ed. 158 - revista caros amigos

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ano XIV número 158 maio 2010 R$ 9,90 Novo sítio: www.carosamigos.com.br FIES sufoca estudantes Falta universidade pública para os pobres “As nossas cidades estão inviáveis” no banco dos réus EM QUADRINHOS Salar do Uyuni na Bolívia Amianto Assassino ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JULIO DELMANTO LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU TATIANA MERLINO Sacanagens da Vale contra os trabalhadores e o meio ambiente DROGAS Fracasso da penalização exige alternativas ENTREVISTA Ermínia Maricato

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Capa Maricato

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ano XIV número 158 maio 2010R$ 9,90

ano XIV ano XIV ano número 158 número 158 número maio 2010maio 2010maioR$ 9,90

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

FIES sufoca estudantesFalta universidade pública para os pobres

“As nossas cidades estão inviáveis”

no banco dos réus

EM QUADRINHOS Salar do Uyuni na Bolívia

no banco

Amianto Assassino

ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JULIO DELMANTO LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU TATIANA MERLINO

Sacanagens da Valecontra os trabalhadores e o meio ambiente

DROGAS Fracasso da penalizaçãoexige alternativas

ENTREVISTA

Ermínia Maricato

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www.confiancanobrasil.gov.br

Estamos vivendo um novo Brasil.Feito por você. Respeitado pelo mundo.

Nós brasileiros conquistamos um país cada vez melhor para todos. Estamos juntos, seguindo em frente. E é possível avançar ainda mais.

US$ 239 milhões acumulados em reservas internacionais no último ano. Aumento de 385% frente a 2003. Fonte: Banco Central.

A classe C já corresponde a 53,6% da população brasileira e a classe AB aumentou de 10,7% para 15,6%, de 2003 a 2009. Fonte: FGV.

R$ 69,92 bilhões investidos em habitação. Aumento de 600% em relação a 2003. Fonte: Ministério das Cidades.

596 mil bolsas do Prouni concedidasem 1.253 municípios, de 2005 a 2009. Posição: março de 2010.

Mais de 3 milhões de veículos vendidos em 2009, um novo recorde histórico. Crescimento de 150% em comparação a 2003.

24,1 milhões de brasileiros superaram a pobreza, entre 2003 e 2008. Fonte: Pesquisa Nacional

por Amostra de Domicílios (PNAD).

12,1 milhões de empregos formais gerados nos últimos 7 anos. Fonte: Rais e Caged.

Desmatamento 74,4% menor do que em 2004. O menor índice já registrado desde 1998, quando foi iniciada a apuração da taxa anual. Fonte: INPE.

O percentual da população pobre caiu de 42,7% para 28,8%. Fonte: PNAD.

Queda de 61,6% da desnutrição infantil, entre 2003 e 2008. Fonte: Ministério da Saúde.

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www.confiancanobrasil.gov.br

Estamos vivendo um novo Brasil.Feito por você. Respeitado pelo mundo.

Nós brasileiros conquistamos um país cada vez melhor para todos. Estamos juntos, seguindo em frente. E é possível avançar ainda mais.

US$ 239 milhões acumulados em reservas internacionais no último ano. Aumento de 385% frente a 2003. Fonte: Banco Central.

A classe C já corresponde a 53,6% da população brasileira e a classe AB aumentou de 10,7% para 15,6%, de 2003 a 2009. Fonte: FGV.

R$ 69,92 bilhões investidos em habitação. Aumento de 600% em relação a 2003. Fonte: Ministério das Cidades.

596 mil bolsas do Prouni concedidasem 1.253 municípios, de 2005 a 2009. Posição: março de 2010.

Mais de 3 milhões de veículos vendidos em 2009, um novo recorde histórico. Crescimento de 150% em comparação a 2003.

24,1 milhões de brasileiros superaram a pobreza, entre 2003 e 2008. Fonte: Pesquisa Nacional

por Amostra de Domicílios (PNAD).

12,1 milhões de empregos formais gerados nos últimos 7 anos. Fonte: Rais e Caged.

Desmatamento 74,4% menor do que em 2004. O menor índice já registrado desde 1998, quando foi iniciada a apuração da taxa anual. Fonte: INPE.

O percentual da população pobre caiu de 42,7% para 28,8%. Fonte: PNAD.

Queda de 61,6% da desnutrição infantil, entre 2003 e 2008. Fonte: Ministério da Saúde.

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5setembro 2009 caros amigos

CAROS AMIGOS ANO XIV 158 MAIO 2010

EDITORA CASA AMARELA ­Revistas­•­LivRos­•­seRviços­editoRiaisfundadoR:­séRgio­de­souza­(1934-2008)diRetoR­geRaL:­WagneR­nabuco­de­aRaújo

EDITOR: hamilton Octavio de souza EDITORa aDjunTa: Tatiana Merlino EDITOREs EsPECIaIs: josé arbex jr e Renato Pompeu EDITORa DE aRTE: Lucia Tavares assIsTEnTE DE aRTE: henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRaFIa: Walter Firmo REPÓRTEREs: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORREsPOnDEnTEs: Marcelo salles (Rio de janeiro) e anelise sanchez (Roma) sECRETÁRIa Da REDaÇÃO: simone alves REvIsORa: Luiza Delamare DIRETOR DE MaRKETInG: andré herrmann CIRCuLaÇÃO: Pedro nabuco de araújo RELaÇõEs InsTITuCIOnaIs: Cecília Figueira de Mello aDMInIsTRaTIvO E FInanCEIRO: Priscila nunes COnTROLE E PROCEssOs: Wanderley alves LIvROs Casa aMaRELa: Clarice alvon síTIO: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau assEssORIa DE IMPREnsa: Kyra Piscitelli aPOIO: Maura Carvalho, Douglas jerônimo e neidivaldo dos anjos aTEnDIMEnTO aO LEITOR: joze de Cassia, Zélia Coelho assEssORIa juRíDICa: Marco Túlio Bottino, aton Fon Filho, juvelino strozake, Luis F. X. soares de Mello, Eduardo Gutierrez e susana Paim Figueiredo REPREsEnTanTE DE PuBLICIDaDE: BRasíLIa: joaquim Barroncas (61) 9972-0741.

jORnaLIsTa REsPOnsÁvEL: haMILTOn OCTavIO DE sOuZa (MTB 11.242)DIRETOR GERaL: WaGnER naBuCO DE aRaújO

CaROs aMIGOs, ano XIv, nº 158, é uma publicação mensal da Editora Casa amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de são Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DInaP s/a - Distribuidora nacional de Publicações, são Paulo. IMPREssÃO: Bangraf

REDaÇÃO E aDMInIsTRaÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, são Paulo, sP

sumárioFoto de capa Jesus Carlos

04 Guto Lacaz.

06 Caros Leitores

07 José Arbex Jr. destaca a advertência dos estados unidos sobre Israel.

08 Joel Rufino dos Santos reflete sobre Chico Xavier e o desejo de descobrir.

Guilherme Scalzilli considera erro submeter a inelegibilidade ao Judiciário.

09 Ferréz debate alguns conceitos adotados no tratamento de ricos e pobres.

10 Marcos Bagno critica o academicismo e indaga pra que legislar sobre o hífen.

Mc Leonardo denuncia o ataque dos especuladores aos favelados do rio.

11 Pedro Alexandre Sanches Paçoca: a insônia faz parte da música brasileira.

12 entrevista com Ermínia Maricato: problemas urbanos e déficit habitacional.

17 João Pedro Stedile desmistifica o agronegócio glorificado pela mídia.

Ana Miranda lembra a coleção de cartas da biblioteca Guita e José Mindlin.

18 Glauco Mattoso Porca Miséria: critica o estilo dos entrevistadores da TV.

Eduardo Matarazzo Suplicy fala sobre encontro de pesquisadores de renda.

19 Frei Betto analisa a questão da liberdade no regime socialista de Cuba.

Fidel Castro fala sobre a juventude e a universalização do conhecimento.

20 Lúcia Rodrigues relata o drama dos estudantes sufocados pelo FIes.

23 Gilberto Felisberto Vasconcellos lembra oswald de andrade e a ecologia.

24 ensaio Fotográfico de Alejandra Daglia: a vida dos imigrantes na Itália.

26 Tatiana Merlino relata as sacanagens da mineradora Vale em vários países.

31 Quadrinhos: uma reportagem inédita sobre o salar do uyuni na Bolívia.

34 Julio Delmanto Drogas: o fracasso da penalização exige alternativas.

37 Gershon Knispel fala sobre a violência crescente do estado de Israel.

38 Anelise Sanchez relata o maior processo contra o amianto da eternit na europa.

40 Marcelo Salles fala sobre o cinema popular de Júlio Pecly e Paulo silva.

42 Emir Sader considera o marxismo como o melhor método de análise da realidade.

Cesar Cardoso especula o que aconteceria com a eleição no final da copa.

43 Renato Pompeu Idéias de Botequim: Manoel de Barros, Gilberto Freyre e outros.

44 Ari Zenha de Oliveira critica o modelo de destruição dos recursos naturais.

45 Claudius.

A grande imprensa hegemônica, que costuma dedicar aten-ção e espaço para quase tudo o que seja do interesse empre-sarial, praticamente ignorou o encontro que reuniu, no Rio de Janeiro, em abril, representantes de movimentos sociais, am-bientalistas e trabalhadores da VALE (ex-estatal Companhia Vale do Rio Doce), para debater os danos causados pela em-presa em vários países do mundo, especialmente no Brasil. A jornalista Tatiana Merlino, da Caros Amigos, acompanhou todo o encontro. Nesta edição, ela relata as sacanagens que essa transnacional (brasileira!) está fazendo contra o meio am-biente e os trabalhadores.

Numa entrevista bombástica, a arquiteta e professora Ermí-nia Maricato, que já foi secretária de Habitação de São Pau-lo e secretária-executiva do Ministério das Cidades, analisa os principais problemas urbanos. Ela critica o atual modelo de expansão das cidades, e deixa claro que o déficit habitacional só será resolvido se o poder público confiscar terras para mo-radias populares. Para ela, a especulação imobiliária, o poder das construtoras e o aumento dos automóveis inviabilizam a vida nos grandes centros urbanos.

Programado para ser um fundo de apoio financeiro para universitários de escolas privadas, o FIES (Fundo de Financia-mento ao Estudante do Ensino Superior) se tornou um gran-de pesadelo para seus usuários. A jornalista Lúcia Rodrigues mostra como o “financiamento” de um curso, no valor de R$9 mil, acabou se transformando numa dívida de R$59 mil. De um lado, a inadimplência sufoca milhares de recém-forma-dos, e, de outro, a maioria dos jovens pobres continua exclu-ída do ensino superior.

A presente edição inclui também excelentes matérias sobre o fracasso da penalização dos usuários de drogas, o maior pro-cesso trabalhista contra o amianto da Eternit na Itália, os pro-jetos dos cineastas populares Júlio Pecly e Paulo Silva, e uma novidade em quadrinhos: a reportagem sobre o Salar do Uyu-ni, na Bolívia. E, como sempre, com os artigos, análises e his-tórias da equipe de colunistas da revista.

Boa leitura.

Os segredosdo poder destrutivo

aLTERCOMassociação Brasileira de Empresas e

Empreendedores da Comunicação

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caros amigos maio 2010 6

13 ANOS A revista Caros Amigos recebeu cumprimen-

tos pela passagem de seu aniversário dos seguin-tes amigos e amigas: • Carlos Neder, deputado estadual: “Parabéns pelos 13 anos e pelos outros que certamente virão”.• Paulo Maldos, Assessor Especial do Gabine-te Pessoal do Presidente da República: “Escrevo para enviar meus parabéns aos companheir@s da Caros Amigos por tantas conquistas ao longo destes anos, na defesa dos direitos do nosso povo e na construção de um país digno e livre”.• Carlito Merss, prefeito de Joinville (SC): “Para-béns a toda a equipe da revista Caros Amigos!”• Ivan Valente, deputado federal: “Caros Amigos presta uma contribuição inestimável à democracia, fomentando a resistência e o fortalecimento do pen-samento crítico brasileiro. Parabéns a todos e todas que com seus esforços, profissionalismo e dedica-ção contribuem para a sua realização”.• Aída Monteiro, secretária-executiva de Desen-volvimento da Educação de Pernambuco: “Para-benizamos a todos os que fazem a Revista Caros Amigos pelos 13 anos de resistência e de trabalho de qualidade social relevante”.• Pedro Wilson, deputado federal: “Meus cum-primentos por 13 anos de vida da Revista Caros Amigos, publicação tão importante para o Brasil da democracia, cidadania, direitos humanos e so-lidariedade entre todos os povos amantes da jus-tiça social e da paz”.• Telma Gimenes, Universidade Estadual de Lon-drina: “Parabéns a vocês todos que fazem da Caros Amigos um oásis de reflexão sobre o Brasil”.• Carlos Lichtsztejn, Instituto Sedes Sapientiae: “Pa-rabéns a todos e continuem firmes nesse projeto”.• Otávio Augusto de Araújo Tavares, Rio Grande do Norte: “Desejamos sucesso”.• M. Elisa Campos, assessora pedagógica de Con-tagem (MG).• Renato Simões, secretário nacional de movi-mentos sociais do PT.• Nilmário Miranda, presidente da Fundação Per-

seu Abramo: “Parabéns pelos 13 anos da revis-ta Caros Amigos de efetiva contribuição à demo-cratização do país”.• Wandi Doratiotto, apresentador cultural: “Dese-jo muito sucesso pra toda a equipe”.

CArOS AmigOSQuero parabenizar a revista Caros Amigos, na

qual podemos ter confiança devido à sua trans-parência e pela competência e clareza nos assun-to discutidos. Agradeço também os textos que me enviam pelo e-mail. Leio todos, muito obrigada e gostaria que continuassem mandando.Katia Guazeli

Leio e compro a revista há pouco tempo. O conteúdo é um dos mais interessantes e curiosos que já li. Sou estudante de jornalismo do 2° ano, e o quanto a revista contribui para o meu conheci-mento e aprendizado intelectual é sem tamanho. Bruna Sales de Oliveira

Jornalistas e articulistas da revista Caros Ami-gos: gostei da edição de março (156). Muito opor-tuno o artigo de Neco Tabosa sobre a escola flutu-ante do Recife. O texto do lixo radioativo também foi esclarecedor e assustador para quem mora em São Paulo, como eu. A entrevista do ministro Sér-gio Rezende também é interessante, bem como a do português Boaventura. A revista tem assuntos variados que nos deixam curiosos. Parabéns.Maria Conceição Arruda, São Paulo (SP)

HelOíSA HeleNASobre o comentário do Sr. Edson Amaro de

Souza, São Gonçalo (RJ) na Seção Caros Leitores da revista Caros Amigos - Edição 153, de dezem-bro de 2009. Não vamos tapar o sol com a penei-ra, eu acho melhor ser franco e colocar a verdade nua e crua! O fato é que a Heloísa Helena fundou o Psol dizendo que seria uma alternativa para o povo brasileiro. Agora, quando a maioria do Psol decide coerentemente lançar candidatura própria pra pre-

Caros leitores

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sidente, a Heloísa Helena vai pra imprensa decla-rar que lamenta opção por candidatura própria e se oferece para colaborar com candidata de outro partido. Com essa atitude, Heloísa Helena desidrata e desarticula as pré-candidaturas dos companhei-ros do próprio partido, que ajudou a fundar. Nmasp

eSpeCiAl dA direitA Cara Lucia, maravilhoso o seu artigo, aliás a

revista toda. Vocês estão de parabéns pela quali-dade do jornalismo, pela coragem de abordar te-mas tão delicados e pela capacidade investigati-va. Longa vida para Caros Amigos. Vale mais do que as publicações oficiais de vários partidos co-munistas e socialistas de esquerda. Isso porque não defende os interesses de um partido específi-co, mas da sociedade como um todo. Dr. Adail Ivan de Lemos

Lucia, Acabo de ler o especial sobre a direita. Os artigos de sua autoria estão ótimos. Tanto o que se refere ao sistema financeiro quanto o re-lativo aos torturadores que continuam impunes. Meus parabéns.Josué F. de Castro

Jornalista Tatiana Merlino: muito lúcido seu texto sobre a tortura de ontem e de hoje na pu-blicação “A direita continua forte, ataca e mor-de”, do mês de abril. No caso dos direitos huma-nos, a senhora explicou bem os motivos da direita continuar forte e “atacando”. A tortura foi e con-tinua sendo usada como instrumento de contro-le de classe. Andreas Frauendorf

Caros editores Hamilton, Tatiana, Renato e José Arbex: perfeita a revista da direita. Chico de Oliveira, Virginia Fontes, José Arbex e Gilmar Mauro. Time de primeira para analisar como a di-reitona brasileira funciona. Osvaldo de Medeiros, Rio de Janeiro (RJ)

redação

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7maio 2010 caros amigos

José Arbex Jr.

As crescentes tensões entre os governos dos Estados Unidos e Israel atingiram, nos últimos meses, um nível sem precedentes desde 1956, quan-do Israel resolveu atacar o Egito, em operação con-junta com a Inglaterra e a França, sem prévio conhe-cimento da Casa Branca, para tomar o controle do Canal de Suez. Elas são o reflexo de uma perigosíssi-ma tormenta que se prepara no Oriente Médio e na Ásia central, envolvendo o conjunto dos países árabes e islâmicos, incluindo Afeganistão, Paquistão, Irã e, claro, Estados Unidos, Rússia e Israel. Exagero? Longe disso. Com a palavra o vice-presidente estaduniden-se Joseph Biden, durante uma visita a Israel, em 10 de março, ao advertir o primeiro-ministro israelense Binyamin Netanyahu, segundo relata o jornal Yediot Aharanoth, um dos mais influentes em Israel:

“A coisa está começando a ficar muito perigosa para nós. O que vocês estão fazendo aqui cria no-vas ameaças à segurança dos nossos soldados que combatem no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão. Criam-se riscos novos para nós e para a paz regional”. A advertência ganha maior significado quando se re-corda que Biden é um fervoroso defensor de Israel. Em outubro de 2006, o então senador pelo Partido Democrata chegou a afirmar que o apoio dos demo-cratas ao Estado judeu “vem de nossas vísceras, atin-ge o coração e vai até o cérebro. É quase genético.”

Biden criticava a política de implantação de novos assentamentos israelenses nos territórios palestinos ocupados, em especial no setor oriental (árabe) de Jerusalém. No momento mesmo em que o vice-presidente iniciava sua visita a Israel, Ne-tanyahu anunciava a instalação de 1.600 novas ca-sas para judeus ultraortodoxos no bairro de Ramat Shlomo, em Jerusalém Oriental, além da constru-ção de 112 novos apartamentos em Beitar Illit, na Cisjordânia. Irritado, Biden afirmou que “dado que muitos, no mundo muçulmano, veem uma clara co-

nexão entre as ações de Israel e a política dos Es-tados Unidos na região, qualquer decisão que agri-da os direitos de palestinos em Jerusalém Leste terá impacto direto na segurança pessoal dos soldados americanos que combatem o terrorismo islâmico”.

As advertências de Biden refletem as conclusões de um relatório apresentado no final de 2009 pelo general estadunidense David Petraeus ao Comando Unificado das Forças Armadas dos Estados Unidos. Segundo o re-latório, “cresce entre os líderes árabes a percepção de que os Estados Unidos não conseguirão enfrentar Is-rael, que os países cobertos pelo Centcom – quase to-dos árabes – começam a perder a fé nas promessas dos Estados Unidos; que a intransigência do governo de Is-rael no conflito Israel-Palestina está pondo em risco a autoridade dos Estados Unidos na região. ”Centcom é a sigla em inglês de Comando Central, uma instância de controle das Forças Armadas estadunidenses, cria-da em 1983, para monitorar uma vasta área que com-preende o Oriente Médio e a Ásia Central.

Após o fiasco da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003, e o recrudescimento da guerra no Afeganistão e Paquistão (dotado de ar-mas nucleares), a Casa Branca teme a regionaliza-ção da guerra e os efeitos do “fantasma do Vietnã” entre a opinião pública estadunidense e mundial. A percepção de uma Casa Branca politicamente frágil, refém de Israel, abre uma avenida para a catástrofe. Não por acaso, em encontro mantido com o presi-dente francês Nicolas Sarkozy, no começo de abril, em Washington, o próprio presidente Barack Oba-ma declarou que vai manter a pressão sobre Israel, ainda que isso custe um alto preço político nas elei-ções que serão realizadas em novembro, nos Estados Unidos. Obama declarou não ter opções.

A eventual regionalização dos conflitos daria novo impulso aos movimentos separatistas islâmicos no in-terior da Federação Russa, em especial no norte do

Cáucaso, envolvendo a Chechênia, Ingushétia e Da-guestão. Esse movimentos produziram, em 29 de mar-ço, os atentados a bomba em duas estações de me-tro, em Moscou, resultando na morte de 39 pessoas. Os atentados foram realizados pelas “viúvas negras”, mulheres de guerrilheiros separatistas islâmicos mor-tos por tropas russas. Uma delas tinha 17 anos e a outra, 20. Os ataques foram reivindicados por Doku Umarov, líder separatista checheno. O primeiro-mi-nistro russo, Vladimir Putin, declarou que iria “es-magar” o movimento separatista, e obteve imediato apoio da Casa Branca na “guerra ao terrorismo”.

Jamais Washington esteve tão próxi-ma de Moscou: em 8 de abril, ao assinar o acordo de redução do arsenal nuclear, Obama convocou os di-rigentes dos onze países ex-comunistas que hoje fa-zem parte da OTAN a “assumir uma nova atitude para com a Rússia”, abandonando uma postura de suspei-ta. Putin, em contrapartida, tomou a iniciativa, sem precedentes, de convidar o presidente polonês Lech Kaczynski e o primeiro-ministro Donald Tusk a uma cerimônia em homenagem a cerca de 22 mil de sol-dados poloneses massacrados pelo Exército Verme-lho, em 1940, em Katyn. Putin responsabilizou di-retamente o ex-ditador soviético Josef Stalin pelo massacre. Foi a primeira vez que as autoridades po-lonesas receberam um convite oficial russo para ho-menagear as vítimas de Katyn, fato obscurecido pelo acidente aéreo que causou a morte de Kaczynski.

Sedimenta-se uma aliança entre Moscou, Wa-shington e aliados europeus, com o objetivo de “pre-servar a ordem” no Oriente Médio e Ásia Central, onde estão situadas vastas reservas de petróleo e gás. A intransigência de Israel, ironicamente, tor-na-se a pedra no sapato de Washington, e ameaça precipitar um conflito de vastas proporções.

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José Arbex Jr. é jornalista.

Israel abre uma avenida para a catástrofe

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caros amigos maio 20108

Guilherme Scalzilli

Fui convidado a um programa de rádio sobre o médium Chico Xavier. Cheguei a ir à emissora. No último instante, tive o juízo de desistir. Provavelmente com meu ceticis-mo sobre a realidade dos espíritos, vida após a morte etc., acabaria ferindo a susceptibilidade de algum ouvinte crente.

Não é que devamos declinar do debate com crentes. Por filosofia, nada do que é humano nos deve ser estranho. A própria filosofia nas-ceu e se desenvolveu pela suspeita da cren-ça. Desse amor humano ao saber (filo-sofia) vieram as ciências. Elas emergiram com difi-culdade da nebulosa mítica inicial. Mas, num programa de rádio, na televisão, em sala de aula, mais vale a prudência: deixar os crentes com sua crença.

Anos atrás, numa aula de literatura, eu fa-lava dos critérios de verdade: “Se, por exem-plo, um cachorro entra por aquela porta e nos dá bom-dia, não acreditaremos. Vemos e ou-vimos o cachorro, mas não acreditamos: ca-chorros não falam”. Quis reforçar a ideia e pedi que olhassem a baía de Guanabara pela jane-la, azul e cálida: “Se alguém viesse andan-do sobre o mar, neste momento...”. Um aluno levantou o braço imediatamente: “Andar so-bre as águas, nem por hipótese. Só Nosso Se-nhor Jesus Cristo!”. Pedi desculpa, arranjei ou-tro exemplo.

Hoje se tornou comum alunos evangélicos e espíritas confrontarem professores. Com a velhíssima arma da razão, podemos compre-endê-los; eles não nos podem compreender, já que se baseiam numa crença. Crença, por defi-nição, é indemonstrável. Foi impossível (pelo menos até hoje) demonstrar, pela lógica, as-sim como provar, pela experiência, que mor-tos se comunicam com vivos. Um dos lemas da Igreja Positivista era “Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”. O Barão de Itararé gozou: “Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos... mais vi-vos”. Esta é a linha divisória: nós, os céticos racionalistas, nos movemos no mundo dos vi-vos e mais vivos; eles, os crentes irracionalis-tas, no mundo dos mortos e deuses. Cada ma-caco no seu galho.

No mundo dos vivos há muito que expli-car. Por exemplo: por que a idade da ciência e da técnica é também a da crença, do misticis-mo, da astrologia, da cientologia, dos gnomos,

dos Chico Xavier? Bom, primeiro porque é um grande negócio. Aliás, a terceira neta de Eins-tein, Evelyn, formada em antropologia e lite-ratura tem, na Califórnia, a rendosa profissão de “desprogramadora de seguidores de culto”. Uma ironia atroz.

Mas não é tudo. A ciência, com sua empá-fia, e a técnica, com sua subserviência ao capi-tal, favorecem o irracionalismo místico. Mui-tos cientistas afirmam que, mais cedo ou mais tarde, explicarão tudo. Muitos tecnólogos pro-metem que inventarão todas as máquinas para conforto do homem.

O senso comum de nossa época é ambiva-lente com relação à ciência e à técnica. Ao mesmo tempo que acredita em suas promes-sas, desconfia que haverá um outro saber, mais anterior e profundo, que as cauciona e lhes es-tabelece limites. O homem, enquanto homem, não precisa da ciência e da técnica para exis-tir. A existência precede as duas.

Não entrei no programa sobre Chico Xa-vier. Chamo Bertrand Russell em meu socorro: “O que é necessário não é a vontade de acre-ditar, mas o desejo de descobrir, que é justa-mente o oposto”.

amigos de papelJoel Rufino dos Santos

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com

Abusos de função

Joel Rufino é historiador e escritor.

O juiz espanhol Baltasar Garzón é acusado de extrapolar as prerrogativas do cargo nas investigações sobre desaparecidos do regi-me franquista. Não cabe aqui discutir as nuances políticas do episódio, mas aproveitá-lo para uma reflexão mais ampla sobre os limites da atuação de magistrados. Objetivos inquestionáveis justi-ficam eventuais irregularidades cometidas para defendê-los? O Estado de Direito pode aceitar que filigranas técnicas perpetuem injustiças his-tóricas? Ou aquelas são indissociáveis da estabi-lidade legal que garante o funcionamento do sis-tema democrático?

A premissa do “mal menor” ganha seguidores no Brasil. A ideia de estabelecer a inelegibilida-de de candidatos condenados, por exemplo, tem motivações aparentemente irretocáveis. Submeter às diferentes competências do Judiciário os desti-nos eleitorais do país seria preferível à impunidade dos bandidos. Mas também permitiria que proje-tos políticos fossem destruídos em simples cane-tadas, sob quaisquer pretextos disponíveis. E não só nas cortes menores, pois a contaminação eco-nômica e ideológica do Judiciário é generalizada – basta contabilizar as derrotas judiciais sofridas pelo governo paulista de José Serra.

Encontramos problema seme-lhante quando as decisões de instâncias supe-riores ferem o interesse público. Se o STF endossa a anistia às torturas e assassinatos da ditadu-ra militar ou a criminalização do uso de entor-pecentes, magistrados sensíveis à inconstitu-cionalidade flagrante dessas medidas deveriam comprometer sua integridade moral e acatar a soberania dos ministros? Mas que efeitos práti-cos teriam as decisões contrárias, senão criar in-certezas e congestionar as cortes?

Tais dilemas revelam um paradoxo incômodo: alheia aos instrumentos de representatividade po-pular, a crescente politização da Justiça resultará sempre ilegítima e antidemocrática.

Chico Xavier x Bertrand Russell

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9maio 2010 caros amigos

Ferréz é datilógrafo, mas já foi flanelinha como vários moradores de periferia, e já correu muito atrás de madame que não pagou ao sair do mer-cado, mas acabou não alcançando, sobre isso diz. – esse povo me deve!

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“A vida criminal traz pânico e medo, pra completar o fato, trilha sonora do gueto, eu vou xingar até a mãe do prefeito por ter deixado a fa-vela desse jeito”.

Esses versos do grupo Trilha Sonora do Gueto, nunca me saíram da mente, é uma frase de puro protesto e ao mesmo tempo fala da vida crimi-nal, isso mesmo, a vida traz pânico e medo, mas nem pra todo mundo, afinal, a lei é diferente para quem tem grana.

A famosa deputada que colocou dinheiro na bolsa. A reportagem a mostra, a deputada Eurides, que nos últimos três anos, incluindo 2010, destinou R$ 10,5 milhões em emendas parlamentares, curio-samente uma parte do pagamento foi para seu gen-ro, Ira Levin, que leva ou R$ 40 mil como maestro.

A deputada Eurides, durante a maté-ria, está sentada, respondendo calmamente às per-guntas, num lugar bem aconchegante, um escritório, não está sendo ofendida, puxada sem camisa, alge-mada, nem muito menos exposta pelo apresentador, palavras como: vagabunda, pilantra, ladra, não são em nenhum momento pronunciadas, coisa que você ouvirá logo depois na próxima matéria.

Ao terminar a entrevista, você fica com dúvida, uma senhora tão serena e convicta do

O país da bolsa e da bermudaque fala, até eu acredito nela, assim como acredi-to no prefeito do Rio, um cara tão batalhador, que agora autorizou a derrubada das casas em área de risco. Muito boa essa medida, deixa que a gente derruba em vez da chuva.

Mas vamos à próxima matéria, daria para colocar mais um capítulo no livro Showrnalismo, do Arbex.

Mostra o incrível flagrante de imagens de jo-vens (e não meliantes como o falado a todo mo-mento) olhando carros, isso mesmo, eles filmaram eles olhando carros, depois mostram eles presos, na mesa, 6 notas de 5 reais, 4 de 20 reais, como se fosse crime pobre ganhar alguma miséria, di-ferente do pacote que a deputada tem na sacola.Também diferente é o lugar, eles entram algema-dos, sem camisa, um após o outro, o crime? Ser flanelinha, cobrar para deixar o carro num lugar, o seguro acima de 2.000 reais que todo mundo paga não é extorsão? Cobrar zona azul de um lugar que a gente paga imposto não é extorsão? Agora um cara na rua, desempregado, pedindo para olhar seu carro é extorsão? Bom, você tem a opção de não querer, e o carro vai correr o risco, como se você também não quiser o seguro, a zona azul, é o mesmo dilema. Vai arriscar se quiser.

A empresária, loira, digna, honrada, com seu carro de 200.000, diz que temos que agir diferente, ela quis ser um bom exemplo para nos-sa sociedade.

Ficou até altas horas na delegacia para poder depor contra os jovens (meliantes, a matéria in-siste), disse que eles pediram os 10 reais adian-

tados, ela se recusou a dar, o jovem disse que era da comunidade ali do lado, ela se indignou. Cla-ro! Na hora do almoço, quando contou vantagem ao celular falando que morava na parte “nobre da cidade”, não era vergonha, agora o cara dizer que era da comunidade do lado é ameaça, o úni-co lugar em que ele tem valor, o único sobre o qual pode falar.

O sistema fez bem sua lição de casa, pe-gou jovens, prendeu na cadeia. Lá, vão ter aula de malandragem, vão aprender que 10 real num é nada, o bagulho é os malotes, tem que invadir, meter o revólver, que pedir o quê, olha aí você, vai agir na moral, vamo partir para o arrebento.

Um dia um deles tromba com a empresária que fez a denúncia, que ficou aquela noite na dele-gacia, que vai ter o que contar nas altas rodas da sociedade, que viveu uma aventura diferente, que olhou para a calça justa do policial malhado, que pegou o telefone para ligar direto para ele se “precisar”, vai voltar pra sua grande casa, pra sua “grande” vida, enquanto a cela vai ganhar mais alguns “perigosos” meliantes, que na cadeia vão perguntar, e ai irmão por que está aqui.

Sou flanelinha.Pôr muito dinheiro na bolsa de marca

pode, pôr pouco na bermuda rasgada não.

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Ferréz

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caros amigos maio 2010 10

Mc Leonardo

Tenho inveja quando abro um dicionário de inglês e encontro as grafias online e on-line, up to date e up-to-date, non-return e nonre-turn entre outras: tanto faz escrever com hífen ou sem hífen, juntando as palavras numa só ou deixando separadas... Não podia ser assim tam-bém em português?

Já declarei em diversas ocasiões meu to-tal apoio ao novo acordo ortográfico, não por questões propriamente linguísticas, mas pela importância política que ele reveste, principal-mente para que os setores mais chauvinistas da sociedade portuguesa abandonem para sempre a pretensão idiota de achar que são os donos da língua só porque ela tem o nome do país de-les. Mas confesso que essa história de querer le-gislar sobre o uso do hífen me tira a paciência. Com a nova ortografia, bem que podíamos ter nos livrado dessa chatice, não?

Por que não liberamos de vez o uso do hífen e deixamos que as pessoas empreguem onde e quando bem lhes der na telha? Qual a justifica-tiva para agora escrever “mula sem cabeça” sem hífen, quanto antes era “mula-sem-cabeça”? E por que antes se escrevia “microondas” e agora tem que ser “micro-ondas”? E, principalmente, por que não deixar que as duas formas sejam usadas sem medo nem estardalhaço?

As línguas românicas (italiano, francês, es-panhol, português) sofrem há séculos com a tra-dição purista e academicista, que impõe sobre a língua uma paranoia de correção, um monte de regras anacrônicas que impede os cidadãos de se apropriar da língua, de sentir seu idioma materno como algo que lhes pertence de abso-luto e pleno direito. No caso de nações surgi-das do processo colonial, como o Brasil, esse mal se transforma em doença crônica, já que o ideal de correção está sempre do outro lado do mundo. Já nos países de língua inglesa, impera uma repulsa às academias de língua, que nun-ca brotaram na Inglaterra nem nos Estados Uni-dos. O resultado é que por lá, mesmo havendo (como em todo canto) os reacionários da língua, a aceitação das formas inovadoras é muito mais rápida e tranquila: a partir do momento em que essas formas começam a aparecer com frequên-cia na fala e na escrita das pessoas mais letra-das, elas automaticamente entram para o rol do que é certo e aceitável. Por isso, um texto eru-dito escrito em inglês é muito mais fluente, des-

pojado e agradável de ler, ao passo que quem escreve em francês, espanhol, italiano ou portu-guês tem que evitar ao máximo as “marcas da oralidade”, como se fossem uma doença conta-giosa, e produzir textos barrocos ou, no míni-mo, parnasianos.

Mas é da Alemanha que vem o exemplo mais luminoso de democracia linguística. Foi aprovada em 1996 uma reforma ortográfica da língua alemã. Mas ela só é obrigatória para o ensino e a administração pública. Fora daí, todo e qualquer cidadão pode escrever como quiser, usando as diferentes opções ortográficas da tra-dição de sua língua. Será que não poderíamos fazer o mesmo por aqui, pelo menos no caso desse sinalzinho ínfimo, para que seus décimos de milímetro não tirassem o sono de tanta gen-te boa e honesta?

falar brasileiroMarcos Bagno

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Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

PRA QUE LEGISLAR SOBRE O HÍFEN?

Todos conhecem os sucessivos erros po-líticos que fizeram a Cidade do Rio ter o número de favela que tem. Mas o maior de todos os erros foi aceitar tantas pessoas de tantos lugares (em nome do crescimento da cidade) sem ter um plano habita-cional pra elas. Ver a favela como problema foi o se-gundo maior erro, quando na verdade a favela foi a solução encontrada por quem não tinha opção.

Acompanhar de forma humana cada caso de cada favela e fazer novos planejamentos de mo-radia era o que devia ter sido feito nos últimos 60 anos. Mas não foi. Dizer que quem mora em encos-ta com alto risco de desabamento tem responsabi-lidade nas consequências desastrosas das chuvas do Rio de Janeiro é tão covarde quanto a negli-gência dos verdadeiros culpados.

O prefeito do Rio, Eduardo Paes, ao anun-ciar o plano de habitação para os desabrigados, mos-trou que não está disposto a ouvir opinião diferente da sua administração e soltou essa:

“Peço aos politiqueiros de plantão que se reco-lham às suas insignificâncias e não vão pra lá (pra onde estão sendo levadas as vítimas e os moradores das áreas de alto risco) para fazer baderna”.

A verdade é que os moradores de favela do Rio nunca precisaram tanto de se unir, pois vem um pro-cesso de desapropriação em massa que tem que ser acompanhado por todos e DECIDIDO pelos favelados depois de uma grande discussão com vários setores da sociedade. E isso os governantes não querem.

O interesse que existe pela especulação imobi-liária em várias favelas do Rio não é novidade pra ninguém, inclusive o próprio Morro dos Prazeres (que será demolido por inteiro), o qual conheci e frequentei na minha adolescência, é o pico mais alto habitado por favela na cidade, e tem uma vis-ta privilegiada.

Peço a todos (politiqueiros ou não) que reconheçam a significância do momento que vive-mos e busquem informações sobre o que a Prefei-tura está fazendo e como está fazendo nas fave-las cariocas.

Rio de AbRil, como sempre a culpa

é dos pobres

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11maio 2010 caros amigos

Lulina costuma escrever canções sobre in-sônia. Em Bichinho do Sono: “Vejo tudo na es-curidão/ eu agora sou japonês/ os carneiros já vão chegar/ os carneiros vão me ajudar/ a dor-mir”. Narcolepsia: “Queria dormir pra sempre/ de dia nunca acordar/ para lembrar o que acon-teceu/ e o que pode acontecer”.

Em 2002, Lulina gravou, à própria custa, Co-chilândia. Lançou 13 cópias. “Na maioria das músicas, o sono é uma rota de fuga”, ela expli-ca. “É fechar os olhos para a realidade e abrir para uma outra interior, às vezes até menos nonsense que o mundo real. Cochilândia fun-cionava como um ‘tratamento’ para a insônia. Começa pedindo para a pessoa se deitar e avi-sando que lá pela quarta música ela já estará dormindo, e no final toca um despertador altís-simo, para a pessoa acordar.”

Lulina é compositora e cantora pernambu-cana (radicada em São Paulo), que lançou um dos CDs mais inteligentes, doces e inquietos de 2009, Cristalina (onde estão as músicas acima), disco-síntese dos dez trabalhos anteriores, gra-vados artesanalmente e distribuído à moda mo-desta de Cochilândia.

Mais recentemente, o cantor e com-positor paranaense (radicado paulistano) Bruno Morais gravou uma nova versão para Bichinho do Sono. Pode ser impressão, mas parecem ser de sono as olheiras que ele expõe no videocli-pe (YouTube). Já parou para pensar quão raro é um intérprete excepcional, homem, cantar uma música de uma exímia compositora, mulher?

Enquanto Lulina e Bruno contam carneiros, ovelhinhas são tema do cearense Fernando Ca-tatau (outro filho adotivo de São Paulo), com-positor principal da banda Cidadão Instigado. “Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, quatorze, quinze, dezesseis ovelhinhas pulam na cerquinha de madeira”, canta. “Fiz essa música num perío-do em que eu e minha mãe tínhamos um bar em Fortaleza. Virava noites trabalhando, e parei até de tocar por quase um ano”, conta. “E fica-va pensando que não conseguia organizar mi-nha vida nem dormir, e estava perdendo meu

caminho. Vivia num loop eterno. É tudo tão rá-pido que você não tem tempo mais para pensar lentamente. A velocidade destrói a nossa capaci-dade de imaginação.”

Instrumentista de peso, Catatau can-ta com voz agreste à moda dos conterrâneos Bel-chior, Fagner e Ednardo, e seu Cidadão Instigado costuma misturar brilhantemente referências de rock’n’roll e da mais legítima e luminosa tradição brega-cafona brasileira. Ovelhinhas está no disco Uhuuu!, lançado no ano passado. “Sou a favor da lentidão e dos sonhadores”, Catatau arremata.

A lentidão também está entre as premissas da cantora e compositora Céu. Seu segundo CD foi lançado em 2009, Vagarosa. Uma faixa se cha-ma Sonâmbulo. Outra, um reggae de perfume ára-be, é o Cordão da Insônia: “Dorme, dorme, Babi-lônia/ quanto mais quietinha fica/ mais aumenta a insônia”.

“Constatei que não só eu, mas muitas pes-soas que trabalham com criatividade tem esse pro-blema de ter inspirações de madrugada, na hora que estamos tentando dormir”, explica. “Você acaba pensando: ‘Ah, amanhã vou me lembrar disso...’, mas a ideia se perde. Não que sejam as ideias mais incríveis do mundo, mas para mim é extremamente produtivo o momento em que a ci-dade está dormindo e tudo está mais quieto. Ima-ginei um cordão dos insones, tipo carnavalesco mesmo, cantando de pijama.”

Céu nasceu e mora em São Paulo, mas sua mú-sica tem exercido impacto musical noutros con-tinentes – nos EUA, por exemplo, Vagarosa já vendeu 110 mil cópias. Em disco, ela soa rígida e rigorosa, às vezes solene. No palco, solta os bichos e se apresenta quente, presente, contagiante.

Ronei Jorge é baiano (mora em Salvador) e lidera a banda de rock Os Ladrões de Bicicleta, que no ano passado lançou o segundo CD, Fras-cos Comprimidos Compressas, cuja terceira faixa se chama A Respeito do Sono. “Enquanto você fica deitada/ eu sigo pela casa sem dormir/ você é que sabe de tudo/ e faz uso de um sonho bom/ mas esse sonho bom/ insiste em me levar/ pra cama”, divaga.

“O que me motivou foi perceber que casais vi-

PAÇOCAPedro Alexandre Sanches

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InsônIA, namoradada música brasileira

Pedro Alexandre Sanches é jornalista.

vem em mundos diferentes por conta do sono. Enquanto um perambula pela casa totalmente in-sone, o outro dorme por conta da vida atribula-da e toma conta do sonho, da casa e da vida”, diz. “Isso parece muito com a situação que vivo. Durmo tarde, já tive insônia braba, e por conta da profissão, tem todo esse lance da instabilida-de de ser artista, tudo meio imprevisível.” Ronei produz baladas e rocks corpulentos, às vezes tris-tonhos, representantes de uma Bahia em que a obrigatoriedade da alegria, alegorizada à perfei-ção pela axé music, deixou de ser o único mun-do possível.

O tema da insônia não se restringe às no-vas gerações. Em seu Multishow ao Vivo (2009), Rita Lee apresentou a inédita... Insônia, de versos loquazes como “insônia/ minha namorada/ insô-nia/ de madrugada/ rolando na cama/ estou tão cansada/ mas ela me chama/ quarto escuro/ de olhos abertos/ acendo o abajur/ ela sorri/ e chega mais perto/ eu bocejo/ eu desejo Morfeu/ ela tem ciúme/ me olha e diz/ ‘ou ele ou eu’/ (...) viro de lado/ ela se encaixa/ deito de bruços/ ela me en-laça/ já passa das seis/ ela me abraça/ e me ama outra vez”.

O bichinho do sono não perturba apenas os compositores do presente. No curso de nossa his-tória, cantaram e/ou compuseram músicas bati-zadas Insônia artistas como Nelson Cavaquinho, Baden Powell, Gonzaguinha, Danilo Caymmi, Kleiton & Kledir, Zé Renato, Ritchie, DJ Dolo-res, Latino…

Seria mera especulação dizer que a música brasileira anda especialmente insone ou que esse mal aflige em particular os músicos na tensa São Paulo ou os rebentos da cena indepen-dente (“é tudo ficção, eu durmo que é uma bele-za”, surpreende Lulina). Não se quer aqui insinu-ar que há algum significado na soma de tantas (boas) canções de não ninar, mas sim que o brin-quedo de procurar músicas de sono pode ser um entre muitos modos divertidos de mergulhar na promissora música nova do Brasil. E, bem, con-fessar que, sim, o autor deste texto também so-fre de insônia.

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caros amigos maio 2010 12

Hamilton Octávio de Souza - Onde você nasceu? O que estudou? Fale sobre a sua trajetória.Ermínia Maricato - Eu nasci no interior do Es-tado de São Paulo, em uma cidade chamada San-ta Ernestina, mas vim muito cedo para São Paulo. Meu pai foi camponês, mas se tornou um peque-no empresário, tinha uma granja de aves. A famí-lia é três quartos italiana e um quarto portugue-sa. Nós tivemos que vir para São Paulo porque a minha mãe tinha uma doença, hoje eu sei que é psíquica, mas no interior nós não sabíamos bem o que era. Com 5 anos eu vim para São Paulo, estu-dei em escola pública, que era maravilhosa, morei no Brás e, enfim, sempre gostei muito de estudar, minha mãe não queria que eu estudasse, o meu pai me deu toda a força, acho que não tem tan-ta novidade aí. Foi um período em que era pos-sível um filho de europeu, mesmo que viesse do campo, era fácil ter ascensão social em São Pau-lo. Foi o que aconteceu com o meu pai, ele ame-alhou um certo patrimoniozinho, então não é a mesma condição que o filho de camponês bra-sileiro, que tem origem muitas vezes na heran-ça escrava, uma condição diferente. Bem, eu fiz química industrial no nível médio, comecei a fa-culdade de física na USP, depois é que eu passei para arquitetura; mas hoje eu acho que errei, es-tou muito apaixonada pela terra, por agricultu-ra, por agricultura orgânica. Atualmente perten-ço a uma associação que tem uma gleba de Mata Atlântica e nós estamos fazendo um pomar de frutas em extinção da Mata Atlântica, esse é o meu hobby atual. Então eu estou tão encantada, tão impressionada com a força e a exuberância da Mata Atlântica que fico pensando como nós con-seguimos destruir essa riqueza.

entrevista Ermínia maricato

Lúcia Rodrigues - Como surgiu essa ideia?A associação já existia. Eu cheguei em um

amigo e falei: acho que a gente devia comprar um pedaço de mata para deixar lá. E aí ele falou: mas eu já estou em um lugar que tem isso e tal. Aí eu fui, me encantei, entrei na diretoria. Temos uma médica homeopata como presidente, temos várias tribos ali, temos sete nascentes de água, então nós estamos trabalhando no tratamento e distribuição dessa água e agora nós passaremos a discutir o lixo, o esgoto.

Tatiana Merlino - Onde é?Fica a uma hora de São Paulo, em São Louren-

ço da Serra. Então é a minha paixão atual e eu fi-quei muito impressionada de como é que eu não fui para a agricultura, pois tem muito a ver com a questão ambiental. Eu comi uma fruta quando era criança e morava no interior que chamava pindaí-va, é uma fruta lindíssima, vermelha, parece uma fruta do conde, ela é de uma árvore muito alta e aí eu falei: Mas cadê a fruta? Não existe mais. Então eu fui pesquisar e consegui, depois de muito procu-rar, achar uma muda da pindaíva, hoje nós planta-mos quatro mudas lá no vale e aí tem outras frutas que eu nem sei o que são, comprei outras mudas, fui atrás, agora eu estou pesquisando isso. Lá tem

uns malucos que entram na mata, pegam semen-te, estão plantando, tem um pessoal interessante. Eu gosto mais de falar disso do que falar de cidade, meu Deus do céu. O que eu quero deixar de funda-mental em relação a questão urbana é que as ci-dades vão piorar.

Lúcia Rodrigues - Mais ainda?Muito, muito.

Lúcia Rodrigues - Por que, professora?Porque não tem nada sendo feito para contra-

riar o rumo.

Júlio Delmanto - As cidades que você diz não são só as grandes, né?

Não só as grandes, porque as cidades que mais crescem atualmente são as médias no Brasil, não são as metrópoles, as metrópoles deram uma re-cuada, desde a década de 80 as metrópoles estão crescendo menos e as cidades médias estão cres-cendo mais.

Tatiana Merlino - Nada está sendo feito nos âmbitos federal, estadual e municipal?

Não é só uma questão de governo. Primei-ro não é uma questão restrita a governo, é uma

Especulação da terra

Ermínia Maricato denuncia o poder das incorporadoras e construtoras pelo alto preço dos terrenos urbanos.

inviabiliza moradia popularParticiparam: Bárbara Mengardo, Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Julio Delmanto, Lucia Rodrigues, Otávio Nagoya, Tatiana Merlino. Fotos: Jesus Carlos.

a arquiteta Ermínia Maricato tem uma longa trajetória de reflexão teórica e enfrentamen-to dos problemas urbanos, como profissio-

nal e como militante do PT. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, coordenado-ra do programa de pós-graduação (1998-2002), foi também secretária de Habitação de São Paulo (1989-1992) e secretária-executiva do Ministério das Cida-des (2003-2005). Na entrevista a seguir ela faz uma análise profunda e reveladora da situação caótica das cidades brasileiras. Vale a pena ler.

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13maio 2010 caros amigos Novo sítio: www.carosamigos.com.br

questão do capitalismo periférico, eu quero fa-zer questão de falar isso porque muita gente fala: ah! falta vontade política! Eu vou dizer que tem problemas que são estruturais. Um deles: o mer-cado residencial, no capitalismo periférico, atin-ge uma pequena parte da população. Até 2004, quando começa uma mudança na política habi-tacional, da qual eu fiz parte, o mercado brasilei-ro produzia para 20% da população. Em São Luís (MA) é para 10% da população. Eu fico pensan-do, pela minha experiência, que São Paulo, por exemplo, chega a 40% da população, mas quan-do você vai para São Luís ou Belém (PA), o mer-cado não chega a 10% da população. O mercado, esse sim, segue a lei, que tem um investimento, às vezes tem um financiamento, ou às vezes até mesmo a empresa incorpora o teu financiamento, você faz um projeto que é aprovado na prefeitu-ra de acordo com a legislação de código de obras, legislação de parcelamento do solo, legislação de zoneamento, aí isso é lançado, tem compradores que também podem ter um financiamento. Isso é o que? No Canadá, na Europa, nos EUA isso atin-ge de 70 a 80% da população. No Canadá isso é muito claro: 30% da população precisa de sub-sídio para comprar moradia. Aqui no Brasil é o oposto: tem 70% da população. Varia de cidade, de região, se tem uma classe média maior, esse número é maior, se você tem uma classe média menor, como as cidades do Norte e Nordeste, esse número é menor. Então, vivemos em uma socie-dade em que uma parte da população se vira, ela não se integra ao mercado e não tem políti-ca pública para chegar nela. O financiamento, o investimento público habitacional ampliou mui-to a partir de 2004, é impressionante o aumen-to nos últimos anos. Mas na sociedade brasilei-ra a classe média não entra no mercado. O que quer dizer que a classe média não entra no mer-cado? O policial, o funcionário da USP, o profes-sor secundário mora em favela, isso é uma coisa comum. Então, o Brasil é um país típico de capi-talismo periférico, onde um trabalhador regular-mente empregado, com estabilidade no emprego, que é o caso de um funcionário público, não tem acesso à moradia no mercado.

Tatiana Merlino - Esse “se vira” a que você se referiu é equivalente ao déficit habitacional que há no Brasil?

É mais do que o déficit.

Tatiana Merlino - Qual é o déficit habitacional hoje do Brasil?

Olha, o déficit deve estar entre os 7 e 8 milhões, o déficit é sempre uma coisa que deve ser discutida, né? O que você considera déficit? Uma das questões que discutimos no ministério, por exemplo, é que o IBGE considera déficit a convivência de famílias e às vezes é uma decisão sua conviver com mais de uma família. Então, devo ou não considerar isso dé-ficit? O que eu quero dizer é o seguinte: “parte da população brasileira se vira” significa que ela arru-ma terra, eu tenho muita restrição para usar a pa-lavra invadindo, porque os movimentos sociais não gostam, digamos que ocupando ilegalmente, mas

esse ocupando ilegalmente é uma coisa muito vas-ta. E construindo as próprias casas, como o Chico de Oliveira mostrou em um artigo que ficou clássico, em 1972, que essa autoconstrução, essas ocupações ilegais não eram uma coisa espontânea ou decisão deles, aquilo era o resultado do rebaixamento da força de trabalho, quer dizer uma força de trabalho que não ganha para comprar uma casa, para pagar para alguém construir, mas não dentro da lei, não é dentro do mercado, não consegue comprar a terra. E a terra é um capítulo a parte. Então essa condi-ção de ilegalidade é geral no Brasil. Tem um muni-cípio perto de Belém, Ananindeua, ou outros mu-nicípios na periferia de Recife, Salvador, Fortaleza, onde 90% dos domicílios são ilegais. Quando você chega à região metropolitana de Fortaleza o pró-prio IBGE dá 33% da chamada sub-habitação. Nós temos alguns estudos, não temos dados fidedignos, mas isso já mostra um pouco o que é a realidade brasileira. Quanto por cento da população brasilei-ra mora em favela? Tem alguns trabalhos que mos-tram que há uma grande diferença de uma cidade para outra no Brasil, mas que a exceção que seria uma casa ilegal, construída completamente fora da lei em uma terra ocupada de forma completamente irregular, construída aos poucos, sem qualquer co-nhecimento de engenheiro ou arquiteto etc., é re-gra, não é mais exceção. Veja bem, o que era para ser exceção virou regra e o que era para ser regra virou exceção.

Tatiana Merlino - Essa é uma característica do capitalismo periférico?

É. Você vê isso no mundo inteirinho e va-ria um pouco em cada país. A Argentina, que já teve uma condição muito melhor socialmen-te na América Latina, agora está em uma situa-ção dramática. Na Argentina você tinha menos disso, algo em torno de 20 ou 30 anos atrás, ela era mais formal, a cidade na Argentina. Fui con-vidada para ir a um encontro sobre moradores de rua na Argentina, eles ficaram encantados com a nossa política de morador de rua e aí eu falei: Bom, mas vocês não tinham porque vocês não tinham morador de rua e no Brasil tem há mui-to tempo. Se você vai para o Chile você tem uma formalidade maior na cidade, tem uma classe mé-dia mais forte. Agora o resto, Bolívia, Venezuela, que eu andei pelos morros em volta de Caracas, o próprio México, você tem uma situação que é pior do que algumas metrópoles brasileiras, por-que o Brasil tem algumas coisas que são mais ri-cas e algumas coisas que são mais pobres.

Hamilton Octávio de Souza - Mas esse processo não está sendo revertido?

Ao contrário, as cidades do mundo estão se empobrecendo. Se você pegar a África é impres-sionante o que está acontecendo.

Hamilton Octávio de Souza - E São Paulo? O que acontece em São Paulo?

São Paulo está assim: o município concentra, se não me engano, 22% da população que ganha aci-ma de 20 salários mínimos do Brasil. Então você tem uma grande concentração de renda em São

Paulo, Ribeirão Preto, Santos, e Brasília – no plano piloto. Então você tem uma condição de expulsão da população desses municípios mais ricos.

Hamilton Octávio de Souza - A favelização aqui tem sido crescente, não tem? Desde a década de 50?

Mas muito mais nas periferias. Se eu pegar Cajamar, Franco da Rocha, Itapecerica da Serra, Embu, Embu-Guaçu, você tem uma periferização com o aumento da violência, com uma queda ge-ral de índices e a gente trabalha com média, o que é complicado.

Lúcia Rodrigues - A concentração do capital é o que está levando ao empobrecimento das cidades, é isso?

Não é só. Você tem assim uma tradição de de-sigualdade histórica, você tem nesses países essa questão estrutural da informalidade tanto no tra-balho quanto na ocupação do solo, então nós te-mos ilhas que são cidades do primeiro mundo, isso é tudo inadequado. Por isso que eu acho en-graçado dizer que a questão é técnica. Na verdade nós copiamos a lei de zoneamento, toda a legisla-ção do primeiro mundo e aí a gente garante uma ilha onde o resto não cabe. Para inserir a popula-ção pobre nessa cidade eu preciso transformar o conjunto, isso foi o que discutimos no Fórum Ur-bano Mundial e no Fórum Social Urbano.

Júlio Delmanto - Existe alguma diferença entre esses países que são chamados em desenvolvimento em relação ao resto da periferia?

Sim. O Brasil é diferente. É uma economia for-te. É um player internacional. Ele passou de “nada dava certo” para “país do futuro” ou “do presen-te”. Mas a desigualdade é uma coisa escandalosa no Brasil. A África do Sul me impactou porque ela saiu do apartheid, em que a segregação, diferente-mente da nossa, era jurídica. Então você não po-dia ir para a cidade se você fosse negro, a menos que você tivesse um passe. Vencer essa segregação quando o Mandela ganhou parecia fácil. Mas exis-te um problema que está atingindo todo o terceiro mundo que é a questão da terra. A questão da ter-ra não foi superada com a luta contra o apartheid. Aliás, foi uma coisa que me impressionou muito, que eu ouvi de vários líderes: se a terra tivesse en-trado em negociação, a paz não acontecia.

Hamilton Octavio de Souza - O que é a questão da terra? É a terra urbana?

É a terra urbana e rural. A terra está na essên-cia da alma brasileira. A desigualdade no Bra-sil passa essencialmente pela questão fundiária. Campo e cidade. Só terminando a história dessa segregação, não tem nenhum mistério. Uma par-te da população constrói as casas, constrói fora da lei e não tem lugar nas cidades. Às vezes os planos diretores não disseram onde os jovens iam morar, porque todo plano diretor é seguido de uma lei de zoneamento e a lei de zoneamento é lei para o mercado, e a nossa população tá fora do mercado. Então os urbanistas estão trabalhan-

inviabiliza moradia popular

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do em um espaço de ficção, com realidade de fic-ção. Aliás, essa ausência dos engenheiros nem se fala. Eu quero falar depois do estrago que a en-genharia fez em São Paulo.

Lúcia Rodrigues - Essas leis que você citou funcionam?

Nada. O estatuto da cidade é um sucesso no mundo. Do Brasil para o mundo. Eu sou convidada a consultoria internacional o tempo todo por conta do estatuto da cidade. Eu fui a poucos lugares, mas para onde eu fui eu falei que não está sendo apli-cado no Brasil. Não está sendo aplicado.

Tatiana Merlino - Existe uma política habitacional para resolver essa questão do controle do solo?

Lei nós temos. O estatuto da cidade é ótimo. Constituição Federal nós temos. Só que nós não aplicamos a função social da propriedade. Só ter-minando aquilo. A nossa lógica é que a mão de obra barata de que o Celso Furtado falava muito, que garante a exportação de riqueza, que garan-te uma elite conspícua, que é patrimonialista, que se agarrou a este Estado e fez dele o que fez, tem a lógica de que nós temos que ter uma mão de obra absolutamente rebaixada no seu preço para poder segurar essa relação.

Lúcia Rodrigues - Mas isso não é anticapitalista? Por que se você tem gente ganhando mais injeta força e fluxo no mercado.

É engraçado isso. Porque o Ford descobriu que os operários precisavam ganhar melhor para que o capitalismo fosse melhor em 1905, início do sé-culo 20. Não é essa a lógica no Brasil. Inclusive uma das coisas que nós nos perguntamos é se o capitalismo brasileiro, principalmente a burgue-sia nacional, porque as transnacionais não estão nem aí se vão esgotar as reservas, se as cidades vão virar um negócio inviável, pretende se tor-nar viável. O capitalismo no Brasil não está preo-cupado em viabilizar. As nossas cidades estão fi-cando inviáveis. O automóvel está inviabilizando não só São Paulo, mas todas as cidades brasilei-ras. Brasília está também com um problema se-ríssimo de trânsito. Então você tem um problema que também é estrutural. A indústria automobi-lística é responsável por 20% do PIB do mundo, se eu colocar a exploração de petróleo, a distri-buição de petróleo, toda a indústria da borracha, das autopeças. E todas as obras nas cidades são uma questão de infraestrutura para o automóvel andar. Quebrar esse modelo é o que seria neces-sário para incorporar os pobres.Lúcia Rodrigues - E como se quebra esse modelo?

Vamos primeiro falar da terra. Porque esse “como se quebra esse modelo” é uma reflexão mui-to difícil para eu fazer depois que eu saí do gover-no federal. A terra no Brasil durante vários séculos, a propriedade da terra, esteve ligada à detenção de poder social, político e econômico. É interessante perceber em uma cidade como São Paulo como é que a área de proteção dos mananciais, que é uma área protegida por lei federal, estadual e municipal

e planos de tudo quanto é tipo, está sendo ocupa-da. O poder de polícia sobre o uso do solo tem cin-co organismos: a Sabesp, a Cetesb, Eletropaulo, o poder municipal sobre o parcelamento do solo, e a Polícia Florestal. Todo mundo é responsável pela fiscalização. Então não falta lei, não falta plano. É bem importante deixar isso claro. Estou cansa-da de ouvir gente dizendo que falta planejamen-to, falta plano diretor. Não falta nada. E não falta lei no papel. O que falta é que essa população tem que morar em algum lugar. E ela vai morar onde? Então pensa na população que chega na cidade de São Paulo. O centro está se esvaziando. Isso pare-ce incrível, aliás, em todas as cidades brasileiras grandes. Então nós temos em área de proteção dos mananciais, já vi secretário de meio ambiente fa-lar em um milhão e quinhentas mil pessoas. E já ouvi gente da Empresa Metropolitana de Planeja-mento falar em dois milhões de pessoas. É uma li-geira margem de dúvida. Isso mostra que nós não sabemos quantas pessoas moram na área de pro-teção dos mananciais.

Hamilton Octavio de Souza – Qual a consequência disso para o abastecimento de São Paulo?

Nós estamos buscando água na bacia do rio Piracicaba. Falam em buscar água serra abaixo. Estão falando em buscar água não sei mais onde no vale do Paraíba, e nós temos duas represas em que a água vem por gravidade, mas a água está crescentemente contaminada, e eu estou me re-ferindo à contaminação recém-descoberta de que mesmo depois do tratamento existem hormônios e antidepressivos na água. Mas isso é outra coisa, são pesquisas mais recentes. Eu tenho então uma metrópole na área de proteção dos mananciais. E se os governos decidissem cumprir a lei? Não en-tra mais ninguém ou tem que sair? O que acon-teceria? Os conflitos do MST iam ser refresco. Eu já tive aluno que afirmou que haverá guerra civil. Eu concordo. Se voce de repente pega todo mun-do que ocupou os morros do Rio de Janeiro, que estão desmoronando, ou dos morros de São Pau-lo, que desmoronaram meses atrás, e proíbe de ocupar, é guerra. Mas aí alguém fala: tem que ter uma política habitacional. Tem. Metade da popu-lação do Rio de Janeiro mora em domicílios ile-gais. Como é que você faz uma política habita-cional para incorporar metade da população sem uma completa revolução com a terra? Sem uma completa mudança na característica do mercado imobiliário? Sem uma completa mudança no di-reito de propriedade? Sem uma completa mudan-ça da forma de ação do Estado? De que jeito?

Tatiana Merlino - Mas como é muito pouco provável que aconteça, para onde a gente vai caminhar?

Nós estamos caminhando para o caos.

Tatiana Merlino - O que aconteceu no Rio de Janeiro é a prova disso?

É. O que aconteceu em São Paulo, em todas as cidades, é a maior prova disso. Se você somar a falta de controle de uso e ocupação do solo,

que não existe a consciência de que é necessá-rio controlar, mais a falta de planejamento com a questão da macrodrenagem... E ainda com mais incentivo para a matriz automobilística, nós va-mos piorar.

Lúcia Rodrigues - Mas como romper com esse modelo?

Eu acho sinceramente que não vai ser sim-ples. A questão da terra sempre foi muito clara no campo, mas ela não foi muito clara na cidade. Por quê? Porque ninguém se dava conta de que a regra era exceção e a exceção era regra.

Lúcia Rodrigues – Mas qual é o problema da terra?

Um aluno meu me mostrou a funcionalidade da confusão registrária no Brasil. Ele mostrou que nos parques estaduais paulistas existiam sete andares de registro de propriedade no mesmo pedaço de terra. Por quê? Porque a história do registro de proprie-dades no Brasil é uma história de fraudes. Eu desa-gradei muita gente, mas falo isso o tempo todo. A história da propriedade privada no Brasil é uma his-tória de fraudes sistemáticas. Não é que você tenha uma fraude ou outra. É regra de novo. O Ariovaldo Umbelino mostrou em uma de suas palestras (ele é um geógrafo competente, se aposentou da USP) um anúncio de venda de uma propriedade de 40 mil hectares, no qual a grande vantagem que oferecia era uma escritura de 4 mil hectares. Porque a cerca anda. Então ter uma escritura já é uma maravilha. E a cerca anda no Brasil. Então o que me impres-sionou na tese do Joaquim de Brito, esse meu alu-no, é que o governo não tem nenhum interesse em cancelar registros que se revelam falsos.

Tatiana Merlino - E no caso da Cutrale?Esse é outro exemplo que eu adoro dar. Quer

dizer, para a mídia brasileira foi muito mais im-portante a derrubada de meia dúzia de pés de la-ranja do que o patrimônio público ser apropria-do privadamente. Ora, é regra. O Pontal todo. E a polícia e o Judiciário têm a coragem de atacar o MST, que é meia dúzia de gente pobre que quer o mínimo, que é o acesso à terra. Vai fazer a dis-criminatória das terras públicas que você vai ver quanto esse país vai ganhar de terra!

Bárbara Mengardo - Existe uma estimativa de quantos hectares de terras griladas são ocupadas por grandes empresas?

Na verdade os documentos são produzidos. Foi isso que eu verifiquei com a tese do Joaquim de Brito, que, aliás, eu pedi que ele produzisse um texto que fosse mais palatável para a linguagem de um livro e ele morreu na madrugada que ele escreveu o texto. Aprendi muito com ele porque ele tinha documentos de todas as terras e dizia: “Olha, ainda tem registros novos aparecendo”. Ele mostrou que tinha propriedade no litoral que su-bia a serra. E aí quando eu vejo a mídia atacar o MST eu fico absolutamente impressionada. Em um país onde a história da propriedade é de frau-de. Eu resolvi juntar livro sobre isso. Aí eu come-cei a ver que nós temos uma produção gigantes-

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ca sobre a fraude na propriedade da terra, sobre as disputas de terra, sobre morte.

Lúcia Rodrigues - Quem está por trás disso? São os cartórios? É o governo?

Tudo. É a sociedade brasileira. É poder vincu-lado à propriedade.

Hamilton Octavio de Souza - De quando é o estatuto das cidades?

2001.

Hamilton Octavio de Souza - O estatuto da terra é de 1965 e não é respeitado até hoje...

Não é respeitado. É impressionante como o Ju-diciário não conhece a legislação. Ou não quer conhecer.

Júlio Delmanto - Você diz que lei nós temos, que Constituição nós temos, que não é uma questão de governo. Você acha que os governos e os partidos estão nessa lógica de disputar por esse caminho?

Acho que grande parte dos movimentos está equivocada de se limitar ao espaço institucional.

Lúcia Rodrigues - E o que precisa ser feito para romper com esse modelo?

Bom, eu vou falar para você o que eu espe-rava. Tem a ver com o rompimento do mode-lo. O Paulo Arantes diz que a esquerda brasileira, quando lutou e resistiu contra a ditadura, se colou na questão da democracia, que era uma questão nova na esquerda brasileira. É interessante isso. Quer dizer, “nós queremos democratizar a socie-dade”. E por que isso cabia? Tem gente que diz que não, vocês erraram. Ah! As pessoas estavam sendo mortas. Você não tinha liberdade de falar. Essa reunião aqui era impossível. Publicar essa minha entrevista. Se a gente estivesse aqui nes-sa mesa conversando, estaria todo mundo com medo. Claro que a gente lutou pela abertura de-mocrática. Essa luta pela abertura democrática, ela levou muito naturalmente a conquistas insti-tucionais. Então, nós tomamos um rumo, que era o rumo da democratização. Eu vou confessar que eu tinha a convicção de que o Brasil não ia conse-guir democratizar. E que nós íamos explodir. Ex-plodir no bom sentido. Explodir os sentidos e as amarras. Ao contrário do que aconteceu. Eu acho que muitos movimentos ficaram banguelas. Quer dizer, sem capacidade de transformação, de ofen-sividade. Depois tem muito dessa coisa de certas lideranças terem os seus movimentos atendidos.

Tatiana Merlino - Aí eles param de lutar?Não param. Mas é muito interessante você ve-

rificar que muitas das demandas são demandas de governo. O MST em momento algum eu colocaria nessa linha. Por exemplo, você tem muita lideran-ça que está em gabinete de governador, deputado. Ou muita liderança que está participando de pre-feituras mais democráticas, ou então não demo-cráticas, é puro clientelismo. Quando me pergun-tam qual é a política urbana vigente no Brasil eu respondo: é a política do favor, do clientelismo.

Como é possível planejar em uma cidade se o ve-reador é dono do bairro? E aí ele quer ambulância, ele quer a ponte em cima do córrego. Não é que não seja legítimo um representante do povo dizer “o povo está precisando de tal coisa lá no bairro”. Mas não tem planejamento que sobreviva nessa condição. A política do favor está mais viva do que nunca. A força das empreiteiras nas cidades, eu estou muito impressionada. A força do capital imobiliário e a política do favor, essa coisa atrasa-da, elas estão mais vivas do que nunca.

Hamilton Octavio de Souza - Qual o jogo das empreiteiras, das imobiliárias e dos bancos dentro dessa especulação na cidade?

Os bancos eu ainda não vejo tão clara a li-gação deles com o espaço urbano. Inclusive tem muito pesquisador brasileiro que leu sobre a bo-lha americana e faz uma transferência. Não tem nada a ver o que está acontecendo no Brasil com a bolha americana. Nada a ver. Para você ter uma ideia, no Brasil o financiamento imobiliário é 3% do PIB e na Europa e nos EUA passou de 50% an-tes da crise. E o imóvel foi lastro de criação para a loucura do capital fictício, aquela coisa que no Brasil, como um bom mercado patrimonialista, não nos atingiu. Enquanto tudo isso acontecia nos EUA, o Brasil produzia para uma minoria da população produto de luxo. Apartamento princi-palmente amplo, com várias vagas na garagem. Então você tem uma especulação com a terra que é muito forte. Ela não fez parte essencial do pro-cesso capitalista, se você pegar a produção de moradias, mas era necessário produzir controle sobre a renda da terra nesses países. E aqui, ao contrário, nós temos lei, os proprietários de terra sempre foram muito fortes. Então você tem um setor que é dos produtores imobiliários, você tem um setor que é das grandes empreiteiras, então uma coisa é construir edificação, outra coisa é

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construir infraestrutura. Seja infraestrutura liga-da à produção, usinas, aeroportos, estradas, via-dutos, ferrovias. As nossas empresas construtoras foram iniciadas com reserva de mercado no perí-odo do Juscelino. Elas são muito fortes.

Tatiana Merlino – Como você avalia o programa “Minha Casa, Minha Vida”? Atende suficientemente as necessidades da população que ganha até três salários mínimos?

Olha, no Brasil nunca atendeu, e eu acho mui-to difícil que venha atender de forma significati-va. Foi lançado o PAC 2, que eu acho que a gente tem que prestar atenção, com uma carga de sub-sídio que até agora não existia. Já era impressio-nante para a história do Brasil o “Minha Casa, Minha Vida”, perto de 17 milhões de subsídios. Porque o BNH não tinha subsídio. Na verdade, houve subsídio para a classe média por que hou-ve uma maracutaia. Mas do ponto de vista da ló-gica do programa, ele beneficiou a classe média, que era quem podia pagar e a lógica do programa era o retorno do investimento, porque era FGTS, o dinheiro tinha que ser remunerado. Nós passa-mos praticamente 25 anos sem investimento na área de habitação e saneamento. Qual foi o efei-to disso? Foi quebrar o aparelho de Estado. Você fala: Antes aplicava na baixa renda?. Não, não aplicava na baixa renda. Eram aqueles conjuntos no fim do mundo, mas existia a migalha. E a mi-galha de alguma forma alimenta. A migalha do banquete, para usar o bolo do Delfim Netto.

Tatiana Merlino – Mas como política habitacional, qual a sua avaliação?

O “Minha Casa, Minha Vida” foi desenhado pelo governo federal e por um grupo de 11 em-presários. Isso me chocou.

Lúcia Rodrigues - Onze empresários? Quem são esses empresários?

São os 11 principais empresários da área da construção civil de promoção imobiliária.

Lúcia Rodrigues - Camargo Corrêa...Não sei te dizer quem são os onze, eu sei te di-

zer alguns.

Hamilton Octavio de Souza - Mas o que quer dizer isso concretamente?

O que quer dizer é uma tentativa de você pro-duzir moradia por meio do mercado, porque com o Estado está difícil. E está difícil mesmo. Porque as prefeituras se queixam porque elas não têm acesso à terra. E a terra, pelo plano diretor, pode-ria ser gravada para a função social. Mas como ninguém faz isso...

Lúcia Rodrigues - Quando você desloca o eixo da habitação para o mercado, o que acontece?

Vamos entender o que aconteceu com o “Mi-nha Casa, Minha Vida”.

Hamilton Octavio de Souza - Vamos entender o mercado, o que significa isso?

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Sim, vamos primeiro entender. Você quer construir milhares de moradias. Voce está perce-bendo que as prefeituras estão lentas e sem capa-cidade de botar obra na rua. O que você faz?

Hamilton Octavio de Souza - Vou buscar a empresa privada para fazer a parceria.

É. O “Minha Casa, Minha Vida” é isso. O que o “Minha Casa, Minha Vida resolve?

Hamilton Octavio de Souza - Essa casa vai custar muito mais...

Aliás, o preço já explodiu. Mas eu vou explicar o porquê. Você tem um milhão de moradias para serem financiadas pelo “Minha casa, Minha vida”: 400 mil, o governo falou para os empresários “É de zero a três salários”. Nós não abrimos mão. Depois você tem 200 mil que vão de seis a dez salários. Duzentos mil não é pouco para o mercado brasi-leiro. Ele já está satisfeito com essas de seis a dez. Dentro dessas de seis a dez você tem casa de 500 mil reais, que é uma coisa que eu fiquei chocada. Para que um pacote que dá alguns subsídios se os subsídios dos 17 milhões do governo não vão para esses de seis a dez? Mas aí tem facilidade de escri-tura, subsídio nos juros, na securitização.

Tatiana Merlino - Essa faixa da população precisa disso?

Pois é. É uma ótima questão. Por que no Bra-sil um cara que vai comprar um apartamento de 900 mil reais precisa estar dentro de um progra-ma do governo?

Hamilton Octavio de Souza – Sim, por quê?Esse é o mercado que eu quis apresentar a vo-

cês. É o mercado patrimonialista. O mercado pa-trimonialista quer subsídio para a classe média. Porque ele não quer diminuir o preço.

Hamilton Octavio de Souza – As empresas que se associaram ao governo para fazer o “Minha Casa, Minha Vida” vão ganhar dinheiro nas faixas mais altas de renda?

Elas não vão ganhar dinheiro nessa faixa de zero a três salários mínimos. E sim nas outras.

Tatiana Merlino - Aí é a compensação?É. É assim: de zero a três salários tem as ope-

rações estruturadas. É público / público. E aí pode entrar uma construtora para construir. Mas são as prefeituras que estão se mexendo para fazer para a baixa renda. Vou voltar um pouquinho só, fa-lar das empresas brasileiras de incorporação, que é outro capital. Então você tem o capital de cons-trução pesada e infraestrutura, o capital de edifica-ção e o capital de incorporação. Edificação é quem constrói e incorporação é uma espécie de um capi-tal comercial. Elas abriram o capital na bolsa, não sei se vocês se lembram, em 2007. Foram 17 em-presas brasileiras que abriram o capital na bolsa. Dessas, poucas se mantiveram em pé. Elas pega-ram os recursos captados na bolsa e compraram terra. Isso foi interessante. Elas fizeram um estoque de terras. Então o “Minha Casa, Minha Vida”, não vou dizer que era tudo o que elas queriam, mas era

alguma coisa interessante. Eu estou com um esto-que de terra, estou precisando de um financiamen-to, e o que é que o governo federal fez? Ele fez um pacote. E você tem virtudes no pacote, porque ele inclusive facilita o acesso à terra por parte das pre-feituras. Por terras que estão abandonadas, e fica aquela coisa perene para você tomar posse. Porque no Brasil enquanto você tem fraude de um lado, de outro é difícil o poder público chegar em uma terra e dizer “tá bom, aqui nós vamos usar para fins so-ciais”. Qual é o nó desse negócio? Por que o preço da terra explodiu? Faltava dinheiro. Puseram di-nheiro. Por que eu não fiz a reforma fundiária? Eu não apliquei o estatuto das cidades.

Hamilton Octavio de Souza - Quer dizer, no jogo do mercado essas terras acabam com o preço lá em cima.

E as grandes empresas compraram terra onde? Tem uma empresa que está aqui em Caieiras com um projeto para 200 mil pessoas. Vai mais que do-brar a população de Caieiras. Eu vi alguns projetos na Caixa Econômica Federal. É de arrepiar o cabelo. Quer dizer, São Paulo vai explodir de uma forma...

Hamilton Octavio de Souza – O poder público tem que colocar a infraestrutura, não é?

Eu fui discutir com a Caixa, que eles me pedi-ram para dar uma ajuda. Eu disse a eles o seguin-te, que pela Constituição Federal a responsabili-dade pela aprovação da localização de um grande empreendimento é do município, não é de vocês. Agora não vai ter prefeito que queira me dizer “aqui você não vai construir isso porque eu não tenho assegurada a água, a distribuição de água para uma população desse tamanho”. Ou então: “Eu não tenho escola aí”, “Eu não tenho posto de saúde aí”. “Eu não tenho transporte aí”. A lei fala que os empreendimentos têm que estar dentro do tecido urbano. Mas é obvio que ninguém vai co-

locar uma gleba dentro de São Paulo, não é? En-tão o que nós estamos vendo, agora sim, é a con-sequência disso. Nós vamos ter uma explosão na expansão da cidade. E nós já tivemos uma explo-são do preço da terra.

Otavio Nagoya - Ermínia, depois da tua experiência dentro do governo federal, você ainda acredita no processo eleitoral para a transformação?

Não acredito.

Hamilton Octavio de Souza - Não acredita em quê?

Não acredito na transformação pela via elei-toral. Não acredito. Eu acho que eu não estou di-zendo que não há o que fazer. Eu sempre vou achar o que fazer. Na ditadura eu vou achar o que fazer. A gente ia e trabalhava com os moradores na periferia. Nós sempre vamos ter o que fazer. Eu costumo dizer que nós estamos em um debate político e urbano. Nós batemos no teto. Nós ba-temos no teto da produção acadêmica. Nós ba-temos no teto dos movimentos sociais urbanos Nós batemos no teto das estruturas democráti-cas. Acho que nós precisamos reinventar a luta. Agora a reinvenção dessa luta tem que levar em consideração a luta anticapitalista. Não é possí-vel você achar que nós vamos mudar governo e isso está resolvido.

Lúcia Rodrigues - Como se rompe esse modelo capitalista?

Ah, querida, tem muita gente muito mais competente do que eu.

Otavio Nagoya - E a perspectiva das eleições de 2010? Como é que você está vendo?

Olha, eu hoje estou menos interessada em eleições do que algum tempo atrás. Está claro. Eu ajudei a fundar o PT, trabalhei feito louca com políticas públicas etc. Os partidos hoje estão extremamente pragmáticos e voltados para elei-ções. É impressionante. Mesmo os mais radicais estão apostando que tem que ampliar o espaço eleitoral. Todo o trabalho de base, de massa que a gente fazia foi abandonado. Eu acho que o nosso grande problema agora é o seguinte: onde está a nossa unidade agora que nós não temos um par-tido que nos une? Eu estou insistindo muito nis-so com os movimentos sociais que estão concor-dando muito com o que eu concordo: onde está a ponte campo-cidade?

Lúcia Rodrigues - Você está fora do PT?Estou.

Lúcia Rodrigues - Desfiliada legalmente?Não. Simplesmente não fui mais.

Hamilton Octavio de Souza - O que aconteceu com muita gente não é?

É. Tem muito prefeito que eu ainda apoio, aju-do, mas é muito evidente que a coisa do pragma-tismo e da negociação... eu acho que nós fecha-mos uma etapa.

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Ana Miranda

Livros não deixam de ser cartas que escrevemos e saem à deriva, como um solitário lança ao mar uma gar-rafa contendo sua mensagem. Não é endereçada, leva apenas o nome do remetente, mas também sua alma. Nosso bibliófilo querido, José Mindlin, reuniu uma pre-ciosa coleção epistolar. Ele adorava cartas, escrevia-as e estimulava autores para que as escrevessem. Cartas es-critas em papel não são efêmeras como as que hoje cos-tumamos enviar e logo caem no esquecimento.

Recebi de Irene e Mary Lou Paris um livro que elas organizaram e editaram: Cartas da biblioteca Guita e José Mindlin. Vão de 1647 a 1996, desde dom João IV, majestosamente assinada Rey, até a psiquiatra Nise da Silveira, que enviou a Mindlin um postal com gato em natureza morta, por sua “vocação de gato de livraria”. Material para dias e dias de exame e deleite. Cada car-ta revela algo do seu autor, seja pela letra, pela esco-lha e arrumação das palavras, pelo tom que as sublinha ou os sentimentos que guardam esses papéis escritos quase sempre num gesto de entrega, quem sabe, in-voluntária. O tempo vai passando, os manuscritos se transformam em datilografias, a caligrafia se desvane-ce, as palavras e o modo de uso vão mudando.

Cada uma das 55 cartas daria um tratado, sob uma chave de personalidade ou história: a princesa Carlota Joaquina surpreende-nos com uma caligrafia nada turbulenta, e até carinhosa, em car-ta à filha, mas não deixa de mencionar conspirações; Dom Pedro I ordena secamente, Já!, e Pedro II escre-ve sob mágoas, abrasileirado; Euclides da Cunha, que assinava o nome com y, comenta seus “embrulhos” em linguagem pessoal; Lima Barreto revela sua se-vera inquietação, candidatando-se à Academia, para logo retirar-se da disputa, sem dar as razões; Rubem Braga envia um cartãozinho como pequenina crôni-ca; Adélia Prado, um bilhete singelo, com sua mão divina; Drummond, no costumeiro recato, recusa ho-menagens; Manoel de Barros encanta com uma le-tra cada vez menor, “que vai virando formiguinha”... e um pequeno relato meu, derramado em afetos. Cada carta vem acompanhada de pequena biografia do au-tor e do destinatário, assim como anotações que in-serem a missiva em seu contexto. Como dizia Min-dlin, escrevamos cartas!

Ana Miranda é escritora. Ilus

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ão: H

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Cartas de Mindlin

Todos os dias a grande imprensa faz apologia ao agronegócio. Seriam eles que abas-tecem nossa população de alimentos, salvam a balança comercial, dão emprego aos pobres do campo e até sustentam a economia brasileira nas costas. Quanta mentira junta!

Os grandes proprietários de terra são tam-bém capitalistas na cidade, e muitos deles têm ações e vínculos com as empresas da mídia. A associação brasileira de agronegócio tem ape-nas 50 sócios, transnacionais, grandes coope-rativas capitalistas e, pasmem, também a Rede Globo e o grupo O Estado de S. Paulo!

Mas, infelizmente, a realidade do agro-negócio é outra.

O agronegócio se baseia na produção em grande escala, em lavouras de monocultivo – de uma só planta. Usam muita máquina e, portan-to, desempregam, além de muito veneno, para matar todos os outros seres vivos que existam naquele espaço, sejam vegetais ou animais. So-mente sobrevive o produto que eles plantam.

Cerca de 80% das terras utilizadas pelo agronegócio se destinam a apenas quatro pro-dutos: soja, milho, cana e pecuária bovina. E grande parte dessa produção vai para expor-tação. No entanto, quem controla as exporta-ções são transnacionais. Por exemplo, o Brasil é o maior exportador mundial de soja. Expor-tamos 40 milhões de toneladas em grãos, ainda como matéria-prima. E quem ganha com essas exportações? Cinco transnacionais: Bunge, Car-gill, ADM, Dreyfuss, Monsanto.

O Brasil se transformou no maior consumidor mundial de venenos agrícolas. São 720 milhões de litros de venenos. Matam os demais seres vi-vos, afetam a fertilidade do solo, contaminam as águas do lençol freático e ficam resíduos nos alimentos que você consome.

E quem produz? Bayer, Basf, Syngen-ta, Monsanto, Shell Química. Nenhuma empresa brasileira. Pior, a Anvisa já confiscou e incine-rou milhares de litros adulterados pelas empre-sas Bayer, Basf e Syngenta. Uma delas chegou a adicionar um perfume para deixar o veneno mais aceitável.

João Pedro Stedile

João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

O agronegócio só produz com veneno

Já foram registrados pelas universidades ca-sos de chuva com veneno agrícola, em cidades do Mato Grosso. Na região de Ribeirão Preto (SP), a água potável já aparece com incidência dos venenos da cana.

Dos 17 milhões de trabalhadores da agricultura brasileira, apenas 1,6 milhão estão no agronegócio; os demais, na agricultura familiar.

Todos os anos, os bancos públicos disponibi-lizam 90 bilhões de reais, da poupança nacio-nal, para que o agronegócio plante. Para a agri-cultura familiar são menos de 8 bilhões. Pior, o Tesouro Nacional, o dinheiro de nossos impos-tos, precisa repor aos bancos a diferença entre o juro pago pelos fazendeiros e o juro de mercado. E isso custa por ano um bilhão de reais. Muito mais do que os recursos para reforma agrária.

A Polícia Federal tem encontrado trabalho escravo, em média em uma fazenda por mês. Mas dorme na Câmara um projeto que de-termina a desapropriação das fazendas com tra-balho escravo. Os parlamentares ruralistas não aceitam.

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Nunca fui entrevistado pela Hebe, mas, ao entrevistar gente bonita e decente, ella ja fallou mal do meu livro, o oitentista “Ma-nual do podolatra amador”, por exaltar o pé masculino e não o delicado pezinho duma actriz de telenovella. Dos entrevistadores alludidos neste soneto, só gravei com Abu-jamra no “Provocações” e com Ronnie Von no “Todo seu”, este quando me convidou, juncto com Cacá Rosset, para fallarmos dos agitos de 1968, anno em que a nossa gera-ção estudantil era a “esquerda festiva”, di-vidida entre applaudir Caetano ou Vandré, epocha em que o Zé Dirceu ainda tinha ca-bellinho estylo Beatle e eu nem hippie era. Si não estive nos programmas mais bada-lados, em compensação gravei com Fer-réz, Clemente, Pereio, Lobão, Marcello Tas, Marcello Rubens Paiva e outros descon-trahidos. Agora, mesmo que me chamem, não dou mais entrevista, deixo para os que-ridinhos das companhias. Fallemos franco: poeta não apita nada. Muito menos um ve-

lho punk cego. Nada mais tenho a declarar nas telinhas e nos microphones. Quem tem que se explicar, em publico e ao povo, são os politicos. E com elles parece que os entre-vistadores pegam leve. O Boris, por exem-plo, foi inevitavelmente duro com o Sergio Naya na epocha em que cahiu aquelle pre-dio no Rio, mas, com Temer, Maluf, FHC e outros caciques, sempre alliviava nas ques-tões mais melindrosas. Tudo para fazer esse recente papellão com os lixeiros! Que ade-anta, depois, pedir desculpas pela “gaffe”? Acho que todos esses anchoras e apresen-tadores teem mais responsabilidade do que simplesmente “conversar” com as auctori-dades. Deviam, isso sim, pedir desculpas por não jogarem na cara de pau dessas authen-ticas celebridades tudo de sujo que ellas fa-zem ou toleram, muito mais sujo, aliaz, que meu manualzinho de podolatria, que tanto indignou a Hebe...

porca miséria!Glauco Mattoso

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

Eduardo Matarazzo Suplicy

Ilus

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Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

Você ja não esteve no sofáda Hebe? Ou cara a cara co’a Gabi?Pensando bem, eu acho que ja vivocê com o Abujamra, dando um pla...

Ah, nunca foi no Jô? Torço que va!Mas, caso for no Ronnie Von, aquip’ra nós, me avise, tá? Você sorritão bem, que animaria a todos la...

Na Sylvia? Bem... Eu acho que seriaperder tempo: a si mesma ella responde.Rattinho? Não! É muita gritaria!

Caralho! É mesmo! Agora eu ja sei ondevocê pode fallar de putaria:do Gordo nenhum sadico se esconde...

TRELA NA TELA [soneto 3123]

Em 30 de junho, 1º. e 2 de julho, acontece-rá na Faculdade de Economia, Administração e Conta-bilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), o XIII Congresso Internacional da BIEN, Basic Income Earth Network, Rede Mundial da Renda Básica. O primeiro dia será dedicado ao Brasil. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fará a palestra de abertura do dia internacional na manhã de 1º. de julho. Os coordenadores brasileiros do congresso, professores Lena Lavinas e Fábio Walten-berg, a coordenadora acadêmica professora Célia Lessa Kerstnetzky e a direção executiva da BIEN ficaram feli-zes com o grande interesse despertado.

Até 24 de abril, mais de 150 trabalhos foram subme-tidos por pesquisadores de mais de 30 países dos cinco continentes sobre os seguintes tópicos: A renda básica e a cultura; a RB, democracia e justiça; RB e comunidades informais, migrantes, favelas, quilombos, vilas rurais e in-dígenas; RB e discussões contemporâneas de desenvol-vimento; RB e a crise econômica global; RB e bem-es-tar social; políticas familiares, pensões, serviços sociais e a transição de programas condicionados para programas universais; RB e o trabalho, temas éticos e situações no mercado formal e no informal; RB e enfoques compara-tivos: garantia de emprego, capital básico, o crédito fis-cal por remuneração recebida, renda mínima de inserção, bolsa família, solidariedade, oportunidade; RB, países e regiões, integração regional; RB, política de esquerda e ou de direita?; Financiamento da RB nos âmbitos regio-nal, nacional e global; RB e as questões rurais e urbanas de violência, segurança econômica.

Será o mais importante evento desta natureza já ocorrido nas Américas. Os professores Phi-lippe Van Parijs, Claus Offe, Guy Standing, Karl Wi-derquist, Ingrid Van Niekerk, José Antonio Ocampo, Pablo Yanes, Rubén Lo Vuolo, Toru Yamamori, Scott Goldsmith, Carmelo Mesa-Lago, Amit Bhaduri, Andrea Fumagali, Bispo Zephaniah Kameeta, entre outros, já confirmaram sua participação. O Brasil foi escolhido para sediar o congresso porque foi o primeiro país do mundo onde o Congresso Nacional aprovou a Lei que institui a RB de Cidadania, incondicional, a ser ins-tituída por etapas, iniciando-se pelos mais necessita-dos. Informações adicionais em www.bien2010brasil.com e www.basicincome.org.

O Congresso da

Renda Básica de Cidadania na Terra

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19maio 2010 caros amigos

Fidel Castro

O socialismo é estruturalmente mais justo que o capitalismo. Porém não soube equacionar a questão da liberdade. Cercado por nações e pressões capitalistas, o socialismo soviético cometeu o erro de abandonar o projeto ori-ginário de democracia proletária para perpetuar a estrutura imperial czarista da Rússia, agora denominada “centralismo democrático”.

Em países como a China é negada à nação a liberdade concedida ao capi-tal. Ali o socialismo assumiu o caráter esdrúxulo de “capitalismo de Estado”, com todos os agravantes, como desigualdade social e bolsões de miséria, su-perexploração do trabalho etc.

Não surpreende, pois, que o socialismo real tenha ruído na União Soviética. O excessivo controle estatal criou situações paradoxais, como o pioneirismo dos russos na conquista do espaço. Mas não conseguiu oferecer bens de consumo de qualidade, mercado varejista eficiente e pedagogia de formação dos “homem e mulher novos”.

Nesse cenário, Cuba é uma exceção. Trata-se de uma quádrupla ilha: geo-gráfica, política (é o único país socialista do Ocidente), econômica (devido ao bloqueio imposto pelo governo dos EUA) e órfã (com a perda do apoio da ex-tinta União Soviética).

O regime cubano é destaque no que concerne à justiça social. Prova dis-so é o fato de ocupar o 51º lugar no IDH estabelecido pela ONU (o Brasil é o 75º) e não apresentar bolsões de miséria – embora haja pobreza – nem abrigar uma casta de ricos e privilegiados. Se há quem se lance no mar em busca de uma vida melhor nos EUA, isso se deve às exigências de se viver num sistema de partilha.

Quanto à liberdade individual, jamais foi negada aos cidadãos, exceto quando representou ameaça à segurança da revolução ou significou empreen-dimentos econômicos sem o devido controle estatal. É inegável que o regime cubano teve, ao longo de cinco décadas, suas fases de sectarismo, tributárias de sua aproximação com a União Soviética.

Porém, jamais as denominações religiosas foram proibidas, os templos fechados, os sacerdotes e pastores perseguidos por razões de fé. A visita do papa João Paulo II, em 1998, e sua apreciação positiva sobre as conquistas nas áreas de saúde e educação, o comprovam.

No entanto, o sistema cubano sinaliza que poderá equacionar melhor a ques-tão da liberdade por meio de mecanismos mais democráticos de participação po-pular no governo, maior rotatividade no poder, de modo que as críticas possam chegar às instâncias superiores sem que sejam confundidas com manifestações contrarrevolucionárias. Na área econômica, Cuba terá de facilitar o acesso à pro-dução, consumo de bens e parcerias com investimentos estrangeiros.

No socialismo não se trata de falar em “liberdade de”, e sim em “li-berdade para”, de modo que esse direito inalienável não ceda aos vícios capi-talistas que permitem que a liberdade de um se amplie em detrimento da li-berdade de outros. O princípio “a cada um, segundo suas necessidades; de cada um, segundo suas possibilidades” deve nortear a construção de um futuro so-cialista em que o projeto comunitário seja, de fato, a condição de realização e felicidade pessoal e familiar.

Frei Betto

Frei Betto é autor de A mosca azul – reflexões sobre o poder (Rocco). Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.

Socialismo e LIBERDADE

Tive o privilégio de acompanhar pela TV o 9º Congresso da União de Jovens Comunistas de Cuba, no Palácio das Convenções, no domingo, 4 de abril.

O mérito da Revolução Cubana pode se medir pelo fato de que um país tão pequeno tenha podido resistir durante tanto tempo à política hostil e às medidas criminosas lançadas contra nosso povo pelo império mais po-deroso surgido na história da humanidade, o qual, acostumado a manejar à vontade os países do hemisfério, subestimou uma nação pequena, depen-dente e pobre a poucas milhas de suas costas. Isso não teria sido jamais possível sem a dignidade e a ética que caracterizaram sempre as ações da política de Cuba, assediada por repugnantes mentiras e calúnias. Junto à ética, forjaram-se a cultura e a consciência que fizeram possível a proeza de resistir durante mais de 50 anos. Não foi um mérito particular de seus líderes, senão fundamentalmente de seu povo.

A enorme diferença entre o passado em que apenas podia ser pronunciada a palavra socialismo e o presente, pôde ser percebida na ses-são final do 9º Congresso da União de Jovens Comunistas de Cuba, nos discursos dos delegados e nas palavras do presidente dos Conselhos de Es-tado e de Ministros.

Em suas palavras de encerramento, breves, profundas, precisas, Raúl pôs os pingos nos is em vários temas de suma importância. O discurso foi uma estocada profunda nas entranhas do império e seus cínicos aliados, ao expressar críticas e autocríticas que fazem mais fortes e incomovíveis a moral e a força da Revolução Cubana, se formos consequentes com o que cada dia nos ensina um processo tão dialético e profundo nas condi-ções concretas de Cuba.

Contamos atualmente com um povo que passou do analfabetismo a um dos mais altos níveis de educação do mundo, que é dono da mídia em massa, e pode ser capaz de criar a consciência necessária para superar di-ficuldades antigas e novas. Independentemente da necessidade de pro-mover os conhecimentos, seria absurdo ignorar que, num mundo cada vez mais complexo e mutável, a necessidade de trabalhar e de criar os bens materiais que a sociedade necessita constitui o dever fundamental dum cidadão.

A Revolução proclamou a universalização dos conhecimen-tos, ciente de que quanto mais conhecer, mais útil será o ser humano em sua vida; mas nunca se deixou de exaltar o dever sagrado do trabalho que a sociedade requer. O trabalho físico é, pelo contrário, uma necessidade da educação e da saúde humana, por isso, seguindo um princípio martia-no, proclamou-se muito cedo o conceito de estudo e trabalho. O esque-cimento de quaisquer desses princípios entraria em conflito com a cons-trução do socialismo.

O 9º COngREssO DA UnIãO de Jovens

Comunistas de Cuba

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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oFundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), crédito edu-cativo do governo federal destinado

aos estudantes de baixa renda que passaram no vestibular de faculdades particulares e não têm como bancar os estudos, se transformou em uma verdadeira tormenta na vida de milhares de es-tudantes brasileiros. A dívida acumulada com a Caixa Econômica Federal no decorrer do curso cresce exponencialmente e se torna praticamen-te impagável logo após a formatura.

A crise gerada por esse tipo de financiamen-to, que ao invés de facilitar a vida de estudan-tes carentes acaba criando um problema gravís-simo para estes quando concluem a graduação, está levando o Ministério da Educação a rever o programa criado, em 1999, pelo governo do tu-cano Fernando Henrique Cardoso e mantido na gestão do presidente Lula.

Várias modificações estão sendo discuti-das pelo MEC para tentar amenizar o caos em que se transformou o Fies, mas até o fechamento desta edição o Ministério da Educação não havia trans-formado as propostas em uma legislação que de fato proteja o aluno pobre. Além disso, os estu-dantes que ingressaram nas instituições de ensino privado neste ano também não estão conseguindo

ter acesso ao financiamento, que está suspenso até que o MEC efetive as novas regras para o Fies.

Pela proposta, o alongamento do prazo de carência para o início do pagamento da dívi-da passará dos atuais seis meses para um ano e meio. O Ministério também está propondo a prorrogação do prazo para o pagamento do fi-nanciamento, que seria ampliado de duas ve-zes o tempo de duração do curso para três ve-zes. Com isso, o estudante que se forma em quatro anos, passaria a ter 12 anos para sal-dar o total da dívida contraída.

O MEC também pretende que os futuros mé-dicos e professores que ingressem nas redes pú-blicas de saúde e educação possam abater anu-almente 1% de suas dívidas. No início do ano, o Ministério também reduziu os juros dos contra-tos de financiamento de 9% para 3,4% ao ano.

As medidas estão sendo encaradas pelo Minis-tério da Educação como a tábua de salvação para evitar o naufrágio do programa, mas estão lon-ge de resolver o problema dos estudantes pobres. Apesar de amenizar os impactos negativos para os futuros financiamentos, essas propostas não resol-vem o problema dos estudantes que possuem con-tratos antigos, como é o caso de Edney Mota.

Formado em jornalismo pela Pontifícia Uni-

versidade Católica de São Paulo, PUC-SP, em 2002, Edney está com o nome sujo no Serasa há cinco anos porque não conseguiu pagar a dívi-da com a Caixa Econômica Federal.

O jornalista não arrumou emprego fixo quan-do terminou o curso e a dívida virou uma bola de neve. Em abril deste ano, Edney devia para a Caixa R$ 49.153,70, apesar da dívida de capital ser de apenas R$ 9.896,39. Os juros estratosféri-cos inflacionaram o saldo devedor e o levaram à inadimplência.

“Eu estudei com muita dificuldade. Meu pai é pedreiro, minha mãe teve derrame, te-nho uma irmã excepcional. Não consegui pa-gar porque não arrumei emprego. Minha divi-da é de pouco mais de R$ 9 mil reais e o banco quer me cobrar quase R$ 50 mil. É um absur-do”, protesta Edney.

Os efeitos negativos do financiamento estu-dantil não atingiram apenas ele. Seu irmão, que no caso é o fiador da dívida, também está sen-tindo na pele o peso da mão do credor. A Cai-xa pediu o bloqueio de sua conta bancária. E a Justiça determinou que 30% do dinheiro que en-tra seja bloqueado. Além disso, o irmão também corre o risco de perder o carro, único bem que possui, para saldar parte da dívida.

Financiamento vira tormenta na vida de estudantes pobresO sonho do canudo virou pesadelo na vida de milhares de estudantes. Sem emprego fixo e com o nome sujo no Serasa em função da inadimplência com a Caixa Econômica Federal, Edney Mota exemplifica o drama vivido por esses estudantes. Ele acumula uma dívida de quase R$ 50 mil com a instituição bancária.

Lúcia Rodrigues

Edney Mota quer devolver o diploma.

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Edney está preocupado com as consequências que sua inadimplência está acarretando para o irmão, que praticamente rompeu relações com ele em função do problema gerado. “Ele ainda não me perdoou, acha que é um problema meu e que eu tenho de resolver.”

Ele conta que seu irmão é funcionário públi-co e que os advogados da Caixa penhoraram a conta salário dele. “Como não conseguiram os R$ 50 mil, a próxima ação será penhorar o car-ro. Eu não tenho carro, mas meu irmão tem um Gol antigo. Terminada a penhora e como não vão conseguir atingir o valor, vão querer penho-rar a casa”, afirma apreensivo.

A sorte de Edney, que mora na residência da família no Capão Redondo, em Campo Limpo, na periferia da zona sul da capital paulista, é que a casa não está no nome do irmão, que também não tem nenhum outro imóvel e, portanto, não tem mais o que penhorar.

O teto do jornalista também foi conseguido com muita luta. Os familiares de Edney se co-tizaram para a compra do terreno e seu pai er-gueu os cômodos. “Moro com minha família, minha mãe, minhas irmãs, meu cunhado, dois sobrinhos. Mora a família inteira, é como se fos-se uma comunidade”, ressalta.

Ao contrário da permissividade que tem com os grandes devedores latifundiários, ban-queiros e empresários no pagamento de suas dívidas, a Caixa Econômica Federal é extre-mamente rígida com aqueles que buscam ape-nas um financiamento para custear os estudos. O banco não fala sobre inadimplência. A re-portagem da Caros Amigos entrou em contato com a instituição, mas ninguém quis se mani-festar sobre o assunto.

Em abril, o Sindicato das Entidades Mante-nedoras de Estabelecimentos de Ensino Supe-rior no Estado de São Paulo (Semesp) divul-gou o índice de inadimplência. O percentual recuou 2,74% em 2009 em relação ao ano an-terior, mas atinge 23,9% dos estudantes. Na região metropolitana da capital paulista o per-centual é maior e chega à casa dos 33,9%. Esse é o terceiro maior índice de inadimplência re-gistrado nos últimos 11 anos no Estado, se-gundo o sindicato das mantenedoras.

Fies Justo

Daniela Pellegrini Nóbrega, líder do Fies Jus-to, movimento de defesa dos direitos dos estu-dantes que possuem o financiamento federal, orienta os inadimplentes que correm o risco de ter a dívida executada a entrarem com embargo de execução na Justiça. A medida, no entanto, tem apenas caráter protelatório e não afasta de vez o risco da execução da dívida.

“Estamos cobrando do MEC para que pa-rem de executar as dívidas e façam logo essa legislação.” Para quem está com o nome sujo no SPC, Daniela é mais pessimista. “Por mais que se faça, a situação vai continuar na mes-ma, porque quase todos os tribunais estão in-deferindo nossos pedidos”, lamenta.

O Fies Justo nasceu da preocupação da estu-dante de direito, Daniela, que se formou em uma faculdade particular de Brasília, em defender os interesses daqueles que, assim como ela, têm o crédito educacional. O movimento se organiza virtualmente pelo sítio (www.fiesjusto.com.br) para pressionar o Executivo e parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a encontrar uma solução para o problema criado pelo formato do financiamento estudantil.

“Em 2008 comecei a organizar o movimento, a buscar apoio dos deputados, pedia que os es-tudantes mandassem e-mail para os parlamen-tares pressionando. Eu ia sempre ao Congresso, então comecei a coordenar o Brasil todo. Não conhecia ninguém, as pessoas foram entrando no site...”, conta. Ela acredita que o movimento reúna, hoje, em torno de 10 mil estudantes.

Daniela também está empenhada em demons-trar que a Caixa cobra juros indevidos dos es-tudantes que buscam financiamento para estu-dar. “Podem estar faturando à nossa custa mais de um bilhão de reais. Se ficar comprovando que estão cobrando indevidamente, vamos pedir o ressarcimento. Se a Caixa não tomar nenhuma providência, vamos tornar isso público e entrar com uma ação coletiva. O que eles cobraram a mais vai ter de ser devolvido para todos.”

“Se a educação é uma garantia constitucio-nal, não podem agir dessa forma. Estamos falan-do de um programa social que está martirizando, detonando os estudantes”, argumenta.

Para ela, as regras do novo Fies que estão sendo propostas pelo MEC ainda não resolvem o problema dos estudantes. “Ameniza, fica mais maleável, mas ainda não é solução para os pro-blemas dos que já se formaram. Para quem está entrando é excelente. É muito bom. Mas o que adianta eles criarem soluções para quem ain-da não tem problemas? Queremos soluções para quem já tem problemas. E a soluções que eles dão para essas pessoas não servem”, reclama.

Daniela explica que, apesar de o prazo de fi-nanciamento ser ampliado, o sistema de amor-tização se baseia na tabela Price, que faz com que a dívida se torne mais alta no final. “Es-tamos diante de um problema social, e o novo Fies não vai ser a solução para esse problema. A solução seria devolver praticamente o que nós pegamos emprestado, não o dobro ou tri-plo desse valor. O problema são os juros co-brados”, conclui.

Ela acredita que a implantação das novas re-gras do Fies não deve ser posta em prática no curto prazo. “Ainda vai demorar um pouco, o MEC não estabeleceu um prazo, mas nós con-tinuaremos cobrando. Há um jogo de empurra-empurra. O MEC diz que está esperando a Cai-xa...”, critica.

Falta de transparência

Pelas novas regras fixadas pelo Ministério da Educação e que devem entrar em vigor, a Caixa perderá poder. Na prática para o estudante isso não muda muita coisa, mas o banco deixará de

ser o operador do programa, que passa a ser con-trolado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimen-to da Educação (FNDE), uma autarquia do Minis-tério da Educação. Além disso, a Caixa também perderá o monopólio sobre o financiamento dos contratos de crédito, que também passarão a ser oferecidos pelo Banco do Brasil.

Até 2009, a Caixa executava as duas funções com exclusividade. A falta de transparência no cálculo das dívidas dos estudantes e a burocrati-zação nos procedimentos são criticadas até mes-mo por aliados do governo.

“A fórmula do cálculo é bem complexa, as pessoas não conseguem entender como a Cai-xa chega àquele resultado, que transforma a dívida em uma bola de neve”, critica o depu-tado federal Paulo Pimenta (PT-RS), um dos principais defensores desses estudantes na Câ-mara dos Deputados.

O parlamentar adverte que no Brasil há mais de 43 mil fiadores com dívidas sendo execu-tadas. “Têm casos dramáticos, em que os es-tudantes morreram e mesmo assim a dívida foi executada”, lamenta. Ele afirma que con-seguiu incorporar às novas regras que o MEC deve anunciar que, nos casos de morte, a dí-vida não seja executa. Ainda segundo ele, a emenda que permitiu estender a todos os con-tratos de financiamento estudantil os juros de 3,4% ao ano também é de sua autoria.

“O projeto original só tratava daqui pra fren-te. Consegui aprovar uma emenda estendendo o benefício também para os contratos antigos. Mas a interpretação da Caixa é muito restritiva, porque só aceita que o percentual seja daqui pra frente. Não retroage no cálculo.”

A restrição imposta pela Caixa impede, por exemplo, que o valor da dívida dos contratos em vigência possa ter seu saldo recalculado com base nos juros reduzidos propostos. Isso impe-de um abatimento significativo nesse montante. Pela interpretação, os juros de 3,4% devem inci-dir sobre o saldo devedor elevado.

Pimenta, que tem se destacado no Congresso Nacional como um dos parlamentares que apoiam a luta dos estudantes que possuem o Fies, já rea-lizou audiências públicas, com a presença de re-presentantes do MEC e da Caixa Econômica Fe-deral para tentar resolver o problema.

Para ele, a entrada do Banco do Brasil no pro-cesso de financiamento estudantil é uma alter-nativa. “A ideia ao abrir para o Banco do Brasil é facilitar, dar mais uma opção para o aluno, por-que hoje o processo é muito burocratizado.”

Pelas regras que devem entrar em vigor a partir deste ano, o financiamento estará dispo-nível de maneira contínua. O estudante pode-rá solicitar o financiamento dos estudos a qual-quer momento do ano. As inscrições poderão ser feitas, exclusivamente, por meio de um sis-tema eletrônico disponível no Portal do MEC, que será gerenciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). A data de início das inscrições, no entanto, ainda não havia sido divulgada.

Financiamento vira tormenta na vida de estudantes pobres

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Edney Mota está disposto a entregar o diplo-ma de jornalista que obteve na PUC-SP, em 2002, para ter a dívida com Caixa Econômica Federal quitada. Desde que se formou, ele não conseguiu arrumar emprego com carteira assinada. Atual-mente desenvolve trabalhos esporádicos, o que enfraquece o orçamento. “Depois que me formei nunca mais trabalhei registrado. Sou prestador de serviços na área de educação. Quando tem serviço, recebo, quando não tem, não recebo. Se arrumasse um trabalho, pagaria a dívida”, enfatiza.

Apesar das adversidades vividas, ele conse-guiu reunir forças para concluir o mestrado gra-ças a uma bolsa do Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência e Tecnologia, que lhe per-mitiu custear os estudos na universidade.

Recentemente se inscreveu em um concurso do MEC para trabalhar como educador social em regiões pobres do Brasil. “Quero dar aula no inte-rior da Bahia, meu pai mora lá. Esse contrato do MEC era para ganhar R$ 55 mil. Se eu arrumasse esse emprego conseguiria pagar a dívida.”

Ele faz questão de ressaltar que quer pagar a dí-vida que contraiu. “Dizem que não queremos pa-gar, que os estudantes querem dar calote, mas isso não é verdade, frisa.

Edney desconfia que o fato de ter o nome sujo acaba dificultando a colocação no mercado de tra-balho. “Tenho dificuldade de achar emprego por causa disso. Tem empresas que não contratam se o nome está sujo. Não falam abertamente, porque é proibido por lei, mas fazem esse levantamento.

Apesar de não conseguir emprego, ele tem

uma boa experiência na área jornalística. En-quanto cursava a graduação, estagiou na Rádio Globo. “Fiquei dois anos na Globo ganhando R$ 300. O que é outra sacanagem. Trabalhava no jornalismo esportivo, mas fazia de tudo: plantão, locução, narração, reportagem. Tenho os mate-riais gravados. Me arrependi de não ter entrado na Justiça do Trabalho.” Na Record também tra-balhou no jornalismo esportivo durante três me-ses, sem registro, prestando serviço.

Apesar de querer devolver o diploma, o advo-gado gratuito, que Edney arrumou, entrou com uma ação na 21ª Vara Federal Judiciária de São Paulo, onde corre o processo, para propor um acordo à Caixa. Pela proposta, a dívida seria sal-dada em 168 meses ou 14 anos, com uma presta-ção de R$ 364,17.

Até o fechamento desta edição o juiz não ha-via se manifestado sobre o assunto. A reportagem da Caros Amigos procurou o ministro da Educa-ção, Fernando Haddad, para que ele comentasse as alterações no Fies e falasse como o MEC pretende resolver os problemas dos contratos antigos, como é caso do de Edney, mas a assessoria de imprensa do ministro não deu retorno.

Acompanhe a seguir os principais trechos da entrevista com Edney Mota.

Você se arrepende de ter buscado financiamento para estudar?

Muito, muito. Uma proposta, que não é inédi-ta, seria a de devolver o diploma para eles aca-barem com a nossa dívida, tirarem o nosso nome do Serasa e deixarem a gente em paz.

Como assim?

Quando você vai ao banco e pega um emprés-timo para comprar um carro e não pode pagar, o que acontece? O banco toma o carro. Quando você financia uma casa e não pode pagar, o que acon-tece? O banco toma a casa. No caso da educação o que eu posso devolver para eles, se eu não te-nho dinheiro, não tenho emprego? Eu fui ao ban-co e fiz uma oferta para pagar R$ 20 mil e eles não aceitaram, querem receber tudo. Recentemen-te meu advogado fez uma petição para o juiz para ver se aceitam um acordo para pagar a dívida em 14 anos, com uma parcela de R$ 364.

Você só fez a faculdade porque teve financiamento?

Jamais teria estudado se não fosse por meio de bolsa.

Vem de uma família humilde?

Muito humilde, meu pai é pedreiro, minha mãe é dona de casa, não tem nenhuma fonte de ren-da, teve derrame há aproximadamente dez anos e não recebe um tostão do governo. Eu tenho uma irmã excepcional que recebe um salário mínimo,

mas é a maior dificuldade para receber, a maior burocracia. É muita luta, mas a gente é de luta. A gente não é de se entregar, não. E não quer nada de presente. A gente quer pagar, mas o justo.

Os juros cobrados é que são o problema?

Os juros e as multas que eles cobram, mais os honorários advocatícios. Eles me colocam na Justiça para receber o dinheiro e eu é que tenho de pagar os honorários dos advogados deles.

Quando você acha que a dívida será executada?

Quando meu irmão foi meu fiador ele era sol-teiro, mas agora casou. Para fazer acordo comi-go, a Caixa exigiu a assinatura dele e da espo-sa. A minha cunhada evidentemente se recusou a assinar. Entrei com a petição para fazer o acordo para evitar a execução.

Isso desgastou sua relação com seu irmão ou ele entende o problema?

Com meu irmão e minha cunhada. Eu não falo mais com ele, não vou a casa deles há pelo me-nos cinco, seis meses.

Ele está bravo com você?

Muito bravo. Porque ele não consegue fazer nada. Ele ainda não me perdoou, acha que é um problema meu e que eu tenho de resolver. E eu dependo da Caixa, do jurídico, do governo... Mais dia menos dia vão levar o carro dele, e eu vou ter de assumir isso.

No momento você está trabalhando?

Sou prestador de serviços na área de educa-ção. Quando tem serviço, recebo, quando não tem, não recebo. Em abril não recebi nada. Se ar-rumasse um trabalho, pagaria a dívida.

Quando você tem serviço recebe por volta de quanto?

Recebo uma média de R$ 1.600. O máximo que recebi foi R$ 2.300.

E se estivesse pagando a Caixa de quanto seria essa prestação?

Eu não tenho certeza, mas acredito que em torno de mil reais.

Foi complicado para você conseguir esse financiamento?

Não, foi superfácil. Tive de levar comprovan-te de endereço e os documentos. O fiador tam-bém levou cópia de RG e CPF e o holerite, que é o mais importante para eles (credor).

Não há burocracia para entrar?

Não, é muito fácil. O problema é para sair.

Devedor do Fies quer devolver diploma para saldar dívida com banco

Lúcia Rodrigues é jornalista. [email protected]

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23novembro 2009 caros amigos

Gilberto Felisberto Vasconcellos

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

Que beleza, fico eu feliz, José Celso Mar-tinez tomou assento na Jangada de Getúlio, Jango e Brizola. Intérprete inteligente de O Rei da Vela, per-cebeu que a candidata Marina é a ecologia do Banco Mundial com o manto evangélico.

A teoria literária bandeirante mistificou o serin-gueiro Mário de Andrade, adorado poeta que nunca teve no entanto olhos para ver a espoliação imperia-lista de que padece o povo, submetido a um desen-volvimento cafajeste e injusto.

Eu compartilho com Zé Celso a admiração por Oswald de Andrade, o sol da Semana de 22. Por que Oswald do sol? É que ele, surpreendentemente antes do estrago na biosfera feito pelo petróleo, fez a crítica ecológica do capitalismo informado pela luz dos trópi-cos. O seu movimento filosófico da “antropofagia” é a promessa do paraíso vegetal e da fotossíntese. O cora-ção hidrato de carbono do modernismo. Oswald de An-drade foi maravilhoso em avançar com a Dialética da Natureza de Engels, conforme escreveu Darcy Ribeiro

em A Utopia Selvagem: capitalismo é ecocídio. O problema é que Oswald de Andrade ficou embas-

bacado com o ano de 1945, que foi para ele um ano di-fícil, embarcou no mote da democracia à UDN contra o Estado Novo de Vargas. O conflito interimperialista da Segunda Guerra foi visto como um entrevero entre de-mocracia e fascismo, dentro do qual Getulio, o “anão Vargas”, não passava de uma versão caricata de Hitler e Mussolini. Não compreendeu que o nacionalismo de uma nação oprimida não é igual ao de uma nação opres-sora, assim como nada tem a ver a Carta de Lavoro de Mussolini com a legislação trabalhista de Vargas.

O cenário político de 1945 confundiu muita gente de esquerda. Nesse ano Oswald de Andrade sai do partidão estalinista (aí nunca foi lido, Prestes gostava mais do li-beral Mário de Andrade), mas embarca na prosápia de Browder, secretário estalinista do PC norteamericano, que antecipa a “terceira via” de Blair e Clinton.

Oswald de Andrade não teria se entusias-mado com Browder se tivesse assimilado as idéias de

Trotsky, o qual não foi devidamente lido por ele, o que não deixa de ser estranho, pois Trotsky era um notá-vel escritor chegado nas vanguardas literárias.

Do México, no começo da década de 40, Trotsky mandou recado claro: entre o imperialis-mo inglês e Vargas, Trotsky fechava com o Estado Novo varguista.

Infelizmente não houve o encontro (embora fos-se possível entre 1945 e 1954) de Oswald de Andra-de com Leonel Brizola.

Oswald de Andrade conheceu o Uruguai, indo encontrar-se com Prestes em 1928, mas não o Rio Grande do Sul.

Em 1945, aos 23 anos, Leonel Brizola compreendeu aquilo que passou desapercebido ao cinquentão Oswald de Andrade, culto, vivido, viajado: a queda de Vargas em 1945 foi urdida pelo imperialismo norteamericano.

Sol oSwald e o Palácio Trotskista

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A outra face da Itália. Gênova. Daqui, no século passado, centenas de italianos embarcavam em transatlânticos em busca de uma vida melhor. Hoje, seus fas-cinantes becos estreitos e escuros são o palco de um fenômeno que, inexoravel-mente, transformará a sociedade europeia em um encontro de línguas, religiões e etnias. Atualmente, quase seis milhões de estrangeiros residem regularmente na Itália, mas o país ainda é cenário de contrastes e de uma desconfiança laten-te em relação aos estrangeiros. Abdel, por exemplo, vive em um contêiner nos arredores de um bairro chique da cidade, enquanto muitos imigrantes de origem chinesa são marginalizados e interagem somente com outros estrangeiros. Na zona do porto antigo de Gênova, muitos cidadãos de origem africana esperam eventuais clientes para as suas bolsas falsificadas, enquanto outros estrangeiros fazem compras em lojas de grife. Os imigrantes latino-americanos, em especial mais numerosos, os equatorianos, são aqueles que encontram maior facilidade para inserir-se nesse contexto, quase sempre frequentando igrejas. Essa é a ou-tra face da sociedade europeia.

ensaio ALEJANDRA DAGLIA

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Tatiana Merlino

Por trás da imagem verde e amarela que vende na televisão, a ex-estatal Companhia Vale do Rio Doce, hoje uma transnacional, coleciona denúncias de graves violações trabalhistas e ambientais por todo o planeta. Fotos Acervo Justiça nos Trilhos

No povoado de Piquiá, no Maranhão, pó de minério emitido pelas chaminés da siderúrgicas polui a cidade.

peru, 2006 No dia 22 de julho, o líder camponês José Lezma Sánchez é abor-dado por três homens numa feira do mu-

nicípio de Eduardo Villanueva. De maneira vio-lenta, é colocado em uma caminhonete e levado a sua casa, em Campo Alegre. Chegando lá, sua casa é vasculhada. Como não encontram nada, começam a agredi-lo fisicamente e o ameaçam de morte caso insista nas ações “antimineradoras”.

Sánchez era presidente da Frente de Defesa do Meio Ambiente da Bacia do Rio Cajamarquino (Fredemac), que se opunha à instalação, na região de Cajamarca, da mineradora Miski Mayo, subsi-diária da transnacional brasileira Vale SA (antiga Companhia Vale do Rio Doce).

Víctor Acosta, também integrante da Fredemac, conta que episódios semelhantes ocorreram com di-versas lideranças camponesas que se opuseram à implantação da mineração na área. “Primeiro, ten-tavam comprar, chantagear. Como não deu certo, partiram para o uso de milícias armadas”, explica.

Acosta conta que os camponeses são contrários “à mineração porque defendem suas águas. Não existe atividade agrícola e pecuária sem água, por

VALE, a mineradora com as mãos sujAs dE sAnguE

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isso eles se opõem às atividades extrativas”.A Miski Mayo instalou-se em Cajamarca em

2004. Três anos depois, a pedido da população lo-cal, a Comissão de Gestão Ambiental Sustentável do governo peruano realizou uma visita à região e relatou: “Nossa principal surpresa e indigna-ção foi encontrar gente armada com escopetas e rostos cobertos que faziam a guarda na mina. As conclusões foram: a empresa Miski Mayo recor-reu a ‘quadros de defesa’, contratando, para isso, pessoas com antecedentes criminais. Algo mais preocupante ainda: o grupo de defesa foi provido com armas de fogo”.

Moçambique, 2007 Mil e trezentas pessoas começam a ser removidas da vila de Moatize, no estado do Tete, para a implantação de uma mina de exploração de carvão da Vale Moçambique, que ganhou, no ano anterior, a concessão de 35 mil hectares de terra na região. Segundo Thomas Selemane, da organização moçambicana Movi-mento dos Amigos da Floresta, as famílias estão sendo deslocadas para uma área de pior qualida-de para a prática da agricultura, “e as casas que a Vale está construindo são de baixa qualidade”.

No local do empreendimento, há dois cemité-rios, e a empresa já está dando procedimento à exumação dos corpos. “Para as famílias, isso é in-concebível, é uma violação das tradições”.

Na fase inicial de implantação já ocorreram três greves “por conta da diferença de tratamen-to com trabalhadores moçambicanos e estrangei-ros”, explica Selemane.

Há, ainda, denúncias de que a empresa ofe-rece, aos trabalhadores, refeições que provocam alergias e dores. A empresa mantém, com muitos dos funcionários, vínculo contratual precário e de curta duração, deixando-os numa situação de constante insegurança.

O contrato de concessão firmado com a Vale em Moçambique é válido por 35 anos, a partir de 2007. Selemane pondera que, apesar de ser um grande projeto, ele é econômica e socialmen-te pouco rentável. “Gera pouco emprego, não tem projeto de transferência de conhecimento etc. O mais provável é que depois de 35 anos deixe di-videndos para seus acionistas e deixe para o res-to do povo danos ambientais e todos os buracos que vai fazer naquela área”.

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Nova Caledônia, 2006 A Vale Inco empresa re-sultante da compra, pela Vale, da mineradora cana-dense Inco, decide construir, na colônia francesa si-tuada no sudoeste do oceano Pacífico, um duto para resíduos da atividade de mineração dentro do mar.

A barreira de corais da Nova Caledônia, que cir-cunda o país, é a maior do mundo, formando, tam-bém, o maior sistema de lagoas do planeta.

Jacques Boengkih, da organização indígena Agencia Kanak de Desenvolvimento Nova Cale-dônia (Agence Kanak de Developpement Nouvel-le-Caledonie), considera a Vale um novo poder colonial. “Já destruíram uma área grande de flo-resta tropical, onde há espécies raras. Temos ár-vores da era dos dinossauros. Não sabemos qual serão os impactos desses resíduos”.

Além dos impactos no meio ambiente, há os sociais, como o surgimento da prostituição, antes desconhecida pelo povo tradicional da Nova Ca-ledônia. “Fora que o país não está ganhando ne-nhum dinheiro com isso. E não gostamos disso, queremos que eles paguem royalties. Não enten-do como eles possam tirar o níquel, vender para a China, e nós não ganharmos nada. Essa é uma nova forma de colonialismo, e é muito estranho, porque o Brasil foi uma colônia”.

Transnacional brasileiraOs casos acima retratam, resumidamente, o

modus operandi da transnacional brasileira Vale S.A. após sua privatização, realizada, por meio de um leilão, em abril de 1997. A verdadeira cara da

empresa é bem diferente da que ela mesma vende em propagandas de televisão, que a atrela a ima-gens de famosos, como a atriz Fernanda Monte-negro e o fotógrafo Sebastião Salgado.

Uma das maiores transnacionais brasileiras e a maior mineradora do mundo, o grupo empre-sarial da Vale é composto por, pelo menos, 27 empresas coligadas, controladas ou joint-ventu-res, distribuídas em mais de 30 países, como Bra-sil, Angola, Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Indonésia, Moçambique, Nova Caledô-nia e Peru, onde desenvolve atividades de pros-pecção e pesquisa mineral, mineração, operações industriais e logística.

Sua forma de atuação não difere da das gran-des corporações mundiais, que utilizam a superex-ploração do trabalho e destruição do meio ambien-te para garantir alta lucratividade. “A Vale não é brasileira nem verde e amarela. Isso é propaganda. Ela é uma multinacional como outra qualquer”, diz Ana Garcia, da Fundação Rosa Luxemburgo.

Sandra Quintela, economista e integrante do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), explica que a Vale não é mais uma empre-sa nacional, “mas sim uma empresa controlada por seus acionistas. Grande parte deles são ban-cos e fundos de pensão, capital financeiro. Assim, objetiva capitalizar os seus acionistas e, para isso, tem aplicado uma política duríssima: de um lado, tirando direitos dos trabalhadores, economizando as despesas de pessoal; de outro, com uma esca-lada ilimitada de exploração mineral”.

A Companhia Vale do Rio Doce foi fundada em 1942 como uma empresa estatal brasileira. Sua privatização é, até hoje, contestada na Justi-ça brasileira. Desde então, a empresa obteve lu-cro total de 49,2 bilhões de dólares, dos quais 13,4 bilhões foram distribuídos aos seus acionis-tas. Nos últimos dez anos, foi a quarta empresa mais rentável entre as grandes companhias (de acordo com o Boston Consulting Group).

Em janeiro de 2010, seu valor de mercado foi avaliado em 139,2 bilhões de dólares, rendendo-lhe a 24ª posição entre as maiores companhias do mundo, de acordo com o jornal inglês Financial Times. “Foram 49 bilhões de dólares de lucro para uma empresa que foi privatizada por 3 bilhões. É uma coisa absolutamente escandalosa, um saque ao patrimônio público”, critica Sandra.

Hoje, a Vale é controlada pela sociedade Va-lepar S.A., que detém 53,3% do capital votan-te (33,6% do capital total). Em seguida, aparece o governo brasileiro, com 6,8%, e vários inves-tidores que não possuem mais de 5% das cotas. A Valepar tem a seguinte constituição acioná-ria: o fundo de pensão Previ, que por meio da so-ciedade Litel Participações S.A., possui 39% das cotas da sociedade; a Bradespar S.A. (sociedade de investidores ligada ao grupo Bradesco) com 21,21%; a empresa siderúrgica japonesa Mitsuib & Co. Ltda com 18.24%; os fundos de pensão bra-sileiros Petros, Funcef e Fundação Cesp, que, por meio da sociedade Litel Participações S.A., pos-suem 10% das cotas; e o governo federal, que

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possui 11.51%. O governo detém, ainda, ações es-peciais (golden share), que lhe dão poder de veto em determinadas decisões.

Violações às comunidadesOs impactos da expansão resultante da priva-

tização da empresa foram discutidos durante o I Encontro Internacional dos Atingidos pela Vale, ocorrido no Rio de Janeiro, sede nacional da Vale, entre 12 e 15 de abril. Estiveram presentes cerca de 160 pessoas de 80 organizações e movimen-tos de todas as regiões do Brasil e de países como Alemanha, Argentina, Canadá, Chile, Moçambique, Nova Caledônia e Peru.

Durante os quatro dias, os participantes apre-sentaram os casos de violações às comunidades tradicionais, aos trabalhadores e ao meio ambien-te gerados pela mineração. Discutiram, também, es-tratégias comuns de enfrentamento e resistência à transnacional brasileira. A tônica do encontro foi de estudo e troca de experiências entre os moradores e comunidades afetadas pela mineração no mundo.

Uma preparação para o encontro foi realizada nos dias anteriores. Em 6 de abril, duas carava-nas percorreram os estados de Minas Gerais, Pará

Maranhão, destacou que a transnacional emitiu, em 2008, 16,8 milhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera, causando prejuízos à saú-de da população. Ele também apontou que “em suas operações, a Vale consumiu 335 milhões de metros cúbicos de água em 2008, sendo respon-sável pelo derramamento, no ambiente, de 1.562 metros cúbicos de salmoura, álcool, hidrocarbo-netos e outros poluentes”. Para se ter uma ideia, em 2008, a Vale produziu 346 milhões de tonela-das de minérios. E em 1997, tal produção foi de 113 milhões de toneladas.

Zagallo denuncia, ainda, a responsabilidade da mineradora em atropelamentos ferroviários. Em 2007, ocorreram 23 mortes; em 2008, houve nove mortes e 2.860 acidentes. “São mortes silenciosas. A única responsabilidade da empresa com isso é a compra de caixões. E, depois, falam que isso faz parte das dores do crescimento”, criticou.

O vice-presidente da OAB do Maranhão lembrou que, além das mortes, o impacto sobre as comuni-dades que vivem à beira do percurso das ferrovias inclui “atropelamento de animais, ruído, interrup-ção do tráfego de pessoas e veículos em cruzamen-tos sem passarelas ou passagens de nível”.

cinco usinas siderúrgicasEsse drama é vivido por Edevard Dantas Car-

deal e pela comunidade onde vive. Ele é morador do povoado de Piquiá, município de Açailândia, no Maranhão, onde estão em operação, atual-mente, cinco usinas siderúrgicas, que produzem, anualmente, 500 mil toneladas de ferro-gusa.

A estrada de ferro passa ao lado do povoado e a BR-222 atravessa a comunidade. Quase toda a produção é exportada para os Estados Unidos, Ásia e Europa. Apenas uma pequena parte é des-tinada ao distrito industrial do Piquiá. Essa cadeia siderúrgica é alimentada a partir de minérios da Vale, única fornecedora das cinco usinas em fun-cionamento na região.

Seu Edevard, nascido na Bahia e hoje com 66 anos, diz que vai lutar contra a Vale até quando aguentar. “Pode escrever tudo que eu estou falan-do, que eu assino embaixo. Sou um grande preju-dicado dos empreendimentos”.

O senhor simpático de óculos e barba por fa-zer conta que vive na região desde 1969. “Ti-nha um rio, o Piquiá, que a gente usava para la-var roupa e até beber. Depois, a Vale chegou com essas empresas siderúrgicas e poluiu tudo. Tem ainda a estrada de ferro, que passa rente ao nos-so povoado”.

Seu Edevard lembra que, antes da chegada da mineração, a comunidade sobrevivia da roça. Agora, não há mais onde plantar. “Tem que andar de 150 a 200 quilômetros para fazer roça. Hoje, a gente vive de respirar pó de ferro de minério e ou-tros resíduos que caem dentro da cidade”. O agri-

e Maranhão com o objetivo de permitir aos parti-cipantes entrar em contato com as realidades dos atingidos pela mineradora.

A primeira saiu de Itabira, cidade onde a em-presa nasceu e que sofre com altos índices de poluição decorrentes de sua atuação. A segunda cruzou o Eixo Carajás, onde comunidades convi-vem com empreendimentos localizados em Bar-carena, Marabá e Paraupebas, no Pará, e Açailân-dia e São Luís, no Maranhão.

No primeiro dia do encontro, os participantes seguiram à Baía de Sepetiba, no Rio, onde a Vale, em sociedade com a ThyssenKrupp, está montan-do a Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), acusada de causar danos ao meio ambiente e às co-munidades ribeirinhas. A TKCSA irá emitir 273,6 mil toneladas/ano de poluentes, sobretudo monóxi-do de carbono (229.758 toneladas) e dióxido de en-xofre (21.540 toneladas). Há, também, denúncias de que, na região, a empresa esteja atuando com gru-pos de milícias (paramilitares) que ameaçam aque-les que se opõem ao empreendimento.

Entre os impactos ambientais provocados pela Vale, Guilherme Zagallo, advogado da Campanha Justiça nos Trilhos e vice-presidente da OAB do

Um dos casos mais simbólicos da queda de braço entre “atingidos” e a transnacional Vale é o dos trabalhadores do Canadá, que no se-gundo dia do encontro ocorrido no Rio de Ja-neiro, 13 de abril, completaram nove meses de greve em três unidades da Vale-Inco, empresa formada em 2006 após a compra da minera-dora canadense Inço pela empresa brasileira.

A briga dos 3.500 trabalhadores organiza-dos pelo sindicato dos mineiros, o United Ste-elworkers (USW), com a Vale gira em torno da tentativa da empresa de terceirizar 400 minei-ros e reduzir o fundo de pensão dos trabalha-dores, sob a justificativa da crise econômica mundial iniciada em 2008.

No entanto, a transnacional brasileira, que comprou a Inco por cerca de 19 bilhões de dó-lares, “afirmou, na época, que as minas em Sudbury, a 400 km ao norte de Toronto, eram uma joia de sua coroa”, contou o sindicalis-ta Jamie West. Nos dois anos seguintes, entre 2006 e 2008, a Vale lucrou cerca de 4,2 bi-lhões de dólares com as operações da Inco. “Ou seja: quase o dobro do que a antiga Inco não lucrou em dez anos”.

Em troca, disse West, “ela exigiu concessões: em julho passado, ofereceram-nos demissões em massa, atingindo todos com menos de sete anos de serviço; a extinção de pensões defini-

das para novos contratados; cortes na partici-pação nos lucros em períodos de maior lucrati-vidade; menos postos de segurança em um local de trabalho perigoso; normas mais brandas para a terceirização; nenhuma proteção sindi-cal para novos contratados durante seis meses; e sanções mais rigorosas para as faltas, igno-rando a garantia canadense de dez dias remu-nerados anuais por motivo de doença”.

West, que há oito anos opera um forno da Vale Inco na cidade de Sudbury, a 400 quilô-metros de Toronto, conta que, quando a greve começou, a transnacional brasileira acionou seguranças privados para intimidar os grevis-tas. A empresa também anunciou que iria re-tomar a produção contratando “fura-greves” terceirizados. “Nosso sindicato tem mais de 100 anos, e nunca fomos tão desrespeitados”, diz. O lema da mobilização dos canadenses grevistas é “One day longer, one day stron-ger” (Um dia a mais, um dia mais forte).

Durante o encontro no Rio de Janeiro, West afirmou: “Estou impressionado de ver como a Vale destrói seu país, acaba com a água, com a natureza. Eles sugerem que somos todos ego-ístas e querem que a gente mude, assumindo uma nova ‘cultura’, mas nós percebemos que a cultura que eles falam não é a do Brasil, dos brasileiros, mas sim a da Vale”.

“Um dia a mais, um dia mais forte”

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cultor conta que possuía uma grande área de terra: “eu tinha ideia de sobreviver ali plantando minhas coisas, mas, com a poluição que veio, perdeu valor e não tem como sair para outro lugar”.

De acordo com o Dossiê dos Impactos e Viola-ções da Vale no Mundo, apresentado no final do encontro no Rio de Janeiro, a extração de madei-ra nativa para a produção de carvão vegetal a ser utilizada nas siderúrgicas é altamente predatória naquela região e gera muitos agentes poluentes, principalmente monóxido de carbono, com gran-des efeitos sobre a saúde, como doenças respi-ratórias. “Os problemas relacionados às ativida-des das guseiras e os conflitos socioambientais na região aumentaram com a exploração da Vale”, aponta o documento.

Segundo seu Edevard, houve um aumento do número de problemas de saúde, como coceira, dores de garganta e alergia na pele das pessoas. Ele relata, também, que a poluição emitida pe-las chaminés da siderúrgica, por onde sai pó de minério, pó de carvão vegetal e outros resíduos, “caem dentro do rio e no quintal da gente, em cima das casas, em cima de tudo”. Nas fábricas, não existem filtros antipartículas. Assim, quando os alto-fornos são abastecidos com minério e car-vão vegetal triturado e homogeneizado, a fuligem emitida contém resíduos provenientes do aqueci-mento do minério. Fuligem que cobre os móveis, camas e utensílios de cozinha das casas do povo-ado, causando doenças respiratórias graves.

Quando a caravana norte passou pela comu-nidade, Seu Edevard juntou parte do pó que cai no telhado de sua casa. Num gesto simbólico, os participantes colocaram as mãos no pó, e, em se-guida “carimbaram” o peito, para mostrar os da-nos respiratórios causados pela siderurgia. “Sabe como é chiqueiro de porco, cercado por quatro lados? Não é lugar de viver, mas estamos viven-do assim. Por isso a comunidade quer ser inde-nizada, já entramos com um processo. Chega de tanto sofrer”.

explosões e alagamenTosJosé Ribamar, presidente do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Canaã dos Carajás, con-ta que os moradores do município paraense tam-bém estão sofrendo com a instalação dos empre-endimentos da Vale. No total, são cinco, sendo quatro deles desenvolvidos dentro da própria ci-dade, e o quinto na cidade de Curionópolis, mas com impactos em Canaã.

Os projetos são destinados à extração de co-bre, níquel e ferro. “Temos uma vila próxima da mineração onde vivem mil pessoas. Quando de-tonam explosivos na mina, parece um terremoto, e caem pedras no meio da roça”, conta. A produ-ção de galinha caipira, que era o forte da região, não existe mais.

“Tivemos perda de praticamente tudo, a pro-dução do gado, do leite, da criação de galinha”. Além disso, há muita poeira, fumaça, e alaga-mento das plantações e residências, resultado da implantação de diques para proteger a mina. “O pessoal tinha rocinha e o córrego represou a área, inundando a casa das pessoas”.

O agricultor acredita que o pior impacto da Vale na área é o desrespeito à sociedade: “Eles que-rem levar por cima de tudo”. Seu Pixilinga, como José Ribamar é conhecido, chegou a ser chamado de “vagabundo e posseiro” pela administração da Vale, após uma manifestação que bloqueou a es-trada, impedindo a passagem de caminhões. “Dis-seram que demos prejuízos de mais de dois milhões de reais, mas eles não tinham cumprido a promes-sa de asfaltar as ruas da vila”.

Embora a empresa garanta aos moradores da região que sua atividade não afeta o meio am-biente, “os produtos químicos que eles usam quando fazem furos no solo correm a céu aberto, caem nos córregos, rios, represas”, conta.

Impactos como os que ocorrem em Açailân-dia, no Maranhão, e Canaã dos Carajás, no Pará, são recorrentes ao longo dos 892 quilômetros da Estrada de Ferro de Carajás, que corta 22 muni-cípios entre Parauapebas (PA) a São Luís (MA). A ferrovia foi construída para escoar, principal-mente, o ferro proveniente da maior reserva mi-neral do mundo, a Serra dos Carajás.

As atividades extrativo-exportadoras da Vale na região sul do Pará produzem cerca de 1,8 mi-lhão de toneladas de ferro-gusa, principal maté-ria-prima para produção de aço. A mina de ferro de Carajás situa-se em Parauapebas, sul do Pará.

Há mais de 25 anos, a Vale explora Carajás, cujas reservas estão estimadas em 18 bilhões de

toneladas de minério de ferro, 45 milhões de to-neladas de bauxita, 1 bilhão de tonelada de co-bre, 60 milhões de toneladas de manganês, 124 milhões de toneladas de níquel e 100 mil tone-ladas de estanho, espalhados por uma área de 40 mil quilômetros quadrados.

exTinção da biodiVersidadeO estado onde a Vale nasceu, Minas Gerais, é

responsável, hoje, por dois terços da produção de minério de ferro da transnacional – o terço res-tante é produzido em Carajás. Os três principais casos de violações no estado são da Mina de Ca-pão Xavier, onde o empreendimento da Vale le-vou à extinção de uma área de conservação da biodiversidade e vem colocando em risco caver-nas e sítios arqueológicos.

Já o projeto Apolo, na Serra da Gandarela, próximo a Belo Horizonte, vem sendo denuncia-do por mau uso de recursos hídricos e destruição da vegetação. O projeto prevê a implantação de uma mina para produzir 24 milhões de toneladas de minério de ferro por ano.

Em Itabira, berço da Vale, há, hoje, 492 apo-sentados por invalidez em decorrência do traba-lho na mineradora e 85 afastados por problemas de saúde, relata Felipe Venâncio Pedro, um dos diretores do Sindicato Metabase. “Essas ocorrên-cias são, em parte, resultado da relação tonela-da/homem/hora, ou seja, o trabalho por metas. É uma pressão invisível, e as pessoas passam a tra-balhar mais do que podem”, conta.

Ex-funcionário da Vale, antes e depois da pri-vatização, ele diz que a imagem verde e amarelo que a empresa vende é “a maior palhaçada, men-tira. Todo mundo sabe que o minério da Vale é manchado de sangue”.

A mineradora é responsável por inúmeros atropelamentos ferroviários. Em 2007 ocorreram 23 mortes.

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Felipão, como é conhecido, afirma que, hoje, o meio ambiente de Itabira “é uma piada”. “Ti-nha mata atlântica primária que não existe mais, várias nascentes, algumas históricas. A qualidade ambiental da cidade piorou bastante”, relata.

De acordo com dados do Metabase, a partir do início da crise econômica mundial, em 2008, a transnacional demitiu cerca de 1.500 trabalhado-res diretos e 12 mil terceirizados, de um total de 120 mil trabalhadores em todo o mundo – sendo a metade deles terceirizados. Apesar disso, os nú-meros indicam que a Vale não teve sua situação financeira muito afetada pela crise.

Felipão afirma que o Sindicato Metabase é au-tor de várias ações trabalhistas contra a Vale. De acordo com o advogado Guilherme Zagallo, da OAB do Maranhão, um dos grandes desafios dos que lutam contra as violações da Vale é reunir registros documentais e estimular as comunida-des a cobrar indenizações e pedir responsabilida-de criminal da empresa. “A Vale teme as ações. E por que ela teme? Porque a sua privatização foi um furto”.

Quando a empresa foi privatizada, era a prin-cipal exportadora de minério de ferro, maior pro-dutora de alumínio e ouro da América Latina,

possuía e operava dois portos de grandes dimen-sões com a maior frota de navios graneleiros do mundo, controlava mais de 1.800 quilômetros de ferrovias e possuía altíssimas reservas comprova-das de recursos minerais.

O advogado Eloá dos Santos Cruz defendeu, no encontro dos atingidos pela Vale, as ações po-pulares como forma de questionamento da pri-vatização da empresa. Ele é advogado e autor de 16 ações do tipo, que ainda hoje estão sub júdi-ce. Em todo o país foram ajuizadas mais de cem ações populares contra a venda da Vale.

De acordo com pesquisa realizada entre os dias 19 e 22 de maio de 2007 pelo Instituto GPP – Pla-nejamento e Pesquisa, 50,3% dos brasileiros eram favoráveis à retomada da empresa pelo Estado. Apenas 28,2% eram contra. Outra pesquisa apon-ta que 93% dos funcionários da Vale querem a re-estatização da empresa.

inTernacionalização A empresa começou se internacionalizar na

década de 1980. Porém, é a partir dos anos 2000, já privatizada e sob a administração de Roger Ag-nelli, que a Vale começa uma política agressiva de expansão: em 2000, ela entra no Oriente Mé-

Tatiana Merlino é [email protected]

dio ao adquirir 50% da Gulf Industrial Invest-ment Company (empresa de capital estaduniden-se); em 2001 e 2002, assume projetos de minerais não ferrosos no Peru e no Chile; e, em 2003, ad-quire parte de uma empresa norueguesa, criando a Rio Doce Manganese Norway.

A internacionalização da Vale teve dois mo-mentos centrais, que determinam sua atuação dentro e fora do Brasil nos dias de hoje. Primei-ro, em 2001, quando o maior mercado consumi-dor de minério de ferro do mundo, a China, fe-chou, com a Vale, um acordo de fornecimento de 6 milhões de toneladas de minério de ferro por ano, ao longo de 20 anos. Segundo, a compra da mineradora canadense Inco, em 2006, que tornou a Vale a maior produtora mundial de níquel e a maior mineradora do mundo. A criação da Vale Inco teve impactos gerais na economia brasileira e no mercado internacional de mineração.

No entanto, engana-se quem pensa que tal ex-pansão é apenas resultado das estratégias empre-sariais de uma corporação privada. De acordo com Sandra Quintela, a internacionalização da Vale faz parte de uma política do governo federal de “trans-nacionalizar” as empresas brasileiras, com o obje-tivo de inserir o país no capitalismo mundial. “A Vale está nesse trem da alegria que as transnacio-nais brasileiras estão, com o poder público, com o governo Lula, que é um grande gerente dessa in-ternacionalização das empresas brasileiras”.

De acordo com ela, tal política “é subimpe-rialista, pois leva consigo condições de trabalho e desrespeito ao meio ambiente muito piores do que no Brasil, porque contam com as legislações flexíveis dos países menos desenvolvidos que os nossos. Ela está com a Odebrecht e a Petrobras nesse trem da alegria da transnacionalização”. Para Sandra, a Vale não é apenas uma empresa, “ela é um vetor de poder. Ela tem poder de Estado e conta com foro privilegiado”, ressalta.

A pesquisadora do Pacs acredita que estamos vivendo um novo ciclo de colonização no mundo. “É muito grave que as grandes empresas trans-nacionais estejam dominando as fontes estraté-gicas de recursos naturais, como minério, água, biodiversidade. E o Brasil está nesse jogo através de empresas que usam o carisma que o país tem a serviço de um lucro desenfreado, da ganância, da superexploração. São as novas caravelas, é um novo processo de recolonização”, sentenciou.

De acordo com Virgínia Fontes, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), o “impe-rialismo brasileiro está nascendo. É uma forma contemporânea de imperialismo. O papel que as empresas brasileiras estão exercendo em outros países, explorando a força de trabalho, é esse”.

Responsável por incontáveis casos de danos ao meio ambiente e superexploração da mão de obra, grande parte da expansão da Vale é viabilizada com os recursos que a transnacio-nal recebe do Banco Nacional de Desenvolvi-mento Econômico e Social (BNDES), o princi-pal financiador da corporação.

Em 2008, o BNDES liberou um financia-mento de R$ 7,3 bilhões para a Vale aplicar no Brasil até 2012, o maior empréstimo concedi-do a uma única empresa até então. “Para apro-vá-lo, o BNDES teve até que reformar seus es-tatutos de mais de 50 anos, pois nunca havia acontecido isso”, indigna-se Sandra Quintela, do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs).

A prioridade do financiamento era a “ex-pansão e modernização da capacidade de pro-dução de minério”. Em 2007, o banco já havia aprovado outros R$ 774,6 milhões para a em-presa expandir a capacidade de transporte da Estrada de Ferro Carajás (EFC).

Sandra explica que a capitalização é fei-ta “com recursos da dívida pública, do tesou-ro nacional, a juros menores do que o BNDES empresta para suas partes. O povo brasilei-ro está pagando duas vezes. É um crime con-tra o nosso dinheiro”, lamenta. Para ela, esse

modelo de financiamento público precisa ser discutido e questionado. Para Carlos Tautz, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Eco-nômicas (Ibase), o fato de o banco ser o maior financiador da Vale revela uma relação de simbiose da empresa com o Estado brasileiro.

Para ilustrar tal relação, já houve, inclusive, ocasiões de “troca” de executivos entre a em-presa, o governo federal e o banco. Entre 2007 e 2008, semanas após a concessão de um em-préstimo à transnacional, o presidente do BN-DES na época e ex-chefe de gabinete do Minis-tério do Planejamento, Demian Fiocca, assumiu a direção de Assuntos Estratégicos da Vale.

Em 2008, uma semana após anunciar a li-beração do financiamento de R$ 7,3 bilhões, Luciano Siani Pires, alto funcionário do banco, passou a ocupar o cargo de Diretor de Planeja-mento Estratégico da transnacional. O BNDES-par (holding do banco criada para administrar suas participações em diversas empresas) tem uma participação de 4,2% nas ações da Vale, e 12% da Valepar, empresa criada exclusiva-mente para ser acionista da Vale e que detém um terço do capital financeiro da companhia privatizada. (Com informações da Área de De-senvolvimento e Direitos do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, Ibase)

Violações financiadas com dinheiro público

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A guerra às drogas é uma guerra contra pessoasCom o fracasso da estratégia penal, abre-se o debate sobre alternativas para a questão das drogas no Brasil. Ilustração Vitor Zalma

Júlio Delmanto

a “guerra às drogas” fracassou. Exce-to por setores religiosos e ultraconser-vadores, esta avaliação tem se tornado

cada vez mais consensual, nacional e interna-cional. A resposta militar e penal ao problema do uso de algumas drogas – colocadas na ilici-tude no começo do século XX por questões mo-rais, econômicas e políticas, por influência dire-ta da política externa estadunidense – não incide sobre o consumo e nem ajuda no tratamento do abuso no uso de psicoativos. Além de tudo, traz consigo uma série de outros gravíssimos proble-mas: violência do crime e do Estado, corrupção, criminalização da pobreza, ingerência dos EUA sobre territórios alheios. Assim, abre-se cada vez mais a disputa por alternativas a esse falido mo-delo, que criminaliza uma conduta – posse de certas drogas – e, portanto, pessoas, invariavel-mente pobres.

O sucesso das políticas europeias pautadas

por estratégias de redução de danos, aliado aos péssimos resultados concretos das intervenções estadunidenses na América Latina e às reprova-ções à guerra às drogas formuladas em conferên-cia da ONU em março do ano passado, levou a que diversos países começassem a reformar suas políticas de criminalização das drogas. Portu-gal, Espanha e Itália não criminalizam posse de drogas para consumo pessoal, solução seguida em 2009 também por México, Argentina e Re-pública Tcheca. No Brasil, o debate lentamente tem ganhado maior repercussão, inclusive com a presença de figuras conservadoras defendendo outra maneira de lidar com a questão.

Segundo Cristiano Maronna, advogado e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Cri-minais (Ibccrim), houve “grande avanço” na pe-netração deste debate na sociedade nos últimos anos, “na medida em que hoje se discute mais ou menos abertamente necessidade de mudar

o rumo da política de drogas”. “Há ainda mui-ta resistência, o discurso alarmista e catastro-fista ainda intoxica a discussão”, salienta Ma-ronna, “mas é inegável que hoje a informação é mais abundante. Há mais espaço para a busca de alternativas fora da proibição”. Sérgio Vidal, militante antiproibicionista e representante da União Nacional dos Estudantes (UNE) no Con-selho Nacional de Políticas Sobre Drogas (CO-NAD), concorda quanto ao avanço, mas pondera que “o problema é que existe um sistema cultu-ral criado historicamente, que não tem como ser desfeito de uma hora para outra”.

Vidal avalia que “há espaço para diálogo com o Executivo e com o Judiciário, e tem havido cada vez mais espaço para a abertura de prece-dentes positivos, de vitórias, avanços”. O maior entrave estaria no Poder Legislativo, mais ain-da em ano de eleições. “O principal empecilho para o avanço atual são as pressões do senso co-

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mum e o imaginário políticopartidário de que a ‘guerra às drogas’ é do interesse das ‘Famílias de Bem’”, salienta. “Há muito medo de perder votos por defender uma proposta que a sociedade em geral desconhece. Políticas de drogas são coi-sas complexas e até mesmo parlamentares que têm envolvimento com o tema muitas vezes des-conhecem experiências de regulamentação real que possam embasar uma eventual regulamen-tação no Brasil”.

Questionado sobre um suposto avanço no debate sobre drogas no Brasil, o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, ex-secre-tário nacional de Segurança Pública, tem uma visão menos otimista: “Debate? Que debate? O que há é a movimentação de grupos bastante es-pecíficos e um ou outro editorial na grande im-prensa. Fora isso, o que há são os pesquisadores devotados e respeitáveis e a admirável e incan-sável militância antiproibicionista”. Para além desse campo, Soares só vê “marasmo”: “são pla-titudes preconceituosas, retórica conservadora com tinturas diversas, estigmas e a pasmaceira de sempre ante a máquina feroz de morte e irra-cionalidade da política vigente, que criminaliza os jovens pobres e negros, estimula a corrupção policial, o domínio territorial pelo tráfico e o co-mércio ilegal de armas”, desabafa.

origens da proibição

Propagado a partir do final do século XIX nos Estados Unidos, o ideário proibicionista era sustentado pelo lobby moralista de grupos reli-giosos com grande força política, reunidos em organizações como as Ligas Anti-Saloon. A dro-ga combatida prioritariamente era o álcool, mas outras também eram identificadas como amea-çadoras ao american way of life. Não por coin-cidência, substâncias consumidas por diversos setores da população estadunidense eram asso-ciadas a minorias e grupos imigrantes: o ópio aos chineses, a maconha aos mexicanos e a co-caína aos negros. Desde seu princípio, a estraté-gia de modelo penal no trato de substâncias psi-coativas teve como alvo setores da população que o Estado desejava controlar.

No começo do século XX, os EUA passam a fazer pressão internacional pelo controle de substâncias psicoativas, que são primeiro mundialmente regulamentadas para depois se-rem consolidadas no Harrisson Narcotic Act, de 1914, considerado marco inaugural do proi-bicionismo. Ao final da Primeira Guerra Mun-dial, tratados internacionais de combate às dro-gas são incorporados ao Tratado de Versalhes, submetendo assim a comunidade internacio-nal ao proibicionismo estadunidense sem que houvesse nenhum debate. O atual status global data de 1961, ano da Convenção Única sobre drogas da ONU, definitivamente regulamenta-da dez anos depois.

O termo “war on drugs” (guerra às drogas) foi utilizado pela primeira vez por Richard Ni-xon, que identificou as substâncias psicoativas ilícitas como o “principal inimigo” de seu país. A partir de então, o suposto combate à produ-ção, distribuição, comércio e consumo de drogas em escala global foi um dos principais alicerces da política externa estadunidense. O combate às drogas assume assim duplo papel: de repressão interna e de intervenção geopolítica externa. “A questão referente às drogas proibidas é sempre usada para esconder e encobrir interesses geopo-líticos, geoestratégicos e geoeconômicos”, avalia Wálter Fanganiello Maierovitch, juiz de direito aposentado e secretário nacional antidrogas no governo de FHC.

“o traficante é o novo herege”

Segundo Cristiano Maronna, a proibição ocu-pa hoje na política internacional o lugar que ocupava a guerra ao comunismo: “Há um pa-ralelismo possível entre a ‘Guerra às Drogas’ e a ‘Guerra ao Terror’. A droga como mal universal, como o inimigo a ser combatido, como o demô-nio. Esse discurso que antes justificou o macar-thismo, e hoje justifica a intervenção em nome do combate ao terrorismo, é muito útil para a manutenção do discurso que legitima a desi-gualdade e a subalternização da periferia pelo centro”, avalia o advogado criminalista.

Secretária-geral do Instituto Carioca de Cri-minologia (ICC), Vera Malaguti Batista é auto-

ra de Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no RJ. Ela explica que “com o fim das di-taduras militares, a construção da guerra contra as drogas como política para a América Latina manteve o aparato de controle social, manejado a partir do proibicionismo norte-americano”. “A demonização da coca e da maconha produziu a manutenção dos convênios e das missões mili-tares americanas no continente, num momento em que não havia problema de saúde pública em relação a estas substâncias” avalia a pesquisa-dora, que também é doutora em Saúde Pública. Ela lembra que nos dois principais países onde houve intervenção dos EUA – Colômbia e Afe-ganistão – a produção de cocaína e heroína, res-pectivamente, aumentou depois da presença das tropas de George W. Bush.

Por outro lado, Malaguti Batista lembra que as medidas neoliberais propagadas a partir do chamado Consenso de Washington trouxeram “devastação social” ao continente na década de 1980, levando camponeses e trabalhadores urbanos cada vez mais empobrecidos a se en-gajar na produção e no comércio varejista das substâncias ilícitas: “Mercados ilegais são sem-pre ocupados pelos mais pobres”, define Batista, lembrando da repressão aos camelôs como ou-tro exemplo de criminalização das estratégias de sobrevivência da periferia.

“A partir disso a mídia começa a constru-ção do novo inimigo interno – do subversivo guerrilheiro para o perigoso traficante”, conti-nua Vera. Não por coincidência, o governo dos Estados Unidos cria o termo “narcoterroristas” para definir as guerrilhas colombianas. Com a justificativa de guerra e do combate ao terroris-mo é instituído o “direito penal do inimigo, que não tem garantia alguma. O estereótipo públi-co é de que o traficante não tem direito a nada, e a mesma lógica da ocupação dos EUA na Co-lômbia é usada pela polícia nas favelas”, ava-lia a pesquisadora. Citando o advogado e jurista Nilo Batista, ela aponta que “o inimigo público foi inculcado pelos grandes meios de comunica-ção: o traficante é o novo herege, quer usurpar a alma de nossas crianças”.

gestão penal da misériaLuiz Eduardo Soares define os efeitos da

guerra às drogas como “nefastos”: “estimula a corrupção policial e o desenvolvimento das mi-lícias, e alimenta o tráfico de armas, sem o qual não haveria tanta violência letal, nem o domínio territorial, que veta a milhões de pessoas o aces-so aos benefícios derivados do estado democrá-tico de Direito. E mais: avança a criminalização da pobreza”. Soares “desafia” o leitor da Caros Amigos “a encontrar um adolescente de clas-se média, branco e bem posto na vida, que este-ja internado numa entidade sócio-educativa. Se houver, será a exceção a confirmar a regra”. Os números não o deixam mentir: 66,5% dos presos no Rio de Janeiro são negros. No Estados Uni-dos, um em cada três negros com idade entre 18 e 35 anos ou está preso ou está sob condicional.

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Júlio Delmanto é jornalista.

São 6,5 milhões de presos no país, o que não o impede de ser o maior produtor mundial de ma-conha, e o país de maior número de consumido-res de psicoativos ilícitos no planeta.

O sociólogo e cientista político afirma que a imagem usual do vendedor de drogas como “o dragão da maldade, crudelíssimo e violento” é “uma construção social estigmatizante que costu-ma ser aplicada de modo generalizante e que fun-ciona como instrumento de reprodução de pre-conceitos e desigualdades sociais”. Mais uma vez as estatísticas lhe dão razão: em pesquisa coman-dada por Luciana Boiteux no ano passado, identi-ficou-se que 84% dos presos por tráfico de drogas no Rio de Janeiro e no Distrito Federal não porta-va armas no momento de sua detenção.

Segundo Vera Malaguti Batista, a repressão às drogas ilícitas encobre outros problemas e leva à demonização das áreas faveladas. Essas políti-cas são, segundo ela, o “grande vetor para o en-carceramento da população, do tesouro de nos-sa mão de obra, que é a juventude popular”. “Em 1994 havia cerca de 110 mil presos no Brasil. Hoje quintuplicamos esse número, é um aumento nunca visto na historia da criminologia”. Não só a guerra às drogas é responsável por este índice, mas também o crescimento “de uma mentalida-de preventiva, que trabalha o conflito social pelo olhar penal”, explica Batista. Luiz Eduardo iden-tifica o mesmo problema: “A sociedade e, por ex-tensão, nossos políticos, em sua maioria, tendem a confundir justiça com punição e punição com privação de liberdade” define. “Ficam de fora to-das as dimensões da reparação da vítima, de pre-venção da violência e do crime, e de construção de novas oportunidades e vias a quem transgre-diu as leis ou as regras do convívio social”.

os cegos a guiar

Com a evidente falência do modelo repres-sivo, começam a ser debatidas alternativas no âmbito nacional. O exemplo de Portugal, que descriminalizou a posse de todas as drogas para consumo pessoal em 2001 e conseguiu inclusi-ve reduzir o consumo em algumas faixas etárias, é muito lembrado. Neste momento, o presidente brasileiro era Fernando Henrique Cardoso – hoje defensor notório da descriminalização – e Wal-ter Maierovitch ocupava a Secretaria Nacional Anti-drogas. Ele afirma que “FHC seguiu a po-lítica de Bill Clinton (manteve um czar republi-cano e a war on drugs), e agora, bem depois das declarações de Obama, quis pegar um lugar no barco progressista”.

Nessa empreitada, o líder tucano organizou a Comissão Latino-americana sobre Drogas e De-mocracia, unindo-se a Cesar Gaviria e Carlos Ze-dillo, ex-presidentes da Colômbia e do México, respectivamente. Maierovitch classifica os três como “fracassados” no que tange ao combate às drogas em seus governos, e aponta que “FHC, Gaviria e Zedillo me fazem lembrar um quadro famoso que está exposto no Museu de Nápole. O quadro mostra cegos a guiar outros. O trio, no que se refere às drogas, durante os seus manda-tos presidenciais, têm um notável curriculum”.

O juiz conta que esteve em Portugal “para que, juntos, pudéssemos implantar um revolucionário projeto de lei”. A meta era “não tipificar como cri-me o porte de drogas para uso próprio. Seria uma infração administrativa (não criminal), como, es-tacionar veículo automotor em local proibido”. Fernando Henrique, no entanto, não aprovou o projeto e, ao final de seu segundo mandato, apre-sentou um outro projeto de política nacional an-tidrogas. “O projeto de lei sobre drogas, converti-do em lei a pedido de FHC, teve de ser vetado em mais de 80%. A lei nova era pior do que a anti-ga. Num dos dispositivos vetados, aplicava-se ao usuário, dado como criminoso, pena privativa de liberdade e interdição para comerciar e até para casar”, conta Maierovicth.

Quanto ao recente engajamento do ex-presi-dente tucano no debate, o juiz aposentado classi-fica como “um discurso simplista, sem propostas concretas e nem ideia de como viabilizar a libe-ração”. Para ele, “tudo soa como oportunismo, de quem está incomodado com o sucesso internacio-nal conquistado pelo presidente Lula. FHC quis buscar um espaço na mídia internacional”, ava-lia. Para Vera Malaguti Batista as intenções não só de Fernando Henrique como de outros setores conservadores proponentes de mudanças na atual política de drogas são no sentido de “descrimina-lizar o consumidor e aumentar rigor para o trafi-cante. Simplificando, o traficante é o menino po-bre do morro que vai vender para o menino branco que pode comprar. Onde a questão sangra não é no consumo, essa solução é atacar os pobres”.

alternativas em disputa

Segundo Vera, “a direita viu que a mudança é inevitável, e está tentando hegemonizar o discur-so para manter a guerra contra os pobres, a guerra contra o tráfico. Como a esquerda não se pronun-cia, eles estão ocupando espaço com sua propos-ta conservadora”. Para ela, “a esquerda está mos-cando, tem medo de sair do discurso moral”. Com a descriminalização, porte de pequena quantida-de para consumo próprio deixa de ser penalizado, mas produção, venda e comercialização seguem sendo reprimidos, o que mantém o poder do Es-tado, criminalizar a pobreza.

Sérgio Vidal defende que “a melhor alternati-va é a regulamentação da formação de associa-ção de usuários e a permição que essas associa-ções pudessem produzir, desde que não tivessem lucro. Acredito que, retirar o poder de lucrar com a produção de drogas é a única forma de dimi-nuir o consumo de qualquer substância”. Segun-do ele, a demanda por consumo de drogas era controlada por mecanismos culturais até a proi-bição: “As drogas sempre foram usadas, mas de forma controlada por outros mecanismos que não apenas os legais. É com a indústria farma-cêutica e a criação da propaganda, da publicida-de, que as drogas se tornam objeto de consumo. Diminuam as propagandas com drogas e a de-manda diminuirá”, defende o antropólogo.

Cristiano Maronna defende “controle admi-nistrativo para o consumo pessoal e penas al-ternativas para o pequeno e médio traficante”,

além de “ênfase na redução de danos e no trata-mento voluntário. Esse é o primeiro e necessá-rio passo rumo à mudança no sentido da racio-nalização da política de drogas”. Luiz Eduardo Soares é incisivo: “Sejamos pragmáticos: o ver-dadeiro debate não é ‘devemos ou não proibir o acesso às drogas’, ao álcool à cocaína. Não é esse o debate porque a hipótese do impedimento desse acesso não existe na realidade prática. Ou seja, o acesso é um fato em todo mundo demo-crático ou não totalitário e teocrático”.

“Os EUA gastaram 500 bilhões de dólares na guerra às drogas, desde sua declaração. Mes-mo assim, o consumo não foi alterado. Portan-to, não se pode dizer que faltou dinheiro, pessoal, equipamento, qualidade tecnológica, competên-cia técnica, nada disso. O fato é que é simples-mente impossível controlar uma dinâmica desse tipo, quando, na sociedade, há demanda e ofer-ta. O fato é este. Ponto final”, aponta Soares, que prossegue: “aliás, no fundo o que esse fato de-monstra é muito bom: a sociedade vence o Esta-do, para o bem e para o mal. A verdadeira ques-tão sempre mascarada é a seguinte: como não está ao nosso alcance impedir o acesso às subs-tâncias que chamamos drogas, temos de nos per-guntar: em que contexto normativo seria menos mau lidar com a realidade do acesso às drogas?” pergunta o sociólogo. “O contexto atual, em que drogas são problema de polícia e cadeia, isto é, de política criminal? Ou um contexto diferente em que elas fossem objeto de saúde pública e educa-ção? Eu aposto no segundo caminho. Ele não vai evitar o abuso, mas pelo menos não vai provocar outros males. Das drogas e de seus efeitos destru-tivos nós nunca nos livraremos, mas poderemos aprender a conviver melhor com elas, a ponto, in-clusive, de reduzir o sofrimento humano que seu abuso provoca”, defende.

Já há algum tempo, setores do governo fe-deral sinalizam positivamente quanto a peque-nas mudanças na atual lei de drogas. O deputa-do federal Paulo Teixeira (PT-SP) tem sido um de seus maiores defensores e articuladores. No entanto, ele mesmo já aponta que em ano de eleição esse debate é inviável institucionalmen-te. Sérgio Vidal lembra outro elemento impor-tante nessa disputa: “Tem sido muito positivo o crescimento e diversificação de grupos voltados para a atuação antiproibicionista. Isso só forta-lece a luta política e dá espaço para a difusão de aspectos culturais normalizadores do uso dessas drogas marginalizadas dentro da sociedade. A cada dia mais pessoas em diferentes cidades têm se juntado para formar grupos com algum en-volvimento, seja com redução de danos, ativis-mo ou pesquisa relacionados ao tema”, aponta Vidal. “Em Fortaleza temos notícia do ACORDA, em São Paulo, o DAR (Desentorpecendo a Ra-zão), em Salvador a Ananda, no Rio de Janeiro tem o Coletivo da Marcha da Maconha e do Gro-wroom. Todos têm feito os mais variados traba-lhos para ampliar o acesso a informações segu-ras sobre o tema das drogas”.

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a 30 de março de 1977, construí um mo-numento, com meu colega árabe-israe-lense Abed Abdi, que chama Dia da Ter-

ra, no cemitério da cidade árabe de Sakhnin, na Baixa Galileia, como protesto contra a matança e ferimentos de dezenas de jovens árabes que se manifestavam contra a decisão das autoridades israelenses de desapropriar suas terras agrícolas para nelas localizar campos de manobras milita-res. Num álbum comemorativo, publicado poste-riormente, escrevi:

Sempre me perguntam por que fizemos o mo-numento ao Dia da Terra em Sakhnin. Antiga-mente, as pessoas empilhavam pedras como mo-numentos, para preservar um lugar ou expulsar maus espíritos. E certamente só maus espíritos po-deriam forçar os camponeses a deixarem sua ter-ra, e só maus espíritos poderiam perturbar a tran-quilidade dos camponeses que trabalham em sua terra. Será que não foi o mau espírito que levou ao derramamento de sangue inocente, daqueles cujo único crime foi protestar contra a desapro-priação de sua terra?

Aqui está a resposta.Juntamente com meu colega Abed Abdi, cons-

truí essa Pedra das Massas com o mesmo propó-sito: para expulsar os maus espíritos e preservar o lugar, o lugar da espoliação, roubo e usurpação da terra. Mas também para deixar um memorial de trabalho criativo compartilhado que um dia vai se tornar um marco em torno do qual as futuras ge-rações poderão se reunir, gerações que acharão di-fícil acreditar no que realmente acontece...

E, se você quiser, permita-nos dizer que nosso trabalho conjunto será um apelo para que o que aconteceu não ocorra de novo”.

Desde então, a 30 de março se observa o Dia de Lembrança Nacional da população árabe de Isra-el. Milhares de árabes e judeus se reúnem para fa-zer cumprir o pedido inscrito no monumento, de “aprofundar o entendimento entre os dois povos”, à sombra do sarcófago monumental.

Ultimamente, arrumando minha biblioteca, de-parei, surpreso, com duas publicações empoeira-das. A primeira, “Conversas de combatentes”, de 1967, inclui conversações de comandantes e sol-dados de unidades de elite, como o Alto Comando Militar, na maioria membros dos kibbutzim, que em geral são os combatentes mais corajosos. Eles começavam pedindo perdão, arrependidos, baten-do no peito, cheios de sentimento de culpa.

Como soldados da reserva, haviam sido convo-cados para combater ameaças do Egito e da Síria, mas depois a poeira das batalhas baixou e come-

çou a reflexão, pela qual se percebeu que a estra-tégia dos egípcios e sírios era defensiva, não es-tavam preparados para atacar. A nossa guerra de resistência para assegurar a sobrevivência de Is-rael não passava de uma guerra de ocupação.

O texto do livro era chocante. Todos tinham a mesma opinião, se queixaram de como foram ví-timas de um engodo. Se dão conta de repente que estavam destruindo todas as regras de comporta-mento em que tinham sido educados, fugindo aos valores básicos de igualdade entre os povos e de coexistência de grupos étnicos diferentes, como nossos vizinhos árabes.

A outra publicação empoeirada era um catá-logo, com o caráter de uma antologia, em que os mais destacados poetas, escritores, artistas plásti-cos se reuniram num ato de protesto, a 5 de junho de 1985, no Museu do Castelo do Kibbutz Gaash, a meio caminho entre Haifa e Tel Aviv, três anos exatos após a Primeira Guerra do Líbano. O catálo-go-antologia chamava “Atravessando fronteiras”.

O famoso escritor S. Izhar (Smolensky), na-quele tempo ainda parlamentar do Partido Tra-balhista, abriu o ato com uma citação do general Amos Jaron: “Havia aqui um blecaute dos senti-dos de toda a hierarquia, um apagão dos sentidos de todos nós. Curto e grosso, e nada mais... Como é possível que o comandante do batalhão este-ja no campo de batalha ignorando o fato de que aqui estão assassinando 300, 400, 500, mil, e na verdade nem sei quantos – e se esse comandan-te fica assim, é preciso acabar com ele. Por que os seus sentidos estavam desligados? Confesso, aqui, em cima deste pódio, que nossos sentidos, de todos nós, estavam apagados”. (General Amos Jaron, testemunhando no inquérito nacional, nos jornais de 9 de fevereiro de 1983).

Logo após a citação, S. Izhar perguntou: “Esse apagão dos sentidos, como aconteceu? Por quê? Porque, se cada um que vai entrar para a guerra não está de acordo com a necessidade dela, está combatendo depois que seus sentidos foram apa-gados. Porque hoje, em Israel, virou costume, que o mundo está dividido em dois: de um lado, ju-deus, e de outro, seres não humanos. Porque virou hábito, para muitos, para a maioria dos que têm sangue judeu, que o sangue não seja derramado inutilmente. E há sangue no ser não humano. Por-que muitos estão deixando claro que há leis para judeus e nenhuma lei para os outros. Porque de todas as ideias do mundo, só duas estamos utili-zando: o branco e o preto: nós e os outros. Por-que os estereótipos mitológicos utilizados hoje em dia, por exemplo, o rei de Israel, o Grande Israel, e

de outro lado Satã e os terroristas, ignoram com-pletamente os valores históricos, como a comple-xidade do mundo, a responsabilidade, enxergar longe, o compartilhamento, os palestinos. Porque muitos dos judeus de Israel hoje em dia estão com o coração envenenado”.

Pegando esse catálogo, me lembrei que, após o evento, nossa esperança era de que fôssemos fi-nalmente compreendidos.

EpílogoNestes dias, tive a oportunidade de ver dois fil-

mes: “A faixa branca”, de um corajoso cineasta alemão, que conseguiu fazer a cirurgia, com um bisturi muito afiado, da sociedade alemã antes da Primeira Guerra Mundial, muito tempo antes que Hitler tivesse envenenado os cérebros dos alemães com o famoso livro “Mein Kampf”. O cineasta está pondo no banco dos réus a educação espartana, muito cruel, e a hipocrisia, com uma capacida-de cinematográfica fantástica e emocionante, de modo que se vive de novo o processo que levou à criação do estereótipo satânico em que se formou essa geração de entreguerras.

O outro filme, que vi com atraso, é “A ceguei-ra”, baseado no livro de José Saramago, que vi no Telecine Cult, na TV. Com capacidade igualmen-te fantástica, o cineasta brasileiro conta a história em três vertentes, contribuindo com uma dimen-são universal do processo de como a sociedade do século 20 se transformou em rinocerontes à moda da peça de Ionescu.

Como fui ingênuo, há 35 anos, ao escrever no prefácio do álbum do Dia da Terra que no futuro seria difícil acreditar que aquelas coisas acontece-ram! Passaram quase duas gerações desde aquele 30 de março e hoje o número de árabes peregri-nos aumenta a cada dia no monumento, na cele-bração anual, e o número dos judeus diminui cada vez mais. Naquele episódio, seis jovens árabes fo-ram assassinados. Desde então o número de víti-mas inocentes palestinas e libanesas do Exército de Israel subiu mil vezes, quarteirões inteiros fo-ram arrasados por nossos aviões.

Quando mais de 1.500 palestinos inocentes fo-ram mortos na ação de Gaza, chamada de crimes de guerra pelo relatório da ONU, apoiado por 134 Estados do mundo, de tudo isso resultou a eleição de um governo brutal que nega a paz de um modo sem precedentes. Quantas gerações passarão ain-da mais para que a população de Israel desperte dessa situação?

Gershon Knispel

Gershon Knispel é artista plástico.

A força da rotinaÉ como um cupim, que come as estruturas do prédio até que ele cai.

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Roma – No eterno contraste entre capita-lismo selvagem e bem-estar social, entre cresci-mento exasperado e consumo sustentável ou en-tre degração ambiental e saúde pública, o único vencedor é o poder econômico. Sobretudo nos países pobres ou em desenvolvimento, não é raro que o neoliberalismo desenfreado acabe legiti-mando graves danos ao ser humano e ao meio ambiente.

Nos últimos anos, o crescimento dos crimes ambientais corporativos, cometidos em vários continentes, demonstram que os interesses do se-tor privado e suas práticas de lobby são capazes de influenciar as políticas públicas – ainda bran-das – de proteção do bem-estar comum.

Um caso emblemático de supremacia econô-mica sobre a saúde pública é o do amianto, um

mineral de comprovado potencial cancerígeno também conhecido como “a fibra assassina”.

Na Europa, a produção do amianto cresceu exponencialmente durante o período pós-guer-ra, mas quando os Estados Unidos limitaram o seu uso e os países do velho continente iniciaram inúmeras campanhas em favor de sua erradica-ção, os maiores produtores do ramo inauguravam fábricas em diversas outras partes do mundo.

Não é raro que o deslocamento geográfico de empresas coincida com a preferência por países caracterizados pela mão de obra barata, por in-centivos fiscais, legislações trabalhistas menos articuladas e tímidos movimentos sindicais.

Com o amianto a história se repete. O mate-rial parecia ser um grande aliado do desenvolvi-mento dos países do terceiro mundo, principal-

mente daqueles que apostavam no crescimento do ramo da construção civil. Leve, barato, resis-tente à água e facilmente transportável, poderia ter sido o parceiro ideal de momentos históricos de euforia econômica, como aquele dos 50 anos em 5. O único inconveniente é que se trata de um produto fatal para a saúde humana e, por isso, foi abolido por mais de 40 países. A Itália proibiu o uso do mineral em 1992, mas já em 1943 outras nações europeias como a Alemanha haviam reco-nhecido o potencial cancerígeno do amianto.

Diversos estudos científicos nacionais e inter-nacionais demonstraram que o amianto, inclusive a crisotila, ou amianto branco, é um inimigo len-to e silencioso, capaz de causar doenças com lon-go período de latência, como a fibrose pulmonar, o câncer de pulmão e o mesotelioma de pleura, cau-sado pela inalação do amianto no meio ambiente.

Agressivas e incuráveis, essas doenças podem se manifestar até 50 anos após o primeiro conta-to com o amianto, mas, apesar disso, em 2008 o Instituto Brasileiro do Crisotila (IBC) patrocinava a campanha publicitária cujo slogan era “Amian-to crisotila – a fibra mineral que faz o Brasil cres-cer”, mais tarde suspensa pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).

Produção no BrasilSegundo os dados divulgados pela Associa-

ção Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea), o Brasil é um dos cinco maiores consumidores e fabricantes de amianto do mundo, com produção anual média de 250.000 toneladas. O material é empregado em mais de 3 mil produtos, como o fi-brocimento (típico de telhas e caixas-d’água) pas-tilhas e lonas para freios e, apesar de seus efeitos catastróficos, sua alta rentabilidade atraiu, inclu-sive, países “ecologistas”.

O Canadá, por exemplo, exporta 98% de sua produção de amianto para os países do terceiro mundo e, no Brasil, a Eternit declarou que, so-mente no terceiro trimestre de 2009, o seu lu-cro totalizou R$ 17,004 milhões e que a venda de produtos acabados alcançou 207,2 mil toneladas, aumento de 16,7% em relação ao mesmo perío-do do ano passado.

Entre os países europeus, a Itália é uma das nações onde a sociedade continua pagando a conta provocada pelos males do amianto. O país proibiu o uso da fibra cancerígena em 1992, mas com o passar dos anos a curva que indica o nú-mero de mortes nacionais causadas pelo material é cada vez maior.

Em dezembro, o tribunal de Turim iniciou o julgamento do maior processo trabalhista euro-peu, uma ação coletiva movida por quase 3 mil partes civis contra os ex-proprietários da multi-nacional belgo-suiça Eternit.

O magnata suiço Stephan Schmidheiny e o belga Jean Louis de Cartier são acusados de de-sastre ambiental doloso e omissão no forneci-mento de um sistema de proteção adequado aos trabalhadores expostos à fibra do amianto.

A maioria das vítimas italianas são de Casa-le Monferrato, na província de Alessandria, mas Il

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amianto, o inimigo fatal do teto ao ladoVítimas italianas e seus parentes esperam que o maior processo trabalhista contra a Eternit na Europa seja capaz de fazer justiça às mortes causadas pela fibra assassina.

Anelise Sanchez

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a Eternit era detentora de outras três fábricas em território italiano: a ex Icar, em Rubiera, e outras duas em Bagnoli (Nápoles) e Cavagnolo (Turim).

Ainda hoje a empresa possui saúde econô-mica de ferro, mas a imprudência do lobby do amianto gerou, até hoje, cerca de 120 mil mor-tes ao ano.

Até 1992, a Itália utilizou 3,7 milhões de to-neladas do mineral assassino na composição de mais de 3 mil produtos e, anualmente, o país re-gistra cerca de 3 mil novas mortes por asbestose, a doença pulmonar crônica provocada pela ina-lação de fibra de amianto.

Em Casale Monferrato, cidade de 32 mil habi-tantes, distante 70 quilômetros de Turim, foram registrados mais de 1500 casos de asbestose, cân-cer pulmonar e mesotelioma.

Se até agora as estatísticas divulgadas pela co-munidade científica são alarmantes, tudo indica que, em um futuro próximo, a asbestose provoca-rá mais vítimas do que aquelas causadas pelo ta-baco. As previsões sustentam que o maior núme-ro de mortes por amianto acontecerá por volta de 2018, com 100 mil novos casos italianos.

tiPo de vítimaBruno Pesce, coordenador da Associação dos

Familiares das Vítimas do Amianto, comenta que outrora a Eternit empregou mais de 2 mil habi-tantes de Casale Monferrato e que, na época, tra-balhar para a multinacional, assim como para ou-tras indústrias da região, era como tirar a sorte grande, uma chance de estabilidade profissional.

“A fábrica situada em Casal Monferrato encer-rou suas atividades em 1986, mas desde 1953 a asbsestose já era reconhecida como uma doença profissional”, explica.

Em 2008, dos 27.539 casos de doenças pro-fissionais denunciados ao Istituto Nazionale per L’assicurazione Contro Gli Infortuni Sul Lavoro (INAIL), 2 mil estavam relacionados a tumores causados pelo amianto.

Apesar do INAIL prever indenização às ví-timas de doenças ocupacionais, como a ex-posição ao amianto, um dos maiores impas-ses causados pela fibra assassina é o flagelo de centenas de pessoas que nunca trabalha-ram para a Eternit, mas indiretamente acaba-ram contraindo a asbestose.

Segundo os juízes da procuradoria de Turim, em Casale Monferrato, a Eternit vendia a preços simbólicos seus descartes de produção para enti-dades públicas e privadas que utilizam o amian-to para pavimentar ruas e isolar tetos, por exem-plo. Isso significa que, provavelmente, mesmo sem nunca ter entrado na Eternit, o número de habitantes expostos à fibra killer é incalculável. “No caso da atual ação coletiva que deu origem ao processo trabalhista contra a Eternit, conse-guimos contatar cerca de 50 pessoas com abes-tose ou familiares das vítimas para convencê-las a apresentar-se como parte civil em Turim”, co-menta Orianno Lazaretti, responsável pelo depar-tamento de prevenção e tutela do sindicato CGIL da região Reggio Emilia. “O problema é que mui-

tos ex-funcionários da Eternit transferiram-se para outras cidades e não sabemos se foram in-formadas sobre os riscos do amianto”, completa.

Em 2007, o governo liderado pelo ex-premiê, Romano Prodi, criou um fundo nacional para as vítimas do amianto, cerca de 30 milhões de euros que ainda não chegaram aos trabalhadores con-taminados em razão de um impasse legislativo: a falta de um regulamento que defina os critérios de acesso a tal fundo.

As vítimas e seus familiares aguardam ansio-samente o desfecho dessa situação, mas mesmo na hipótese de uma decisão favorável, o fun-do não seria destinado a cidadãos comuns afe-tados pelo amianto, mas somente àqueles que obtiveram do INAIL o reconhecimento de uma doença profissional.

“Por esse motivo, o ideal também seria ado-tar a lógica da contaminação ambiental, com-provada, por exemplo, por um departamento de oncologia, e não exclusivamente aquela do amianto como doença profissional”, conside-ra Bruno Pesce.

novos casosSe na Itália a tutela às vítimas do amianto e

seus familiares ainda é incerta, na França o fun-do criado em 2000 para o ressarcimento de me-soteliomas, tumores pulmonares, asbestose e placas plêuricas é de 550 milhões de euros. Se-gundo a Agence française de sécurité sanitaire de l’environnement et du travail (Afsset), o amianto é responsável por cerca de 20% dos casos de cân-cer pulmonar em território francês e, até 2005, provocará mais de 100 mil mortes.

Enquanto isso, em cidades italianas como Ca-sale Monferrato e Rubiera, o amianto continua a gerar pânico e muitos de seus habitantes defi-nem-se como verdadeiras bombas-relógio.

O caso de Romana Blasotti Pavese, por exem-plo, é emblemático. Presidente da Associação dos Familiares das Vítimas do Amianto, Romana, 80 anos, perdeu o marido, a irmã, a prima e a sobri-nha. E quando o amianto parecia ter lhe roubado tudo, acabou perdendo a própria filha, em 2004.

Assim como ela, todas as segundas-feiras, dia de audiência, os habitantes de Casale Monferra-to lotam os oito ônibus que partem bem cedinho para chegar até o tribunal de Turim.

Nas salas do tribunal, a cada semana são ou-vidas diversas testemunhas, como Giuliana Bus-to, que perdeu o irmão de 33 anos, um espor-tista que nunca prestou serviços para a Eternit, Carlo Lidl, cuja esposa morreu por causa de um mesotelioma plêurico, ou Nicola Pondrano, que perdeu mais de 50 amigos por culpa do amianto. No total, os advogados de defesa das vítimas do amianto convocaram 3 mil testemunhas e mui-tas delas repetem que no final de uma jornada de trabalho na multinacional, os clássicos ma-cacões azuis dos operários da fábrica Eternit fi-cavam recobertos de pó branco.

O processo trabalhista coletivo contra a Eternit na Itália está concentrado em um dossiê de 220 mil páginas e espera fazer justiça a mais de 3 mil

mortos. O pedido de ressarcimento das vítimas é de 5 bilhões de euros, mas ainda é cedo para pre-ver qualquer resultado sobre o julgamento.

Até agora, os dois acusados por negligência, Jean Louis de Cartier e Stephan Schmidheiny - que, ironia do destino, é o fundador da associa-ção Avina para o desenvolvimento sustentável na América Latina - não compareceram às audiên-cias designadas pelo tribunal de Turim.

Contudo, como explica Bruno Pesce, a tese de defesa adotada por seus advogados susten-ta, entre outras objeções, que no passado não existiam evidências científicas suficientes que demonstrassem os riscos do amianto. Alguns acreditam, por exemplo, que o crisotilo puro, o tipo mais comum do mineral amianto, seja in-capaz de provocar o mesotelioma pleurico, mas na verdade o crisotilo quimicamente puro não existe in natura e é sempre contaminado por substâncias como íons de ferro que desenca-deiam suas propriedades patógenas.

O objetivo dos defensores é demonstrar que, antes que a lei contra o amianto tivesse sido ado-tada na Itália, em 1992, o crime não existia.

A defesa dos acusados também pede que os operários que obtiveram ressarcimento da Eternit, quando o ramo italiano da fábrica havia decla-rado falência, e aqueles que já receberam algum tipo de indenização por mesotelioma plêurico se-jam excluidos do processo. Além disso, o advo-gado de De Cartier é contrário ao fato que o INPS italiano, que alega ter sofrido um grande dano patrimonial, seja admitido como parte civil no mesmo processo.

Como acontece em qualquer batalha legal, os fins justificam os meios e por isso a Etex Group, multinacional comandada por Cartier, se opõe às partes civis que trabalharam na Eternit, mas não durante o periodo belga. A mesma posição foi adotada pelo advogado de Stephan Schmidheiny em relação ao período suíço.

sentença exemPlarApesar das inúmeras polêmicas que circun-

dam o caso Eternit na Itália, na opinião de Bruno Pesce, “o importante é que a sentença seja justa e sirva de exemplo para os países que ainda não aboliram definitivamente o uso do aminato”.

No caso do Brasil, segundo a Associação Bra-sileira dos Expostos ao Amianto (Abrea); até o momento, essa proibição foi aprovada e manti-da somente no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. Isso porque as normativas de São Paulo e Mato Grosso do Sul foram anuladas por decisão do Supremo Tribunal Federal em 2003.

Vale lembrar que algumas localidades do ter-ritório nacional ainda são altamente expostos à fibra assassina, como Bom Jesus da Serra, na Bahia, ex-sede da SAMA, a primeira empresa mi-neradora de amianto de porte no país, e Minaçu, em Goiás. Uma reponsabilidade moral e econô-mica diante da qual nenhum governo deveria fe-char os olhos.

Anelise Sanchez é jornalista.

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o que mais chama a atenção em Júlio Pe-cly e Paulo Silva é o bom humor. Sem-pre sorrindo, eles contam a história de

como se conheceram, há três décadas, na fave-la carioca Cidade de Deus, onde eram vizinhos – as famílias deles já se conheciam, Paulo diz que viu quando Júlio chegou da maternidade. Falam também das afinidades, do amor pelo cinema, dos cursos que fizeram juntos. Júlio, 38 anos, é negro, cadeirante e morador da favela, onde di-vide uma casa de dois quartos, sala e banhei-ro com outros seis familiares. Paulo, 42 anos, é branco, imigrante amazonense, vive hoje em Mesquita, município da Baixada Fluminense.

Filho de pai caminhoneiro e mãe cobrado-ra de ônibus, Júlio foi criado pelos avós – ele pintor, ela empregada doméstica. O cineasta foi alfabetizado pela avó e já chegou ao jardim de infância sabendo ler. Paulo também foi alfabe-tizado antes de entrar na escola e passou dire-to a 1ª série.

Os dois eram fissurados por cinema desde cedo. Devoravam a revista Cinemin, especiali-zada em filmes da extinta editora Editora Bra-sil-América Latina (Ebal), passavam dias inteiros assistindo a filmes. “Nosso maior curso foi ver filmes”, diz Paulo. Júlio, por sua vez, tinha um caderno onde anotava todos os filmes que via,

com as seguintes informações: nome da obra, di-retor, três atores, e ainda dava nota. Com a en-chente que abalou a cidade do Rio de Janeiro em 1996 ele perdeu tudo. “Mais de sete mil fil-mes”, garante.

O primeiro curso de cinema que fizeram foi em 2003, no âmbito do Projeto Cinemaneiro, no SESC dos Apês, na Cidade de Deus. Fizeram a inscrição, não foram selecionados. Apesar da negativa, compareceram ao primeiro dia de aula. “Professora, podemos assistir como ouvintes?”. Ficaram. No segundo dia, a mesma coisa. En-tão, os responsáveis pelo curso acabaram abrin-do uma exceção para eles. Depois fizeram ou-

Nascidos na favela carioca e apaixonados pela sétima arte desde a infância, a dupla de cineastas fez doze filmes e ganhou vinte e um prêmios, dois deles internacionais.

O cinema de Júlio e Paulo: da cidade de deus para o mundo

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Marcelo Salles é jornalista. [email protected]

tros, no Nós do Cinema (hoje Cinema Nosso) e na Central Única de Favelas (Cufa).

Para ir da Cidade de Deus, em Jacarepaguá, à produtora onde trabalham, a Cavídeo, no Hu-maitá, zona sul do Rio de Janeiro, Júlio e Paulo levam cerca de duas horas. No trajeto, tudo pa-rece atrapalhar. O chão esburacado da favela, a falta de rampas nas calçadas, a falta de trans-porte público adequado para quem não cami-nha com os próprios pés. A linha de ônibus que eles geralmente pegam, a 268, só tem um car-ro adaptado para cadeirante. Então, na maioria das vezes, Paulo carrega Júlio, no braço, para dentro do ônibus, e em seguida leva a cadeira. Depois que chegam ao centro da cidade, e após passar pela mesma dificuldade para desembar-car, os dois tomam o metrô para continuar a via-gem até a zona sul. A negligência das empresas de ônibus e de todas as outras que não adequam seus equipamentos atinge aproximadamente 25 milhões de brasileiros que possuem algum tipo de deficiência – física, auditiva, visual, intelec-tual ou múltipla.

Apesar de todos os pesares, chegam animados à produtora, que fica no segundo andar de um centro de abastecimento de alimentos, a Cobal. No feriado de São Jorge, comemorado no dia 23 de fevereiro, encontro Júlio ao pé da escada, so-zinho, esperando uma “carona” para subir. Ele veste a camisa do Flamengo, mas estava chate-ado com a atuação do time contra o Caracas, da Venezuela – a magra vitória por um gol de di-ferença quase desclassificou a equipe, que ter-minou a primeira fase da Copa Libertadores da América em último lugar.

FutebolA paixão pelo futebol rendeu o curta-metra-

gem Canal 001, uma homenagem ao extinto Ca-nal 100, cinejornal fundado em 1957 por Carlos Niemeyer que exibia semanalmente documentá-rios cinematográficos a respeito de jogos e even-tos esportivos importantes. No filme de Júlio Pe-cly, que tem produção executiva de Paulo Silva, é narrada uma partida entre dois times fictícios, Ferro Velho e Funil, que disputam uma final de campeonato num campo de várzea. Em que pe-sem as caneladas dos atores, a trilha sonora, Car-mina Burana, e o texto dramático de Nelson Ro-drigues, ainda que adaptado do original, feito para um Fla-Flu, são suficientes para arrepiar até os telespectadores mais insensíveis.

Desde que começaram a trabalhar com cine-ma, há seis anos, Júlio e Paulo fizeram doze fil-mes juntos. Ganharam vinte e um prêmios, sen-do dois internacionais: o Festival do Rio e o Festival de Cinema de Países de Língua Portu-guesa, ambos com a obra 7 minutos. O filme, sobre a violência na favela, mostra uma disputa entre dois traficantes varejistas. O grande dife-rencial, além da visão de um diretor que vive na favela, está na câmera subjetiva, que num único plano sequencial dá ao telespectador a visão de um dos personagens. Pergunto se ele não acha o final previsível, com a morte de um dos trafi-

cantes. “O telespectador sabe que ele vai morrer, mas não sabe como. E é isso que o prende à his-tória”, responde.

Cavi Borges, dono da Cavídeo, é um grande entusiasta do trabalho de Júlio e Paulo. “De cada dez pessoas que chegam aqui querendo fazer fil-mes, você pode descartar dois terços. A maio-ria desiste diante da primeira dificuldade”, diz. Atualmente existem 20 pessoas tocando projetos diferentes na produtora, cujo espaço não exce-de 20 metros quadrados. Além de um computa-dor e uma ilha de edição, o lugar tem um telefo-ne, uma impressora, um armário com DVDs de filmes, um balcão onde as pessoas deixam mo-chilas e pertences, uma pequena mesa redonda e uma meia dúzia de cadeiras, se tanto. No an-dar de baixo funciona a locadora Cavídeo, tam-bém pequeninha, que tem todos os filmes que uma locadora normal tem e mais aqueles distri-buídos pela produtora homônima.

Mas a infraestrutura precária não impede a realização de filmes. Ao todo, a Cavídeo já pro-duziu 42 curtas-metragens e três longas. O con-ceito de fazer muito com muito pouco levou Jú-lio, Paulo, Cavi e outros, como o músico Marcelo Yuka, a cineasta Kátia Lund, o escritor Paulo Lins e os atores Leandro Firmino da Hora e Na-tália Lage, a criarem a Companhia Brasileira de Cinema Barato, mais conhecida como CBCB. A proposta nasce após o surgimento da tecnolo-gia digital, o que barateia muito a produção de filmes e favorece o fenômeno conhecido como Cinema de Periferia. Para se ter uma ideia, um orçamento considerado baixo para um longa filmado em película é R$ 1 milhão. Já o lon-ga filmado em digital pela Cavídeo, o Vida de balconista, foi produzido com apenas R$ 2 mil, especialmente para ser veiculado em telefones celulares. “É o primeiro longa para celular da história”, afirma Cavi.

Júlio Pecly garante: “A gente tem uma ideia. Se tiver dinheiro, faz o filme. Se não tiver, faz também”. Diante dessa afirmação, faço a per-gunta inevitável. E quanto você precisa para fa-zer um filme? “Mil reais”. Claro que essa conta é exagerada e depende da boa vontade de todos os trabalhadores envolvidos com a produção, mas Cavi calcula que com aproximadamente 10% do orçamento de película é possível pagar os salá-rios numa realização digital. “Tenho o sonho de conhecer o Eike Batista pra ver se ele financia um filme meu”, diz Júlio.

AudiovisuAlA CBCB nasce, em 2008, com um manifesto

pela democratização do cinema. “Durante anos os latifundiários do audiovisual brasileiros dita-ram uma fórmula milionária e excludente”, afir-ma o documento, disponível na internet. A com-panhia defende que “os rejeitados, os filhos dos guetos, das favelas e periferias (...) passem de simples personagens a realizadores de audiovi-sual de qualidade”.

O manifesto toca num ponto nevrálgico do audiovisual brasileiro: financiamento e distri-

buição. O tema é tão sensível que quando o go-verno federal tentou democratizar esse segmen-to dos meios de comunicação, com a criação da Ancinav – Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual, em 2004, a grita foi grande. Foi tão grande que o projeto não foi à frente. “Os caras que fazem cinema hoje são os que fazem há 50 anos, são os que mais atrapalham o cinema. É uma fórmula arcaica”, critica Júlio.

Mas o cineasta, cuja maior paixão é ler e es-crever, garante que não quer mudar o mundo. “Só quero contar histórias comuns de pesso-as comuns”. Ele também gosta de contar histó-rias ambientadas na favela, simplesmente por-que acha que acontecem coisas interessantes nesses espaços, como noutro qualquer. No cur-ta Jogo de Damas isso fica muito claro. Enquan-to dois parceiros matam o tempo no tabuleiro, no fundo crianças brincam, pessoas conver-sam descontraidamente. Tudo torna o ambiente agradável, mostrando que na favela não exis-te apenas violência como fazem parecer as cor-porações de mídia.

Paulo participa como ator em Jogo de Da-mas. Aliás, eles fazem todos os filmes juntos. E vão se alternando. Ora um produz e outro faz o roteiro, depois um dirige e o outro atua, e por aí vai.

Paulo fala bastante. Gosta de discorrer so-bre a história do cinema, cita filmes e atores que marcaram época, fala com orgulho que a primei-ra exibição de um filme foi no Café Paris, mas a segunda foi no Rio de Janeiro, na avenida Rio Branco, em 1910.

Júlio, por sua vez, fala pouco. Na maior parte do tempo em que estive com ele na produtora, o computador foi seu parceiro favorito. Ali ele se dividia entre a procura por novos editais e filmes no Youtube. Pergunto o que mais ele ama no ci-nema. Com uma serenidade fora de série, expli-ca: “A sensação de ver algo que você criou na tela me deixa feliz. Só quero contar histórias que me interessem e que interessem aos outros”.

Não é pouco. Júlio foi parar na cadeira de ro-das em função de uma doença hereditária cha-mada distrofia muscular progressiva, que causa a degeneração da membrana que envolve as cé-lulas musculares e pode levar à morte. Ele soube disso aos 11 anos de idade e oito anos depois já não caminhava. Hoje, aos 38, tem os movimen-tos dos braços bastante reduzidos. Não consegue mover sua própria cadeira.

Mas suas ideias seguem em movimento. Ele e Paulo estão filmando seu primeiro longa-me-tragem, intitulado 13 de fevereiro. O filme será do tipo documentário e vai contar a história da enchente de 1996, que deixou dezenas de mor-tos e milhares de desabrigados no Rio de Ja-neiro. E quando soube que o filme A Distração de Ivan, de Cavi Borges, foi selecionado para a mostra competitiva em Cannes, Júlio comemo-rou: “Isso é ótimo! Pode abrir muitas portas para o futuro”.

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Cesar Cardoso

O discurso da esquerda necessariamente parte da denúncia da realidade das nossas socie-dades. Busca revelar as mazelas da realidade, às vezes avança na compreensão das raízes dos pro-blemas. Essa é uma atividade permanente e indis-pensável da militância de esquerda, na luta por uma sociedade justa, solidária, humanista.

Porém, a denúncia e até mesmo a análise das raízes dos problemas são práticas necessá-rias, mas não suficientes, se não desembocam em propostas, em alternativas superadoras dos problemas apontados. Os intelectuais e algumas formas organizadas da esquerda se limitam às denúncias, alguns inclusive reivindicam o direi-to de “desmascarar” o que consideram ser falsi-dades propagadas por outros setores da esquer-da, como se a verdade pudesse ser resultado da simples denúncia.

O marxismo, que constitui o melhor método de análise e fonte de projetos transfor-madores da realidade, pretende ser não apenas uma interpretação nova da realidade, mas ter no seu bojo, intrinsecamente, projetos de trans-formação revolucionária do mundo. Não existe separação entre análise e ação política. Nas pa-lavras de Álvaro García Linera, ele mesmo inte-

Emir Sader

Emir Sader é cientista político.

Se Cesar Cardoso fosse Cesar Cardoso, seria escri-tor e teria um blog chamado PATAVINA’S (www.cesarcar.blogspot.com). Mas...

Se a eleição fosse hoje...

RAZÃo e PAIXÃo

... em qual seleção você votava? Argen-tina? Espanha? Costa do Marfim? Você tirava o Lula, botava o Adriano e recuava o Robinho?

Imagine o seguinte: por uma dessas coincidên-cias a final da Copa do Mundo vai cair na mesma hora da eleição. Pra piorar, o Tribunal Eleitoral e a Globo não chegaram num acordo, então você tem que escolher: ou vota ou vê a final. E o Brasil tá na final, é claro! Você prefere um presidente eleito ou uma seleção campeã? Qual dos dois vai mudar o país? Uma seleção campeã serve pra gente come-morar no maior porre e pra centenas de contratos milionários (nenhum conosco, também é claro!) E um presidente, serve pra quê?

Eu, você, todo mundo joga uns dois reais por semana na mega-sena. Mas quanto a gente investiria num presidente? Se a gente fizer uma vaquinha, dá pra comprar um? Ou pra isso tem que ser vaquinha de latifundiário com ban-queiro e empresário? E um presidente se vende? É no cheque, no cartão ou em dinheiro? Tem que ser à vista ou rola um crediário?

Se a eleição fosse hoje, você votava na Dilma, no Serra ou no Dunga? E se a eleição fosse pra técnico da seleção e o Ricardo Teixeira sozinho escolhesse o presidente? O Brasil melhorava no campo? E na ci-dade? Afinal, uma eleição serve pra quê? E um pre-sidente, serve a quem?

Mas... e se a eleição não fosse hoje? Isso! Nem a eleição nem a final da Copa. Se hoje fos-se, por exemplo, o Dia Universal do Líquido Amnió-tico ou da Proclamação da Escravidão? Ou fosse, di-gamos, o Dia Mundial da Giárdia ou do Assassinato por Motivo Torpe? Ou pior ainda: se hoje fosse hoje? Só hoje, hoje e mais nada? O que você faria?

Nunca é o dia certo, não é mesmo?

lectual revolucionário e dirigente revolucioná-rio boliviano, não pode haver separação entre razão e paixão.

O intelectual tende a privilegiar a teoria – os princípios em estado puro – em detrimen-to da utilização do método dialético, que bus-ca a verdade concreta nos processos históricos realmente existentes. E não se trata de que a análise sem a proposta de intervenção concre-ta fica incompleta. Não. A análise desvinculada da perspectiva de intervenção não capta os fios que articulam a realidade e perde a capacidade de compreensão da realidade também.

Não por acaso os intelectuais tendem a uma visão ultraesquerdista, porque, entre a pure-za da realidade e a impureza das formas concre-tas que assumem os processos históricos, ficam com a primeira, contrapondo-a à esta e a desqua-lificando. Tendem ao pessimismo e à inação.

Enquanto isso, o pensamento dialético, bus-cando captar a realidade no seu movimento, articulado em torno das contradições, tende a projetos que apontam para espaços de ação, de acumulação de forças, de intervenção, de trans-formação da realidade, de paixão intimamente vinculada à razão.

sugestões de leItuRA

GEOGRAFIA, TRADIÇÕES E PERSPECTIVAS:Interdisciplinaridade, meio ambiente e representaçõesAmalia de Lemos e Emerson Galvani (orgs.)Editora Expressão Popular

CONTEXTOS DA JUSTIÇARainer ForstBoitempo Editorial 2003-2010 – O BRASIL EM TRANSFORMAÇÃOA nova política econômica e a sustentabilidade ambientalEditora Fundação Perseu Abramo

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43maio 2010 caros amigos

IDEIAS DE BOTEQUIMRenato Pompeu

“Rosas de maio”, nome de canção gravada nos anos 1940 pelo grande Carlos Galhardo, é a frase que me ocorre para saudar o grande lan-çamento do mês: a Poesia completa, de mais de 490 páginas, do grande Manoel de Barros, volume lançado pela Leya, com capa dura e magnífi cas ilustrações coloridas. Estão no livro desde os “Poemas concebidos sem pe-cado”, de 1937, até o “Menino do mato”, de 2010. Na parte infantil, des-de os “Exercícios de ser criança”, de 1999, até o “Poeminha em Língua de brincar”, de 2007. Aqui vão dois “desenhos verbais”: “Sapo é um pedaço de chão que pula”, “Poesia é a infância da língua”.

De capa também dura, mas mais mole do que a da Poesia completa, é O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, do famoso soció-logo, já falecido, Gilberto Freyre, publicação da Global. O autor pesquisa os anúncios de compra e venda e de aluguel de escravos e os de busca de es-cravos fugidos para anotar características dos negros no Brasil na época. Há belas ilustrações. Exemplo de anúncio: “Escravos fugidos. ATTENÇÃO. Fugio desde o dia 13 de agosto do corrente ano o escravo Luiz, com os signaes se-guintes: alto e bem feito de corpo, tem dentes limados e perfeitos e o dedo mínimo do pé cortado; quando falla com medo é bastante gago. Este escra-vo é natural do Sobral e ha toda certeza que seguio para dito lugar por ter-ra. Pede-se por tanto a sua apprehensão a qualquer pessoa, que será bem re-compensado: a ntender com o seu senhor na rua Direita n. 112, ou na rua de Apollo n. 43, armazém de assucar”. Por aí fi camos sabendo que se limavam os dentes dos escravos e que deles era amputado o dedinho do pé.

Igualmente de capa dura, mas ainda menos dura do que O escravo, é o volume de estudos antropológicos Religiões e cidades – Rio de Janeiro e São Paulo, organizado por Clara Mafra e Ronaldo de Almeida, lan-çado pela Editora Terceiro Nome. Em discussão, temas como religião e me-trópole, pluralismo religioso e espaço metropolitano, o sagrado no tempo e

espaço metropolitano, religiosida-des japonesas no bairro da Liber-dade e pregações na praça da Sé, nos dois casos em São Paulo.

Outra bela edição de capa dura, mas desta vez dura mesmo, é a coleção Temas da arte con-temporânea, seis livrinhos da es-critora e professora Katia Canton, em publicação da WMF Martins Fontes conjunta com o Progra-ma de Ação Cultural da Secreta-ria da Cultura do Estado de São Paulo. Os seis volumes: Tempo e memória, Narrativas enviesa-das, Espaço e lugar, Do moderno ao contemporâneo, Da política às micropolíticas, Corpo, identidade e erotismo.

As capas mais moles de to-das até agora, mas ainda as-sim espessas e resistentes, são dos livros da Coleção Contem-porânea, lançamentos da Civi-lização Brasileira: Ficção bra-sileira contemporânea, de Karl Erik Schollhammer, que abar-ca desde os anos 80 até os anos 00, e A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno, de Márcio Seligmann-Silva, sobre os famosos pensado-res alemães da Escola de Frankfurt.

Do mesmo modo, espessa e resistente é a capa de História da riqueza do homem – Do feudalismo ao século XXI, célebre obra do americano Leo Hu-berman, em 22.a edição revista e ampliada, com dois capítulos sobre a se-gunda metade do século XX, de autoria da pesquisadora brasileira Marcia Guerra. A bela edição é da Gen-LTC.

Grossa como papelão é a capa de Curral da morte – O impea-chment de sangue, poder e política no Nordeste, de Jorge Oliveira, obra que, apesar de publicada por uma grande editora, a Record, não teve a divulga-ção que seria merecida e necessária. Diz a contracapa: “Se olharmos o mapa de Alagoas com atenção, veremos que tem o formato exato de uma pisto-la. A coronha ao norte, onde está a capital, Maceió; o cano aponta para o sertão pernambucano; e o gatilho fi ca em Palmeira dos Índios, terra onde vivem os Xucuru, ainda espantados pela colonização litorânea, e os Cariri, fugidos de Pernambuco. A cidade começou com uma capelinha de tijolo e taipa construída por Frei Domingos na Serra Boa Vista em 1773. Eis o cená-rio ideal dessa história: o gatilho”. O centro do livro é o episódio de 1957, quando ocorreu um tiroteio, com 1.200 tiros e vários mortos, entre os de-putados na Assembleia Legislativa de Alagoas, na sessão em que se deveria votar o impeachment do governador Muniz Falcão.

Outra brochura de capa resistente retrata a “pós-cidade” e o “pós-urba-no”. Trata-se de A condição urbana – A cidade na era da globalização, do pesquisador francês Oli-vier Mongin, edição ilustrada da França.br e Es-tação Liberdade. As grandes metrópoles pratica-mente sem limites de hoje, ainda por cima ligadas pela internet e outras redes, desafi am as noções de identidade cívica herdadas das cidades gregas antigas, das cidades italianas do Renascimento, de Paris como cidade-luz, e das grandes cidades in-dustriais do passado.

ca desde os anos 80 até os anos 00, e A atualidade de Walter Benjamin e de

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do ro-mance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editor-espe-cial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.

Manoel de Barros, a rosa de maio, E OUTRAS CAPAS MAIS OU MENOS DURAS

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Ari Zenha de Oliveira

A água é fonte e condição de existência do homem no mundo. A Terra dispõe aproximadamente de 1,3 bilhão quilômetros cúbicos de água, mas eles estão distribuídos em mares, lagoas, rios, nas áreas subterrâneas (aquíferos), gelo, neve e vapor.

Grande parte da água usada é jogada sem trata-mento no sistema hidrológico; um metro cúbico de água usada, contaminada deteriora mais de dez me-tros cúbicos de água pura.

Estima-se que por volta de 2050 mais de qua-tro bilhões de pessoas de então – quase a metade da população mundial – estarão em países com neces-sidade efetiva e crônica de água. A indústria é dos maiores usuários de água, consumindo 21% do to-tal da disponibilidade de água no planeta, enquanto o uso doméstico fi ca em torno de 10%.

O planeta Terra dispõe de 1, 386 bilhão de km3 de água, sendo 97,5% salgada, e, somente 2,5% de água doce, das quais 2/3 estão indisponíveis para o uso humano, pois estão localizados em geleiras, ne-ves, gelos e subsolo congelado. Hoje, cerca de 500 milhões de pessoas moram em países com escassez crônica de água e aproximadamente 2,4 bilhões resi-dem em países onde o sistema hídrico está ameaça-do. Os povos que habitam as regiões mais secas es-tão na África e na Ásia.

Alguns números da utilização da água no mun-do merecem destaque: para cultivar um quilo de ar-roz são necessários 1.900 litros de água; as carnes de boi e de carneiro têm um volume alto de utilização de água, um quilo de carne consome 15.000 litros de água; um quilo de soja consome 1.650 litros de água; um quilo de batata consome 500 litros de água; um quilo de trigo consome 900 litros de água.

A água consumida na indústria, entre as quais podemos citar: a química e petroquímica, as de me-tal, as de madeira, as de papel e celulose, as de pro-cessamento de alimentos e as de máquinas conso-mem cerca de 21% de toda a água doce do planeta; isto representa 130 m3 por pessoa anualmente.

A irrigação é outra questão vital do uso da água. Os países industrializados respondem por cerca de 25% das lavouras irrigadas. Já os países em desen-

volvimento estão usando até 40% de suas águas do-ces para irrigação.

Acontecimentos desastrosos, não só para o uso da água e do meio ambiente, foi a irrigação que levou ao declínio e perecimento do mar Aral. A par-tir de 1957, este mar, localizado na Cazaquistão, teve uma redução de 50% de sua área e de mais de 66% em seu volume devido ao desvio dos rios Amu Darya e Syr Darya, levando praticamente à sua extinção.

O consumo da água para fi ns domésticos tem mostrado sinais fortes de desperdício, devido en-tre outras coisas, à perda em vazamentos chegan-do a 40%. A água que pinga de torneiras desperdi-çam mais do que a utilizada para beber e cozinhar, e mais, cerca de 30% das águas domésticas se perde nas descargas dos vasos sanitários.

Enquanto que nos países em desenvolvi-mento 20 litros de água são considerados um luxo, os habitantes dos países desenvolvidos consomem 20 litros de água para regar seus jardins.

Vários governos do mundo estão dando concessão à iniciativa privada para que elas operem e explorem o sistema hídrico como uma mercadoria e empreen-dimento empresarial/comercial. Neste sentido, a po-lítica dessas empresas privadas almeja o lucro oriun-do deste recurso vital para a humanidade. Em países que adotaram este modelo, o preço da água mais que triplicou.

Tudo que dissemos aqui está consolida-do dentro de uma estrutura de produção capitalista que vem impondo, há pelo menos dois séculos, seu imperativo destruidor não só ao ser humano como também à natureza em toda a sua amplitude.

É de forma implacável, como podemos cons-tatar, a destruição da natureza pelo sistema capi-talista, na sua busca de lucro, de acumulação e re-produção do seu sistema produtivo por meio do crescimento intensivo e permanente de suas forças produtivo-destrutivas, custe o que custar. É isto o que impera neste modo de produção, queiram ou não admiti-lo.

Ari de Oliveira Zenha é economista.

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