política nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Ca-tólica, passando também pe-la Comissão Pastoral da Ter-ra (CPT) e pela presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Miraguaí.

Adão Pretto ingressou no Partido dos Trabalhadores em 1985, depois de passar pe-lo PDT. No ano seguinte, foi eleito deputado estadual. Ao terminar seu mandato na As-sembleia Legislativa, em 1991, elegeu-se deputado federal, mantendo-se no cargo, por meio de reeleições seguidas, por cinco mandatos.

Em seu caminho, Adão Pretto apresentou projetos de lei que pretendiam agilizar a reforma agrária no país e me-lhorar a qualidade de vida pa-ra os trabalhadores do campo, além de ter sido um dos mais ferrenhos opositores da ban-cada ruralista. Ainda como deputado estadual, em 1986 ele presidiu a CPI da Violên-cia no Campo na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a fi m de investigar os con-fl itos entre grandes latifundiá-rios e produtores rurais.

Adão Pretto também es-tava empenhado, nos últi-mos meses, em denunciar o plantio ilegal de eucalip-to na Faixa de Fronteira, no Rio Grande do Sul, encabe-çado pela empresa sueco-fi nlandesa Stora Enso. Se-gundo denúncias de entida-des e do próprio deputado, a transnacional estava utili-zando empresas-laranja pa-ra comprar terras que, de

acordo com a Constituição, por estarem na faixa de divi-sa não podem ser adquiridas por empresas de capital in-ternacional.

Seu último Projeto de Lei foi apresentado em outubro do ano passado, no qual pro-punha o fi m das indenizações compensatórias nos processos de desapropriação para refor-ma agrária.

Além da fundação do MST, Adão Pretto ajudou a criar a Central Única dos Trabalha-dores (CUT) na região Celeiro do Rio Grande do Sul e auxi-liou na organização do Partido dos Trabalhadores no Estado.

Trajetória políticaÉ com carinho e profunda

admiração que Frei Sérgio Go-ergen, ex-deputado estadual e integrante da Via Campesi-na do Rio Grande do Sul, lem-bra do antigo companheiro. A amizade dos dois iniciou em 1978, durante a 2ª Romaria da Terra, em São Gabriel, no su-doeste gaúcho, e fortaleceu-se quando Frei Sérgio foi traba-lhar na diocese de Frederico Westphalen, no norte, da qual Adão já fazia parte como inte-grante da Pastoral da Terra.

Foi nessa época, de acordo com Frei Sérgio, que surgiu a primeira oportunidade para Adão Pretto ingressar na vi-da política. “Ele [Adão] foi es-colhido coletivamente. Nós fi -zemos um debate no qual de-cidimos que os agricultores deveriam ter uma participa-ção no processo constituinte e que, para isso, era importante que a gente tivesse candidatos para a Constituinte federal e para a estadual. “A Igreja Pro-gressista assumiu as candida-turas, e [os candidatos] eram levados para tudo que era lu-gar para fazer o debate, o que levou à eleição do Adão para deputado estadual”, relata.

Simplicidade e humildadeNas palavras de Frei Sér-

gio, Adão Pretto era uma pes-soa muito “querida”, “pura” e “simples”, incapaz de dis-simulações para obter vanta-gens na vida política. “É inte-ressante como o Adão sobre-viveu na política esses 22 anos – 24, se contar o tempo de campanha – e não era capaz de dizer uma coisa pensando em outra. Ele era direto, com muita franqueza”, lembra.

O integrante do MST Dar-ci Maschio, que participou da fundação do Movimento e hoje é assentado na Fazen-da Annonni, também recorda da simplicidade de Adão. “O Adão era um agricultor. Mes-mo sendo deputado, ele era um pequeno agricultor hu-milde, simples, onde ele che-gava. Quantas e quantas ve-zes dormiu no nosso barra-co. Ele era tão discreto que, no meio do povo, quem não conhecia ele não dizia que ele era deputado. Era mais um no meio do acampamento, mais um acampado, não al-guém diferente”, explica.

Frei Sérgio destaca, ainda, outro traço marcante da per-sonalidade do amigo: a inteli-gência. Mesmo com a escassa escolaridade e com sérias di-fi culdades para ler, Adão era capaz de assimilar rapida-mente as ideias e ainda passá-las para os companheiros.

“Ele tinha uma capacidade de aprender auditivamente; como a gente costuma dizer, aprender de ouvido. Se a gente fazia uma discussão, inclusive de avaliação de conjuntura, ou mesmo temas científi cos de al-ta complexidade, o Adão pega-va aquilo e conseguia traduzir para os trabalhadores em uma linguagem popular, acessível, como um pedagogo popular, de forma impressionante.”

As lutas de Adão Apesar de lutar pela melho-

ria geral das condições de vi-da do povo, especialmente no campo, Adão Pretto tinha dois grandes objetivos que, para Frei Sérgio, já haviam se transformado em uma ob-sessão: o seguro agrícola e a reforma agrária. “Ele defen-dia em geral os agricultores, os sem-terra, mas duas coisas que ele não largava eram re-forma agrária e o seguro agrí-cola. O seguro agrícola ele viu realizado. Ele não se confor-mava com essa ideia de o sa-crifício do agricultor não ser recompensado quando tives-se uma intempérie climática ou algo assim. E a outra era a reforma agrária. Ele fi cava in-dignado com a má distribui-ção da terra”, garante.

Darci Maschio também re-corda da participação de Adão Pretto em momentos críticos para os trabalhadores sem-ter-ra, como nos enfrentamentos com a polícia gaúcha. “Em to-dos os confl itos da luta pela ter-ra no Estado ele esteve sempre presente, na intermediação, na busca de negociação. Mesmo sendo deputado federal de um partido que tem a presidência da República, nas negociações ele nunca teve a posição de go-verno, ele sempre teve a posi-ção dos movimentos, frente à Brigada Militar, frente ao pró-prio governo”, conta.

Lacuna para o PTO deputado estadual (PT-

RS) e agricultor assentado Dionilso Marcon também des-taca a participação de Adão Pretto em diferentes frentes de batalha, que iam desde a luta pela terra e pela reforma agrária até moradia nas cida-des e movimento sindical. “O companheiro Adão Pretto não tinha uma pauta só do Movi-mento Sem Terra; era em de-fesa de um projeto de vida pa-ra todos. É uma perda muito grande”, salienta.

A ausência de Adão Pret-to, segundo Marcon, também será muito sentida no Partido dos Trabalhadores. O deputa-do relata que, dentro do PT, Adão sempre teve uma postu-ra muito ética, respeitando as decisões partidárias ao mes-mo tempo em que seguia fi r-me em suas convicções. “A éti-ca do companheiro Adão Pret-to no partido e nas lutas não tem medida. Ele vai deixar uma lacuna na esquerda, sem-pre tentou segurar um par-tido de esquerda. O compa-nheiro Adão Pretto tem uma história que, se alguns nossos do PT lessem, com certeza não teriam que ser corrompidos nessa passagem”, avalia.

LegadoA novidade de Adão Pret-

to na política, para Frei Sér-gio Goergen, era o fato de es-tar atuando, com lealdade, em nome de sua própria clas-se. “O Adão era um campo-nês representando campone-ses, não era alguém que pe-dia voto da classe e depois re-presentava em nome da classe. Não, o Adão era parte da clas-

se e se sentia representando a classe. Por isso também nun-ca se deixou cooptar e nunca traiu”, afi rma.

A fi delidade de classe, por-tanto, é apontada por Frei Sér-gio como um dos grandes lega-dos de Adão Pretto não apenas para a política, mas para os movimentos sociais e para to-da a esquerda. “Eu acho que o grande legado do Adão foi ser alguém da classe popular que atua na política não como um político tradicional, mas co-mo um representante da clas-se, que atua na institucionali-dade sem perder as raízes po-pulares de onde ele vem”. Frei Sérgio também sinaliza a ética como companheira insepará-vel do deputado: “Nesse mo-mento de crise da política, es-pecialmente da ética política, o Adão é uma prova concre-ta, palpável, que vai fi car viva para sempre, de que a política não só deve ser diferente, mas a política pode ser diferente”, completa.

Para Darci Maschio, o que fi ca de Adão Pretto é “uma grande mensagem da neces-sidade da unidade, da humil-dade, da luta da transforma-ção, do sonho e da nossa uto-pia pelo socialismo. No Con-gresso, ele era um de nós lá.

Ele não apenas defendia oMovimento, ele era o Movi-mento lá dentro”.

O desejo de AdãoPelo número de autoridades

presentes e pela mobilização, o velório de Adão Pretto em Por-to Alegre foi comparado ao do ex-governador gaúcho Leonel Brizola, em 2004, uma das fi -guras mais populares do Esta-do. Além de militantes de mo-vimentos sociais e sindicais, compareceram à cerimônia o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, oito mi-nistros, além de senadores, de-putados federais, senadores e prefeitos. Adão Pretto também recebeu homenagens da Em-baixada de Cuba, do presiden-te do Paraguai, Fernando Lu-go, e de vários governadores.

No Rio Grande do Sul, a go-vernadora Yeda Crusius de-cretou luto ofi cial. O gesto da governadora, no entan-to, não impediu que, duran-te o enterro, o bispo eméritode Goiás, Dom Tomás Baldu-íno, criticasse a repressão so-bre os trabalhadores ruraisno Rio Grande do Sul. “Emvez de decretar luto por trêsdias, Adão certamente gosta-ria que a governadora paras-se com a repressão”, diz.

Seu último Projeto de Lei foi apresentado em outubro do ano passado, no qual propunha o fi m das indenizações compensatórias nos processos de desapropriação para reforma agrária

Esquerda perdeAdão Pretto,defensor da lutapela terraHOMENAGEM Além de deputado federal, o gaúcho Adão Pretto, que faleceu no dia 5 de fevereiro, era um dos fundadores do MST

O deputado federal Adão Pretto em seu gabinete na Câmara dos Deputados

Encontro com Fidel Castro no Anhembi, em São Paulo, em março de 1990; ao lado, no Rio Grande do Sul, durante Romaria da Terra, em fevereiro do mesmo ano

Divulgação

Douglas Mansur/Novo Movimento

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de 12 a 18 de fevereiro de 2009 9

américa latina

Fernanda Chavescorrespondente em

La Paz (Bolívia)

A NOVA Constituição Políti-ca de Estado da Bolívia está ofi cialmente em vigor após sua promulgação realizada na cidade de El Alto, diante de quase um milhão de pes-soas, “e não mais entre qua-tro paredes, conforme era feito antigamente”, como as-sinalou o presidente da Re-pública Evo Morales Ayma. A festa teve início na ma-nhã do dia 7 e só terminou de madrugada, após desfi -les militar e civil. Nem a gra-nizada que caiu no início da tarde dispersou a multidão composta por diversos movi-mentos organizados indíge-nas, de trabalhadores, parti-dários do Movimento ao So-cialismo (MAS) ou simples-mente gente que apoia o pro-cesso de transformações que vem sendo conduzido pelo atual governo.

Dos 411 artigos do tex-to constitucional aprovado, apenas 25 têm aplicação ime-diata. Os demais precisam ser regulamentados por no-vas leis e, além disso, muitos deles abrem a possibilidade para múltiplas interpreta-ções – o que pode ser um fa-tor gerador de violência. Na última edição (310), o Bra-sil de Fato tratou de dois temas bastante complicados na aplicação das mudanças da Constituição: economia e terra. Este último já foi moti-vo de dois confl itos nas áreas rurais de San Julian e Gua-rayos, em Santa Cruz, logo na semana seguinte à aprovação da nova Carta (referendada no dia 25 de janeiro).

Nesta reportagem, serão tratados outros dois temas

de correspondente em La Paz (Bolívia)

O artigo 342 da Nova Cons-tituição da Bolívia determi-na que “é dever do Estado e da população conservar, pro-teger e aproveitar de manei-ra sustentável os recursos na-turais, assim como manter o equilíbrio do meio ambiente”. Apesar de esse e outros artigos conferirem ao Estado o con-trole sobre os recursos natu-rais, existem zonas de inter-seção entre as diversas esfe-ras da administração pública, o que, segundo especialistas, pode ser um fator gerador de confl itos.

“Há contradições, vazios le-gais e confl itos de competên-cias existentes entre o Estado, os departamentos, as regiões e os povos indígenas”, afi rma o ex-ministro de Hidrocarbone-tos Andrés Soliz Rada.

Considerando as disposi-ções sobre os recursos reno-váveis, o ex-ministro está bas-tante preocupado. Ele acredi-ta que esse tema é complexo,

Próximos passos do processo bolivianoNOVA CONSTITUIÇÃO Para membro do Partido Socialista, governo Evo terá que negociar com todos para implantar mudanças

“Aqui, como no Brasil e em todas as partes do mundo, para manter seus interesses, os latifundiários estão dispostos a promover grandes atos de violência ou mesmo uma guerra”, alerta membro do Partido Socialista

que podem ser alvo de novos embates na arena política, ju-rídica e social boliviana: re-cursos naturais e autonomias (departamentais, regionais e indígenas). Como em mui-tos momentos os dois temas se confundem, eles serão tra-tados de forma conjunta (ver matéria abaixo).

Passo a passoJerjes Justiniano, membro

do Partido Socialista em San-ta Cruz, ressalta que pela pri-meira vez se aprovou na Bo-lívia uma Constituição via re-ferendo popular, e que ago-ra o governo estará obrigado a negociar sua aplicação com todas as forças políticas, in-

cluindo a oposição de direita, antes de recorrer ao mecanis-mo de pressão popular, como marchas e ocupação das ruas.

“Para aprovar várias leis, necessárias e inerentes ao funcionamento da nova Car-ta Magna, [o governo] deve-rá estabelecer acordos ou con-sensos e até negociações com cessão de parcelas de poder, a fi m de avançar”, afi rma Justi-niano. Neste sentido, ele acre-dita que o centro do debate político neste ano estará no Congresso. “Por certo, o ce-nário mais importante, a par-tir de hoje, será o Parlamento. Este ano, iniciado com a crise global do mundo capitalista, que nos afetará também, es-tará marcado por uma forte

tendência eleitoral. Dezembro deverá culminar com a eleição ou reeleição do presidente, vi-ce, deputados e senadores, de acordo com as novas regras do jogo, que deverão previamen-te defi nir o atual Parlamento, adequando-se aos novos ins-trumentos estabelecidos na Constituição Política de Es-tado recentemente aprovada por referendo”, complementa.

O representante do Parti-do Socialista enxerga três ver-tentes entre as forças da direi-ta, que seguramente poderão causar problemas para a apli-cação do novo texto constitu-cional. Uma ligada à burgue-sia fi nanceira, que sempre te-ve lucros altíssimos e agora começa a se preocupar com a

e que a nova Constituição abre o precedente para a ingerência estrangeira. Soliz explica que o uso do termo “nações” é inade-quado, porque “nação é uma categoria sociológica histori-camente constituída a que as-cendem comunidades huma-nas em determinado grau de desenvolvimento, que com-partem idioma, história, terri-tório, vida econômica e consci-ência de sua identidade”.

De acordo com o ex-minis-tro, “o MAS confundiu nações com culturas, cuja reivindica-ção é legítima. Infelizmente, em seu projeto de Constituição faz fi gurar como nações agru-pamentos humanos que, em al-guns casos, não chegam a cem pessoas. O texto outorga a es-sas nações inexistentes autono-mias sobre territórios e recur-sos naturais, assim como a ad-ministração da Justiça. Conhe-cemos as ambições dos centros de poder mundial sobre a bio-diversidade dos países periféri-cos. É óbvio que as grandes po-tências preferem negociar con-cessões sobre recursos natu-rais, renováveis e não-renová-veis, com mini governos indí-genas autônomos, suscetíveis de ser corrompidos por ONGs, em lugar de fazê-lo com sólidos Estados nacionais.”

Soliz se refere, por exemplo, ao longo artigo 304, que possui diversos itens e, entre eles, afi r-ma textualmente que “as au-tonomias indígena-originário-campesinas poderão exercer a gestão e administração dos re-cursos naturais renováveis, de acordo com a Constituição”.

Parceria com o EstadoOutros estudiosos, no en-

tanto, pensam diferente. Juan Pablo Flores, pesquisador do Observatório Boliviano de Re-

cursos Naturais, concorda que a Constituição permite a dupla interpretação, mas acha que está claro que a administração dos recursos pelos povos ori-ginários terá que ser feita em parceria com o Estado.

“Está determinado que os povos indígenas vão ter a ges-tão, mas isso terá que ser fei-to em concordância com o de-partamento ou com o Estado Nacional. As autonomias in-dígenas não vão poder decidir por si próprias para que não haja nenhum problema com a administração dos recursos naturais, por exemplo, os hi-drocarbonetos. Isso terá que ser feito com base num acordo comum entre as partes”, afi r-ma Pablo.

Com relação à nacionaliza-ção das transnacionais que exploram os recursos naturais da Bolívia, principalmente gás e hidrocarbonetos, Flores acredita que o processo, ainda que decretado desde maio de 2006, não se deu em sua ple-nitude. Mesmo que os termos

de contratos tenham sido alte-rados, para que haja uma na-cionalização plena dessas em-presas, será necessário avan-çar um pouco mais.

“Logo no momento do de-creto, o governo afi rmou que 82% dos recursos obtidos se-riam para o Estado e 18% pa-ra a empresa exploradora. Es-se seria o termo dos contratos. Mas em se tratando de mer-cado internacional, é muito difícil chegar a esses níveis. O governo se deu conta e re-trocedeu aos atuais 50% para cada lado. Sob esses aspectos, é mesmo difícil dizer que há uma nacionalização real, mas o pontapé foi dado. É apenas o início de um processo que se fi rma aos poucos nesse cená-rio hostil do capital interna-cional e, com a Nova Consti-tuição, temos mais um instru-mento”, aposta.

Gasto públicoHoje, programas como o

Renda Dignidade, de aposen-tadoria para os idosos, e Ju-

ancito Pinto, um bônus para crianças matriculadas em es-colas, existem graças à verba obtida com a nacionalização de transnacionais. Mas Flo-res ressalta que o governo de-ve atentar para o desenvolvi-mento de políticas públicas e de gestão, de forma a apro-veitar ainda mais o montan-te obtido com as nacionaliza-ções. “Muita gente não crê no processo das nacionalizações porque não vê o retorno, não vê esse dinheiro chegando. É preciso que o governo pense seriamente em desenvolver políticas para isso”, observa.

Para o ex-ministro Soliz, Evo Morales acertou a política pa-ra o setor de gás e petróleo no ano passado. “Em 2008 fi cou provado que as petroleiras, en-tre elas a Petrobras, não farão investimentos na Bolívia, sal-vo que esta se ponha de joe-lhos frente a suas exigências. Evo assumiu a conduta corre-ta: dotar a YPFB de 1 bilhão

de dólares para desenvolver projetos de forma autônoma. Com esse dinheiro, YPFB deve atender primeiro seu mercado interno, garantir ao país au-tossufi ciência alimentícia e de-senvolver seus próprios proje-tos, como o gasoduto interno, antes de se submeter a pres-sões estrangeiras”, aponta.

PrevisõesEm que pese a avaliação po-

sitiva de 2008, prevalece a cautela no prognóstico do ex-ministro em relação ao tema na Nova Constituição. “Em matéria de hidrocarbonetos, existe um artigo transitório (o oitavo), que respeita os direi-tos adquiridos pelas compa-nhias privadas, as que, desta maneira, poderão seguir ope-rando nas condições pactua-das. Na mineração, as empre-sas devem adequar seus con-tratos à nova Constituição no lapso de um ano”, diz.

Os primeiros sinais dão conta de que o governo se-gue perseverante na aindatortuosa estrada da imple-mentação de sua nova Cons-tituição. Vinte e quatro horasdepois de promulgada a Car-ta, uma considerável remexi-da nos ministérios e a criaçãode novas pastas aprofundou eampliou o campo de coorde-nação de ministros e vice-mi-nistros. Foram criados os mi-nistérios de Autonomia, Cul-turas e de Transparência Ins-titucional e Luta contra aCorrupção. Também foi cria-do um primeiro gabinete plu-rinacional, formado por 20ministros, cuja principal pau-ta é aplicar e fi scalizar a Nova Constituição.

O governo anunciou ain-da que haverá um regime de transição das autonomias, que deve adequar as condições de transferência de competên-cia de cada nível autonômico, numa espécie de pacto fi scal. Com as mudanças passam a fi gurar, em maior número, no novo poder executivo, ex-ca-tedráticos, ex-dirigentes sin-dicais, assessores da Central Obreira Boliviana (COB) e in-dígenas. (FC)

maior participação do Estado na economia; outra represen-tada pela velha burguesia mi-neira, sempre atenta aos pre-ços dos metais no mercado internacional; e a terceira é a burguesia nascente de San-ta Cruz, que não tem um pro-jeto nacional e luta pelo sepa-ratismo da região chamada meia-lua.

“Aqui, como no Brasil e em todas as partes do mundo, pa-ra manter seus interesses os latifundiários estão dispos-tos a promover grandes atos de violência ou mesmo uma guerra, se for necessário”, afi r-ma Justiniano. Nesse sentido, são fundamentais o controle sobre os recursos naturais e o manejo das autonomias.

“O MAS confundiu nações com culturas, cuja reivindicação é legítima”, lamenta ex-ministro

Recursos naturais e as autonomiasna Nova Constituição da BolíviaAs mudanças ainda estão bem no início

“É apenas o início de um processo que se fi rma aos poucos nesse cenário hostil do capital internacional e, com a Nova Constituição, temos mais um instrumento”, aposta pesquisador

José Lirauze/ABI

Mais de 500 mil bolivianos foram a El Alto para a promulgação da nova Constituição Política de Estado

Evo discursa para a multidão: “segunda independência” do país

José Luis Quintana/Min. Presidencia

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de 12 a 18 de fevereiro de 200912

cultura

Claudia Santiagode Belém (PA)

NA NOITE do dia 30 de ja-neiro, redes coloridas se es-palhavam pela Universidade Federal Rural da Amazônia, em Belém (PA). Elas pare-ciam enfeite de parede para receber os que chegavam pa-ra a cerimônia do sexto ani-versário do jornal Brasil de Fato. Não eram, não. É que ali estavam hospedados inte-grantes do MST que foram a Belém participar do Fórum Social Mundial. Após a fes-ta, as redes foram estendi-das e abrigaram corpos bem cansados.

Mas... voltando à cerimô-nia. Foi simples e bonita. Jornalistas de diversos paí-ses, comprometidos com a luta dos povos, se reveza-ram ao microfone para sau-dar a única publicação se-manal brasileira vendida em bancas.

“O Brasil de Fato é um instrumento da luta de clas-ses”, afi rmou o editor do jor-nal, Nilton Viana. Para ele, a ditadura hoje se apresen-ta através do monopólio da informação, controlada pelo capital fi nanceiro e transna-cional. “A cada ano que com-pletarmos comemoraremos mais um ano de resistência, ajudando a formar a classe trabalhadora para que ela fa-ça as transformações neces-sárias”, declarou.

A atividade contou com a presença de várias persona-lidades. Entre elas, a médica Aleida Guevara, que se defi -ne como “Hija de la Revoluci-ón e hija biologica del Che”. É

Aleida Guevara March

Caros amigos e amigas,

Fui convidada pelo Movi-mento dos Trabalhadores Ru-rais Sem Terra (MST) para, junto com eles, celebrar seu 25º aniversário de luta e re-sistência.

Compartilhamos momen-tos de ternura e plenos de es-peranças. Lembramos os que tombaram e nos comprome-temos a continuar a batalha até a vitória defi nitiva. Assu-mimos o compromisso de nos dedicarmos mais ao estudo e à preparação técnica, aumentar a nossa capacidade de análise política e econômica para po-der obter mais frutos, respei-tando e amando a terra. Assu-mimos o compromisso de so-lidariedade com outros mo-vimentos e com cada um dos homens e mulheres do mundo

Brasil de Fato comemora seis anos durante Fórum Social MundialRESISTÊNCIA Militantes, jornalistas, artistas e intelectuais participam de ato político-cultural para celebrar mais um aniversário do jornal

que necessitarem dela. Esses são alguns dos desafi os que o aniversário lança a todos nós.

Hoje (30/01), juntos, come-moramos o 6º aniversário do Brasil de Fato, um dos poucos periódicos que tenta e conse-gue informar o povo sobre o que realmente acontece ao seu redor, tarefa que corresponde a um verdadeiro órgão de in-formação: ilustrar o povo com a verdade, para que ele tenha a capacidade de reagir. É uma tarefa difícil, mas que nestes tempos se torna imprescindí-vel. Avante, companheiros!

Há muita coisa que temos que denunciar, muita coisa que temos que publicar para contribuir com o conhecimen-to e a consciência popular.

Nestes dias com tantas ati-vidades, participamos jun-to com outros convidados in-ternacionais de um intensi-vo e profundo aprendizado do grande Brasil e da nossa Ama-

zônia. Desconhecíamos mui-tas coisas. Visitamos uma mi-na de ferro, quiçá a maior do mundo, que é cavada nas ele-vações da Amazônia e que atinge o subsolo, acabando com o ambiente em volta – ainda que os senhores que nos receberam digam o contrário, mostraram-nos uma reserva com animais bem cuidados, mas incapazes de se valer por si próprios no seu habitat. É uma pena não termos podido ver qualquer benefício social ou econômico para as popula-ções da região. Já que destro-em a natureza, ao menos, seria lógico esperar que os homens e mulheres mais humildes em volta da mina fossem compen-sados. Mas isso não acontece, o que é uma vergonha.

Também fomos conhecer os projetos sociais que com pou-cos recursos e grande vontade foram conseguidos pela fi rme-za desse povo. Conhecemos a história de homens que mor-reram defendendo o seu direi-to à terra para viver com dig-nidade, conhecemos outros que conseguiram preservar a vida, que dançam e resgatam suas raízes culturais, e que de-ram para nós o exemplo de hospitalidade e ternura.

Depois visitamos a hidre-létrica de Tucuruí, impres-sionante obra de engenha-ria. Nela é produzida ener-gia que não chega aos que mais necessitam, e os que po-dem desfrutá-la têm que pa-gar um alto preço por ela. No bairro seleto da alta hierar-quia da empresa [Eletronorte – responsável pela hidrelétri-ca], no entanto, os moradores usam e abusam da energia sem nada pagar por isso.

A natureza é novamente da-nifi cada; a vida humana, ul-trajada; a cultura, despreza-

da; e a dívida humana e social volta a ser protelada. O de-senvolvimento econômico é considerado mais importan-te do que a vida, o que pro-voca em nós pena, dor, impo-tência. Mais ainda ao consta-tar que o benefício desse de-senvolvimento é para poucos, e a maior parte dele perma-nece fora do país.

Porém, o que mais impac-to teve sobre mim duran-te todo o percurso foi a es-colta militar que nos acom-panhou por esses dias. Hou-ve helicópteros de combate, pelotão da Guarda Nacional equipado com armamento pesado e até dois tanques de guerra. E a verdade é que me pergunto para quê. Por quê? Ainda não consigo acreditar. O único motivo que penso é que nós, um grupo heterogê-neo de pessoas, grande par-te com cabelo grisalho, sem mais armas que a nossa voz e a nossa inteligência, provoca-mos medo.

Pensem vocês que, se a nossa presença faz com que os poderosos peçam prote-ção para uma imensa mina de ferro e uma hidrelétrica com helicópteros e tanques, então o que precisarão mo-bilizar quando o povo unido decida mudar a realidade em que vive? Com certeza, vocês já sabem disso.

Também visitamos a ilha de Marajó. A impressão com que volto de lá é que a TV Glo-bo não precisa fazer “novelas de época”. É só copiar a reali-dade dessa ilha e com isso se-ria sufi ciente para mostrar co-mo eram as coisas no sécu-lo 19 ou 18, ou ainda antes. É inaudito o que lá acontece, na nossa frente. No entanto, da-mos as costas para essa reali-dade. Donos da terra que pen-

sam ser deuses, que se acham no direito de mudar os limites das “suas terras” quando as-sim o desejarem, sem levar em conta ninguém nem se impor-tar com os danos provocados nas outras pessoas. Senhores feudais que impedem a pesca nos “seus rios”. Que é isso?

É a triste demonstração da ignorância em que vivem muitos homens e mulheres ainda hoje, desconhecendo seus direitos mais elementa-res. E isso deixa bem claro que se não formos capazes de unir as nossas forças, nunca conse-guiremos mudar e muito me-nos construir um mundo mais justo para todos.

Retorno a Cuba com dor pe-los irmãos que sei que ainda

têm muito que aprender para continuar o caminho.

Mas retorno também coma felicidade de conhecer ecompartilhar a minha vi-da com o Movimento SemTerra, que a cada dia mos-tra que, sim, é possível essemundo melhor e necessáriopelo qual batalhamos.

Retorno à casa pequena sa-bendo que Brasil de Fato continua a luta por levar a luz e a justiça para os homens e mulheres desta grande pátria latino-americana.

Muito obrigada.

Aleida Guevara March é médi-ca pediatra, cubana, fi lha mais

velha de Che Guevara com suasegunda esposa, Aleida March.

emocionante mirar o rosto de Aleida, bem parecido com o do pai. Impossível não pensar em tudo o que o nome Gue-vara signifi ca para a esquerda latino-americana.

Vito Giannotti, um dos co-ordenadores do Núcleo Pirati-ninga de Comunicação (NPC), convidado a dar o seu depoi-

mento sobre o jornal, não per-deu tempo. Enfatizou a neces-sidade de ler, divulgar, assinar e presentear os amigos com o Brasil de Fato. “Um grande instrumento para a disputa de hegemonia com nossos inimi-gos de classe”, disse.

O último orador foi João Pedro Stedile, da direção na-

cional do MST. Stedile lem-brou a tradição revolucioná-ria da esquerda europeia, de construir jornais, boletins e programas de rádio. E criti-cou os partidos de esquerda que trocaram a sua voz por três minutos da televisão. “Alguns chegaram a dizer que a imprensa é neutra”.

O dirigente do MST des-tacou que, embora o Bra-sil de Fato não tenha se consolidado como um jor-nal de massas, como era seu objetivo inicial, “tira-gens extras de até 2 mi-lhões de exemplares são feitas quando a conjuntu-ra exige”.

Para ele, a comunicação de esquerda é central no mun-do, hoje. “Durante os séculos 19 e 20, a burguesia reprodu-zia suas ideias através da es-cola, da igreja, dos partidos. Agora, a televisão é o princi-pal instrumento para trans-mitir a ideologia burguesa” (www.piratininga.org.br).

“É possível esse mundo melhor e necessário pelo qual batalhamos”

Extração de minério de ferro na mina da Vale em Carajás

Cena de mística realizada durante o Fórum Social Carajás

Aleida Guevara durante o ato: “ilustrar o povo com a verdade para que ele tenha a capacidade de reagir”

João Zinclar

Douglas Mansur/Novo Movimento

Dou

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Nov

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