edemilson campos-alcoolismo doença e pessoa

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Campos trás uma discussão importante sobre as categorias de doença no uso excessivo de álcool na atual sociedade. Sendo assim um trabalho muito valorativo para os estudos de drogadicção.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS

    CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    ALCOOLISMO, DOENA E PESSOA UMA ETNOGRAFIA DA ASSOCIAO DE EX-BEBEDORES

    ALCOLICOS ANNIMOS

    Edemilson Antunes de Campos

    2005

  • ii

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS

    CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    ALCOOLISMO, DOENA E PESSOA UMA ETNOGRAFIA DA ASSOCIAO DE EX-BEBEDORES

    ALCOLICOS ANNIMOS

    Tese apresentada em cumprimento parcial s exigncias do

    Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar),

    para obteno do grau de Doutor. Orientadora: Prof. Dr. Marina Denise Cardoso.

    Edemilson Antunes de Campos

    2005

  • Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria/UFSCar

    C198ad

    Campos, Edemilson Antunes de. Alcoolismo, doena e pessoa: uma etnografia da associao de ex-bebedores Alcolicos Annimos / Edemilson Antunes de Campos. -- So Carlos : UFSCar, 2005. 206 p. Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2005. 1. Antropologia. 2. Antropologia da sade. 3. Alcoolismo aspectos scio culturais. I. Ttulo. CDD: 301 (20a)

  • Para Veridiana, minha mulher

    e companheira de todas as horas

  • iv

    Agradecimentos

    Este trabalho fruto de um encontro entre mim e a irmandade dos Alcolicos

    Annimos. Todavia, durante a pesquisa, outros encontros tambm foram fundamentais

    para a sua execuo. Logo, no poderia de deixar de agradecer a todos aqueles que,

    direta ou indiretamente, ajudaram na sua elaborao.

    Em primeiro lugar, sou grato orientao da Profa. Dra. Marina Denise

    Cardoso, do Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais PPGCSo da

    Universidade Federal de So Carlos UFSCar , pelo apoio e incentivo na elaborao,

    inicialmente, do projeto de pesquisa e, posteriormente, desta tese. Sua dedicao, suas

    sugestes e seu rigor intelectual foram valiosos na conduo e realizao desta

    verdadeira aventura antropolgica.

    Sou grato tambm professora Sylvie Fainzang, do Centre de Recherche

    Mdicine, Sciences, Sant et Socit CERMES da cole des Hautes en Sciences

    Sociales EHESS , pela acolhida e pela orientao no perodo em que l estive como

    estagirio de doutorado. Sua colaborao foi preciosa para a definio de muitos dos

    enfoques fundamentais desta pesquisa.

    O contato com outras universidades e com professores na Frana foi importante

    para a ampliao do campo de interlocuo e para a obteno de dados bibliogrficos.

    Quero, assim, agradecer aos professores: Afrnio Garcia, diretor do Centre de

    Recherche sur le Brsil Contemporain CRBC da EHESS, pela acolhida e pelo apoio

    na abertura de oportunidades de participao em encontros acadmicos; Didier Fassin,

    da EHESS, pela acolhida e interlocuo durante seus seminrios; Annie Hubert, diretora

    de pesquisa do laboratrio Socits Sant Dveloppement, da Universit Bordeaux 2,

    pelo encontro que tivemos e pelos comentrios sobre meu projeto de pesquisa, bem

    como pelas indicaes bibliogrficas, que foram fundamentais para a ampliao de meu

    campo de viso sobre as relaes entre o consumo de bebidas alcolicas e as formas de

    sociabilidade.

  • v

    Quero tambm agradecer s instituies brasileiras e francesas que deram apoio

    pesquisa: UFSCar e ao PPGCSo, cujas instalaes e cujo fecundo ambiente

    intelectual possibilitaram a realizao do presente trabalho. Um agradecimento

    EHESS, ao CERMES e ao CRBC pela acolhida nos seminrios e nas pesquisas que l

    realizei. Agradeo tambm ao IREB Institut de Recherches Scientifiques sur les

    Boissons , cujo valioso acervo foi fundamental para o levantamento de dados

    bibliogrficos para a pesquisa. Agradeo tambm Maison du Brsil, pela acolhida no

    perodo letivo 2002/2003, durante minha estada em Paris.

    Durante a pesquisa, alguns contatos e encontros com pesquisadores de

    universidades brasileiras tambm foram muito valiosos para a conduo da pesquisa.

    Quero agradecer, em especial, professora Delma Pessanha Neves, do Programa de

    Ps-graduao em Antropologia Social e Cincia Poltica da Universidade Federal

    Fluminense UFF , que, sempre atenciosa, foi uma importante interlocutora,

    permitindo-me o contato com um rico material bibliogrfico, fundamental para as

    reflexes aqui apresentadas. Agradeo tambm professora Maria Helena Villas-Boas

    Concone, do Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais da Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo PUC/SP , pelas discusses e sugestes em torno

    de meu projeto de pesquisa.

    Agradeo tambm aos professores Luiz Henrique de Toledo e Jacob Carlos

    Lima, ambos do PPGCSo/UFSCar, pelas crticas e observaes feitas durante o exame

    de qualificao, cuja incorporao nesta tese so de minha inteira responsabilidade.

    Obrigado tambm aos professores Maria Ins Rauter Mancuso (PPGCSo/UFSCar), Luiz

    Henrique de Toledo (PPGCSo/UFSCar), Cynthia Andersen Sarti (UNIFESP) e Delma

    Pessanha Neves (UFF-RJ) pelas valiosas crticas e sugestes quando da defesa da tese

    no Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais da UFSCar.

    No posso deixar de agradecer s instituies que, em momentos distintos,

    deram apoio pesquisa: ao CNPq, pela concesso de bolsa de pesquisa para realizao

    do projeto, e CAPES, pela concesso de bolsa de estudos no exterior, para a realizao

    de estgio de doutorado sanduche na EHESS, em Paris. Ambas as bolsas foram

    imprescindveis para o desenvolvimento do trabalho de pesquisa. preciso reconhecer e

    ressaltar que a poltica pblica de apoio e fomento pesquisa constitui uma ao

    poderosa e fundamental para o desenvolvimento cientfico do Pas.

  • vi

    Quero tambm agradecer a todos aqueles que ajudaram a mim e a minha esposa

    durante o processo de mudana para a Frana e de retorno ao Brasil, como aos amigos

    Ana Maria e Aloysio, Andr, Iara, Aldo, Joo Petrucio, Rayane, Pedroso e Kelen.

    Agradeo tambm os parentes envolvidos nessa empreitada, em especial tia Yara, ao

    senhor Police e dona Ma, vov Irene, ao Neto e Silmara, a minha me Anzia e a

    meus irmos Edson e Silvia. A todos, o reconhecimento de que a ajuda e o apoio foram

    fundamentais para aplacar a saudade provocada pelo o exlio acadmico, durante o

    tempo em que estivemos fora do Pas.

    Aos amigos Benevides, Vanderlan e Josemar, companheiros solidrios durante

    nossa estada em Paris, com os quais compartilhamos momentos inesquecveis,

    recheados de conversas estimulantes, que deixaram saudades, o reconhecimento de que

    nossa amizade ser para sempre.

    Agradeo tambm amiga ngela, cuja ajuda foi fundamental para o meu

    aperfeioamento na lngua francesa; ao amigo Amin Simaika, pela ajuda na traduo de

    meu projeto de pesquisa; e aos amigos Alfredo Dias DAlmeida e Ana Paula Quadros

    Gomes, que, com competncia e pacincia, fizeram a reviso desta tese.

    Agradeo ao amigo Urias, que me abriu as portas do grupo Sapopemba de

    Alcolicos Annimos, facilitando meu acesso a esse universo social. Agradeo,

    especialmente, a todos os homens e a todas as mulheres que compartilharam comigo

    suas dores e suas alegrias em sua luta cotidiana para manter a sobriedade; a todos os

    membros de Alcolicos Annimos, aqui presentes atravs de seus depoimentos, que me

    ajudaram a escrever esse trabalho, o meu mais sincero agradecimento.

    Quero, enfim, fazer um agradecimento especial minha mulher Veridiana,

    companheira que sempre esteve prxima, nunca faltando com seu apoio e ateno, e que

    aceitou embarcar em toda essa aventura, compartilhando comigo a cumplicidade do

    olhar que descobre e revela os novos universos.

  • [...] o objeto da etnografia: uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos das quais os tiques nervosos, as piscadelas, as falsas piscadelas, as imitaes, os ensaios das imitaes so produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles de fato no existiriam [...], no importa o que algum fizesse ou no com sua prpria plpebra. Clifford Geertz

    [...] o objetivo ltimo das cincias humanas no constituir o homem, mas dissolv-lo. Claude Lvi-Strauss

  • viii

    Sumrio

    RESUMO...................................................................................................................................x

    ABSTRACT............................................................................................................................. xi

    LISTA DE QUADROS.......................................................................................................... xii

    INTRODUO.........................................................................................................................1

    Captulo 1

    UM OLHAR ANTROPOLGICO SOBRE O ALCOOLISMO E OS

    ALCOLICOS ANNIMOS..................................................................................................6

    1.1 A construo da pessoa alcolica: um enfoque antropolgico .................................10

    1.2 A pesquisa de campo: encontrando os alcolicos annimos ........................................20

    1.3 Um no-alcolico em Alcolicos Annimos ............................................................27

    Captulo 2

    O LCOOL E O ALCOOLISMO: ENTRE O DESVIO E A DOENA.................33

    2.1 Um flau social..........................................................................................................39

    2.1.1 As campanhas antialcolicas no Brasil.................................................................44

    2.2 Uma doena da vontade ............................................................................................47

    2.3 O mal do alcoolismo e suas causas........................................................................52

    2.3.1 Teoria da doena e estratgia teraputica em A.A...................................................57

    2.4 Delineando os contornos da pessoa alcolica ...........................................................62

    Captulo 3

    ALCOLICOS ANNIMOS: A CONSTRUO DA DOENA ALCOLICA E

    DO ALCOLICO COMO DOENTE...................................................................................67

    3.1 Os doze passos na construo da pessoa alcolica. ..................................................72

    3.2 As doze tradies e as fronteiras simblicas da irmandade..........................................82

    3.3 Recuperao, servio e unidade em A.A. ....................................................................86

    3.4 O grupo de A.A.: uma rede de ajuda para o indivduo doente .....................................90

  • ix

    Captulo 4

    OLHANDO DE PERTO: RITUAIS TERAPUTICOS EM ALCOLICOS

    ANNIMOS............................................................................................................................95

    4.1 Reunio de entrega de fichas: uma celebrao da sobriedade ....................................101

    4.2 O lugar do ritual em A.A. ...........................................................................................104

    4.3 O espao e o tempo ritualizados .................................................................................108

    4.4 A linguagem do ritual .................................................................................................113

    Captulo 5

    A LINGUAGEM DA DOENA EM ALCOLICOS ANNIMOS..............................117

    5.1 O sistema dos Alcolicos Annimos ..........................................................................122

    5.2 Uma nosografia fsica e moral da doena alcolica ...................................................126

    5.3 O lcool, os nervos e o sangue: as representaes da pessoa alcolica ..................129

    5.4 A lgica teraputica dos Alcolicos Annimos..........................................................133

    Captulo 6

    O ALCOOLISMO UMA DOENA DA FAMLIA ................................................137

    6.1 O homem alcolico.....................................................................................................143

    6.2 A mulher alcolica......................................................................................................149

    6.3 O alcoolismo uma doena contagiosa?.................................................................152

    6.3.1 O contgio moral do alcoolismo .....................................................................155

    6.3.2 Alcolicos Annimos, famlia e recuperao .....................................................158

    Captulo 7

    ALCOOLISMO, DOENA E PESSOA...........................................................................164

    7.1 Alcolicos Annimos e sua eficcia teraputica ........................................................166

    7.2 Anonimato, identidade e pessoa .................................................................................173

    7.3 O alcoolismo e as imagens do eu ............................................................................180

    7.4 A fabricao da pessoa alcolica ............................................................................184

    CONSIDERAES FINAIS ...............................................................................................193

    BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................197

  • x

    RESUMO

    O objetivo deste trabalho o de apresentar uma reflexo sobre o modelo teraputico construdo pela irmandade de Alcolicos Annimos (A.A.) para dar conta da chamada doena do alcoolismo, relacionando-o fabricao de uma noo de pessoa em seu interior, notadamente a partir da edificao da identidade de doente alcolico em recuperao.

    A partir dos dados da pesquisa etnogrfica realizada no grupo Sapopemba de A.A., localizado na periferia da cidade de So Paulo, busca-se analisar o problema do alcoolismo a partir de uma perspectiva mica, isto , tal como ele pensado e gerido por aqueles que se reconhecem como doentes alcolicos. Com isso, pretende-se articular as representaes construdas sobre o lcool e o alcoolismo com a fabricao de uma noo de pessoa alcolica, de maneira a estabelecer contrastes com o campo ideolgico do individualismo moderno.

    Ao longo deste trabalho, demonstra-se que, para os membros de A.A., a doena alcolica entendida como uma doena da famlia, ou seja, uma doena que atinge o indivduo, mas tambm afeta a todos aqueles que esto a seu redor, sobretudo, seus familiares. Com efeito, evidenciam-se as condies de possibilidade de contgio em torno do alcoolismo, condies essas diretamente ligadas s representaes construdas sobre o alcoolismo, entendido como uma doena fsica e moral, e a seus efeitos sobre o conjunto de relaes sociais familiares e profissionais nas quais o ex-bebedor est envolvido.

    Em suas atividades e reunies, os membros da irmandade se reconhecem como doentes alcolicos em recuperao, isto , como portadores de uma doena incurvel; de um mal que est alojado dentro de cada um e com o qual devero aprender a conviver. Esse processo corresponde, fundamentalmente, instaurao de um peculiar regime de alteridade, baseado na fabricao de um corpo e de um esprito doentes, no qual a doena alcolica apreendida como um outro que cada dependente traz dentro de si mesmo; condio essa que deve ser compartilhada com os demais membros do grupo, possibilitando, assim, a manuteno da sobriedade e o resgate dos laos sociais, perdidos no tempo do alcoolismo ativo, notadamente, na famlia e no trabalho.

    Palavras-chave: Alcolicos Annimos; alcoolismo; doena; noo de pessoa.

  • xi

    ABSTRACT

    The major aim of this thesis is to introduce a reflection of the therapeutic model built

    by the Alcoholics Anonymous (A.A.) fellowship to care for the so-called alcoholism

    disease and to relate this model to the construction of the notion of the person as it appears in

    this model, since it is related to the construction of the identity of an alcoholic in recovery.

    Based on an ethnographic research carried out in the Sapopemba A.A. group located

    in the outskirts of the city of So Paulo, we attempt to analyze the problem of alcoholism

    from an emic perspective, i.e., as it is thought of and managed by those who acknowledge

    themselves as alcoholics. In this way we try to articulate the representations built on alcohol

    and alcoholism by re-constructing the notion of alcoholic person, in order to set contrasts with

    the ideological field of modern individualism.

    The thesis also looks for to demonstrate that, for A.A. members, the alcoholic

    disease is understood as a family disease, i.e., a disease that not only concerns the

    individuals but also affects those around them, family members most of all. In fact, the

    possibility of contagion around alcoholism is clearly identifiable. Such condition is directly

    linked to representations built on alcoholism, understood as a physical and moral disease.

    It is also linked to its effects on the set of social relationships both familial and professional

    in which the ex-drinker is involved.

    In their activities and meetings, the members of the fellowship acknowledge

    themselves as alcoholics in recovery, i.e., as carriers of an incurable disease, a disorder

    housed inside each of them with which they must learn to deal. Fundamentally, this process

    corresponds to setting a peculiar regime of alterity, based on the construction of an ill body

    and soul, in which ex-drinker is seen as another person that each alcoholic carries within;

    this condition must be shared with the other group members to facilitate preservation of

    soberness and recuperation of social bonds that were lost in the times of active alcoholism,

    particularly within the family and in the workplace.

    Key-words: Alcoholics Anonymous; alcoholism; disease; personhood.

  • xii

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Tempo entre ingresso e afastamento em A.A........................................................24

    Quadro 2 Tempo de permanncia no grupo ..........................................................................24

    Quadro 3 Fichas de sobriedade (tempo/cor)........................................................................102

    Quadro 4 Expresses que designam a passagem de alcolico ativo

    para alcolico em recuperao .............................................................................125

    Quadro 5 Expresses que designam o ato de beber ............................................................126

    Quadro 6 Nosografia do alcoolismo sintomas fsicos ....................................................127

    Quadro 7 Sintomas fsicos x efeitos mentais.......................................................................127

    Quadro 8 Categorias morais x conseqncias .....................................................................128

    Quadro 9 Qualidades que compem a pessoa alcolica ..................................................190

  • 1

    INTRODUO

    Este trabalho o resultado de uma pesquisa etnogrfica feita na irmandade de

    Alcolicos Annimos (A.A.)1, que, todas as noites, rene homens e mulheres para

    compartilhar suas experincias com o objetivo de superar a chamada doena do

    alcoolismo. Nele, discuto as relaes entre o binmio alcoolismo/doena e a

    construo de uma noo de pessoa no interior de A.A., a partir de uma anlise dos

    mecanismos simblicos colocados em prtica para fazer referncia ao lcool e ao

    alcoolismo.

    Em um momento em que o problema do alcoolismo desperta a ateno das

    autoridades responsveis pelas polticas de sade pblica em vrios pases,

    particularmente, no Brasil e os AAs se expandem em escala mundial e, notadamente, na

    sociedade brasileira, pareceu-me fundamental compreender a maneira atravs da qual os

    membros da irmandade orientam suas prticas tendo em vista sua recuperao, ao

    mesmo tempo em que forjam uma representao especfica da noo de pessoa,

    reconhecendo-se como doentes alcolicos.

    Durante um ano freqentei suas reunies e conversei com os membros de um

    grupo de A.A. localizado na periferia da cidade de So Paulo, visando compreender o

    modo como eles vivenciam o alcoolismo e tentam mant-lo sob controle, concebendo-o

    como uma doena incurvel, progressiva e fatal. Nesses encontros, verifiquei que o

    alcoolismo considerado um problema, na medida em que conduz aqueles que vivem

    essa experincia a uma situao de marginalidade e de excluso. isso que os AAs

    expressam em suas narrativas, nas quais procuram construir um sentido para suas vidas,

    ressaltando as perdas provocadas pelo uso do lcool, notadamente, na famlia e no

    trabalho e as conquistas obtidas aps a entrada na irmandade.

    1 Nas pginas seguintes, seguindo a maneira pela qual os membros de Alcolicos Annimos se referem irmandade, utilizarei as siglas A.A., para me referir irmandade dos Alcolicos Annimos, e AAs, quando me referir a seus membros. Para diferenciar de citaes, as falas dos AAs sero sempre grafadas em itlico.

  • 2

    Com isso, a medida em que o trabalho avanava percebi que as falas dos AAs

    envolviam, sobretudo, referncias s suas relaes na vida familiar e profissional. Nas

    reunies, eles falavam de si mesmos e dos conflitos vividos no tempo em que faziam

    uso do lcool, ao mesmo tempo em que ressaltavam a recuperao dos papis sociais de

    pai/me, esposo(a) e trabalhador(a). O programa de A.A. possibilitava, queles que

    haviam tocado o chamado fundo do poo, a recuperao da responsabilidade pelo

    cuidado de si e tambm de sua famlia.

    Esse dado acabou dirigindo meu interesse tambm ao estudo da construo da

    noo de pessoa dentro da irmandade e suas relaes com o modelo teraputico de

    A.A.. Pois, se o alcoolismo , como dizem os AAs, uma doena individual, ele

    tambm compreendido como uma doena da famlia, que afeta todos que vivem a

    seu redor, notadamente, o cnjuge e seus filhos.

    Dentro da irmandade se conjugam duas lgicas que presidem o processo

    sade/doena aqui estudado: de um lado, uma lgica que prioriza o indivduo, tomando-

    o como um doente alcolico em recuperao, e centro articulador do modelo

    teraputico, e de outro, uma lgica hierrquica ligada aos valores famlia e trabalho,

    que preside a fala da doena elaborada pelos AAs, na qual eles articulam e mobilizam

    elementos do universo social no qual esto inseridos, atribuindo, assim, um sentido

    experincia do alcoolismo, ao mesmo tempo em que definem uma compreenso prpria

    de si mesmos.

    Nesse sentido, este trabalho foi um mergulho para dentro desse universo, em

    busca dos significados que o outro atribui sua existncia. Significados que, como

    aponta Geertz (1989: 17) na epgrafe que abre este estudo, do sentido aos atos

    cotidianos, tornando-os inteligveis para aqueles que os praticam. Trata-se, ento, de

    procurar entender um outro universo de significao, na tentativa de desvendar a lgica

    que lhe subjacente, a partir de um dilogo travado entre dois sujeitos, o pesquisador

    e o pesquisado, reconhecendo os limites que essa relao impe.

    Uma das idias fundamentais que norteiam as reflexes aqui apresentadas a de

    que a realidade nada seria no fosse esse conjunto de significantes, por meio do qual

    eventos, fatos, aes e contextos so produzidos, percebidos e interpretados, e sem os

    quais no existem como categorial cultural. Nessa linha, buscou-se ler e compreender

    tanto a maneira como os AAs orientam suas prticas, tendo em vista sua recuperao,

    como as categorias que compem sua fala da doena, delimitando, assim, os contornos

  • 3

    de uma noo de pessoa alcolica que deve se responsabilizar pelo cuidado de si e

    pelo provimento de sua famlia. Optou-se, tambm, por traduzir as citaes de

    livros editados em lngua estrangeira - listados na bibliografia - como forma de

    ampliar o universo de possveis leitores, incluindo a os AAs que ajudaram na pesquisa.

    O itinerrio etnogrfico, contudo, s se completa no momento da escrita, no qual

    a etnografia se converte, para usar, ainda, uma expresso de Geertz (1997), em

    traduo. Ou seja, durante a escrita que os dados etnogrficos so lapidados e

    possibilitam entrever a lgica das formas de expresso deles [os nativos], com nossa

    fraseologia (1997: 20). Dessa maneira, as formas de expresso e de pensamento

    daqueles que se consideram como doentes alcolicos em recuperao so tratadas

    com seriedade, isto , consideradas como um objeto de descrio analtica e de

    reflexo interpretativa (1997: 231).

    Nessa perspectiva, nas pginas seguintes apresenta-se, a partir dos dados

    etnogrficos, a conexo entre alcoolismo, doena e pessoa. O roteiro que nos servir de

    guia composto de sete captulos. No captulo 1, apresenta-se o itinerrio terico e

    metodolgico da pesquisa em A.A., ressaltando as caractersticas do local onde se

    desenrolou a prtica etnogrfica e a de seus atores, ao mesmo tempo em que se

    discutem os limites da relao entre pesquisador e pesquisado dentro de uma associao

    de ex-bebedores. Apresentam-se, ainda, as leituras feitas sobre o modelo teraputico de

    A.A. e suas relaes com o processo de individualizao vivido na modernidade,

    buscando estabelecer contrastes com o campo ideolgico do individualismo moderno.

    No captulo 2, apresentam-se os modos de compreenso do lcool e do

    alcoolismo e tambm de suas estratgias teraputicas, com nfase especial tanto nos

    esquemas de interpretao da doena como no modelo de A.A. e sua compreenso da

    doena alcolica, entendida como uma doena inata, progressiva e fatal, que leva o

    alcolico a perder o controle sobre o lcool. Busca-se estabelecer as relaes entre as

    representaes elaboradas sobre o alcoolismo e a estratgia teraputica, enfocando as

    sociedades de temperana norte-americanas, o higienismo francs e as campanhas

    antialcolicas brasileiras do final do sculo XIX e incio do sculo XX. Busca-se

    tambm delinear os contornos da noo de pessoa elaborada dentro da irmandade, a

    partir da construo da identidade de doente alcolico em recuperao.

    No captulo 3, discute-se o modo como se delineiam as fronteiras da

    irmandade, a partir de uma anlise do programa de recuperao dos Doze Passos e das

  • 4

    Doze Tradies, demarcando seus limites em relao sociedade em geral e enfocando

    o individualismo institucional que se elabora em seu interior, essencial para a

    construo da identidade do doente alcolico em recuperao e da noo de pessoa

    elaborada pela irmandade.

    J, no captulo 4, aborda-se a reunio de recuperao de A.A., com nfase nas

    prticas e nos rituais realizados em seu interior, com o objetivo de dar conta da doena

    do alcoolismo, ressaltando o modo atravs do qual os AAs constroem um significado

    experincia do alcoolismo, que orienta suas prticas tendo em vista recuperao, ao

    mesmo tempo em que reforam os contornos da pessoa alcolica dentro do grupo.

    No captulo 5, por sua vez, encontra-se a exposio da linguagem da doena

    alcolica elaborada em A.A., a partir de uma anlise das categorias atravs das quais os

    significados do alcoolismo so construdos. O modelo de A.A. entendido, aqui, como

    um sistema simblico dentro do qual se constri uma nosografia fsica e moral da

    doena alcolica, que envolve a totalidade da pessoa. Analise-se tambm a lgica

    teraputica do modelo de A.A., evidenciando sua relao com os valores famlia e

    trabalho, atravs dos quais os conflitos vividos nos tempos do alcoolismo ativo so

    traduzidos.

    No captulo 6, busca-se discutir as implicaes da doena alcolica sobre o

    universo social no qual os AAs esto envolvidos, notadamente na famlia e no trabalho.

    A partir da categorizao do alcoolismo como doena da famlia, evidencia-se a

    maneira como os membros do grupo mobilizam aspectos presentes no universo social

    no qual esto inseridos para construrem um sentido para a experincia da doena.

    Discutem-se, ainda, as bases da compreenso do alcoolismo como uma doena

    contagiosa, que atinge o indivduo ao mesmo tempo em que afeta a todos os que esto

    ao redor, sobretudo a seus familiares.

    No captulo 7, acompanha-se mais de perto a construo da identidade de

    doente alcolico em recuperao, a partir de uma anlise dos mecanismos simblicos

    colocados em prtica para dar conta da doena alcolica, com nfase na anlise tanto

    da experincia do alcoolismo como uma derrota total, que conduz o alcolico ao

    chamado fundo do poo, como da questo do anonimato na irmandade. Enfim,

    desenham-se os contornos da pessoa alcolica fabricada dentro do grupo, enfatizando

    o regime de alteridade instaurado pelo modelo teraputico da irmandade, no qual o

    indivduo deve conviver com o mal do alcoolismo alojado em seu interior. A teraputica

  • 5

    de A.A. entendida, aqui, como um mecanismo ritual de estranhamento, que isola a

    frao doente de si mesmo, representada na idia de um mal que o indivduo carrega

    dentro de si, que faz parte dele, criando, assim, as condies necessrias para o controle

    da doena e o conseqente resgate de seu lugar no universo relacional da famlia e do

    trabalho.

  • 6

    Captulo 1

    UM OLHAR ANTROPOLGICO SOBRE O

    ALCOOLISMO E OS ALCOLICOS ANNIMOS

    O alcoolismo considerado um dos mais srios problemas de sade pblica da

    atualidade, despertando a ateno de autoridades mdicas e sanitrias de diversos

    pases. Segundo os dados do I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas

    Psicotrpicas no Brasil, realizado em 2001 pelo Centro Brasileiro de Informaes sobre

    Drogas Psicotrpicas CEBRID (2002) , da Universidade Federal de So Paulo

    UNIFESP , em conjunto com a Secretaria Nacional Anti Drogas SENAD ,

    envolvendo as 107 maiores cidades do Pas, 11,2% da populao brasileira so

    dependentes do lcool (2002: 37), e a prevalncia da dependncia est na faixa etria de

    18 a 24 anos, em um total de 15,5% (2002: 47).

    Na Frana, um estudo conduzido pelo Institut National de la Sant et de la

    Recherche Mdicale (INSERM: 2003) aponta que, apesar de o consumo global de

    lcool ter diminudo 40% nos ltimos quarenta anos, cerca de 8,6% da populao com

    idade entre 12 a 75 anos tem algum problema relacionado ao lcool, o que totaliza

    aproximadamente 5 milhes de pessoas, entre os quais 2 milhes so dependentes do

    lcool (2003: 255). J nos EUA, estudos epidemiolgicos apontam para a prevalncia

    da dependncia do lcool na faixa etria de 15 a 54 anos, atingindo cerca de 15% da

    populao geral (2003: 252).

    Nesse cenrio, a irmandade de A.A. tem se expandido em escala mundial,

    fazendo parte do itinerrio teraputico de milhares de pessoas. Segundo Gabhainn

    (2003), o nmero dos membros da irmandade tem crescido em progresso geomtrica,

    tendo passado de 100 membros, em 1940, para 476.000, em 1980; para 653.000, em

    1983; e para 979.000, em 1990. Em 2002, estimava-se que o nmero de grupos de A.A.

    em todo mundo fosse de pouco mais de 100 mil, totalizando 2.215.293 membros,

    segundo dados do Escritrio Mundial de Alcolicos Annimos. No Brasil, o primeiro

    grupo surgiu em 1947 e, atualmente, h cerca de 5.700 grupos, perfazendo cerca de

  • 7

    120.000 membros, segundo dados do Escritrio de Servios Gerais de Alcolicos

    Annimos.

    Outro sinal da sua relevncia o surgimento posterior de outros grupos que

    seguem o mesmo modelo teraputico, o que faz de A.A. uma espcie de grandparent

    dos grupos de mtua ajuda (Gilbert, 1991: 353) destinados ao tratamento de outras

    patologias, tais como: os Narcticos Annimos, que congrega os dependentes

    qumicos e usurios de drogas; os Comedores Compulsivos Annimos, que rene

    aqueles que sofrem de compulso alimentar; o grupo Mulheres que Amam Demais

    Annimas, voltado para as mulheres com problemas afetivos e de relacionamentos; os

    Neurticos Annimos, para os portadores de doena mental e emocional; os

    Jogadores Annimos, para os dependentes de jogos de azar; o Al-Anon, para os

    familiares e os amigos de dependentes do lcool; etc.

    A crescente expanso da irmandade tambm chamou a ateno da mdia

    impressa2 e visual, notadamente do cinema norte-americano (Room, 1989) e, nos

    ltimos anos, de algumas telenovelas brasileiras3, todas preocupadas em abordar a

    temtica do alcoolismo e o papel do modelo teraputico praticado pelos AAs.

    Erigido em objeto de estudo privilegiado da medicina epidemiolgica e

    psiquitrica, a partir dos estudos pioneiros do mdico sueco Magnus Huss, no sculo

    XIX, o alcoolismo tratado, em geral, como problema patolgico, individual e social.

    Com efeito, quer se trate do modelo mdico-moral, cujas anlises centraram-se no

    chamado consumo excessivo de bebidas alcolicas e serviram de base para as aes dos

    movimentos de temperana e das ligas antialcolicas do sculo XIX, que apareceram

    principalmente na sociedade norte-americana (Blumberg, 1977; Soares, 1998), quer se

    trate do modelo biomdico, preocupado com o estudo da dependncia alcolica, na

    tentativa de traar sua etiologia e formas de tratamento (Jellinek, 1960; Descombey,

    1998; Vaillant, 1998), tais estudos sempre tratam o alcoolismo como problema

    individual, entendido, respectivamente, sob a tica do desvio e da patologia.

    2 Destacam-se, nessa linha, as reportagens A luta contra o vcio, Revista Veja, So Paulo, n.8, 96-103, 24 fev 1999 e A salvao pelo anonimato, Revista Carta Capital, So Paulo, n. 255, 8-15, 27 ago 2003. 3 Para uma anlise da presena da temtica do alcoolismo e do modelo teraputico de A.A. nas telenovelas brasileiras, ver: Campos, 2004a.

  • 8

    Nesse sentido, se certa a prevalncia do problema do alcoolismo nos dias

    atuais, ainda so raros os trabalhos, no mbito das cincias sociais, especialmente no

    Brasil, que se ocupam tanto com o chamado uso patolgico de bebidas alcolicas

    quanto das estratgias teraputicas utilizadas pelos AAs para dar conta da doena

    alcolica, mesmo sendo conhecido o fato de que o Brasil um dos pases com maior

    nmero de grupos de A.A. no mundo (Soares, 1999: 15)4.

    Em geral, nas cincias sociais, como lembra Neves (2004), o alcoolismo aparece

    como tema tangencial em estudos preocupados com a compreenso das formas e

    maneiras de beber, de modo que o ato de beber entendido, sobretudo, como um ato

    social (Machado e Silva, 1978; Dufour, 1989; Guedes, 1997; Bernand, 2000; Magnani,

    2003), sinalizando para os contextos nos quais o uso do lcool valorizado e nos quais

    opera como uma espcie de lubrificante social (Neves, 2004: 9) e favorece a

    construo de laos de reciprocidade, constitutivos dos espaos de sociabilidade.

    Ora, a equao alcoolismo/doena pode se revelar um importante objeto de

    estudo, notadamente quando os prprios nativos entendem o alcoolismo como

    doena. Mas tomar o alcoolismo como doena no significa necessariamente ratificar

    o modelo biomdico, quando este o ponto de vista dos entrevistados, tal como ocorre,

    por exemplo, em A.A.. Durante suas reunies, os ex-bebedores se reconhecem como

    doentes alcolicos: Sou um doente alcolico em recuperao e venho s reunies

    para deixar de ser aquele cachaceiro que eu era, dizem os AAs, assinalando a

    passagem de uma posio na qual o beber considerado abusivo estigmatizado para

    uma posio na qual o ato de beber entendido de maneira patolgica.

    Nessa medida, o par alcoolismo/doena relativizado e entendido dentro de um

    contexto cultural especfico. Os grupos de A.A. podem, ento, ser compreendidos como

    um universo social, com seus ritos, representaes, smbolos e valores prprios, que

    proporciona aos seus membros, tanto a possibilidade de reorganizarem suas condutas

    como a de atriburem significados prprios ao problema do alcoolismo, ao mesmo

    tempo em que constroem uma representao especfica de si mesmos.

    4 importante ressaltar, contudo, os esforos empreendidos nos ltimos anos em Programas de Ps-graduao de vrios institutos vinculados s universidades brasileiras, com o intuito de preencher essa lacuna, atravs do estmulo a pesquisas focalizadas na equao alcoolismo/doena e, sobretudo, na atuao dos grupos de Alcolicos Annimos (cf. Barros, 2001; Garcia, 2004; Mota, 2004).

  • 9

    A irmandade torna-se, assim, um local privilegiado para o estudo das

    representaes e dos significados produzidos em torno da chamada doena alcolica,

    e suas relaes com a construo da noo de pessoa. Isso porque, nos espaos

    construdos pelos seus membros, so vivenciados, como sublinha Neves (2004), os

    modos de construo do alcolico como identidade redentora, graas entre-ajuda ou

    soluo coletiva5 (2004: 12 grifo do original), de forma que os associados podem

    falar de si mesmos sem as presses da culpa e do preconceito.

    Ao analisar o modelo teraputico de A.A., pode-se compreender o alcoolismo de

    uma maneira mica, isto , tal como ele pensado e gerido por aqueles que se

    reconhecem como doentes alcolicos em recuperao. Com isso, pode-se entender a

    maneira atravs da qual os AAs abordam o alcoolismo, como eles o explicam, o

    vivenciam e tentam super-lo, concebendo-o como uma doena crnica e fatal, ao

    mesmo tempo em que forjam uma compreenso especfica de si mesmos.

    O objetivo deste trabalho examinar esse quadro, relacionando-o com a

    construo da noo de pessoa. Trata-se de pensar no s no contexto da expanso de

    A.A., mas, sobretudo, em seu modus operandi, atravs da anlise dos mecanismos

    simblicos colocados em prtica para dar conta do lcool e do alcoolismo, e que tornam

    possvel a construo de uma representao de si mesmos como doentes, ao mesmo

    tempo em que se forja uma noo de pessoa dentro da irmandade.

    Nessa linha, pretende-se contribuir para preencher a lacuna existente nos estudos

    sobre o par alcoolismo/doena sob a tica das cincias sociais, oferecendo uma

    interpretao desse fenmeno a partir da maneira pela qual aqueles que se identificam

    como doentes alcolicos reinventam a experincia do alcoolismo, deslocando seu

    discurso de uma posio de marginalidade social para uma posio na qual se vislumbra

    a possibilidade de integrao e resgate dos laos sociais.

    5 Vale tambm recuperar a advertncia de Neves (2004) sobre as dificuldades e os limites da investigao antropolgica, no contexto da investigao sobre alcoolismo, e a necessidade de se explicitar os contextos culturais e simblicos com os quais se constroem os significados sobre as diferentes formas e maneiras de beber e suas interdies.

  • 10

    1.1 A construo da pessoa alcolica: um enfoque antropolgico

    Mas qual a relao existente entre o alcoolismo, entendido como uma doena

    crnica e fatal, de base gentica, e a construo da noo de pessoa em A.A.? Como a

    irmandade, entendida como uma entidade autnoma e auto-suficiente, sem vnculos

    institucionais com o Estado, contribui para forjar uma representao prpria da noo

    de pessoa? Como seu modelo teraputico contribui para (re)construo subjetiva de seus

    membros?

    Os AAs se ocupam, nica e exclusivamente, da recuperao do indivduo que

    sofre do alcoolismo, considerado um doente alcolico em recuperao. Seguindo suas

    prprias tradies, a irmandade no se envolve em polmicas pblicas, sejam sobre as

    causas do alcoolismo sejam sobre seus efeitos no organismo. Como conseqncia, seus

    membros no se engajam em polticas sociais que visem estabelecer um controle social

    sobre o consumo de bebidas alcolicas.

    Nessa linha, opera-se com um modelo cuja unidade central o indivduo,

    valorizado em sua singularidade. Ao longo dos anos, um vasto repertrio de expresses

    foi criado e reproduzido no interior da irmandade, acentuando o carter individual de

    seu programa de recuperao: A.A. um programa egostico ou Primeiro eu,

    segundo eu, terceiro eu. Todas essas falas ressaltam a necessidade de o indivduo que

    se considera doente se engajar no processo teraputico, tornando-se responsvel por sua

    prpria recuperao, reafirmando seu compromisso de evitar o primeiro gole a cada

    24 horas.

    Ora, essa centralidade no indivduo nos leva a refletir sobre como o modelo de

    A.A. se inscreve no interior do processo de individualizao prprio das sociedades

    modernas. A irmandade foi edificada durante as transformaes que sacudiram a

    sociedade norte-americana do final do sculo XIX e do incio do sculo XX,

    notadamente em torno do debate sobre o uso e os efeitos do consumo de bebidas

    alcolicas. Sua origem protestante, e veio no bojo do debate em torno da temperana,

  • 11

    que resultou na promulgao da Lei seca nos Estados Unidos6. Seus fundamentos

    pragmticos, seu esprito associativista e sua relao com o modelo biomdico de

    combate ao alcoolismo fazem da irmandade um empreendimento solidrio aos valores

    da sociedade que a produziu, tais como: a autonomia, a escolha, a liberdade, a

    responsabilidade e a vontade, que h muito foram apontados por Tocqueville como

    os valores caractersticos da modernidade.

    Em seu livro De la dmocratie en Amrique, publicado em duas edies

    sucessivas, em 1835 e em 1840, Tocqueville aponta o modo como a sociedade norte-

    americana edifica os pilares da democracia moderna, cujo fundamento principal est na

    noo de indivduo, considerado como um ser autnomo e soberano, ao mesmo

    tempo em que reflete sobre as conseqncias do individualismo moderno (cf. Renaut,

    1998: 25-38):

    O individualismo origina-se da democracia e ameaa desenvolver-se na medida em que as condies se tornam iguais [...] Na medida em que as condies se tornam iguais, aumenta o nmero de indivduos que, j no sendo ricos ou poderosos o bastante para exercer grande influncia sobre o destino de seus semelhantes, conservaram ou adquiriram, no obstante, instruo e bens suficientes para bastarem-se a si mesmos. Nada devem a ningum; habituam-se a se considerarem sempre de forma isolada e at imaginam que seu destino esteja em suas mos. Assim, a democracia no s leva cada homem a esquecer-se de seus antepassados, mas tambm lhe esconde seus descendentes e o separa de seus contemporneos; sem cessar, ela o traz de volta para si mesmo, ameaando enclausur-lo na solido de seu corao 7 (Tocqueville, 1961: 144-145 trad. minha).

    O debate travado em torno do alcoolismo e de seus efeitos sobre a vida fsica e

    moral do alcolico envolvem, portanto, as relaes entre o livre-arbtrio e a

    determinao, entre a vontade e a necessidade, entre a responsabilidade e a

    dependncia, entre a capacidade de escolha e a perda de controle sobre o lcool.

    6 A irmandade dos Alcolicos Annimos nasceu em 1935, em Akron, no Estado de Ohio, nos Estados Unidos, aps uma conversa entre um corretor da Bolsa de Nova York e um mdico, ambos conhecidos, respectivamente, como Bill Wilson e Bob Smith. Eles constataram que, por alguma razo at ali no bem compreendida, conseguiam ficar sem beber durante bons perodos depois que passavam algum tempo conversando e compartilhando seu problema. Aps vivenciar uma verdadeira experincia espiritual e experimentar fortes sentimentos de triunfo, paz e serenidade, segundo depoimento do prprio corretor, ele decidiu trabalhar para que outros alcolicos se beneficiassem com a descoberta e montou os primeiros grupos. 7 Os textos em lngua estrangeira citados ao longo deste trabalho, como destacamos na Introduo, foram todos por mim traduzidos. Quando possvel, cotejamos com tradues disponveis em lngua portuguesa.

  • 12

    Evidentemente, os valores que compem o eixo semntico da modernidade no

    foram inventados pelo A.A., mas so rearranjados em seu interior, delineando, assim, os

    contornos de uma noo de pessoa que se faz necessrio investigar.

    Essa investigao ainda mais se justifica se levarmos em conta que alguns

    comentadores tendem a inserir o modelo de A.A. no interior daquele eixo semntico,

    acentuando, de maneira unvoca, o carter individualista de seu programa de

    recuperao.

    Exemplo disso a leitura que Giddens (1996; 1997) faz do papel desempenhado

    por A.A. nos dias atuais. Para esse autor, o programa de recuperao da irmandade

    favorece a reflexividade individual, na medida em que contribui para a ampliao da

    autonomia de seus membros. A partir do intercmbio de elementos da vida pessoal, a

    irmandade possibilita uma maior interao entre os indivduos, favorecendo seu

    amadurecimento, dotando-os de mais autonomia.

    Dessa perspectiva, a irmandade se constitui em um cenrio de ao, no

    interior do qual os indivduos podem exercitar a reflexividade, tornando-se agentes

    responsveis8. Conversando e interagindo, atravs do intercmbio de elementos de

    suas vidas emocionais, os AAs podem superar os obstculos impostos pelos chamados

    vcios e comportamentos compulsivos.

    Para Giddens, os chamados vcios e comportamentos compulsivos esto

    diretamente ligados s estruturas da modernidade. Nesse sentido, o vcio, antes de ser

    um fenmeno fisiolgico, um fenmeno social e psicolgico (1997: 90). Com efeito,

    a compulsividade, em sentido mais amplo, uma incapacidade para escapar do

    passado (1997: 85), estando diretamente ligada tradio. Ou, como sugere Giddens,

    na modernidade a tradio se transforma em compulso. Ou seja, trata-se da natureza

    obsessiva da modernidade, na qual os indivduos repetem suas aes, mas agora sem o

    sentido tradicional que as alimentava, constituindo-se, portanto, num poderoso

    obstculo emancipao e autonomia do sujeito. Nessa linha, a compulsividade pode

    8 Para Giddens (1991:45): a reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as prticas sociais so constantemente examinadas e reformuladas luz de informao renovada sobre essas mesmas prticas, alterando assim constitutivamente seu carter. Nessa linha, o que caracteriza a modernidade no o apetite para o novo como comumente de diz , mas a suposio de uma reflexividade indiscriminada, que inclui a reflexo sobre a natureza da prpria reflexo. Nas sociedades modernas, o passado no pode ser utilizado pelos agentes como nica fonte de inspirao e sabedoria no monitoramento de suas aes. No mundo moderno, os agentes sociais usam de sua capacidade reflexiva, isto , utilizam o conhecimento produzido sobre suas prprias prticas para (re)avali-las e justific-las.

  • 13

    ser entendida como o outro lado da revoluo cognitiva proposta pela modernidade,

    impedindo os indivduos de se tornarem mais conscientes e responsveis pelas suas

    aes.

    As prticas e conversas estabelecidas no interior dos grupos so, ento,

    fundamentais para que os indivduos, no sentido moderno do termo, tornem-se agentes,

    capazes de monitorar reflexivamente suas aes.

    Com efeito, seu modelo possibilita a realizao de uma espcie de democracia

    das emoes, capaz de conduzir os indivduos a ter um bom entendimento de sua

    prpria constituio emocional (1996: 25). Os indivduos que so capazes de se

    comunicar de maneira eficiente com os outros, em uma base pessoal, provavelmente

    esto bem preparados para as tarefas e responsabilidades mais amplas da cidadania

    (1996: 25). Os AAs exercem, ento, uma importante influncia democratizadora no

    interior das sociedades atuais graas prpria forma de sua associao social (1996:

    138). Para Giddens (1996: 138) , o grupo:

    Possui uma forma organizacional que inibe as hierarquias fixas. Ele [o A.A.] propositadamente se dispe a criar o mximo de espao discursivo para seus membros; alm disso, tambm est interessado no desenvolvimento de autonomia. A comunicao com os outros, produzida por uma autocompreenso aumentada e para ela contribuindo, o meio pelo qual a pessoa que padece de um vcio torna-se capaz de super-lo.

    Alm dessa funo democratizadora, esse autor tambm ressalta o

    importante papel de agente fiscalizador desempenhado pelos AAs, pois contestam

    definies antes tidas como oficiais. Paralelamente a isso, eles tambm atuariam

    como agentes equalizadores do poder tcnico-cientfico, importantes para arrebatar o

    poder dos peritos e na recuperao leiga da percia, de forma mais genrica (1996:

    139).

    A anlise que Giddens faz do modelo adotado pela irmandade se aproxima

    muito de uma perspectiva que cada vez mais ganha espao nas anlises dos grupos de

    apoio formados, sobretudo, pelos prprios doentes, a saber, a perspectiva do

    empowerment. Vasconcelos (2003), em estudo sobre portadores de doena mental e

    suas estratgias de tratamento, define o empowerment como: o aumento de poder e

    autonomia pessoal e coletiva de indivduos e grupos sociais nas relaes interpessoais e

    institucionais, principalmente daqueles submetidos a relaes de opresso, dominao e

  • 14

    discriminao social (2003: 20). Para o autor, A.A. um caso exemplar desse conceito,

    na medida em que favorece o ganho de autonomia de seus membros, que encontram um

    modo prprio para gerir a doena do alcoolismo, responsabilizando-se pelo cuidado

    de si mesmos.

    A leitura psiquitrica de Edwards (1995) tambm acentua o carter

    individualista do programa de recuperao do alcoolismo de A.A.. Para ele, o programa

    de recuperao um programa egosta, no qual cada um busca a sobriedade por ele

    mesmo, e no para agradar quem quer que seja, sem se manter refm do destino (1995:

    213). Nessa linha, o programa visa, notadamente, autonomia do indivduo, uma vez

    que, ao partilhar suas experincias, o alcolico est, na verdade, ajudando a si mesmo,

    confirmando suas prprias foras. Com efeito, a tarefa da irmandade no [a de] fazer

    proselitismo, mas sim a de garantir a sobriedade e, conseqentemente, a autonomia dos

    membros da irmandade.

    Tanto a anlise de Giddens quanto a de Vasconcelos e a de Edwards enfatizam o

    carter individualista-reflexivo do modelo de A.A. e o conseqente ganho de

    autonomia por parte dos doentes alcolicos, ao colocarem em prtica o programa de

    recuperao do alcoolismo da irmandade. Tudo se passa como se esse modelo fosse um

    resultado da individualizao do processo sade/doena. Os AAs so, ento,

    identificados como agentes capazes de controlarem a doena alcolica, recuperando,

    assim, a autonomia perdida nos tempos do alcoolismo ativo. Ao contrrio do indivduo

    dependente, que perdeu o controle sobre o lcool, tornando-se incapaz de controlar

    sua vida seguindo sua prpria vontade, os AAs so entendidos como agentes

    autnomos que recuperaram a capacidade de escolha e o controle da prpria

    doena, responsabilizando-se pelo cuidado de si mesmos.

    Todavia, se certo que o indivduo doente ocupa uma posio central no modelo

    de A.A., atuando como eixo articulador em torno do qual se constri toda sua estratgia

    teraputica, cabe avaliar a maneira como esse modelo sinaliza para uma construo

    particular da noo de pessoa, estabelecendo contrastes em relao ao processo de

    individualizao da modernidade. Ao contrrio do que concebem as leituras

    anteriormente descritas, neste trabalho enfatiza-se a maneira pela qual o modelo

    teraputico da irmandade forja uma noo de pessoa diferencial, que relativiza o

    processo de individualizao, caracterstico da modernidade.

  • 15

    Desde o estudo de Marcel Mauss (2001a), publicado originalmente em 1938:

    Une catgorie de lesprit humain la notion de personne celle de moi, os estudos

    sobre a noo de pessoa tm assumido uma posio de destaque dentro do campo

    conceitual da antropologia. Em seu estudo, Mauss retoma o empreendimento

    durkheiminiano de traar uma histria social das categorias do esprito humano,

    aplicando-o noo de pessoa. Assim, em vez de ser um dado a priori e de ter uma

    validade universal, a noo de pessoa aparece como uma construo cultural, histrica e

    social. Partindo de um fundo primitivo, no qual o indivduo no se distingue do prprio

    cl, Mauss aponta como a pessoa vai se destacando de seu enraizamento social para se

    afirmar como categoria jurdica, moral e lgica (Goldman, 1996: 86). A compreenso

    da noo de pessoa depende, ento, de um inventrio minucioso das formas adquiridas

    por essa noo no interior das vrias construes culturais (Velho, 1999).

    Como j enfatizaram Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979), o texto de

    Mauss assume o papel formador que as categorias coletivas de uma sociedade exercem

    sobre a organizao e a prtica concreta nessa sociedade (1979: 6 grifo do original).

    Nesse sentido, a noo de pessoa entendida como uma categoria coletivamente

    construda, que d um significado ao vivido. Em outros termos: a noo de pessoa

    assume a condio de categoria antropolgica, isto , a de uma unidade socialmente

    investida de significao, cabendo antropologia descrever os modos pelos quais as

    diferentes culturas e grupos sociais a elaboram.

    Essa relativizao da noo de pessoa encontra eco na obra de Louis Dumont,

    notadamente em sua definio terica da hierarquia e a conseqente especificao da

    chamada ideologia do individualismo. assim que, aprofundando a linha aberta por

    Mauss, sua obra coloca no centro da reflexo antropolgica a noo de indivduo,

    fundamento sobre o qual se eleva o edifcio da modernidade.

    Em os Essais sur lindividualisme: une perspective sur lidologie moderne

    (1983), Dumont investiga as bases dessa noo de indivduo, entendida como valor

    articulador da experincia moderna. Contra a idia de um indivduo universal, sua obra

    descortina as bases que fundamentam essa pretensa universalidade, a saber, a

    ideologia prpria modernidade.

    A noo de ideologia assume, aqui, um sentido distinto do carter negativo

    presente na tradio marxista. Em vez de um vu ou cmara obscura que encobriria

    a realidade, a ideologia vista como um sistema de idias e de valores que tem curso

  • 16

    em um dado meio social (1983: 20). Mas, qual ideologia sustenta a moderna

    concepo do indivduo como valor supremo? A resposta encontrada no

    individualismo: a ideologia moderna individualista sendo o individualismo

    definido sociologicamente do ponto de vista dos valores globais (1983: 21). Para

    Dumont, portanto, o valor indivduo compe o eixo semntico em torno do qual se

    estrutura toda cultura ocidental moderna9.

    No Ocidente, a ideologia do individualismo assume um aspecto determinante,

    elevando a categoria do indivduo a um plano superior, diferenciando a cultura ocidental

    de outras formaes culturais. O valor indivduo assume, ento, o sentido da

    totalidade; de um valor que engloba as experincias na vida social moderna,

    acentuando, como lembra Duarte (1983: 2-27), o carter paradoxal da modernidade10.

    O paradoxo torna-se mais evidente se levarmos em conta sua teoria da

    hierarquia, que opera como um princpio estruturador dos sistemas sociais e [das]

    vises de mundo em que prevalecem representaes de pessoa (Duarte, 2003: 175).

    A hierarquia entendida como o princpio pelo qual toda a experincia humana

    (intelectual ou prtica) pressupe uma distribuio diferencial (culturalmente definida)

    do valor no mundo, que permite justamente a orientao do sujeito em situao

    (Duarte, 2003: 175-176). no interior dos sistemas holsticos que se elabora o sentido

    da totalidade e so construdas as representaes da pessoa que orientam os sentidos das

    aes na vida social. tambm pelo princpio da hierarquia que a vivncia

    propriamente cultural pode se incorporar em um valor, traduzindo de maneira

    diferencial o sentido da totalidade, que caracteriza uma determinada configurao

    9 Dumont recorre antropologia comparativa para estabelecer a especificidade e a unidade da cultura ocidental moderna. Com efeito, o autor traa uma comparao entre a sociedade ocidental e a sociedade hindu, demonstrando que, enquanto na ndia impera um padro holstico, cujo valor recai sobre a totalidade social, no Ocidente impera a noo do indivduo como valor supremo. 10 Se acompanharmos a proposta de Dumont de entender a categoria religio como aquela que no universo do pensamento segmentado mais se refere ao sentido da totalidade, do valor encompassador, e, por outro lado, se aceitarmos como legitima a hiptese que o eixo semntico desse valor se armaria em nossa cultura em torno da noo de Indivduo, encontramo-nos com um curioso paradoxo [...], pois teramos como totalidade justamente um princpio que a nega; como valor encompassador justamente o que segmenta, privatiza, individualiza, e como religio, justamente o que seculariza, des-magiciza e racionaliza (Duarte, 1983: 6).

  • 17

    social. Paradoxalmente, na sociedade ocidental moderna, o princpio que traduz a

    totalidade justamente aquele que incorpora a parte, isto , o indivduo11.

    A obra de Dumont aponta, assim, para a crtica da idia substancialista de

    indivduo, isto , de uma noo de indivduo a priori, independentemente das condies

    histricas e sociais. O empreendimento dumontiano, expresso, particularmente, em seu

    livro Homo aequalis (2000), de procurar compreender nosso tipo moderno de

    sociedade, fundada na igualdade, a partir de um modelo de sociedade baseado na

    hierarquia, revelou a importncia da aplicao do mtodo antropolgico comparativo

    no estudo da construo moderna de indivduo, elevando-o condio de valor supremo

    da modernidade, dissolvendo a clssica oposio entre igualdade e hierarquia. Em

    suma, como explica Dumont (2000: 15), essa oposio,

    trata de valores sociais gerais, englobantes, que devem ser distinguidos claramente da simples presena de um trao e de uma idia num plano ou noutro da sociedade. Em um sentido mais amplo, igualdade e hierarquia esto necessariamente combinados, de uma forma ou outra, em todo sistema social.

    Torna-se fundamental, portanto, a compreenso dos modos diferenciais de

    construo da noo de indivduo, integrado s representaes e aos valores que

    orientam as aes na vida social. Como lembra Velho: Cabe distinguir o lugar do

    indivduo na construo social da identidade de qualquer grupo ou sociedade e o

    desenvolvimento de uma ideologia individualista que, em princpio, estaria vinculada a

    tipos particulares de experincia e histria (Velho, 1999: 44-45 grifos do original).

    Ora, o estudo do modelo teraputico construdo por A.A. para dar conta da

    doena alcolica pode ser uma via de acesso para a compreenso do modo diferencial

    de construo dessa noo, a partir da fabricao da pessoa alcolica no interior da

    irmandade12. Em A.A. assiste-se construo de uma noo de doena alcolica

    11 Ainda segundo Duarte (1986a: 92): Esse seria um dos sentidos mais profundos da teoria de Dumont sobre a hierarquia: o de demonstrar que mesmo esta ideologia individualista que a nega no seno em ltima instncia um seu caso particular e paradoxal. Como ocorre com as representaes holistas e hierrquicas tradicionais, tambm as nossas operam com as diferenas procurando uni-las sob a gide de um valor. nossa grande vantagem e nosso instigante enigma que esse valor totalizante seja a prpria parte, o prprio indivduo. 12 Como lembra Duarte (2003: 180), a experincia da sade e da doena uma importante via de acesso no estudo das formas diferenciais de construo da noo de pessoa : a experincia da sade/doena interpela a integralidade da identidade pessoal, impondo aes e reaes mobilizadoras de sentido [...] Pe em cena horizontes de significao e princpios de ao complexos e diferenciados, que o esquema analtico da pessoa/indivduo ajuda a compreender em nossa sociedade.

  • 18

    crnica e fatal e da identidade do doente alcolico em recuperao no interior de

    uma ordem prpria, na qual se constroem os significados da experincia do alcoolismo.

    Nas reunies, os AAs reiteram sua condio de doentes, reconhecendo-se impotentes

    em relao ao lcool, e que precisam de ajuda para sua recuperao. Nos relatos do

    chamado tempo da ativa, no qual faziam um uso compulsivo do lcool, eles narram

    a perda de controle sobre as doses ingeridas. Em outras palavras, eles narram como o

    alcoolismo os conduziu condio de heteronomia, na qual no podiam dirigir suas

    vidas seguindo a prpria vontade, tornando-se incapazes de escolher entre beber ou no

    beber.

    Como conseqncia, os AAs reconhecem que a chamada doena alcolica os

    conduziu perda da responsabilidade tanto no cuidado de si quanto no provimento da

    sua famlia atravs do trabalho. Refns do lcool, eles reconhecem que chegaram ao

    fundo do poo, isto , que viveram perdas relacionais, rompendo todos os elos que

    os ligavam aos amigos, famlia e ao trabalho. Com isso, o alcoolismo revela sua dupla

    face, isto , uma doena do indivduo, que conduz o doente a fechar-se sobre si

    mesmo, encerrando-o no ciclo da dependncia do lcool, mas que tambm entendido

    como uma doena da famlia, que afeta todos aqueles que vivem ao seu redor,

    notadamente, cnjuge e filhos.

    Nessa perspectiva, a recuperao s pode ocorrer dentro da irmandade, com a

    ajuda do Poder Superior, consubstanciado nos depoimentos dos demais membros do

    grupo. Ou seja, s participando das reunies e ouvindo os depoimentos dos demais

    companheiros que os AAs podem recuperar a responsabilidade perdida no tempo do

    alcoolismo ativo.

    O modelo teraputico da irmandade funda-se, assim, na relao de troca, na qual

    o dar, o receber e o retribuir das experincias vividas constituem a base do lao social e

    das relaes de reciprocidade capazes de fazer os AAs manterem-se sbrios. Como

    assinala Godbout (2004a: 104),

    [o modelo ] fundado sobre o princpio da ddiva. Uma pessoa que aceita tornar-se membro deve reconhecer que alcolica e que ela no pode se recuperar sozinha, que sua capacidade de se recuperar vir de fora, de uma ddiva de uma fora superior tal como ela mesma a compreende.

  • 19

    Esse processo corresponde, fundamentalmente, instaurao de um peculiar

    regime de alteridade, baseado na fabricao de um corpo e de um esprito doentes, de

    maneira que a doena alcolica apreendida como um outro que cada dependente

    traz dentro de si mesmo, que est alojado em seu interior; condio essa que deve ser

    compartilhada com os demais membros do grupo, possibilitando, assim, a manuteno

    da sobriedade.

    No estaramos aqui justamente diante da fabricao de uma noo de pessoa

    que problematiza a idia de indivduo como uma realidade a priori, ao mesmo tempo

    em que relativiza a crena moderna na indivisibilidade e na auto-suficincia de uma

    noo do prprio eu, considerado autnomo e soberano? O modelo de A.A.

    parece indicar que a capacidade de escolha e a responsabilidade s podem ser

    recuperadas dentro da matriz relacional da irmandade, a partir do reconhecimento das

    prprias limitaes e da impossibilidade de se enfrentar a doena do alcoolismo

    sozinho.

    A noo de indivduo responsvel pelo cuidado de si e de sua famlia s pode

    florescer dentro do grupo, na comunicao com os demais membros que se encontram

    na mesma situao, a partir do reconhecimento de que necessrio aprender a conviver

    com um outro dentro de si, representado pela idia de que se portador da doena

    crnica e fatal do alcoolismo. Somente assim, o indivduo considerado doente pode se

    responsabilizar pelo cuidado de si mesmo, ao mesmo tempo em que recupera os papis

    sociais de pai/me, esposo(a) e trabalhador(a).

    nessa perspectiva que este trabalho busca caracterizar o diferencial da

    construo da pessoa em A.A., relacionando-o maneira como se d organizao social

    da irmandade e, notadamente, fabricao da identidade durante o processo teraputico,

    de modo a lanar contrastes ao individualismo, e assinalando as possveis

    (des)continuidades em relao ao campo ideolgico moderno.

    A definio dessa temtica foi objeto de uma confluncia de aspectos tericos e

    metodolgicos que tornaram possvel articular, a partir do trabalho etnogrfico, as

    prticas e os significados elaborados em torno do lcool e do alcoolismo, enfocando o

    processo de construo social da identidade do doente alcolico em recuperao e,

    por essa via, da noo de pessoa. Vale a pena, portanto, retraar o itinerrio etnogrfico

    que resultou na sua realizao.

  • 20

    1.2 A pesquisa de campo: encontrando os alcolicos annimos

    O etngrafo inscreve o discurso social: ele o anota. Ao faz-lo, ele o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu prprio momento de ocorrncia, em um relato, que existe em sua inscrio e que pode ser consultado novamente. Clifford Geertz

    Para dar conta dos objetivos propostos, realizamos uma pesquisa de campo,

    entre setembro de 2001 e setembro de 2002, no grupo Sapopemba de A.A., que faz

    parte do 42 distrito de Alcolicos Annimos do Estado de So Paulo, do Setor A

    Capital13. A escolha desse grupo deveu-se ao fato de se tratar de um j consolidado na

    promoo de reunies de recuperao, que acontecem desde de sua fundao, em 16 de

    maro de 1981.

    Meu encontro com os Alcolicos Annimos ocorreu por intermdio de um

    amigo que, durante uma conversa, na qual eu relatava meu interesse em fazer uma

    pesquisa sobre o programa de recuperao do alcoolismo desenvolvido pela entidade,

    disse-me conhecer um grupo prximo sua residncia, localizada na Vila Ema,

    pertencente ao populoso distrito de Sapopemba14, na zona leste da cidade de So Paulo.

    Ele tambm me disse que os AAs se reuniam todas as noites e que poderia lhes fazer

    uma consulta sobre a possibilidade de eu realizar minha pesquisa ali. Aps ele ter

    consultado os membros do grupo, marcamos um dia para minha ida ao local.

    No dia marcado, encontrei-o na estao do metr Belm e seguimos de nibus

    para a sede do grupo. O percurso levou cerca de uma hora, e eu estava preocupado com

    a pontualidade importante ressaltar que todas as reunies em que tive a

    possibilidade de participar comearam pontualmente s 20h , pois no queria me

    atrasar em meu primeiro encontro.

    13 A irmandade de Alcolicos Annimos conta com 524 grupos em todo Estado de So Paulo, organizados em 56 distritos, divididos em 11 setores. No setor A (Capital), existem 204 grupos de A.A., organizados em 19 distritos, segundo dados do Escritrio de Servios Locais - ESG/SP. Disponvel em: Acesso em: 13.01.2005. 14 Segundo dados do IBGE e da Fundao SEADE, o distrito de Sapopemba o segundo distrito paulistano em densidade populacional, contando, em 2004, com 286.857 habitantes. Disponvel em: Acesso em 20.12.2004.

  • 21

    O itinerrio percorrido foi revelando a paisagem tpica das periferias das grandes

    cidades. Posteriormente, percorrendo as ruas do distrito, foi possvel discernir traos

    importantes de sua formao social. O distrito de Sapopemba localiza-se em uma regio

    limtrofe com o parque industrial do ABC, conhecido pela grande concentrao de

    indstrias do setor automobilstico. Essa proximidade, decisiva para a configurao

    social do distrito, foi responsvel pelo fluxo migratrio, a partir dos anos 1950, de um

    grande contingente populacional, atrado pela promessa de melhores condies de vida.

    O bairro concentra uma populao majoritariamente trabalhadora, que depende

    do prprio salrio para sua reproduo social, e assemelha-se, em sua forma, aos bairros

    vizinhos, delineando os contornos de uma paisagem composta por casas simples, ou

    inacabadas, ou em processo de construo, e que servem de local de moradia, ao mesmo

    tempo, para a prpria famlia e para a de seus filhos, quando estes vm a se casar.

    Exemplo disso o vivido por Jorge15, 63 anos, casado, 4 anos de A.A., taxista, que

    mora com sua esposa e seus trs filhos em uma casa onde, na parte cima, um cmodo

    foi construdo para abrigar sua outra filha, seu genro e seus dois netos.

    Alm de abrigo para o ncleo familiar, a casa tambm tem um papel importante,

    funcionando, muitas vezes, como local de atividade econmica, na maioria das vezes

    informal, um recurso utilizado como forma de aumentar a renda familiar16. So

    pequenos estabelecimentos que oferecem os mais variados servios, tais como: conserto

    de sapatos, venda de salgadinhos, cabeleireiro, costureira, servios de pedreiro, conserto

    de geladeiras, de ferro de passar roupas etc. Aqui, mais uma vez Jorge quem nos d o

    exemplo: ele me relatou que certa vez tinha resolvido comprar equipamentos para abrir,

    em sua casa, um pequeno comrcio de venda de salgados e lanches, que seria

    administrado por ele e sua esposa. Com isso, ele esperava, ao mesmo tempo, aumentar a

    renda familiar e deixar de trabalhar com o txi, que dirigia h mais de 20 anos, deixando

    para seu filho mais velho esse ofcio. Aps algum tempo, constatou-se que o negcio

    no havia prosperado; resolveu-se, ento, vender a geladeira e o fogo adquiridos e

    fechou o estabelecimento. Jorge e sua esposa montaram um pequeno salo de

    15 Atendendo solicitao dos entrevistados, de preservao do principio do anonimato, os AAs so tratados, aqui, por pseudnimos. 16 Segundo dados do IBGE e da Fundao SEADE, referentes ao Censo de 2000, 61,38% dos habitantes do distrito de Sapopemba vivem com uma renda familiar que oscila na faixa de 2 a menos de 10 salrios mnimos. J 18,08% da populao vivem com renda familiar inferior a 2 salrios mnimos. Disponve; em: (Acesso em 20.12.2004).

  • 22

    cabeleireiro, onde ela atualmente trabalha, para aumentar a renda familiar. Ele voltou a

    dirigir o txi noite, enquanto o filho trabalha com o carro durante o dia.

    A situao vivida por Jorge emblemtica da queda do nmero de empregos

    formais, em funo das sucessivas crises econmicas vividas nas ltimas dcadas. Estas

    so responsveis por colocar um contingente expressivo de trabalhadores da regio na

    situao de risco de perda do emprego, aumentando a fragilidade econmica em que

    vivem. Percorrendo a avenida Sapopemba, que atravessa, em sua longa extenso, todo o

    distrito, possvel constatar o aumento da atividade informal pelo grande nmero de

    barracas de marreteiro que se distribuem em suas caladas.

    Nos ltimos anos, ocorreu um avano do setor de servios na regio, com a

    abertura tanto de redes de fast-food como de grandes supermercados, o que contribuiu

    para o aumento da oferta de empregos formais, mas essa oferta ainda est longe de

    absorver um grande contingente de trabalhadores, na sua maioria com pouca ou

    nenhuma especializao profissional17.

    Mas viver no distrito de Sapopemba tambm permite formular uma viso prpria

    sobre a vida nas periferias das grandes metrpoles:

    Eu percebo que nosso bairro periferia. Ento, na periferia, aquela dificuldade, a maioria da populao toda desempregada. [...] Eu, como sou daqui, cheguei aqui no bairro em 1970, j faz um bocado de anos que eu fao parte desta comunidade [...] Eu vejo que no existe um lazer na regio, o lugar mais prximo no parque do Carmo. Eu vejo uma dificuldade de conduo. Aqui em Sapopemba no tem um posto de sade (Paulo, 48 anos, casado, 22 anos de A.A., sapateiro, entrevistado em 25 jan. 2005).

    No olhar de Paulo, o bairro aparece classificado como periferia, cuja condio se

    define atravs das dificuldades compartilhadas cotidianamente, dentre as quais se

    destacam o desemprego e a falta de infra-estrutura de transporte e sade, tornando mais

    difcil a luta pela sobrevivncia.

    Segundo recorte feito a partir dos dados oficiais, relativos ao ano de 2002, o

    distrito no contava com equipamentos culturais tais como, por exemplo: salas de

    cinema, salas de teatro, casas de cultura, centros de cultura, museus e espaos e oficinas

    17 Segundo dados do IBGE e da Fundao SEADE, em 2002, o setor de servios foi responsvel por 54,4% dos vnculos empregatcios formais, no distrito de Sapopemba, contra 16,3% da indstria. Disponvel em: (Acesso em 20.12.2004).

  • 23

    culturais18. Todavia, circulando por suas ruas, possvel visualizar uma sociabilidade

    que se desenvolve em espaos de lazer, os quais instauram uma alteridade em relao ao

    espao domstico e ao local de trabalho. Esse o caso, por exemplo, dos bares, que, em

    nmeros expressivos, povoam suas esquinas e ruas. O bar aparece, muitas vezes, como

    uma das poucas alternativas de lazer para os moradores da regio.

    O distrito abriga ainda uma escola de samba a Combinados de Sapopemba

    , da qual fazem parte alguns membros de A.A., e cujos ensaios para o carnaval

    mobilizam os moradores em seus momentos de lazer. No ms de junho, ocorre o

    aniversrio do distrito, que comemorado em uma grande festa a Festa de

    Sapopemba , engajando seus moradores nos preparativos necessrios sua

    organizao e realizao. H tambm uma igreja catlica, centros espritas e terreiros de

    umbanda, que convivem com uma quantidade cada vez mais crescente de igrejas

    evanglicas, instaurando um circuito religioso pelo qual seus moradores circulam,

    participando de atividades que, muitas vezes, concorrem com as poucas opes de lazer

    oferecidas na regio. A igreja catlica tambm abriga reunies de Narcticos Annimos

    e do Al-Anon, irmandades paralelas, dirigidas, como j foi dito, aos dependentes de

    drogas e aos familiares e aos amigos de dependentes do lcool, respectivamente. No

    raro, tambm possvel ver algum membro de A.A. durante a missa, fazendo a

    divulgao das reunies do grupo.

    Durante a pesquisa, constatamos, no chamado livro de registro19 e, tambm,

    em conversas com o coordenador e com o responsvel pela manuteno da sala de

    reunies do grupo Sapopemba, um total de 86 pessoas registradas como membros

    ingressantes no grupo. Destes, 81 so homens e 5 mulheres. A presena macia de

    homens uma caracterstica marcante dos grupos de A.A., o que tambm confirmado

    por Garcia (2004: 57-60) em sua pesquisa no grupo Doze Tradies, localizado no

    municpio de So Gonalo, no Estado do Rio de Janeiro.

    18 Disponvel em: Acesso em 20.12.2004. 19 Embora no faa um controle rigoroso da freqncia s atividades, o grupo Sapopemba mantm um livro de registro no qual so anotados os nomes dos membros quando de sua entrada no grupo e, tambm, daqueles veteranos que continuam participando das suas reunies. Os AAs me disseram que esse livro deve sua existncia autonomia do grupo, que pode decidir manter um controle desse tipo, caso seus membros julguem necessrio. Eles disseram, ainda, que, atravs desse livro, possvel saber a mdia de membros que freqentam o grupo, facilitando o repasse da contribuio do grupo aos rgos de servios da irmandade. Alm do livro de registro, h tambm um livro de freqncia, que os membros assinam todos os dias, quando chegam para as reunies.

  • 24

    Segundo as informaes colhidas, dos 86 ingressantes, 37 deles se afastaram do

    grupo: 36 homens e uma mulher. A grande rotatividade de membros outra

    caracterstica presente no cotidiano da irmandade20. No caderno de ingresso, possvel

    observar o seguinte o quadro, referente ao tempo existente entre o ingresso e o

    afastamento do grupo:

    Quadro 1 Tempo entre ingresso e afastamento em A.A.

    Tempo decorrido entre o ingresso no

    grupo e o afastamento

    Nmero de membros

    Menos de 1 ms 00 entre 1 ms e 6 meses 15 entre 7 e 12 meses 13 entre 13 e 18 meses 07 entre 19 e 24 meses 02

    Em relao aos membros que mantm um vnculo permanente com a irmandade,

    possvel estabelecer o seguinte quadro, segundo os registros mantidos pelo grupo:

    Quadro 2 Tempo de permanncia no grupo

    Tempo de permanncia no grupo Nmero de membros

    at um 1 ano 11 entre 2 e 5 anos 17 entre 6 e 10 anos 02 entre 11 e 15 anos 09 entre 16 e 20 anos 07 mais de 20 anos 03

    Atravs da observao das atividades do grupo e tambm dos registros em seu

    caderno de presena, constatamos que, nas reunies de recuperao, h uma freqncia

    mdia de 15 membros. Entre aqueles com os quais conversamos, 18 no total, apenas um

    tem menos de 40 anos. Os demais esto em uma faixa etria que varia entre 40 e 73

    anos. Esse dado tambm confirmado por Garcia, que v nele um indcio de que a

    20 Garcia (2004: 60-61) observa que, no grupo Doze Tradies, no ano de 2002, 5 membros no chegaram a completar um ms de permanncia; 4 atingiram 9 meses; 18 esto entre 1 e 9 anos; 11 tm entre 10 e 19 anos; e 4 tm 20 e 29 anos de permanncia. Os motivos aventados para o afastamento de um membro do grupo so, segundo comentrios feitos por aqueles que permanecem, as chamadas recadas, situao em que o alcolico volta a beber, a mudana para outros grupos ou a busca por outras opes de tratamento.

  • 25

    maturidade fsica um fator relevante na percepo das perdas e na deciso de filiar-

    se associao (2004: 59 grifo do original).

    Todavia, se certo que a elevada faixa etria dos AAs um indicador de que a

    maturidade fsica favorece a percepo das perdas acumuladas durante o chamado

    tempo do alcoolismo ativo, isso se deve tambm ao fato de que o uso considerado

    abusivo do lcool provoca efeitos danosos no s ao organismo do alcolico, mas

    sobretudo, sua famlia. Logo, a elevada faixa etria parece tambm ser um indcio da

    percepo do elo existente entre os planos fsico e moral que a doena do alcoolismo

    envolve.

    Entre os membros que contatamos21, significativo o nmero de aposentados

    (seis), os quais ainda continuam trabalhando em atividades informais, chamadas de

    bicos, como forma de obter alguma renda. Destacam-se tambm cinco membros que

    no tm vnculo empregatcio formal: um marceneiro, dois pedreiros, um sapateiro e um

    taxista. Em nmero menor (trs), esto os que tm um emprego formal: um assistente

    administrativo, um motorista e um zelador. Entre as mulheres, duas so donas de

    casa, como elas prprias se consideram, uma funcionria pblica e uma est

    aposentada.

    A associao do uso de lcool s massas trabalhadoras constitui uma referncia

    consagrada no mbito das pesquisas relativas aos sistemas de classificao e s relaes

    de poder, que visam estabelecer formas de controle social sobre os membros das

    camadas populares22 (Neves, 2004: 11). Contudo, ao se priorizar a escolha de um grupo

    de A.A. sediado em um bairro popular, no se pretendeu, com isso, deduzir os

    significados elaborados em torno da doena do alcoolismo da condio social de seus

    membros. Trata-se sim, metodologicamente, de analisar, a partir de um caso concreto, o

    modo como a fala da doena articula e mobiliza elementos do universo social no qual os

    21 Como no foi possvel entrevistar todos os membros do grupo, os dados apresentados referem-se queles membros com os quais mantivemos contato nos dias em que participvamos das reunies de recuperao. 22 Para Neves (2004), um eixo de anlise muito recorrente aquele que associa o uso do lcool s massas trabalhadoras, enfatizando as situaes de precariedade socioeconmica, aglutinado-se em torno da equao pobreza, precariedade e alcoolismo, acabando por legitimar intervenes sobre esse contingente da populao. Com efeito, de um modo positivo, a associao tende a valorizar a relao entre precrias e adversas condies de trabalho e o uso sistemtico ou abusivo de lcool. De um modo negativo, a associao tende a consagrar a articulao entre o uso abusivo de bebida alcolica e a imprevidncia individual, incompatvel com desempenhos de papis de esposo, companheiro e pai (2004: 11).

  • 26

    AAs esto inseridos, permitindo-lhes atribuir um sentido experincia do alcoolismo,

    ao mesmo tempo em que definem uma compreenso prpria de si mesmos.

    Durante os depoimentos, os AAs destacam, sobretudo, as perdas acumuladas na

    vida em famlia, durante o perodo ativo do alcoolismo. A esfera familiar uma

    referncia fundamental para os membros do grupo. significativo que a maioria se

    tenha declarado casada. Entre os homens, nove se declararam casados, trs, solteiros, e

    um, vivo. Entre as mulheres, duas se declararam casadas e duas vivas. exceo dos

    solteiros, os demais declararam todos que tm filhos.

    A metodologia de pesquisa contou, fundamentalmente, com a realizao de

    entrevistas e com a observao de diversas atividades promovidas pela irmandade dos

    Alcolicos Annimos. Foram observadas as reunies de recuperao do grupo (ver

    captulo 3), alm de outras atividades promovidas pelo grupo, tais como: encontros,

    reunies de servios, reunies de unidade, reunies temticas, festas comemorativas do

    aniversrio do grupo etc. Nesses encontros, os AAs narram uns aos outros, em

    verdadeiros depoimentos pessoais, feitos em primeira pessoa e chamados de partilhas,

    suas experincias vividas antes e depois da entrada em A.A.

    J as entrevistas foram individuais e semi-estruturadas, e aconteceram, em sua

    maior parte, em 2001 e 2002. Como forma de se obter um melhor controle sobre os

    dados coletados, realizamos outras, no final do ano 2004 e incio do de 2005. Ao longo

    da pesquisa de campo, tambm foram entrevistados familiares de um dos AAs, sua

    esposa e suas duas filhas, com a finalidade de avaliar as representaes elaboradas sobre

    o lcool, o alcoolismo e o programa de A.A. e suas repercusses na vida familiar de um

    alcolico. Essas foram as nicas entrevistas fora da sala do grupo.

    A possibilidade de entrevist-los ocorreu a partir da relao de afinidade

    estabelecida entre mim e Jorge. Fui convidado a ir sua casa em um domingo para

    almoar e depois conversar com sua esposa e suas filhas sobre o problema que foi o

    alcoolismo. Fui recebido por sua esposa, que estava na cozinha, preparando uma

    galinhada e, logo que cheguei, fui alertado para no reparar na desarrumao,

    pois ela estava desde de cedo cozinhando. Esse encontro foi fundamental, pois me

    permitiu vivenciar um aspecto importante que ordena a convivncia cotidiana na famlia

    de um morador do distrito de Sapopemba. Ser convidado para um almoo um signo de

    distino, sobretudo, porque, como lembra Sarti (2005b: 61),

  • 27

    os papis familiares complementam-se para realizar aquilo que importa para os pobres, repartir o pouco que tm [...] Na mesma medida em que a alimentao a prioridade dos gastos familiares, oferecer comida tambm um valor fundamental, fazendo os pobres prdigos em oferec-la.

    Durante a conversa com sua esposa e suas filhas, Jorge se ausentou da sala, o

    que permitiu que elas ficassem vontade, como ele mesmo fez questo de frisar,

    para falar sobre os efeitos de seu alcoolismo na convivncia familiar. Essas entrevistas

    tambm foram semi-estruturadas, e os depoimentos foram todos transcritos. As entrevistas individuais e com os familiares de um alcolico foram

    fundamentais para a pesquisa, pois permitiram uma aproximao mais intensa com os

    membros do grupo. Com efeito, se, nas reunies, foi possvel delimitar a fala a respeito

    da doena no interior do modelo teraputico fornecido pela irmandade, nas entrevistas

    individuais foi possvel estabelecer um maior controle sobre os dados, de maneira a

    compreender o modo como os alcolicos elaboram uma compreenso prpria do

    programa de recuperao e de como este repercute em suas vidas, favorecendo a

    construo da identidade de doente alcolico em recuperao e, ao mesmo tempo, de

    uma noo particular de pessoa.

    1.3 Um no-alcolico em Alcolicos Annimos

    A realizao de um trabalho de campo, contudo, no se limita simples coleta

    de dados para a pesquisa. Como lembra Geertz (1989: 29), o etngrafo inscreve o

    discurso social em suas anotaes, transformando-o de acontecimento passado em um

    relato que existe em sua inscrio. O trabalho de campo nos coloca, assim, diante do

    universo do outro; e viver essa experincia da alteridade tambm implica um

    questionamento sobre ns mesmos.

    Vive-se, ento, uma situao complexa, na qual o necessrio engajamento

    exigido para a compreenso do ponto de vista dos nativos tambm traz consigo a

    problematizao da questo epistemolgica dos limites entre o pesquisador e o

    pesquisado. Isso se torna mais evidente quando estamos diante de um grupo que faz

    parte da mesma sociedade do pesquisador, a exemplo da irmandade de Alcolicos

    Annimos.

  • 28

    Desde de minha chegada ao grupo, pude sentir o impacto de estar adentrando um

    local onde eu representava o papel do diferente, do estranho; em uma palavra, do

    outro. Primeiramente, fui apresentado como professor e pesquisador a Paulo,

    poca secretrio geral do grupo, que me recebeu muito bem, oferecendo-me caf e

    bolachas.

    Mas logo percebi que minha presena chamava a ateno de todos, despertando

    sua curiosidade. Eles queriam saber sobre o que era o meu trabalho, como eu ficara

    sabendo da existncia de Alcolicos Annimos e do grupo e o porqu de meu interesse

    pelo alcoolismo. Meu amigo e Paulo me apresentavam a todos como professor e eu

    respondia s perguntas do modo mais direto e simples possvel, dizendo que tinha

    interesse em conhecer melhor o modo como a irmandade tratava o problema do

    alcoolismo e que iria escrever um livro sobre esse assunto. A princpio, essa resposta

    satisfez a todos, que passaram a me tratar como algum que ali estava para apreender o

    programa de A.A.

    Desde o primeiro momento, eu deixei claro quais eram meus interesses em

    participar das reunies do grupo. Todavia, o fato de eu ter sido apresentado ao grupo

    por algum que mantinha relaes com os alcolicos praticantes dos pass