ed. 152 - revista caros amigos

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ano XIII número 152 novembro 2009 R$ 9,90 Novo sítio: www.carosamigos.com.br ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ ARTURO HARTMANN CESAR CARDOSO CLAUDIUS DORA MARTINS EMIR SADER EDUARDO SUPLICY FANIA RODRIGUES FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JÚLIO DELMANTO LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO RENATO POMPEU TATIANA MERLINO DROGAS: AVANÇO DA DESCRIMINALIZAÇÃO publica dossiê falso de arapongas da ditadura Eduardo Galeano ENTREVISTA “Tentamos recuperar nossa própria voz” JOGOS OU NEGÓCIOS OLÍMPICOS? Os mortos vivos da “O Estado brasileiro continua matando muito” Juíza Kenarik CUTRALE “Tentamos recuperar nossa própria voz” ENTREVISTA

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Juíza Kenarik

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ano XIII número 152 novembro 2009R$ 9,90

ano XIII ano XIII ano número 152 número 152 número novembro 2009novembro 2009novembroR$ 9,90

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ ARTURO HARTMANN CESAR CARDOSO CLAUDIUS DORA MARTINS EMIR SADER EDUARDO SUPLICY FANIA RODRIGUES FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JÚLIO DELMANTO LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO RENATO POMPEU TATIANA MERLINO

DROGAS: AVANÇO DA DESCRIMINALIZAÇÃO

publica dossiê falso de arapongas da ditadura

Eduardo Galeano

ENTREVISTA

“Tentamos recuperar nossa própria voz”

JOGOS OU NEGÓCIOS OLÍMPICOS?

Os mortos vivos da

“O Estado brasileiro continua matando

muito”

Juíza Kenarik

CUTRALE

“Tentamos recuperar nossa própria voz”

ENTREVISTA

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Sem título-2 1 20/07/09 14:3645-Anuncio_bno_152.indd 44 27.10.09 21:48:48

7setembro 2009 caros amigos

Num país em que a maior parte do Judiciário atua em sintonia com os interesses das elites dominantes, a juíza Kenarik Boujikian Felippe, do fórum criminal de São Paulo, é uma grata exceção. Na entrevis-ta que deu para a equipe de Caros Amigos, ela tratou vários assuntos delicados com muita sensibilidade e serenidade. Deu um show de vi-são humanista e de compromisso com os mais pobres e discriminados na sociedade. Falou sobre a situação das mulheres presas, o perfil dos jovens “criminosos” que passam pelos tribunais, as vítimas da vio-lência e as práticas da tortura largamente utilizadas pelos agentes do Estado. Kenarik não separa os males da Ditadura Civil Militar (1964-1985) das atuais violações dos direitos humanos no Brasil.

No sul do continente, a repórter Fania Rodrigues conseguiu en-trevistar o jornalista e escritor Eduardo Galeano, num café de Mon-tevidéu. Ele só topou a conversa, conforme explicou, numa deferên-cia especial a Caros Amigos. Galeano fala sobre o atual momento da América Latina, seus livros e sua vida – como sempre com a lucidez inesquecível das Veias Abertas da América Latina.

Depois de um mês de rigorosa apuração dos fatos, junto a inte-grantes da Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário, a repór-ter Lúcia Rodrigues conseguiu desvendar boa parte do caso do dossiê falso montado por ex-policial contra um diretor da Agência Nacio-nal do Petróleo. O caso repete padrões de outros “escândalos” vei-culados pela grande imprensa de direita, mais precisamente a revis-ta Veja, do Grupo Abril, o que comprova uma curiosa ligação entre arapongas da Ditadura Militar com determinados jornalistas e empre-sas de comunicação.

Temos ainda boas reportagens sobre os jogos olímpicos do Rio de Janeiro, a descriminalização das drogas, os monopólios do Vaticano e a gravíssima situação dos refugiados palestinos reassentados no Bra-sil. Vale registrar que a Caros Amigos conquistou dois prêmios prin-cipais na última edição do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Vá em frente!

CAROS AMIGOS ANO XIII 152 NOveMbRO 2009

EDITORA CASA AMARELA ­Revistas­•­LivRos­•­seRviços­editoRiaisfundadoR:­séRgio­de­souza­(1934-2008)diRetoR­geRaL:­WagneR­nabuco­de­aRaújo

EDITOR: hamilton Octavio de souza EDITORa aDjunTa: Tatiana Merlino EDITOREs EsPECIaIs: josé arbex jr. e Renato Pompeu EDITORa DE aRTE: Lucia Tavares assIsTEnTE DE aRTE: henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRaFIa: Walter Firmo REPÓRTER EsPECIaL: Marcos Zibordi REPÓRTER: Lúcia Rodrigues CORREsPOnDEnTEs: Marcelo salles (Rio de janeiro) e anelise sanchez (Roma) sECRETÁRIa Da REDaÇÃO: simone alves REvIsOR: Ruy Luduvice DIRETOR DE MaRKETInG: andré herrmann PuBLICIDaDE: Melissa Rigo CIRCuLaÇÃO: Pedro nabuco de araújo RELaÇõEs InsTITuCIOnaIs: Cecília Figueira de Mello aDMInIsTRaTIvO E FInanCEIRO: Ingrid hentschel, Elisângela santana COnTROLE E PROCEssOs: Wanderley alves LIvROs Casa aMaRELa: Clarice alvon síTIO: Lúcia Rodrigues aPOIO: Maura Carvalho, Douglas jerônimo, Edcarlos Rodrigues e neidivaldo dos anjos aTEnDIMEnTO aO LEITOR: Lília Martins alves, Zélia Coelho assEssORIa juRíDICa: Marco Túlio Bottino, aton Fon Filho, juvelino strozake, Luis F. X. soares de Mello, Eduardo Gutierrez e susana Paim Figueiredo REPREsEnTanTE DE PuBLICIDaDE: BRasíLIa: joaquim Barroncas (61) 3328-8046.

jORnaLIsTa REsPOnsÁvEL: haMILTOn OCTavIO DE sOuZa (MTB 11.242)DIRETOR GERaL: WaGnER naBuCO DE aRaújO

CaROs aMIGOs, ano XIII, nº 152, é uma publicação mensal da Editora Casa amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de são Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DInaP s/a - Distribuidora nacional de Publicações, são Paulo. IMPREssÃO: Bangraf

REDaÇÃO E aDMInIsTRaÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, são Paulo, sP

sumárioFoto de capa Jesus carlos

O que realmente importa

04 Guto Lacaz.

05 Caros Leitores.

07 José Arbex Jr. faz a apropriada ligação entre a fome no mundo e o agronegócio.

08 Joel Rufino dos Santos rememora a escritora carolina Maria de Jesus.

Guilherme Scalzilli analisa o discurso porcino da grande mídia conservadora.

09 Ferréz relata o dramático despejo das famílias em terreno do capão redondo.

10 Marcos Bagno esclarece por que há alguns erros mais errados do que outros.

Mc Leonardo desmonta entrevista de pesquisadora no programa do Jô soares.

11 Glauco Mattoso Porca Miséria.

Eduardo Matarazzo Suplicy defende a distribuição da renda e a reforma agrária.

12 entrevista Kenarik Boujikian Felippe “o estado brasileiro continua matando”.

18 Frei Betto analisa a ética política e a crise teórica e prática das esquerdas.

Fidel Castro comenta a 7ª reunião de cúpula e os avanços da alBa.

19 Renato Pompeu e suas memórias de um jornalista não investigativo.

Ana Miranda exalta as belezas naturais e históricas do delta do Parnaíba.

20 Premio Jornalístico Vladimir Herzog de anistia e Direitos Humanos.

21 Cesar Cardoso desvenda todos os mistérios e imagens da era do remorrimento.

22 Maria Lucia Fattorelli cPI deve mostrar quem se beneficiou da Dívida Pública.

23 Gilberto Vasconcellos defende renacionalizar a Petrobras

24 Dora Martins ensaio Fotográfico sobre o povo e a vida no Timor-leste.

26 Marcelo Salles registra as dúvidas sobre os Jogos olímpicos do rio de Janeiro.

28 Lúcia Rodrigues revista Veja desova serviço sujo de arapongas da ditadura.

32 Gershon Knispel denuncia a falsificação da História pela revista superinteressante.

34 entrevista Eduardo Galeano fala sobre os novos movimentos da américa latina.

38 Julio Delmanto aponta as mudanças no enfrentamento da questão das drogas.

40 Anelise Sanchez mostra os privilégios do Vaticano junto ao estado italiano.

42 Arturo Hartmann relata os problemas dos palestinos reassentados no Brasil.

44 João Pedro Stedile abre espaço para manifesto em memória de Marighella.

Emir Sader fala sobre as bases para a construção do socialismo do século 21.

45 Renato Pompeu Idéias de Botequim.

46 Claudius

ano XIII número 152 novembro 2009R$ 9,90

ano XIII ano XIII ano número 152 número 152 número novembro 2009novembro 2009novembroR$ 9,90

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ ARTURO HARTMANN CESAR CARDOSO CLAUDIUS DORA MARTINS EMIR SADER EDUARDO SUPLICY FANIA RODRIGUES FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JÚLIO DELMANTO LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO RENATO POMPEU TATIANA MERLINO

DROGAS: AVANÇO DA DESCRIMINALIZAÇÃO

publica dossiê falso de arapongas da ditadura

Eduardo Galeano

ENTREVISTA

“Tentamos recuperar nossa própria voz”

JOGOS OU NEGÓCIOS OLÍMPICOS?

Os mortos vivos da

“O Estado brasileiro continua matando

muito”

Juíza Kenarik

CUTRALE

“Tentamos recuperar nossa própria voz”

ENTREVISTA

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5novembro 2009 caros amigos

FerrézGostaria de parabenizar a Caros Amigos nº149,

pois seu conteúdo encontra-se imperdível. Que-ro destacar o texto intitulado O Grande Assalto de Ferréz. Ficção ou não, esse texto conta a realidade que estamos vivendo. Enquanto um homem maltra-pilho para em frente a uma loja, que supostamen-te poderia “roubar”, mas sem ter a menor condição, outros em seu carro ou do pai de luxo, estão fazen-do sua correria e abastecendo a molecada do colé-gio. Isto me lembra um som do Racionais Mc´s, que delata esta contradição, “vamos passear no parque”. O que é estranho em São Paulo e principalmente em Santo Amaro, é que a população ainda não se acos-tumou com as pessoas andando maltrapilhas, pois a maioria ainda é da periferia. Alberto DaCosta morava na zona sul de São Pau-lo e agora vive no interior do Estado.

Caros amigosDesde 2008, meu marido e eu compramos a

Caros Amigos na livraria Siciliano. Não a co-nhecíamos, mas um amigo intelectual nos indi-cou sua leitura. De fato, seus artigos são excelen-tes! Não perco as questões linguísticas de Marcos Bagno. Sou professora da escola pública e sem-pre digito ou fotocopio alguns artigos e levo para as salas de aula de leitura e produção de texto. Em geral, solicito um resumo, comentário ou dis-sertação, às vezes oral, outras vezes escrito. Es-ses textos têm interessado aos alunos. Penso que partilhando Caros Amigos na sala de aula esta-mos formando cidadãos mais conscientes. Para-béns pelo trabalho de vocês!Luiza de Marilac S. Rôla, Eusébio/CE.

Dia 14 de agosto, por volta das 16h, recebi

uma ligação, uma voz que dizia: “Sr. Márcio, es-tamos ligando para o senhor porque é um clien-te muito especial”. Perguntei quem estava falan-do, e a mulher do outro lado da linha respondeu que era uma empresa responsável por vendas de assinaturas da Editora Abril. Começou a conver-sa perguntando se eu era assinante de alguma re-vista, ao que respondi que tinha a assinatura da

Caros Amigos. Prontamente, a mulher pergun-tou se eu era jornalista. Disse que não. Então, em mais uma investida, perguntou se eu era fun-cionário público, momento em que respondi que sim. Questionada sobre o tipo de pergunta sobre a Caros Amigos, a voz me respondeu: “normalmen-te quem assina essa revista é jornalista ou fun-cionário público”.

Como pode uma funcionária de uma editora ta-char nossa publicação de revista para jornalista ou funcionário público? Será que o conteúdo não in-teressa a mais nenhum outro profissional da so-ciedade brasileira? Será que os temas abordados não deveriam ser de conhecimento geral? Ou cabe aos que não se encaixam nessa denominação le-rem receitas para ficar com o corpo perfeito? Saber das fofocas dos famosos? Até o presente momen-to nunca fui um leitor participativo mas, a partir desse acontecimento narrado, senti a necessidade de compartilhar com vocês essa experiência. Não podemos ser culpados por querer qualidade e por buscarmos onde ela realmente existe.Márcio Machado, Carangola/MG.

até quando?Quero por meio desta coluna mostrar minha

total indignação com o governo do Estado de São Paulo, que é comandado por décadas pelo mesmo partido, o PSDB. Que estamos em crise, todos sa-bem, não é verdade? Mas será que alguém avisou a eles? Não é possível que em uma recessão da-nada destas venha o governo que ajuda multina-cionais, bancos entre outros, e joga aumento de pedágio na tarifa, como nas praças. Rodo na re-gião de Campinas, sou autônomo e vejo cada ver-gonha... A começar, na minha cidade, Indaiatu-ba, temos praça de pedágio em uma pequena rua que, antes de dar acesso à rodovia. Pra eu ir de Mogi Guaçu, onde tenho comércio, a São Paulo, gasto mais de pedágio do que de combustível. Já pagamos o IPVA mais caro entre os estados da União, e ainda vem este governo burguês autori-tário e rasga a Constituição, instalando praças de pedágio como bem quiser, com a distância que ele achar correta.

Caros leitores

Nov

o sí

tio:

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w.c

aros

amig

os.c

om.b

rfale conosco

O quanto isso acarreta no aumento dos pre-ços de quase tudo que consumimos, o quanto isso isola cidades do interior umas das outras, empo-brecendo a relação comercial entre elas.

Por favor, brasileiros de bem, acordem. Vamos nos unir e lutar não só nas urnas como nas ruas. Fé em Deus, resistência e luta.Wagner Kendziorek Menezes, São Paulo/SP.

a história se repeteSempre a mesma história. Independente da mo-

tivação, e nem quero entrar nesse mérito da ques-tão, mas é pobre tomando porrada da PM, bombas de gás, tropa de choque. Sempre nas favelas, que todos sabemos (uns fingem não saber), tem a sua predominante maioria de trabalhadores sem con-dições de uma moradia melhor. Sempre na fave-la, sempre força máxima. Tá bom, vão dizer que a PM não vai entrar com rosas na favela (assista “Tropa de Elite”, “Carandiru” e até o péssimo “Rota Comando”), mas bala perdida e gente inocente pa-gando é o que mais tem. Ontem foi em Heliópolis, uma garotinha, amanhã, onde vai ser ? Alessandro Buzo, São Paulo/SP.

Cultura na periFeria Parabéns pela reportagem. (A tropicália da

periferia, edição 151) Lindo, lindo tudo isso que está acontecendo aí na periferia de São Paulo. Acredito que várias pequenas ações desse tipo é que mudarão nosso mundo cão e transformarão nossas realidades sociais. Transmita meu abraço fraterno aos irmãos da periferia de Sampa. Qual-quer dia apareço por aí para aprender com essa galera e trazer essa energia para nosso trabalho aqui na Amazônia. Jonas Banhos, Movimento NossaCasa de Cultura e Cidadania, Amapá.

Escrevo para parabenizá-los pela reportagem:

A tropicália da periferia, Excelente texto, para-béns. Ótima matéria de um assunto “esquecido” por outros veículos de imprensa. Ser “mano” não é ser bandido. Alguns moram em mansões, outros em quebradas, mas todos merecem o mesmo res-peito. Seria bom se todos soubessem disso.Paulo Cezar Monteiro, Bauru/SP

redação

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caros amigos novembro 2009 6

diFamação A Caros Amigos publica carta de Ana Corbi-

sier endereçada à revista Veja em resposta à ma-téria “O esquema do bolsa guerrilha”, veiculada na edição de 14 de outubro do semanário. De acordo com a autora da carta, a matéria é difamatória e reúne uma série de informações incorretas.

“Carta aberta à Revista Veja

Senhores, foi com espanto que li a matéria da jornalista Sandra Brasil, publicada no exemplar datado de 14 de outubro de 2009, “O esquema do bolsa guerrilha” (sic). Nos termos da Lei de Im-prensa, solicito que esta carta-resposta seja pu-blicada em espaço equivalente àquele em que foi publicada a matéria.

Correções:1. “Agora, posa de vítima para receber indeni-

zação de 70 milhões de reais”.Conforme esclareci à jornalista, por telefone, o

valor da minha causa, depois de 27 anos na Justi-ça, está muito longe dos 70 milhões de que fala a matéria. Assim, muito me estranha que a Funda-ção Padre Anchieta tenha chegado a esta cifra, que vai tão contra os seus interesses.

2. Presidência da República – Secretaria Geral (1995)

Como o documento que faz parte da matéria foi rasgado, a impressão que fica do que foi mon-tado é que eu matei pessoas, o que, como decla-rei à Comissão da Anistia, em 1995, nunca acon-teceu.

Esclarecimentos:1. “...por ter abandonado o emprego para pegar em armas”. “E o que a fundação tem a ver com isso? Nada...”

Em 1969, o Prof. Soares Amora, diretor da Fundação Padre Anchieta, que fora meu chefe na Diretoria de Ensino daquela Fundação, preo-cupado com minha segurança, recomendou que eu não voltasse ao trabalho, pois “a polícia es-teve aqui e deu uma batida em sua mesa” (pa-lavras dele). Pedi, então, formalmente, uma li-cença para tratamento de saúde, visando evitar a prisão, como faculta a Lei brasileira, a tortu-ra e, talvez, a morte. Ou seja, não “abandonei o emprego”, mas fui orientada e obrigada a afas-tar-me, sob pena de ter a mesma sorte do jor-nalista Wladimir Herzog, também funcionário do Canal 2.2. Processo na Justiça X Comissão de Anistia

Atendendo ao que me permitia a Lei da Anistia, promulgada em agosto de 1979, soli-

citei reintegração a meu cargo na TV Cultura. O mesmo Prof. Soares Amora, já então seu presi-dente, recusou minha reintegração. Estávamos ainda no Governo Maluf e a Fundação recusou também o outro direito que a Lei da Anistia me dava, o de contar os dez anos em que estive-ra fora como tempo para aposentadoria. Assim, como não existia Comissão de Anistia, fui obri-gada a entrar na Justiça para obter esta conta-gem de tempo.

Em 1989, já no governo do PMDB, tentei um acordo com a Fundação. Ouvi do Sr. Roberto Muylaert, então presidente do Canal 2: “libero seu Fundo de Garantia, mas o processo continua na Justiça”.

Nos anos seguintes, tentei uma audiência com o presidente seguinte, Sr. Jorge da Cunha Lima, que se recusou a receber-me. Encontrando-o ca-sualmente, em uma exposição, ainda durante seu mandato, ouvi dele: “isso (referindo-se ao meu processo) é uma bobagem”, o que faz crer que, para a Fundação, esse processo representava algo insignificante e não os milhões de que fala a ma-téria da Veja. Ou seja, não consegui nunca resol-ver a questão por meios amigáveis e o processo continuou seu percurso.

Em 1995, tendo o processo mais de dez anos percorrendo várias instâncias, varas, cidades (São Paulo e Brasília), e tendo sido criada a Comissão da Anistia, recorri a ela, solicitando a indenização a que tinha direito. Depois de muitos anos em que a Fundação Padre Anchieta sempre se recusou a informar, inclusive à própria Comissão da Anis-tia, o valor do salário de um produtor em fim de carreira, para cálculo da indenização, este cálculo foi feito com base no salário da TV Educativa de Brasília, muito inferior ao de São Paulo (enquan-to em maio de 2003, em São Paulo um produtor da TV Educativa ganhava R$ 3.500,00, em 2007, um produtor, em Brasília, ganhava R$ 2.744,00). Seja como for, a indenização que passei a rece-ber é paga pelo Tesouro Nacional, nada tendo a ver com os recursos da Fundação Padre Anchie-ta. Mas, se eu vier a ganhar o processo, é de su-por que o valor que eu já tenha recebido seja des-contado daquele a que vier a fazer jus.2. “O dado irônico é que, em 1987, uma das tes-temunhas no processo foi seu amigo, Aloysio Nu-nes Ferreira, hoje secretário da Casa Civil do go-verno José Serra...”

O Dr. Aloysio Nunes Ferreira foi de fato mi-nha testemunha; solidário e democrático como é, nunca faltou aos que a ele recorreram, indepen-dentemente de suas ideias e do partido a que per-tencessem.3. “... aderiu à luta armada como forma de com-

bater o regime militar e instaurar uma ditadura comunista no Brasil”.

Durante os anos que passei em Cuba, pre-parando-me para enfrentar a ditadura mili-tar vigente no Brasil, conheci uma organiza-ção social diferente, que mesmo em um país pobre, acabara com a miséria, a extrema de-sigualdade, a população de rua, as favelas, as crianças sem escola, situações que, aqui, em meu país, me incomodavam e me incomo-dam muito. Enquanto isso, os militares, aqui, treinavam técnicas de tortura com os norte-americanos, no contexto da Operação Con-dor. Documentos do SNI, como o que faz parte da matéria da Veja, eram elaborados a partir de informações obtidas sob tortura ou de ele-mentos infiltrados, o que lhes tira valor como fonte de dados.

4. “Eles não estavam fazendo uma rebelião, mas um investimento. É o bolsa guerrilha”.

Fiz um “investimento”, como afirma a ma-téria, citando Millôr Fernandes (quem diria?) – um investimento no futuro de meus filhos, en-tão com 4 e 7 anos, e das crianças deste país, inclusive, provavelmente a jornalista Sandra Brasil porque, para mim, era inadmissível que vivessem sob a ditadura militar que se implan-tara no Brasil em 1964. Provavelmente, se não fosse a nossa luta e os horrores praticados pe-los militares no poder e que culminaram com o assassinato sob tortura do jornalista Wladi-mir Herzog, a Sra. Sandra Brasil não poderia educar ou vir a educar seus filhos em uma de-mocracia.

5. “Não se tem notícia de que ela tenha sido pre-sa ou torturada”.

Não fui presa, felizmente, mas não desejo a ninguém, nem à jornalista Sandra Brasil, a tortura de viver dez longos anos longe dos fi-lhos, não acompanhando sua alfabetização, in-fância e adolescência, com pavor que qualquer contato comigo viesse a transformá-los em re-féns dos militares, como estes fizeram com ou-tras crianças, cujos pais também lutavam por um Brasil melhor.Ana Corbisier, São Paulo/SP.

errataO correio eletrônico de Irene Margarida La-

jos Kemp, autora do livro “Nos Braços da Lou-cura”, citado na coluna “Idéias de botequim”, de Renato Pompeu (ed. 150) é [email protected] e não o mencionado na edição de setembro da Caros Amigos.

Caros leitores

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7novembro 2009 caros amigos

José Arbex Jr.

“Pela primeira vez na história, mais de 1 bilhão de pessoas estão subnutridas no mundo intei-ro. Isso representa cerca de 100 milhões a mais do que no ano passado e significa que uma a cada seis pessoas passa fome todos os dias. Este recente au-mento da fome não tem sido consequência das fracas colheitas a nível global, mas sim resultado da crise econômica mundial, que tem reduzido rendas e opor-tunidades de emprego, assim como o acesso aos ali-mentos por parte da população mais pobre. (...) A cri-se espreita os pequenos agricultores e as áreas rurais onde trabalham e vivem 70% das pessoas que pas-sam fome no mundo.”

O diagnóstico é feito por Jacques Diouf, diretor geral da FAO (órgão da ONU para a agricultura e alimentos), durante a celebração do Dia Mundial da Alimentação (16 de outubro). Trata-se de uma crise “sem preceden-tes” na história mundial, afirma Diouf: entre 2006 e 2008, observou-se um aumento contínuo dos alimen-tos básicos. Notem a ironia: justamente nas áreas rurais, aquelas responsáveis pela produção de alimentos, “vi-vem 70% das pessoas que passam fome no mundo.”

“Na África Subsaariana, 80 a 90% de todos os pre-ços dos cereais monitorados pela FAO em 27 países, continuam sendo 25% mais altos do que antes do co-meço da crise dos alimentos, dois anos atrás. Na Ásia e na América Latina e o Caribe, os preços são monitora-dos num total de 31 países, e entre 40 e 80 % do pre-ço dos cereais mantêm mais de 25 % mais alto do que no período pré-crise dos alimentos. E a nível local, em alguns países, os preços dos alimentos básicos não so-freram qualquer tipo de baixa. Além disso, a produção continua sendo obstruída pelo aumento do custo dos insumos, – 176 % no caso dos fertilizantes, 70% se-mentes, 75% ração para os animais, tornando o inves-timento na agricultura extremamente difícil.”

O que Diouf não diz diretamente, mas apenas nas entrelinhas de uma linguagem diplomática que cau-sa náuseas, é que a razão para o aumento da fome e da subnutrição, especialmente no campo, é bastante simples: a crescente concentração de riqueza, tradu-zida na implantação de vastos latifúndios que explo-ram monoculturas. Se aumenta a produtividade do campo mediante o uso de tecnologias cada vez mais sofisticadas – afirmação, aliás, que deve ser analisada com muita cautela –, piora muito a situação de quem não tem acesso a essas mesmas tecnologias.

Um singelo dado, também divulgado pela FAO, mostra isso com grande clareza: em franco con-traste com o crescimento da fome, da subnutrição e da pobreza nas áreas rurais, há um próspero cresci-mento das vendas de máquinas agrícolas cada vez mais sofisticadas, muitas delas guiadas por robôs orientados via satélite (com o sistema GPS). Entre 2000 e 2005, o comércio mundial de máquinas agrí-colas cresceu à razão de 6% ao ano, muito mais do que a produção de comida no mesmo período (2,6% aa) e o da população mundial (1,2% aa). Entre 2005 e 2010, prevê-se um crescimento respectivo de 4,8%, 2,5% e 1,1%. Em termos absolutos, a demanda glo-bal por máquinas agrícolas cresceu de 53 bilhões de dólares em 2000 para 70 bilhões em 2005 e deverá chegar a 88 bilhões de dólares em 2010.

Mesmo levando-se em conta que as compras de máquinas pela Índia e pela China são, em boa parte, responsáveis pelo crescimento do setor, é óbvio que existe uma relação direta entre a crescente meca-nização da agricultura e o aumento da fome, como consequência da concentração da propriedade e da renda. Nas grandes culturas mecanizadas, um único trabalhador pode cultivar cerca de 200 hectares, com altíssimo índice de produtividade (medido em tonela-das de cereais por trabalhador por ano), graças a in-vestimentos em tecnologia, bioquímica, seleção de sementes etc. Em contrapartida, menos da metade dos trabalhadores rurais dispõe de tração animal para tocar suas culturas, e cerca de 1/3 estão completa-mente à margem da “revolução verde”. São os cam-poneses pobres que formam o vasto exército de se-res humanos forçados, quando podem, a vender sua força de trabalho por valores aviltantes em grandes plantações (não raro, os “salários” situam-se no limi-te de dois dólares diários, valor que serve de parâme-tro de linha de pobreza para o Banco Mundial).

É óbvio que ninguém propõe, aqui, a destruição das máquinas e a volta à agricultura ru-dimentar como solução para a fome. Trata-se de fa-zer exatamente o oposto: colocar a máquina a servi-ço do ser humano. Para isso, comida teria que deixar de ser tratada como commodity, artigo de especula-ção negociado em mercados futuros, sem qualquer re-lação com a demanda real da população. O comércio da comida deveria ser submetido ao primado da segu-rança alimentar, priorizando o ser humano e não o lu-

cro. Mas, no pé em que está o “mercado globalizado”, a FAO há tempos admite a barbárie: a Cúpula Mundial da Alimentação definiu, em 1995, o objetivo de reduzir pela metade, até 2015, o número de pessoas que pas-sam fome no mundo. E o que fazer com a outra meta-de? Atenção: estamos falando de 500 milhões de seres humanos condenados à morte por fome (isto é, se fos-se mesmo possível mitigar as demandas de proteína da outra metade, hipótese cada vez mais longínqua).

É esse, concretamente, o contexto em que atu-am a Cutrale (grileira de terras públicas, exportadora de suco de laranja e superexploradas do trabalho de seus empregados) e outras agroempresas. Elas não têm nada que ver com a “alimentação do povo brasileiro” ou de quaisquer outros povos, como quer fazer crer a asquerosa campanha de mídia destinada a criminali-zar o MST pela ocupação das terras da Cutrale. São empresas que se destinam ao ramo da especulação fi-nanceira, como qualquer banco ou corretora da bolsa de valores, com o agravante de que operam com uma mercadoria sagrada, o alimento, e exploram aquilo que deveria ser tratado como um bem comum: a terra.

A “mídia gorda” e seus especialistas ocul-tam a profunda, total e inegável relação entre a espe-culação com o alimento e a tragédia que envolve 1 bi-lhão de seres humanos famintos (e mais de 2 bilhões em estado de subnutrição e expostos a todo o tipo de doenças e epidemias causadas pela falta de proteí-nas). Eles produzem, assim, uma total inversão de va-lores: são criminosos os que lutam em defesa do mais sagrado dos direitos humanos, o direito à vida, e são tratados como vítimas (e heróis) os monstros, os car-rascos, os que especulam com a comida. Não há limi-te para a canalhice.

A “mídia gorda” fez absoluta questão de ocultar a reivindicação central do MST no “caso Cutrale”: a formação de uma comissão de investigação, integra-da por personalidades respeitadas por toda a socie-dade, para apurar a verdade dos fatos. Os donos da mídia sabem que isso não pode acontecer. Não está em jogo, apenas, saber se o MST destruiu ou não meia dúzia de pés de laranja, mas sim o significado do agronegócio para o Brasil e para o mundo. 1 bilhão de mortos vivos serviriam de testemunha de acusa-ção em tal julgamento.

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José Arbex Jr. é jornalista.

1 bilhão de mortos-vivoscoNtra as cutrales do muNdo

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caros amigos novembro 2009 8

Guilherme Scalzilli

Em 1960, editado por Audálio Dantas, en-tão repórter de O Cruzeiro, apareceu Quar-to de despejo, de Carolina Maria de Jesus. Em uma semana vendeu dez mil exemplares. Hoje, para economizar estatística, já deve ter batido o 1 milhão de exemplares, traduzido em 13 línguas, pelo menos, adaptado para te-atro, cinema, televisão, adotado em universi-dades norte-americanas.

O Brasil foi o túmulo de Quarto de despe-jo. Por quê?

A razão mais comum que se dá é que ela desagradou aqui à direita e à esquerda. À pri-meira porque expunha misérias, à segunda porque a expunha sem falar em socialismo.

Os tempos eram de agitação, eufemis-mo para aceleração da história, assustado-ra para a direita, benfazeja para a esquerda. Desde o suicídio de Getúlio, para demarcar com o fato mais conhecido, a sociedade bra-sileira começara a mudar, rapidamente, ou-tra vez. Em todos os níveis, na sua face in-terna como na externa. Sem bola de cristal ninguém adivinharia o golpe que fecharia aquela agitação. (Ninguém em termos, em 1960 a favelada “metida a escritora” avisou: “se o custo de vida continuar assim, teremos uma revolução em breve”).

A agitação arrastou o que chamávamos de massa: líderes proletários, da cidade e do campo, eminências estudantis, jornalistas, in-telectuais, pequenos empresários de capital nacional, comunistas antigos e novos, padres progressistas. Entre eles, vaga a memória afe-tiva de cada um de nós. A minha, por exem-plo, retira de lá o Vianinha, co-fundador do Teatro de Arena, de São Paulo, do CPC e, mais tarde, do seriado de televisão “A Grande Famí-lia”. Vianinha amava Odete Lara, terminaram, ela não queria um namorado que pensava em política 24 horas por dia, ele pediu:“Volta, Dete, o amor faz parte da luta anti-imperialis-ta”. Difícil de explicar a um jovem de 2009.

Audálio Dantas descobriu Carolina numa reportagem sobre a favela do Canindé, em São Paulo, mais ou menos onde está hoje o estádio da Portuguesa. Ela ameaçou mar-manjos que usavam brinquedos de criança: “Boto vocês no meu livro!”. Audálio se inte-ressou porque estava ligado no que se cha-mava, então, lutas sociais, tomava parte de-las. Mexeu pouco nas dezenas de cadernos

que a escritora lhe mostrou no barraco atu-lhado de sacos de lixo, um ponto, uma vírgu-la, uma palavra incompreensível.

Carolina foi admirável escrevinhadora, gra-fomaníaca, em jargão psicológico. Microfilma-dos na Biblioteca Nacional são quatro peças, dois romances, centenas de poemas, provér-bios, conselhos, comentários sobre o cotidia-no e o mundo. Mais de 5 mil escritos.

Nem todo escrevinhador se eleva a escri-tor. Ela se elevou em alguns momentos, so-bretudo nos dois diários, Quarto de despejo e Casa de alvenaria, este editado por sua pró-pria conta. Neles, brilha a condição do ver-dadeiro escritor: aquele que tem algo a dizer sobre a vida do homem e o diz para todos os homens entenderem.

amigos de papelJoel Rufino dos Santos

Guilherme Scalzilli, historiador e escritor. Au-tor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com

Carolina e Dete

O caráter porcino

Joel Rufino é historiador e escritor.

Alguns comentaristas orgu-lham-se em qualificar sua oposição ao gover-no Lula como “espírito de porco”. A expressão dispensa comentários: calcada na suposta luci-dez contestadora, tenta dissimular (e patetica-mente evidencia) uma essência antidemocráti-ca muito semelhante à do udenismo golpista dos anos 1960.

O fenômeno tem porta-vozes identificáveis, por exemplo, nas tentativas de politização da tragédia com o avião da TAM, dois anos atrás. Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo (Veja), Dora Kramer (Estadão), Ali Kamel (Globo), Jor-ge Forbes, Márcia Tiburi e Betty Lago (GNT), Míriam Leitão e Merval Pereira (CBN), Eliane Cantanhêde e Danuza Leão (Folha) responsabi-lizaram as autoridades federais, antes de qual-quer investigação, aproveitando a dor genera-lizada para pedir o afastamento de ministros e até do presidente da República. Certo Francisco Daudt chegou ao cúmulo de afirmar que “o go-verno assassinou mais de 200 pessoas”.

Esses personagens promovem muitas outras unanimidades abjetas, escora-dos na pretensa modernidade do conservadoris-mo cínico e moralista que já alcança hegemonia mundial. À parte os vícios ideológicos e o prose-litismo partidário, suas mensagens são perigo-sas porque, misturando pruridos elitistas, fascí-nio cosmopolita e farisaísmo ético, resultam em desprezo pelas instituições republicanas.

Esse subtexto explica por que o discurso por-cino soa tão uniforme, embora cheio de con-tradições. Há uma lógica nefasta em atacar ao mesmo tempo as mordomias e as festas juninas palacianas, o “bolsa-esmola” e os privilégios do capital, o nacionalismo e a subserviência, as im-propriedades verbais e o destaque internacional de Lula. Trata-se de negar a própria legitimidade do mandatário que comete a ousadia de ser “po-pular” (na dupla acepção da palavra), revelando um país que seus adversários detestam.

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9novembro 2009 caros amigos

Ferréz

O ambiente, se é assim que podemos cha-mar, é desolador, no lugar que um dia foi a favela Portelinha, no Capão Redondo, extremo sul da cidade de São Paulo, entulhos ainda pegam fogo e os mora-dores se alojaram ao lado, numa encosta do morro.

A mídia mente, dizendo que as pessoas estão me-lhores que nas condições precárias em que moravam. Mentira!

Melhores como? Morando em casas de 1m de altura, feitas com restos do que um dia fo-ram móveis?

São mais de cem famílias que estão no morro, centenas de crianças, tem barraco de 1,5m de largu-ra que tem três famílias. Nenhum barraco tem a es-trutura que um da favela já teve. Não tem água, ge-ladeira e nem fogão, pois foi proibido para não dar risco de incêndio na favela improvisada.

As pessoas acendem velas à noite. Passei de barraco em barraco com os donativos, de cada três um não tem colchão, os filhos e as mães dor-mem em tapetes.

Um morador me parou e falou: “Sabe onde você tá pisando? Era minha casa”. Eu olhei, era um monte de entulho. Alguns perguntam como fazem para tirar documento, já que os deles queimaram. Levamos uns advogados ontem para ver o que podia ser feito. Eles disseram que a mídia noticiou que as famílias não queriam ir para o albergue. Eu perguntei se ele sabia como funcionava um albergue. Ele disse que não.

Então expliquei, falei que um colchão, uma TV, um aparelho de som, nada disso entra no alber-gue. Falei que ninguém quer por os filhos pra acor-dar e dormir ao lado de gente que não conhece, que ninguém quer deixar a esposa num albergue para ir trabalhar, e que albergue tem número limite de per-manência. É tanta regra que ninguém consegue se-guir. Ele também não iria para albergue depois de tudo que falei.

Ontem foi o dia de ir levar algumas coisas para os moradores, que agora estão na encosta da favela, que

é agora um amontoado de madeira, plástico e gente. Vi senhoras dormindo em casas de um metro de al-tura, com nove filhos, e a gente tem que se segurar para não se derramar.

Quando fomos a Casa do Zezinho buscar os cobertores e alimentos doados por eles, a Dag fa-lou que também recolheram dinheiro. Foi com esse dinheiro que fomos para o Roldão.

Chegando no acampamento, quase fomos saque-ados. Uma moradora quase pegou uma outra na por-rada quando ela pegou um pão nosso, disse que ela já havia comido dois pães naquele dia, eu me segurei para não chorar. Dois pães...

Levamos cobertores, leite, bolachas, e bananas e maçãs, mas foi tão pouco, que a gente teve que sair ligando pra todo mundo. Eu liguei pra tanta gente, pedi mesmo, na cara de pau. Sem papas na língua, liguei para o fornecedor, para amigo, para empresa. Hoje chegam algumas coisas nas lojas pra gente mandar pra lá. Então, com o dinheiro na mão, fomos eu e o Eduardo Lonas no Roldão e compramos um monte de coisa e pegamos leite, absorvente, pas-ta de dente e papel higiênico. Parece que a gente jo-gou um grão de areia num deserto.

Logo à noite quando voltamos, já com o Maurício, o Cebola e o Davi, tinha um carro de po-lícia atravessado na entrada. Eu desci do meu car-ro e já fui trocar ideia pra ver o que eles queriam, só faltava eles tarem oprimindo os moradores naque-las condições. Cheguei no policial mais magro e dis-se que precisava passar, que havia trazido alimentos. Ele me chamou para a viatura, abriu o porta-malas e falou: “A gente também trouxe essa sopa, podía-mos distribuir junto.” Eu fiquei bobo na hora, e para meus parceiros, que também chegaram na frente da viatura para ver o que eles queriam, também foi um tapa na cara.

Ficamos distribuindo juntos sopa, pães e a fila era imensa, tava na cara que a sopa não ia dar. O Eduar-do (Facção Central) colou com a família. Eles trouxe-

ram umas roupas, e depois o Eduardo falou que não entendeu nada, a gente junto com a polícia, ele só entendeu quando viu a distribuição. “Isso é policial, o resto é gambé”.

Quem diria...Eu não aguentei. Fui para o cantinho cho-

rar quando uma senhora que não tinha vasilha, foi comer numa sacola de plástico. Depois disso várias pessoas comeram também nessas sacolas de super-mercado. Isso em São Paulo. As pessoas chegavam na gente, pediam leite, pão, coberta, e a gente com tão pouco.

Distribuimos o material de higiene, e nunca vou esquecer: uma senhora pegou um sabonete e disse: “Graças a Deus”.

Hoje acordei às sete da manhã, fui dormir ontem às três. Daqui a pouco o Eduardo cola pra gen-te levar mais coberta e fazer um sacolão pras pes-soas.

Tá foda, se mais gente ajudasse, seria mais fácil, mas prometi que não ia ficar pensando nisso; agir, por menor que seja cada um de nós, agir é o cami-nho. Da hora o time que montamos, o bang do bem como dissemos.

Alguns dias depois liguei para o Suplicy, eu já tinha ligado a todo mundo pra ajudar, mas a hora era de pressionar politicamente também. Ele fez uma carta junto comigo para o Kassab.

Depois chegou um caminhão para retirar as famí-lias (de novo). Dessa vez eles desmanchavam os bar-racos, colocavam as madeiras no caminhão e davam um ticket que valia R$ 600,00 para cada família. Os moradores da extinta favela pegavam seus poucos pertences, seus tickets e iam embora pelas ruas de terra da periferia.

Problema resolvido.

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ruas de terraPelas

Ferréz é escritor e hoje vive com a esposa e uma filha num país chamado periferia.

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caros amigos novembro 2009 10

Mc Leonardo

Quando um “erro de português” já se insta-lou definitivamente na língua falada pelos ci-dadãos mais letrados, privilegiados, ele passa despercebido e já não provoca reações negati-vas — ainda que ele seja condenado pela gra-mática normativa, a mesma que, supostamen-te, deveria ser seguida pelas pessoas “cultas”. Por isso, há “erros” mais “errados” (ou mais “crassos”) do que outros — a escala de “cras-sidade” é inversamente proporcional à escala do prestígio social: quanto menos prestigiado é um indivíduo, quanto mais baixo ele estiver na pirâmide social, mais erros (e erros mais “crassos”) os membros das classes privilegia-das encontram na língua dele. Por outro lado, os falantes urbanos letrados detectam menos “erros crassos” na fala de pessoas de sua mes-ma origem social, notoriamente privilegiada – quando muito, são tidos como “lapsos”, “des-cuidos” ou “licenças poéticas”. Essa mesma condescendência, no entanto, jamais aparece para classificar a fala dos cidadãos das clas-ses desfavorecidas: o mesmo fenômeno, ago-ra, é tachado de “erro crasso” e ponto final. É como afirmava (dizem) Getúlio Vargas: “Para os amigos tudo, para os inimigos, a Lei”. Afi-nal, o que está sendo avaliado não é apenas a língua da pessoa, mas sim a própria pessoa, na sua integralidade física, individual e so-cial. Por isso, não existe propriamente pre-conceito linguístico, o que existe é um forte, profundo e arraigado preconceito social con-tra as classes desfavorecidas. E a língua fun-ciona aí exatamente como as redes eletrifica-das, as câmeras e as guaritas blindadas usadas nos condomínios privados – separa, isola, vi-gia e protege.

Voltei a pensar nessas coisas (sobre as quais já escrevi tanto nos últimos anos) num recente almoço de família (minha mãe com-pletou 70 anos: parabéns para ela!). Uma que-rida prima, sabedora das minhas posições an-tinormativas no quesito língua, disse que não podia concordar comigo porque alguns “er-ros” lhe doíam no ouvido e citou o surradíssi-mo “pra mim fazer”: “Fico arrepiada quando escuto isso”. Eu apenas sorri, porque não era o lugar nem a hora de expor todos os postula-dos da sociologia da linguagem. Na continu-ação da conversa, porém, ela me contou que um vigia não permitiu que ela entrasse num

local de exposições onde ela mesma estava montando um estande. “Eu disse então para ele: ‘Moço, deixa eu entrar, vai! Deixa eu en-trar! Eu trabalho aqui!” Sorri para mim mes-mo (repito: não era hora nem lugar) e pensei: “Por que ela se arrepia com o ‘pra mim fazer’ e usa tranquilamente o ‘deixa eu entrar’, se as duas construções são igualmente condenadas pela tradição gramatical, se são dois ‘erros’?” A resposta já dei mais acima: porque quando um “erro” se instala definitivamente na fala (e na escrita, mais tarde) das pessoas privilegia-das, ele deixa de ser sentido como “erro” – é o caso do “deixa eu fazer”, usado por 111 por cento dos brasileiros. Mas quando ainda não foi incorporado pelas classes dominantes, não tem conversa: é “erro crasso”, “dói no ouvi-do”, “causa arrepio”. Mesmo quando é empre-gado por 98 por cento da população (inclusi-ve já muita gente letrada), como o “pra mim fazer”. A vida não é uma graça?

falar brasileiroMarcos Bagno

Turismo na favela

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Assistindo a uma entrevista no dia 22/09/2009 no programa do Jô Soares me senti ofendido.

A socióloga Bianca Medeiros estava lançando um livro abordando o assunto do turismo na favela, que teve sua maior parte de pesquisa dentro da Rocinha, que segundo ela, não é mais uma favela.

Ela disse que, no tempo em que pesquisava, a Ro-cinha passou por uma mudança de comando e dava pra ver a mudança claramente, pois “os meninos eram mais novos e cheios de marra”.

Eu só queria lembrar que a tal mudan-ça a que ela se refere não levou novos meninos arma-dos pra Rocinha. O que houve foi uma mudança de facção no comando da quadrilha. Não houve a vinda de uma nova quadrilha.

Bom, depois de ter mentido sobre o problema do tráfico na região, ter dito que a favela é atração turís-tica somente pra estrangeiros e ter falado que a Roci-nha não é uma favela, eu não posso acreditar na sua pesquisa e nem me decepcionar com o que vejo, pois já estou acostumado com esse tipo de pesquisador.

Mas por mais que eu saiba a distância que se-para o Jô Soares da realidade da vida na favela, é difícil não me decepcionar com tanta ignorân-cia vinda da parte dele. Ignorando todo o modo de convivência, arquitetura, cultura, divertimento e paisagem que pode chamar a atenção de turistas de qualquer lugar do mundo, o Jô Soares mostra todo o seu preconceito sobre as favelas.

“Tem sempre alguém pronto pra pagar pra ver a miséria alheia!” falou o Jô, que quando foi informado, sobre a procura maior por esse passeio era do europeu, concluiu: “Eles sempre gostaram de ver os exóticos!”.

Quando a socióloga falou que a popu-lação favelada não se importava em ter seu lugar de moradia como visitação turística, fez uma brincadei-ra sem graça. “Vai fazer o quê, se mudar pros Jar-dins?” Se eu não me engano, Jardins é o endereço do Jô em São Paulo.

Ele ainda deu uma dica pra galera do artesanato: “Podiam fazer favelas em miniatura, com os bote-quins, os antros dos traficantes e a PM”

Depois de dizer que quem visita favela é “meio doente”.

MC Leonardo é compositor, autor, com seu ir-mão MC Junior, de funks de protesto, como o Rap das Armas. [email protected] - http://mcjunioreleonardo.wordpress.com

Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

Por que há erros mais errados dos que os outros

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11novembro 2009 caros amigos

Embora figurando entre os gigantes territo-riaes que formam o BRIC, o Brasil nunca foi po-tencia militar nem economica. Em duas coisas apenas o paiz se destaca: carnaval e futebol. Como o carnaval, em these, occupa só trez dias no calendario, é no futebol que temos, de fac-to, hegemonia mundial, practicamente peren-ne. Aqui começa um enigma: como é que um paiz eminentemente futebolistico não reflecte à altura a cultura da bola em suas manifesta-ções artisticas? Note-se que não estou dizendo que carecemos de obras musicaes, theatraes, cinematographicas ou litterarias que themati-zem o esporte das massas. Affirmo que carece-mos de obras-primas nesse terreno. Em vez de “O Catimbeiro”, temos “O Cangaceiro”. Em vez de “Makunayrton, o craque sem nenhum cha-racter”, temos “Makunaima, o heroe sem ne-nhum character”. Em vez de “Trem dos Onze”, temos “Trem das Onze”. Em vez de “Bola na Trave”, temos “Navalha na Carne”. Em vez de “O Gavião da Fiel contra São Jorge”, temos “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”. Ainda está para nascer o grande classico da lit-

teratura que immortalize um grande classico do campeonato nacional. Qual seria a explica-ção? O thema é que é pouco epico ou os auc-tores é que são pouco enthusiastas? Pequeno é o assumpto ou o talento? Em todo caso, theses scientificas não resolvem o problema.

Estive analysando, só no cancioneiro po-pular, quantas e quaes obras retractam o “fu-tiba”, e o resultado foi decepcionante. Tiran-do os hymnos compostos pelo Lamartine Babo para os clubes cariocas (na verdade optimas marchinhas descarnavalizadas), as lettras são poucas e pobres.

Nada comparavel à “Aquarella do Brasil”, ao “Carinhoso” ou à “Asa Branca”, typo “A Galera do Brasil”, “Amistoso” ou “Zebra Al-vinegra”...

Nem Ary Barroso, nem Pixinguinha, nem Luiz Gonzaga honraram as camisas de seus ti-mes. Si for verdadeiro nosso complexo de vira-lata, eu diria que, nesse campo, nossos genios soffrem da syndrome de lanterninha.

porca miséria!Glauco Mattoso

Cracões camisa dez, que tantos tentosmarcaram, não se incluem no meu plano,pois não sou flamenguista ou corinthiano,siquer no futebol busco os talentos.

Camisas vi, de tons pretos, cinzentos,e duas tenho, só, das quaes me ufano:a mais bonita, azul, do São Caetano;a outra, avermelhada, do Juventus.

Torcer pelo mais fraco é minha sina.Se contra um “grande” é o jogo do Azulão,eu visto a deste e volta dou na esquina.

Mas, quando elle e o Juventus jogam, nãovacillo: a vermelhinha me allucina!Trajando-a, ja perdi, como a visão...

SONETO DA TORCIDA DISTORCIDA [1219]

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

Eduardo Matarazzo Suplicy

Índices de produtividade rural

Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

A Comissão de Agricultura e Refor-ma Agrária do Senado realiza uma série de audiên-cias públicas para debater a atualização dos índices de produtividade para fins de reforma agrária. O gover-no anunciou que está para atualizar os índices que fo-ram definidos em 1975, tendo em conta o significativo aumento de produtividade do campo. Por outro lado, proprietários rurais manifestaram suas inquietações com respeito a como definir tais índices. Tramitam no Senado o PLS 205/2005, de autoria da senadora Lúcia Vânia – que altera esses índices – com emendas das senadoras Kátia Abreu e Serys Slhessarenko.

A divulgação, pelo IBGE, dos resultados do Cen-so Agropecuário 2006, permite um exame acurado da evolução recente da agricultura e da estrutura agrá-ria brasileira. O último Censo mostrou que a concen-tração na distribuição de terras permaneceu prati-camente inalterada nos últimos 20 anos. Identificou 4.367.902 de estabelecimentos de agricultura familiar, que representam 84,4% do total de unidades agrope-cuárias. Apesar de ocupar apenas um quarto da área - 80,25 milhões de hectares, a agricultura familiar res-ponde hoje por 38% do valor da produção agrícola. São 12,3 milhões de pessoas no campo, 15,3 pesso-as/100 ha empregadas na agricultura familiar, contra 1,7 pessoa/100 ha na agricultura não familiar.

A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil divulgou pesquisa do IBOPE nos assentamen-tos consolidados de reforma agrária. Os resultados in-dicam que os assentados não produzem o suficien-te para sobreviver, não têm acesso aos programas de crédito do governo e parte deles compraram suas ter-ras ilegalmente de terceiros. Entretanto, o Ministério do Desenvolvimento e Reforma Agrária - MDA afirma que esse estudo é limitado, pois foi realizado em ape-nas nove, dos 8.360 assentamentos, abrangendo ape-nas mil famílias das 920.861 assentadas.

O ministro Guilherme Cassel, do MDA, já encami-nhou os novos índices para o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, com base na produção agríco-la municipal, tendo em conta a diversidade regio-nal. Eles ainda deverão ser examinados pelo Conse-lho Nacional de Política Agrícola.

Para avançar em direção a maior equidade na distribuição de renda, ainda tão desigual, funda-mental é se acelerar a realização da reforma agrária a qual depende, entre outros fatores, da atualização dos índices.

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ajuíza Kenarik Boujikian Felippe conta, nes-ta entrevista exclusiva para Caros Amigos, o que acontece nas entranhas do judiciá-

rio criminal e do sistema carcerário, onde a discri-minação contra os pobres, contra os negros e con-tra as mulheres, expressa a constante violação de direitos consagrados na atualidade. Para ela, todos os métodos de tortura utilizados no período da Ditadura Militar continuam a exis-tir hoje, dentro e fora das delegacias e das prisões: “Essa é uma questão relevante para a construção do Estado democrático de direito que ainda não está construído no Brasil. Enquanto nós não resolver-mos essa questão do período da repressão, nós não vamos conseguir caminhar para outra situação de dignidade de todas as pessoas”.Fundadora e ex-presidente da Associação dos Juí-zes para a Democracia (AJD), militante de ONG que atua com mulheres encarceradas, Kenarik tem sido importante referência na luta pelos direitos huma-nos no Brasil. Casada, mãe de três fi lhos – Marce-lo, Mariana e Isabel – ela denuncia aqui os entu-lhos autoritários que ainda estão sendo mantidos pelo atual regime, inclusive pelo Judiciário. Vale a pena ler.

Hamilton Octavio de Souza - Fale um pouco da sua vida, onde você nasceu, estudou, morou, sobre sua família, seus pais, até você se tornar juíza.Kenarik Boujikian Felippe - Eu não nasci no Bra-sil, vim para o Brasil com 3 anos. Nasci em uma al-deia de armênios que fi ca na Síria. Então, meu do-cumento de naturalidade é da Síria. Eu vim para o Brasil com 3 anos, morei aqui em São Paulo até uns

entrevista KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE

Participaram: Hamilton Octavio de Souza, Júlio Delmanto, Lúcia Rodrigues, Otávio Nagoya, Tatiana MerlinoFotos Jesus Carlos

MATANDO MUITO"“O Estado brasileiro continua

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13novembro 2009 caros amigos Novo sítio: www.carosamigos.com.br

10 anos, e fui morar no interior em razão do traba-lho do meu pai, que era comerciante em São José do Rio Preto. Depois nós voltamos para São Pau-lo e só saí no tempo em que eu entrei na magistra-tura, quando obrigatoriamente começa a carreira em outras cidades. Fui para Piracicaba, morei pou-co tempo lá, mas a minha vida é basicamente em São Paulo.

Tatiana Merlino - Por que seus pais vieram para o Brasil?Bom, tem duas versões. Uma é a questão que se fala muito, que é a questão do sonho da América, a pos-sibilidade de dar outro tipo de vida para os filhos. A outra, é que supostamente meu pai fazia parte de algum movimento de independência. Ao contrário da minha família, que plantava, ele trabalhava com construção, ele e meu avô. Achavam que ele even-tualmente sabia onde poderia ter armas guardadas na igreja, porque ele trabalhava com construção.

Hamilton Octavio de Souza – Havia uma perseguição forte aos armênios.Sim, e eu acho que talvez também a minha história com os movimentos de direitos humanos deve ter algum link aí com a questão dos genocídios dos ar-mênios, o primeiro genocídio do século.

Tatiana Merlino – Seu pai nunca confirmou qual era a versão verdadeira?Meu pai morreu muito cedo, ele tinha 49 anos (quando morreu), eu tinha 15, 16 anos na época, então, ele nunca falou. Eles falavam mais da ver-são da América. Ele nunca me confirmou efetiva-mente sobre isso, quem falou sobre isso foi minha mãe. Eu estudei, aqui em São Paulo, um tempo na escola Armênia, logo que eu vim para o Brasil. De-pois, quando eu fui para o interior, fui estudar em um colégio estadual, em São José do Rio Preto. De-pois voltei, circulei por algumas escolas e acabei me formando em magistério no colégio Santa Inês, que é um colégio salesiano, no Bom Retiro, bairro onde eu morei quando cheguei ao Brasil e onde mi-nha mãe mora até hoje. Depois eu fui fazer faculda-de de Direito. Eu tinha dúvidas do que queria fazer. Queria fazer Jornalismo e Direito, antes tinha uma outra opção que passava pela cabeça, que eram Ci-ências Sociais..

Tatiana Merlino - Você tem algum professor que tenha te inspirado, alguém que atuasse na área de direitos humanos?Nesse aspecto é o professor (José Gaspar Gonza-ga) Francesquini, que acho que até hoje dá aula lá na PUC-SP. Ele dava aula de Direito Civil, era uma pessoa extremamente sensível e fui trabalhar com questão carcerária graças a ele. Ele, na época, era juiz da Vara de Execuções Criminais, e perguntou se os alunos não queriam ser voluntários para re-

alizar um trabalho, pois havia um caos absoluto na questão da assistência judiciária dos presídios. Acho que só eu aceitei e fui ser voluntária. Um pou-co do que me inspirou foi a postura dele, uma gran-de pessoa, uma grande figura humana, um grande juiz da Vara Execuções Criminais, um dos mais co-nhecidos e respeitados Para mim, a ligação com o professor Francesquini vem muito da oportunidade que ele me deu de conhecer essa outra realidade do sistema carcerário. Isso pra mim foi um ganho gi-gantesco na minha vida.

Hamilton Octavio de Souza - Como foi essa experiência?Primeiro é conhecer que existe esse mundo, porque na faculdade de direito você não consegue imagi-nar nada do que acontece, o que significa aquilo em termos práticos, de processo. E aí pôr o pé dentro do sistema é um choque em um primeiro momento. É algo inesperado, o cheiro é inesperado, tudo é dife-rente. As pessoas não sabem o que significa passar um dia dentro de uma prisão. E pra mim foi impor-tante conhecer também a falta de estrutura do sis-tema de justiça em relação a esses que são os mais vulneráveis na minha concepção. Então, esse tipo de trabalho, de você pelo menos ouvir a pessoa e ir atrás para ver se pode fazer alguma coisa, para mim foi uma lição de vida, e, em termos técnicos, evidentemente também. Meu trabalho era voluntá-ria na área de Direito.

Lúcia Rodrigues - Você chegou a advogar profissionalmente?Sim, advoguei. Antes de ser juíza, fui procurado-ra do Estado, trabalhei na assistência judiciária, em 88. Em 87, eu fui advogada da FUNAP, onde eu fiz o estágio de direito nas penitenciárias.

Tatiana Merlino - Você tem uma militância na área de Direitos Humanos, faz parte de uma ONG de questão carcerária de mulheres, pode falar sobre isso? Você está se referindo ao Grupo de Estudo e Tra-balho - Mulheres Encarceradas. Eu faço parte desse grupo que é uma rede, e trabalho na rede em razão de pertencer à Associação Juízes para a Democra-cia. Agora eu tenho uma militância, mas a militân-cia não me tira uma atuação de Direitos Humanos como juíza, não me tira das relações da vida. Você pode ter a militância, mas a questão dos Direitos Humanos é uma coisa global, não é só de uma ati-vidade ou uma coisa direcionada.

Otávio Nagoya - Você acha que o Estado trata diferente os direitos do homem e da mulher presa?Trata completamente diferente. Um exemplo bem gritante, claro e incontestável é a questão da visi-ta íntima. Os homens tinham há décadas aqui, em

São Paulo, e as mulheres não tinham o direito de receber os seus companheiros, amigos. Esse grupo surgiu em uma conversa após uma palestra na OAB para discutir sistema carcerário, e no final eu falei que o Estado tratava diferente as presas dos pre-sos. E aí um grupo de pessoas que eu já conhecia começou a conversar mais sobre isso. Foi quando surgiu o grupo. A gente começou a trabalhar com esse tema, o encarceramento feminino no Brasil, que assim como nos demais países tem um índi-ce pequeno de participação em termos de popula-ção carcerária. A taxa de mulheres presas no Bra-sil é de mais ou menos 6%. Por outro lado, a gente vê que está acontecendo um fenômeno mundial de aumento do número de mulheres presas em razão, basicamente, de envolvimento com tráfico de en-torpecentes. No Brasil nós temos um problema de dados. Hoje, o Ministério da Justiça faz um recor-te de gênero, mas há uns cinco anos atrás não ti-nha. Não tem como ter políticas públicas se não se conhece nem qual é o seu mundo de trabalho, qual o percentual.... Eu acho que a mulher é sempre pe-nalizada, seja presa, seja companheira de um pre-so, porque, se é ela que vai visitar, passa pela re-vista vexatória. Em dia de visita elas estão lá, não abandonam os companheiros. Mas vai em uma fila de um dia de visita em uma penitenciária femini-na, não tem muito homem, são poucos. Tem mais a irmã, a mãe que leva os filhos... Na penitenciá-ria masculina tem uma fila gigantesca de mulheres. Elas são muito abandonadas pelos homens. Nós ti-vemos aqui várias campanhas, inclusive estaduais, para mulheres, teve o mutirão ginecológico, e as mulheres presas nem entraram na história. É um plano para todas as mulheres do Estado, e as presas não entraram, é como se elas não existissem.

Hamilton Octavio de Souza - Elas são 6% do total da população do total de presos. É isso? E em números absolutos, quanto representam?Hoje nós temos uma população aproximada de 450 mil presos. Acho que dá mais ou menos 25 mil se não me engano, alguma coisa assim, 30 mil.

Hamilton Octavio de Souza - Qual é o perfil dessa mulher?Jovem. A maioria tem filhos, assume a chefia de fa-mília... Todas praticamente são pobres. O percentu-al de mulheres negras presas é um pouco maior do que as negras fora muro. Muitas trabalham, e quan-do trabalham dentro do sistema, esse é um dado de uma pesquisa que eu acho muito curioso, ela pode fazer o que quiser com o seu dinheiro. Mas eu per-guntei: “o que vocês fazem com o dinheiro?”. A maioria das mulheres respondeu: “A gente rever-te para a família”. E o que os homens fazem? “Ah, eu gasto comigo”.

Hamilton Octavio de Souza - No processo judicial, há discriminação? Existe algum momento em que a justiça trata de forma desigual a mulher e o homem?Eu não conheço nenhum trabalho que tenha dito efetivamente isso, mas todo mundo que é da área de Direito fala que as mulheres são tratadas com um rigor maior. Existem algumas consequências práti-

“As pessoas não sabem o que significa passar um dia dentro de uma prisão”.

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cas da falta dessas políticas públicas. Por exemplo, quem está em cadeia pública, provavelmente não vai ter uma defensoria pública quando fizer seus pedidos. Se o maior número de mulheres do Estado estão em uma cadeia pública, evidentemente ela vai ter menos estrutura para cuidar dos seus direitos.

Júlio Delmanto - Mas no caso da visita das mulheres, da revista, a forma como é feita não é ilegal na verdade? Tem aquele procedimento do banquinho.Eu acho, eu acho que sim. É, existem outros pro-cedimentos, esse do banquinho... Tem lugares que são terríveis. Por exemplo, uma juíza me falou que ela baixou uma portaria não permitindo mais revis-ta vexatória, por conta do caso de uma mulher que era muito obesa e disse: “eu quero visitar meu ma-rido, mas eu não consigo mais passar por essa situ-ação toda vez que eu vou visitá-lo”. Ela relatou para a juíza como que era a revista e disse: “nenhum ho-mem tinha me tocado, só o meu marido, e chegando lá eu tenho que passar por essa situação...”. A juíza constatou que eles usavam luva de pedreiro pra fa-zer a revista. Não se pode considerar isso uma coisa normal, rotineira. É ilegal, é desumano, fere todas as convenções, fere a nossa Constituição.

Hamilton Octavio de Souza - A quem compete fiscalizar ou alterar esse tipo de situação?Bem, primeiro a obrigação é do Executivo, e ele não implementou de forma correta. É de responsabilida-de dos governos estaduais, mas se não for respeita-do é o Judiciário que tem que garantir. Por exem-plo, aquela juíza, naquele caso concreto da revista vexatória, baixou uma portaria para a secretaria.

Lúcia Rodrigues - Em relação a essas violações que acontecem cotidianamente dentro dos presídios, das cadeias públicas, tem outra questão também que é a tortura. Como é que você vê esses casos? São recorrentes? Como é que chega essa questão para você?Quem trata da execução do processo aqui em São Paulo é um outro juiz, que é o juiz da Vara de Exe-cução. Agora, nós sabemos que a tortura ocorre no país não só dentro do sistema prisional como fora. E é impressionante. Teve um processo de tortura faz alguns anos, e na época, por uma questão de estu-do, só por isso, eu quis fazer um levantamento lá no Fórum para saber dos processos de tortura. Eu fiquei chocada com os números. A gente sabe que o número é pequeno, que não se pune, que não se apura, todo mundo sabe, mas na hora que você vê os números, eu falei: “Mas não é possível, nós es-tamos aqui em São Paulo”. A lei de tortura já ti-nha cinco anos (a lei é de 1997) de existência, mas não havia nem cinquenta processos. Isso é nada, eu recebo muito mais processos por mês do que esses cinquenta. Não há registro dos casos, não há apu-ração dos casos, não há estrutura para as pessoas que fazem esse tipo de denúncia. A questão da tor-tura é uma questão mal resolvida.

Lúcia Rodrigues - A não punição dos torturadores da ditadura militar implica na perpetuação da tortura hoje.

Todos os métodos utilizados no período da repres-são são exatamente os mesmos métodos utilizados hoje, e essa é uma questão relevante para a constru-ção do Estado democrático de Direito que ainda não está construído no Brasil. Enquanto nós não resol-vermos essa questão do período da repressão, nós não vamos conseguir caminhar para outra situação de dignidade de todas as pessoas. Tem uma pesqui-sa que eu acho muito interessante, que foi feita em vários países por uma pesquisadora americana. Ela fez um levantamento em vários países que passa-ram por períodos autoritários. Nos países em que os crimes praticados durante esse período autoritário foram apurados, os crimes de violação aos direitos humanos diminuíram. Então eu acho que essa pes-quisa diz, com todas as letras, não só para o passa-do, mas como para o presente e para o futuro, que isso tem que ser resolvido.

Lúcia Rodrigues - Por isso a importância da ADPF, que está querendo fazer uma leitura sobre a Lei de Anistia, que não tem crime conexo entre torturador e preso político, não dá para ter essa conexão de crimes. Essa conexão é uma interpretação errônea, não é? Sim. A ADPF foi proposta pela OAB.

Hamilton Octavio de Souza - O que é ADPF?Ação declaratória de preceito fundamental. Sig-nifica que alguém quer que o Supremo faça uma leitura de algum preceito constitucional à luz da Constituição.

Hamilton Octavio de Souza - Uma interpretação?

É. É um instituto relativamente novo, nós não te-mos um número grande deste tipo de ação no Su-premo Tribunal Federal. A ordem entrou com essa ação e a AJD entrou com um pedido de amicus curia, é um instituto que permite que o ingresso no processo para ajudar a corte fornecendo elementos. Agora, a opção da AJD pelo ingresso não é um mé-todo de trabalho, nós não temos essa política, essa é uma ação excepcionalíssima. A gente só ingressou pelo que representa a ação em termos de democra-cia para o país. Será um marco, em termos do Esta-do, admitir através de um de seus poderes, que é o poder Judiciário, que aqueles indivíduos que prati-caram atos inumanos no período de repressão não são beneficiados pela Lei de Anistia. É um marco para a democracia. O processo teve início em 2008, está na Procuradoria Geral da República desde fe-vereiro deste ano e existe expectativa que, agora em outubro, o procurador dê, enfim, o seu parecer e de-volva o processo para o Supremo Tribunal Federal, para que ele possa decidir.

Lúcia Rodrigues - Eu queria que você explicasse o que é o crime conexo. Por que não é considerado um crime conexo quem tortura e quem participou da resistência à Ditadura militar?Quando da lei da anistia, o artigo 1º fala em crimes políticos e conexos. E eu não sei por qual moti-vo, exatamente. Eu não consigo detectar, isso ficou adormecido e parado, sem muitas ações na época para se questionar isso. Recentemente, o STF deu uma decisão que eu considero muito importante, que é do caso da extradição do Manoel Cordeiro. A extradição foi pedida pela Argentina e pelo Uru-guai. Ele era um torturador da chefia da operação Condor. Nesse caso específico, o tribunal declarou que os atos praticados por esse indivíduo, no âmbi-to da operação Condor, não poderiam ser caracteri-zados como crime político. Então nós já temos um passo significativo e toda jurisprudência do Supre-mo. Aí resta a questão do crime conexo, e esse é o objetivo da ADPF, que pede que o STF diga que es-ses crimes praticados pelos torturadores, assassinos, não são conexos com os crimes políticos. Não exis-te nenhuma relação de espécie nenhuma, de moti-vação entre a tortura e os atos e crimes que foram praticados com determinada motivação.

Hamilton Octavio de Souza - Qual é a situação do Brasil em relação aos outros países da América Latina?É importante dizer que existe uma expectativa des-se caso não só em relação aos brasileiros, ao povo brasileiro, mas existe na ordem regional, na Amé-rica Latina, todos os outros países estão tomando suas ações para não deixar impune o que aconte-ceu nas ditaduras. Em todos os países isso está sen-do enfrentado pelo poder Judiciário, muitas vezes, por outros poderes, o Legislativo, o Executivo. No Brasil eu não vejo o Legislativo tendo uma atuação nesse aspecto, não vejo o Executivo fazendo algu-ma coisa de mais concreto em relação a isso.

Lúcia Rodrigues - Por que o governo Lula não faz nada de mais concreto, se é um governo

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teoricamente de esquerda? E tem um ministro dos Direitos Humanos que foi torturado, inclusive.Eu não sei se o governo Lula é um governo de esquer-da. Eu não concordo quando se diz que é um governo de esquerda, e nem sei se até é teoricamente. Ele foi eleito por uma base grande de esquerda, isso sim, mas ele não é um governo exatamente de esquerda. Tan-to que, em termos de Executivo, o que é que foi feito em relação a essa matéria? Ele tem que assumir, ele é o presidente, foi ele quem recebeu milhões de votos. Como é que ele não assume uma coisa dessas? Dei-xa cada ministério falar o que acham sobre esse tema. Então, nesse processo nós temos essa tensão dentro do governo. E tensão eu acho que pode existir, mas tem que ter alguém que diga se é A ou B. Alguém tem que dizer isso. Quem seria? Só pode ser o presidente.

Tatiana Merlino - Quais são as suas expectativas em relação ao STF? O ministro Gilmar Mendes já declarou inúmeras vezes que isso tem que ficar no passado, para não se mexer nessas questões...Olha, eu acho que o Supremo vai acolher o pedi-do da Ordem dos Advogados. Claro que no futuro nós teremos outras discussões, porque muitas pes-soas ampliam nesse momento o foco, por exem-plo, incluindo a questão da prescrição, mas isso não está em questão nesse momento no Supremo. Isso será para um momento posterior. Eu tenho esperan-ça que isso vá vingar, não é possível aceitar que o Brasil se torne o refúgio dos torturadores. Vem todo mundo para cá. Quem puder vem para o Brasil, que aqui ele não vai extraditar. Eu fico até arrepiada quando falo disso. Então eu acho que é inadmissí-vel você pensar que o Brasil vai ser o resort dessas pessoas, não entra isso na minha cabeça.

Júlio Delmanto - Mas se a polícia brasileira, hoje, continua torturando, o Brasil já não é um refúgio de torturadores?É. Não deixa de ser uma casa de torturadores. Eu acho que você está certo. Mas é uma questão com-pletamente diferente a tortura que é interna, que é aplicada e que a gente tem que tomar também as medidas e assumir, porque isso não é assumido. Essa tortura nas delegacias não é uma coisa assumi-da. O Estado não assumiu para si o enfrentamento dessa situação. Ele tem uma dívida muito grande e não vai conseguir passar também se não resolver os fatos que aconteceram, não tem como, não dá para fazer essa passagem. Então, quando eu falei hoje que o genocídio dos armênios me tocou de algum modo, devo ter tido alguma influência. O primeiro genocídio do século não foi resolvido. E o Hitler fa-lava assim: “Bom, quem se lembra dos armênios?”. E hoje é a mesma coisa. Eu não estou deixando de reconhecer que nós somos um grande país de tor-tura, eu não estou dizendo que não. Mas acho dife-rente quando você assume com todas as letras que

isso é a mesma coisa, isso tem o mesmo significado, então vocês podem vir para o Brasil. Por isso que eu tenho esperança nessa ação, porque o Supremo, no caso dessa extradição, já disse e extraditou o in-divíduo. Houve muitas pressões, os organismos in-ternacionais, regionais, da América Latina, não se conformavam que poderia ter essa possibilidade do Brasil assumir essa posição.

Tatiana Merlino - Você estava falando sobre os poucos casos de tortura da pesquisa que você fez. Eu queria que você comentasse um pouco sobre a tradição patrimonialista do Brasil. Uma pena de furto é maior do que uma pena de tortura.Eu não me conformo com isso. Eu não sou a favor de penas altas, longe de mim achar que penas al-tas resolvem algum problema de qualquer nature-za. Como eu já disse, acho que ninguém tem a no-ção do que significa um dia de prisão. O que eu acho que existe é uma completa inversão de valores, e o exemplo mais claro para mim é esse da tortura e do furto. Então, eu sempre dou um exemplo assim: “Se eu e a Tatiana resolvemos subtrair a bolsa ou livro que está ali e formos embora, a pena é maior que o crime de tortura por omissão”. É uma coisa maluca isso. Então um furto qualificado tem um peso maior que a dignidade humana. A tortura, em síntese, um crime de tortura viola a dignidade humana.

Hamilton Octavio de Souza - Não só a tortura, vários direitos humanos não são respeitados no Brasil. Por que não se incorporou de uma maneira mais forte nos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo o enfrentamento e a superação dessas questões? Por causa do poder, acho que é por causa do poder. O poder é que está com tudo isso na mão.

Hamilton Octavio de Souza - O que você chama de poder? Não é o poder Judiciário?Não, não. Eu acho que o poder é outro. O poder que eu falo não são os poderes institucionais, o Execu-tivo, o Legislativo e o Judiciário. É o poder do di-nheiro, é poder da prevalência, o poder da força. É claro que as instituições têm um papel, mas isso nós só vamos ganhar em outro quadro, quando as ins-tituições refletirem em algum momento os anseios do povo e eu não sei se esses três poderes refletem isso. Deveria servir só para servir o povo, é o que está na Constituição. Nós temos que servir ao povo. Eu, como juíza, tenho que servir ao povo.

Otávio Nagoya - Você acha que os direitos humanos vão conseguir ser inteiramente respeitados dentro do sistema capitalista?É difícil. Mas eu acho que mesmo no sistema capi-talista você tem como ganhar muito dinheiro e ain-da assim garantir a dignidade. É muito que eles têm.

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Dá para dar para todo mundo e ainda fica muito para eles. Então eu acho que, principalmente quan-do você diz direitos humanos, você está pensando nos aspectos de direitos econômicos e sociais, ain-da que se garanta isso, é possível que eles tenham lucro muito significativo.

Hamilton Octavio de Souza - Você falou que o Estado democrático precisa ser construído, e o que é que falta para o Estado ser democrático?Justamente eu penso que é, dentre outras, tornar concreto os direitos econômicos, políticos e sociais. Não existe democracia, não existe Estado democrá-tico de Direito se você não garantir os direitos que formam o arcabouço desse Estado democrático de Direito, desde os direitos civis: voto, cidadania, pos-sibilidade de se expressar, possibilidade de se reu-nir, possibilidade de se manifestar. É um conjunto de coisas. Não existe para mim democracia se você tem fome. Se tem uma população que passa fome, onde é que está o Estado democrático de direito? O que é o Estado democrático de direito senão a rea-lização do ser humano com dignidade?

Lúcia Rodrigues - O acesso às informações que constam nos arquivos militares é uma questão da democracia. Por que você acha que o governo Lula ainda não abriu os arquivos? Você acredita na tese de que não existem mais arquivos, como os militares ficam ventilando? Eu disse que os poderes poderiam, deveriam tomar a posição que lhes cabem. Em relação ao executivo, acho que na ADPF, ele teria que ter um outro tipo de postura, não aquela que foi o processo de colher as opiniões dos ministros. Não, não é isso que se espe-ra de um governo. Quero que o governo diga: “Pen-so isso ou penso aquilo”. Em relação aos arquivos, é a mesma coisa, ele não assume o que tem que as-sumir perante a história do país... E que tem infor-mações, com certeza devem ter. Agora, onde estão e como estão é complicado, é muito difícil. E se ele não demonstra, ele que é o chefe de Estado, o que ele quer assumir, não serão os subalternos que fa-rão esse papel. Na última entrevista da Caros Ami-gos, o entrevistado deu um exemplo do governo Lula, de episódio no Rio em que ele fez o discur-so da maior repressão. Então, o que você espera de um chefe de Estado que faz esse discurso? Vai que-rer que as pessoas se comportem como? Os que es-tão abaixo, se você é o porta-voz do país? É a mes-ma coisa em relação à ditadura.

Júlio Delmanto - O secretário de segurança do Rio de Janeiro falou que esse caso do helicóptero deveria ser encarado como nosso 11 de setembro. Não precisa pensar muito para concluir que o 11 de setembro gerou mais repressão do Estado.Isso tudo revela, o (Eugenio Raul) Zaffaroni usa mui-to esse termo, o “Direito Penal do inimigo”. Ele é um grande penalista argentino e atualmente o ministro do Supremo Tribunal Federal da Argentina. No Bra-sil, ele é conhecido como um grande papa do Direi-to Penal. Ele usa muito a expressão “Direito Penal do inimigo”. Se, antigamente, a gente tinha o inimi-go externo, na época da Ditadura, agora nós temos

“O percentual de mulheres negras presas é um pouco maior do que as negras fora do muro”.

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o inimigo interno. Há todo um mecanismo de re-pressão em cima deste raciocínio. Nessa mesma con-cepção, hoje, você tem um outro inimigo. Quem é o nosso inimigo atual? É o pobre, é o que faz alguma reivindicação, é aquele que se manifesta, é aquele que vai à luta, são aqueles que moram na periferia, é o mesmo discurso. Então, isso que ele fala sobre o 11 de setembro é o mesmo discurso de 64, da doutrina da segurança nacional que se repete hoje escolhen-do outros inimigos. E para rechear, para a gente acei-tar, para a gente ficar de cordeirinho manso, eles ele-gem algumas pessoas que fogem desse perfil. Então eu prendo, eu faço isso com aquele que é rico, com aquele que tem fama, enfim, alguém que foge do pa-drão, e aí eu torno a prisão dos demais normal. Por que se o rico, se acontece isso com ele, ele vai preso, se a prisão é assim, então eu normalizo o discurso da repressão, da violência e do sistema penal.

Lúcia Rodrigues - Você falou da tese do inimigo da época da Ditadura. O próprio chefe da Abin disse recentemente que eles fazem um trabalho de acompanhamento dos movimentos sociais, no caso o MST. A vida das pessoas está sendo investigada? Como é que você vê este tipo de atuação em um Estado de “Direito”?O mesmo sistema repressivo se repete, por isso que eu falo que não dá para passar para um outro es-tágio sem a gente voltar ali atrás e resolver tudo o que aconteceu. Em alguma medida isso terá que ser resolvido, pelo menos o Estado vai ter que dizer: “Nós não aceitamos que isso seja crime conexo”. É o primeiro passo. Se vai depois conseguir apurar, se vai conseguir identificar todas as pessoas, isso é um outro momento. Mas o que é mais importante, sobretudo agora, é ter essa posição de Estado que é o Judiciário que vai dar, porque os outros pode-res já não fizeram nada até agora e não farão. No exemplo que você dá, eu me lembro, não faz muito tempo, um caso lá do Rio Grande do Sul, do Minis-tério Público. Eu li algumas transcrições das reuni-ões de lá e é chocante ver o que está acontecendo. Eles falavam em tirar a guarda das crianças dessas mães que estivessem em assentamento ou acampa-mento... Poder de investigação, claro que a polícia tem que ter. Não estou falando para abolir a po-lícia, não é nada disso, mas a forma de atuar tem sido justamente para quê? É justamente para indi-car que aquele movimento é o nosso inimigo. Quan-do se usa os mecanismos de Estado para conseguir implementar tudo isso é aí que é o perigo. O Judi-ciário tem que servir para prestar serviço ao povo, como está escrito na Constituição.

Hamilton Octavio de Souza - O que te deixou com esse sentimento de justiça dentro da sua carreira?Ah, muitas coisas. E tem coisas que são pontuais. Por exemplo, o Judiciário em alguns Estados tinha varas

diferenciadas para ricos e para pobres. Isso tinha no Rio de Janeiro e Pernambuco e deixou de existir não faz muito tempo, acho que no ano passado.

Júlio Delmanto - O que você acha dessa relação do combate ao tráfico de drogas e essa questão do inimigo interno? O tráfico virou um inimigo internacional. É um pro-blema sério. A lei das drogas tem algumas ques-tões que eu considero que houve avanço. Então, por exemplo, o usuário já não tem o mesmo tratamento que é dado ao traficante no sentido de pena priva-tiva de liberdade. O Brasil não conseguiu avançar nessa questão do usuário, o tratamento do usuá-rio ainda é um tratamento penal. Não se conseguiu avançar nesse diferencial. Mas, por outro lado, não deixou de ser um passo, perto do que nós tínhamos. Agora, as questões das drogas é quase uma para-noia em termos criminais. E eu acho que você está coberto de razão quando compara a quantidade da pena. É aquela desproporção. Mas é que o tráfico tem sido visto como uma questão de escolha do que atinge uma série de indivíduos. O último que está ali, na ponta, é o usuário, que são pessoas de todas as classes sociais. No país não existe ainda política séria de combate ao tráfico de drogas. Eu acho que tem que ter um grande rigor com esses crimes pelo que eles atingem. Mas quando eu falo tráfico, estou falando em tráfico, não do que é o usual que vem ao fórum no dia a dia e é aquela mistura do usuário e dependente, que faz aquilo para sobreviver.

Hamilton Octavio de Souza - Mas onde é que está o tráfico?O que ganha dinheiro com isso nunca chega para mim.

Hamilton Octavio de Souza - Mas está na favela? Está na periferia?Não está na favela, não está na periferia. Eu queria saber onde está, eu queria que a polícia trabalhasse e descobrisse para onde vão os milhões e milhões e milhões que rodam em cima do tráfico. Com certeza não é no garoto que está lá na favela com 20, 50g. Por que é muito dinheiro que está envolvido nisso. E o que chega ao Fórum Criminal de regra, se fizer um levantamento no meu Fórum Criminal que fica na Barra Funda, 16ª Vara Criminal. Se fizer um le-vantamento igual a esse da tortura, ao ver a quan-tidade e o perfil das pessoas que são detidas você fala: “Meu Deus, não é sério isso”...

Tatiana Merlino - Por que só chega pobre?Porque só chega pobre no Judiciário. Por que a po-lícia nunca fez uma busca e apreensão no bairro onde eu moro, que é o Jardins? Nós tínhamos, tem-pos atrás, os mandados de busca e apreensão cole-tiva. Isso foi uma coisa que aconteceu bastante em São Paulo. E uma vez eu vi um mandado que era

assim, “quadrilátero formado pela rua tal e tal.”. A hora que eu vi o mapa, achei que era quadradinho com quatro ruas, o que já era exorbitante. Mas era um pedaço da cidade, uma favela enorme, quer di-zer, isso é um absurdo do absurdo. O juiz não tem permissão legal para fazer uma coisa dessas. Será que no meu bairro não tem ninguém com arma? Não tem ninguém com drogas?

Hamilton Octavio de Souza - Qual é o perfil de quem chega ao Fórum?Na maioria das vezes, relacionado ao tráfico, são pessoas que moram na periferia de São Paulo, são jovens, no máximo 22, 23 anos, normalmente mo-ram com família, não têm muito estudo. Esse é o perfil dos traficantes da Barra Funda, salvo uma ou outra exceção. As mulheres, se você for pesquisar o processo de condenação delas, a maioria é de tráfi-co. Os homens, em alguns casos, a gente encontra com uma quantidade maior de entorpecentes. Para as mulheres, muito menos ainda, eu não tive nun-ca um processo com uma mulher que estivesse com uma quantidade significativa.

Hamilton Octavio de Souza - Não é quem organiza, quem financia, a logística da operação, isso tudo não é esse pessoal.

Tatiana Merlino - Esse não chega na Barra Funda?Não, não chega na Barra Funda, mas eu gostaria que chegasse, eu não sei onde eles estão, mas eles estão em algum lugar. Deve ter algum elemento de Estado nisso tudo envolvido.

Hamilton Octavio de Souza - Que elementos de Estado? Agentes de Estado. Eu não sei quem são os agentes, mas eu não posso crer que os milhões que roubem por aí frutos do tráfico entorpecente, não seja pos-sível, de alguma forma, o Estado verificar.

Júlio Delmanto - Mas o que acontece com esse jovem pobre, pego com pequena quantidade de drogas quando é enviado ao sistema carcerário?Ele vai para o sistema carcerário mesmo. E aí vai se fomentar cada vez mais a situação de vulnerabilida-de, evidentemente que vai agravar. O que você en-contra hoje no sistema penitenciário? O que você tem no sistema penitenciário que faça dessa pes-soa uma pessoa com condições de enfrentar mini-mamente a situação? Se já é difícil para os jovens em geral, imagina para aquele que sai com a marca e sem nenhum dado novo de possibilidade. Isso que é o problema que me aflige na juventude. Quais são as possibilidades que o país está dando? Não vai cair do céu, tem que ter essa construção. O Estado bra-sileiro tem uma dívida gigantesca e nós estamos em um atraso enorme. Acho que o que se dá para esse pessoal não é nada. Pague-se menos dívida externa, menos coisa, sei lá eu. Dinheiro tem nesse país que é um país rico, mas nós temos muitos pobres, pessoas passando fome. Isso que é inaceitável.

Otávio Nagoya - É grande o número de jovens que não chegam ao Fórum por serem

“Todos os métodos de tortura utilizados no período da Ditadura são exatamente os mesmos utilizados hoje”.

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assassinados antes? É o perfil dos mesmos que chegam ao Fórum?Eu acho que sim. O Estado brasileiro anda ma-tando muito, o Estado continua matando muito. Da mesma forma que teve extermínio no passa-do, nós temos o extermínio do presente, só mu-dou o personagem. O inimigo do Estado brasilei-ro está muito claro e assim como eles usavam esse poder punitivo na época da repressão, eles usam hoje; o poder punitivo subterrâneo de antes existe hoje. Ele decide sem obediência às leis, sem cum-prir a Constituição.

Otavio Nagoya - E a vítima de hoje quem é?A vítima de hoje? Você destacou um ponto impor-tante. Eu falei dos pobres, mas também não são só os pobres. São os pobres, são os jovens.

Júlio Delmanto - Como o Judiciário fiscaliza essa polícia que mata?Bom, a função do Judiciário não é bem fiscalizar, o poder dele é decidir nos casos concretos. Uma vez, um delegado do Rio de Janeiro me disse que a polí-cia mata e quem assina o atestado de óbito é o Ju-diciário. Então a frase dele é essa. Considero certo o que ele disse, assino embaixo, mas não deixa de ser uma dor. Por que, de certa forma, quando você está em algum poder do Estado, você também tem suas expectativas em relação a esse poder. Eu tenho os meus sonhos. Então é difícil às vezes você enca-rar que não funciona assim.

Tatiana Merlino - O que é a AJD? Como surgiu? Há quanto tempo você está lá?A Associação Juízes para a Democracia foi fundada em 13 de maio de 1991, lá na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Ela surgiu da necessidade de ter juízes atuando no processo de democratiza-ção do país, que ainda está em curso. Nós não tí-nhamos mecanismos para a manifestação, a não ser individuais. Teve um bom exemplo para nós, que foram as associações que tinham na Europa, mas lá eles dividem suas associações pelas suas linhas ide-ológicas. Era uma necessidade, a gente queria con-tribuir com o processo de democratização do país, queria contribuir com a democracia do Judiciário e tinha que ter algum mecanismo para poder fazer isso. Eu fui uma das fundadoras, éramos em qua-renta, na época, agora são 250, trezentos. A As-sociação é nacional e nós temos alguns núcleos: Pernambuco tem núcleo, Bahia, Tocantins, Santa Catarina, Rio de Janeiro...

Hamilton Octavio de Souza – Lembro de uma declaração de um ex-presidente da AJD que era o seguinte: “As elites brasileiras não estão preparadas para viver na democracia”. Pergunto isso a você: o que acha dessa afirmação?As elites não vão querer estar preparadas, na verda-

“O poder que eu falo não é o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. É o poder do dinheiro, o poder da força”.

de, de maneira geral, para uma efetiva democracia. Nós é que precisamos fazer. Não sei se existe algum momento de preparar as elites, mas nós temos que fazer acontecer e eu acho que isso vai acontecer, se-não não tem sentido a gente estar vivo.

Lúcia Rodrigues - Eu queria retomar a questão da prescrição dos crimes políticos de quem atuou na resistência. Existem defensores da tese do crime em andamento, porque se não tem os corpos dos desaparecidos o crime não pode prescrever..Essa foi a tese do Supremo Tribunal Federal especi-ficamente na decisão da extradição do Manuel Cor-deiro. O que se entendeu é que os desaparecimentos não estariam prescritos, justamente com essa fun-damentação, dizendo que se não tem corpo, então que não tem como contar com o fato da prescrição. Acho que haverá uma nova discussão no caso da tortura e nos casos dos homicídios, discussão que não existe ainda no Brasil, mas que já existe na or-dem internacional. A Comissão Interamericana e a Corte Interamericana de Direitos Humanos já têm posições claras de que não há prescrição em crimes de lesa humanidade, como esses que foram perpe-trados na época da ditadura.

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caros amigos novembro 2009 18

Fidel Castro

A “ética” neoliberal se reduz às virtudes privadas dos indivíduos. As-sim, reforça a atitude paralisante do moralismo, que reduz a ética a uma ilusória perfeição individual. Ora, se a sociedade é estruturada, a ética exi-ge uma teoria política normativa das instituições que regem a sociedade. Como acentua Marilena Chauí, não basta falar em ética na política. A crí-tica às instituições geradoras de injustiças e negadoras de direitos exige uma ética da política. Criar espaços de criação de novos direitos. As insti-tuições devem garantir a toda a sociedade a justiça distributiva – a partilha dos bens a que todos têm direito –, e a justiça participativa, a presença de todos – democracia – no poder que decide os rumos da sociedade.

De onde tirar os valores éticos universalmente aceitos? Como levar as pessoas a se perguntarem por critérios e valores? Hans Küng sugere que uma base ética mínima deve ser buscada nas grandes tradições religiosas. Seria o modo de passarmos das éticas regionais a uma ética planetária. Mas como aplicá-la ao terreno político? Mudar primeiro a sociedade ou as pes-soas? O ovo ou a galinha?

Inútil dar um passo atrás e fixar-se na utopia do controle do Estado como precondição para transformar a sociedade. É preciso, antes, transfor-mar a sociedade através de conquistas dos movimentos sociais, e de gestos e símbolos que acentuem as raízes antipopulares do modelo neoliberal. Com-binar as contradições de práticas cotidianas (empobrecimento progressivo da classe média, desemprego, disseminação das drogas, degradação do meio ambiente, preconceitos e discriminações) com grandes estratégias políticas.

É concessão à lógica burguesa admitir que o Estado seja o único lugar onde reside o poder. Este se alarga pela sociedade civil, pelos movimentos populares, pelas ONGs, pela esfera da arte e da cultura, que incutem novos modos de pensar, de sentir e de agir, e modificam valores e representações ideológicas, inclusive religiosas.

A crise da esquerda não resulta apenas da queda do Muro de Berlim. É também teórica e prática. Teórica, de quem enfrenta o desafio de um socialis-mo sem stalinismo, dogmatismo, sacralização de líderes e de estruturas políti-cas. E prática, de quem sabe que não há saída sem retomar o trabalho de base, reinventar a estrutura sindical, reativar o movimento estudantil, incluir em sua pauta as questões indígenas, étnicas, sexuais, feministas e ecológicas.

Neste mundo desesperançado, apenas a imaginação e a criatividade da esquerda são capazes de livrar a juventude da inércia, a classe média do desalento, os excluídos do sofrido conformismo. Isso requer uma ideologia que resgate a ética humanista do socialismo e abandone toda interpretação escolástica da realidade. Sobretudo toda atitude que, em nome do comba-te à burguesia, faz a esquerda agir mimeticamente como burguesa, ao in-censar vaidades, apegar-se a funções de poder, sonegar informações sobre recursos financeiros, reforçar a antropofagia de grupos e tendências que se satisfazem em morder uns aos outros.

O polo de referência das esquerdas, em torno do qual precisam se unir, é somente um: os direitos dos pobres.

Ética e política

a alBa e Copenhague

Frei Betto

Nos atos festivos da 7ª Reunião de Cúpula da ALBA, na his-tórica região boliviana de Cochabamba, se pode observar quantas sim-patias despertam os cantos, danças, vestes, rostos expressivos dos seres humanos de todas as etnias, cores e matizes: indígenas, negros, brancos e mestiços, nas crianças, nos jovens e nos adultos de todas as idades. Ali se expressavam milênios de história humana e a rica cultura, que expli-cam a decisão com que os líderes convocaram essa Cúpula.

A 7ª Reunião da ALBA teve grande sucesso. A ALBA — criada pela Re-pública Bolivariana da Venezuela e Cuba, como um exemplo, sem prece-dentes, de solidariedade revolucionária — tem demonstrado quanta coi-sa se pode fazer em apenas cinco anos de cooperação pacífica. O povo da Venezuela, como o de Cuba, resistiu às brutais investidas do imperia-lismo. Os sandinistas se recuperaram e a luta pela soberania, indepen-dência e socialismo ganhou força na Bolívia e no Equador. Honduras, que aderiu à ALBA, foi vítima de um brutal golpe de Estado, inspirado pelo embaixador ianque e impulsionado na base militar dos Estados Unidos em Palmerola.

Hoje, quatro países latino-americanos eliminaram o analfabetis-mo: Cuba, Venezuela, Bolívia e Nicarágua; o quinto, Equador, avança para esse objetivo. Os planos de saúde integral nos cinco países cami-nham a um ritmo que nunca houve no Terceiro Mundo. Os cinco Estados já possuem um reconhecido prestígio no mundo pela sua posição corajo-sa diante do poder do império. À ALBA, aderiram três países caribenhos de origem negra e língua inglesa, que lutam resolutamente pelo seu de-senvolvimento.

O sistema que, numa breve etapa histórica, levou à existência de mais de 1 bilhão de famintos e de muitas outras centenas de milhões, cujas vi-das apenas ultrapassam a metade da média de que desfrutam os dos países ricos, era até este momento o principal problema da humanidade.

Na Cúpula da ALBA se colocou com muita ênfase um novo pro-blema: a mudança climática. Em nenhum outro momento da história hu-mana houve um perigo de tal magnitude.

Enquanto Hugo Chávez, Evo Morales e Daniel Ortega se despediam da população de Cochabamba, o primeiro-ministro britânico Gordon Brown presidia em Londres uma reunião do Fórum das Grandes Econo-mias do mundo, principais responsáveis pelas emissões de dióxido de carbono. Ele advertiu que, se não se chegar a um acordo em Copenha-gue, as consequências serão “desastrosas”.

Enchentes, secas e ondas de calor letais são algumas das con-sequências “catastróficas”, afirmou por sua vez o grupo ecológico Fun-do Mundial para a Natureza: “Não haverá um plano B se Copenhague fracassar”.

A 13 de dezembro, reunião da ALBA em Havana; 16 de dezembro, em Copenhague, estará o pequeno grupo de países da ALBA. Já não é ques-tão de “Pátria ou Morte”; é questão de “Vida ou Morte”.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com L.F. Veríssimo e outros, de “O desafio ético” (Garamond), entre outros livros. Fidel Castro Ruz

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19novembro 2009 caros amigos

Ana MirandaMeMórias De uM jornalista não investigativoRenato Pompeu

Fui conhecer Parnaíba, a cidade, linda, cheia de lembranças históricas, de literatura, de poe-tas... a poesia é o reduto do mundo... cidade às mar-gens do Parnaíba, rio forte que arrasta meninos corajo-sos. Adiante, fica o delta do rio, onde me levaram, lugar impressionante, inesquecível. Delta dos maiores e mais belos do mundo, assim, só o do rio Nilo, e o do Mekong... Antes de desaguar no oceano, o Parnaíba se abre feito um delta, ou feito a palma da mão aberta, em cinco bra-ços, cada qual com nem sei quantas ilhas fluviais, ilho-tas, recantos, labirintos de água entre vegetações di-versas e belas, ou assustadoras, ou profundas, jardins de raízes, florestas de restinga, matas ciliares, man-guezais, e as dunas, as areias de vento, as maternida-des... Tudo se seguindo, em espelhos, nuvens dentro das águas. Uma natureza tão pura que eu me sentia no sé-culo 16. Um navegante português, Nicolau de Resende, em 1571 naufragou perto dali, com uma carga valiosa em ouro. Ficou dezesseis anos tentando recuperar seu tesouro, mas acabou por encontrar um outro muito mais valioso. O local tornou-se esconderijo de piratas e corsá-rios que ali faziam aguada, e se emboscavam para ata-car as velas que passavam com riquezas do Norte para a Bahia. Ali se esconderam os combatentes franceses que foram resistir às forças luso-brasileiras na região de Ibiapaba, ajudados pelos índios Mel Redondo, Ubaú-na, Diabo Grande, que tantas vezes encontrei em minhas leituras históricas; ou a explosão mesmo ali da cruel Ba-laiada, guerra que acontece num de meus romances, em que figura o bravo coronel Fidié. E lá estava eu, me ima-ginando um bem-te-vi, um corsário, ou uma Tremembé. Bom lugar para se esconder, e tive medo de nos perder-mos... Íamos num barquinho a motor, desviando das re-des de pesca estendidas de uma à outra margem, nosso guia era muito experiente do local, sabia levantar o mo-tor para superar as redes, sabia caçar jacarés noturnos, desentocar caranguejos-uçás, o que ele demonstrou, re-tirando dentre as raízes na lama dois uçás, a fêmea e o macho, agitando as pinças vermelhas. Os guaiamuns se-riam azuis, disse o guia. E não nos perdemos, retornamos deslizando nos raios do sol que recobriam as águas plá-cidas, e o nosso motorzinho quebrou, só para um gosto maior de aventura.

Delta do Parnaíba

Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias e outros romances, editados pela Companhia das Letras. Suas crônicas estão reu-nidas no volume Deus-dará, da Editora Casa Amarela. [email protected]

Como jornalista, já estive nos dois lados da imprensa: a grande mídia e a mídia alternativa. Como jornalista e escritor, já estive nos dois la-dos da entrevista: como entrevistador e como entrevistado. Na primeira situação, pude no-tar, na mídia grande, intervenções frequentes no meu trabalho por parte da direção da publi-cação, que tenho relatado nesta coluna, como o acrescentamento da frase: “Felizmente, sur-giram agora os cigarros de baixo teor, que não têm esses problemas” a uma matéria que fiz so-bre os males do tabaco para a revista Veja em fins dos anos 1970.

Mas na imprensa alternativa, bem menos ra-ramente – diga-se a bem da verdade, a mídia al-ternativa respeita muito mais o profissionalismo do trabalho do que a mídia grande –, também enfrentei dificuldades. Certa vez, igualmente nos anos 1970, escrevi para o semanário Opinião (praticamente, durante anos, a única publicação não clandestina de oposição ao regime militar), uma matéria sobre o Oriente Médio, em que eu dizia que a União Soviética, mesmo apoiando países árabes na Guerra do Yom Kippur, respei-tava a legitimidade da existência do Estado de Israel. Qual não foi minha surpresa, ao ler o arti-go publicado, ao vê-lo dar a entender outra coi-sa que não a que eu havia dito. Isso me levou a não escrever mais para o semanário.

Outra ocasião, no jornal esquerdista Retrato do Brasil, diário que circulou por pouco tempo na segunda metade dos anos 1980, escrevi, e foi publicada, uma nota dizendo que duas jovens da minoria grega da Albânia comunista, cansadas da repressão à sua etnia pela maioria albanesa,

haviam cavado pelas próprias mãos um túnel numa montanha da fronteira, para se abrigarem na vizinha Grécia. Isso gerou uma investigação do jornal sobre como podia ter saído num jor-nal daqueles uma notícia dessas. Fui “inocen-tado”, pois não era o responsável pela publica-ção da nota.

Como entrevistador, fui um dos pionei-ros em comparecer diante de um entrevistado com a máquina de escrever, primeiro, e com um subnotebook, depois, para que o entrevis-tado visse e aprovasse as frases tal como as ti-nha dito. Como escritor entrevistado, eu disse a uma repórter do Jornal do Brasil que eu não tinha descrito cenas de tortura no meu roman-ce Quatro-Olhos, publicado em 1976, por não ter sentido necessidade artística disso. A ma-téria saiu assinada por outro jornalista e dizia algo assim como “Renato Pompeu preferiu o caminho da autocensura”. Na verdade, presos políticos me contaram que a posse desse meu livro era considerada agravante pelos interro-gadores do regime militar.

“Eu sou do tempo em que você podia levar qualquer nota de dinheiro ao Tesouro Nacional e trocar pelo valor em ouro. Na nota vinha o célebre aviso: No Tesouro Nacional, se pagará ao portador desta a quantia de...”

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Os outros lados da imprensa

Renato Pompeu é jornalista e [email protected]

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caros amigos novembro 2009 20

A 26 de outubro, no Teatro da Universi-dade Católica, Tuca, em São Paulo, ocorreu a ceri-mônia de entrega do 31.o Prêmio Jornalístico Vladi-mir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, promoção do Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo. A Caros Amigos ganhou em duas categorias: revis-ta (Tatiana Merlino, “Por que a Justiça não pune os ricos”) e Internet (Lúcia Rodrigues e Tatiana Merli-no, “Uma missa para um torturador”). É a seguinte a relação dos vencedores:

Prêmio Especial: Analfabetismo Cultural – “Analfabetismo: a exclusão pelas letras”, Amanda Machado Cieglinsk - Agência Brasil (Empresa Bra-sil de Comunicação).. Menções honrosas – “Educa-ção – série” Fábio Féter - TV Brasil,. “Radiografia da Educação Mineira”, Daniela Arbex - O Tempo - Belo Horizonte (MG)

Artes – “Menor infrator”, Renato Machado Gonçalves - Diário de S. Paulo

Fotografia – “Advogada é morta por ladrão, na Ponta da Praia, Alexsander Ferraz, A Tribuna de Santos – Santos, SP. Menções honrosas: “A Flor da Pele”, Alexandre Severo, Jornal do Commercio, Re-cife, PE; “O destino trágico das crianças”, Francis-co Chagas Porto, Jornal do Commercio, Recife. cio - Recife (PE)

TV Reportagem – “Moradores de rua”, Sandra Aparecida Granzotti e equipe (Erlin Schmi-

dt, Ivone Moreira da Silva, Claudionor José Pecora-ri), EPTV Campinas (TV Globo). Menções honrosas: “Anistia 30 anos”, Rosana Janco Mamani e equipe (Rodrigo Vianna, Márcia Silveira da Cunha, Glau-co Dória Fonseca, Sandro Henrique Ferreira, Edu-ardo Salsa, Fernando Gonçalves), TV Record; “Cra-ck – nem pensar”, Giovana Perine Jacques e equipe (Ildiane Silva e Márcia Callegaro), RBS TV – Floria-nópolis, SC.

TV Documentário – “Infância perdida para o tráfico”, Catia Cristina Mazin e equipe (Flávio Rodrigues Ley Antonio, Letícia Maria Rezende Gil e Cristiano Rodrigo de Souza Teixeira), TV Record. Menções honrosas: “Chico Mendes, Cartas da Flo-resta”, Dulce Valéria Queiroz, TV Câmara; “Fome na América Central”, Marcelo Canellas e equipe (André Fellipe Gatto e Lúcio Matildes Alves, TV Globo.

TV Imagem – “Moradores de rua”, Erlin Schmidt – EPTV Campinas (TV Globo).

Rádio – “Preconceito: a intolerância no fute-bol”, Leandro Mota Lima dos Santos, Rádio CBN. Menções honrosas: “Escravos da esperança: a saga dos bolivianos em São Paulo”, George Rodrigues Cardim e Celso Cavalcanti de Melo Júnior, Rádio Senado; “Crack, vidas interrompidas”, Paulo Henri-que Souza e Priscila de Souza, Rádio CBN.

Jornal – “Feridas abertas da fome”, Ciara Nú-bia de Carvalho Alves e Ana Carolina de Almeida,

Jornal do Commercio, Recife. Menções honrosas: “Curió abre arquivo e revela que Exército execu-tou 41 no Araguaia”, Leonêncio Nossa Jr. e Fran-cisco de Assis Sampaio, O Estado de S. Paulo; “Qui-lombolas”, Silvia Bessa e Vandeck Santiago, Diário de Pernambuco.

Revista – “Por que a Justiça não pune os ri-cos”, Tatiana Merlino, Caros Amigos. Menções hon-rosas: “Tolerância se aprende na escola”, Ana Lima S. Aranha, Época; Castelo dos Sonhos”, Marques Edilberth Casara e Tatiana Cardeal, Na Mão Certa.

Internet – “Uma missa para o torturador”, Lucia Rodrigues e Tatiana Merlino, Caros Amigos. Menções honrosas “Deputado Luiz Couto – o padre censurado pela Igreja Católica”, Edson Sardinha de Souza, Congresso em Foco; “Analfabetismo: a ex-clusão pelas letras”, Amanda Machado Cieglinski, Agência Brasil de Comunicação.

Livro Reportagem – “Olho por Olho – Os Livros Secretos da Ditadura”, Lucas Castro Figueire-do, Editora Record. Menções honrosas: “O Olho da Rua”, Eliane Brum, Editora Globo; “Operação Con-dor – O Sequestro dos Uruguaios – Uma Reporta-gem dos Tempos da Ditadura”, Luiz Cláudio Cunha, L@PM Editores.

Dois Prêmios Herzog

para a Caros amigos

Renato Pompeu

Tatiana e Lúcia recebem prêmio da categoria internet. Abaixo, premiação de Tatiana na categoria revista.

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Renato Pompeu é jornalista

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21novembro 2009 caros amigos

O METEORO

Cesar Cardoso

Cesar Cardoso era escritor até seu cérebro se dissol-ver. Agora ele tem o blog PATAVINA’S (www.cesar-car.blogspot.com ).

Depois do Renascimento, da imprensa e das grandes navegações, vivemos o Remorrimento. Depois dos minutos de fama, agora cada um de nós terá direito a quinze segundos de terror, jogando uma bomba no seu bairro ou no inimigo preferido.

Nós desaparecemos mas, do futuro, os trans-ho-mo sapiens nos pensam. A espécie Homut substitui a humana. Depois do ie-ie-iê, o gen-gen-gen. E va-mos tomando ciência pela manhã, bebendo tecno-logia pela noite e vomitando história na madrugada.

Sim, morremos. Mas também não é a morte. Graças aos laboratórios criamos guelras e voltamos ao fundo do mar, como a primeira ame-ba. Lá estaremos a salvo do terremoto que engoliu o Japão, do espirro que dissolve o cérebro, da gravi-dez em orelhas de rato. Encontraremos entre as al-

gas mortas a vacina contra deus? Num mundo tecnopântano rezamos. Nos últimos

quatro meses, passearam pelos céus de cianureto 12 mil legiões de anjos com espadas de fogo, de la-ser, de fibra ótica, de espuma, de nuvem, holográ-ficas. Oitocentas novas bíblias estão sendo escritas no ciberespaço. Mil e duzentos candidatos a Jesus se inscreveram para as próximas eleições. E tudo com desconto no Amazon.

Mas as tentações não nos deixam cair. Grandes corporações escrevem poesia. As indústrias das armas dançam balé. Os cartéis das drogas to-cam sonatas. E os discursos se falam sem precisar mais das bocas, das faringes, das cordas vocais, do ar nos pulmões. Liberdade, liberdade, abre as pa-tas sobre nós.

Todos os fatos são pardos. Que importância têm as coisas? Chips subcutâneos nos fazem reproduzir, escolhem a programação do compceltv, autorizam as compras, bombardeiam países. O fundamentalis-mo ao alcance de todos. A catatonia em três lições. Os dez pixels para a felicidade.

Até que o meteoro louco veio do nada e nos desdisse a todos.

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caros amigos novembro 2009 22

encontra-se instalada e em pleno funcio-namento na Câmara dos Deputados a Co-missão Parlamentar de Inquérito destina-

da a “investigar a dívida pública da União, estados e municípios, o pagamento de juros, os beneficiá-rios destes pagamentos e o seu monumental impac-to nas políticas sociais e no desenvolvimento sus-tentável do país”.

Trata-se de tema da maior relevância para a so-ciedade, tendo em vista que os gastos com a dívi-da consomem cada vez mais recursos do orçamen-to federal, sendo que em 2008 representaram mais de 30% de tudo o que foi gasto no ano, equivalen-tes a R$ 282 bilhões. Essa cifra é mais de 6 vezes superior aos gastos com saúde, mais de 12 vezes os gastos com educação, ou 113 vezes os gastos com Reforma Agrária, como mostra o gráfico.

Além desse elevado fluxo de recursos, o esto-que da dívida pública também vem crescendo ace-leradamente. A dívida “interna” alcançou a cifra de R$ 1,8 trilhão em julho de 2009 e a dívida externa atingiu US$ 267 bilhões ao final de 2008.

Tanto no Brasil como nos demais países da Amé-rica Latina a dominação e sangria exercidas pela dívida pública se têm aprofundado, transforman-do nosso continente em exportador de capitais, ao mesmo tempo em que as necessidades básicas de grande parte da população não são atendidas e os direitos humanos são desrespeitados.

No Brasil, apesar do fato de a dívida pública consumir a maior fatia dos gastos públicos e con-tar com privilégio sobre todos os demais gastos, su-cessivos governos teimam em afirmar que “a dívida não seria mais problema”, encobrindo da socieda-

de a verdadeira causa da inexplicável incompati-bilidade de um país tão rico como o Brasil convi-ver com milhões de miseráveis, analfabetos, sem moradia ou terra para plantar, sem acesso a saúde, educação, saneamento, segurança, assistência, en-fim, sem vida digna.

A “dívida interna” representa uma nova face da dívida externa, pois a mesma se encontra, em gran-de parte, nas mãos de estrangeiros que gozam de isenção tributária, liberdade de capitais e ainda usu-fruem das taxas de juros mais elevadas do planeta. Além disso, os títulos da dívida interna rendem ele-vados ganhos cambiais, pois o real tem tido forte va-lorização frente ao dólar. O Banco Central compra os dólares trazidos pelos especuladores, ficando com um verdadeiro “mico” – moeda estrangeira em que-da - fornecendo-lhes em troca títulos da dívida in-terna, gerando imensos lucros para o setor privado e absurdos prejuízos para o setor público.

Esta prática tem resultado numa volumosa acu-mulação de reservas cambiais, compostas em sua grande maioria por títulos da dívida pública nor-te-americana, que não remuneram quase nada. A acumulação de reservas tem sido defendida como necessária “para enfrentar a crise”, ou seja, a fuga de capitais. O correto seria que o governo avanças-se na implementação de propostas de controle e/ou tributação sobre o fluxo de capitais especulativos.

O custo dessa política para a sociedade tem sido elevadíssimo: apenas no primeiro semestre de 2009 o Banco Central registrou o megaprejuízo de R$ 93 bilhões, que será integralmente coberto pelo Te-souro, ou seja, pelo povo, conforme determina a Lei Complementar 101, mais conhecida por seu curioso

nome de “Lei de Responsabilidade Fiscal”, que para o prejuízo do BC não estabelece limite algum.

Após vários anos de luta denunciando fatos e negociações inexplicáveis sob qualquer ponto de vista - como o “erro” anunciado pelo BC em 2001, de mais de US$ 30 bilhões no volume da dívida ex-terna, os pagamentos antecipados ao FMI em 2005, o resgate antecipado de títulos Brady em 2006, dentre outras - a Auditoria Cidadã da Dívida fi-nalmente logrou êxito, mesmo que em outro país. Em julho de 2007, tive a honra de ser nomeada pelo presidente do Equador, Rafael Correa, para parti-cipar da Comissão para a Auditoria Integral da Dí-vida Pública (CAIC) equatoriana, juntamente com membros de organizações sociais nacionais e inter-nacionais. A CAIC Equatoriana demonstrou a força da auditoria como um instrumento de transparên-cia, capaz de revelar e documentar a origem das dí-vidas que há décadas condicionam os países do Sul a implementar políticas antissociais, como o cor-te de gastos sociais, desregulamentações e priva-tizações, impostas por organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional, de forma articulada com os bancos privados.

No Equador, a auditoria deu resultado: com base no Relatório da CAIC, que apontou diversas ilegali-dades – todas documentadas e provadas – o gover-no equatoriano tomou a decisão soberana de propor aos bancos privados a anulação de 70% da dívida, representada pelos Bônus 2012 e 2030. Nada menos que 91% dos detentores de tais títulos aceitaram a decisão. A atitude do presidente do Equador que-brou a atual hegemonia do “Mercado” em todas as decisões de política econômica no continente.

No Brasil, a partir de iniciativa do deputado Ivan Valente (PSOL/SP), que formulou o requerimento da CPI da Dívida Pública, recolheu cerca de 200 assina-turas de deputados e trabalhou duramente para que os partidos indicassem seus membros, finalmente, em 19 de agosto de 2009, foi instalada a CPI da Dí-vida Pública na Câmara dos Deputados.

Trata-se de fato histórico para o Brasil e para os demais países que atualmente sofrem com a domi-nação exercida pela dívida. Essa oportunidade pre-cisa ser apropriada pela sociedade, que anseia desde a Constituição de 1988 pela realização da auditoria da dívida ali prevista e até hoje não realizada.

Até o momento, já ocorreram importantes audi-ências públicas, ressaltando-se a presença de Carlos Lessa e Márcio Pochmann, dentre outros que apon-taram importantes equívocos da atual política eco-nômica, centrada na dominância financeira que tem como pano de fundo o endividamento público.

Se houver vontade política e envolvimento social, como no Equador, a CPI poderá mostrar a verdadei-ra natureza da dívida, como ela cresceu, e quem tem se beneficiado desse processo. O relatório final pode-rá servir como importante instrumento capaz de sus-tentar decisões soberanas. Assim esperamos!

Maria Lucia Fattorelli

Importante passo para a Auditoria

Fonte: SIAFI. elAborAção: AudItorIA CIdAdã dA dívIdA

Maria Lucia Fattorelli é coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão de Auditoria Oficial da Dívida Equatoriana.

da DíviDa PúblicaTransporte 0,51%Comércio e serviços 0,14%Indústria 0,17%Organização Agrária 0,27%Agricultura 0,79%Ciência e Tecnologia 0,43%Gestão Ambiental 0,16%Direitos da Cidadania 0,10%Educação 2,57%Trabalho 2,38%Saúde 4,81%Assistência Social 3,08%Relações Exteriores 0,20%Segurança Pública 0,59%Defesa Nacional 2,01%Administração 1,40%Essencial à Justiça 0,46%Judiciário 1,92%Legislativo 0,51%Outros Encargos Especiais 5,13%

Brasil – a dívida é a maior parte do orçamento Orçamento geral da União – 2008 – por função-R$

Saneamento 0,05%Habitação 0,02%Urbanismo 0,12%Cultura 0,06%

Transferências a Estados e Municípios

13,61%

Juros e Amortizações da Dívida 30,57%

Previdência Social 27,84%

Energia 0,05%Desporto e Lazer 0,02%Comunicações 0,04%

R$ 282 bilhões

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23novembro 2009 caros amigos

Dilma Dissolverá o Epistemológico Petucanismo de são Paulo?

Gilberto Felisberto Vasconcellos

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

O legado antinacional da “era vendida” de FHC ainda não foi superado. A euforia em torno do pe-tróleo pode ser um desastre se esquecida a seguin-te verdade: o combustível fóssil é coisa do passado. Equívoco é separar de modo adialético o petróleo das futuras energias vegetais renováveis.

Renacionalizar a Petrobras como uma empresa de energia (não apenas de hidrocarboneto) significa convertê-la em uma empresa de energia renovável (biomassa) para impedir a internacionalização mul-tinacional do álcool e óleos vegetais.

O governo deveria aproveitar o petróleo para exportá-lo e, com os recursos auferidos, investir na produção de um combustível barato (o álcool) para o povo fazer uso internamente, tendo a Petrobras re-nacionalizada como articuladora de milhares de mi-crodestilarias, criando empregos e ocupando a terra: a reforma agrária sob a égide do MST e com a ajuda do Exército, como queria Leonel Brizola.

Equívoco é associar a produção de álcool-com-

bustível com o latifúndio, como se uma coisa de-pendesse da outra.

Marcelo Guimarães concebia as micro-destilarias a álcool (produção simultânea de cacha-ça, leite, rapadura, adubo orgânico e carne) descen-tralizadas por todo o território. É a única estratégia de criação de empregos para a massa da população, ao contrário do modelo de plantation latifundiária mul-tinacional de álcool e biocombustíveis, que continua-rá expulsando o trabalhador do campo para as fave-las e periferias das cidades.

A mídia sempre foi contra o monopólio estatal do petróleo. Foi para impedir a criação da Petrobrás que a Standard Oil de Rockefeller bancou o Repór-ter Esso, cujo dinheiro continua até hoje molhando a mão dos proprietários da mídia venal.

É provável que a questão da energia disjunte as afi-nidades eletivas entre PT e PSBD. O pacto burguês e pe-tucano de São Paulo será finalmente rompido? Invés de vasos comunicantes entre PT e PSDB, surgirão rela-

ções politicamente antagônicas? O nacionalismo (no caso da energia é forçosamente anti-imperialista) irá dissolver o petucanismo? A história da América Lati-na mostra que o poder nacionalista sempre motivou a derrubada de presidentes da República. A única exce-ção foi Collor, que não era nacionalista nem ensaiou qualquer contra-hegemonia ao Império. A história en-sina o seguinte: onde há petróleo abundante, os EUA põem o seu time para fazer guerra: a “oil war” (guer-ra do petróleo) tem sido o roteiro do Pentágono de-pois do Vietnã. O PSDB é o partido a favor da entrega da energia ao capital estrangeiro. Quis mudar o nome da Petrobras para Petrobrax, a fim de agradar aos ou-vidos dos gringos. José Serra batalhou para aprovar a “lei das patentes”, concedendo às multinacionais o di-reito de dispor da vida das plantas e tornar a natureza dos trópicos um bagulho fungível.

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ensaio DORA MARTINS

O povo do Timor Leste habita sua ilha azul há milênios. Resistentes, os timorenses e as timorenses morreram e renasceram por sua terra, tantas vezes. Em cada 20 de novembro, Timor Leste reafirma sua inde-pendência de Portugal. Quando declarado, em 1974, o ato de liberdade motivou a invasão e ocupação do pequeno país pela vizinha Indonésia, que tinha apoio logístico dos EUA. Quatro anos após, 200 mil timoren-ses já haviam sido massacrados, sem que o mundo olhasse para tanto desrespeito humano. Somente em 1999 os timorenses conseguiram re-cuperar sua independência e persistem, agora, na busca pelo respeito à sua dignidade de país novo e povo antigo, pela liberdade de sentir e vi-ver seus milenares costumes e tradições. Mas o temor ainda habita o Timor Leste, pois sob a encantadora ilha repousam recheados poços de petróleo que atraem olhares e ações de malais (Estrangeiros, na língua Tétum), jogo de poder, corrupção, injustiça, cobiça e conflitos. Dame ba Tim! (Paz para o Timor!).

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Marcelo Salles

no mês de outubro, o Rio de Janeiro esteve no centro das atenções mundiais. No dia 2, em Copenhague, Dinamarca, o Comi-

tê Olímpico Internacional (COI) escolheu a cidade para sediar os Jogos de 2016. O anúncio foi recebi-do com festa por milhares de pessoas nas areias de Copacabana e teve direito a transmissão ao vivo em rádio, televisão e internet. Mais de 100 anos depois do início dos Jogos modernos, finalmente um país latino-americano conseguiu a façanha.

E pra chegar lá não foram medidos esforços. Prefeitura, Governo do Estado e Governo Fede-

Por trás da emoção provocada pela escolha da cidade como sede dos jogos, pode-se encontrar indícios de que os Jogos Olímpicos estão muito mais para Negócios Olímpicos.

Jogos ou Negócios olímpicos?ral trabalharam (e investiram) juntos. O material apresentado pela candidatura do Rio foi de pri-meira qualidade: o projeto, no papel, contempla e suplanta todas as exigências do COI; o poder pú-blico garante o orçamento e qualquer necessida-de extra; vídeos cinematográficos mostram o me-lhor da cidade e por aí vai.

Um desses vídeos consegue, em cinco ou seis minutos, dar conta de quase todas as caracterís-ticas do Rio de Janeiro, sobretudo aquelas valo-rizadas no exterior: capoeira, samba, mulata re-bolando (discretamente), Pão de Açúcar, Cristo

A ilustração foi idealizada pela Outdoor Humano, estamparia criada por Marcelo Yuka e Orlando Zaccone

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Redentor, Estação das Barcas, caipirinha, pal-meiras imperiais no Jardim Botânico, bondinho de Santa Teresa. Todo esse cenário emoldurando uma calorosa recepção, pelo povo, das várias de-legações olímpicas que caminham juntas pela ci-dade, até que se encontram na praia. A persona-gem-narradora, uma jovem negra, fala, em inglês com tradução para o português, sobre união, vida e paixão, “elementos que vão se encontrar” no Rio em 2016. Um complemento do discurso do presidente Lula, que pouco antes da exibição do vídeo havia dito aos delegados do COI: “a mais linda e maravilhosa cidade está de portas aber-tas para a maior festa da humanidade”. Emocio-na qualquer um.

Todo esse otimismo é compreensível, mesmo porque a realização de um evento deste porte abre inúmeras oportunidades para a cidade do Rio de Ja-neiro, em particular, e para o Brasil em geral. No entanto, por trás da emoção podemos encontrar in-dícios de que os Jogos Olímpicos estão muito mais para Negócios Olímpicos. E nada sugere que o maior beneficiado será o Rio de Janeiro ou o Brasil.

ProPosta elitizada“Temos visto que o esporte vem sendo usado

como produtor de consenso e venda de uma cida-de”, diz Alessandro Biazzi, do Comitê Social que acompanhou os Jogos Pan-Americanos e que está acompanhando o processo das Olimpíadas. O pes-quisador enxerga uma proposta bastante elitiza-da, com a maior parte dos investimentos na Barra da Tijuca: “o prefeito Eduardo Paes já disse que o modelo da Vila Pan-Americana vai ser mantido”. Ou seja, a Vila Olímpica será construída com pa-drão de classe média alta para que, depois dos Jo-gos, os apartamentos sejam vendidos com alto re-torno financeiro. “Um absurdo, se considerarmos o déficit habitacional do Rio”, afirma Alessandro. Para ele, a oportunidade poderia ajudar a contor-nar o problema, caso após os Jogos a Vila tivesse destinação popular.

A concentração dos investimentos na Barra derruba outra oportunidade histórica para a cida-de, que viria com a instalação do Parque Olímpi-co na Zona Portuária. Além de revitalizar a região, hoje bastante degradada, a obra abriria espaço para a integração viária do Centro com a Zona Norte e a Baixada Fluminense, desafogando as atuais vias de acesso. O prefeito do Rio afirma que isto é inviável devido ao compromisso assumido com o COI. No entanto, Alessandro suspeita que há outros interesses em jogo: além da concentra-ção dos investimentos na Barra, região da maior parte dos “lançamentos imobiliários”, o empresá-rio Eike Batista estaria tentando preservar a Zona Portuária com outros propósitos.

O projeto “Porto Maravilha”, como vem sendo chamado no Rio, será uma das maiores interven-

ções de todos os tempos na cidade. Numa área que abrange meia dúzia de bairros, cerca de 40 mil pes-soas estão ameaçadas de despejo violento. O gaba-rito (número máximo de andares que um prédio pode ter) da região passará de quatro para cinquen-ta andares. O que se diz é que será construído um enclave, uma cidade dentro da cidade, onde os ci-dadãos comuns serão impedidos de transitar. Have-rá lugar apenas para as grandes corporações como a Microsoft, que já teria comprado um edifício por algo em torno de R$ 50 milhões. Em tempo: Eike doou R$ 23 milhões para a campanha Rio 2016.

Outro que está bastante inquieto com a reali-zação dos Jogos Olímpicos no Rio é o engenheiro Eliomar Coelho, que atualmente exerce mandato de vereador pelo PSOL. “A história está se repe-tindo”, diz, referindo-se ao Pan: “Projetos deslum-brantes apresentados em datashow, uma euforia, tudo para trabalhar o imaginário de modo a não permitir nenhum questionamento”.

irregularidades nos gastos

Em 2007, a Organização Desportiva Pan-ame-ricana orçou o evento em R$ 409 milhões, mas, no final das contas, foram gastos R$ 5 bilhões. Houve alerta do Tribunal de Contas da União, que pos-teriormente encontrou irregularidades nos gastos. “Em toda a história de todos os grandes even-tos do mundo, não encontra-se uma diferença tão grande. A diferença máxima é 15%”, diz Eliomar, que entrou com pedido de CPI na Câmara dos Ve-readores. Ganhou, mas não levou. “A CPI foi apro-vada, mas não conseguimos instalar. Dos cinco membros, dois eram ligados a Cesar Maia (DEM) e outro a Eduardo Paes, que na época era secretário de Esportes e Turismo do governo estadual. Eles sempre davam um jeito de embananar tudo”.

No caso dos Jogos Olímpicos, o orçamento ofi-cial da candidatura Rio 2016 prevê gastos totais de 28.865.657,00 reais, como consta do sumário executivo publicado na página oficial da campa-nha: www.rio2016.org.br.

Outra crítica de Alessandro e Eliomar diz respei-to ao legado do Pan. A adaptação dos imóveis públi-cos para favorecer o acesso de deficientes físicos não ocorreu. As instalações construídas estão abandona-das, subutilizadas ou privatizadas, como, por exem-plo, o Velódromo, o Parque Aquático Maria Lenk e a Arena Multiuso, hoje administrada pelo HSBC.

Ao se ler o projeto vitorioso Rio 2016– calhama-ço com duas centenas de páginas – é possível no-tar a intenção de aprofundar a privatização da ci-dade. Das oito instalações sob o controle do poder público municipal, apenas uma não está/será con-cedida à iniciativa privada. As três estaduais serão terceirizadas. As onze construídas com recursos fe-derais terão uso misto ou serão licitadas para em-presas privadas. A iniciativa privada não vai inves-tir em nenhuma instalação esportiva nova.

Violência contra o PoVo Outro aspecto envolvido no processo dos Jo-

gos Olímpicos de 2016 são as ameaças de despe-jo violento – como aconteceu nas Olimpíadas de Atlanta, nos EUA – contra moradores de favelas do Rio, sobretudo as que ficam na Zona Oeste, re-gião que nas últimas duas décadas vem passando por um acelerado processo de especulação imo-biliária. “Com o anúncio das Olimpíadas, a co-munidade voltou a ficar preocupada”, afirma a defensora pública Maria Lúcia Pontes, em rela-ção à Vila Autódromo. O Núcleo de Terras da De-fensoria já acompanha o caso desta favela des-de a década de 1990, quando tiveram início as tentativas de despejo. No processo movido pela Prefeitura em 1993, quando Eduardo Paes era subprefeito da Barra, a acusação é de que a Vila causava “dano estético” à paisagem.

“Na verdade, o grande problema da Prefeitu-ra é com a pobreza, é isso que incomoda”, rebate Maria Lúcia. Com cerca de 2 mil famílias, a Vila Autódromo nasce a partir de uma colônia de pes-cadores e vem resistindo com o amparo dos títulos de concessão por 99 anos, concedidos pelo gover-no estadual entre as décadas de 1980 e 1990. Há dois anos, em função dos Jogos Pan-americanos, a tentativa de despejo foi rechaçada pelos mora-dores com paus e pedras.

Os moradores do Canal do Anil, outra favela da região, também estão de orelha em pé. Vizi-nha da Vila Pan-Americana, a comunidade vem sendo ameaçada há pelo menos dois anos. “Com o Pan, 500 casas foram marcadas para remoção, sem nenhum aviso prévio”, lembra Maria Lúcia Pontes. A destruição das residências chegou a começar, mas foi embargada por uma decisão judicial que acatou ação cautelar da Defensoria. Na época, foram realizadas vigílias e os morado-res tiveram apoio de movimentos sociais orga-nizados, como o MST, da Pastoral de Favelas, de organizações de direitos humanos, de setores do Ministério Público e de parlamentares progres-sistas, como Brizola Neto, Edson Santos, Eliomar Coelho e Marcelo Freixo.

O Núcleo de Terras da Defensoria Pública, que há anos vem sendo um importante instrumen-to para a garantia do direito à moradia, acredita que até as Olimpíadas haverá muita pressão para que essas duas favelas sejam riscadas do mapa. Avalia-se que a pressão será muito maior do que aconteceu por ocasião dos Jogos Pan-America-nos. O próprio projeto apresentado pela candi-datura Rio 2016 já mostra o Parque Olímpico construído no espaço onde hoje está a Vila Au-tódromo. Mas, se depender da defensora pública Maria Lúcia Pontes, a história vai ser diferente: “Alguns órgãos já dão a remoção como certa. Eu não trabalho com essa ideia. Trabalho com a re-sistência das comunidades”.

Os próximos sete anos vão dizer quem sairá vitorioso nas Olimpíadas Rio 2016: os Jogos ou os Negócios.

Marcelo Salles é jornalista e coordenador de Caros Amigos no Rio de Janeiro. [email protected]

“Projetos deslumbrantes apresentados em data-show, uma euforia, tudo para trabalhar o imaginário de modo

a não permitir nenhum questionamento”.

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mais uma vez a revista Veja dá eco a histórias que não se comprovam depois. Foi assim no episódio pu-

blicado em 2005 sobre os dólares de Cuba, que teoricamente teriam financiado parte da cam-panha de Lula à Presidência da República, que conduziu o ex metalúrgico ao Planalto pela pri-meira vez, em 2002. O semanário também pu-blicou em 2005 reportagem que insinuava que candidatos ligados ao Partido dos Trabalhado-res teriam recebido recursos das Farc, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, para o financiamento de suas campanhas.

As fitas com o áudio do diálogo entre o pre-sidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, e o deputado federal Demós-tenes Torres (DEM-GO) reproduzido nas pági-nas de Veja, também nunca apareceram. Inves-tigação da Polícia Federal não identificou esses grampos que a revista insinuava existir. Segun-do a reportagem, essas gravações teriam sido

produzidas pela Abin (Agência Brasileira de In-teligência) e seriam repassadas a Lula, apesar de afirmar que não necessariamente o presidente tivesse conhecimento disso.

A principal publicação do grupo Abril se transformou em espécie de contadora de histó-rias da carochinha, para embalar seus leitores com a desinformação. Ao longo de anos, várias e várias historinhas têm ilustrado dezenas de páginas do folhetim romanceado da Marginal Pinheiros, quando o objetivo é desancar algum desafeto da família Civita. Faz a denúncia. Não prova nada. E fica o dito pelo não dito.

Desta vez o alvo do ataque foi o irmão do ministro Franklin Martins, o diretor da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocom-bustíveis), Victor de Souza Martins. As acusa-ções contra Victor foram veiculadas na colu-na de Diogo Mainardi, da edição de 8 de abril de 2009. O texto assinado pelo articulista afir-ma que um relatório interno e sigiloso da Po-

lícia Federal aponta o irmão do ministro como o responsável por um esquema de desvio de R$ 1,3 bilhão da Petrobras.

Mainardi assegurou na ocasião, que as pro-vas que haviam chegado a suas mãos funda-mentavam a denúncia publicada em sua colu-na. Como ficou comprovado posteriormente, o material a que ele faz referência foi produzido à margem da legalidade.

O tal relatório nunca fez parte de nenhum inquérito da Polícia Federal, nunca existiu ofi-cialmente. Foi fruto de uma ação clandestina de arapongagem, nos moldes do antigo SNI, o serviço de espionagem da ditadura militar, com grampos telefônicos e quebra de sigilos.

O procurador da República Marcelo de Fi-gueiredo Freire foi quem descobriu a armação. Ele atua no grupo do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro que controla as ações da Polí-cia Federal. Freire se surpreendeu com a denún-cia feita pelo articulista de Veja e solicitou ao

Veja usa dossiê falso de araponga para

incriminar diretor da anP

Wilson Ferreira Pinna ex agente da Polícia Federal e funcionário da Assessoria de Inteligência da Agência Nacional do Petróleo, grampeou seu diretor Victor de Souza Martins. Apesar de a ditadura militar ter acabado há 25 anos, as escutas clandestinas continuam a todo vapor no país.

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“Quem é jornalista sabe, que quem tem, mostra. Se não mostrou na primeira semana, não mostrou na segunda,

é blefe”, frisa o jornalista Luis Nassif.

superintendente da PF no Rio de Janeiro, Ânge-lo Fernandes Gióia, informações sobre o caso.

Em ofício datado de 14 de abril de 2009, ele pede providências ao chefe da Polícia Federal carioca, para que seja identifi cada a autoria de quem cometeu o crime. O resultado para a solici-tação veio de forma célere. Em aproximadamen-te 40 dias, a PF apontou o ex agente da Polícia Federal e funcionário da Assessoria de Inteligên-cia da ANP Wilson Ferreira Pinna, como o único responsável pela produção do material com in-formações ilícitas.

A responsabilização única de Pinna pela Po-lícia Federal não convenceu o procurador da República. “Eu não fi quei satisfeito só com a responsabilização do Pinna. Por isso, abri in-quérito suplementar. Não excluo a possibilidade de outros terem participado, dentro da ANP, da Polícia, da Receita Federal e de outros órgãos. Foram violados sigilos telefônico, fi scal. Prova-velmente para que isso tenha ocorrido terceiros efetivamente participaram”, diz o procurador.

Freire também comunicou ao superintenden-te da Polícia Federal que após a denúncia ter sido veiculada na revista, foi procurado por vários jor-nalistas sendo que um deles lhe entregou cópia de uma espécie de dossiê intitulado Operação Royal-

ties, que continha o nome de diversas pessoas e informações a respeito delas.

O documento entregue por esse jornalista ao procurador tem aproximadamente 10 páginas, é apócrifo e está diagramado em formato de um folder. A produção visual do material também é de boa qualidade. “Quando vi esse folder tive a convicção de que alguma coisa errada aconte-ceu”, relata Freire.

O procurador não quis revelar os nomes dos investigados que constam desse dossiê. E tam-bém não adiantou o número de pessoas arrola-das no material produzido ilegalmente, devido ao segredo de justiça que envolve o caso. “Não tenho autorização para divulgar esses dados.”

A reportagem da Caros Amigos apurou, no entanto, que além de Victor, o superintenden-te de Fiscalização da ANP, Jefferson Paranhos dos Santos, também teve a vida devassada pela arapongagem. “Quero que se faça justiça. Que-ro saber quem produziu o dossiê, quem pagou e quais foram os objetivos”, afi rma Victor.

inVestigaÇÃo

Freire sabia que a Polícia Federal havia ins-taurado inquérito em 6 de novembro de 2007, para apurar supostas irregularidades na classi-fi cação, no cálculo e pagamento de royalties de petróleo a municípios e Estados. Ele quis se certi-fi car de que a informação veiculada por Mainar-di não havia sido apensada nesse inquérito. As vistas ao processo deram ao procurador a certeza de que tais informações inexistiam nos autos.

“Constatei que fora feita uma investigação paralela, fora da cognição tanto do Ministério Público quanto do juízo criminal a que esta-va distribuído o inquérito”, frisa o procurador. Mesmo que de forma legal, a Polícia Federal não poderia ter promovido nenhum tipo de in-vestigação sem dar ciência ao MPF e à Justi-ça Federal.

Os dados obtidos e produzidos de maneira ilegal, como escutas clandestinas e quebra de sigilo fi scal, obviamente também não poderiam ser anexados à investigação que corre na jus-tiça federal. O dossiê completo produzido pela arapongagem foi condensado em um pendrive e deixado em um escaninho da PF.

“O que estava no pendrive não poderia ja-mais ingressar no inquérito. Por isso, não in-gressou. Porque se tivesse ingressado certa-mente eu teria aberto e visto todas as condutas ilícitas que estavam ali inseridas”, enfatiza o procurador da República.

A formatação do inquérito da PF nº 2.415, de novembro de 2007, que visava verifi car as su-postas irregularidades no repasse de royalties a

municípios e Estados também é peculiar e chama a atenção. A peça foi toda construída com base em noticiário da imprensa.

“É uma coisa pouco usual, eu tenho doze anos de MPF, todos na área criminal do Rio, e nunca vi um inquérito instaurado dessa forma. Isso não traduz nenhum tipo de conduta ile-gal, mas eu nunca vi inquérito instaurado de ofício, com base em notícias de jornal”, ressal-ta Freire.

Os delegados da PF Lorenzo Martins Pompí-lio da Hora, Francisca Eliane Freire, Bruno Bas-tos Oliveira e Osvaldo Scalezi Junior assinam o documento que instaurou esse inquérito. Os qua-tro policiais foram procurados pela reportagem da Caros Amigos, por intermédio da assessoria de imprensa da PF, mas não se pronunciaram sobre o caso.

“Reforçamos o posicionamento desta Supe-rintendência Regional pela manutenção do si-gilo dos inquéritos policiais conferida pelo ar-tigo 20 do Código de Processo Penal brasileiro”, afi rma a nota da assessoria de comunicação so-cial da Polícia Federal carioca.

Nesse inquérito, de poucas páginas, não ha-via nenhuma alusão a fato concreto, nem a ne-nhum fato criminoso com tipifi cação penal. “Não havia nada disso. Era um inquérito inci-piente, sem objeto defi nido e com pouca viabi-lidade. Praticamente fadado ao arquivamento”, destaca o procurador Freire.

Esse era o panorama que o Ministério Pú-blico Federal tinha até veiculação do artigo de Mainardi na Veja. “Fomos surpreendidos com a publicação na coluna da revista e depois por vá-rias outras matérias que faziam remissão a uma

incriminar diretor da anP

Artigo de Diogo Mainardi publicado em sua coluna na revista Veja, em 8 de abril de 2009.

Fac símile da capa da edição de 2 de novembro de 2005.

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investigação com um objeto mais bem definido, um alvo determinado e que para nossa surpresa desconhecíamos. Então procuramos saber o que de fato estava por traz daquilo tudo.”

Mau jornalisMoNa sua coluna, Mainardi afirma que “Victor

Martins se valeria do cargo para direcionar os pareceres da ANP sobre a concessão de royalties do petróleo, favorecendo prefeituras que acei-tassem contratar os préstimos de sua empresa de consultoria”.

Em nota, a assessoria de imprensa da ANP informa que o diretor da Agência não tem po-der para arbitrar que municípios têm direito a receber esses recursos. “Para receber royalties o município deve se enquadrar nos critérios esta-belecidos pela legislação brasileira.”

Em carta encaminhada a Veja, Victor Martins afirma que a Análise Consultoria, empresa em que é sócio com sua mulher, não assinou nenhum contrato com prefeituras ou empresas desde que ele tomou posse na ANP, em 20 de maio de 2005. “Seu último contrato foi firmado em agosto de 2004 e já está extinto.” Ele ressalta ainda que está afastado da empresa desde 19 de maio de 2005.

A reportagem de Caros Amigos tentou entre-vistar Mainardi para saber por que ele publicou o resultado de um relatório produzido clandes-tinamente pela arapongagem. Por e-mail, o ar-

ticulista respondeu que confirmava o que havia publicado em sua coluna. A reportagem insistiu que a entrevista seria importante para a cons-trução da matéria. “Tenho o maior interesse em retomar o assunto, mas não agora, porque estou esperando mais material”, justifica.

O diretor de redação de Veja, Eurípedes Al-cântara, também foi procurado pela reporta-gem de Caros Amigos, para comentar o assun-to, mas não retornou as ligações. A secretária do jornalista solicitou à reportagem que enca-minhasse as perguntas para o e-mail de Eurípe-des com cópia para o dela. Entre os questiona-mentos formulados, a reportagem perguntou se Veja tivera a preocupação de checar a veraci-dade do documento a que Mainardi se refere em sua coluna antes de publicá-lo. Como resposta, obteve o silêncio.

“A jogada é a seguinte: se publica algo to-talmente inconsistente e se deixa no ar que tem mais coisas. Quem é jornalista sabe, que quem tem, mostra. Se não mostrou na primeira sema-na, não mostrou na segunda, é blefe”, frisa o jornalista Luis Nassif, ao criticar a maneira de fazer jornalismo da revista Veja.

O jornalista e ministro da Secretaria de Co-municação Social da Presidência da República, Franklin Martins, também ficou surpreso com o tratamento dado pela mídia ao episódio do gram-po na ANP. “Acho chocante que a imprensa não

tenha feito investigação própria. Eu já dirigi re-dações e botaram papelórios na minha mão que não foram publicados. Tem de checar, ver se cor-responde à verdade”, enfatiza.

Franklin não atribui responsabilidade so-mente ao semanário. “Não foi só a revista, foi o Jornal Nacional, O Globo e outros grandes jor-nais. Eu fico estarrecido como jornais, telejor-nais, revistas, com larga experiência recebem um dossiê falso, apócrifo e publicam sem qual-quer investigação. Enlameiam a honra de um homem integro e depois fica por isso mesmo. A que ponto chegamos...”, lamenta o ministro.

araponga na linhaO ataque contra os dirigentes da ANP partiu

de dentro da própria Agência, justamente do se-tor que deveria proteger a instituição de espio-nagem. Wilson Ferreira Pinna, apontado pela PF como o único responsável pela produção do dossiê clandestino, ingressou na ANP em 05 de setembro de 2005, por indicação do delegado da Polícia Federal e chefe da Assessoria de Inteli-gência da Agência, Jorge Freitas.

Foi exonerado do cargo pouco mais de quatro anos depois, em 25 de setembro de 2009, após ter sido indentificado como o responsável pela produ-ção do material ilegal. A exoneração foi assinada pelo diretor geral da Agência, Haroldo Lima, e en-dossada pelos demais diretores da ANP.

Ao contrário do que foi publicado na Folha de S. Paulo pelo jornalista Márcio Aith, a asses-soria de imprensa da ANP nega que Pinna tives-se contato direto com Lima. “Wilson Pinna não só não freqüentou semanalmente o gabinete do diretor geral da ANP, Haroldo Lima, como nun-ca foi chamado por ele para conversa sobre qual-quer assunto, inclusive porque não era subordi-nado diretamente ao diretor geral. Pinna não era pessoa da confiança pessoal do diretor geral e também não despachava com ele pessoalmente”, reforça o texto da Agência.

Antes dessa passagem pela ANP, Pinna já ha-via trabalhado na Agência entre 27 de setembro de 2001 e 11 de setembro de 2003, em seu nú-cleo de fiscalização. Retornou a convite de Frei-tas, após ter se aposentado na Polícia Federal.

O ex agente foi procurado pela reportagem da Caros Amigos para comentar a ação penal que corre contra ele na 2ª Vara Criminal da Jus-tiça Federal no Rio de Janeiro. O contato foi fei-to por intermédio da assessoria de comunicação social da Polícia Federal que repassou a solicita-ção ao setor de inativos da PF, para ser encami-nhado a ele.

A reportagem também tentou obter o contato de Pinna por intermédio de seu advogado Otá-vio Bezerra Neves. Procurado várias vezes pela reportagem, no número de telefone de seu escri-tório de advocacia, no Rio de Janeiro, Bezerra Neves não retornou nenhuma ligação.

O juiz da 2ª Vara Criminal, Rodolfo Kronem-berg Hartmann, não comenta o assunto, devido ao fato de a ação penal estar correndo em segre-do de justiça.

“Eu fico estarrecido como jornais, telejornais, revistas, com larga experiência recebem um dossiê falso, apócrifo e publicam

sem qualquer investigação”, afirma Franklin Martins.

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nários de empresas telefônicas. “Depois da priva-tização, virou uma torre de babel”, critica, ao se referir à vulnerabilidade do sistema de telefonia.

Protógenes afirma que a tecnologia que trans-forma celulares em microfones de som ambiente é israelense. Segundo ele, o sistema é utilizado pelo Mossad, o serviço secreto de Israel.

Até o final da década de 90, os espiões uti-lizavam gravadores acoplados às caixas telefô-nicas dos postes da rua. “Posso assegurar que até esse período era assim. Gravavam até onde dava e depois trocavam a fitinha. E na sala de monitoramento da Polícia Federal tinha uma mesa com os gravadores plugados. Era bem ar-tesanal”, conta. O delegado conhece por dentro o serviço de espionagem brasileira. Ele atuou durante anos no setor de inteligência da PF.

“Tem agentes do passado que faziam espio-nagem política e hoje realizam esse serviço de grampos ilegais. De graça ninguém faz isso. Vi-rou promiscuidade a inteligência no Brasil, de-vido à fragilidade do próprio sistema.”

O delegado ressalta que esses agentes domi-nam a técnica, o conhecimento e são bem trei-nados. “Quem tem a preparação para favorecer a classe empresarial e favorecer determinado grupo político para destruir outro grupo políti-co são esses agentes do passado”, frisa.

Lúcia Rodrigues é jornalista. [email protected]

Procurador critica incorPoração de ex agentes do sni Pela abin

privilegiada a Polícia Federal, que apesar de seus problemas é um órgão que tem controle. Todo o trabalho de um delegado de polícia tem de ser colocado em relatório.”

O submundo dos grampos, intacto no país, está ligado à herança do regime militar que não foi devidamente solucionada pelos governos da redemocratização. Gueiros destaca também a tortura policial como outra herança da ditadu-ra que persiste até hoje no Brasil, devido à não punição dos torturadores do passado. “Para al-gumas coisas no Brasil houve uma transição, outras ficaram mal resolvidas.”

MonitoraMentoO diretor geral da Abin, Wilson Roberto Trezza,

admite que a Agência faz o monitoramento de mo-vimentos sociais, como o MST (Movimento dos Tra-balhadores Rurais Sem Terra). Ele fez a afirmação na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacio-nal do Senado, durante a sabatina que o oficializou no cargo, no dia 14 de outubro 2009.

Mas, em tempos de democracia, a arapon-gagem estendeu os tentáculos de sua atuação. Agora, os espiões também passaram a atuar de forma comercial. Produzem dossiês a respeito de qualquer assunto para quem pagar. Passa-ram a atuar também nas áreas de espionagem industrial e comercial.

O mercado de grampos no Brasil é um dos mais promissores. “É um mercado extremamen-te vasto, que opera com tabela de preço. Todo mundo sabe”, ressalta o procurador da Repúbli-ca Marcelo de Figueiredo Freire.

A sofisticação da tecnologia utilizada pela arapongagem é assustadora. Para ter a conver-sa grampeada, a pessoa investigada não preci-sa mais falar ao celular. Um sinal pode ser dis-parado por meio de um torpedo ou mesmo por uma simples ligação. Um sistema de escuta in-vade e ativa o aparelho, que passa a emitir o som ambiente do local onde o investigado está, para a central de monitoramento.

Até mesmo com o aparelho celular desligado é possível continuar a ter a intimidade devassa-da. A única forma de evitar que isso aconteça é desconectar a bateria do aparelho.

Quem faz a revelação sobre essa nova tecnolo-gia utilizada pelos espiões é o delegado Protógenes Queiroz, que liderou a Operação Satiagraha e que culminou na prisão do banqueiro Daniel Dantas.

Protógenes conta que foi informado por um amigo engenheiro de telecomunicações sobre essa nova técnica de se grampear. O delegado adianta que agora, também os celulares com flip (que possuem aba) estão sujeitos a esse tipo de invasão.

O delegado adverte ainda que o mecanismo de bisbilhotagem conta com a conivência de funcio-

Apesar de a ditadura ter acabado há 25 anos, sua estrutura de espionagem continua preser-vada. Os arapongas que atuaram no antigo SNI (Serviço Nacional de Informações) durante o regime militar foram absorvidos pela Abin, a agência de inteligência pós ditadura. A agên-cia é ligada ao Gabinete de Segurança Institu-cional da Presidência da República.

A incorporação desses agentes pela nova agência de informações brasileira é criticada pelo procurador regional da República e pro-fessor de Direito Penal da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Arthur Gueiros. Ele considera que esses agentes deveriam ter sido aposentados.

“Houve uma troca de siglas, o SNI passou a ser a Abin. Acho que foi um equívoco. Se fos-se para criar um órgão de espionagem que se criasse a partir do zero, com concurso público, com nova mentalidade. Um órgão de uma nova era, e não absorvendo os agentes antigos, que inevitavelmente trazem a mentalidade antiga. Quando se mantém o quadro antigo e se junta a um novo, o novo acaba se deixando influen-ciar pela mentalidade antiga”, destaca.

Para o procurador, o serviço de espionagem brasileiro deveria ser realizado por um órgão sujeito a controles legais, tradicionais, como o Ministério Público e Judiciário.

“Questiono esse modelo. Deveria ter sido

O procurador regional da República Arthur Gueiros.

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Os ingleses e franceses cOmeçaram a segunda guerra mundial?

A Editora Abril, na capa da revista Superin-teressante de setembro, sobre a Segunda Guerra Mundial, escreve: “Tudo que você sabe pode estar errado” e “Judeus derrotando nazistas”. Só depois de 50 páginas de anúncios chamativos, começa o assunto, com a frase “No dia 3 de setembro de 1939, os países aliados declararam guerra à Ale-manha, dando início ao maior conflito da era mo-derna. Esse fato, ocorrido há 70 anos, marcou de forma decisiva a história da humanidade”.

Só depois de ainda mais anúncios começam os textos mais detalhados. Conhecemos esse truque – às vezes a manchete não tem nada a ver com o texto a que se refere, enquanto na consciência dos leitores a manchete é que marca. Por exem-plo, no texto está dito: “Hitler não era um gênio do mal, mas um estrategista lamentável que le-vou o Exército ao caos”. E, mais adiante: “Os ju-deus não marcharam passivos para as câmaras de gás”. Depois “os nazistas davam aos judeus duas opções, morrer ou colaborar”. Perguntamos: dá para acreditar?

Nenhuma palavra sobre o diabólico ataque da Wehrmacht alemã à Polônia três dias antes, a 1.o de setembro, real início e causa da Segun-da Guerra, numa ofensiva sem limites, na qual si-multaneamente se iniciou a blitz dos aviões nazis-tas Messerschmidt e Stuka, indiscriminadamente, destruindo de imediato cidades inteiras, aldeias, com milhares de mortos sob os escombros, en-quanto os navios de guerra faziam um fogo de ar-tilharia terrível. As unidades da SS, que chegaram imediatamente depois das forças blindadas e da infantaria, ocuparam os territórios, concentrando a população, selecionando judeus, patriotas polo-neses cristãos, comunistas e socialistas, para se-rem enforcados.

as seleçõesNenhuma palavra sobre a seleção de vítimas,

quando centenas de pessoas superlotavam cada vagão de gado rumo ao extermínio ou ao trabalho escravo. No fim da viagem, com coronhadas ace-lerando a marcha, matava-se na hora os que não conseguiam acompanhar essa marcha. Tudo isso nos portões de entrada dos principais campos de extermínio. Os judeus tinham opção? Se alguém abria a boca, os nazistas matavam na hora. Depois é que se fazia a seleção: extermínio na hora ou trabalhos forçados até a exaustão e a morte.

Por exemplo, os prisioneiros eram enfileirados diante de um grupo de médicos, chefiados pelo dr. Mengele (que morreu no Brasil) e eram mandados para a direita ou para a esquerda, para a morte imediata ou para a morte lenta.

Maridos foram separados à força de suas espo-sas, e pais de seus filhos. Quem ainda tinha forças para ficar de pé, e seu corpo parecia forte, era en-viado para o lado esquerdo; os outros para a di-reita, tirando a roupa, tendo os cabelos raspados, e iam “tomar banho de ducha”, sem saber que do chuveiro não vinha água, mas o gás letal Zyklon B, produto do truste IG Farben. Quando os ale-mães abriam as portas, sobrava um bloco com-pacto de cadáveres grudados um ao outro.

O renomado historiador britânico da London University entre outras e editor de um documen-tário de 500 páginas sobre Stalingrado, publica-do recentemente, Anthony Beevor, encontrou o documento original da Gestapo sobre a experi-mentação de certo tipo de cano de gás, com 500 prisioneiros do Exército Vermelho, usados como cobaias, antes de usá-lo maciçamente.

stalingradO, a batalha que mudOu a face da guerra

Na revista Superinteressante se diz que “era questão de honra para Hitler tomar uma cidade

que tinha o nome de um inimigo: mas Stalin, ou-tro orgulhoso, ordenou: a resistência a qualquer custo”. Uma questão de honra? Pode-se ignorar o fato de que, simultaneamente à defesa de Sta-lingrado, os soviéticos defendiam com o seu pró-prio corpo as entradas de Leningrado, dos bairros da parte ocidental de Moscou, enquanto o Comitê Central, chefiado por Stalin, negou qualquer pro-posta de deixar o Kremlin. Disse Stalin: “Nós va-mos ficar juntos com os defensores da capital e nosso destino será o mesmo”.

Simultaneamente, o general britânico Montgo-mery já perdia as esperanças em deter a marcha triunfal do marechal de campo Rommel na África do Norte e de assim impedir a realização dos pla-nos de Hitler, de conquistar o Oriente Médio com todas as suas reservas enormes de petróleo.

Em dois famosos documentários feitos recen-temente pelos próprios alemães, “A Queda”, sobre os últimos dias de Hitler no bunker, e “Stalingra-do”, baseados em documentos recém-encontra-dos, aparece o famoso discurso de Hitler, em meio aos combates em Stalingrado: “Estão me acusan-do incansavelmente de que nossa luta em Stalin-grado é por causa do nome simbólico da cidade. Bobagem. Stalingrado é o último obstáculo para que nossas divisões alcancem Baku, capital do Azerbaijão, onde se encontram reservas enormes de petróleo, de que precisamos como do ar”.

PreParandO as cavernasPor ocasião dos combates que aconteceram

simultaneamente em meados de 1943 em El Alamein, na África do Norte, e em Stalingra-do, Moscou e Leningrado, estes sob a lideran-ça do general Jukov, eu era um menino de dez anos, membro do movimento socialista-sionis-ta “Hashomer Hatzair” na Palestina, juntamen-te com outros membros dos movimentos juve-nis, limpando as cavernas enormes nas encostas

Gershon Knispel

a falsificaçÃO da históriaUma bem orquestrada campanha, nas redes de comunicação do mundo inteiro, promove a falsificação de fatos históricos sobre Hitler e Stalin.

70 ANOS DA SEGUNDA GUERRANo dia 1º de setembro de 1939 os nazistas invadem a Polônia... ... a seleção de mulheres, velhos e crianças... ... o destino final. Comunistas, socialistas e patriotas

são enforcados...

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onduladas do lado oriental do Monte Carmelo, perto da cidade de Haifa.

Lá estava sendo planejado evacuar os habitan-tes judeus de Haifa, para não os deixarem cair como presa fácil na mão dos invasores alemães, na parte norte da Palestina. Se os alemães tives-sem sucesso em realizar o seu plano de tenazes, por El Alamein e Stalingrado, já decidida a “So-lução Final da Questão Judaica”, nosso fim seria certo. Seis dos meus tios e seus filhos moradores e cidadãos alemães, já estavam em Auschwitz e nós partilharíamos de seu destino, tomando em vez do chuveiro o Zyklon e de lá, como lixo, ru-mando para o forno crematório.

esse destinO fOi evitadO graças à “questÃO de hOnra”

Na interpretação dessa revista da Abril, prefe-re-se por Stalin no banco dos réus, uma ofensa ve-nenosa para qualquer um que está ligado pessoal-mente a esse apocalipse.

O crédito de Stalin pode incluir não só a sal-vação da minha família, mas a salvação de 600 mil judeus da Palestina, de 3 milhões de judeus da Rússia e centenas de milhares de judeus polone-ses fugindo da ocupação alemã. Stalin deu a es-tes asilo contra a perseguição racial resultante das leis nazistas de Nurembergue, abrindo as frontei-ras da União Soviética dando abrigo para todos os que fugiam do inferno nazista.

Evitou-se assim para esses judeus o destino terrível dos que fugiam do Holocausto, que fo-ram expulsos da Alemanha antes da decisão so-bre a Solução Final, e que ficavam em dezenas de navios alemães de passageiros, cheios de judeus navegando de um porto para outro, de um con-tinente para outro, pedindo asilo como persegui-dos raciais. Sempre e de novo se recusava a eles o visto de entrada. Depois de meses de navegação, voltaram ao porto de origem, em Hamburgo, ter-minando a via dolorosa nos campos de extermí-nio da Europa Oriental ocupada.

As implorações dos líderes judeus dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha a seus governos, de fa-zerem explodir os trilhos que levavam aos campos de extermínio e assim salvarem milhões de seres humanos, encontraram ouvidos moucos.

decisões erradas?Qual é a verdade dessas acusações crescentes

contra Stalin sobre a “liquidação de milhões de cidadãos soviéticos”, chegando a exageros ab-surdos dos mesmos números de Hitler? A União Soviética, como se sabe incontestavelmente des-de o final da guerra, teve papel decisivo na der-rota da Alemanha nazista e impediu assim o do-mínio mundial dos paises do Eixo, Alemanha, Itália e Japão. A União Soviética perdeu 28 mi-lhões de pessoas entre militares e civis, além de milhões de mutilados.

Algumas decisões foram cruciais, ainda que dolorosas, para impedir o triunfo de Hitler.. En-tre estas, a de enviar para o exílio na Sibéria an-tissoviéticos, contrarrevolucionários, latifundiá-rios e os separatistas que estavam trabalhando para a vitória de Hitler.

Foi efetuada a evacuação de anticolcozianos e grupos étnicos das minorias (como os tártaros que aderiram ao nazismo em bloco), que se recusavam a se integrar à União Soviética. Caso contrário, eles teriam se tornado a quinta coluna estabeleci-da na parte ocidental da União Soviética e aderi-riam ao invasor nazista, como de fato ocorreu em menor escala, apesar destas medidas.

Essa afirmação está baseada em documentos originais da Gestapo, segundo os quais mais de 50 mil soldados russos e ucranianos do Exército Vermelho se passaram de armas, cavalos e tan-ques, para o Exército nazista, sendo os mais cru-éis integrantes da SS.

Um dos argumentos mais poderosos dos ofi-ciais do quartel-general da Wehrmacht se ba-seou nas informações secretas alemãs de que um enorme número de ucranianos e outros habitan-tes do centro da União Soviética aderiria aos na-zistas para se libertarem do comunismo. Estes fa-tos explicam muitas das decisões que os órgãos políticos encabeçados por Stalin tiveram de to-mar. Que fique claro: em que pese o papel deci-sivo que Stalin teve liderando a União Soviéti-ca, não eximimos os erros, desvios e injustiças que houve antes e depois da Segunda Guerra. Mas não se pode admitir que, sob o pretexto des-tes desvios, se diminua o papel dos protagonis-tas soviéticos.

a terra queimadaO Comitê Central do Partido Comunista Soviético

decidiu imediatamente, no início da invasão, que 40 por cento das terras mais férteis, com todas as suas safras, seriam queimadas, para que não caíssem nas mãos dos invasores. Disso resultou que metade da população soviética passou fome; mais que todos, sofreram os exilados para a Sibéria. Isso no meio da guerra sangrenta de sobrevivência. Uma decisão que historicamente foi demonstrada como correta, pois dela resultou o fracasso das invasões. Havia imensas e insuperáveis dificuldades para trazer da Alemanha as provisões necessárias. Evidentemente, uma deci-são que, indiretamente, provocou a perda de milhões de russos e dá argumentos para os que acusam Stalin de exterminar milhões de soviéticos. Será que essa decisão foi errada?

Os tanques e Os cOlcOzes No livro de Beeroz, está testemunhado que três

mil tanques T-34 foram construídos num tempo re-corde por centenas de colcozes (fazendas coletivas)nas profundezas da Sibéria, em pleno combate.

A produção destes tanques é considerada qua-se um milagre. A inteligência alemã não sabia de-les. Quando os tanques apareceram de repente, os alemães entraram em pânico. A blindagem de-les tinha o dobro da espessura dos tanques ale-mães, britânicos e americanos As balas antitan-ques não penetravam nesses tanques T-34, e o enorme Exército alemão passou de sitiante a sitia-do. Que seria de Stalingrado sem a ajuda dos col-cozes com mulheres, homens e velhos trabalhan-do dia e noite? Será que a decisão dos órgãos do Partido, chefiados por Stalin, de apoiar os colco-zes contra tudo e contra todos, e de mandar para a Sibéria os anticolcozianos, não foi crucial para os resultados alcançados?

Graças às “decisões erradas” usadas cada vez mais como acusações contra Stalin, apresentado como pior do que Hitler, nos salvamos de uma vi-tória nazista. Se tudo isso não bastasse, foi publica-da mais uma revista da Editora Abril, dedicada aos horrores da KGB durante a Guerra Fria. Isso merece um outro artigo, na próxima edição.

... economizando um tiro para dois Os tanques T-34 na grande virada... ... soldados do exército vermelho libertam os poucos sobreviventes de Auschwitz.

Bandeira da foice e martelo no parlamento nazista: 9 de maio 1945.

Gershon Knispel é artista plástico.

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entrevista Eduardo GalEano

“Estamos tentando recuperar nossa

própria voz"

Por Fania Rodrigues

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um dos mais respeitados escritores e intelectu-ais da América Latina, Eduardo Hughes Ga-leano recebeu a Caros Amigos numa tarde

de segunda-feira, no Café Brasilero, em Montevidéu. Aos 69 anos fala, em fluente português, sobre sua literatura, o amor pelos cafés e, claro, sobre polí-tica. Uruguaio de nascimento (1940), latino-ameri-cano por devoção e cidadão do mundo por paixão, quando criança, sonhava em ser jogador de futebol. “Era uma maravilha jogando, mas só de noite, en-quanto dormia”. Melhor assim. Os campos de fute-bol não perderam nada, porém a literatura ganhou um verdadeiro artesão das palavras. Suas obras com-binam elementos da literatura, sensibilidade e obser-vação jornalística, que estão sempre em função de suas paixões. Autor de mais de trinta livros, dezenas de crônicas e artigos, Galeano também é um exímio defensor do socialismo, dos direitos e da dignidade humana. Entre seus livros, pode se destacar As veias abertas da América Latina, a trilogia Memória do Fogo, Livro dos Abraços e o último, Espelhos – uma história quase universal, lançado em 2008, em que o autor reescreve, a partir de um outro ponto de vis-ta, episódios que a história oficial camuflou. Galea-no “remexe no lixão da história mundial” para dar voz aos “náufragos e humilhados”.

Caros Amigos - Você nasceu em Montevidéu? Gostaria que falasse um pouco da sua infância?Eduardo Galeano - Sim, nasci em Montevidéu. Mi-nha infância? Eu nem lembro, já faz tanto tempo... Mas acho que foi bastante livre. Eu morava em um bairro quase no limite da Montevidéu, onde havia grandes edifícios. Então tinha espaço verde. Sinto pena das coitadas das criancinhas que vejo agora, prisioneiras na varanda de casa. Meninos ricos são tratados como se fossem dinheiro, meninos pobres são tratados como se fossem lixo. Muitos, pobres e ricos, viram prisioneiros, atados aos computadores, à televisão ou a alguma outra máquina. Mas eu tive uma infância muito livre. Fiz a escola primária, se-cundária, depois comecei a trabalhar por minha con-ta. Então, com 15 anos, já era completamente livre.

Em que trabalhou?Fiz de tudo o que você possa imaginar. Fui dese-

nhista (adoro desenhar até hoje), taquígrafo, men-sageiro, funcionário de banco, trabalhei em agência de publicidade, cobrador... Fiz milhares de coisas, mas, sobretudo, comecei a aprender o ofício de con-tar história. Eu era um cuenta cuentos (conta con-tos). E aprendi a fazer isso nos cafés, como esse onde a gente está agora falando, que leva o honro-so nome de Brasilero.

O mais tradicional dos cafés uruguaios se chama Brasilero!

E esse é último sobrevivente, o último dos moica-nos dos cafés nos quais eu fui formado. Minha uni-versidade foram os cafés de Montevidéu, foi aqui que

aprendi a arte de narrar, a arte de contar histórias.

Conversando com as pessoas?Escutando. Conversando sim, mas aprendi muito

mais escutando. Desde muito menino aprendi que, por alguma razão, nascemos com dois ouvidos e uma única boca. Mas esses cafés típicos de Montevidéu pertenciam a uma época que não existem mais. Per-tenciam a um tempo no qual havia tempo para per-der o tempo.

Como foi sair do Uruguai, na época da ditadura (1973-1984)?

Quando a ditadura se instalou, eu corri para a Argentina, em 1973. Lá fundei uma revista cultural chamada Crisis. Depois fui obrigado a voar de novo. Não podia voltar para o Uruguai, porque não queria ficar preso, e fui obrigado a sair da Argentina por-que não queria ser morto. A morte é uma coisa muito chata. Então fiquei na Argentina até o final de 1976, quando se instala a Ditadura argentina. Aí fui para a Espanha, onde fiquei até o final de 1985. Depois dis-so voltei para o Uruguai. No começo, minha situação em Barcelona foi muito complicada. Eu não tinha documentos, pois a Ditadura uruguaia se recusava a fornecer. O que possuía era um documento de sal-vo conduto das Nações Unidas, que não servia para muita coisa. Eu tinha que ir todo mês à polícia reno-var o meu visto de permanência e passava o dia in-teiro preenchendo formulários de perguntas. Então, um dia, onde dizia profissão, coloquei escritor, entre aspas, de formulários. Mas ninguém percebeu. A po-lícia achou normal ser escritor de formulários!

Havia duas listas das ditaduras do Cone Sul. Uma, com os nomes das pessoas que estavam marcadas para morrer e outra para a extradição. Em qual você estava?

Nas duas.

Na época da ditadura, muitas pessoas, assim como você, ficaram sem documentos, não podiam sair do país e foram mortas a tiro ou envenenadas...

Eu tive sorte. Não me lembro de ter sido envene-nado, nem mesmo pelos críticos literários. Claro que sofri muitas ameaças, mas não vou fazer aqui uma apologia do mártir, do herói da revolução. Mas claro que a vida não era fácil, sobretudo por que a situa-ção dessa revista que fundei na Argentina era difícil, pois chegava muito além das fronteiras tradicionais das revistas culturais. Nós vendíamos entre 30 e 35 mil exemplares. Isso, para uma revista cultural, era uma prova de resistência. Nós pensávamos em fazer era um resgate das mil e uma formas de expressão da sociedade. Não apenas dos profissionais da cul-tura, mas também das cartas dos presos, da cultura contada pelos operários das fábricas, que raramen-te viam a luz o sol. Esse tipo de coisa que para nós também era cultura.

O livro As Veias abertas da América Latina foi escrito na década de 1970. Hoje, é possível escrever um novo Veias Abertas?

Para mim esse livro foi um porto de partida, não de chegada. Foi o começo de algo, de muitos anos de vida literária e jornalística tentando redescobrir a realidade, tentando ver o não visto e contar o não contado. Depois de Veias escrevi muitos livros que foram continuações, de um certo modo, e uma ten-tativa de cavar, cada vez mais profundamente, a re-alidade. Isso com o objeto de ampliar um pouco as ideias, porque Veias é um livro limitado à economia política latino-americana. Os livros seguintes têm que ser lidos com a vida toda, nas suas múltiplas ex-pressões, sem dar muita bola nem ao mapa, nem ao tempo. Se eu fico apaixonado por uma história, me ponho a contar histórias de qualquer lugar do mun-do e de qualquer tempo. Conto a história da histó-ria, que podem ter acontecido há 2 mil anos e ten-to escrever de tal modo que aconteçam de novo, na hora em que são contadas. Aí está o verdadeiro ofí-cio de contar, que aprendi nos cafés de Montevidéu, que inclusive permite a você escutar o som das patas dos cavalos, sentir o cheiro da chuva...

Pode-se dizer que hoje existe uma demanda por governos de esquerda na América Latina? Em sua opinião, esses governos têm contribuído para diminuir a pobreza e a desigualdade social nesses países?

O que existe é um panorama muito complexo e diverso de realidades diferentes. Também vemos res-postas sociais e políticas diversas. Isso é o que nos-sa região do mundo tem de melhor: sua diversida-de. Esse encontro de cores, de dores tão diferentes, é a nossa riqueza maior. Os novos movimentos, como esses, que estão brotando por toda parte, que tentam oferecer uma resposta diferente às desigualdades so-ciais, contra os maus costumes da humilhação e o fatalismo tradicional, também são respostas diversas porque expressam realidades diferentes. Não se pode generalizar. O que existe sim é uma energia de mu-dança. Uma energia popular que gera diversas rea-lidades, não só política, mas realidades de todo tipo, tentando encontrar respostas, depois de vários sécu-los de experiências não muito brilhantes em matéria de independência. Agora estamos comemorando, em quase todos os países, o bicentenário de uma inde-pendência que ainda é uma tarefa por fazer.

O que falta para a América Latina ser completamente independente?

Romper com o velho hábito da obediência. Em vez de obedecer à história, inventá-la. Ser capaz de imaginar o futuro e não simplesmente aceitá-lo. Para isso é preciso revoltar-se contra a horrenda heran-ça imperial, romper com essa cultura de impotência que diz que você é incapaz de fazer, por isso tem que comprar feito, que diz que você é incapaz de mudar, que aquele que nasceu, como nasceu vai morrer. Por-que dessa forma não temos nenhuma possibilidade de inventar a vida. A cultura da impotência te ensi-na a não vencer com sua própria cabeça, a não cami-nhar com suas próprias pernas e a não sentir com seu próprio coração. Eu penso que é imprescindível ven-cer isso para poder gerar uma nova realidade.

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própria voz"

“Se os EUA têm interesse de verdade de lutar contra o narcotráfico, têm que começar pela própria casa, não pela Colômbia”.

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A América Latina copiou um modelo de desenvolvimento que não foi feito para ela. É possível inventar um modelo próprio de desenvolvimento?

Não vou entrar em detalhes porque se fosse falar da quantidade de cópias erradas seria uma lista in-finita. O desafio é pensar no que queremos ser: ori-ginais ou cópias? Uma voz ou eco? Agora estamos tentando recuperar nossa própria voz, em diferentes países, de diversas maneiras. A implantação das bases dos Estados Unidos na Colômbia fere a dignidade do povo latino-americano e compromete a independência e a liberdade da América do Sul?

Sim. É a continuação de uma tradição humilhan-te. Também há o perigo da intervenção direta dos Estados Unidos nos países latino-americanos. Meu mestre, Ambroce Bierce, um escritor norte-america-no maravilhoso, quando se iniciou a expansão im-perial dos Estados Unidos, no século 19, dizia que a guerra é um presente divino enviada por Deus para ensinar geografia. Porque assim eles (estaduniden-ses) aprendiam geografia. E é verdade. Os EUA têm uma tradição de invadir países sem saber onde es-tão localizados e como são esses países. Tenho até a suspeita de que (George W.) Bush achasse que as Escrituras tinham sido inventadas no Texas e não no Iraque, país que ele exterminou. Então, esse pe-rigo militar latente é muito concreto. Atualmente os EUA possuem 850 bases militares em quarenta paí-ses. A metade do gasto militar mundial correspon-de aos gastos de guerras dos EUA. Esse é um país em que o orçamento militar se chama orçamento de de-fesa por motivos, para mim, misteriosos e inexpli-cáveis. Porque a última invasão sofrida pelos EUA foi em 1812 e já faz quase dois séculos. O ministério se chama de defesa, mas é de guerra, mas como que se chama de defesa? O que tem a ver com a defesa? A mesma coisa se aplica às bases na Colômbia, que também são “defensivas”. Todas as guerras dizem ser “defensivas”. Nenhuma guerra tem a honestida-de de dizer “eu mato para roubar”. Nenhuma, na his-tória da humanidade. Hitler invadiu a Polônia por-que, segundo ele, a Polônia iria invadir a Alemanha. Os pretextos invocados para a instalação dessa base dos EUA na Colômbia não são só ofensivas contra a dignidade nacional dos nossos países, como tam-bém ofensivas contra a inteligência humana. Por que dizer que serão colocadas lá para combater o tráfi-co de drogas e o terrorismo? Tráfico de drogas, mui-to bem... 80% da heroína que se consome no mundo inteiro vem do Afeganistão. 80%! Afeganistão é um país ocupado pelos EUA. Segundo a legislação inter-nacional, os países ocupantes têm a responsabilida-de sobre o que acontece nos países ocupados. Se os EUA têm interesse de verdade de lutar contra o nar-cotráfico, têm que começar pela própria casa, não pela Colômbia e sim pelo Afeganistão, que faz parte da sua estrutura de poder, e que é o grande abaste-cedor de heroína, a pior das drogas. O outro pretexto

invocado é o terrorismo. Mas não é sério. Não é sé-rio, por favor. A grande fábrica do terrorismo é essa potência mundial que invade países, gera desespero, ódio, angústia. Sabe quem esteve sessenta anos na lista oficial dos terroristas dos EUA? Nelson Mande-la, Prêmio Nobel, presidente da África do Sul. Cada vez que viajava aos EUA, ele precisa de um visto es-pecial do presidente dos Estados Unidos, porque era considerado um terrorista perigoso durante sessenta anos. Até 2008. É desse terrorismo que estão falan-do? Imagina se eu fosse incorporado agora na lista dos terroristas dos EUA e tivesse que esperar sessen-ta anos para ser tirado. Acho que daqui há sessenta anos vou estar um poquitito mortito.

Você acredita que o Brasil também exerce um imperialismo sobre os países da América do Sul? Não. Não é só a situação do Brasil, mas de países que são grandes e poderosos em relação a outros que são menores e mais fracos. Porque a cadeia da opressão nunca tem apenas dois elos. Na história, nunca exis-tiu apenas um opressor e apenas um oprimido. Um país opressor e um país oprimido. Uma classe social opressora e uma classe oprimida. Não. Os elos são múltiplos e muito diversos. A situação do Brasil não tem nada de excepcional. A relação do Brasil com o Paraguai, por exemplo, começa agora a ser mais res-peitosa. A partir das presidências do Lula e do Lugo. Mas evidentemente que antes não eram nada igua-litárias. Com a Bolívia tampouco. Mas isso é como na sociedade: o presidente da empresa dita ordens para o diretor, que dita ordens ao gerente, que re-passa para o chefe de sessão, que ordena ao operá-rio, que dita ordens à mulher, que manda no meni-no, que chuta o cachorro.

O socialismo ainda é possível?A palavra socialismo foi muito desprestigiada,

devido à utilização errada do termo ao longo do sé-culo 20. Foi usada para maquiar o capitalismo ou para justificar um poder burocrático que tratava o povo como se fosse menor de idade. Então, hou-ve um grande desprestígio da palavra. Foi utilizada como social-democracia pelos governos comunistas em tais termos que hoje é difícil recuperá-la. O im-portante é ajudar o nascimento, o parto, desse mun-do cansado que está grávido de outro, para que outro mundo novo possa nascer. Tenha o nome que tenha. Não sei se vai ser chamado de socialismo, mas tem que ser, sim, solidário num sentido comunitário e, sobretudo, tem que ser um mundo capaz de resgatar a melhor das tradições americanas: a comunhão com a natureza. É a tradição indígena mais velha e mais importante de todas: resgatar a certeza de que somos parte da natureza e todo crime executado contra a

natureza se converte em suicídio, porque acaba sen-do um tiro no pé da condição e do gênero humano. Uma coisa me espantou muito foi quando li nos jor-nais, há poucos dias, que o Brasil é o número um no ranking dos países consumidores de agrotóxico, ou seja, é o país que mais consome venenos químicos na agricultura no mundo. Espero que a informação seja errada, pois isso seria muito grave. Espero que meus amigos brasileiros me digam que não é assim, para meu consolo. Porque é um país que eu amo. Como isso é possível? Às vezes as boas notícias não vêm apenas dos países que ocupam os maiores espaços nos jornais no mundo. Como, por exemplo, o Equa-dor. Ninguém fala do Equador. Mas esse é um país que há pouco tempo, pela primeira vez na história da humanidade, incorporou à sua Constituição uma dis-posição estabelecendo os direitos da natureza. A na-tureza como sujeito de direito. É a primeira vez que isso acontece. Acho que é um passo muito impor-tante nesse mundo, que está avançando rapidamen-te para o extermínio do ar, da terra e das águas. Se-ria importante que esse país pequeno, do qual se fala pouco, fosse imitado pelos países grandes. A nature-za tem direitos e esses direitos são sagrados.

Qual sua opinião sobre a implantação da planta de Botnia (empresa de celulose) no Uruguai?

A Botnia já está funcionando faz tempo. Prome-teu milhões de empregos e depois foram poucos. A causa que acho legítima da defesa do meio ambiente pode não ser muito popular, porque existe uma ex-pectativa de geração de emprego que faz com que muitos desesperados, muita gente em condição difí-cil aceite esse pão, mesmo que implique fome para amanhã. Pan para hoy, hambre para mañana. (Pão para hoje, fome para amanha). Por isso, a causa eco-lógica não é muito popular. O que acho é que o Uru-guai é um país muito pequeno e não tem costas para aguentar várias empresas, como essa, de fabricação de celulose. Porque Botnia é a primeira, depois vem o segundo projeto, o terceiro, o quarto... Tínhamos seis projetos como esse. Agora, com a crise a coisa mu-dou, para nossa sorte. Afortunadamente parece que a coisa está mudando. Alguns desses gigantes estão apreensivos e não vão fazer os investimentos que ti-nham prometido. Mas as condições que o Uruguai ofereceu eram as melhores: subsídios, nada de im-postos, a aceitação passiva da destruição da terra, o ressecamento geral das águas e poluição do ar.

A crise econômica mundial provocou uma reflexão sobre o sistema capitalista e sobre nossa cultura consumista?

Não sabemos o que vai acontecer, porque a crise ainda não passou. Não se trata de um mau momento. Está sendo um problema gravíssimo no mundo in-teiro e que no meu entender mostrou mais uma vez a liberdade do dinheiro e a prisão das pessoas. Fi-camos todos prisioneiros da loucura e do delírio es-peculativo das altas finanças, que hoje mandam no

“O que existe na América Latina é uma energia de mudança, uma energia popular que gera diversas realidades”.

“É preciso revoltar-se contra a horrenda herança imperial, romper-se com essa cultura de impotência”.

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mundo capitalista muito mais do que as forças pro-dutivas. Isso gerou a necessidade do Estado inter-vir na economia dos países ricos. Mas o que acon-tecia nesses países onde o Estado foi aniquilado em nome da liberdade do mercado? A religião do mer-cado aniquilou o Estado, ou pelo menos fez o pos-sível para reduzí-lo à triste função de carrasco e de carcereiro. É preciso recuperar os superpoderes do Estado em nome do poder público, porque só ele é capaz de controlar essas forças diabólicas do merca-do livre. O livre comércio tem refluxo das pressões, que tem uma história tristíssima. Foi em nome do li-vre comércio que o Paraguai foi aniquilado no sécu-lo 19. Foi em nome do livre comércio que a China foi obrigada a consumir ópio. A rainha Vitória (da In-glaterra) era narcotraficante. E foi em nome do livre comércio que a indústria têxtil da Índia foi extermi-nada. Ou seja, o livre comércio tem uma história hor-rível e está claríssimo que se os EUA tivessem apli-cado o livre comércio logo após sua independência continuariam sendo colônia da Inglaterra. Portanto, essa identificação da liberdade do dinheiro com a li-berdade das pessoas é mentirosa e inimiga da liber-dade humana.

Agora vamos falar um pouco de literatura e sua rotina de trabalho. Você ainda escreve todos os dias?

Não. Eu só escrevo quando minha mão coça.

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Aprendi isso com um velho negro que tocava tam-bor como Deus. Vê-se que Deus toca tambor... Bem, ou pelo menos como o diabo deveria tocar. Então perguntei a ele: “Como você faz para tocar tam-bor assim?” E ele me respondeu: “Eu toco quando a mão coça, quando a mão pica.” Eu também, escre-vo quando sinto necessidade de contar algo, alguma história que está crescendo dentro de mim e que quer se oferecer aos demais.

Qual sua obra-prima? Você já a escreveu ou ainda está por vir?

O melhor dos meus livros é o livro que ain-da não escrevi. O mais intenso e alegre dos meus dias é aquele que ainda não vivi. O Espelhos é o mais audaz, no sentido de que é um livro sem fron-teiras. Nele, conto histórias que acontecem em todas as partes em todos os tempos, tentando ver as coi-sas do ponto de vista dos náufragos dessa longa via-gem através dos séculos do gênero humano no mun-do. Dos náufragos que não estão na história oficial. Como as mulheres, por exemplo.

E por que Espelhos?Tenho a esperança de que quem leia possa sen-

tir que ele está também aí dentro (do livro), que tem um espelho que reflete a sua face. A ideia é que seja um livro de todos, de todas as caras que aparecem no espelho quando nos vemos. Cada pessoa é, de al-

guma maneira, muito mais do que sabe que é. Nós temos um arco-íris terrestre para recuperar, que é de uma cor e uma alegria impressionante. É uma tare-fa a fazer porque esses arco-íris terrestres são mui-to mais lindos, muito mais belos. Mas esse arco-íris está mutilado pelo machismo, pelo racismo, pelo militarismo e por muitos ismos a mais. Isso impe-de a felicidade de conhecer o tempo passado e de reconhecer que ele foi uma profecia do tempo pre-sente. Não estamos condenados a repetir o passado, mas sim, somos obrigados a aprender com ele para não repeti-lo. A proposta de Espelhos, assim como a de todos os outros livros que escrevi, é ver as coi-sas a partir de um outro ponto de vista. Se um ver-me vê um prato de espaguete vai achar que é uma orgia. Tudo depende de onde você se coloca. Para os países oprimidos, a história oficial não é a his-tória verdadeira. Outro exemplo são vocês mulhe-res. A Revolução Francesa promoveu a declaração dos direitos dos homens e dos cidadãos, mas quan-do uma mulher chamada Olímpia de Gouges teve a coragem, e a loucura, de propor uma declaração dos direitos da mulher e da cidadã, a guilhotina cor-tou sua cabeça. Então, o ponto de vista da mulher não pode ser o mesmo ponto de vista do homem. A mesma coisa acontece com os humilhados da terra, como os negros, por exemplo.

Fania Rodrigues é jornalista.

O impOstO glObalO amor que passa, a vida que pesa, a morte que pisa.Há dores invisíveis, e é assim mesmo, e não tem jeito.Mas as autoridades planetárias acrescentam dor à dor, e ainda por cima nos cobram por esse favor.Em dinheiro pagamos, a cada dia, o imposto do valor agregado.Em infelicidade pagamos, a cada dia, o imposto da dor agregada.A dor agregada se disfarça de fatalidade do destino, como se fossem a mesma coisa a angústia que nasce da fugacidade da vida e a angústia que nasce da fugacidade do emprego.

ObjetOs perdidOsO século XX, que nasceu anunciando paz e justiça, morreu banhado em sangue e deixou um mundo muito mais injusto que o que havia encontrado. O século XXI, que também nasceu anunciando a paz e a justiça, está seguindo os mesmos passos do século anterior.Lá na minha infância, eu estava convencido de que tudo o que na terra se perdia ia parar na lua.No entanto, os astronautas não encontraram sonhos perdidos, nem promessas traídas, nem esperança rotas.Se não estão na lua, onde estão?Será que na terra não se perderam?Será que na terra se esconderam?(Eduardo Galeano. Espelhos: uma história quase universal, L&PM Editores)

CrôniCa da Cidade dO riO de janeirONo alto da noite do Rio de Janeiro, luminoso, generoso, o Cristo Redentor estende os braços. Debaixo desses braços os netos dos escravos encontro amparo. Uma mulher descalça olha o Cristo, lá de baixo, e, apontando seu fulgor, diz, muito tristemente: - Daqui a pouco já não estará mais aí. Ouvi dizer que vão tirar Ele daí.- Não se preocupe – tranqüiliza uma vizinha – Não de preocupe: Ele volta. A polícia mata muitos, e mais ainda mata a economia. Na cidade violenta soam tiros e tambores: os atabaques, ansiosos de consolo e de vingança, chamam os deuses africanos. Cristo sozinho não basta.

(Eduardo Galeano. Livro dos Abraços, L&PM Editores)

Leia trechos de obras do autor uruguaio Liberados para a revista caros amigos

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Júlio Delmanto

o ano de 2009 representou uma substanti-va mudança na situação internacional do proibicionismo às drogas. Antes pautada

por um consenso em torno da saída repressiva e cri-minal historicamente pautada a partir dos Estados Unidos, a política de drogas em nível global vem sendo cada dia mais questionada por diferentes pa-íses e setores. Nas palavras de Paulo Teixeira, depu-tado federal pelo PT, “não existe mais um consenso mundial em relação à guerra às drogas”. A opinião é compartilhada pela doutora em Direito e professo-ra da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luciana Boiteux. Ela define o atual momento como de discussão do modelo proibicionista.

Tal questionamento ganhou maior repercussão a partir de março deste ano, quando a ONU organi-zou conferência para reavaliar os fracos resultados de seu último plano antidrogas, aprovado em 1998, e de iniciativas primordialmente militares, como o

Saída repressiva para questão das drogas é questionada nacional e internacionalmente.

Plano Colômbia, implantado na gestão de Bill Clin-ton. Segundo dados apresentados em maio ao con-gresso estadunidense pelo economista Peter Reteur, nas últimas duas décadas os EUA gastaram U$ 30 bilhões de dólares em políticas de “guerra às dro-gas” no exterior. No entanto, os preços da cocaína e da heroína diminuíram 80%, a demanda perma-neceu a mesma e o consumo de maconha e drogas sintéticas aumentou.

Mesmo com tantos investimentos em saídas repressivas, os Estados Unidos são, além do maior consumidor mundial de drogas ilícitas, o país que mais produz maconha e o de maior população en-carcerada no mundo – um em cada 150 estadu-nidenses está preso, sendo que 500 mil deles em decorrência de envolvimento com o comércio de drogas. Na análise de Paulo Teixeira, Barack Oba-ma já deu sinais de que irá revisar a política de guerra às drogas.

A conferência representou importante espa-ço de articulação de debates, e teve como resul-tado um manifesto assinado por 25 países. Na opinião da professora Luciana Boiteux, mesmo sendo pouco incisivo por conta de limitações ge-opolíticas e diplomáticas, tal documento traz im-portantes avanços. A pesquisadora ressalta como marco o fato do texto apontar a questão da redu-ção de danos como alternativa ao proibicionis-mo – mesmo sem fazer menção explícita ao ter-mo. Capitaneado pela Alemanha, o manifesto não conta com a assinatura da delegação brasileira.

Redução de danos e pRoibicionismo

Uma das políticas de saúde pública para os usuários de drogas que difere do enfoque pura-mente repressivo é o que se chama de redução de danos. A ideia principal é que o uso de drogas não é tratado como um problema em si, mas como po-tencialmente agressivo quando utilizado de ma-neira abusiva. Assim, há uma tentativa de minimi-zar as potencialidades perigosas de tais substâncias por meio de programas de educação, informação e saúde, pautados pelo respeito ao usuário e pelo in-centivo à busca do autoconhecimento.

O modelo proibicionista em relação às drogas caminha na contramão dos defensores da redução de danos. De acordo com Thiago Rodrigues, pro-fessor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), tal linha de pensamento e atuação coloca a questão das drogas no âmbito da segurança pú-blica e trata as substâncias psicoativas “como um mal, afirmando que tudo que delas derive – efeitos sobre o corpo ou sobre as relações sociais – leva à violência e à destruição. Essa imagem está relacio-nada a valores morais arraigados que foram refor-çados por décadas de proibicionismo”, revela.

De acordo com Luciana Boiteux, a visão da redução de danos se opõe aos tratados interna-cionais, que estabeleceram, no começo do século 20, a saída penal como política planetária. Imple-mentadas sem debates nacionais – depois de de-finidas na Conferência de Haia, em 1912 – as di-retrizes proibicionistas foram expandidas ao resto do mundo por terem sido incorporadas ao Tratado de Versalhes, assinado ao final da Primeira Guer-ra Mundial (1919). As leis de drogas atuais partem do consenso da alternativa criminal. No entanto, essa mentalidade está mudando a partir de uma análise da prevalência dos tratados de Direitos Humanos. Segundo Boiteux não há uma mudan-ça radical, “mas vivemos um momento de ques-tionamento desse modelo”, que seria incapaz de regulamentar o fenômeno das drogas. “Por mais eficiente que fosse, ele não consegue atuar sobre a venda e consumo”, resume. il

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alteRnativas em constRução A estratégia da redução de danos ganhou for-

ça na Europa após a luta contra a epidemia de AIDS ocorrida nos anos 1980. O sucesso de pro-gramas de conscientização de usuários incenti-vando o uso menos perigoso das substâncias, que não seriam deixadas de usar simplesmente por conta da repressão, abriu portas para mudanças políticas. Exemplo disso são as transformações ocorridas em Portugal, Itália e na Espanha, países nos quais o usuário de drogas não é mais crimi-nalizado, apesar do tráfico ainda o ser. No caso de Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Holanda, Irlanda, Reino Unido e Suíça existe o que se cha-ma de despenalização, ou seja, uso e consumo, mesmo não sendo regulamentados, também não são reprimidos. A Holanda tolera ainda o plantio e a venda de maconha.

No caso português, a alteração da legislação foi feita em 2001. A partir de então, o consumo passou a ser permitido, e a posse é estipulada a partir de uma quantia que seria suficiente para dez dias de uso. Se flagrada com mais do que isso, a pessoa é enquadrada no crime de tráfi-co, ainda severamente punido em lei. De acordo com relatório do centro de estudos estaduniden-se Cato, “não se cumpriu qualquer dos horrores que os opositores da descriminalização em todo o mundo costumam invocar. Em muitos casos, aconteceu exatamente o contrário, já que o con-sumo caiu em algumas categorias chave e as do-enças relacionadas ao consumo de drogas estão muito mais contidas”.

Em 2009, importantes mudanças foram cons-tatadas também na América Latina, que na opi-nião de Paulo Teixeira, é um reflexo do questio-namento que tem sido feito internacionalmente à política propagada a partir dos EUA. Desde 1994, a Colômbia não considera crime o porte de dro-gas para consumo pessoal, decisão que foi reitera-da por seu Supremo Tribunal neste ano. Também através do Judiciário, a Argentina caminhou para uma descriminalização das drogas, após a Supre-ma Corte do país ter advogado a inconstituciona-lidade da criminalização ao porte privado de en-torpecentes para uso pessoal, em 25 de agosto. Tal posicionamento possibilita consolidação de juris-prudência, e abre portas para a reforma já em dis-cussão na “Lei de Entorpecentes” do país.

De acordo com relatório do Departamento de Estado mexicano, 7,5 mil pessoas foram mortas por conta da “guerra às drogas” no México no úl-timo ano e meio, sendo que 70% delas não tinham ligação direta com o narcotráfico. Neste cenário de absoluta falência da saída repressiva, a des-criminalização do porte para uso pessoal de to-das as drogas ilícitas foi aprovada via Legislati-vo, através da chamada “Lei do narco varejo”, que diferencia o vendedor do usuário, estabelecendo quantidades máximas permitidas para cada subs-tância. Por exemplo: são permitidos o porte pes-soal de 50 mg gramas de heroína, 50g gramas de maconha e 5g de cocaína. Tramita no Senado proposta que vai além, legalizando e regulamen-tando não só o consumo, como também produção, comércio e distribuição.

limites da descRiminalizaçãoThiago Rodrigues explica que é necessário escla-

recer que descriminalizar o uso “não significa dei-xar de punir o usuário, mas sim deslocar sua punição para um âmbito não penal”. Assim, se é um avanço não encarcerar o usuário, “ele é muito limitado. Em primeiro lugar, por que o usuário não deixa de ser castigado, constrangido, estigmatizado. Em segun-do lugar, a descriminalização não altera em nada o proibicionismo, mantendo as drogas ilícitas e a pu-nição aos traficantes”, aponta o pesquisador, con-cluindo que “assim, é de se esperar que os efeitos de políticas de descriminalização sejam mínimos sobre o narcotráfico e a violência estatal”.

Luciana Boiteux concorda, mas acredita que re-tirar os usuários do código penal e, a curto e a médio prazo, avançar em uma diferenciação que abrande a punição para os pequenos traficantes, já seria um avanço que iria “reduzir os danos do pró-prio modelo. Não como fim em si mas como meio.” Ela define sua posição como “pragmática” – “temos que discutir esse processo gradual, mas visando a modificações estruturais mais radicais”. O primei-ro passo, acredita, é a descriminalização. “Mas ele não resolve”, sentencia. “Também temos que reti-rar a questão do tráfico do direito penal – especial-mente do pequeno tráfico, porque isso acaba sendo uma forma de criminalização da pobreza”.

Em conjunto com Ella Wiecko, da Universi-dade de Brasília (UnB), Boiteux divulgou recen-temente o estudo “Tráfico de Drogas e Constitui-ção”, que analisou 730 formulários preenchidos com base em sentenças sobre tráfico de drogas de varas criminais do Rio de Janeiro e do Distrito Fe-deral. Os resultados apontam que 66% dos conde-nados são réus primários, sendo que apenas 14% portavam armas no momento do flagrante (91% das condenações são de prisões em flagrante) e da prisão. 42% portavam menos de 100g de maconha e 58% das condenações é de 8 anos ou mais de re-clusão em regime fechado. Dados do Departamen-to Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, apontam que os condenados por tráfi-co de drogas representam o segundo contingente do sistema carcerário brasileiro (cerca de 70 mil detentos) atrás apenas do crime de roubo qualifi-cado. O Brasil tem hoje cerca de 450 mil pessoas encarceradas em regime fechado.

“FoRmação de quadRos”

Na avaliação do deputado Paulo Teixeira, “es-tamos montando um exército de criminosos man-dando esses sujeitos para a cadeia”. Para ele, a lei serve como “recrutamento de presos para o cri-me organizado” e só atinge “peixes pequenos”. A mesma compreensão do assunto leva Thiago Rodrigues a definir o sistema prisional brasileiro como “formação de quadros” para o crime orga-nizado. Teixeira propõe alteração na Lei 11.346. de 2006, com o objetivo de modificar o “alto grau de subjetividade” que hoje diferencia traficante de usuário – atualmente isso é feito de acordo com parecer do delegado e dos policiais envolvidos na ação, solo fértil para a corrupção já tradicional nas polícias brasileiras.

Além disso, Teixeira propõe distinguir peque-

no e grande traficante e redução de pena para réus primários. O relatório de Boiteux e Wiecko segue a mesma linha de propostas e conclusões, apontando que “o Brasil pode e deve repensar sua própria política por meio de uma interpreta-ção compatível com os direitos humanos”. O tex-to classifica a proibição das drogas como “um meio puramente simbólico de proteção à saúde pública”, que não impede que comércio, produ-ção e demanda por drogas ilícitas aumentem seus lucros, além de na prática significar a manuten-ção da “tradição brasileira de repressão e contro-le social punitivo dos mais pobres e excluídos”.

Boiteux acredita que o momento é “muito im-portante” para essa reflexão: “as pessoas estão dis-cutindo este tema, há uma abertura para o debate, para se pensar em políticas públicas, especialmen-te pra se criticar esse sistema penitenciário que te-mos”. Para o deputado, existe uma necessidade do Estado brasileiro atuar através de ação coordena-da entre Executivo e Legislativo. Em seminário re-alizado em julho, no Rio de Janeiro, o ministro de Direitos Humanos, Paulo de Tarso Vannuchi, afir-mou haver essa preocupação por parte de alguns ministros, que já teriam se reunido para debater alternativas. Além disso, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) se debruça já al-gum tempo sobre propostas de alteração da lei de 2006. O presidente Lula, no entanto, parece trafe-gar na contramão, tendo declarado em 19 de ou-tubro: “Eu não acho que a legalização vá resolver o problema. Acho que temos de ser mais duros e evitar que as pessoas consumam”.

Em levantamento de 2005 realizado pelo Cen-tro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psico-trópicas (Cebrid) em 108 cidades brasileiras com mais de 200 mil habitantes, 22,8% dos entrevis-tados assumem terem feito uso de alguma droga ilícita alguma vez na vida – o que corresponderia a uma população de mais de 10 milhões de pesso-as, sendo 4,5% naquele mês e 10,8% no ano. En-tre as ilícitas, a droga mais utilizada é a maconha, com 8,8% assumindo ter feito uso da substância

Júlio Delmanto é jornalista

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ROMA – Se os provérbios refl etem a fi loso-fi a de uma nação, aquele atribuído aos italianos - “povo de santos, poetas e navegadores”- perdeu a sua identidade e também o seu vigor no imagi-nário coletivo.

Na categoria dos poetas, nomes históricos como Dante Alighieri, Giuseppe Ungaretti e Euge-nio Montale foram substituídos por outros pouco expressivos como aquele de Sandro Bondi, mem-bro do partido Popolo della Libertà e atual minis-tro da cultura do governo liderado pelo premiê Silvio Berlusconi.

No que se refere aos santos e navegadores, os maiores méritos também pertencem a expoentes do passado.

Principalmente na Igreja Católica, a crise voca-cional ao sacerdócio em território italiano trans-formou gradualmente a fi sionomia das paróquias do país.

Segundo a fundação Migrantes, desde 1998 o número de sacerdotes estrangeiros na Itália é cada vez mais signifi cativo.

A cada ano, cerca de cem novos padres de ori-gem estrangeira assumem o comando de paróquias nacionais. É o caso, por exemplo, de Dom Denis Kibangu Malanda, congolês que hoje dedica-se a uma das paróquias da diocese de Tivoli, nas proxi-midades de Roma, e Dom Robert Skowronski, nas-cido na Polônia e atualmente residente em Pisa.

De acordo com a última edição do anuário pon-tifício - publicado em 2009, mas com dados relati-

vos a 2007 - o número de candidatos ao sacerdócio na Europa registrou uma queda de 2,1%. Esta ten-dência também é confi rmada pelos dados divulga-dos pela CEI (Conferência Episcopal Italiana).

Entre as organizações eclesiásticas nacionais – 226 dioceses e 26 mil paróquias – a presença mul-tiétnica é sempre mais evidente.

Dos 39 mil sacerdotes inscritos no Institu-to Central de Sustentação ao Clero, cerca de 2 mil são estrangeiros, mas esta cifra é subestima-da porque não inclui os imigrantes que dedicam-se a ordens ou congregações religiosas e aqueles que também possuem a cidadania italiana ou tra-balham em santuários.

Outro dado interessante é que, em regiões como a Umbria ou a Toscana, o percentual de es-trangeiros entre os padres com menos de 40 anos de idade chega a 50%.

Trata-se de um fenômeno que Luca Diotallevi, docente de sociologia da Universidade Roma Tre, defi ne com o neologismo “etnização do clero”. Se-gundo os estudos realizados pelo professor, a idade média dos padres nascidos na Itália é de 60 anos.

Assim, os fi éis italianos começam a acostumar-se com padres com pronúncias eslavas ou latinas, já que a Itália é, irreversivelmente, um país multi-étnico no qual a imigração é um fenômeno estru-tural com o qual o país ainda está aprendendo a li-dar, não sem grandes tropeços.

Basta pensar que por exemplo, a Itália mantém intacto um sistema fi scal que fi nancia entidades

O forte relacionamento entre a Igreja Católica e a política italiana limita o espaço de outras denominações religiosas e coloca em discussão a laicidade do Estado.

Anelise Sanchez

DO SACRO

religiosas, mas difi culta o acesso de diversas de-nonimações a esta verba.

Desta maneira, uma nação não totalmemen-te cristã garante o pluralismo religioso, mas não deixa de privilegiar as religiões majoritárias.

ARRECADAÇÃOTodos os anos, cerca de 60 milhões de contri-

buintes italianos prestam contas ao Estado decla-rando o próprio IRPEF (Imposto de Renda de Pes-soas Físicas) e, desde 1990, cada cidadão destina 0,8% do imposto sobre os seus rendimentos ao Es-tado ou a uma entidade religiosa.

O sistema, chamado de otto per mille, foi va-lidado em 1984 com a reforma da discutida Con-cordata entre o Estado e a Santa Sé, e estabelece que cada contribuinte escolha o destinatário do próprio otto per mille entre sete instituições: o Es-tado, Igreja Católica, o valdismo e o metodismo, o adventismo, assembleia de Deus, comunidade he-braica, Igreja batista e luterana.

De acordo com os últimos dados divulga-dos pelo governo italiano, em 2006 a expressiva soma de recursos distribuída, graças a este siste-ma, superou os 963 milhões de euros, relativos à declaração de imposto de renda de três exercí-cios anteriores.

Isso porque o otto per mille é rateado de acordo com as preferências declaradas no triênio anterior.

Vale a pena especifi car que, no mesmo ano, somente 39,5% dos contribuintes indicaram uma FO

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O monopólio

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escolha, enquanto que os 60,5% restantes opta-ram pela omissão.

Isso significa que, como previsto na norma-tiva, a parcela daqueles que não assinalaram a própria preferência é redistribuída entre os sete beneficiários, com critérios que premiam a insti-tuição que percentualmente conquistou a maior parte das preferências.

Do total de contribuintes que declararam sua escolha, 8,3% optou pelo Estado, enquanto que a Igreja Católica conquistou 89,16% das preferên-cias, recebendo a maior parte dos recursos prove-nientes do otto per mille. No mesmo ano, todas as demais instituições religiosas conquistaram, jun-tas, somente 2,46% das preferências declaradas.

Um mecanismo que privilegia a igreja católica, criando um evidente desequilíbrio na distribui-ção da verba. Na verdade, somente um cada cin-co contribuintes destina o próprio otto per mille à Igreja católica, mas em prática é como se dois a cada três italianos o fizessem.

Sendo assim, não é difícil compreender por que, anualmente, o Vaticano investe uma gran-de verba em campanhas publicitárias incentivan-do os contribuintes a doar o próprio otto per mil-le à Igreja católica.

Realizadas pela multinacional Saatchi & Sa-atchi, as campanhas são consideradas um mode-lo de comunicação no mundo publicitário por-que mesclam excelente fotografia, trilhas sonoras criadas pelo aclamado compositor Ennio Morrico-ne e slogans comoventes que ficam guardados na memória coletiva.

Em 2005, por exemplo, o tema da campanha com um custo estimado pelo jornal econômico Il Sole 24Ore em 9 milhões de euros foi o tsunami. Já o slogan do comercial de televisão era “Aquele dia o mar trouxe o fim, a onda transformou tudo em nada… mas depois as assinaturas de vocês trans-formaram-se em barcos e redes”.

Também é interessante destacar que outras instituições religiosas minoritárias, como a União Budista Italiana e a Congregação Cristã das Tes-temunhas de Jeová, que juntas representam mais de 300 mil fiéis, assinaram um acordo para parti-cipar do programa, mas até hoje tal pacto não foi concretizado.

Já o islamismo, segunda religião em território italiano, com mais de 1.200.000 praticantes, en-frenta uma situação ainda mais complicada.

Até hoje, a União das Comunidades e Organi-zações Islâmicas na Itália (UCOII) apresentou ao governo três pedidos de participação no progra-ma, mas mesmo representando mais de cem as-sociações islâmicas, teve sua solicitação recusada porque outras organizações também declaram-se representantes dos muçulmanos residentes no país. “As verbas poderiam ser divididas de acor-do com o grau de representatividade das associa-ções islâmicas, mas isso exigiria do Estado uma decisão política”, opina Hamza R. Piccardo, ex se-cretário do UCOII e diretor do site http://www.is-lam-online.it.

Situação análoga enfrentam os fiéis ortodoxos, que, por enquanto, também não podem destinar o próprio otto per mille à sua religião.

De 1990 até 2003, as entradas da Igreja católi-ca provenientes do otto per mille quintuplicaram. Hoje a soma é de exatamente 967.538 milhões de euros, mas a instituição dedicou somente 205.00 milhões dos fundos arrecadados em projetos hu-manitários ou de caridade. O restante é empregado para sustentar o clero e exigências pastorais.

DebateNo livro “La política del sacro - Laicità, reli-

gione, fondamentalismi nel mondo globalizzato”, Roberto Gritti, docente de sociologia das relações e das organizações internacionais da Universidade de Roma La Sapienza adota uma metáfora esporti-va para definir o cenário criado pelo otto per mil-le. “As religiões minoritárias podem participar do jogo, mas não devem competir realmente e muito menos ganhar do catolicismo”, observa. “ Já no que se refere ao nascimento de um islamismo ita-liano, a resposta do Estado é uma praxe política e administrativa claramente islamofóbica, que co-loca em evidência toda as incertezas e imperfei-ções da laicidade à italiana”, completa.

Assim, o patrimônio da Igreja católica italiana continua crescendo e gerando perplexidades.

Estima-se que o Instituto para as Obras de Re-ligião (IOR), o banco pontifício, administre um ca-pital de pelo menos 5,7 bilhões de euros, entre es-pécie, ouro, ações e títulos e excluindo obras de arte e imóveis. O valor foi calculado pela revista Panorama Economy, mas tal cifra pode ser ainda superior, considerando o sigilo envolvendo o ba-lanço da Santa Sé.

Este ano, o jornalista Gianluigi Nuzzi foi uma da poucas personalidades que tentou desafiar o silêncio da imprensa em relação às finanças da Igreja Católica.

Com a publicação do livro intitulado Vaticano Spa – De um arquivo secreto a verdade sobre os escândalos financeiros e políticos da igreja, o jor-nalista revela, entre outros fatos, o relacionamen-to entre Vito Ciancimino, ex-prefeito de Palermo condenado por associação mafiosa, e prelados e funcionários do IOR. Em entrevista concedida a Nuzzi, o filho do ex prefeito, Massimo Ciancimi-no, declarou que o pai mantinha no banco ponti-fício contas correntes em nomes de terceiros.

No blog http://blog.chiarelettere.it, o jornalista também publica, em italiano, as informações con-tidas no polêmico “Arquivo Dardozzi”. Trata-se de mais de 4 mil documentos como cartas, relatórios, registros contábeis e balanços que pertenciam a monsenhor Renato Dardozzi, secretário das finan-ças do Vaticano falecido em 2003.

Em seu testamento, Dardozzi declarava a von-tade de divulgar o seu arquivo à opinião pública; um patrimônio de indícios que demonstram o pa-pel do IOR na reciclagem de dinheiro, propinas e a criação de contas correntes criptadas ou que ti-nham como titulares fundações inexistentes. Uma prática que escandaliza, mas parece não afligir a classe dirigente do banco pontifício porque, como explica Nuzzi, “o IOR comporta-se como um ban-co off shore, considerando que não existem acor-dos entre o Estado italiano e o Vaticano que impo-nham as mesmas regras de transparência previstas

para outros institutos bancários”, sublinha.Outro benefício fiscal concedido ao Vaticano

é a isenção do pagamento do ICI, o imposto mu-nicipal de imóveis nos quais se exerça atividade de culto ou instrução, assistência e cultura. A me-dida entrou em vigor em agosto de 2005, com a promulgação de um decreto-lei assinado por Pie-tro Lunardi, na época ministro da Infra Estrutura e dos Transportes do governo Berlusconi.

Com tal decreto, as prefeituras perderam uma de suas maiores fontes de arrecadação, conside-rando que, segundo o grupo Re, especializado na gestão e valorização do patrimônio de institutos religiosos e eclesiásticos, 20% de todos os imóveis o país são de propriedade da igreja católica. Entre eles, estariam principalmente basílicas e santuá-rios, mas também escritórios e apartamentos lo-calizados na capital italiana. No passado, muitos destes imóveis foram alugados a preços inferiores aos praticados pelo mercado pois estavam vincu-lados ao uso específico para fins de caridade.

No entanto, nos últimos anos são frequentes os casos de despejo de inquilinos, além da especu-lação imobiliária. Somente em Roma, cerca de 2 mil entes eclesiásticos possuem mais de um quar-to do patrimônio imobiliário da capital. Um caso emblemático foi a tentativa de despejo de Nadia Evangelisti.

Desde, 1974, por culpa de um acidente, Nadia foi obrigada a utilizar uma cadeira de rodas.

Inquilina em um apartamento situado na Via della Polveriera, a poucos metros do Coliseu, Na-dia pagava 770 euros mensais de aluguel.

A inquilina reside no mesmo local há mais de 60 anos, mas recentemente os proprietários do imóvel, frades maronitas, ou seja, uma ordem da Igreja ca-tólica, exigem que este valor seja triplicado sob a ameaça de uma ordem de despejo.

Na prática, todos os governos republicanos de direita e esquerda e não só aqueles de inspira-ção democrática-cristã reservaram à igreja cató-lica um tratamento político diferenciado. Poucas organizações, líderes políticos ou personalidades italianas ousaram colocar em discussão a consti-tucionalidade deste sistema ou exigir o respeito do princípio de laicidade do Estado.

Uma das iniciativas mais recentes a favor de uma ética sem dogmas, em um país no qual se vive à sombra da cúpula vaticana, foi aquela pro-movida pela União dos Ateus e Agnósticos Ra-cionalistas (UAAR). A associação idealizou uma campanha publicitária que divulgava nos ônibus da cidade de Gênova o slogan: “A má notícia é que Deus não existe. A boa é que você não pre-cisa dele”.

A reação à campanha foi imediata. O cardeal Angelo Bagnasco declarou-se “ferido” e a IGPDe-caux, uma das empresas líderes no setor publici-tário italiano, retirou as mensagens de circulação. Mais uma vitória da potentíssima Conferência Epis-copal Italiana. Mais uma prova de que o que é sa-cro influencia não só a esfera religiosa, mas tam-bém socio-cultural e até a política.

Anelise Sanchez é jornalista.

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como em um ringue. Assim começou, em 2007, o Programa de Reassentamento So-lidário do Brasil aos 108 palestinos vindos

de Ruweished, campo de refugiados no deserto da Jordânia, onde ficaram por quatro anos e meio. E do mesmo modo, agora em dezembro de 2009, o Programa termina.

Os refugiados chegaram ao Brasil em três gru-pos, entre o final de setembro e início de outu-bro de 2007. O motivo do deslocamento inicial, em 2003, foi um Iraque desestruturado pela que-da de Saddam Hussein, onde minorias, entre elas os palestinos, eram perseguidas. Aqui, deveriam fazer parte de um Programa especial tripartite de proteção a refugiados, definido pelo Acordo Ma-cro de Reassentamento assinado em 1999 entre o governo brasileiro e o Alto Comissariado das Na-ções Unidas para Refugiados (Acnur). O legado da terceira experiência (o Brasil já recebeu afegãos e colombianos), no entanto, não deixa qualquer li-ção sobre os problemas ou a condução de um re-assentamento desse porte.

Luiz Paulo Telles, presidente do Conare (Comi-tê Nacional de Refugiados, o pé governamental da coordenação do Programa) e secretário executi-vo do Ministério da Justiça, disse, oficialmente, à reportagem de Caros Amigos, que a vinda de pa-lestinos está vetada. “Era isso que esses refugia-dos queriam, que nenhum palestino mais viesse? Conseguiram”.

Gravidez e abortoBasta sentar e conversar para ver que não era

isso que eles queriam. Em fevereiro de 2008 já pas-savam por problemas, como o aborto sofrido por Huda Mubarak do que seria seu terceiro filho. Ela tinha uma gravidez de risco – uma incontinência do colo do útero – e teve que fazer uma cerclagem

(costura para alongar a gestação). A gravidez ne-cessitaria de cuidados mais frequentes. O processo não deu certo. Walid al-Tamimi, diante do diretor da Santa Casa de Mogi das Cruzes, São Paulo, dis-se no pouco inglês que sabia: “Do anything. I love my wife” (Faça qualquer coisa. Eu amo minha es-posa). Ele se referia à retirada do útero. Huda so-breviveu, não pode ter mais filhos, mas, se não fosse o socorro de uma vizinha e seu irmão taxis-ta, a coisa poderia ter sido pior. O Programa não começava bem. A luta era contra a Cáritas Brasi-leira, a entidade executora para os refugiados em Mogi das Cruzes.

Em tese Reassentamento deve ser executado por três partes. Mas aí começa a confusão. Pelo Acordo Macro, o Conare é o pé principal, já que está encar-regado, de acordo com o ponto 9.2, de “coordenar com outras instâncias públicas todos os assuntos re-lacionados com a integração dos refugiados;”(grifo meu). Na visão do Conare, no entanto, coordenar não é realizar. Em email enviado à reportagem no dia de 17 de abril de 2008, dizia que “problemas tó-picos de integração têm sido progressivamente su-perados pelas ONGs, com o apoio do Acnur, sendo estas as instituições que têm contato direto com os reassentados e melhor compreendem suas necessi-dades”. O Acnur, em email enviado em 11 de abril de 2008 mostra que Conare e Acnur se entendem. Afirma que “o país possui um Programa de Reas-sentamento Solidário, que é coordenado pelo Cona-re e implementado pelo Acnur e pelas instituições da sociedade civil, com recursos da comunidade in-ternacional e o apoio do Poder Público federal, es-tadual e local”.(grifo meu). O contraste entre o que diz a lei e o que dizem as entidades coordenado-ras é um dos problemas para avaliar o Programa, já que não há de quem se cobrar responsabilidade por possíveis falhas.

acampamentoEm Mogi, o aborto de Huda não foi o único

problema. A relação entre a Cáritas, especialmen-te na figura de seu gestor, Antenor Rovida, e os palestinos era de hostilidade. Problemas com mo-radia, atendimento de saúde e com documentos que não eram resolvidos por nenhuma das partes do Programa alimentavam a insatisfação. Mas, no papel, tudo corria bem. O Conare avaliava o pro-grama como “exitoso por todos os órgãos nele en-volvidos”.

Cansados de exigir atendimento adequado da Cáritas, em maio de 2008, um grupo de oito pesso-as resolveu levar os problemas do Reassentamento a quem de fato deveriam incomodar. Conseguiram. Em Brasília, permaneceram um ano, até maio de 2009, acampados em frente ao escritório do Acnur. No final de 2008 e início de 2009, o acampamen-to chegou a ter 20 pessoas, muitas delas vindas do Rio Grande do Sul, onde vive parte dos refugiados vindos da Jordânia.

Telles, presidente do Conare, considera o protes-to uma coisa “impossível de entender. Eles aban-donaram o Programa. Tinham casas bem montadi-nhas, têm acesso à língua portuguesa, assistência à saúde, educação para as crianças. Um desses re-fugiados que está sozinho na rua foi arrancado de um asilo em São Paulo. Estava em uma casa de saúde mental, de tratamento e repouso. Ela tirou ele de lá e o colocou na rua”.

O ele em questão é Safi Issa, colocado em asi-lo logo na chegada ao Brasil. Ele passou dois dias fugido em novembro de 2007. Realmente não que-ria ficar na “casa de saúde mental”. O ela refere-se à Sandra Nascimento, advogada e consultora au-tônoma em direitos humanos, a quem chamou a atenção a presença daqueles palestinos acampados em frente à bela casa do Lago Sul, em Brasília, que

O reassentamento de 108 palestinos termina em conflito entre os refugiados e as instituições assistenciais. Foto Ahmad Mustafa Mahmoud

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Arturo Hartmann

Sonho, luta e fracasso do reassentamento solidário

Polícia desmonta acampamento de palestinos em Brasília

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43novembro 2009 caros amigos

Arturo Hartmann é jornalista.

ostentava a pequena bandeira da ONU/Acnur (os-tentava, pois há quatro meses o escritório está com seu endereço em segredo).

ajUda FinanceiraA advogada levou o embate do Programa à Jus-

tiça e representou, no final de 2008, uma ação em nome de quatro dos refugiados em Brasília, tendo como réus a União (na figura do Conare), o Ac-nur e a Cáritas Brasileira. Pedia que recebessem a reiteração retroativa dos valores devidos, já que imediatamente à sua chegada a coordenação os retirou do Programa. (A ajuda financeira propor-cionada pelo Programa é composta por valor de-finido pelo salário mínimo - aos pais de família e solteiros, cerca de 320 reais, à mulher, 240, ao fi-lho mais velho, 160, e a partir do segundo, 80 re-ais – e o aluguel das casas, ajuda que no total pode chegar a 1.200 reais para uma família de 4 pesso-as; o Programa também paga o valor de remédios para doentes crônicos).

Um deles é Farouq Mostafa Mansour, palestino de Gaza. Em Brasília, vive em um quarto alugado com ajuda da comunidade no Núcleo Bandeirante, bairro-satélite da capital. Ali, apenas um colchão estendido, frutas, salgadinhos, bolachas sobre a mesa e um fogão. Farouq já mandou duas car-tas a Lula. “I want to meet governo” (Eu quero me encontrar com o governo). O presidente não teria muitos problemas para conhecer o refugiado. Não levaria mais do que 30 minutos para chegar a seu apartamento. Talvez se incomodasse com as ins-talações, mas degustaria um frango acompanha-do de zaahtar. (mistura muito utilizada no Oriente Médio, composta de gergelim e tomilho).

O palestino também brigava com Antenor. Não se conformou em ser colocado em um asilo as-sim que desembarcou no país. Pediu e foi realo-cado junto com outro refugiado em uma mesma casa. Ambos exigiram, então, que cada um tivesse a sua. A nova casa, no entanto, era inadequada à sua condição de saúde.

O refugiado que morava com ele, Hamdan Abu-Sitta, 65 anos, também estava na leva que chegou a Brasília. E lá faleceu no último dia 19 de outu-bro. Como todos os refugiados homens, fumava. Tinha enfisema pulmonar avançado, como prova-velmente muitos deles desenvolverão.

ordenS médicaSRelatório do Acnur sobre o acampamento diz

que em 3 de agosto de 2008 Farouq e Hamdan “recusam-se a cumprir com as ordens médicas de deixar a calçada e o tratamento médico prescrito (...) é suspenso”. Alega ter feito todas as propos-tas possíveis para chegar a um acordo com os pa-lestinos. No entanto, em carta de 10 de setembro de 2008, parte da resposta do Conare ao proces-so da advogada Sandra, diz que as partes desco-nhecem “os motivos que os levaram a deslocar-se a Brasília com a demanda de atendimento médi-co intensivo e, estranhamente, sabotar a efetivi-dade deste atendimento optando por permanecer submetidos às intempéries da rua”. Sandra Nasci-mento diz que o atendimento a Hamdan não foi tão prestativo assim. Ela admite que as situações

de emergência foram atendidas pelo Acnur, mas um planejamento de tratamento nunca foi feito, em Mogi ou em Brasília.

A última internação do palestino foi dia 2 de outubro, um pedido feito direto a Sandra. Estava mal. Já não conseguia comer. “Com muito custo, consegui a internação no Hospital Universitário, através de um residente que entendeu a situação dele. Fez o tratamento e teve uma melhora, mas os médicos queriam um intérprete, pois precisavam conversar com ele”. O problema da comunicação, que a coordenação do Programa alega ter resolvi-do, é recorrente nos casos de problemas médicos. Agora, o registro de atendimento a Hamdan será a próxima peça que a advogada tentará juntar ao processo. Pode ser a prova de negligência de aten-dimento da saúde ao refugiado no tempo em que esteve no país.

Os refugiados que se “recusavam ao conforto de Mogi”, como Telles colocou, e “escolheram as ruas e intempéries da capital” têm um motivo real: o programa de reassentamento não funciona cor-retamente. A Coordenação quer que eles voltem a Mogi para um Programa que não funciona.

Os palestinos pensam na sobrevivência. Num dos itens previstos no Acordo Macro de 99 está:“o Governo facilitará o acesso das famílias refugia-das a programas sociais públicos, que beneficiam grupos de baixa renda”. A União, no entanto, en-trou com uma liminar em 2005 contra uma ação da advogada Eugenia Augusta Favero, que regu-la a extensão de benefícios da LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social) a estrangeiros. “A Constitui-ção não faz diferença a estrangeiros. Se ele entrar nos critérios, ser idoso, incapacitado ou de famí-lia muito pobre, deve receber o benefício”, explica Eugenia. Em 2005, houve uma decisão favorável, mas a União entrou com recurso. “Enquanto ele não for julgado, o INSS não está obrigado a pagar ajuda”, completa. Em Brasília, estão em sua maio-ria os idosos, incapacitados e pobres.

deScaSoHamdan não foi o único refugiado que faleceu.

O pior acontecimento de Mogi das Cruzes ocorreu no final de agosto de 2009: a morte de Nousha, mãe de Hussam Hejazi Khalil El Loh, um dos re-assentados de 2007. Ela havia chegado ao país em junho deste ano. Além dela, veio Ayhan, filho de 9 anos de Hussam, ambos de Gaza, como parte da reunificação familiar prevista no Programa.

O MogiNews, jornal local, fez o seguinte relato dos acontecimentos, em 29 de julho: “Na tarde de domingo, Nousha começou a sentir forte indispo-sição e foi levada pelos parentes à Santa Casa. Lá, realizou diversos exames, constatando a pneumo-nia avançada e alta taxa de diabetes no sangue, o que prejudicou o tratamento. Por volta das 20 ho-ras de ontem, Nusha, que estava debilitada e en-trou em coma, sofreu choque cardiogênico e não resistiu. Sem se comunicar em português e com di-ficuldade de conseguir liberar o corpo de sua mãe e arcar com as despesas do translado (cerca de R$ 1,5 mil), o filho Hossan Hejazi Khalil El Loh, com quem a muçulmana morava, ligou para a Cáritas Diocesana de Mogi das Cruzes para que enviassem

um tradutor, mas o pedido não foi atendido. “Li-guei lá e disseram que era para eu me virar, que o problema era meu”, contou.”

Luiz Godinho, da Unidade de Informação Pú-blica do ACNUR, em entrevista ao MogiNews, no dia 6 de agosto, rebateu as acusações de descaso da Cáritas em relação à morte de Nousha: “Por di-versas vezes, a Cáritas disponibilizou tradutores no hospital para acompanhar consultas ou exa-mes, mas os refugiados não apareceriam ou iam embora reclamando da espera.”

Alguns dias antes, o diretor de Atenção ao Pa-ciente do Hospital Luzia de Pinho Melo, conhecido na cidade como SUS, dr. Luiz Carlos Viana Barbo-sa, explicou a Caros Amigos como foi o processo de atendimento de saúde na prática: “Eles foram cadastrados logo na chegada, examinados, os que precisavam foram encaminhados para um especia-lista”. O momento inicial obedeceu a procedimen-tos normais. Depois, “eles ficaram meio perdidos, não houve acompanhamento e as consultas foram escasseando, até que não aconteciam mais”. Para Luiz Carlos, uma forma de resolver o problema se-ria “ensinar a eles o português ou então ter tradu-tores que pudessem acompanhá-los”. O relato da ausência é recorrente, em Mogi ou Brasília. Acon-teceu com Huda, com Nousha, com Handam.

Mauro Aguiar, coordenador do Comitê Autô-nomo de Solidariedade ao Povo Palestino, gastou suas férias de julho passando de casa em casa para coletar reclamações. Contou cerca de 37 refugia-dos que continuam na cidade. O resto dos 54 ou foram ao Chuí, com escala no acampamento de Brasília, ou a Dois Vizinhos, Paraná, onde a Sadia tem uma unidade de abate com produção volta-da à exportação a países islâmicos, e que contrata obrigatoriamente muçulmanos. “Os problemas são muitos. Há uma senhora, por exemplo, que tem um problema gravíssimo de saúde que leva a um gas-to de 400 reais por mês com remédios. A família está desesperada. Não sabem o que farão quando a ajuda do Acnur acabar”.

Há pontos recorrentes que os refugiados temem assim que o Programa acabar: o ainda deficiente conhecimento, pela maioria, do português, a situ-ação dos documentos, que só lhes darão a cidada-nia e todos os direitos em oito anos, custo de mo-radia, a inserção no mercado de trabalho, e o fato de não poderem sair do país. No Iraque, seriam mortos. Na Palestina, barrados.

No “Manual de Integração” do Acnur, dispo-nibilizado em seu site internacional (http://www.unhcr.org/4a2cfe336.html), de 2002, fica clara a complexidade de levar adiante um Programa de Reassentamento. Diz o manual que problemas de adaptação podem vir como causas de estresse no próprio ambiente de integração: “desemprego, su-bemprego, dificuldades em acessar educação e saúde, habitação insegura, ambiente novo e não-familiar e falta de proficiência na linguagem da sociedade receptora”. As consequências são “medo do futuro e de não integrar-se, capacidade altera-da de planejar o futuro, dependência social e eco-nômica e péssima saúde”

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novo sítio: www.carosamigos.com.br

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caros amigos novembro 2009 44

Reproduzo a seguir trechos de documento assinado por centenas de brasileiros, entre os quais Fábio Konder Comparato, Fer-nando Morais, João Capibaribe, Emir Sader, Heloisa Fernandes, Leonar-do Boffe, Frei Betto.

“Carlos Marighella tombou na noite de 4 de novembro de 1969, em São Paulo, numa emboscada chefiada pelo mais notório torturador do regime militar. Revolucionário destemido, morreu lutando pela democracia, pela soberania nacional e pela justiça social. Da juventude rebelde, como estu-dante de Engenharia, em Salvador, às brutais torturas sofridas nos cárceres do Estado Novo; da militância partidária disciplinada, às poesias exaltan-do a liberdade; da firme intervenção parlamentar como deputado comu-nista na Constituinte de 1946, à convocação para a resistência armada, toda a sua vida esteve pautada por um compromisso inabalável com as lu-tas do nosso povo.

Decorridos quarenta anos, deixamos para trás o período do medo e do terror. A Constituição Cidadã de 1988 garantiu a plenitude do sistema re-presentativo, concluindo uma longa luta de resistência ao regime ditato-rial. Nesta caminhada histórica, os mais diferentes credos, partidos, movi-mentos e instituições somaram forças...

Não admitimos retrocessos. Nem ao passado recente do neoliberalismo e do alinhamento com a política externa norte-ame-ricana, nem aos sombrios tempos da ditadura, que a duras penas con-seguimos superar.

A homenagem que prestamos a Carlos Marighella soma-se à nossa rei-vindicação de que sejam apuradas, com rigor, todas as violações dos Direi-tos Humanos ocorridas nos vinte e um anos de ditadura.

Já não é mais possível interditar o debate retardando o necessário ajuste dos brasileiros com a sua história.

Exigimos a abertura de todos os arquivos e a divulgação pública de to-das as informações sobre os crimes, bem como sobre a identidade dos tor-turadores e assassinos, seus mandantes e seus financiadores. Precisamos enfrentar as forças reacionárias e conservadoras que defendem como le-gítima uma lei de autoanistia que a ditadura impôs, em 1979, sob chan-tagens e ameaças.

Sustentando a legalidade de leis que foram impostas pela força das baionetas, ignoram que um regime nascido da violação frontal da Constituição padece, desde o nascimento, de qualquer legitimidade. E pro-curam encobrir que eram ilegais todas as leis de um regime ilegal...

Celebrando a memória de Carlos Marighella, abrimos o diá-logo com as novas gerações garantindo-lhes o resgate da verdade histórica. Reverenciando seu nome e sua luta, afirmamos nosso desejo de que nunca mais a violência dos opressores possa se realimentar da impunidade. Carlos Marighella está vivo na nossa memória e nas nossas lutas.”

João Pedro Stedile

Em memória

de Carlos Marighella

João Pedro Stedile, membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

O socialismo que havia passado a, pela primeira vez, fazer par-te da atualidade histórica da humanidade, praticamente desapareceu da agenda contemporânea há duas décadas.

Se esgotava um modelo de socialismo que se caracterizou por promo-ver a estatização dos meios de produção a partir da expropriação da bur-guesia privada, e não da socialização dos meios de produção, produzindo uma imensa burocracia que dirigia os Estados de economia centralmen-te planificada. Seu esgotamento se deu tanto pela falta de democracia e de participação política dos trabalhadores, como pela falta de dinamis-mo econômico, que os relegou a não superar os ritmos de desenvolvimen-to econômico do capitalismo, como a depender das economias capitalis-tas de forma subordinada.

Nunca um sistema daquela dimensão havia desmoronado por um pro-cesso de autodegeneração, a ponto de praticamente não apresentar ne-nhum tipo de resistência interna, adaptando-se de forma suave à res-tauração do capitalismo nos seus territórios. O que revelava os efeitos desagregadores que a ideologia ocidental tinha tido sobre o sistema, espe-cialmente sobre seus estratos dirigentes, levando ao que os próprios ideó-logos norte-americanos não esperavam – sua autodissolução.

O modelo do socialismo do século XX foi um modelo de so-cialismo de Estado – como alguns autores o caracterizaram. Buscou, atra-vés da ação determinante do novo Estado, o apoio para tentar recuperar a distância em relação ao capitalismo ocidental, decorrente das rupturas com esse sistemas terem se dado na periferia atrasada e não no centro do sistema, como previa Marx. Para Lênin se tratava apenas de uma mudança temporária de roteiro, até que a revolução em um país da Europa ociden-tal pudesse resgatar a Rússia do seu atraso. O fracasso da revolução ale-mã – o país em que mais se condensavam as contradições depois da sua derrota na primeira guerra – praticamente condenou a revolução russa ao isolamento. A partir daí, as rupturas seguintes se deram na direção opos-ta, da periferia profunda – China, Vietnã, Cuba.

Nas palavras de Lênin, era mais fácil tomar o poder nos pa-íses mais atrasados, mas sumamente mais difícil construir o socialismo. Re-duzida ao seu isolamento, a Rússia optou pelo “socialismo em um só país”, em um país atrasado, afetado pelo cerco dos países ocidentais, pela guerra civil interna, posteriormente pela invasão alemã. O modelo estatal foi uma decorrência disso, de buscar uma acumulação socialista acelerada, que difi-cultasse o bloqueio ocidental contra a URSS. Stalin optou pela expropriação maciça dos camponeses, que permitiu a industrialização acelerada dos anos 30 – e propiciou as condições de resistência diante do poderoso exército ale-mão – mas às custas da ferida agrária de que nunca se libertaria a URSS até seu final, e da destruição da democracia interna no partido.

O socialismo do século XXI, para chegar a existir, tem que partir do ba-lanço de conquistas e erros do socialismo do século XX, se não quiser re-petir sua trajetória.

Emir Sader

soCialisMo

DO SÉCULO XX

Emir Sader é cientista político

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45novembro 2009 caros amigos

IDEIAS DE BOTEQUIMRenato Pompeu

São dois os lançamentos mais imperdíveis do mês. Um é Honoráveis bandidos – Um retrato do Brasil na era Sarney, do jornalista Pal-mério Dória, que já passou por algumas das principais redações do País, in-clusive pela nossa Caros Amigos, publicado pela Geração Editorial. Palmé-rio faz um relato exaustivo e muito bem documentado sobre os métodos pouco ortodoxos, para dizer o mínimo, pelos quais foi montado e mantido o império midiático em escala maranhense, elétrico em escala nacional, e outras coisas mais, comandado pelo senador José Sarney (PMDB-AP), pre-sidente do Senado Federal, e sua família. Um estudo competente sobre o moderno coronelismo político-econômico, que sucedeu no Maranhão o an-tigo coronelismo latifundiário.

O outro lançamento mais imperdível do mês é “No princípio era o po-der – Uma análise semiótica das paixões no discurso do Antigo Testamen-to”, da professora da Unesp Mariza B.T. Mendes, publicado pela Fapesp-AnnaBlume. Trata-se de uma obra pioneira em todo o mundo, ao analisar cuidadosamente a fi gura de Javé tal como surge no também chamado Ve-lho Testamento, como Deus rancoroso e cruel. Tendo como documenta-ção comprobatória o próprio texto do também chamado Velho Testamen-to, a professora mostra como trechos bíblicos justifi cam a guerra, a tortura e até o genocídio. Sem dúvida, uma obra polêmica, que merece leitura por crentes e não-crentes.

Outro lançamento interessante é Era uma vez no meu bairro 1 – Zona Norte, de Jeosa Fá, editado pela Mangangá (www.eraumaveznomeubair-ro.blogspot.com), o primeiro de uma série de quatro volumes de fi cções so-bre os bairros das diferentes Zonas em que se divide a cidade de São Paulo. A apresentação diz tudo: “Prestando bem a atenção, a gente vai desco-brir que muitos e surpreendentes mundos cabem no espaço que vai do lu-gar em que se mora àqueles em que se trabalha, diverte, estuda e faz com-

pras. Nesse espaço, tem de tudo: gente muito bacana, mas também gente muito cruel; episódios comoventes, mas tam-bém histórias revoltantes; imagens e de-talhes inesquecíveis, mas também cenas que fazem a gente levar as mãos à ca-beça e perguntar: Por que, meu Deus?”. Numa linha que procura alcançar o im-pacto das obras de Plínio Marcos e o liris-mo dos trabalhos de João Antônio, se não se tem uma obra de arte de requintado nível estético, se tem uma boa, bem legí-vel e pertinente documentação social so-bre o sofrido, cinzento e comovente coti-diano da grande metrópole.

Quem preferir a alta estética, a atmos-fera rarefeita e brilhante da beleza pura,

pode recorrer a O testamento, do poeta austríaco Rainer Maria Ri-lke (1875-1926), em edição que apresenta a reprodução das pá-ginas manuscritas por Rilke em alemão e sua tradução em português, por Tercio Redondo, lançamento da Editora Globo. Trata-se de um texto sobre o trabalho artístico, encarado qua-se como religião do belo, como missão profética dos cultores da beleza alti-va e altaneira. Hoje, como nota a apresentadora Priscila Figueiredo, a atitude perante a arte é outra, muito mais pragmática e profi ssional, e mesmo os jo-vens artistas responderiam “não, não morreriam”, à pergunta desse aristocra-ta do espírito que Rilke sempre foi: “Morreria se lhe fosse vedado escrever?” Bem entendido, Rilke preferiria morrer a não poder escrever belezas só bele-zas, emocionadas e emocionantes de puro gozo estético.

Bem pragmático e de um caráter exaustivo que chega a ser ári-do, mas que nos recompensa o esforço com uma visão clara e precisa da si-tuação dos camponeses do Brasil, é o livro Processos de constituição e repro-dução do campesinato no Brasil – vol. II – Formas dirigidas de constituição do campesinato, edição conjunta do Nead-Ministério do Desenvolvimen-to Agrário-Editora Unesp, organizada por Delma Pessanha Neves, dentro da Coleção História Social do Campesinato do Brasil, com textos elaborados por pesquisadores convidados pela Via Campesina. Trata-se de artigos so-bre o colonato, sobre o expansionismo agropecuário com máquinas, sobre a Marcha para o Oeste e sobre a transformação dos posseiros em pequenos proprietários ou trabalhadores rurais assalariados. Ou seja, sobre o aprovei-tamento controlado, por autoridades ou empresas, das terras do País, con-traposto ao aproveitamento “espontâneo”.

Para professores, em especial do fundamental e do secundário, e para os interessados em geral em educação, é interessante o relançamento de Criti-cidade e leitura – ensaios, do professor Ezequiel Theodoro da Silva, dentro da Coleção Leitura e Formação da Global Editora-ALB. É uma visão realista, com pés bem fi rmados na si-tuação prática do ensino brasileiro, e não uma mi-ragem voluntarista de o que seria um ideal literário, sobre como interessar os alunos pela leitura e como ajudar a desenvolver o seu senso crítico, necessá-rio não só para o aproveitamento do ato de ler, mas também para a vivência da cidadania.

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do ro-mance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.

AS PERIPÉCIAS DE SARNEYe as vicissitudes de Javé

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GRANDES CIENTISTAS BRASILEIROS. UMA COLEÇÃO BRILHANTE. FASCÍCULOS Nº 1 E 2 NAS BANCAS!

A nova série de fascículos da Editora Casa Amarela conta a trajetória de vida e as descobertas de 24 grandes cientistas brasileiros, homens e mulheres que contribuíram para a ciência e para a construção de um mundo melhor – são cientistas e humanistas, biografados em 12 fas-cículos, dois personagens a cada número quinzenal, formando, ao final da coleção, uma obra de referência de 384 páginas.

GRANDES CIENTISTASCHEGARAM OS FASCÍCULOS NºS 1 E 2

1. CARLOS CHAGAS E JOHANNA DÖBEREINER2. CESAR LATTES E FLORESTAN FERNANDES3. MILTON SANTOS E VITAL BRAZIL4. CELSO FURTADO E CRODOWALDO PAVAN5. OSWALDO CRUZ E NISE DA SILVEIRA6. MÁRIO SCHENBERG E GILBERTO FREYRE

7. ADOLPHO LUTZ E PAULO FREIRE 8. SÉRGIO BUARQUE DE HOLLANDA E FRITZ FEIGL 9. CÂMARA CASCUDO E GRAZIELA M. BARROSO10. DARCY RIBEIRO E MAURÍCIO ROCHA E SILVA11. JOSÉ BONIFÁCIO E JOSUÉ DE CASTRO12. HENRIQUE MORIZE E ANÍSIO TEIXEIRA

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