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Edição 116 - Março de 2010 ISSN 1807-779X R$ 16,90

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ISSN 1807-779X Edição 116 - Março de 2010 2 JUSTIÇA & CIDADANIA | MARÇO 2010

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Edição 116 - M

arço de 2010

ISSN 1807-779X

R$ 16,90

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2 JUSTIÇA & CIDADANIA | MARÇO 2010

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2010 MARÇO | JUSTIÇA & CIDADANIA 3

editorial

dom Quixote: esforço garante a construção da maior

escola pública de Sergipe

CNt HomeNaGeia lideraNÇaS Com a medalHa JK

a VeNezuela e o merCoSul

a aFirmaÇÃo do triBuNal PleNo: a redemoCratizaÇÃo do Poder

JudiCiÁrio BraSileiro

PreSCriÇÃo do “FuNdo de direito”

tarSo GeNro: um diSCÍPulo de BoBBio À FreNte da

JuStiÇa No BraSil

CoNStituiÇÃo e iNterVeNÇÃo

a FraGilidade da PriVaCidade Na mÍdia diGital

a reCuPeraÇÃo JudiCial e o deSaFio de Sua aPliCaÇÃo eFetiVa

em FoCo:recuperação prolongou

vida de empresas

a reVoluÇÃo da lei Por uma NoVa utoPia liBertÁria

PÓS-NeoliBeral

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10 Novo CPC dará mais agilidade à Justiça

S umário

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26Prefeito Faria lima: legitimidade pela eficácia

Justa e merecida homenagem

o vale-transporte em dinheiro

a afirmação do feminismo

Foto: Jorge dos SantosFoto: Arquivo CIEE

Foto: Rosane NaylorFoto: STJ

Foto: STJ

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4 JUSTIÇA & CIDADANIA | MARÇO 2010

EDIÇÃO 116 • MARÇO DE 2010

COnsElhO EDItORIAl

ORPHEU SANTOS SALLESEDITOR

TIAGO SANTOS SALLESDIRETOR EXECUTIVO

ERIkA BRANCODIRETORA DE REDAÇÃO

DAVID SANTOS SALLESEDITOR ASSISTENTE

DIOGO TOMAZDIAGRAMADOR

GISELLE SOUZAMARINA ITOJORNAlISTAS COlAbORADORAS

LUCIANA PERESREVISORA

EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIAAV. NIlO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOlIRIO DE JANEIRO – RJ CEP: 20020-906TEl./FAX (21) 2240-0429

SUCURSAIS

SÃO PAULORAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAUlISTA, 1765 / 13°ANDARSÃO PAUlO – SP CEP: 01311-200TEl. (11) 3266-6611

PORTO ALEGREDARCI NORTE REBELO RUA RIACHUElO, 1038 / Sl.1102ED. PlAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO – PORTO AlEGRE – RS CEP: 90010-272TEl. (51) 3211-5344

BRASÍLIAARNALDO GOMESSCN, Q.1 – bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAl PARK bRASÍlIA – DF CEP: 70711-903TEl. (61) 3327-1228/29

CORRESPONDENTEARMANDO CARDOSOTEl. (61) 9674-7569

[email protected]

CTP, IMPRESSÃO E ACABAMENTOZIT GRÁFICA E EDITORA lTDA

ISSN 1807-779X

alVaro mairiNK da CoSta aNdrÉ FoNteSaNtoNio CarloS martiNS SoareSaNtôNio Souza PrudeNtearNaldo eSteVeS lima arNaldo loPeS SüSSeKiNd aurÉlio waNder BaStoSBeNedito GoNÇalVeSCarloS aNtôNio NaVeGaCarloS ayreS BrittoCarloS mÁrio VelloSoCeSar aSFor roCHadalmo de aBreu dallaridarCi Norte reBeloedSoN CarValHo VidiGalelliS Hermydio FiGueiraeNriQue riCardo lewaNdowSKieroS roBerto GrauFÁBio de SalleS meirelleSFerNaNdo NeVeSFraNCiSCo PeÇaNHa martiNSFrederiCo JoSÉ GueiroS

Gilmar Ferreira meNdeSHumBerto GomeS de BarroSiVeS GaNdra martiNSJerSoN KelmaNJoaQuim alVeS BritoJoSÉ auGuSto delGadoJoSÉ CarloS murta riBeiroJoSÉ eduardo Carreira alVim luiS FeliPe SalomÃo luiz FuxmaNoel CarPeNa amorimmarCo aurÉlio mellomaSSami uyedamauriCio diNePimaximiNo GoNÇalVeS FoNteS Ney PradoorPHeu SaNtoS SalleSPaulo FreitaS BarataSerGio CaValieri FilHoSiro darlaNSylVio CaPaNema de SouzatHiaGo riBaS FilHo

acesse o novo portal Justiça & Cidadania

www.revistajc.com.br

Foto: Rosane Naylor

BerNardo CaBralPresidente

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2010 MARÇO | JUSTIÇA & CIDADANIA 5

xadrezes da Polícia Federal pelos atos desonestos praticados no enxovalhar do cargo que o povo lhe outorgou, sirva de amostra aos que, como o famigerado e desonesto Arruda, ainda usam, abusam e se locupletam com os dinheiros públicos.

O julgamento no Supremo Tribunal Federal do pedido de habeas corpus, formulado pelo defenestrado Governador, constitui, pelo ineditismo da importante e fulminante decisão, um ato judicial que lavou a alma de todos os brasileiros que acreditam e praticam a ética e a moralidade, inconformados de ver um desabrido patife encastelado num importante cargo público, como um renitente facínora, a mentir e emporcalhar o múnus público.

Motivo de orgulho e satisfação deste longevo jornalista ver e ouvir pela televisão os magníficos e acachapantes votos dos seus conhecidos e admiráveis ministros da Alta Corte, com as respectivas, claras e definidas posições, rememorando as incidências penais dos malfadados atos praticados pelo indigitado e desavergonhado José Roberto Arruda e seus asseclas e cúmplices.

A decisão do Supremo Tribunal Federal já era aguardada após a recusa, muito bem fundamentada, do Ministro Marco Aurélio Mello ao pedido de liminar no habeas corpus, impetrado a favor do desmerecido Governador Arruda, inclusive também pelo revelador e antecipado pronunciamento do Ministro Gilmar

O clima de imoralidade política com a prática contumaz de desonestidade que corrompe a administração pública, como demonstram os escândalos que são noticiados diariamente, deixam à mostra, indelével

e tristemente, o quadro revelado para a população, que se queda abismada com tantos e escabrosos atos criminosos, sem que os delinquentes que os praticaram sejam exemplarmente justiçados e levados aos cárceres.

A Justiça, que está sendo chamada pelas inúmeras e constantes denúncias de corrupção, não pode permanecer inerte pela morosidade, aferrada a princípios retrógrados de direitos já ultrapassados pela realidade, que, inclusive, já não atendem às circunstâncias e condições dos crimes cometidos, que se apresentam numa constante contumácia, a afrontar impunemente a sociedade.

Absurdamente e com tristeza, mas também com alvissareiras esperanças, a população brasileira assistiu, através dos órgãos de comunicação, a administradores ímprobos e corruptos serem levados às prisões pelos crimes que cometeram, desmerecendo e abusando dos poderes que o povo lhes confiou.

Oxalá que o exemplo de anticidadania, portanto de invulgar tristeza para a nossa democracia, da prisão de um importante e faustoso administrador público como era o corrupto Governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, agora recolhido aos

editorial

A MORALIDADE OU A INDIGNIDADE

Dói na alma e no coração ver um governante sair direto do palácio para a cadeia. Há quem chegue às

maiores alturas para fazer as maiores baixezas.Ministro Carlos Ayres Britto

“Dói na alma e no coração ver um governante sair direto do palácio para a cadeia. Há quem chegue às

maiores alturas para fazer as maiores baixezas.”Ministro Carlos Ayres Britto

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6 JUSTIÇA & CIDADANIA | MARÇO 2010

Mendes, ao classificar a política de Brasília como em estado de “metástase institucional”.

Após o pronunciamento do Ministro José Antonio Toffoli, optando em votar conforme seu entendimento processual, o desenrolar dos votos dos eminentes ministros valem ser lembrados pela beleza de expressões e fundamentos claros e precisos. Felizmente, o que era esperado aconteceu com a concludente decisão.

O Supremo Tribunal Federal, chamado em cumprimento a sua obrigação e prerrogativa republicana, decidiu pelos votos de seus membros, com reconhecido louvor, como o voto memorizado do Ministro Joaquim Barbosa, as explícitas fundamentações do Ministro Celso Mello e o discorrer lógico do Ministro Cezar Peluso. Reflete bem o acachapante, mas também misericordioso, pronunciamento do Ministro Carlos Ayres Britto: “Dói na alma e no coração ver um governador sair direto do palácio para a cadeia. Há quem chegue às maiores alturas para fazer as maiores baixezas.” Os demais votos, como o bem fundamentado do Ministro Lewandowski e das magnificas Ministras Ellen Gracie e Carmem Lúcia, constituíram para todos que tiveram a graça de assisti-los, pessoalmente ou pela Televisão, como um verdadeiro refrigério a alentar as esperanças dos que acreditam no Estado Democrático de Direito e na Justiça, para que todos, ricos e pobres, brancos e negros, governantes ou do povo, cumpram a lei ou venham a pagar exemplarmente pela transgressão.

Ocorre ainda que, independente da continuidade prisional do indigitado Governador do Distrito Federal na cadeia da Polícia Federal, encontra-se na Alta Corte o pedido de Intervenção Federal no Distrito Federal, formulado pelo Procurador-Geral da República, Roberto Monteiro Gurgel Santos, para apurar a responsabilidade do Governador e dos integrantes

da Assembleia Legislativa. O pedido foi fundamentado com o apurado pela Polícia Federal e o Ministério Público através da operação Caixa de Pandora, deflagrada no dia 27 de novembro de 2009, em que ficaram constatados, com provas irretorquíveis contra o Governador e os deputados, pilhados em flagrante recebendo pacotes de dinheiro consignados e provados como produtos de propina, suborno e corrupção.

Os fatos são notórios e públicos, absurdamente vistos pela população através das imagens dispostas na Televisão. O Governador José Roberto Arruda já se encontra preso, com prisão decretada e sustentada por julgamento no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, as instituições no Distrito Federal estão completa e irremediavelmente contaminadas pela corrupção e pela improbidade administrativa, comprovadas e em pleno estado terminal de putrefação, como acentuou o eminente Presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, e, consequentemente, também impossível de recuperação moral e ética.

A manutenção da Assembleia Legislativa está agora ainda mais conspurcada com a tentativa dos meliantes que a compõem propondo, como já fizeram, a destituição traiçoeira do seu chefe quadrilheiro e a sua decapitação, na busca da imoral tentativa de salvar a Instituição que ajudaram, com os subornos e patifarias largamente praticados, a chafurdar na lama e na podridão.

O descrédito, a desmoralização e o aviltamento que a Casa Legislativa de Brasília granjeou perante a opinião da população foram demonstrados pelas acrimoniosas manifestações populares em frente à sede da Assembleia, onde a população, revoltada e liderada por universitários, espalhou excremento em evidente significação ao péssimo conceito dos seus membros.

Os desmesurados e nababescos gastos de todos os deputados, com a chusma de 2.296 apadrinhados em cargos comissionados e de sinecuras, consumindo mensalmente a importância de R$2.567.090,66 (dois milhões, quinhentos e sessenta e sete mil, noventa reais e sessenta e seis centavos), se exemplifica com os que mais se aproveitam da excrescência; da Deputada Eliana Pedrosa, que mantém 318 afilhados à sua disposição em cargos comissionados, que vai num decrescendo de imoralidade, até o Presidente Wilson Lima, com 101, além de ter nomeado, nos poucos dias como governador interino, cerca de 823 sinecuristas, como noticiado nos jornais.

Os gastos escandalosos não ficam apenas no acima demonstrado, pois enquanto o custo anual de cada deputado distrital fica em 14 milhões de reais, os dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, com super e imensas obrigações estruturais, chegam a 7,2 milhões e 7,5 milhões, respectivamente.

Acresce ainda que a grande imprensa do País, notadamente os grandes jornais, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Estado de São Paulo” e a “Folha de São Paulo”, desde há muito, cansam de repetir e denunciar as escandalosas e faraônicas obras superfaturadas, além das licitações fraudadas.

Foto: Sandra Fado

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Orpheu Santos SallesEditor

Os escândalos e a corrupção são em demasia para que não sejam exemplarmente reprimidos. A continuidade representa um incentivo ao roubo e à ladroagem que campeia livremente no País. A prisão do corrupto propineiro do panetone, José Roberto Arruda, serviu como gáudio e esperança da população, descrente ante tanta bandalheira, patifaria e corrupção da politicalha, como um abafa ao ronco das multidões prestes a enfurecer diante da situação de miséria e falta de assistência social, médica, hospitalar e de medicamentos para as infelizes e sofridas camadas pobres da Nação.

Vale lembrar a advertência oportuna e muito própria de Rui Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, e ter vergonha de ser honesto.”

É, portanto, hora de abjurar o vaticínio e a preocupação de Rui Barbosa. É tempo de moralizar e dignificar a administração pública e a política.

Há que se levar em consideração também a adjetivação que o Ministro Gilmar Mendes fez ao classificar os escombros da administração de Brasília como “metástase institucional”, o que, num linguajar jornalístico e num entendimento mais popular, define hoje o Executivo e o Legislativo do Distrito Federal, melhor e mais apropriadamente, como entidades putrefactas em estado terminal.

É também oportuno lembrar as incidentes considerações que o Ministro Marco Aurélio Mello proferiu, no habeas corpus impetrado contra a prisão do corrupto Governador Arruda: “Eis os tempos novos vivenciados nesta sofrida República. As instituições funcionam atuando a Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário. Se, de um lado, o período revela abandono a princípios, perda de parâmetros, inversão de valores, o dito pelo não dito, o certo pelo errado e vice-versa, de outro, nota-se que certas práticas — repudiadas, a mais não poder, pelos contribuintes, pela sociedade — não são mais escamoteadas, elas vêm à baila para ensejar a correção de rumos, expungida a impunidade. Então, o momento é alvissareiro.”

Também oportuno, apropriado à situação calamitosa por que passa a escandalosa política e a administração pública de Brasília, o categórico e persuasivo pronunciamento do autor do pedido de Intervenção Federal, o ilustre e digno Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel: “O problema é mais profundo. O Executivo e o Legislativo não têm as mínimas condições de exercer suas atribuições constitucionais, o que afeta o princípio republicano. Ora, os fatos compreendem inédita prisão do Governador, renúncia do Vice-Governador — igualmente envolvido — por temor à sua submissão ao processo de impedimento, assunção do Governo pelo Presidente da Câmara, notório aliado do Governador afastado, e condução trôpega pela Câmara Legislativa do Distrito Federal nas questões

relacionadas à apuração da responsabilidade do Governador e de deputados distritais envolvidos em diversos crimes — entre eles o desvio de verbas públicas.”

O digno Procurador-Geral da República, fez constar também de sua manifestação trechos de veemente pronunciamento recebido de líderes comunitários do Distrito Federal, que tristemente relatam a compreensão da sociedade ante fatos tão escabrosos: “A corrupção é ruim não apenas porque é proibida por lei. Não só porque representa a ameaça ao dinheiro público. Muito mais grave, a corrupção é ruim, sobretudo, porque solapa a confiança mútua que deve sustentar a sociedade entre pessoas. Este é o sentido clássico do termo: numa sociedade corrupta, a depravação estabelece-se como parâmetro e a conduta ética é vista como excentricidade, quando não como motivo de risadas.

Em suma, sob a falaciosa bandeira da defesa da autonomia da política brasiliense, instituições hoje relacionadas ou abertamente comprometidas de um modo ou outro com o grupo que levou Brasília ao atual estado de degradação moral lutam contra a intervenção. De um lado encontra-se a grande maioria da população de bem, envergonhada e exaurida com toda essa depravação, que em pesquisas de opinião manipuladas tentam convencer a todos do contrário: trata-se aqui da mesma população que vinha apanhando nas ruas a atrever-se a protestar contra os corruptos; trata-se da massa de moradores honestos do DF; seria mesmo possível afirmar que se fala da comunidade nacional estarrecida com o que vem ocorrendo com a capital do País, que anseia a intervenção, triste, mas única alternativa viável para a esperança de restauração da moralidade. A denegação da intervenção só viria em benefício da preservação do esquema criminoso que comanda a política do Distrito Federal.”

Diante das considerações acima, que relatam o descalabro moral que se abate sobre o Executivo e o Legislativo do Distrito Federal, somente resta uma condição para sanear a situação vigente e consolidar uma possibilidade da volta às normas de direito e, consequentemente, da dignidade pública no Distrito Federal: A INTERVENÇÃO FEDERAL!

Quanto à designação do interventor pelo Presidente da República, após o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, há expectativa de que seja feita uma boa indicação para o saneamento administrativo da capital da República, com base em outras indicações presidenciais, como quando das escolhas dos magníficos membros da Alta Corte que foram efetivados pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Diante da expectativa pelo que acontece em Brasília, vale lembrar, como advertência, que as grandes nações e impérios do passado desmoronaram pelo desrespeito à moralidade pública e à dignidade e pela depravação dos costumes.

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8 JUSTIÇA & CIDADANIA | MARÇO 2010

Entrevista: Orlando Rochadel Moreira, Promotor de Justiça do Estado de Sergipe

ESFORÇO GARANTE A CONSTRUÇÃO DA MAIOR ESCOlA PÚblICA DE SERGIPE

Diálogo ao invés de litígio. Foi com base nesse lema que o Promotor de Justiça Orlando Rochadel de Moreira conseguiu praticamente o impossível: construir a maior escola pública do Estado de

Sergipe. Ele coordena o senso educacional, um projeto do Ministério Público sergipano que tem como objetivo identificar os bairros com maior evasão escolar. As crianças encontradas fora das salas de aula são encaminhadas para as escolas do bairro ou outras das redondezas. Essa solução, no entanto, mostrou-se ineficaz no bairro de Santa Maria. O levantamento, feito por mil voluntários mobilizados pelo Promotor, identificou 2 mil jovens sem estudar.

“Diante deste quadro de abandono, o Ministério Público tinha duas opções: ajuizar uma ação ou procurar reunir os governos federal, estadual e municipal, empresários e toda sociedade civil para dar uma solução àquele problema. Mais fácil seria ingressar com a ação, só que ela nem sempre dá o resultado que esperamos”, explicou Moreira, que se engajou na busca por parceiros interessados na criação da instituição de ensino, dando início ao projeto “O Ministério Público, o Estado, a Sociedade Civil e a Construção da Maior Escola Pública”.

O resultado foi a construção da maior escola pública da região, onde estudam 3.200 crianças e adolescentes. De todos os alunos do último ano a se formar, 34 passaram no vestibular. O Promotor explicou que o projeto terá continuidade. “Esse projeto não tem fim enquanto houver uma criança necessitando aprender a ler e escrever, melhorar a autoestima e acreditar

que é possível atingir um objetivo. Nas primeiras palestras que fiz no bairro, as crianças diziam que queriam ser jogadoras de futebol ou mecânicos. Esse era o sonho dos alunos. Hoje, querem ser médicos, advogados e promotores”, afirmou o Promotor, que venceu a última edição do Prêmio Innovare com esse projeto.

Revista Justiça & Cidadania – Como surgiu o projeto para a construção da maior escola pública de Sergipe?Orlando Rochadel Moreira – Temos em Sergipe, desde 1998, um projeto chamado senso educacional, por meio do qual, a cada três ou quatro meses, visitamos uma cidade do interior ou um bairro de Aracajú. Reunimos, às vezes, 300 a 500 censitários e visitamos todas as casas dos bairros, para saber em qual delas há crianças e adolescentes fora da sala de aula, sem registro de nascimento, com deficiência ou que seja analfabeto. É um trabalho considerado modelo pelo Ministério da Educação. Em Aracajú, costumávamos encontrar 50 crianças em um determinado bairro, 40 em outro. Então, as próprias escolas do bairro ou de bairros vizinhos recebiam essas crianças. Até que, em 2003, no bairro de Santa Maria, encontramos 2 mil crianças fora da sala de aula. Diante deste quadro de abandono, o Ministério Público tinha duas opções: ajuizar uma ação ou procurar reunir os governos federal, estadual e municipal, empresários e toda sociedade civil para dar uma solução àquele problema. Mais fácil seria ingressar com a ação, só que ela nem sempre dá o resultado que esperamos. Os processos judiciais, às

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vezes, levam muito tempo, têm recursos e acabam indo parar em Brasília. Enfim, a experiência das ações judiciais para concretização de políticas públicas não é otimista. Optamos, então, por fazer um Termo de Ajustamento de Conduta em que o Estado e o Município, os empresários e a Petrobras se comprometeram a construir essa escola. Assim foi feita a escola, que hoje, com a compra de terreno e construção, teria custado R$ 8 milhões. É a maior escola pública do Estado de Sergipe. Tem 3.200 jovens matriculados. A primeira turma do terceiro ano se formou agora, sendo que 34 alunos passaram no vestibular. Começa, então, a render frutos. Por conta da escola, esse bairro que não tinha nada, ganhou um fórum, uma delegacia, um supermercado, um posto de combustível. O bairro está se desenvolvendo muito. Tudo isso demonstra a importância da educação em uma das comunidades mais violentas de Aracajú. É a prova de que a educação conduz a sociedade a um patamar de qualidade.

JC – Foi difícil mobilizar tanta gente em prol desse projeto?ORM – Temos dois projetos: o censo e o da escola. O primeiro é um trabalho que fazemos desde 1998, científico, para o qual contamos com a ajuda do MEC e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O censo é feito por voluntários, muitos professores do próprio bairro, promotores, juízes, funcionários do IBGE, servidores públicos. O censo de Santa Maria foi feito por mil voluntários. Agora, mobilizar as empresas foi o mais difícil. Fizemos um vídeo com fotos das crianças de Santa Maria no meio do lixo, mendigando, se prostituindo.

Com esse material, visitamos os empresários de Aracajú e perguntamos em qual local eles achavam que aquelas fotos haviam sido retiradas. Eles citavam várias partes do mundo, menos Aracajú. Eles próprios não imaginavam que havia um quadro de tanta carência e abandono que fica praticamente no centro de Aracajú. Então, se sensibilizaram com esse trabalho e doaram recursos. O Ministério Público, como órgão sem conotação política, com a credibilidade que tem, conseguiu reunir dezenas de empresas em prol do projeto.

JC – Quais são os resultados do projeto?ORM – Estamos agora ampliando a escola para colocar mais 775 alunos de ensino médio e em tempo integral. Existe a formação formal. No entanto, há a preocupação com a educação informal, em fornecer noções de cidadania. Lá não encontramos paredes e carteiras riscadas. Sempre levamos palestrantes que tratam de temas como drogas, gravidez na adolescência. O resultado são alunos interessados, querendo melhorar de vida. É gente que mora em barraco e que agora está passando em vestibular e tendo uma perspectiva melhor.

JC – Em sua opinião, o diálogo, em certas ocasiões, surte mais efeito que o litígio, ou seja, a ação judicial?ORM – Se nos perguntarmos qual é a principal lição desse projeto, veremos que é a importância do consenso, da conversa e do ajustamento. Quando conseguimos envolver pessoas e a sociedade civil, o resultado é mais efetivo. O trâmite de uma ação judicial é muito complicado, assim como os prazos e os recursos. A reunião de tanta gente em torno de um projeto também é difícil, mas quando conseguimos convencê-las sobre a importância dele, as coisas se tornam um pouco mais fáceis. Nesse sentido, o Ministério Público cumpre papel muito importante, de fazer essa intermediação, na concretização de políticas públicas, pois age como um elo de credibilidade. Quando essa escola foi feita, o governo do Estado era do PFL, e o municipal do PT, ou seja, ambos de duas correntes políticas antagônicas. Mesmo assim eles se uniram em torno do projeto. Então, essa é grande lição. Unir as pessoas em torno de projetos comuns, mesmo quando elas têm pensamentos políticos diferentes.

JC – O projeto acaba com a construção desta escola ou haverá continuidade?ORM – Esse projeto não tem fim enquanto houver uma criança necessitando aprender a ler e escrever, melhorar a autoestima e acreditar que é possível atingir um objetivo. Nas primeiras palestras que fiz no bairro, as crianças diziam que queriam ser jogadoras de futebol ou mecânicas. Esse era o sonho dos alunos. Hoje, querem ser médicos, advogados e promotores. Olha a mudança de cultura. Mudamos a mentalidade deles. A cada 15 dias, levamos para fazer palestras pessoas que conseguiram algo através do estudo. Batemos muito nessa tecla: é possível conseguir algo através do estudo. Os alunos ficam estimulados.

Foto: Arquivo Pessoal

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Foto: Sandra Fado/STJ

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NOvO CPC DARá MAIS AGIlIDADE à JUSTIÇA

Uma novidade também destacada por Fux é o incidente de coletivização, que permitirá a suspensão dos processos de massa até que o julgamento de um que os represente e sua decisão se tornem paradigmas. “Isso evitará centenas de ações e recursos que chegam hoje ao Judiciário. O importante não é termos instrumentos para enfrentar 250 mil ações, mas que não tenhamos 250 mil ações. De um lado, resolveríamos todos os processos pendentes, de outro evitaríamos que essas ações sejam propostas, porque as decisões vinculariam os juízos, logo no primeiro instante da tramitação processual, a assumir a posição favorável ou desfavorável, conforme adotado no incidente de coletivização”, afirmou.

De acordo com o Ministro, essas mudanças visam maior celeridade do processo. Ele explica, no entanto, que esse princípio, norteador do trabalho da Comissão, não prejudicará a segurança jurídica. “A segurança jurídica não significa que o processo seja absolutamente infindável. Pelo contrário, ela é representada a partir do momento em que uma decisão judicial se torna imutável e indiscutível. Essa decisão judicial terá tanto mais legitimidade na medida em que for aplicada uniformemente aos casos iguais. Então, com base nesse ideário, procuramos tornar o processo mais simples e, por isso, mais célere”.

O Ministro tem realizado uma série de audiências públicas pelo País, para recolher sugestões e críticas da sociedade civil e de especialistas sobre as propostas apresentadas. “Temos verificado, com uma surpresa agradável, o fato de que as

É grande a expectativa em torno do trabalho desenvolvido pela Comissão de Juristas instituída pelo Senado Federal para elaborar o anteprojeto de reforma do Código de Processo Civil (CPC). A norma, em vigor desde 1973,

foi modificada pelo menos umas 60 vezes e é considerada pelos operadores do Direito uma colcha de retalhos e uma das principais causas da morosidade do processo judicial. O Ministro Luiz Fux, do Superior Tribunal de Justiça, é o presidente do grupo incumbido de alterar a legislação. Ele explicou à Revista Justiça & Cidadania que as mudanças a serem apresentadas pela Comissão no final de abril, quando acabará o prazo para a entrega do último texto, serão substanciais. “O processo civil brasileiro terá uma nova cara”, avisa.

De acordo com o Ministro, o anteprojeto elaborado prevê a redução considerável de recursos cabíveis, principalmente no curso do processo. “Alteração expressiva é o término desses incidentes que vão se criando no curso do processo e que dão margem a muitos recursos, como por exemplo o incidente de impugnação do valor da causa, a exceção de incompetência, o incidente de falsidade documental, a impugnação de assistência judiciária. Tudo isso agora será arguido como preliminar. O juiz, ao final, é que solucionará essas questões. Por isso, haverá um só recurso no término da causa, e nele poder-se-á abordar tudo o que não tenha ficado satisfatório durante o processo”, afirmou o Ministro, explicando que a exceção ficará para as medidas de urgência.

Entrevista: Luiz Fux, Ministro do Superior Tribunal de Justiça

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audiências públicas têm convergido para aquelas soluções adotadas pela Comissão. Em alguns casos há soluções que não são possíveis de serem adotadas, pois demandariam emendas constitucionais ou leis complementares”, afirmou o Ministro, que nesta entrevista destaca os principais pontos do texto elaborado pela Comissão.

Revista Justiça & Cidadania – O Código de Processo Civil de 1973 primava pela segurança jurídica. O projeto atual, que visa a reformá-lo, prioriza a celeridade. Como é possível agilizar procedimentos judiciais garantindo a eficácia e a segurança jurídica paralelamente?Luiz Fux – Não é impossível conciliarmos esses dois valores. Na medida em que optamos por desformalizar o processo para torná-lo mais rápido, ao criar procedimentos mais simplificados, demos maior reforço à jurisprudência dos tribunais superiores, que é exatamente o que garante a segurança jurídica. A segurança jurídica não significa que o processo seja absolutamente infindável. Pelo contrário, ela é representada a partir do momento em que uma decisão judicial se torna imutável e indiscutível. Essa decisão terá tanto mais legitimidade na medida em que for aplicada uniformemente aos casos iguais. Então, com base nesse ideário, procuramos tornar o processo mais simples e, por isso, mais célere. Isso,

no entanto, sem violar qualquer cláusula pétrea constitucional relacionada à garantia do devido processo legal e da ampla defesa. Sem prejuízo (a ambos os princípios), demos ao resultado final do processo força capaz de ser aplicado aos casos idênticos, fazendo valer o princípio da igualdade a todos perante a Justiça.

JC – Muitos têm criticado essa força normativa que se pretende dar à jurisprudência. Como o senhor avalia isso?LF – Na realidade, a força da jurisprudência é fundamental porque é o caminho por onde percorrem as cortes mais evoluídas. Porquanto, em um primeiro momento, pode dar a impressão de que seja uma posição cômoda, quando, na verdade, a força da jurisprudência está exatamente na possibilidade de ser extensiva aos casos idênticos ao mesmo tempo em que torna a decisão judicial previsível. E isso diminui muito o denominado Risco Brasil. A jurisprudência é fundada nessa ideia de se uniformizar a interpretação de um Direito que tem que ser entendido da mesma maneira em todo o território nacional. Se o direito é federal, a interpretação tem que ser uniforme, e isso se obtém através da força da jurisprudência. Por outro lado, essa força, quando vincula juízes e tribunais locais, evita que haja a delonga da resposta judicial ao cidadão. Ele não será instado a buscar uma solução nos tribunais superiores

O Presidente do TJERJ, Luiz Zveiter, a Relatora da Comissão, Tereza Arruda Alvim, e o Ministro do STJ, Luiz Fux

Foto: Rosane Naylor

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se os próprios juízos locais puderem lhe dar o que daria a jurisprudência do Tribunal Superior.

JC – As audiências públicas que estão sendo realizadas nas mais diversas capitais do País para debater o anteprojeto do novo CPC estão servindo de termômetro da aceitação da sociedade civil e dos operadores do Direito sobre as propostas da Comissão. Que mudanças consideráveis foram ou serão efetuadas no projeto após essa consulta popular?LF – Em primeiro lugar, temos verificado, com uma surpresa agradável, o fato de que as audiências públicas têm convergido para aquelas soluções adotadas pela Comissão. Em alguns casos, há soluções que não são possíveis de serem adotadas, pois demandariam emendas constitucionais ou leis complementares. Na verdade, são sugestões que escapam à matéria elaborada no bojo do Código de Processo Civil. Por exemplo, há algumas figuras que queríamos excluir, como a intervenção de terceiros. No entanto, tem-se ponderado que, em vez de excluir, deveria haver uma redefinição de alguns institutos, que vamos efetivamente abolir. Temos também constatado, com certa reiteração, o fato de que não devemos deixar de estimular a criação de juizados de conciliação, embora não devamos incluir no Código de Processo Civil duas categorias de juízes, os que conciliam e os que julgam. Isso tem sido aludido com certa constância.

JC – Na audiência pública do Rio, observamos a manifestação de leiloeiros e oficiais de Justiça que reclamaram de certo esvaziamento de suas funções. O anteprojeto de reforma do CPC realmente diminui as atribuições desses profissionais?LF – Na verdade, não entendo que essa seja uma repercussão do novo Código. Entendo que é uma repercussão da criação do processo eletrônico em si. A criação do processo eletrônico vai tornar a utilização de mão de obra humana desnecessária em algumas etapas. No entanto, isso não obsta esses profissionais de se reunirem em entidades capazes de proporcionar, àqueles que necessitam dos serviços judiciários, trabalhos próprios e adaptáveis ao processo eletrônico. A informatização troca o homem pela máquina. A culpa não é do Código nem das leis. A culpa é da evolução da ciência como um todo.

JC – Que pontos o senhor destacaria do anteprojeto como sendo os mais importantes?LF – Destacaria como relevantes as seguintes alterações básicas: a criação do incidente de coletivização, por meio do qual algumas causas pilotos, previamente escolhidas, servirão de paradigmas para solucionar milhares de outras ações. Isso evitará centenas de ações e recursos que chegam hoje ao Judiciário. O importante não é termos instrumentos para enfrentar 250 mil ações, mas que não tenhamos 250 mil ações. De um lado, resolveríamos todos os processos pendentes; de outro, evitaríamos que essas ações sejam propostas, porque as decisões vinculariam os juízos, logo no primeiro instante da tramitação processual, a assumir a posição favorável ou desfavorável, conforme adotado no

incidente de coletivização. A segunda alteração expressiva é o término desses incidentes que vão se criando no curso do processo e que dão margem a muitos recursos, como por exemplo o incidente de impugnação do valor da causa, a exceção de incompetência, o incidente de falsidade documental, a impugnação de assistência judiciária. Tudo isso agora será arguido como preliminar. O juiz, ao final, é que solucionará essas questões. É bem possível que a parte possa sair vencida numa questão formal dessas, mas sairá vencedora em relação à causa final. Por isso, haverá um só recurso no final da causa, no qual poderá abordar tudo o que não tenha ficado satisfatório durante o processo. Salvo, evidentemente aquelas hipóteses de tutela de urgência, que serão recorríveis imediatamente.

JC – Um dos pontos mais discutidos entre as alterações propostas é a criação de apenas um recurso ao final da sentença. Esse recurso seria a apelação. E os embargos declaratórios?LF – A nova sistemática proposta limita o uso do agravo de instrumento e exclui o cabimento dos embargos infringentes; mas, em contrapartida, estabelece que os fundamentos do voto vencido fazem parte do recurso que é levado aos tribunais superiores. Só evitamos essa etapa dos embargos infringentes porque podem suscitar muitos recursos e causar muita demora à prestação da justiça. Os embargos de declaração seguirão a regra geral do recurso. Ou seja, vamos exigir preparo e sempre haverá uma sucumbência recursal. A cada derrota da parte no recurso, ela terá que pagar as despesas correspondentes. Pagará também multas já previstas na lei e todas as despesas daqueles recursos e consectários da derrota judicial. Então, a parte vai pensar duas vezes antes de recorrer. A cada derrota haverá uma consequência patrimonial.

JC – Muitos juristas consideram que a multa prevista no artigo 475-J do vigente CPC, de 10% sobre o montante da condenação, não penaliza nem amedronta os executados, tendo em vista que alguns tribunais do País já arbitravam multas em percentuais superiores e com retorno mais satisfatório antes da “reforma da Execução”. Isso será mantido ou revisto no anteprojeto?LF – Essa regra será mantida. Também será esclarecido que essa multa incide independentemente da intimação da parte. A multa é devida desde o trânsito em julgado da decisão, pois se trata do cumprimento da obrigação. A parte, anteriormente, já sabia que resistira a uma pretensão e, posteriormente, se recusa a cumprir a obrigação estabelecida na sentença. Então, o novo Código vai manter essa multa. Também haverá nova sucumbência, no início do cumprimento da sentença e no início da sucumbência, se houver alguma resistência no seu cumprimento. Vamos eliminar a impugnação ao cumprimento da sentença. A parte poderá, por simples petição, fazer uma oposição qualquer que queira fazer, e se essa decisão for novamente impugnada, ela pagará multa e honorários.

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JC – No Direito das Obrigações, há previsão para multa diária em todas as espécies obrigacionais: obrigação de dar coisa certa, obrigação de fazer, obrigação de não fazer. Por que esse instituto não pode inspirar a alteração do artigo 475-J, ampliando a multa de 10% sobre o montante e cumulando com a figura da multa diária? Se a intenção é penalizar e estimular o cumprimento da obrigação voluntariamente, essa medida não seria mais eficiente?LF – Haverá cumulação pelo descumprimento com multa diária. A diferença é que, quando essa multa diária alcançar

o valor da obrigação principal, o que for remanescente pertencerá ao Estado.

JC – Qual, então, é o objetivo dessas multas?LF – O objetivo é vencer a obstinação do devedor em não cumprir a obrigação. Na realidade o que se pretende é que o devedor não resista injustificadamente ao cumprimento da obrigação.

JC – Qual foi a metodologia empregada na divisão dos trabalhos da Comissão?LF – Em primeiro lugar, estabelecemos as proposições. Não votamos artigos de leis, porque esse seria um trabalho infindável. Estabelecemos que proporíamos teses em relação a todos os temas. Não houve, em um primeiro momento, uma divisão específica de trabalho. As proposições são todas da Comissão. Posteriormente, para efeitos de divisão de trabalho interno, criamos subcomissões referentes às partes Geral, de Conhecimento, de Execução e Recursos e dos Procedimentos Especiais.

JC – O anteprojeto está sendo analisado pelo STF?LF – No Direito brasileiro não há um controle prévio de constitucionalidade das leis como há na França. No Direito brasileiro, o controle de constitucionalidade é realizado após a lei já estar em vigor. O que fizemos, por uma questão de nos resguardamos, foi procurar ouvir a opinião científica do Supremo Tribunal Federal. A colaboração do STF é científica. Não tem prazo. Até porque não se poderia conceder prazo ao STF. Ele não atua no controle prévio da constitucionalidade. Foi mais uma consideração por se tratar da mais elevada corte do País.

JC – O Código de Processo Civil em vigor, com 37 anos e mais de 60 alterações, vem sendo definido como “colcha de retalhos”. Das últimas modificações sofridas, quais deverão ser aproveitadas pela Comissão?LF – Na realidade, a Comissão teve uma dupla percepção. A primeira delas foi de que não se elabora uma nova lei de forma abrupta e também a de que não se elabora uma nova lei com aquele mimetismo de ficar repetindo o que já está na norma em vigor. Então, fizemos formalmente uma modificação com a criação de uma parte geral aplicável a todos os procedimentos, à semelhança do que ocorre com os códigos europeus. Também criamos um livro próprio para os recursos, unificando determinados institutos, dando sistematização às inúmeras alterações realizadas durante as duas últimas décadas, em que o Código veio sendo reformado pontualmente, com certa constância. Também vamos fazer uma modificação de ideologia. Criaremos um instituto extremamente novo com o incidente de coletivização, com a eliminação de incidentes. Estamos mudando totalmente o paradigma da recorribilidade constante no Direito brasileiro. No entanto, muita coisa da lei anterior vai permanecer, de sorte a conviver com essa nova ideologia. É um novo Código, mas que, na realidade, é novo na sua ideologia, com uma série de mudanças recentes e muito bem elaboradas em relação às reformas recentes.

• Nos casos em que houver pessoa beneficiária da Justiça gratuita envolvida no processo, ocorrerá a inversão do ônus da prova, devendo o Estado arcar com as despesas.

• Adequação do Código de Processo Civil com a lei que trata do processo eletrônico, para tornar a comunicação dos atos processuais compatível com as modernas tecnologias de comunicação e informação.

• Ampliação dos poderes dos magistrados, dando a eles a possibilidade de adequar o procedimento às peculiaridades do caso concreto. Em contrapartida, fortalecer a proteção ao princípio do contraditório. As partes sempre deverão se manifestar, inclusive em relação às matérias sobre as quais o juiz puder se exprimir sem que haja prévia provocação destas.

• Audiência de conciliação obrigatória como passo inicial de qualquer lide.

• Comparecimento espontâneo da testemunha. A exceção será sua intimação por carta com aviso de recebimento.

• Extinção do instituto da remessa necessária, ou seja, não será mais obrigatório o envio para a 2ª instância de processos em que as decisões tenham sido proferidas em desfavor ao ente público.

• Unificação dos prazos para a interposição de recursos em 15 dias, de forma a simplificar e uniformizar o sistema e também a majoração dos honorários advocatícios a cada recurso não provido, para desestimular a utilização desse instrumento como forma de atrasar o andamento do processo.

• Estímulo à utilização da Lei nº 11.672 de 2006, que impede o ajuizamento de recursos repetitivos, o que evitará a chegada de diversas demandas que tratem de matéria já pacificada.

• Diminuição da quantidade de recursos, inclusive restringin-do as hipóteses de utilização desses, com a abolição dos embargos infringentes e do agravo como regra, adotando-se no primeiro grau de jurisdição uma única oportunidade de impugnação, quando da sentença final.

• A criação do incidente de coletivização que resultará na escolha de um processo piloto para ser julgado, entre muitos que versem sobre um mesmo assunto, enquanto os demais ficariam suspensos aguardando julgamento.

PrinciPais alterações

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político com as causas do País, renovação das atividades econômicas, e todas as marcas símbolos da Casa que são muito bem representadas pela sua figura ímpar.”

Agradecendo a homenagem recebida, o Sr. Lázaro Brandão, grande homenageado do dia, declarou que os 200 anos de história da Associação Comercial do Rio de Janeiro representam a síntese de um excepcional trabalho feito pela Associação para a sociedade brasileira, acrescentando: “Estas homenagens são o reconhecimento de um trabalho feito sempre com dedicação. Esta Casa merece muito mais, pois sempre trabalhou com empenho e dignidade em prol da sociedade.”

Compareceram ao evento, reverenciando o Sr. Lázaro Brandão, inúmeras personalidades que lotaram o salão onde foi realizada a solenidade, entre elas o Senador Bernardo Cabral, Consultor Jurídico da Confederação do Comércio, Presidente do Conselho Editorial da Revista Justiça & Cidadania e amigo de longa data do homenageado; diretores da entidade; o Presidente-Executivo, José Luiz Alquéres; o Presidente do Conselho, Humberto Mota; Ronaldo Cesar Coelho; o Juiz de Direito Francisco Horta; o General Rubens Baima Denys; Maurício Dinepi, Presidente do Jornal do Comércio; Theóphilo de Azeredo Santos; o acadêmico Ricardo Cravo Albim; Júlio Bueno, Secretário de Estado; Jonas Barcellos Corrêa Dutra, Presidente da Brasif - SA; e, os diretores da Revista Justiça & Cidadania, Orpheu Santos Salles e Tiago Santos Salles.

O venerando cidadão Lázaro de Mello Brandão será igual-mente festejado, em data próxima, na sede do Banco Bradesco, em Osasco-SP, ocasião em que receberá o Troféu Dom Quixote de La Mancha, oferecido pela Confraria Dom Quixote e pela Revista Justiça & Cidadania, como prêmio por sua efetiva participação como Presidente da Fundação Bradesco, na grandiosa obra social e educacional que proporcionou nestes últimos anos para 4.500 milhões de alunos, filhos e dependentes de funcionários da Organização, além de jovens de locais carentes em municípos onde o Banco Bradesco tem atuação.

A Associação Comercial do Rio de Janeiro promoveu no último dia 25 de fevereiro, na sua sede, solenidade para homenagear o Sr. Lázaro Brandão, Presidente do Conselho Administrativo do Banco Bradesco e da

Fundação Bradesco, com a entrega da Medalha Grau Ouro, comemorativa aos 200 anos da Edição do Alvará Régio, que deu origem à Praça do Comércio, atual Associação Comercial do Rio de Janeiro.

O Sr. Lázaro Brandão foi, juntamente com o saudoso Amador Aguiar, um dos fundadores do Banco Brasileiro de Desconto na cidade de Marília-SP, que hoje se constitui na Organização Bradesco, a maior entidade econômica financeira da América do Sul.

A homenagem recebida reflete o justo reconhecimento de uma personalidade em plena vivência de 83 anos de trabalho, dedicação, princípios éticos, coragem e determinação, que são retratados pela grande participação em inúmeras atividades produtivas, coroadas pela magnífica e expressiva ação social e educacional que a Fundação Bradesco executa, tendo já nos 53 anos de profícua atuação proporcionado estudo técnico e profissional para mais de 4.500 milhões de estudantes, tornando-se a maior organização internacional privada de ensino.

Na ocasião, o homenageado Lázaro Brandão foi saudado pelo Presidente-Executivo da Associação Comercial, José Luiz Alquéres e por Humberto Mota, Presidente do Conselho Superior da ACRJ, que destacaram a efetiva e benéfica atuação do homenageado motivadora das homenagens e honrarias que já recebeu da entidade, e que o distinguiram com o título de Grande Benemérito da Associação Comercial do Rio de Janeiro.

Ao discursar, Humberto Mota declarou que o Presidente de Honra da Comissão reúne todas as características necessárias à representação da Casa do Empresário, afirmando: “A homenagem a Lázaro se estende ao seu caráter empreendedor, pioneirismo, abrangência nacional, compromisso social e

Da Editoria

JUSTA E MERECIDA HOMENAGEM

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Foto: Arquivo Pessoal

Senador Bernardo Cabral, Sr. Lazáro Brandão, Sr. Humberto Mota e Sr. José Luiz Alquéres

Sr.Lazáro Brandão, Senador Bernardo Cabral e o jornalista Orpheu Santos Salles, trocando ideias e auspiciosas passagem do passado

Foto: Rosane NaylorFoto: Rosane Naylor

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CNT HOMENAGEIA LIDERANÇAS COM A MEDAlHA JK

os brasileiros. Visionário, cortou o País com estradas, investiu na energia, acelerou o progresso de industrialização e fez a construção da nova capital e motivação que uniu brasileiros para romper o desafio de levar o progresso para o interior do País. Um transporte forte e eficiente é o reflexo imediato de uma economia igualmente forte e saudável”.

Doutor Bernardo Cabral, ex-ministro da Justiça, ex-parla-mentar, relator da Constituição de 1988 e presidente do Conselho Editorial da Revista Justiça & Cidadania, único agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Transporte Brasileiro – Medalha JK, discursando em nome dos demais agraciados, estes no Grau de Grande Oficial e Oficial, colocou em relevo que recebia tão alta distinção no instante em que o País ainda não deixou de exibir a existência de uma excessiva concentração de renda nas mãos de uns poucos, em detrimento de uma grande maioria, o que acaba por gerar desemprego, exclusão, fome, falta de habitação, violência. Tudo resultante de uma profunda injustiça social.

O Presidente da Confederação Nacional do Transporte, Clésio Andrade, recepcionou no dia 10 de março, na sede da entidade em Brasília, lideranças políticas, empresariais e sindicais com a Medalha da Ordem

do Mérito do Transporte Brasileiro 2009, conhecida como Medalha JK.

A solenidade, prestigiada por parlamentares e pelo Presidente da Academia Brasileira de Letras e ex-presidente do Tribunal de Contas da União, Marcos Villaça, serviu também para homenagear o patrono da Ordem do Mérito do Transporte — o ex-presidente Juscelino Kubitschek.

O Presidente da CNT, Clésio Andrade, destacou a impor-tância do reconhecimento à contribuição dos homenageados ao transporte no País e lembrou que o caminho trilhado por Juscelino Kubitschek é um exemplo a ser seguido por todas as lideranças do setor, afirmando: “JK deve ser considerado por todos como o presidente que redescobriu o Brasil para

Bernardo Cabral, durante seu discurso de agradecimento

Foto: Júlio Fernandes/CNT

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Por essa razão é preciso que se faça — e, mais do que nunca, a hora é chegada — uma ponte de harmonia, através do “rio” de tanta desunião, de tantos desencontros, uma vez que a situação emergente não mais permite o fanatismo sectário ou as provocações estéreis ou a prepotência arbitrária.

O momento — continuou ele — é o da crítica construtiva, da participação sem adesismo condenável, da contribuição não só em criatividade mas em solidariedade, a fim de ajudar o Brasil a não cair no poço escuro da apatia, do medo, do desânimo e do descrédito a que pode ser levado em virtude da onda de corrupção que cria tentáculos de capilaridade em todos os Poderes. A Nação precisa continuar empenhada em reencontrar os caminhos de sua grandeza. E para isso se faz necessário que nos voltemos todos para a sua reconstrução política, fincando raízes no subsolo da nossa nacionalidade, alcançando a sua estrutura econômica e política, pois um país só se mantém erguido nos braços da soberania de seu povo.

E soberania não tem preço, por mais alto que seja o valor que por ela pretendam oferecer.

A partir daí, Bernardo Cabral iniciou os seus agrade cimentos às autoridades presentes, destacando as figuras do Presidente da Confederação Nacional dos Transportes, Doutor Clésio Andrade, do Presidente de Honra da CNT, Thiers Fattori Costa, e do Doutor Lélis Teixeira, Presidente-Executivo da Fetranspor, um dos agraciados, por ter revolucionado o transporte no Estado do Rio de Janeiro.

Bernardo Cabral encerrou o seu discurso numa emotiva homenagem ao editor da Revista Justiça & Cidadania, Orpheu Santos Salles — presente à solenidade — pelo tempo em que esteve preso, por ordem do Governo Militar, nos idos de 1964, no porão do navio Raul Soares, durante quase um ano, em meio aos ratos e baratas, sem perder a dignidade e cuja saga retratou no poema de sua autoria intitulado “Navio-Presídio”. Fonte: CNT

Da esquerda para a direita: Lélis Marcos Teixeira, Presidente-Executivo da Fetranspor; Salomão Pereira da Silva, taxista e responsável pelo jornal “Folha do Motorista” (São Paulo e Rio de Janeiro) e pelo “Jornal do Trânsito” (São Paulo) ; e Natal Aparecido Brunholi, Presidente do Sindicato dos Taxistas e Caminhoneiros de Presidente Prudente (SP)

Foto: Júlio Fernandes/CNT

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A AFIRMAÇÃO DO FEMINISMO

Nesse mês de março, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, em um país onde a luta por reconhecimento e ascensão profissional permanece firme guiada por mulheres que romperam barreiras e

venceram obstáculos, mulheres como Mirtes de Campos, Nísia Floresta, e, porque não, a Ministra Eliana Calmon merecem ser lembradas pelo exemplo de força incansável em uma luta, muitas vezes injusta, em busca do mínimo: a igualdade.

Primeira juíza de carreira, segunda mulher no País, a ingressar em um Tribunal Superior, a Ministra Eliana Calmon é conhecida por sua discrição, sua firmeza e seu irretocável senso prático, comum aos que, como ela, dominam a lei e todas as suas vertentes.

Considerada objetiva e pragmática, a Ministra tem como um de seus hobbies a culinária. “Com o tempo a mídia encheu as revistas e os programas de televisão de homens na cozinha e agora a culinária ficou chic e virou moda, e hoje, passados quinze anos, ninguém mais duvida de uma ‘Ministra Cozinheira’”, enfrenta a Ministra, com bom humor, as críticas e o preconceito com a publicação de seu primeiro livro de receitas, “REsp - Receitas Especiais”, em 1995, atualmente na 8ª edição.

A Ministra Eliana Calmon é digna de representar a todas nós, mulheres, nesse mês simbólico mas especial, sobretudo por sua luta nas questões femininas e por seu engajamento nas políticas públicas sociais.

“Ninguém ganha espaço de poder pelo só reconhecimento da justiça ou da injustiça. É conquistar, e só se conquista espaço de poder pela luta direcionada em prol da igualdade. Assim,

somente os ordenados movimentos feministas são capazes de serem arautos das necessidades do grupo, somente eles são capazes de tornar público e chamar a atenção da mídia quanto à condição feminina”, afirma a Ministra.

Nessa entrevista, gentilmente cedida à Revista Justiça & Cidadania, a Ministra fala um pouco sobre sua participação nos movimentos feministas e o que pensa sobre o quinto constitucional e as reformas do Judiciário.

Revista Justiça & Cidadania – Vossa Excelência foi a segunda mulher, primeira juíza de carreira, a chegar a um Tribunal Superior. Os tribunais superiores totalizam 13 mulheres em um universo de 86 Ministros, ou seja, 15%. O que Vossa Excelência pensa sobre a participação das mulheres na cúpula do Judiciário ser ainda tão pequena?Ministra Eliana Calmon – O Poder Judiciário foi o último dos Poderes a modernizar-se no que toca à aceitação das mulheres. Basta verificar que somente em 1999 é que chegou a um Tribunal Superior a primeira mulher, fruto de um compromisso assumido pelo Presidente da República em Protocolo de Intenções.

Quando os Movimentos de Mulheres, em 1995, preparavam a pauta para o Congresso Internacional de Mulheres em Beijing, China, perceberam a realidade brasileira: em todos os Poderes a mulher tinha participação e acesso à cúpula, menos no Poder Judiciário, que, ironicamente, era o único com acesso mediante concurso público, o que possibilitou o ingresso de um grande número de magistradas na base da pirâmide. Alavancadas pelos movimentos feministas, em 1999, duas mulheres foram nomeadas para o Superior Tribunal de Justiça e no ano seguinte,

Erika BrancoDiretora de Redação

Entrevista: Eliana Calmon, Ministra do Superior Tribunal de Justiça

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2000, nomeia o Presidente da República a primeira mulher para o Supremo Tribunal Federal.

Se percebido esse contexto histórico, não é de estranhar-se o baixo número de mulheres nos tribunais superiores.

Também entendo que há, por parte das mulheres, um certo acanhamento em enfrentar a realidade do Poder no Brasil, que ainda é masculino. O acanhamento de que falo está expresso em uma realidade: as mulheres não se candidatam com frequência, e quando isto acontece não se mostram determinadas a vencer os obstáculos do mundo do poder, que é hegemonicamente do homem.

Este quadro tende a mudar rapidamente na medida em que a ascensão das mulheres magistradas aos tribunais intermediários tem sido uma constante.

JC – Vossa Excelência é uma das poucas mulheres inte-grante da Corte Superior que faz questão de participar de ONG’s e movimentos feministas, postura que já adotava antes de tomar posse como Ministra. Qual a importância desse tipo de associação para as mulheres e o que motivou vosso engajamento nessas causas?EC – Entendo que todo grupo identificado como socialmente frágil, e ninguém ignora que o é o universo feminino, para vencer as desigualdades precisa conquistar espaço, precisa partir para mostrar as consequências malévolas da discriminação para o social e para a economia. Ninguém ganha espaço de poder pelo só reconhecimento da justiça ou injustiça. É conquistar, e só se conquista espaço de poder pela luta direcionada em prol da igualdade. Assim, somente os ordenados movimentos

feministas são capazes de serem arautos das necessidades do grupo, somente eles são capazes de tornar público e chamar a atenção da mídia quanto à condição feminina. Lamentavelmente muitas mulheres pensam que conseguiram um lugar de destaque na sociedade e no poder apenas pelos seus méritos, ignorando muitas vezes que os caminhos trilhados foram descobertos ou conquistados por outras mulheres que não tiveram a oportunidade de desfrutar de uma sociedade igualitária, mas acreditaram que era possível essa conquista. Estou tão convicta disso que chego a me emocionar quando leio a história de vida de certas líderes femininas que foram ridicularizadas, desconsideradas, amesquinhadas, mesmo quando levaram a público certas e determinadas reivindicações.

Mirtes de Campos lutou ferrenhamente para conseguir inscrever-se como advogada no Instituto dos Advogados no Rio de Janeiro em 1906. Mas depois dela o caminho estava livre. Nísia Floresta, mulher rica e culta, foi obrigada a casar-se aos dezesseis anos com um ancião escolhido pela família, no início do século XIX, e foi escorraçada pela sociedade pernambucana quando decidiu amancebar-se com um jovem estudante de direito em Recife-PE, deixando registrado no seu livro “Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens” sua saga de primeira feminista brasileira. Enfim, temos um enorme número de mulheres que não apenas lutaram pelos seus direitos, lutaram pelo direito de nós todas, e por isso mesmo conseguimos chegar ao Século XXI com uma igualdade formal já consolidada. Mas a luta não acabou, é preciso ainda conquistar a igualdade substancial, a qual passa pelo reconhecimento pleno.

Foto: STJ

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Essas são as razões que me levaram, desde o momento em que iniciei minha vida política, ainda na Faculdade de Direito, a voltar-me atenta para os movimentos feministas.

JC – O que representou para Vossa Excelência e as mulheres integrantes da carreira jurídica a eleição da Ministra Ellen Gracie para Presidente do STF?EC – A nomeação da Ministra Ellen Gracie para o Supremo Tribunal Federal foi a coroação de uma luta feminina, a constatação de que estávamos certas na diretiva adotada e a satisfação de ver cumprido um compromisso político firmado pelo Presidente da República com o Movimento de Mulheres.

JC – Vossa Excelência costuma dizer que o STJ está se transformando no “Tribunal dos Quintos”. A ocupação do STJ e de seus postos mais elevados — como presidente, vice-presidente e corregedor — por membros da Advocacia e do Ministério Público tem sido motivo de duras críticas por parte de Vossa Excelência na imprensa brasileira. A que Vossa Excelência credita esse aumento crescente da presença da Advocacia e do Ministério Público no STJ e quais as consequências para a Magistratura?EC – A minha fala e a minha luta pela magistratura não são frutos de corporativismo, absolutamente. Tanto assim que não me coloco contra o quinto constitucional. Posicionam-me contrária à forma como ultimamente vem sendo conduzida a escolha e como vem avançando na formação do STJ.

O STJ é o único Tribunal eminentemente técnico e que tem, ao longo do tempo, se tornado um Tribunal com predominância de representantes do quinto constitucional que chegam à Corte Maior para ocupar vaga que a Constituição destinou a magistrados de carreira, sem respeitarem a sua origem de advogados. Esses ministros juntam-se aos advogados e membros do Ministério Público que ocupam na Corte as vagas destinadas ao quinto e assim ficam em minoria os magistrados de carreira, ou seja, aqueles que durante toda uma vida funcional prepararam-se para serem julgadores.

O avanço do quinto deve-se à maior maleabilidade de seus representantes, da formação própria dos advogados, das relações de amizades que esses fazem ao longo da trajetória de militantes na advocacia. São jeitosos, sutis, insistentes e determinados. Sabem conquistar, pedir e, sobretudo, insistir. Há ainda um fator que me parece importante: o magistrado, como funcionário público, vive dentro das limitações do seu salário, diferentemente dos advogados, cujos ganhos são bem mais largos, o que se reflete na sua performance de vida e de conquista.

Os magistrados de carreira, diferentemente, atravessaram a vida dentro de um gabinete, acostumaram-se com o exercício da relação de poder própria da magistratura: eu posso; eu faço; eu digo; eu imponho; não peço, ordeno. Também por uma deformação da carreira os magistrados são treinados para ficar equidistantes do poder político e para se manterem neutros, olvidando-se que é a função de julgar a mais política das funções públicas.

Essa realidade precisa ser trabalhada, e com urgência, a partir da base, para evitarem-se dois grandes males: a formação de um grupo de magistrados que, atentos à realidade, já se mostram de superficialidade absoluta para terem sucesso promocional, desprezando o que de mais belo há na carreira, ou seja, agir como agente político e ser capaz de alterar a realidade social das coisas e barrar a hegemonia do quinto, pelas razões já declaradas.

A consequência da deformação é termos em um Tribunal eminentemente técnico como o STJ, magistrados que muitas vezes não têm intimidade com o direito aplicado ao caso concreto e também magistrados que estão umbilicalmente atrelados às políticas partidárias, ideológicas ou de compadrio.

JC – O Judiciário tem passado por uma série de trans-formações ao longo dos últimos anos, através de sucessivas reformas e releituras do sistema normativo vigente. O que Vossa Excelência pensa sobre isso e que novas medidas considera necessárias para dar celeridade, com eficácia, à prestação jurisdicional?EC – As reformas do Judiciário a partir da CF/88 foram grandes e rápidas, mas todas elas para solucionarem problemas emergenciais de um Poder que se atrasou no tempo e no espaço. Mantivemos a estrutura dos tribunais acanhada e burocrática, recheados de valores já não mais condizentes com os novos tempos, com a nova roupagem do Estado, aumentamos a base da pirâmide hierárquica, subordinada à cúpula. Resultado, não demos o exemplo e não ensinamos a lição. Ninguém pode ensinar o que não sabe e ninguém pode educar sem exemplificar. Conclusão: uma cúpula perplexa, desarticulada e até certo ponto amedrontada com os novos tempos e uma base inteiramente sem comando efetivo.

A solução não será fácil, nem rápida, mas me parece que a Emenda Constitucional 45, chamada de Reforma do Judiciário, foi muito feliz quando criou o Conselho Nacional de Justiça e a Escola Nacional de Magistratura.

O Conselho Nacional de Justiça está na direção certa: corrigindo os tribunais com diretivas e normas claras e específicas, ensinando a trabalhar com transparência e objetividade, estou certa de que a base será atingida ao longo de algum tempo. As Escolas de Magistratura, capitaneadas pela ENFAM, têm papel importantíssimo no processo de mudança, na medida em que aceitarem ser mais importante formar e não apenas informar.

JC – Vossa Excelência publicou um livro de receitas culinárias, “REsp – Receitas Especiais”, em 1995, e naépoca foi muita criticada. Como Vossa Excelência enfrentou as críticas por ser uma Ministra lançando um livro de receitas?EC – As críticas foram muitas por puro preconceito, quando do lançamento do primeiro livro, em 1995. Com o tempo a mídia encheu as revistas e os programas de televisão de homens na cozinha e agora a culinária ficou chic e virou moda, e hoje, passados quinze anos, ninguém mais duvida de uma “Ministra Cozinheira”.

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A vENEzUELA E O MERCOSUL

Antonio Oliveira SantosPresidente da Confederação Nacional do Comércio

gorias de taxas, determinadas em função da essencialidade dos bens, e a compra da moe-da estran geira se realizava na Bolsa de Valores. Vale notar que, contrastando com a ex-periência venezuelana de hoje, no caso brasileiro o procedi-mento era um simulacro de regime de mercado, na medida em que as taxas das diferentes cate gorias resultavam, a cada leilão, de um jogo de oferta e procura por moeda estran-geira. Nosso sistema de taxas múltiplas durou oito anos e em bora tenha representado, através dos ágios dos leilões, alen tada contribuição à receita fiscal, nem por isso manteve as contas públicas em boa ordem.

A nova política cambial da Venezuela remete-nos ao passado, mas os tempos atuais são de prevalência do regime de taxas flutuantes de câmbio, ainda que os Bancos Centrais possam interferir na flutuação, refletindo um sistema conhecido como “dirty float”. O regime dual de taxas, em vigor na Venezuela, contraria a tendência mundial, na direção da liberdade do mercado de câmbio.

O balanço de comércio, entre Brasil e Venezuela, foi, em 2009, amplamente favorável ao nosso país. Dos 2,7 bilhões de dólares exportados, menos de 20% foram usados para importações de origem venezuelana. Neste ano, a pauta brasileira de exportação ficará mais restrita e, em contraposição, derivados do petróleo serão importados a melhores preços, cotados em dólar.

Em resumo: a reforma cambial da Venezuela resulta das distorções na administração dos abundantes recursos gerados pelo petróleo, que poderiam ter prevenido o descontrole do balanço de comércio e das contas públicas. Os onze anos de Hugo Chávez no poder resultam numa queda de 90% no valor da moeda nacional, embora nesse período o preço do petróleo tenha aumentado oito vezes. Com o alto preço do petróleo, foi possível ao Governo da Venezuela manter elevados gastos sociais, mas insuficientes para resolver questões básicas do abastecimento e da oferta de energia elétrica, assim como a deficiência nos transportes e noutros serviços essenciais. Fica patente como a desvalorização está em descompasso com um mínimo de harmonização, que é o pressuposto do Mercosul, como União Aduaneira.

O Mercosul que emerge do Tratado de Assunção é, em essência, uma União Aduaneira na qual, no seu interior, se pratica o livre comércio e uma política comercial comum. Não cabe aqui reconstituir todo

o histórico das negociações consubstanciado em Tratados que, a partir da Associação Latino Americana de Livre Comércio (ALALC), desaguaram no Mercosul. Mas cabe, sim, indagar se este é o melhor momento para o ingresso da Venezuela nessa União Aduaneira.

Como é sabido, a Venezuela postulava sua entrada no Mercosul desde 2006, o que dependia da aprovação dos Congressos Nacionais dos países membros. O Senado Federal brasileiro aprovou, recentemente, a pretensão venezuelana, sendo oportuno lembrar o argumento lançado pelo Senador Pedro Simon, uma das melhores presenças naquela Casa do Congresso, qual seja o de que tal aprovação tinha o condão de não isolar a Venezuela do resto do subcontinente. Resta, contudo, para que o ingresso desse país no Mercosul se efetive, a aprovação do Paraguai.

A indagação se justifica pela clara deterioração da situação econômica da Venezuela, refletida na taxa de inflação de 25%, a mais alta dentre os países da América do Sul, combinada com um retrocesso no PIB de 2,5%. Com uma balança comercial comprometida pela má condução da política econômica, Hugo Chávez recorre agora a um sistema dual de taxas de câmbio, na esperança de uma correção de rumo. A relação bolívar/dólar passa de 2,15 para 2,60, significando uma desvalorização de 17%, para os bens considerados essenciais, e um dólar passará, numa desvalorização de 50%, para 4,30, no caso dos bens supérfluos. O impacto dessas medidas terá um efeito mediato sobre a balança comercial, mas o efeito imediato será, certamente, inflação ainda mais alta do que a atual.

Hugo Chávez pretende colocar a “tropa nas ruas”, para evitar que os empresários se aproveitem da situação, remarcando o preço das mercadorias compradas antes da desvalorização. É o velho argumento da realização de lucros abusivos, no desconhecimento de que a reposição dos estoques terá de ser feita a preços novos, em bolívares, que terão de incorporar a desvalorização, para que não haja desabastecimento.

Inevitavelmente, a experiência venezuelana de hoje traz à nossa memória o sistema de taxas múltiplas de câmbio, ado-tado no Brasil, em 1953, como resposta a uma intensa crise cambial, quando Oswaldo Aranha era Ministro da Fazenda e Marcos Souza Dantas, Diretor da Superintendência da Moeda e Crédito (SUMOC). Na famosa Instrução 70, havia cinco cate-

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PREFEITO FARIA LIMA: lEGITIMIDADE PElA EFICÁCIA

Ney PradoPresidente da Academia Internacional de Direito e EconomiaMembro do Conselho Editorial

Difícil é exercer o poder. Árdua é a arte de bem governar. A luta pelo poder termina sempre numa interrogação: o que fazer com ele?

Imemorialmente, os governantes, por mais arbitrários, egoístas e autocráticos que tenham sido, aprenderam que para manterem o poder — e, às vezes, as suas vidas — deveriam atender a um mínimo de expectativas dos governados; pelo menos simuladamente.

Nas sociedades contemporâneas, democraticamente organizadas, a exigência vai mais longe; a fidelidade dos agentes políticos aos interesses do povo que os escolhe é axiomática. Demanda-se que tanto os legisladores quanto os administradores públicos devam desempenhar seus cargos com mínima eficácia.

A unção que esses representantes políticos recebem nas urnas confere-lhes nada mais que um título e uma presunção de que satisfarão os interesses que lhes foram confiados — é a legitimidade originária. Mas somente pelo exercício eficiente do poder que lhes foi cometido poderão confirmar essas expectativas — será a legitimidade corrente.

O administrador público, em especial, que deve dar respostas concretas, diretas e imediatas às necessidades coletivas que lhe são confiadas, tem ainda maior responsabilidade de ser mais eficaz que o legislador. Esse pode, e até deve, atuar pelo diálogo, pelo consenso; uma construção laboriosa da persuasão no espírito dos colegas e no seu próprio; aquele, ao contrário, tem o dever de agir prontamente, de não hesitar e de não comprometer a menor possibilidade de êxito no dúbio empenho de agradar a todos, pois governar é assumir riscos.

O desempenho do governante não se avalia, assim, pelo que prometeu ou pelo que pretendeu realizar; mas, concretamente, pelos resultados que logrou produzir no cumprimento do mandato político. Em suma: o exercício do poder obedece primacialmente à lógica do resultado e não à da intenção.

Foto: Arquivo CIEE

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Há, não obstante, no Brasil, uma reconhecível tendência a absolver os incompetentes bem intencionados. Os traços de passividade estoica e de generosidade cristã do caráter nacional seriam uma plausível explicação para essa nossa curiosa indulgência. Parece que de tal forma já nos acostumamos à incompetência dos governantes que, não podendo distingui-los mais por sua eficiência, acabamos por nos conformar a perdoá-los por suas boas intenções...

Essa propensão popular brasileira à generosidade conformada e a impressionar-se mais pela retórica da promessa do que pela realidade do resultado enseja os políticos, que têm natural habilidade para captá-la, explorarem-na com surpreendente êxito. São exímios vendedores de ilusões e péssimos administradores. Mestres na arte do acesso ao poder, mas incapazes de exercê-lo. São impressionantes, melífluos e convincentes, sobretudo contraditórios... Mas são recorrentemente perdoados por uma sociedade que se embala com promessas, confunde política com novelas, aprecia um bom ator e, sobretudo, ela própria contraditória...

Nem por isso, todavia, qualquer sociedade perde de vista os seus reais e inarredáveis interesses; ciclicamente, o aguçamento das necessidades que os despertam acorda também a consciência coletiva e, cedo ou tarde, acaba demonstrando sua insatisfação e até indignação pelas mais inesperadas vias.

A súbita e, por vezes, pungente tomada de consciência de que promessas e boas intenções não produzem mais que ilusões e não resolvem os seus problemas devolve o homem comum às raízes disso que lhe é próprio: o senso comum. Busca-se, então, nos momentos históricos, o líder: aquele que simplesmente põe a eficácia acima das promessas e o resultado acima das intenções.

E aqui chegamos ao Prefeito Faria Lima; um exemplo de governante que se legitimou pelo resultado, talvez um dos mais interessantes fenômenos políticos produzidos nas episódicas experiências de democracia vividas neste país. Mas não é de sua personalidade ou de sua trajetória que se vem tratar, e sim

das razões de seu êxito como administrador público, pois Faria Lima demonstrou, na Prefeitura da maior e mais problemática cidade do Brasil, que não existe “ingovernabilidade” para um governante eficiente.

Para tanto, conciliou técnica e arte de governar.Sua técnica se arrimou na percuciente constatação das

contradições da sociedade brasileira; primeiro: individualmente não somos rigorosos com nosso próprio desempenho ético, mas contraditoriamente exigimos moralidade dos governantes; segundo: desaprovamos o arbítrio e o abuso do poder, no entanto temos apego à reverência à autoridade; terceiro: não nos importamos muito quanto à qualidade das decisões administrativas, mas com certeza repudiamos o governante hesitante, tímido e procrastinador.

Sua arte de governar, que se conjuga com a técnica e com ela se completa, consistiu em superar essas contradições pelo desempenho eficaz do poder, respondendo adequadamente às expectativas por elas geradas.

À exigência ética da sociedade, Faria Lima respondeu com a moralidade administrativa e inflexível combate à corrupção.

À exigência de autoridade, Faria Lima respondeu com a legalidade administrativa e irredutível observância da ordem jurídica.

À exigência de decisão para os problemas, Faria Lima respondeu com oportunidade administrativa e prontidão de suas medidas.

Essa lição de Faria Lima só pode resultar na retomada de consciência popular de que não só é necessário como é possível bem governar São Paulo. O importante, enfim, e isso até bastaria, é que Faria Lima, ao ensinar que se pode bem governar, devolve algo extremamente caro e necessário a este país: a esperança.

No momento do seu centenário de nascimento, há, portanto, razões de sobra para reverenciarmos entusiasticamente a sua memória.

Essa propensão popular brasileira à generosidade conformada e a impressionar-se mais pela retórica da promessa do que

pela realidade do resultado enseja os políticos, que têm natural habilidade para captá-la, explorarem-na com surpreendente êxito. São exímios vendedores de ilusões e péssimos administradores.

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O vALE-TRANSPORTE EM DINHEIRO, A CONTRIBUIÇÃO

PREVIDENCIÁRIA E A RECENTÍSSIMA DECISÃO DO STF

Fernando José Barbosa de OliveiraAdvogado

1. Introdução

A autarquia previdenciária, mediante instrumentos próprios (NFLDs), promoveu a cobrança de contri-buição previdenciária contra uma instituição bancária, incidente sobre o valor que essa pagou em dinheiro,

diretamente a seus empregados, a título de possibilitar-lhes o deslocamento diário e pendular — casa-trabalho-casa —, por entender que tal quantia, paga com habitualidade, integra a remuneração daqueles.

A instituição bancária opôs-se à referida cobrança, mediante demanda declaratória de inexistência de relação jurídica e desconstituição das Notificações Fiscais de Lançamento de Débito lavradas pela autarquia previdenciária.

Depreende-se do teor do Relatório do douto voto que orientou o julgamento do Recurso Extraordinário nº 478.410-SP, cujo teor foi disponibilizado em 11.3.2010 pela página de “Notícias do STF”, que sua defesa lastreou-se no argumento de que a norma que veda o adiantamento em dinheiro em substituição ao vale-transporte instituído pela Lei nº 7.418, de 16.12.1986, contida no texto do artigo 5º do Decreto nº 95.247, de 17.11.1987, estaria em confronto com determinados preceitos da Constituição da República, motivo por que seria inexistente a relação de débito na qual a supracitada autarquia apoiou sua pretensão de cobrança.

Na Instância Ordinária não vingou o sobredito argumento de defesa, e em consequência a cobrança promovida foi julgada procedente.

A instituição bancária não se conformou com o teor do Acórdão proferido pela Egrégia 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e contra ele interpôs o Recurso

Sem outras digressões a respeito do tema, com vistas a não se extrapolarem os limites

preestabelecidos para este singelo comentário, cumpre ressaltar que uma das características do modelo de controle de constitucionalidade

de que cuida reside na circunstância de que a decisão proferida a

respeito da questão prejudicial só produz efeito entre as partes em

litígio, ao contrário do que ocorre com o controle concentrado e em

tese ou abstrato da Lei, cuja decisão produz efeitos erga omnes.

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Extraordinário acima identificado. Por intermédio deste recurso excepcional, buscou obter o controle difuso, incidental ou concreto da constitucionalidade da norma que veda substituir o vale-transporte por adiantamento em dinheiro.

Neste sentido, argumentou que a exigência seria inconstitucional por ser incompatível com o disposto nos artigos 5º, II, 7º, XXVI, 195, I “a”, 201, § 11 da Constituição da República, os quais teriam sido violados pelo julgado do Tribunal Regional, como se vê no Relatório do sobredito douto voto, que capitaneou o julgamento do supracitado Recurso Extraordinário.

Na conformidade do douto voto acima referido, a Excelsa Corte deu provimento ao recurso nobre interposto pela instituição bancária, por entender que a vedação contida no texto do artigo 5º do Decreto nº 95.247/1987, inserida em diploma normativo anterior à Constituição de 1988, é incompatível com o sistema tributário disciplinado por esta.

A pretensão desse comentário visa a refletir sobre o efeito da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, se circunscrito apenas às partes em litígio ou se erga omnes, como também tem em vista analisar brevemente, a obrigação imposta ao empregador pela Lei nº 7.418/1985, com vistas a verificar se o modo como deve ser cumprida sua prestação é ou não incompatível com o sistema tributário plasmado na Constituição.

2. O controle difuso, incidental ou concreto de constitucio-nalide e os efeitos da decisão jurisdicional

Tal modelo de controle de constitucionalidade, há muito vigente entre nós, possibilita que todo Magistrado ou Tribunal

do País o exercite na prática normal da jurisdição comum — daí a denominação difuso —, quando da apreciação do caso concreto submetido a exame; por isso a designação incidental. Neste modelo, como se sabe, a questão constitucional não é o objeto da demanda — diversamente do que ocorre no modelo de controle concentrado e abstrato —, mas questão prejudicial, cuja solução subordinará o pronunciamento final sobre o objeto litigioso submetido à resolução jurisdicional.

Sem outras digressões a respeito do tema, para não se extrapolarem os limites preestabelecidos a este singelo comentário, cumpre ressaltar que uma das características do modelo de controle de constitucionalidade de que cuida reside na circunstância de que a decisão proferida a respeito da questão prejudicial só produz efeito entre as partes em litígio, ao contrário do que ocorre com o controle concentrado e em tese ou abstrato da Lei, cuja decisão produz efeitos erga omnes.

É compreensível que assim seja.Mais de uma razão justifica tal limitada vinculação, ao menos

no caso. Em linha de princípio, sabe-se que a decisão judicial proferida na resolução de uma dada demanda somente vincula as partes em conflito, pois no geral das situações apenas essas se submetem aos limites subjetivos da coisa julgada, ao passo que só o objeto do pedido está sujeito aos limites objetivos dessa.

Pois bem, na conformidade da ordem processual vigente, a questão prejudicial, decidida incidentalmente no processo, não faz coisa julgada, conforme norma contida no texto do inciso III do artigo 469 do Código de Processo Civil. A coisa julgada, como antes se destacou, colhe o objeto do pedido e, na hipótese, a manifestação a respeito da questão constitucional integra os

Foto: Rosane Naylor

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motivos do decisum, que, igualmente, não fazem coisa julgada, conforme inciso I do precitado dispositivo legal.

Importante destacar, nesta altura, que, no caso, o tema da contribuição previdenciária incidente sobre o pagamento em dinheiro do transporte dos empregados por seu empregador não é objeto de repercussão geral, o que afasta qualquer possibilidade de se estenderem os efeitos da decisão a outras pessoas e relações jurídicas.

Na minha compreensão, a decisão do Acórdão proferido no Recurso Extraordinário nº 478.410-SP, por tais razões, vincula, na hipótese, exclusivamente, as partes que litigaram no processo.

3. A disciplina da remuneração do emprego no plano do direito positivo

Para se verificar se o valor em dinheiro pago pelo empregador diretamente aos empregados, com o propósito de lhes proporcionar meio de transporte no deslocamento casa-trabalho-casa, integra ou não a remuneração desses, para fins previdenciários, é imprescindível ter em conta como a ordem jurídica disciplina a matéria.

A Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, há anos seguidos estabelece no seu artigo 458 que: “Além do pagamento em dinheiro, compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a alimentação, habitação, vestuário ou outras prestações ‘in natura’ que a empresa, por fôrça do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado. Em caso algum será permitido o pagamento com bebidas alcoólicas ou drogas nocivas.”

Vê-se, desse modo, que o legislador, ao se utilizar da expressão “ou outras prestações ‘in natura’ que a empresa, por fôrça do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado” quis deixar claro, no que concerne à tutela do interesse dos empregados, que outras utilidades fornecidas a estes, pelo empregador, além daquelas arroladas no citado preceito legal, também configuram hipótese de salário indireto e, por isso, integram sua remuneração para todos os efeitos, inclusive previdenciário.

Em virtude disso, há tempos a remuneração dos empregados é integrada por todas as importâncias recebidas por estes, a

qualquer título, conforme resulta da combinação do que dispunha o inciso V do artigo 69 da Lei nº 3.807, de 26.8.1960 com o que estatuía o inciso I do artigo 173 do Decreto nº 60.501, de 14.3.1967.

A situação não se alterou com o advento da Lei nº 8.212, de 24.7.1991. Esta, ao dispor sobre a contribuição da empresa para a Previdência Social, estabeleceu que ela incide sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas aos segurados empregados, incluindo no referido total os ganhos habituais sob a forma de utilidades, conforme preceitua o inciso I, do artigo 22, do citado diploma legal.

O Decreto nº 3.048, de 3.5.1999, ato normativo regulamentar prescreve no texto de seu artigo 214 que a remuneração dos empregados compreende a totalidade dos rendimentos pagos, devidos ou creditados a qualquer título, incluídos “os ganhos habituais sob a forma de utilidades”.

Não há dúvida, assim, que o salário indireto, como tal o derivado de ganho habitual sob a forma de utilidades, sempre integrou, historicamente, a remuneração recebida pelos empregados, nomeadamente para fins previdenciários, objeto do interesse deste comentário.

4. A lei e a atuação para se alterar a realidadeBem, assentado isso, a partir do início da década de 1980,

a grande maioria da população, principalmente nas grandes metrópoles do País, passou a se deslocar a pé, diante da incapacidade de pagar pela utilização do serviço público de transporte coletivo de passageiro por ônibus, já que a constante disparada dos preços dos insumos necessários à execução deste não era acompanhada pelo aumento da massa salarial.

Essa realidade era causa de inquietante potencialização das tensões sociais e, sem dúvida, afetava, prejudicialmente, o bem-estar social, além de ferir de morte um direito social fundamental dos empregados, garantido pelo disposto no inciso IV do artigo 7º da Constituição, pois a remuneração percebida a título de contraprestação pelo serviço prestado não lhes possibilitava satisfazer uma das necessidades vitais básicas de quem vive nas cidades, qual seja o acesso ao transporte.

Este cenário fez com que o legislador atuasse no intento de buscar um meio capaz de alterar tal estado coisa.

Não há dúvida, assim, que o salário indireto, como tal o derivado de ganho habitual sob a forma de utilidades, sempre integrou, historicamente,

a remuneração recebida pelos empregados, nomeadamente para fins previdenciários, objeto do interesse deste comentário.

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Foi instituído, então, o vale-transporte, pela Lei nº 7.418, de 16.12.1985, observadas as alterações introduzidas pela Lei nº 7.619, de 30.9.1987.

A medida visou a limitar, de um lado, a 6% (seis por cento) do salário básico os gastos dos empregados com deslocamento diário casa-trabalho-casa, e de outro, obrigou os empregadores a arcarem com os gastos excedentes do citado limite, gerados por tal locomoção pendular, como se vê no parágrafo único do artigo 4º do supracitado ato legislativo.

O objeto da prestação que caracteriza o cumprimento da obrigação imposta por Lei aos empregadores é a aquisição de vales-transporte comercializados pelas empresas operadoras do sistema de transporte público por ônibus, ou por quem, em nome destas, realiza tal atividade. É o que se extrai do que se contém tanto no caput do artigo 4º como na cabeça do artigo 5º, ambos do ato legislativo acima invocado.

Para que a Lei cumpra o seu desígnio, sua finalidade essencial, é indispensável que os gastos do empregador sejam destinados à “utilização efetiva em despesas com o deslocamento residência-trabalho e vice-versa”, preceitua o artigo 1º da Lei nº 7.418/1985, com a redação da Lei nº 7.619/1987.

O vale-transporte — em papel, como antigamente, ou em cartão eletrônico, como na atualidade — desempenha neste contexto relevante e decisiva função instrumental, pois é a sua utilização que possibilita a certeza de que gastos realizados pelo empregador, em cumprimento da prestação da obrigação que a Lei lhe impôs, não sofrerão desvios de finalidade, e se destinarão, exclusivamente, aos deslocamentos pendulares casa-trabalho-casa.

A norma legal, quando estabelece que o empregador antecipará o vale-transporte ao empregado para utilização efetiva em despesas de deslocamento pendular casa-trabalho-casa e determina que ele adquira tantos vales quantos sejam os necessários para que a referida locomoção se realize (artigos 1º e 4º da Lei nº 7.418/1985), está a afirmar que conduta diversa não é permitida.

Dito de outro modo: se é obrigatório o empregador adquirir vales-transporte, para que o benefício concedido aos empregados possa se concretizar, na conformidade do que foi traçado pela Lei, isto equivale dizer que a conduta oposta é proibida, consoante preleciona G. H. von WRIGHT, in Norma y Acción, Madrid, 1970, tradução de P. GARCÍA FERRERO, apud CARLOS SANTIAGO NINO (in Introducción Al Análisis Del Derecho, Editorial Ariel S.A., Barcelona, 11. ed., 2003, pág. 72).

Diante disso, vê-se que o disposto no artigo 5º do Decreto nº 95.247/1987 não extrapola o campo de ação das normas regulamentares, como alegou a instituição bancária, pois a vedação nele contida — substituir vale-transporte por antecipação em dinheiro — está contemplada na Lei regulamentada.

Acrescente-se, em reforço, que adiantamento em dinheiro, ao pretexto de se alcançar o mesmo propósito delineado para o vale-transporte, não dá o resultado visado, objetivamente,

pela Lei. O dinheiro pago diretamente ao empregado, a título de utilização no seu deslocamento casa-trabalho-casa, incorpora-se ao rendimento deste e, naturalmente, ingressará no ciclo de seus gastos cotidianos, realizados para a satisfação de necessidades difusas, cada vez mais crescentes no âmbito da sociedade de consumo.

Logo, o adiantamento em dinheiro, no lugar do vale-transporte, frustra a finalidade da Lei.

5. O direcionamento da decisão do pretório excelsoCom todo o respeito que se deve devotar aos pronuncia-

mentos jurisdicionais da mais Alta Corte de Justiça do País, penso que, no caso, o apego ao conceito de moeda não conduziu o desfecho da controvérsia a porto seguro.

A meu sentir, a utilização do vale-transporte pelos empre-gados não desrespeita, minimamente, o curso legal da moeda.

Na minha percepção o vale-transporte — adquirido adiantadamente pelo empregador, com o necessário respeito ao curso legal da moeda — apenas habilita os empregados a usufruírem de um serviço anteriormente contratado — no caso o de transporte — cujas prestações se realizam no futuro, à medida que ocorrem os deslocamentos diários casa-trabalho-casa.

Com outra linguagem, o vale-transporte apenas possibi-lita que o seu portador, ou seja, o empregado, se beneficie do contrato de transporte celebrado em bloco anteriormente por seu empregador e pela operadora do serviço público de transporte de passageiros por ônibus — vejo aqui um caso de estipulação em favor de terceiros — usufruindo de sua prestação a cada vez que se desloca de casa para o trabalho e vice-versa.

Assim, por não vislumbrar, na hipótese, desrespeito ao curso legal da moeda, não vejo boa razão em se admitir que possa haver adiantamento em dinheiro, diretamente pago aos empregados, a título de vale-transporte, digo com todo respeito que é devido.

A conduta judicialmente permitida, sem perceber, desqua-lificou, a meu ver, norma de natureza tributária que retirou o vale-transporte da base de incidência da contribuição previdenciária e do FGTS (artigo 2º, alínea b, da Lei nº 7.418/1985), pois somente aquele que é adquirido nas condições e nos limites estabelecidos pela citada Lei está fora do referido campo de incidência.

6. ConclusãoCom essas ligeiras considerações, ousadas, visto que

ainda não se conhece o inteiro teor do Acórdão proferido no Recurso Extraordinário nº 478.410-SP, embora se saiba, de antemão, o seu direcionamento, uma vez que não houve designação de outro eminente Relator para proferi-lo, almejo suscitar o debate a respeito do vale-transporte em dinheiro, ainda oportuno por se estar diante de decisão que tem efeito apenas inter partes. E o faço por acreditar que para se atender aos desígnios da Lei não é possível que o dinheiro assuma o lugar do vale-transporte.

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30 JUSTIÇA & CIDADANIA | MARÇO 2010

Especial voltou a ser mero órgão delegatário do Tribunal Pleno, desincumbindo-se das atribuições que lhe forem expressamente delegadas pelo conjunto dos desembargadores ou ministros que integram o próprio Tribunal, reunidos como Pleno do Tribunal. Não mais pode vingar a tese de que o Órgão Especial é “representante” ou “projeção” do Tribunal Pleno, pois o constituinte expressa mente o designou como órgão delegatário.

A Emenda Constitucional tem alcance tão profundo que, ao contrário da redação anterior, deixou ao alvedrio dos próprios tribunais decidir quanto à conveniência e oportunidade da própria delegação das atribuições do Tribunal Pleno para órgão de instância inferior, realçando a mera faculdade para tanto. A cogência anterior (“será constituído”) contrasta frontalmente com a redação atual (“poderá ser constituído”), revelando a opção democrática da Constituição.

A leitura histórica do dispositivo constitucional fecha um círculo em favor de uma maior democracia e democratização interna nos tribunais de todo o País, pondo de lado mais um resquício da cultura autoritária e centralizadora da política de poder no Brasil.

A Lei Complementar 35/79 adotou uma opção nitidamente concentradora de poder, na medida em que fez repousar sobre uma pequena parcela gerontocrática integrante de cada tribunal (na época nomeada pelo próprio chefe do Poder Executivo local), todas as grandes decisões políticas e administrativas,

A volta do Tribunal Pleno

A Emenda Constitucional 45, de 08.12.2004, trouxe pro-fun das modificações constitucionais na organização do Poder Judiciário brasileiro, reintroduzindo, na estrutura político-administrativa dos tribunais, o

Tribunal Pleno, cujas atribuições haviam sido suprimidas com a Loman, editada após o “Pacote de Abril” (Lei Complementar 35, de 14.3.1979).

Dispõe a atual redação do inciso XI do artigo 93 da Constituição Federal que “nos tribunais com número superior a vinte e cinco julgadores, poderá ser constituído órgão especial, com o mínimo de onze e o máximo de vinte e cinco membros, para o exercício das atribuições administrativas e jurisdicionais delegadas da competência do tribunal pleno, provendo-se metade das vagas por antiguidade e a outra metade por eleição pelo tribunal pleno”.

A norma trata de duas matérias relevantes: a volta do Tribunal Pleno como instância política e administrativa máxima do Tribunal e a composição do Órgão Especial através de eleição de metade de seus membros pelo Tribunal Pleno.

A mudança de parâmetro foi completa, porquanto, com a Lei Complementar 34/79, o Tribunal Pleno deixou de exercer qualquer função política ou administrativa relevante, por que a constituição do Órgão Especial teve como objetivo justamente retirar do Tribunal Pleno tais atribuições. O Órgão Especial era um verdadeiro “representante” do Tribunal Pleno.

A partir da Emenda Constitucional 45/2004, o Órgão

Rogerio de Oliveira SouzaDesembargador do TJERJ

A AFIRMAÇÃO DO TRIBUNAL PLENO: A REDEMOCRATIzAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO bRASIlEIRO

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2010 MARÇO | JUSTIÇA & CIDADANIA 31

Foto: Arquivo Pessoal

com repercussões no próprio Estado, mas também mantendo a própria carreira sob o controle absoluto de uma pequena parcela dos “mais velhos” do Tribunal.

Com a modificação de parâmetro institucional, todo o poder político e administrativo volta ao seu berço original, o Tribunal Pleno, e caberá a este, como instância máxima do Tribunal, decidir pela constituição de Órgão Especial para tratar das matérias que entender por bem delegar, sem se despojar do poder revocatório que lhe é imanente.

As atribuições do Tribunal PlenoO inciso XI do artigo 93 faz referência ao “exercício

das atribuições administrativas e jurisdicionais delegadas da competência do Tribunal Pleno”. Colhe-se da própria Constituição Federal quais seriam essas atribuições, as quais, para efeito concreto, podem ser divididas em políticas, administrativas e jurisdicionais.

O artigo 96 diz que “compete privativamente aos tribunais” diversas atribuições, elencando, dentre outras, “eleger seus órgãos diretivos”, “elaborar seus regimentos internos”, “organizar suas secretarias”, “prover os cargos de juiz” e de servidores, “conceder licenças, férias”, etc., salientando o artigo 97, em conjunto com o art. 125, § 2º, o quorum mínimo para a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.

É evidente que a atribuição política de eleger seus órgãos

A crise atual decorreu de um imperativo psicossocial clássico nas economias de mercado, ou seja, o envolvimento de toda a sociedade, sem intervenção adequada dos governos, na busca de resultados

financeiros e no mercado de capitais, em face do crescimento da economia em padrões acima das necessidades de consumo dos que têm capacidade de absorver a produção. Dessa forma, os investimentos foram valorizados também em patamar mais elevado do que seu intrínseco valor estrutural, com o que, em um determinado momento, tal evolução, sem sustentabilidade real, necessariamente, terminaria por explodir, gerando mais uma crise cíclica de capitalismo, em dimensões maiores do que aquelas que ocorrerem após 1929.

O efeito psicológico de uma percepção superficial dos elementos causadores da crise, indiscutivelmente, acabou por gerar um prolongamento ilusório de um “boom econômico”, já diagnosticado por especialistas como sem condições de permanência, a partir de 2006/2007.

Os mercados não são autorreguláveis, mas as regulações oficiais quase sempre são insuficientes para corrigir suas distorções, mormente quando as próprias autoridades iludem-se quanto à sua capacidade de conduzi-lo.

Por outro lado, os investidores que o alimentam e que, não poucas vezes, também se iludem com a fortaleza estrutural do progresso e do desenvolvimento, terminam sendo, simultaneamente, causa e efeito gerador daquele momento em que a constatação da impossibilidade de sua permanência em níveis elevados indefinidamente torna-se evidente.

Em outras palavras, há um ponto de equilíbrio, que seria o limite crítico entre uma realidade controlável, propiciadora da estabilidade dos mercados, e a atuação dos agentes econômicos e autoridades tanto para perceber, quanto para promover uma intervenção corretiva, sempre que esse limite crítico, precário por natureza, é ultrapassado. É que, de outra forma, a atuação dos agentes econômicos passa a ser aleatória e desordenada, na busca desesperada de salvar o que lhes parece em risco de se perder, terminando, a ação das autoridades com poder regulatório, por ser superada pela atuação de investidores e consumidores.

São estes, de rigor, aqueles que determinam os humores da realidade econômica, nas crises e nos tempos de bonança.

Assim, há um ponto de equilíbrio permanente, na economia de mercado, sempre que os investidores, os agentes produtivos (agricultura, indústria, comércio e serviços) e os agentes públicos atuam na perspectiva de um desenvolvimento projetado, detendo pleno conhecimento dos fatores sociais, políticos, econômicos, de consumo e emprego, e sendo capazes de mantê-los constantes mediante controle induzido, por meio de políticas creditícias e fiscais capazes de estimular ou desestimular setores que possam provocar os desequilíbrios definidos como indesejáveis pelos agentes econômicos e públicos em conjunto. Nesse contexto de adequada política de mercado, a própria conjunção de agentes públicos e privados conformará o nível de gastos públicos e despesas burocráticas, sempre que estes possam

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lDireito Previdenciário

lDireito das Relações de Consumo

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lMediação e Arbitragem

lPetróleo, Energia e Gás

lDireito das Telecomunicações

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diretivos é de fundamental importância e deve ser elencada como a mais relevante para o Tribunal Pleno.

A elaboração do regimento interno também se apresenta como atribuição mista (política e administrativa), mas com repercussões em toda a organização do Tribunal e da própria Justiça do Estado membro.

Todas essas atribuições, independente de sua natureza e de sua complexidade, são imanentes ao Tribunal Pleno como instância máxima de cada Tribunal, podendo ou não ser delegadas (de novo) ao Órgão Especial que eventualmente existir ou vier a ser criado.

A indicação do chamado “Quinto Constitucional” das vagas existentes nos tribunais, para serem providas por integrantes do Ministério Público, ou relacionadas pela Ordem dos Advogados do Brasil, também é atribuição que toca diretamente ao poder decisório do Tribunal Pleno, podendo ou não ser delegada em favor de parcela do Tribunal correspondente.

A relevância da delegação reside, justamente, na definição, pela maioria dos integrantes do Tribunal (e não mais por uma pequena parcela dos mais antigos), das matérias que deverão ser atribuídas, por ato do Tribunal Pleno (resolução), ao Órgão Especial. Depois da Emenda Constitucional 45/2004, o Tribunal Pleno reassumiu, de pronto e incondicionalmente, todas as atribuições do Tribunal que antes estavam afetas apenas ao Órgão Especial, desde a Lei Complementar 35/79.

A reassunção da totalidade das atribuições (políticas, administrativas ou jurisdicionais) independe de ato positivo do Tribunal Pleno ou de ato negativo do Órgão Especial (no sentido de abdicar de suas anteriores atribuições), pois decorre do poder normativo do dispositivo constitucional, que tem eficácia plena e imediata. Eventual silêncio ou omissão de sua parte não significa que o Pleno resolveu, tacitamente, delegar suas atribuições ao Órgão Especial, “deixando tudo como estava antes”, pois a delegação há de ser explícita. Nos tribunais que mantinham Órgão Especial quando da vigência da Emenda Constitucional 45/2004 (art. 10: na data de sua publicação, que ocorreu em 31.12.2004), o Órgão Especial continuará exercendo suas anteriores atribuições sem solução de continuidade (inclusive para se evitar ausência de jurisdição), mas sempre sujeito à resolução do Tribunal Pleno quanto aos seus reais limites. Apenas a conformidade da maioria dos integrantes de determinado tribunal poderá ensejar a permanência da situação política e administrativa anterior, compreensível segundo nossa ancestral cultura política, mas sem vincular qualquer decisão futura do Pleno quanto à matéria constitucional da delegação.

É de se observar que a natureza da atuação do Tribunal Pleno deve se concentrar prioritariamente para as atribuições de natureza política, sem pretender assumir tarefas do dia a dia administrativo do Poder Judiciário Estadual, eis que inviável para se operar em grandes assembleias. O Órgão Especial deverá continuar a exercer as atribuições jurisdicionais e administrativas mais corriqueiras e, salvo se houver intervenção específica do Tribunal Pleno, sem qualquer interferência de sua parte.

As atribuições de natureza jurisdicional se revelam mais complexas para serem assumidas integral ou parcialmente pelo Tribunal Pleno. Qualquer julgamento jurisdicional é atividade que demanda tempo e análise de fatos e de provas, devendo ser atendido o imperativo constitucional da fundamentação das decisões judiciais (CF, 93, IX e X). Em tribunais compostos por muitos membros, a atuação do Tribunal Pleno como órgão julgador não está afastada ou proibida pela Emenda Constitucional 45/2004, mas deverá ser estudada com cuidado, a fim de preservar os princípios do devido processo legal. É de se considerar, inclusive, a real possibilidade de se instalar o “plenário virtual”, servindo-se dos meios tecnológicos cibernéticos hoje disponíveis.

Quando as atribuições políticas (eleição dos órgãos diretivos, indicação de seus membros, elaboração do regimento interno, composição de outros tribunais, etc.) são retiradas do Órgão Especial, o Tribunal Pleno, através da atuação da maioria dos membros do Tribunal, volta a decidir os destinos do Poder Judiciário do Estado membro.

A atuação do Tribunal Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

Em 2008, os desembargadores do Tribunal de Justiça resolveram concretizar o comando constitucional, tornando explícitas as atribuições que estavam delegando para o Órgão Especial e aquelas que estavam chamando para o Tribunal Pleno. A técnica adotada foi de exclusão, ou seja, o que não está ungido ao Tribunal Pleno está delegado, até nova deliberação, ao Órgão Especial.

Sob este entendimento, o Tribunal Pleno, em convocação feita pelo Presidente do Tribunal, realizou sessão plenária no dia 04.12.2008, tendo como objeto a alteração do regimento interno do Tribunal para o fim de retirar do Órgão Especial a atribuição política de compor as listas tríplices para preenchimento das vagas reservadas ao Ministério Público e aos advogados, além de eleger o Diretor da Escola da Magistratura do Estado (Resolução TP 01, de 04.12.2008)1.

Em 2009, o Tribunal Pleno, mais uma vez, afirmou sua supremacia dentro da estrutura do Tribunal, aprovando, por aclamação, em sessão realizada no dia 27.4.2009, nova alteração no regimento interno, com o escopo de fazer a indicação dos membros do Tribunal de Justiça (desembargadores e juízes, titulares e suplentes) que compõem o Tribunal Regional Eleitoral do Estado (Resolução TP 01, de 27.4.2009)2.

Ambas as resoluções deram voz ativa e concreta ao dispositivo constitucional, trazendo de volta para a maioria dos integrantes do Tribunal de Justiça, as decisões que afetam a vida profissional de todos, com repercussões na sociedade junto à qual atuam.

Ao que tudo indica, a democracia realmente chegou ao Tribunal de Justiça, mas muito há o que avançar, considerando que os juízes de 1º grau, enquanto agentes políticos, ainda se encontram completamente alijados de toda e qualquer interferência no processo político de sua própria casa.

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1 Publicado no Diário Oficial de 12.12.2008Considerando que a Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo Estado Democrático de Direto, elegendo, dentre seus Direitos Fundamentais, a cidadania (art.1º,II);Considerando que a emenda Constitucional 45, de 08.12.2004, instituiu mecanismos que visam a democratização interna do Poder Judiciário;Considerando que os Tribunais de Justiça poderão constituir Órgão Especial para o exercício de atribuições administrativas e jurisdicionais (CF, 93, XI);Considerando, especialmente, que o Órgão Especial é órgão delegatário do Tribunal Pleno e somente poderá exercer as atribuições administrativas e jurisdicio-nais expressamente delegadas por ele (CF, 93, XI);Considerando, ainda, que compete ao Tribunal de Justiça, através de seu Tribunal Pleno, elaborar o seu Regimento Interno (CF, 96 I, “a” e CE, 158, I, “b”);Considerando, por fim, que o Tribunal Pleno, Órgão Máximo do Tribunal de Justiça, pode autoconvocar-se para tratar de assunto de interesse institucional do Poder Judiciário.R E S O L V E:Art. 1º. O art. 2 º do Regimento Interno passará a ter a seguinte redação:“Art. 2º - Ao Tribunal Pleno, integrado por 180 (cento e oitenta) Desembargadores, compete eleger o Presidente, o Corregedor-Geral de Justiça, os 03 (três) Vice-Presidentes, o Diretor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e escolher os candidatos ao Quinto Constitucional do Ministério Público e da Advocacia que integrarão a lista tríplice.”Art. 2º - O art. 10 do Regimento Interno passa a vigorar acrescido dos §§ 5º e 6º, com a seguinte redação:Art. 10 § 5º - Os nomes dos candidatos ao Quinto Constitucional serão submetidos a escrutínio, sendo indicados para compor a Lista Tríplice, aqueles que obtiveram o maior número de votos. Cada desembargador votará em três nomes. § 6º - Para Diretor da EMERJ será considerado eleito o candidato que obtiver a maioria dos votos dos presentes.Art. 3ºV - elaborar o Regimento Interno, emendá-lo e resolver dúvidas relativas à sua interpretação e execução, ressalvada a competência do Tribunal Pleno.Art. 4º - A Secretaria do Órgão Especial também funcionará como Secretaria do Tribunal Pleno, sempre que se reunir, em sessão ordinária ou extraordinária, cabendo-lhe adotar as medidas para o seu regular funcionamento.Art. 5º - O Tribunal Pleno será convocado pelo Presidente do Tribunal ou mediante autoconvocação para deliberação de assunto institucional do Poder Judiciário.§ 1º A autoconvocação deverá ser subscrita pela maioria absoluta dos integrantes do Tribunal Pleno; § 2º O Presidente do Tribunal terá até 30 dias para designar a data da reunião plenária; § 3º A pauta especificará a matéria a ser deliberada. Art. 6º. As deliberações do Tribunal Pleno serão tomadas mediante quorum qualificado, isto é, metade mais um do número de cargos de Desembargadores exis-tentes. Rio de Janeiro, 04 de dezembro de 2008. DESEMBARGADOR MURTA RIBEIRO PRESIDENTE

2 Publicado no Diário Oficial de 28.04.2009RESOLUÇÃO Nº 01/2009 O TRIBUNAL PLENO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, no uso de suas atribuições legais e regimentais, e tendo em vista o que foi decidido na sessão do dia 27 de abril de 2009 (Processo nº 2009-098315), CONSIDERANDO que a Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo Estado Democrático de Direito, elegendo, dentre seus Direitos Fundamentais, a cidada-nia (art. 1º, II); CONSIDERANDO que a Emenda Constitucional 45, de 08.12.2004, instituiu mecanismos que visam a democratização interna do Poder Judiciário; CONSIDERANDO que a democratização interna do Poder Judiciário implica na participação do Tribunal Pleno nas decisões políticas do Tribunal de Justiça; CONSIDERANDO que o Tribunal de Justiça elege 4 (quatro) membros do Tribunal Regional Eleitoral, sendo 2 (dois) Desembargadores e 2 (dois) juízes de direito (CF, 120, I, “a” e “b”), além de elaborar a lista tríplice de advogados que também integrarão o TRE; CONSIDERANDO que a composição do Tribunal Regional Eleitoral é política em sua essência e, por isso, deve ser decidida pelo Tribunal Pleno em atenção ao princípio da participação democrática; R E S O L V E: Art. 1º - O Tribunal Pleno será convocado para proceder à eleição de 2 (dois) Desembargadores e de 2 (dois) Juízes de Direito para comporem o Tribunal Regional Eleitoral, bem como de seus suplentes. Parágrafo único - Serão considerados eleitos os candidatos mais votados, procedendo-se à eleição dos suplentes em escrutínio separado. Art. 2º - O Tribunal Pleno também será convocado para elaborar a Lista Tríplice de Advogados para nomeação pelo Presidente da República (CF, 120, III), sendo indicados os mais votados para integrarem a lista. Art. 3º - O art. 2º do Regimento Interno passará a ter a seguinte redação: “Art. 2º - Ao Tribunal Pleno, integrado por 180 (cento e oitenta) Desembargadores, compete: I - eleger o Presidente, o Corregedor-Geral de Justiça, os 03 (três) Vice-Presidentes; II - eleger o Diretor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro; III - escolher os candidatos ao Quinto Constitucional do Ministério Público e da Advocacia que integrarão a lista tríplice; IV - eleger 2 (dois) Desembargadores e 2 (dois) Juízes de Direito para integrarem o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) e seus respectivos suplentes; V - elaborar a lista tríplice de advogados para nomeação pelo Presidente da República para comporem o Tribunal Regional Eleitoral.” Art. 4º - Fica revogada a alínea “b” do inciso VIII do art. 3º do Regimento Interno. Art. 5º - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário. Rio de Janeiro, 27 de abril de 2009. (a) Desembargador LUIZ ZVEITER Presidente do Tribunal de Justiça

NOTAS

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PRESCRIÇÃO DO “FUNDO DE DIREITO”

Sérgio Paulo Ribeiro da Silva Juiz de Direito do TJEPE

Introdução

Nossa análise — sem pretensões de ser percuciente — está na mira da prescrição que se consuma em favor da Fazenda Pública, buscando focar a específica prescrição que afeta a pretensão que recai sobre o

chamado “fundo de direito”, este consistente no suposto direito que o particular entende ter adquirido, do qual decorrerão efeitos patrimoniais.

A um só tempo a prescrição é sanção — dirigida ao titular do suposto direito que supostamente foi violado e mesmo assim permaneceu inerte — e instrumento de pacificação social — ao garantir estabilidade às relações jurídicas.

E como não faz muito tempo que a ideia de prescrição, como meio de extinção do direito de ação, circulava nos meios acadê-micos, na doutrina e na própria jurisprudência, é que, para pos-sibilitar o diálogo, a reflexão do tema está precedida da fixação de conceitos — antigos e novos —, como de Fazenda Pública e de prescrição, adentrando nos aspectos da temporaneidade, da pretensão, da sua natureza (jurídica) e dos efeitos que produz.

Especificamente sobre a chamada prescrição do “fundo de direito”, deve-se inicialmente distingui-la da prescrição que recai unicamente sobre as prestações decorrentes de uma situação jurídica já estabelecida, com o objetivo de demonstrar que a percepção equivocada do julgador, a confundir uma hipótese com a outra, poderá conduzir uma das partes a prejuízo patrimonial. Tanto pode obrigar a Fazenda Pública a realizar pagamento de prestações decorrentes de direito, cuja pretensão já se encontra prescrita, ou ainda privar o particular de um direito quando apenas as prestações dele decorrentes se encontravam alcançadas pela prescrição.

1. Definições1.1 Prescrição1.1.1 Temporaneidade

Pelo que propõe este trabalho, não é de todo apropriado fazer incursões históricas acerca do instituto da prescrição.

Porém, um brevíssimo relato de sua origem não deve ser desmerecido, pois serve de suporte para melhor compreensão de sua natureza, sobretudo no que diz respeito ao caráter da temporaneidade do exercício dos direitos, dentre os quais o de ver reparado o direito subjetivo violado. Nesse intuito, sirvo-me das referências de Venosa:

Antonio Luís Câmara Leal (1978:3) descreve a história desse conceito etimológico. Quando o pretor foi investido pela lei Aebutia, no ano de 520 de Roma, do poder de criar ações não previstas no direito honorário, introduziu o uso de fixar prazo para sua duração, dando origem, assim, às chamadas ações temporárias, em contraposição com as ações de direito quiritário, que eram perpétuas. Ao estabelecer que a ação era temporária, fazia o pretor precedê-la de parte introdutória chamada praescriptio, porque era escrita antes ou no começo da fórmula. (VENOSA, 2008, p. 538).

No dizer de Gonçalves (2007, p. 467), o tempo é o personagem principal da prescrição. Não há como desprezar o fato de que o tempo afeta o exercício dos direitos subjetivos, cicatrizando lesões ocorridas no contexto das relações (jurídicas) econômico-sociais. E Venosa (2008, p. 535), com a percuciência de sempre, arremata: “O decurso do tempo, em lapso maior ou menor, deve colocar uma pedra sobre a relação jurídica cujo direito não foi exercido.”.

1.1.2 PretensãoPara Gagliano (2007, p.455), prescrição é a perda da

pretensão de reparação do direito violado. Refletir sobre o conteúdo do termo prescrição pressupõe, de certo, refletir também sobre o termo pretensão.

Pretensão, pois, diz respeito ao poder ou ao direito de exigir, do devedor em mora, o adimplemento da obrigação. Supõe, portanto, o inadimplemento de um dever jurídico, ou, na expressão do Código Civil de 2002, a violação de um direito (artigo 189): “Violado o direito, nasce para o titular

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a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.”. Colho das lições da Professora Maria Helena Diniz:

A violação do direito subjetivo cria para o seu titular a pretensão, ou seja, o poder de fazer valer em juízo, por meio de uma ação (em sentido material), a prestação devida, o cumprimento da norma legal ou contratual infringida ou a reparação do mal causado, dentro de um prazo legal (arts. 205 e 206 do CC). (DINIZ, 2005, p.375).

Informa Gonçalves (2007, p. 467) que a pretensão — anspruch —, como expressão da exigibilidade da prestação não cumprida, foi adotada entre nós — Código Civil de 2002, artigo 189 — por influência do direito germânico, revelando, inequivocamente, que não mais vigora a ideia segundo a qual a prescrição põe fim ao direito abstrato de ação. Tanto é assim — que não extingue o direito de ação, no sentido processual — que o acolhimento da exceção de prescrição pelo juiz se dá por sentença de mérito (CPC, art. 269, IV), que, inclusive, faz coisa julgada material (CPC, arts. 467 e 468).

1.1.3 Natureza (jurídica)Prescrição é, essencialmente, sanção. É resposta à inércia

do titular diante da violação do seu direito. Essa inércia do titular do direito violado, contudo, tanto pode significar negligência do titular do direito como pode, também, traduzir mero desinteresse (= renúncia tácita) do credor em obter a prestação que lhe é devida, muitas vezes após sopesar a relação custo/benefício.

Nem por isso é quase uníssona a consideração segundo a qual a prescrição resulta do menoscabo do titular do direito. Tanto é assim que Gagliano (2007, p. 455) dispara: “quem não tem dignidade de lutar por seus direitos não deve sequer merecer a sua tutela”. Outro não é o sentimento de Diniz (2005, p. 375):

Se o titular deixar escoar tal lapso temporal, sua inércia dará origem a uma sanção adveniente, que é a prescrição. A prescrição é uma pena ao negligente. É a perda da ação, em sentido material, porque a violação do direito é condição de tal pretensão à tutela jurisdicional. A prescrição atinge a ação em sentido material e não o direito subjetivo; não extingue o direito, gera a exceção, técnica de defesa que alguém tem contra quem não exerceu, dentro do prazo estabelecido em lei, sua pretensão. (DINIZ, 2005, p. 375). (grifo nosso)

Por isso, mantém-se de pé, entre nós, a máxima: dormientibus non sucurrit jus.

1.1.4 EfeitosUma vez consumada a prescrição, ou seja, decorrido

determinado lapso de tempo indicado pela lei, sem que, durante o seu interregno, o titular do direito violado tenha feito uso da ação judicial adequada, exigindo a correspondente reparação — nem ocorrido qualquer um dos fatos previstos em lei que impeça, suspenda ou interrompa a contagem desse prazo —, inexorável o resultado consistente na extinção da pretensão.

Wald (2003, p. 227) salienta que a prescrição faz convalescer uma lesão de direito no interesse social,

esclarecendo que o que prescreve não é o direito em si, mas a lesão ao direito que convalesce.

Tanto é verdade que o direito material — além do direito abstrato de ação, como já salientado anteriormente — não é afetado pela prescrição, no sentido de não ser extinto, já que a lei admite como bom o adimplemento da prestação cuja pretensão de exigibilidade já se encontrava pulverizada pela prescrição, a ponto de não assegurar qualquer direito de repetibilidade àquele que tenha solvido a obrigação (CC, art. 882).

Também, verba gratia, na hipótese de “cheques prescritos”, donde, como é sabido, a prescrição dissolve a pretensão executiva, o direito de crédito deles decorrente se mantém hígido a ponto de autorizar a correspondente cobrança através de ação ordinária (Lei do Cheque, arts. 61 e 62).

De outra parte, nossa doutrina — como também a própria legislação, conforme dispositivos legais acima indicados — acolhe sem maiores dificuldades a existência das chamadas obrigações naturais, às quais Ripert (2000, p. 355 e 364) se refere como o “(...) dever de consciência tomado em consideração pelo juiz, em vista dos seus direitos civis.”, cujo “(...) laço obrigatório pode ser sempre desfeito por uma execução voluntária”. E ainda sai com a seguinte tirada: “Certos autores chegam mesmo a dizer que a prescrição consegue apenas paralisar o direito, mas não extingui-lo”.

Foto: Assis Lima

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Sempre claro, Wald (2003, p. 228) sustenta que somente a responsabilidade decorrente da lesão ao direito violado é atingida pela prescrição, senão vejamos:

Se invocarmos a ideia de que toda lesão de direito cria uma responsabilidade em virtude da qual o prejudicado pode recorrer à justiça para obter o ressarcimento dos danos sofridos, podemos afirmar que a prescrição faz desaparecer a responsabilidade, mantendo, todavia, em vigor, mas desarmada, a relação originária. Tanto assim é que, se for paga uma dívida prescrita, quem a pagou não pode exigir a devolução do pagamento da dívida prescrita. Este pagamento legitima-se pela existência da obrigação originária, embora o credor já não possa, em virtude do decurso do tempo, recorrer às vias judiciais para cobrar o débito, equiparando-se a dívida prescrita à obrigação natural. (WALD, 2003, p. 228).

Sob outra percepção, pode-se ainda afirmar, sem vacilo, que o instituto da prescrição se presta também, como assevera Gagliano (2007, p. 454), como instrumento de garantia da pacificação social:

O exercício do direito por ações judiciais deve ser uma consequência e garantia de uma consciência de cidadania, e não uma ‘ameaça eterna’ contra os sujeitos obrigados, que não devem estar submetidos indefinidamente a uma ‘espada de Dâmocles’ sobre suas cabeças.

Além de estar a serviço da consolidação de direitos, proporcionando segurança e estabilidade às relações jurídicas, destaca Venosa (2008, p. 536) outro aspecto relevante acerca da prescrição: “Não fosse o tempo determinado para o exercício dos direitos, toda pessoa teria de guardar indefinidamente todos os documentos dos negócios jurídicos realizados em sua vida, bem como das gerações anteriores”.

São ganhos de que o Direito — e seus destinatários — não mais pode abrir mão, apesar de favorecer que as obrigações permaneçam não cumpridas. O lucro auferido pela sociedade supera, em muito, o prejuízo sofrido por cada indivíduo.

1.2. Fazenda PúblicaNo dizer do professor Leonardo da Cunha, a expressão

Fazenda Pública designa a pessoa jurídica de direito público em juízo, pouco importando se a demanda verse, ou não, sobre matéria estritamente fiscal ou financeira. É o que se extrai das seguintes passagens:

O uso frequente do termo Fazenda Pública fez com que se passasse a adotá-lo num sentido mais lato, traduzindo a ideia do Estado em juízo; em Direito Processual, a expressão Fazenda Pública contém o significado de Estado em juízo. Daí porque, quando se alude à Fazenda Pública, a expressão apresenta-se como sinônimo de Estado em juízo, ou, ainda, da pessoa de direito público em juízo. A expressão Fazenda Pública é utilizada para designar as pessoas jurídicas de direito público que figurem em ações judiciais, mesmo que a demanda não verse sobre matéria estritamente fiscal ou financeira.” (CUNHA, 2008, p. 15)

Meirelles (1990, p. 617), por sua vez, esclarece que a pessoa jurídica de direito público, quando em juízo, recolhe essa denominação, porquanto é o erário que terá de suportar os encargos patrimoniais da demanda. Nessa mesma linha, assevera Pereira (2008, p. 5) que: “A expressão Fazenda Pública é normalmente evocada como representativa de feição patrimonial das pessoas jurídicas de direito público interno, tanto mais quando observadas sob a atuação judicial”.

Deve-se também registrar que essa expressão alcança qualquer uma das entidades da administração pública direta: União, Estados e Municípios. Da indireta, por força do dis-posto no artigo 10 da Lei 9.469/97, estão compreendidas no seu conceito somente as autarquias e as fundações públicas, ficando de fora, pois, as empresas públicas e as sociedades de economia mista.

2. A Fazenda Pública diante da prescriçãoLógico que a prescrição tanto pode beneficiar como

desfavorecer a Fazenda Pública, conforme seja o titular, ou não, do direito subjetivo malferido. Prescrição em favor da Fazenda Pública supõe que aquele que tinha direito à prestação não cumprida, o particular, tenha deixado — pouco importa a razão, se por mero descaso ou por opção — de exigir o cumprimento da respectiva obrigação no prazo fixado em lei.

Se a prescrição, ao contrário, desfavorecer a Fazenda Pública é porque foi ela quem deixou de manejar a ação adequada — em sentido processual —, a fim de afastar e/ou sanar a lesão que afetava seu direito subjetivo.

Embora não esteja no foco destas reflexões, abro um parêntese tão somente para registrar que os prazos de prescrição, conforme seja a favor ou contra a Fazenda Pública, prima facie, são diferenciados e ainda regidos por diplomas legais diversos, salvo, naturalmente, as percucientes opiniões em contrário.

Se em benefício da Fazenda Pública, salvo as ações reais e outras hipóteses previstas em leis específicas, o prazo prescricional é de cinco anos, conforme o estabelecido no Decreto n° 20.910, de 6 de janeiro de 1932. Merece respeito, entretanto, a exegese segundo a qual, sobretudo nas demandas indenizatórias, esse prazo fica reduzido para os três anos fixados pelo Código Civil de 2002, na medida em que o § 3° do artigo 206 não fez — e não faz — qualquer ressalva relativamente à Fazenda Pública, bem como em face do teor do artigo 10 do próprio Decreto n° 20.910/32, que, expressamente, ressalva que o prazo nele fixado de cinco anos não prevalece sobre prazo menor fixado em lei e regulamentos.

Se em desfavor da Fazenda Pública, de acordo com atual Código Civil, o prazo de prescrição — sobremaneira nas ações pessoais que visem o recebimento de prestações vencidas, o ressarcimento de enriquecimento sem causa ou a reparação civil (CC, artigo 206, § 3°, II a V) — é de apenas três anos.

3. Prescrição das pretensões contra a Fazenda PúblicaO tema, como visto, trata de hipótese em que a prescrição

se consuma em favor da Fazenda Pública. Essa prescrição,

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porém, nos termos dos artigos 2° e 3° do Decreto n° 20.910/32, respectivamente, tanto pode se referir a “(...) todo o direito e às prestações correspondentes (...)” como exclusivamente “(...) às prestações, à medida que completarem os prazos estabelecidos pelo presente Decreto”.

Noutras palavras, a prescrição tanto está vocacionada a extinguir pretensão relativa a um direito subjetivo em si, de que o sujeito julga ser titular, como única e exclusivamente às prestações que decorrem de um direito já reconhecido e cuja execução é de trato sucessivo.

Na primeira hipótese, em que a prescrição extingue uma pretensão a um direito subjetivo do qual o sujeito julga ser titular, a doutrina e a jurisprudência convencionaram se tratar da chamada prescrição do próprio “fundo de direito”, que é objeto de nossa preocupação.

4. Prescrição do “fundo de direito”4.1. Distinção (entre prescrição do “fundo de direito” e prescrição incidente sobre prestações de trato sucessivo)

Cumpre-nos agora esquadrinhar a chamada prescrição do “fundo de direito”, sobretudo para distingui-la da prescrição que recai sobre meras prestações de trato sucessivo, nem sempre bem percebida pelos operadores do Direito.

Quando o particular exerce pretensão — via ação judicial —, verba gratia, a uma determinada pensão que entende ser de direito e que foi denegada pela Administração Pública, ou seja, visa estabelecer (ou restabelecer) uma determinada situação jurídica, a prescrição afetará a exigibilidade desse suposto direito à pensão. Configurada a prescrição, o particular não poderá mais exigir que lhe seja deferida a pensão requestada. É o caso da chamada prescrição do “fundo de direito”.

A exigibilidade do pagamento das pensões mensais supõe o reconhecimento do direito à pensão. Só após tal reconhecimento é que nascem os efeitos patrimoniais decorrentes, ou seja, só depois de certificado o direito — deferimento, por exemplo, da pensão pelo órgão previdenciário — é que se torna exigível a prestação periódica.

E quando o particular exercer pretensão, tendo em vista o simples pagamento de prestações — das pensões mensais, por exemplo —, originalmente reconhecidas como devidas, e mesmo assim elas não forem pagas, a prescrição recairá exclusivamente sobre a pretensão referente às parcelas anteriores a cinco anos. É o caso de prescrição das prestações de trato sucessivo.

A propósito, a matéria já mereceu inclusive a atenção das Cortes Superiores de Justiça. O Supremo Tribunal Federal, quando ainda tinha jurisdição sobre direito federal, editou a Súmula n° 443, com o seguinte enunciado: “A prescrição das prestações anteriores ao período previsto em lei não ocorre, quando não tiver sido negado, antes daquele prazo, o próprio direito reclamado, ou a situação jurídica de que ele resulta”.

Assim também o fez o Superior Tribunal de Justiça, editando a Súmula n° 85 com o seguinte enunciado: “Nas relações jurídicas de trato sucessivo em que a Fazenda Pública figure

como devedora, quando não tiver sido negado o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as prestações vencidas antes do quinquênio anterior a propositura da ação”.

Por fim, é digno de registro que a chamada prescrição do “fundo de direito”, na lição de Cunha (2008, p.74), ou decorre de expresso pronunciamento da Administração Pública, denegando o pleito do interessado, ou da simples vigência das denominadas “leis de efeitos concretos”, ou seja, daquela lei, verba gratia, que altera situação jurídica estabelecida. A lesão, afirma o doutrinador, não advém de ato administrativo, mas com a simples vigência da lei.

4.2. Significação prática do temaA percepção inadequada da questão pode conduzir o

titular do direito violado a sofrer novo dano — tão nocivo, senão mais grave do que a própria violação do seu direito material —, qual seja o de se ver privado da possibilidade de exigir o adimplemento da obrigação não cumprida e/ou a correspondente reparação, tão somente e por conta do aplicador do direito, indevidamente, ter entendido estar configurada a prescrição do “fundo de direito”, quando, de fato, tratava-se de simples prescrição referente às prestações decorrentes de um direito já reconhecido.

O inverso também é verdadeiro: não seria correto — para não falar em injustiça — condenar a Fazenda Pública a qualquer pagamento quando a pretensão do particular está dissolvida pela chamada prescrição do “fundo de direito”.

Quando o aplicador do direito reconhece a prescrição da pretensão que recai apenas sobre as prestações decorrentes de um direito já reconhecido, a perda daí decorrente se limita àquelas parcelas correspondentes ao quinquênio anterior ao ajuizamento da ação judicial, ficando ressalvadas, consequentemente, além do próprio direito do qual decorrem tais prestações, as demais que ficaram de fora desse período.

Ao contrário, quando o aplicador do direito decreta a extinção da pretensão pela prescrição, que recai sobre o próprio direito do qual decorreriam as prestações, o prejuízo adveniente ao titular do direito não se limitaria às parcelas, mas, como visto, ao direito em si, de modo que esse sujeito nada pode mais exigir.

4.3. Análise de um caso concretoPara ilustrar e facilitar a compreensão, nada mais pertinente

do que partir de uma situação concreta, como a que cuida o Recurso Especial n° 534.671-CE (DJ: 31/5/2004, p.194), especialmente por conta do debate travado entre o Ministro Francisco Falcão, relator do recurso, e o Ministro José Delgado. Assim relata o Ministro delgado:

Os autos atestam que José Ivan da Silva, em data de 8.11.83, quando se encontrava preso na Comarca de Redenção, Estado do Ceará, foi linchado até a morte, fato ocorrido dentro da cela. Em 10 de junho de 1996, portanto, quase 13 anos do referido sinistro, a sua esposa promove ação de responsabilidade civil, requerendo uma pensão mensal até completar 65 anos de idade. O juízo de primeiro grau julgou extinto o processo, acolhendo

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arguição de prescrição. O Tribunal ‘a quo’, após afastar a prescrição, apreciou o mérito, considerando parcialmente procedente o pedido, concedendo a pensão a partir de 26.7.91, data em que foi cumprido o lapso temporal de 5 (cinco) anos imediatamente anteriores ao ajuizamento da ação. O eminente relator deu parcial provimento ao recurso especial do Estado. Este reivindica a aplicação das regras postas no Decreto 20.910/32.

Em seu voto, o Ministro Falcão considerou, a exemplo do tribunal a quo, que a prescrição consumada dizia respeito tão somente às prestações vencidas e não ao chamado “fundo de direito”:

Primeiramente, no que concerne à prescrição da postu-lação da autora, entendo que esta não se configurou nos moldes como decidiu o acórdão vergastado. No presente caso, a autora pleiteia a reparação de danos por ato ilícito em face da morte de seu cônjuge, requerendo o pagamento de pensão mensal. Com isso, afigura-se o caráter alimentar e de trato sucessivo da presente indenização, razão pela qual, no teor da Súmula n° 85 desta Corte, a prescrição não atinge o fundo do direito, mas tão somente as parcelas anteriores ao quinquênio do ajuizamento da ação.

O Ministro Delgado, por seu turno, considerou que a prescrição havia destruído a pretensão referente ao próprio direito de pensionamento:

Como bem posto, a hipótese tratada nos autos não caracteriza relação jurídica reconhecida por lei de trato sucessivo. Esta relação, com tal característica, exige que o direito se encontre reconhecido, tendo, apenas, deixado de ser exercido. É exemplo constante o pensionamento devido ao cidadão por determinação legal ou por força de sentença, sem que tenha havido efetivo exercício de concretizá-lo. Nessa situação, o fundo do direito não prescreve. Só as prestações devidas atingidas pela prescrição. No caso em análise, inexiste direito objetivamente reconhecido. Em consequência, se a parte interessada deixou escoar o prazo quinquenal para propor a ação objetivando o reconhecimento do seu direito, não resta opção ao Poder Judiciário senão decretar extinto o processo, em face de efeito prescricional, sem julgamento de mérito.

Como visto, de uma simples leitura dos trechos transcritos dos votos dos ministros se constata que a matéria suscita difi-culdades e produz consequências importantes para as partes.

Na primeira instância, o juízo singular pôs fim ao processo por entender que estava configurada a chamada prescrição do “fundo de direito”. Em termos práticos, para a esposa do preso que foi assassinado na prisão, tal decisão importou em permanecer sem qualquer reparação por parte do Estado, em poder de quem se encontrava o marido da autora da ação.

Na segunda instância, o tribunal local, vendo a causa sob outra perspectiva, reformou a sentença por acreditar que se tratava de prescrição que recaía apenas sobre as prestações compreendidas a partir do último quinquênio anterior à propo-

situra da ação indenizatória, de modo que, assim, condenou o Estado a pagar a pensão perseguida pela viúva — salvo, naturalmente, as prestações alcançadas pela prescrição.

Chegando a causa ao Tribunal Superior de Uniformização do Direito Infraconstitucional, a matéria voltou a ser objeto de desencontro de percepções, pois o Ministro Falcão, relator do especial, ao votar, considerou, a exemplo do tribunal a quo, que a prescrição consumada dizia respeito tão somente às prestações vencidas e não ao chamado “fundo de direito”, razão por que se posicionou pela manutenção da condenação do Estado a realizar o pensionamento.

Enquanto isso, o Ministro Delgado, acertadamente, enten-deu que a prescrição atingiu a pretensão do próprio direito ao pensionamento e, por conseguinte, das parcelas dele advenientes. Como seu voto prevaleceu, a decisão da Turma (acórdão) foi no sentido de reconhecer a prescrição e afastar a condenação imposta ao Estado. Com isso, nada mudou na vida concreta da viúva do preso assassinado: o dano permaneceu sem qualquer reparação pelo Estado.

ConclusõesNão há como desprezar o fato de que o tempo afeta o

exercício dos direitos subjetivos, cicatrizando lesões ocorridas no contexto das relações (jurídicas) econômico-sociais.

Refletir sobre o conteúdo do termo prescrição pressupõe refletir também sobre o termo pretensão, que diz respeito ao poder ou ao direito de exigir do devedor em mora o adimplemento da obrigação. Supõe, portanto, o inadimplemento de uma obrigação. Prescrição é, essencialmente, sanção devido à inércia do titular diante da violação do seu direito. Porém, sob outra perspectiva, prescrição se presta também como instrumento de garantia da pacificação social.

Relativamente à prescrição em favor da Fazenda Pública, supõe que aquele que tinha direito à prestação não cumprida, o particular, tenha deixado — pouco importa a razão, se por mero descaso ou por opção — de exigir o cumprimento da respectiva obrigação no prazo fixado em lei e poderá extinguir tanto a pretensão relativa a um direito subjetivo em si, de que o sujeito julga ser titular (“fundo de direito”) como única e exclusivamente às prestações que decorrem de um direito já reconhecido.

Também é digno registrar que a chamada prescrição do “fundo de direito” decorre de expresso pronunciamento da Administração Pública denegando o pleito do interessado ou da simples vigência das denominadas “leis de efeitos concretos”, ou seja, a lesão não advém de ato administrativo, mas com a vigência da lei.

Por fim, a percepção inadequada da distinção entre a prescrição do “fundo de direito” e a prescrição de meras prestações pode conduzir uma das partes a prejuízo patrimonial. Tanto pode obrigar a Fazenda Pública a realizar pagamento de prestações decorrentes de direito, cuja pretensão já se encontra prescrita, como pode privar o particular de um direito quando apenas as prestações dele decorrentes se encontravam alcançadas pela prescrição.

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sistêmico da paz positiva, que exige mudança radical para a construção de uma via paralela na procura da justiça social e na elimina-ção de desigualdades.

Por força de suas fun-ções e atribuições cons-titucionais, o Ministério da Justiça, ocupado atu-almente por Tarso Genro, sempre esteve no centro das tempestades, sob o olho do furacão. No comando desta nave, Tarso Genro tem se mostrado corajoso e coerente, fir-me em suas posições, ainda que em oposição direta a outros entendimentos, revelando, permanentemente, suas reflexões analíticas, sistêmicas, contextuais dos profundos fenômenos de nossa sociedade.

Enfim, face às intrincadas teias da Justiça, Tarso Genro tem posto em prática um dos mais caros ensinamentos do mestre Bobbio: “Reverenciamos a não-violência ativa como modelo: nele, a serenidade rege a virtude ética — não política — da não-violência, ao se recusar a exercer a violência contra quem quer que seja. Deixar o outro ser aquilo que é.”

Nos difíceis tempos atuais — em que a velocidade das transformações sociais atropela e compromete os esforços da engenharia social, de que fala o mestre Roscoe Pound (1870-1964), não deixa de ser reconfortante ter um discípulo consciente de Bobbio no comando da Justiça, a pasta mais antiga, mais sensível e mais delicada — e a mais atribulada — de todas as que compõem a administração federal.

Resolvi conhecer São Borja quando cursava Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora. Em um sábado de carnaval, já me despedindo da cidade, tive a oportunidade de participar de um churrasco na praça pública da cidade, onde conheci João Goulart, que se preparava para assumir a Presidência da República. Descobri naquela oportunidade que São Borja é a cidade dos predestinados, não podendo olvidar que Getúlio Vargas foi um dos maiores estadistas que tivemos.

O dia 9 do mês de janeiro de 2010 marcou a passagem do quarto aniversário da morte, aos 95 anos incompletos, de Norberto Bobbio (1909-2004), um dos maiores filósofos e cientistas políticos do século

XX, mundialmente respeitado, e certamente o mais importante pensador político italiano nos últimos 100 anos. Sua contribuição para o entendimento das forças geopolíticas do mundo moderno é tão vasta que lhe garantiu, para sempre, um lugar de destaque na concepção e no tratamento de temas como direitos humanos, construção da paz e limites do Estado frente à cidadania.

A obra escrita de Bobbio é fantástica: são nada menos que 2.025 títulos, dos quais os mais conhecidos são “A Era dos Direitos”, “O problema da guerra e as vias para a paz”, “O futuro da democracia”, “O terceiro ausente”, “Teoria do Ordenamento Jurídico”, sem esquecer o “Dicionário de Política”, o mais usado nas universidades. Essas obras cobrem um imenso campo doutrinal: ontologia do direito, metodologia dos princípios lógicos, análise ideológica, interpretação e aplicação do direito, teoria da justiça, valorização crítica do direito positivo.

Ao longo do século XX, o pensamento de Bobbio, dada a sua universalidade, espalhou-se por todo o mundo. No Brasil, que ele visitou em 1983 a convite da Universidade de Brasília, Bobbio foi saudado pelo jurista Miguel Reale, que assim se expressou: “Talvez a maior contribuição de Hobbie seja a de extrair de cada doutrina, como ninguém consegue, os fundamentos essenciais de cada uma, seja Kant, Kelsen, Marx ou Hegel, sem se incorporar a qualquer uma delas.”

Em nosso país, os ensinamentos de Bobbio encontraram terra fértil nos meios acadêmicos e entre cientistas sociais, filósofos, pensadores e juristas, dentre os quais se alinha o atual ministro da Justiça, Tarso Fernando Herz Genro (São Borja, RS, 1947). Segundo aqueles que o conhecem de perto, com ele convivem e trabalham, Tarso tornou-se um atento estudioso e adepto assumido de Bobbio.

Nos anos em que esteve à frente da Prefeitura de Porto Alegre (por duas vezes), do Ministério da Educação e, logo depois, do Ministério das Relações Institucionais, Tarso Genro soube imprimir uma marca inspirada em Bobbio: o trato da questão social e política como parte da Ciência, cujo instru-mento maior — a análise crítica — permite conhecer o contexto

Cármine Antônio Savino FilhoDesembargador do TJERJ

TARSO GENRO: UM DISCÍPUlO DE bObbIO à

FRENTE DA JUSTIÇA NO bRASIl

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CONSTITUIÇÃO E INTERvENÇÃO

Aurélio Wander BastosAdvogado e Cientista PolíticoMembro do Conselho Editorial

direta ou indiretamente a nove emendas que desequilibraram a matéria constitucional originária.

Neste sentido, desde sua redação originária, a Constituição é bastante objetiva quando dispõe que, dentre as funções institucionais do Ministério Público, existe a de promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados nos casos previstos nesta Constituição (IV, 129). Por outro lado, em linha complementar, dispositivo constitucional dispõe que a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para (art. 34): pôr têrmo a grave comprometimento de ordem pública (III); ou, garantir o livre exercício de qualquer dos poderes nas unidades da federação (IV).

Aplicadamente a questão parece linear, mas na verdade a representação de intervenção no caso concreto do Distrito Federal, apesar da visibilidade alcançada na interrupção das ações do Poder Judiciário, ainda não está suficientemente visível no que concerne ao grave comprometimento da ordem pública, aliás, um dispositivo que, como veremos na forma do texto constitucional, não tem uma explícita dimensão de eficácia. Todavia, é claro, os deputados, não propriamente na ausência de evidência dos fatos, mas de suporte jurídico, poderão evoluir para a solução localista do impeachment dos autores executivos e legislativos; o que, em princípio, já foi detonado e não poderá ser interrompido, demonstrando a fragilidade da proposta de intervenção federal ou, no caso, a sua ineficácia.

Não há como negar, no entanto, que, na evidência, o autor provocou a desagregação da crise de direito comum, segundo noticiário judicial, procurando subornar autoridade pública, ou trouxe aos autos documentos falsos (noticiário jornalístico), condutas que caracterizam a figura constitucional típica de interceptação do livre exercício de poderes (art. 34, IV). Em quaisquer dos casos, as figuras constitucionais típicas, a primeira poderia gerar efeitos interruptivos em ação que já tramita no Superior Tribunal de Justiça, à medida que a esse Tribunal compete processar e julgar originariamente (art. 104), nos crimes comuns, os governadores dos Estados e do Distrito Federal (art. 105, I, a), excetuados os crimes de responsabilidade, que também não estão restritos à órbita judiciária, o que fragiliza o livre exercício (do Poder Judiciário) no Distrito Federal.

Os cidadãos geralmente presumem que a Consti tuição é um todo harmônico que responde ao conjunto dos problemas públicos e privados com a coerência que permite a sobrevivência institucional estável. Essa

nem sempre é a realidade e, muitas vezes, as dessintonias constitucionais são a origem de crises institucionais a que a própria Constituição não responde, dificultando, mesmo na forma de ações judiciais, a prudente ação, principalmente dos tribunais superiores.

Hans Kelsen (1873/1973), o grande jurista austríaco do século XX, tendo vivido longo tempo em Harvard/EUA, que contribuiu para a construção da Constituição de Weimar (1919) e redigiu a Constituição Austríaca (1920), quando foi criado o Tribunal Constitucional, procurou desenvolver uma convincente teoria sobre a coerência normativa interna a partir dos pressupostos constitucionais. Todavia, definindo as variáveis que presidem a estrutura da Ordem jurídica, o jurista identificou que a Ordem não apenas tinha uma dimensão de coerência hierárquica, mas convivia com conflitos normativos e, no seu conjunto, possuía diversas lacunas hipoteticamente colmatáveis através de ações de efeito jurisprudencial produzidas pelos tribunais superiores.

A Constituição brasileira de 1988, devido à sucessiva superposição de Emendas Constitucionais (cerca de 60), assumiu uma natureza ímpar, permitindo que o seu corpo geral mais se explique pelos conflitos e lacunas sistêmicas do que pela sua coesão normativa interna. Neste sentido, ganharam dimensões discursivas abertas questões que envolvem a ordem política, fragilizando significativamente os mecanismos de controle da constitucionalidade e os mecanismos constitucionais de controle de situações políticas complexas.

A recente crise do Distrito Federal, neste sentido, abre o espaço discursivo necessário para que se avalie a sua evolução não apenas em função dos movimentos de seus atores, mas principalmente através dos mecanismos constitucionais que podem viabilizar a superação: o impeachment de autoridades executivas e legislativas e a intervenção política nos poderes Executivo e Legislativo. O texto constitucional não propriamente se estende sobre o item referente ao impeachment, mas tem informações suficientes sobre a questão da intervenção política (no caso em poderes do Distrito Federal), hoje suscetível

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De qualquer forma, essa questão pode ser — como está sendo — apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, porque se inclui dentre as suas competências julgar e processar originariamente habeas corpus em caso de crime comum de governador de Estado ou do Distrito Federal (art. 102, I, i). Esta posição se torna mais explícita à medida que a solicitação de intervenção federal dependerá (art. 36) de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida pelo Poder Judiciário (art. 102, I, i). Vê-se, por conseguinte, que tudo indica a efetiva similaridade com o caso da crise do Distrito Federal, vista da perspectiva do crime comum, deixando faltar ao Supremo iniciativas fundamentais para a eficácia da decisão.

Por outro lado, e essa nos parece uma especialíssima leitura, quando se verifica que compete ao Supremo Tribunal Federal julgar e processar originariamente diferentes itens de conduta (art. 102, I), não se identifica em qualquer das letras sua explícita competência para decidir sobre intervenção nos Estados ou no Distrito Federal (art. 34) a fim de pôr termo a grave comprometimento da ordem pública (art. 34, III), deixando, por conseguinte, em aberto, figura constitucional típica de grave turbulência e desajuste entre poderes (que só se complica por eventuais renúncias), ou funcionamento anômico ou entrópico de qualquer um dos poderes. Da mesma forma, dentre essas competências do Supremo Tribunal Federal está aquela de provocar a intervenção federal (art. 49, IV) nos casos de necessidade de se garantir o livre exercício dos Poderes nas unidades da Federação (art. 34, IV), mas não tão simplesmente.

Nestes casos, resta observar que os caminhos consti-tucionais federais para intervenção em Estados ou no Distrito Federal são estreitos e poderão exigir um esforço hermenêutico, juridicamente extensivo e nem sempre politicamente aconselhável. Para concluir, deve-se observar que o Decreto de intervenção presidencial (art. 84, X, c.c. art. 36, § 1º), consequente de apreciação positiva do Supremo Tribunal Federal, nos casos originários de violação do livre exercício dos poderes (art. 34, IV), deverá ser necessariamente aprovado pelo Congresso Nacional (art. 49, IV), sendo que, voltamos a repetir, silencia-se a Constituição sobre a competência da União para intervir nos casos em que os Estados ou o Distrito Federal envolvam-se em grave comprometimento da ordem pública (art. 34, III). Essa posição mais se fortalece à medida que, durante a vigência da intervenção federal, fica suspensa a tramitação de Emendas Constitucionais (art. 60, parágrafo 1º).

Finalmente, ocorre que, independentemente da tecitura constitucional, que atribui ao Congresso Nacional (art. 49, IV) poderes para apreciar o Decreto de intervenção presidencial (art. 84, X, c.c. art. 36 § 1º), após manifestação do Supremo Tribunal Federal, a matéria está permeada pela Lei orgânica do Distrito Federal (e dos Estados) nos casos de violação do livre exercício dos poderes (no caso crimes comuns). Assim, para o correto andamento do procedimento, o Superior Tribunal

de Justiça, preliminarmente, deverá solicitar na forma da Lei Orgânica do Distrito Federal (ou de qualquer Estado), licença prévia (art. 60, inc. III), autorizada por dois terços dos membros da Assembleia Legislativa, para abrir processo penal contra o governador, e, somente então, havendo condenação, seguir para o Supremo Tribunal Federal, para manifestação sobre o cabimento do Decreto de intervenção presidencial.

A intervenção federal, por conseguinte, é um mecanismo de alta complexidade, porque o texto constitucional, procurando preservar a independência dos poderes e a autonomia federativa, construiu mecanismos que mais se destinam a interceptar o processo de intervenção federal nos Estados (e no Distrito Federal) do que propriamente a viabilizá-lo, tornando-o um instituto de baixa eficácia jurídica e política e de remota motricidade, na forma da Constituição (e suas emendas). Nestas especiais circunstâncias, constitucionalmente, o Distrito Federal ficou em situação privilegiadíssima, pois adquiriu os poderes dos entes federativos e, ao mesmo tempo, protegeu-se da posição hierárquica da União, que, tradicionalmente, nas federações (e repúblicas) marca a sua organização e determina a sua dinâmica política.

Conclusivamente, para enfrentar as situações de crise, especialmente nos crimes de responsabilidade, resta apenas a Lei orgânica do Distrito Federal, no que não estiver em conflito com a histórica lei federal, a figura típica do impeachment. O quadro político do Distrito Federal caminha num processo lento e cauteloso, mas deixa evidente a necessidade de organização, evitando excessos políticos, aos efetivos propósitos federativos para que sua funcionalidade não seja vítima da própria estrutura.

Foto: Arquivo JC

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Nos últimos anos, a Internet foi incorporada à vida de milhões de pessoas em todo o mundo, e com ela inúmeros benefícios foram trazidos à sociedade, como a facilidade de comunicação, acesso e

compartilhamento de informações. Mas, sem os cuidados necessários, essa tecnologia também pode apresentar sérios riscos à segurança do internauta. Nos dias atuais, as pessoas cada vez mais trocam dados por meio eletrônico. As novas tecnologias propiciam diferentes tipos de escândalo gerando danos exponenciais. Estamos em um momento de transição em que as relações humanas se tornam cada vez mais interativas através dos dispositivos móveis de comunicação, porém, nos tornamos cada vez mais vulneráveis aos ataques a nossa esfera de privacidade.

Se lançarmos um olhar sobre esta transição, veremos que um dos grandes desafios será o de preservar a reputação e a privacidade diante de um ambiente de interconexão provocado pela revolução tecnológica, que cria uma esfera pública nova, desafiando a credibilidade por parte de pessoas físicas e jurídicas neste novo ambiente social. A reputação pessoal e das empresas é um patrimônio inestimável que deve ser encarado como uma poupança, onde se procura acumular valores diante da percepção do público, que ora está sendo potencializada através da Internet.

Temos que admitir que certas horas nos comportamos como primatas high-tech, pois o brasileiro, de forma geral, adora tecnologia e tem um perfil essencialmente exibicionista,

A FRAGILIDADE DA PRIvACIDADE NA MÍDIA DIGITAl

Alexandre AtheniensePresidente da Comissão de Tecnologia da Informação do Conselho Federal da OAB

Foto: Dimang Kon Beu

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o que contrasta com o seu pouco conhecimento sobre a vulnerabilidade do excesso de exposição da sua privacidade pelo meio eletrônico. Imagens captadas de relacionamentos amorosos, duradouros ou não, têm sido reiteradas vezes utilizadas por um companheiro que se sente fraco emocionalmente com o término de um relacionamento e opta por extrapolar sua angústia para um público incalculável pela Internet, o que proporciona danos potencializados que vêm sendo reparados com a devida identificação dos culpados. A falsa sensação de anonimato propiciada pela tecnologia, somada ao desconhecimento das leis vigentes, atrai os infratores para a prática de ilícitos, que vêm sendo cada vez mais desvendados e punidos pela Justiça Brasileira.

É necessário refletir que a potencialidade do dano cometido contra a imagem de um profissional liberal, por exemplo, é imensa, pois qualquer deslize pode ter sido cometido na esfera local, enquanto que a repercussão no meio eletrônico pode torná-lo global em pouco tempo, fazendo com que o desgaste seja bem maior que o próprio erro.

Precisamos nos conscientizar de que quanto mais avança a tecnologia mais a nossa privacidade será devassada. Todo este risco provocado pela tecnologia não deve ser encarado como desprotegido pelo Direito brasileiro. Já temos leis e jurisprudência

suficientes sobre o tema para coibir os abusos praticados contra a reputação de pessoas e empresas no meio eletrônico. Todavia, é muito importante criar o hábito de monitorar a divulgação de textos, imagens, vídeos para que seja possível identificar rapidamente o conteúdo ilícito, visando retirá-lo imediatamente de circulação como forma de minimizar o dano.

Ninguém dúvida de que estamos diante da necessidade de aprender uma nova etiqueta de comportamento social através do mundo eletrônico, demandando um aprendizado para que estejamos preparados para críticas e execrações digitais que nem sempre poderão ser controladas pela vítima, mas que serão punidas pela Justiça.

Pensando nesses problemas, a INSAFE, conjunto de organizações ligadas à Comissão Europeia, estabeleceu o dia 9 de fevereiro como o Dia da Internet Segura. A data, celebrada desde 2003, pretende alertar para o uso responsável da rede, divulgando guias sobre como se proteger e denunciar possíveis abusos. É uma excelente iniciativa da ONG SaferNet, do Ministério Público Federal e do Comitê Gestor da Internet para que os brasileiros saibam utilizar a Internet e os serviços tecnológicos com ética e conheçam os instrumentos legais existentes que os auxiliam a não cair nas armadilhas da rede mundial de computadores.

Foto: sxc.hu

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A RECUPERAÇÃO JUDICIAL E O DESAFIO DE SUA APlICAÇÃO EFETIVA

A crise financeira que abalou os sistemas organizacionais das sociedades empresárias teve sua amenização declarada nos últimos dias. No Brasil, dados da Serasa Experian revelam que desde a entrada

em vigor da nova Lei de Falências em 2005, o ano de 2009 registrou o menor número de falências, decretadas no País. Contradição aos fatos ou sobrevivência diante de uma crise que tomou proporções devastadoras?

A bem da verdade é que se trata da manifestação de otimismo e esperança com relação aos novos instrumentos contemplados na Lei 11.101/05 (LFRE), tais como a recuperação judicial e extrajudicial. Os números divulgados pelo Serasa Experian revelam que a quantidade de pedidos de recuperação mais que dobraram no ano passado em relação aos de 20081. Situação que tende a crescer no ano de 2010, uma vez que muitas sociedades empresárias passarão por mudanças necessárias, principalmente de âmbito organizacional. É de se frisar, no entanto, que tais indícios não significam ainda a eficácia da utilização dos novos institutos contemplados pela LFRE, o que somente ocorrerá a partir da análise do ano corrente, quando de fato começa o período de recuperação de muitas delas; ou seja, o cumprimento das obrigações assumidas no Plano de Recuperação Judicial (PRJ).

Para que o cenário continue positivo, as sociedades empresárias precisam encontrar a atual legislação como um instrumento hábil de preservação das suas fontes produtivas e que ofereça, ao mesmo tempo, a segurança necessária aos credores para apostarem na sobrevivência do devedor em recuperação. Situação indispensável para que o processo e o PRJ contemplem a informação e a transparência como

princípios norteadores de qualquer negociação, transação, e operações para diminuição do passivo.

Como disposto no art. 47 da LFRE2, a Recuperação Judi-cial destina-se exclusivamente às sociedades empresárias (e também ao empresário individual) em situação de crise econômico-financeira, mas que apresentam ao menos algum indício de possibilidade de superação desse estado.3 Assim, o instituto da recuperação está indissociavelmente ligado a um estado temporário da sociedade empresária, que terá, por obrigação da própria concepção da lei, de ser capaz de superar a crise com auxílio dos mecanismos e órgãos de administração dirigentes do processo concursal. Por ser esse, na exigência legal, um estado temporário, eis que é chegada a hora de se verificar se os devedores que requereram sua recuperação judicial em 2009, sob a devastadora crise econômica mundial, terão capacidade de superar as dificuldades motivadoras do pedido recuperatório.

Aqui não há de se falar em uma regra comum como sendo a necessária ou então em “fórmula mágica”. A LFRE consagrou um rol meramente exemplificativo no qual o devedor em crise pode se valer (vide art. 50 da Lei). Mesmo assim, como garantir a segurança para esses empresários que buscam no Judiciário a preservação de suas atividades? A esta indagação a LFRE responde disciplinando os denominados órgãos de administração, tais como, o Administrador Judicial, o Comitê de Credores e a Assembleia Geral de Credores. A doutrina os divide sob diversos aspectos, como de funções deliberativas e/ou fiscalizatórias, de acordo com suas atribuições durante o processo. Representam, na verdade, órgãos auxiliares à prestação jurisdicional efetiva e à própria sociedade empresária. Trata-se de uma “coletividade”, um verdadeiro

Scilio FaverAdvogado

“Todos os erros humanos são frutos da impaciência, inter rupção prematura de um processo ordenado, obstáculo

artificial levantado ao redor de uma realidade artificial.”

Franz Kafka

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“concurso” de esforços dirigidos para a superação do estado de crise. Mas, ao lado destes órgãos decorrentes de previsão legal, existem aqueles comuns ao processo, que nesta seara devem ter uma atuação especial, tais como o Ministério Público e o Magistrado. Sem sombra de dúvidas, ambos são partes com funções importantíssimas no processo, mas que devem agir em consonância com os demais órgãos, para evitar atritos desnecessários que tornem morosa a prestação jurisdicional.

Em relação ao membro do Ministério Público, não se pode conceber um conceito simplista e vago de que esse seria como um fiscal da lei. Até mesmo por não representar tão somente essa função dentro da recuperação judicial. O veto constante no art. 4º da LFRE revela uma tendência já presente no Direito Comparado4 e também corroborado pelo ilustre jurista Trajano de Miranda Valverde de que a figura do parquet age como intermediário entre o organismo público, credores e o próprio processo, não se mostrando cabível e representando até mesmo um entrave na superação do estado de crise a sua demasiada e desproporcional interferência nas relações e negociações essencialmente privadas, devendo ser suas intervenções devidamente fundamentadas a fim de que se assegure obediência à ordem pública e a efetividade do instituto da recuperação.

Já no que tange à figura do magistrado, esse deve estar atento, uma vez que ao contrário de um processo judicial

NOTAS1 Fonte: http://www.serasa.com.br/release/noticias/2010/noticia_00065.htm em 08.01.2010 2 Art. 47 - A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.3 Nos dizeres de Manoel Justino Bezerra Filho “tal tentativa de recuperação prende-se ao valor social da empresa em funcionamento, que deve ser preservado não só pelo incremento da produção como principalmente pela manutenção do emprego, elemento de paz social” (Lei de Recuperação de Empresas e Falências Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais. 5. Ed. p. 142)4 Sobre a argumentação no Direito Comparado em relação à atuação do Ministério Público, remetemos o leitor ao posicionamento do jurista português Henrique Vaz Duarte, em sua obra “Questões sobre Recuperação de Empresas”. Coimbra: Almeida.5 Com intuito de aprofundamento específico neste tema, foi elaborado o livro: “Os órgãos de Administração na Recuperação Judicial”, recém-lançado pela Editora Cartolina. . O trabalho é fruto de pesquisas acadêmicas buscando trazer esclarecimentos aos profissionais e ampliar a perspectiva da efetividade da Lei 11.101/05. O trabalho aborda de forma isolada a atuação específica de cada órgão. Para melhor compreensão do tema, a primeira parte volta-se para a importância, dentro do ordenamento jurídico vigente, da instauração e da preocupação de se zelar pela permanência das atividades empresárias, destacando-se os meios legais recuperatórios e fazendo uma comparação dos antigos institutos, como a concordata, até a atual previsão da Recuperação Judicial. Em seguida, passa-se à análise geral do procedimento da Recuperação Judicial conforme estabelecido na Lei 11.101/05, enfatizando seus principais pontos, que serão mais adiante analisados dentro das funções especificas de cada órgão. Na terceira parte é estudado separadamente cada órgão de administração previsto na lei, destacando-se suas funções, seus deveres, suas atribuições e outros temas relacionados, nos quais têm se debruçado distintos pensamentos doutrinários e interpretações jurisprudenciais.

comum, não há de se falar numa relação processual bilateral, mas sim plurilateral, em que todos os envolvidos, devedor e credores, possam caminhar alinhados aos princípios da ética e da moral. Assim, mais do que qualquer procedimento, as decisões judiciais deverão ser incontestavelmente justificadas e motivadas, ouvindo-se obrigatoriamente o Administrador Judicial e o Comitê de Credores, de modo a respaldar o comando do processo aliado aos interesses de todos os envolvidos. Esse conjunto de órgãos necessários à condução do processo é denominado de Órgãos de Administração na Recuperação Judicial 5. Eles devem ser vistos como facilitadores e, na sua coletividade, como um verdadeiro organismo vivo capaz de fazer frente à consagrada teoria da empresa no nosso ordenamento jurídico.

A preocupação reside no fato de que será preciso uma conscientização e, sobretudo, respeito à boa-fé objetiva. Aqueles que demonstram ainda pessimismo frente à nova lei devem ser questionados se estão cegos com a memória da experiência forense de grandes fraudes, que, infelizmente, assolam nossos tribunais. Eis o grande desafio: a recuperação só será efetiva se conseguirmos superar a insuportável mancha negra de pensamentos e atuações fraudulentas em processos concursais. Nervos de aço serão necessários…

Foto: Arquivo Pessoal

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e m foco

Cinco anos depois de ser publicada, a Lei 11.101, de 2005, passou no teste ao menos do ponto de vista econômico. Nesse período, o País atravessou uma crise de proporções mundiais e viu o Judiciário ter

um papel mais ativo em diversos segmentos, inclusive no que diz respeito à área empresarial.

Dados da Serasa Experian apontam que, desde 2005, foram requeridas pouco mais de 1.600 recuperações judiciais no País. Mais de 1.100 foram deferidas. Só o Judiciário de São Paulo recebeu 905 pedidos, seguido do Rio de Janeiro, com 90, e Rio Grande do Sul, com 83. Na Justiça gaúcha, do total de pedidos, 79 recuperações foram deferidas e quatro concedidas.

Responsável por um dos casos mais emblemáticos da recupe-ração judicial sob a égide da nova legislação, o Juiz Luiz Roberto Ayoub, que esteve à frente do processo de recuperação da Varig, afirmou que a Lei 11.101/05 conduz a uma mudança cultural. “É uma lei que muda todos os parâmetros até então conhecidos no Poder Judiciário, porque é uma lei econômica, política e social, que tem como princípio maior a manutenção da unidade produtiva.”

Ayoub explicou que antes a demora em honrar dívidas assumidas levava à quebra da empresa. “Sob a égide da lei anterior, dada a uma impontualidade da empresa por uma dificuldade qualquer, a ideia era sempre quebrar a empresa, realizar o ativo para tentar, se possível, satisfazer o crédito dos credores”, disse.

Não foi só a responsabilidade de mudar a cultura nessa área que a lei conferiu ao juiz. O próprio juiz passou a exercer um protagonismo maior com a nova lei de falências e a recuperação judicial. O juiz, constata Ayoub, é responsável por fomentar as discussões. “Quem decide o futuro da empresa não é o juiz; são credores e devedores, em um cenário de amplo debate”, diz.

O primeiro caso, contou o Juiz, foi o da Varig. “Apesar das enormes dificuldades, o resultado foi positivo”. Em 2008, o País se deparou com a crise mundial do crédito. Sem a nova lei, Ayoub acredita que as chances de as empresas se recuperarem seriam pequenas. “Não sei se todas tiveram o sucesso esperado e desejado. Das que temos conhecimento, tanto do Rio quanto de São Paulo, o resultado foi muito bom.”

O advogado Charles Gruenberg também considera os resultados até agora muito positivos. Para ele, a grande evolução

que a lei trouxe foi a flexibilização da forma de negociação e discussão das dívidas de uma empresa que, em determinado momento, passa por dificuldades. “Tenho observado um número considerável de empresas que se beneficiaram recentemente da nova lei”, disse.

Gruenberg afirmou ainda que os tribunais, sobretudo o Superior Tribunal de Justiça e o TJ de São Paulo, têm dado uma interpretação positiva e coerente nas decisões. Para o Advogado, os poucos precedentes abertos pelo Judiciário criaram confusão onde a lei não era obscura. “Algumas decisões tentaram dar interpretações extensivas.” Mas, constata, os TJs têm reformado essas decisões “mais arrojadas”.

Um dos exemplos é a tentativa de incluir adiantamentos de contrato de câmbio na recuperação. “Eles estão fora, mas muitos tentam incluir”, disse Gruenberg. O escritório do qual o Advogado faz parte, Leite, Tosto e Barros Advogados, normalmente não atua pelas empresas em recuperação e sim pelos credores. Mas atuou na recuperação da Eucatex, que, em concordata na época em que a lei entrou em vigor, migrou para a recuperação e, no final de 2009, concluiu o plano. “A empresa cumpriu 100% da recuperação”, afirmou.

Para o Assessor Econômico da Serasa, o economista Carlos Henrique de Almeida, a legislação tem sido muito bem sucedida do ponto de vista econômico, pois mantém o negócio e preserva os postos de trabalho. “Mesmo com a ‘prova de fogo’ da crise pela qual o País atravessou, as empresas que poderiam ter quebrado tiveram uma segunda chance”, afirmou.

São Paulo

ESTADOS

Rio de Janeiro

Rio Grande do Sul

Minas Gerais

Paraná

905 572 97

REQUERIDAS DEFERIDAS CONCEDIDAS

90 43 5

83 79 4

144 77 5

71 59 6

Fonte: Serasa Experian (março/2010)

RECUPERAÇÃO PROLONGOU VIDA DE EMPRESAS

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Mudanças em trâmitePara Gruenberg, não há pontos muito ruins na legislação.

Ele afirma que há algumas movimentações para modernizar a lei e “aparar” pequenas arestas. “Há uma tentativa de flexibilizar o prazo para a apresentação do plano de recuperação”, diz. O Advogado entende que é necessária nova redação de alguns pontos, mas para deixá-los mais claros.

“Não acredito que se pretenda modificar a lei, mas sim aperfeiçoá-la. É uma lei jovem, ousada, que muda um paradigma, e, a partir de então, ajustes deverão ser feitos”, entende o Juiz Ayoub. Um dos ajustes, diz, é aumentar as atribuições do administrador judicial.

Outro ponto que o Juiz considera importante é a inclusão do fisco no processo. Hoje, os créditos fiscais não se submetem à recuperação. “Quebrando um paradigma do Direito Administrativo, eu acho que o fisco tem que participar desse processo de reorganização. A recuperação de empresas interessa a toda a sociedade brasileira”. Para o Juiz, é preciso refletir e discutir ajustes, pensando em um cenário amplo de debate e que envolva todos os personagens relacionados à vida empresarial.

Atualmente tramitam na Câmara dos Deputados alguns projetos para modificar dispositivos da lei. Um deles, o Projeto de Lei 7.604/06, apensado ao PL 6.229/05, prevê a suspensão da execução fiscal durante o tempo em que a empresa estiver em processo de recuperação judicial.

“Tal tratamento aos créditos fiscais na recuperação judicial nos parece muito incoerente e inibe o acesso das empresas com passivo fiscal ao instituto da recuperação judicial”, justifica o autor do PL, Deputado Luiz Carlos Hauly. Para o Parlamentar, se uma empresa entra com pedido de recuperação é porque não está conseguindo honrar suas dívidas, inclusive com o fisco. Na justificativa, ele lembra ainda que a empresa tenderá a

pagar suas dívidas, primeiro, com empregados e fornecedores.Outra proposta, o Projeto de Lei 6.447/05, apensado ao PL

5.250/05, procura dar uma aliviada à empresa em recuperação ao tratar do parcelamento de débitos com a Receita Federal, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e o Instituto Nacional do Seguro Social.

A proposta visa especificar regras para o parcelamento de dívidas nos casos de empresas em recuperação, para que elas não se submetam às regras gerais previstas para os empreendimentos que não estão na mesma situação.

Dívida suspensaSe do ponto de vista econômico o sucesso da nova lei parece

evidente, a polêmica sobre as vantagens em outros setores ainda prospera. Como a empresa em recuperação passa a ser organizada sob o crivo do juízo da Vara Empresarial ou de Recuperação e Falências, os tribunais superiores têm entendido que a Justiça trabalhista fica impedida de dar seguimento ao processo de pagamento de encargos devidos a empregados ou ex-funcionários. Ou seja, o juízo trabalhista reconhece ou não a dívida, mas quem vai determinar quando ela será paga é o juízo da recuperação.

Ayoub entende que a lei anterior não garantia que as dívidas seriam pagas pela empresa em dificuldades e levada à falência. Para ele, havia um efeito nocivo no modo como a falência era operacionalizada. Quando a empresa era levada ao estado falencial, conta, ela não representava grandes possibilidades de satisfação do crédito dos credores. “O pagamento só poderia começar depois de ultimado o quadro geral dos credores, o que levava anos. Durante esse tempo, os ativos da empresa falida se tornavam obsoletos. Quando era permitida a alienação dos ativos, estes já não tinham mais valor”, afirmou o Juiz.

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instituições financeiras — vide os inumeráveis escândalos. Esse processo de se corromper os políticos em uma ponta e denunciar na outra levou as instituições públicas ao descrédito popular e à perda de autonomia do Estado.

Ao governo Fernando Henrique Cardoso coube o ônus das privatizações e o início da perda da soberania nacional, imposta pela onda neoliberal. Os tucanos, diante da vertiginosa força desse poder, foram obrigados a ceder em seus propósitos social-democratas e a aceitar as imposições internacionais da nova ideologia, norma inexorável para manter a governabilidade; Fernando Henrique, cuja obra literária o comprometia conceitualmente com a social-democracia, chegou a declarar: “Esqueçam o que escrevi”.

Quando FHC assumiu seu primeiro mandato, a dívida interna estava em torno de R$ 60 bilhões; não obstante as inúmeras privatizações, ao final do seu segundo mandato, ele deixou uma dívida de cerca de R$ 600 bilhões. Dessa forma, o Estado brasileiro se tornou refém do sistema financeiro e se transformou em um aparelho gestor do pagamento de juros exorbitantes. A nação, desprotegida, ficou entregue aos interesses dos seus respectivos credores. Na teoria neoliberal, o Estado deveria encolher com as privatizações para assegurar o cumprimento dos direitos sociais de cidadania, como saúde e educação; mas, como vimos, na realidade isso não aconteceu.

Se um extraterrestre resolvesse habitar a Terra e, para escolher o país onde morar, acessasse por uma Internet intergaláctica as Constituições nacionais do nosso planeta, certamente escolheria viver no Brasil, atraído

pela perfeição de sua carta magna, a famosa Constituição cidadã do Doutor Ulisses, na qual todos os direitos sociais de cidadania estão assegurados.

Entretanto, quando aqui chegasse, o ET se chocaria com o abismo existente entre a lei e a realidade, expresso nas desigualdades sociais brasileiras. Diante da rica e belíssima natureza do país de dimensão continental, perguntar-se-ia: como a Constituição, parâmetro legal do processo civilizatório de um povo, lei maior da nação, pode se transformar em uma ficção de mau gosto, permitindo tal desigualdade social? O que se deve esperar de um Estado que não tem soberania para cumprir nem para fazer cumprir a maior lei da nação e que permanece alheio aos direitos sociais de seus cidadãos?

Infelizmente para o Brasil, o auge do poder neoliberal que dominou o mundo coincidiu com a abertura política do País, e a sociedade brasileira saiu de uma ditadura militar para o domínio imediato de outro totalitarismo, esse muito mais sutil, subliminar, exercido pelo capital financeiro através dos meios de comunicação. O poder político passou a ser desacreditado, na medida em que era corrompido sistematicamente pelas

Jesus ChediakJornalista, Cineasta e Diretor de Cultura da ABI

A REvOLUÇÃO DA LEI POR UMA NOVA UTOPIA

lIbERTÁRIA PÓS-NEOlIbERAl

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Os governos brasileiros passaram as duas últimas décadas de domínio neoliberal submetidos à mordaça de uma lei de responsabilidade fiscal, criada por imposição dos credores, que obriga o tesouro público a pagar, em primeiro lugar, os juros da dívida, postergando o cumprimento da Constituição no que diz respeito aos direitos sociais de cidadania.

O ocaso neoliberal já nos permite ver o brilho libertário da estrela da esperança no horizonte das utopias redivivas. Por que não ressuscitar o sonho de se construir um país livre, próspero e soberano, na via das mudanças sociais inusitadas que sempre ocorreram pacificamente na história do Brasil? Por que não sonhar com uma Revolução da Lei, a primeira revolução mundial liderada por magistrados em tempo de paz? O Judiciário pode tomar a iniciativa de promover um pacto com o Executivo e o Legislativo no sentido de assegurar os direitos sociais de cidadania dos brasileiros, antes de qualquer outro compromisso que postergue esse direito. A pergunta ética que se traz à reflexão é se o pagamento de juros de uma dívida que não foi contraída pelo povo deve ser honrado em detrimento dos direitos sociais do cidadão. No plano filosófico, indagamos: que democracia é essa em que a proteção à vida humana é menos importante do que um compromisso financeiro?

Para que a lei de um país em desenvolvimento sirva à nação e proteja a vida de seus cidadãos, em todos os níveis

da existência, torna-se uma questão central para o Estado atuar a fundo perdido nas regiões de pobreza para atender às comunidades carentes, desenvolvendo uma microeconomia de proteção à vida cotidiana. Como poder delegado da nação, o Estado é o poder dos poderes; como tal, ele pode enfrentar a oposição dos grupos financeiros que hoje dominam a sociedade, defender a igualdade e prover a inclusão de todo o organismo social.

Hoje a intervenção do Estado na economia voltou a ser possível, porque o Titanic neoliberal, o todo-poderoso mercado livre, blindado pelo Consenso de Washington para resistir a qualquer intempérie econômica, está indo a pique, segundo Noreena Hertz, economista inglesa que ganhou notoriedade mundial por vir profetizando esse naufrágio há alguns anos. Ligada ao Partido Socialista Inglês, ela sempre se colocou contrária à deificação do livre mercado e é colaboradora da revista “Socialismo Hoje”, de Londres, onde publicou muitos de seus trabalhos contra o neoliberalismo.

Em recente entrevista à revista brasileira “Época”, Noreena reafirma que “estamos testemunhando a morte de um para digma. A teoria econômica dominante nos últimos 20 anos — uma teoria que colocava a liberdade antes da igualdade, dava aos mercados mais poder que aos Estados e via o risco como um bem público que não deveria ser limitado — virou defunto.” Entendendo que esse sistema colocava o status do consumo acima de qualquer outro valor social, ela afirma no jornal “Times”, de Londres: “Chamei a era que passou de capitalismo Gucci. Ele nasceu em meados dos anos 80 — o filho amado de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, com Milton Friedman como seu padrinho e Bernard Madoff como seu garoto-propaganda”.

Também o economista Joseph Stiglitz, professor de Yale, Harvard e Stanford, PhD pelo Massachusetts Institute of Technology, questiona a eficiência do projeto neoliberal como melhor via política para a sociedade contemporânea: “Quando vemos um acidente na estrada, pensamos que o condutor é o responsável. Quando vemos vários acidentes no mesmo lugar, começamos a nos perguntar sobre o estado da estrada. É o que acontece hoje”, diz. Esses acidentes vieram acontecendo sucessivamente na via das bolhas especulativas do capital virtual, que não se concretiza em nenhum lastro de produção de bens e não se identifica com qualquer fator de correspondência com a vida real. São os casos da fraude do laboratório Merck — terceiro maior do mundo —, que contabilizou uma receita de US$ 12,4 bilhões que nunca existiu; da Enron, que está entre as 10 maiores empresas dos USA e pediu concordata, deixando um prejuízo de US$ 13 bilhões aos seus credores; além da Global Crossing, que entrou em concordata por uma dívida de US$ 27 bilhões. Ainda temos o socorro de quase US$ 2 trilhões do governo norte-americano à General Motors, Chrysler, bancos e companhias de seguros.

Diante do comprovado quadro internacional de fracasso do neoliberalismo, o Brasil tem as melhores condições subjetivas e objetivas para operar uma mudança interna, recuperar sua soberania como nação livre e desenvolver um projeto sustentável

Foto: Arquivo PessoalFoto: Arquivo Pessoal

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de desenvolvimento econômico e social, amplo e abrangente, em harmonia com o meio ambiente e pleno de justiça social.

E, para guiar essa mudança, não precisamos de nenhuma revolução armada, de reforma do Estado, nem de novas ideologias com profusão de “ismos”. Basta que se faça cumprir a Constituição brasileira, onde está configurado em lei o mais alto estágio civilizatório que possa se desejar para proteger a convivência humana em uma nação livre e feliz.

Em situações extremas de injustiça, grupos políticos se organizam para lutar militarmente, tomar o poder e constituir um governo de justiça fundamentado em novas leis. As revoluções acontecem como levantes armados para derrubar uma ordem legal contrária às necessidades populares e implantar outra a favor. Assim foi a Revolução Francesa, a Soviética, a Chinesa e a Cubana, entre todas as outras. Mas, no caso do Brasil, não precisa ser feita nenhuma revolução armada para mudar as leis que fundamentam a estrutura do poder. Ao contrário, a revolução brasileira deve ser a de se promover o cumprimento da lei que já vigora.

Então se pergunta, com muita propriedade, por que o Executivo não assegura ao cidadão brasileiro os direitos constitucionais expressos no artigo 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a maternidade e a infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Que forças são essas capazes de levar o Estado a priorizar o pagamento de juros anuais de mais de R$ 100 bilhões em detrimento de se assegurarem as condições mínimas de sobrevivência ao cidadão dentro de seus direitos? No plano jurídico isso é um crime de omissão em face da lei e, no plano humano, uma covardia hedionda diante de nosso povo simples, pacífico e desprotegido. A propósito, em seu último livro de ficção, Frei Betto denuncia, em um de seus contos, “O Excluído”, essa falta de compaixão existente nos homens que exercem o poder nos dias de hoje.

Segundo o Professor Batista de Mello, “o Poder Judiciário é aquele constituído especialmente para assegurar a aplicação das leis e, como tal, para manter a inviolabilidade

dos direitos individuais”. Portanto, a Revolução da Lei pode ser desencadeada dentro das atribuições do Judiciário, como uma prerrogativa constitucional que permite aos magistrados brasileiros liderarem as forças políticas nacionais, neste momento histórico pós-neoliberal, e, dessa forma, consolidar a unidade da sociedade brasileira em torno da soberania do Estado. Esse mesmo Estado hoje negado pela sociedade e que, nas últimas décadas, permaneceu dominado pelo capital financeiro, perdeu a capacidade de operar o poder político com autonomia, se enfraqueceu historicamente e deixou de ser o poder dos poderes para se transformar num aparelho inoperante e corrupto, incapaz de cumprir o seu dever constitucional. Daí ocorreu a ruptura entre os desejos da Nação e o modus faciendi do aparelho de seu Estado; assim, a participação política passou a ser negada pela sociedade, porque o poder público deixou de cumprir os seus objetivos sociais, e a Constituição nacional se transformou em letras mortas em face dos direitos sociais não assegurados.

Na via histórica das utopias redivivas e no espaço pós-barbárie social do neoliberalismo, empinamos o nosso Rocinante e bradamos aos quatro cantos do Brasil que a Revolução da Lei é possível e que ela pode devolver ao cotidiano do cidadão brasileiro a segurança pessoal, familiar e profissional, além da confiança em seu poder representativo, sobre o qual repousa tudo que é político; isto é, tudo o que é comum, ou seja, que é público e de todos. Com a soberania da Constituição garantida pela vigilância permanente do Judiciário, a sociedade brasileira vai se reunificar em um organismo social livre e protegido pela lei, na via de uma democracia forte e confiável, sem tramoias, que se mostra a todos à luz do dia.

Ao descobrir que a História não acabou, o povo brasileiro, do lado de cá do mundo, distante, bem distante das guerras e dos ritos de dominação, e com a alegria de ver os seus direitos sociais assegurados para celebrar a vida, voltará a acreditar no Brasil, agora moderno, digital e tecnológico, mas retomando o velho caminho da Ordem e do Progresso “para o bem de todos e a felicidade geral da nação”.

Com a soberania da Constituição garantida pela vigilância permanente do Judiciário, a sociedade brasileira vai se reunificar em um organismo

social livre e protegido pela lei, na via de uma democracia forte e confiável, sem tramoias, que se mostra a todos à luz do dia.

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